tratado das aÇÕes - pontes de miranda -tomo 1

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TRATADO DAS AÇÕES – TOMO I – AÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E EFICÁCIA. Tábua sistemática das matérias Parte 1 Mundo jurídico, fatos jurídicos e irradiação de efeitos Capítulo 1 Mundo jurídico e fatos jurídicos § 1º Mundo fático e mundo jurídico . 1. Conceito de mundo fático e conceito de mundo jurídico. 2. Extensão do mundo fático a extensão do mundo jurídico. 3. Efeitos dos fatos jurídicos § 2º Classificação dos fatos jurídicos. 1. Classificações principais dos fatos jurídicos. 2. Exemplificações. 3. Clas- sificação dos fatos jurídicos em fatos de direito público e fatos de direito privado. 4. Fatos jurídicos no direito público. § 3º Atos e fatos de direito público . 1. Atos de direito público e sua classificação. 2. Atos jurídicos stricto sensu no direito público. 3. Negócios jurídicos bilaterais entre pessoas privadas, no direito público. 4. Atos do atado no direito privado. 5. Fatos administrativos. 6. Fatos de direito público conforme a hierarquia das regras jurídicas. 7. Atos discricionários dos poderes públicos. Capítulo II Direitos, deveres, pretensões, ações e exceções § 4º Direitos e deveres . 1. Direito subjetivo e titularidade; precisão do conceito. 2. Lado passivo da relação jurídica 3. Correlação entre direito e dever. 4. Bens da vida e interesses. 5. Direito e dever; sujeito ativo e sujeito passivo. 6. Direito subjetivo e faculdades. 7. Poderes contidos nos direitos. 8. Poderes-direitos; direitos potestativos; direitos formativos 9. Dever moral’, “obrigação natural . § 5º Conceito e conteúdo da pretensão . 1. Conceito de pretensão às conceituações a serem evitadas. 2. de como se exigem as pretensões 3. Diversidade do conteúdo das pretensões- 4. Ação declaratória e pretensão do direito material. 5. Pretensão que contêm ação e pretensão sem ação. 6. Direitos absolutos e pretensão. 7. Direitos formativos e pretensão. 8. Direitos relativos pretensões. § 6º Pretensão e obrigação 1. Conceito de pretensão.2. Fim da pretensão. 3. Precisão do conceito de pretensão 4. Pretensão e figuras que com ela não se confundem. § 7º Espécies de pretensões . 1. Pretensões pessoais e pretensões reais. 2. Pretensões obrigacionais ditas inrem scriptae 3. Contra quem se dirigem as pretensões reais. 4. Pretensões e direitos ulteriormente nascidos, ou nascidos á parte. 5. Pretensão real, ação real e créditos surgidos da violação. Capítulo III Exercício dos direitos, das pretensões, das ações e das exceções § 8º Conteúdo e exercício . 1. Conteúdo e exercício. 2.Pedido de cumprimento e exigência de pretensão. 3. Escala dos exercícios. 4. Exercícios dos direitos formativos 5. Exercício das pretensões. 6. Exercício das ações. 7.Exercício das exceções; principio da indiferença das vias. 8. Exceções e direitos formativos extintivos, após a coisa julgada

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TRATADO DAS AÇÕES -PONTES DE MIRANDA.TOMO 1

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Page 1: TRATADO DAS AÇÕES - PONTES DE MIRANDA -TOMO 1

TRATADO DAS AÇÕES – TOMO I – AÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E EFICÁCIA.

Tábua sistemática das matérias

Parte 1

Mundo jurídico, fatos jurídicos e irradiação de efeitos

Capítulo 1 Mundo jurídico e fatos jurídicos § 1º Mundo fático e mundo jurídico. 1. Conceito de mundo fático e conceito de mundo jurídico. 2. Extensão do mundo fático a extensão do mundo jurídico. 3. Efeitos dos fatos jurídicos § 2º Classificação dos fatos jurídicos. 1. Classificações principais dos fatos jurídicos. 2. Exemplificações. 3. Clas-sificação dos fatos jurídicos em fatos de direito público e fatos de direito privado. 4. Fatos jurídicos no direito público. § 3º Atos e fatos de direito público. 1. Atos de direito público e sua classificação. 2. Atos jurídicos stricto sensu no direito público. 3. Negócios jurídicos bilaterais entre pessoas privadas, no direito público. 4. Atos do atado no direito privado. 5. Fatos administrativos. 6. Fatos de direito público conforme a hierarquia das regras jurídicas. 7. Atos discricionários dos poderes públicos.

Capítulo II Direitos, deveres, pretensões, ações e exceções § 4º Direitos e deveres. 1. Direito subjetivo e titularidade; precisão do conceito. 2. Lado passivo da relação jurídica 3. Correlação entre direito e dever. 4. Bens da vida e interesses. 5. Direito e dever; sujeito ativo e sujeito passivo. 6. Direito subjetivo e faculdades. 7. Poderes contidos nos direitos. 8. Poderes-direitos; direitos potestativos; direitos formativos 9. Dever moral’, “obrigação natural . § 5º Conceito e conteúdo da pretensão. 1. Conceito de pretensão às conceituações a serem evitadas. 2. de como se exigem as pretensões 3. Diversidade do conteúdo das pretensões- 4. Ação declaratória e pretensão do direito material. 5. Pretensão que contêm ação e pretensão sem ação. 6. Direitos absolutos e pretensão. 7. Direitos formativos e pretensão. 8. Direitos relativos pretensões. § 6º Pretensão e obrigação 1. Conceito de pretensão.2. Fim da pretensão. 3. Precisão do conceito de pretensão 4. Pretensão e figuras que com ela não se confundem. § 7º Espécies de pretensões. 1. Pretensões pessoais e pretensões reais. 2. Pretensões obrigacionais ditas inrem scriptae 3. Contra quem se dirigem as pretensões reais. 4. Pretensões e direitos ulteriormente nascidos, ou nascidos á parte. 5. Pretensão real, ação real e créditos surgidos da violação.

Capítulo III Exercício dos direitos, das pretensões, das ações e das exceções § 8º Conteúdo e exercício. 1. Conteúdo e exercício. 2.Pedido de cumprimento e exigência de pretensão. 3. Escala dos exercícios. 4. Exercícios dos direitos formativos 5. Exercício das pretensões. 6. Exercício das ações. 7.Exercício das exceções; principio da indiferença das vias. 8. Exceções e direitos formativos extintivos, após a coisa julgada

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§ 9º Exercício de poderes. 1. Poderes e exercício, 2.Alienação. 3. Escala de exercícios. 4. Exercício consumptivo e exercício não-consumptivo. 5. Ato de disposição § 10º. Exercício e limites do conteúdo. 1. Limites do conteúdo. 2. Excesso e contaminação do ato. § 11º. Exercício e consciência dos atos. 1. Afirmação de direito. 2. Comunicação de conhecimento. § 12º. Liberdade do exercício. 1. Princípio da liberdade de exercício; dever de exercício. 2. Não-exercício; conseqüências. § 13º. Titularidade e exercício. 1. Quem exerce os direitos, as pretensões, as ações e as exceções. 2. Atos-fatos jurídicos. 3. Disposição e exercício. 4. Exercício por outrem. 5. Direitos derivados. 6. Poderes § 14º. Divisibilidade do exercício. 1. Exercício indivisível. 2. Divisão. § 15º. Pressupostos objetivos do exercício. 1. Começo do exercício. 2. Pressuposto probatório e legitimação com cártula. 3. Titularidade e legitimação § 16º. Limites do direito e limites do exercício. 1.Princípio da coextensão do direito e do exercício. 2. Coexistência dos direitos e exercícios de direitos. 3. Promessas quanto a coisas ou atos. 4. Dano a outrem com o exercicio de direitos. 5. Irrelevância do fim do exercício dos direitos e da reserva mental § 17º. Pactum de non petendo. 1. Pacto concernente ao exercício. 2. Direitos reais e pactum de non petendo § 18º. Exercício dos pretensões. 1. Exercício extrajudicial e exercício judicial das pretensões. 2. Exercício da pre-tensão e exercício da ação. 3. Pretensões reais e seu exercício 4. Exigibilidade e pretensão. 5. Insatisfação e ação. § 19º. Pretensão, ação e remédio jurídico processual. 1. Pretensão e ação, 2. Ação. 3. Remédio jurídico processual. 4. Pretensão à tutela jurídica. § 20º. Pretensões desprovidas de ação. 1. Devedor a que não se pode exigir. 2. Inacionabilidade de pretensão e direito de retenção. 3. Interpelabilidade e inacionalidade . 4. Pena convencional e inacionabilidade. 5. Penhor e pretensão sem ação. 6. Ação e compensabilidade . § 21º. Pretensão sem ação e cognição judicial. 1. Pretensão sem ação, alegada em juízo. 2. Direito e pretensão à declaração. § 22º. Exemplos de mutilação. 1. Direitos mutilados e pretensões mutiladas. 2. Excepcionabilidade e acionabilidado. 3. Pretensão futura e ação. 4. Falta pressuposto processual. 5. Falta de ação, em vez de mutilação. 6. Concordata concursal o concordata falencial.

Parte II

Ações em geral

Capítulo 1

Ações § 23º. Pretensão e ação. 1. Princípio geral da acionabilidado das pretensões. 2. Ação (em direito material) e ação (em direito processual). 3. ‘Ação” judicial e “ação’ administrativa. 4. Pretensão sem ação e falsa ablação da ação. 5. Pretensão à tutela jurídica e renunciabilidade das pretensões § 24º. Precisões sobre o conceito de ação. 1. Ação no sentido do direito material. 2. De quando nasce a ação. 3. Ação sem haver pretensão. 4. Ação e tutela jurídica.

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Capítulo II

Classificação das ações § 25º. Espécies de ações. 1. Classificação das ações segundo o quanto de eficácia 2. Ações e preponderância de eficácia. § 26º. Ações e pesos de eficácia. Precisões sobre eficácia. 2. Elementos componentes da eficácia e preponderância 3. Perguntas e respostas sobre a força e a eficácia. 4. Número exato das classes § 27º. Medida de eficácia imediata e de eficácia mediata. 1.Ação declarativa e sentença declarativa. 2. Ação constitutiva e sentença constitutiva. 3. Ação condenatória e sentença condenatória. 4. Ação mandamental e sentença mandamental. 5. Ação executiva e sentença executiva. § 28º. Particularidades da eficácia mediata. 1. Elemento declarativo e elemento constitutivo. 2. Elemento con-denatório. 3, Elemento mandamental. 4. Elemento executivo. § 29º. Elementos mínimos da eficácia sentencia!. 1.Preliminares. 2. Análise das ações. § 30º. Concorrência de ações. 1. Conceito e espécies de concorrência. 2. Propositura de outra ação concorrente. 3. Ações subsidiárias. § 31º. Ação de abstenção.. 1. Tutela jurídica e pretensão à abstenção. 2. Extensão do cabimento da ação de abstenção. 3. Prescrição da ação de abstenção. 4. Preventividade da ação § 32º. Sentenças e eficácia. 1. Conceito de sentença.2. Eficácia das decisões 3. Eficácia sentencial e processo. 4. Classificação das sentenças pela eficácia. 5. Obrigação estatal de decidir e sentença. 6. Sentenças sobre o mérito e sentenças sobre processo. 7. Pesos de eficácia das sentenças . § 33º. Prestação jurisdicional, 1. Conclusio in causa, sentença e eficácia sentencial. 2. Ação e sentença quanto à eficácia. 3. Limites das espécies de eficácia. 4. Precaução de método. 5. Sentença e lei. 6. Análise das classes. 7. Eficácia de coisa julgada material. 8. Imperatitividade e imutabilidade. 9. Pressupostos objetivos.

Capítulo III

Classificação das sentenças § 34º. Sentença declarativa. 1. Conceito, 2. Problemas da coisa julgada material. 3. Ações de estado e eficácia ergo omnes. 4, Modificação da eficácia da sentença. § 35º. Sentença constitutiva. 1. Conceito, 2. Falsos casos de declaratividade. 3. Ações de nulidade e de anulação do casamento. 4. Solução consensual da lide. § 36º. Sentença de condenação. 1. Conceito. 2. Falsos casos de condenatoriedade em casos especiais. 3. Direito intertemporal. § 37º. Sentença mandamental. 1. Conceito. 2. Essencialidade do mandado. § 38º. Sentença executiva. 1. Conceito. 2. Espécies § 39º. Eficácias probatório (A), anexa (B) e reflexa (C). 1.Distinções conceptuais. 2. Efeitos anexos e manda mentalidade. 3. Efeitos reflexos § 40º. Publicação da sentença. 1. Audiência e publicidade da sentença. 2. Audiência oral e sentença.

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§ 41º. Decisão total e decisão parcial. 1. Sentença e questões decididas, 2. Eficácia sentencial e coisa julgada. 3.Sentença sobre questão prejudicial, 4. Sentenças em ações de medidas preventivas

Capítulo IV Tutela jurídica pelo Estado § 42º. Processo e função social. 1. Direito e processo. 2. Justiça de mão própria § 43º. Conceito e natureza da pretensão à tutela jurídica. 1. Justiça de mão própria e tutela jurídica. 2. Finalidade do processo; função judiciária; petição e demanda. 3. Petição e direito a que o Estado preste justiça. 4. Exercício da pretensão à tutela jurídica e jurisdição. 5. Ineliminabilidade do conceito de pretensão à tutela jurídica § 44º. Exercício de pretensão á tutela jurídica e atendimento, 1. Capacidade para ser parte e prestação futura. 2. Prestação jurisdicionai e sentença justa. 3. Pré-processualidade da pretensão à tutela jurídica. 4. Pressupostos da tutela jurídica. 5. Competência judicial e tutela jurídica, 6. Direito material e direito formal § 45º. Exercício da pretensão à tutela jurídica. 1. Dever dos órgãos do Estado. 2. Relação jurídica processual, 3. Segurança intrínseca. 4. Eficácia sentencial. 5. Partes ou figurantes da relação jurídica processual. 6. Quem é parte. 7. Representação e presentação. 8. Princípio de igual tratamento das partes. 9. Conceito de autor. 10. Autor e assistente do autor. 11. Conceito de réu. 12. Interesse legítimo; econômico ou moral. 13. Legitimidade do interesse. 14. Interesse do autor e interesse moral § 46º. Remédio jurídico processual e razão das partes. Direito pré-processual e justiça. 2. Preexistência do direito, da pretensão e da ação, 3. Importância da classificação das ações. § 47º. Processo. 1. Conceito. 2, Procedimento e autos de processo. 3, Processo civil. 4. Processo penal § 48º. Pedido e relação jurídico processual. 1. Conceito de pedido. 2. Dever de administrar justiça, 3. Admissi-bilidade processual e mérito. 4. Prolação da sentença e ordem dos julgamentos. § 49º. Eficácia sentencial de coisa julgada (coisa julgada formal e coisa julgada material 1. Decisões interlocutórias e coisa julgada material, 2. Jurisdição voluntária e coisa julgada material. 3. Ações de Estado. 4. Eficácia de coisa julgada material e eficácia erga omnes § 50º. Imodificabilidade do sentença. 1. Sentença definitiva. 2. Decisão de acordo com a equidade. 3. Ação de modificação. 4, Decisão e interpretação da sua extensão. 5, Limites temporais, espaciais, objetivos e subjetivos da coisa julgada. § 51º. Juízo cível e juízo criminal. 1. Preliminares. 2.Dados históricos do Império. 3. Direito vigente.

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Parte 1

Mundo jurídico, fatos jurídicos e irradiação de efeitos

Capítulo 1

Mundo jurídico e fatos jurídicos § 1º Mundo fático e mundo jurídico 1. Conceito de mundo fático e conceito de mundo jurídico. Os conceitos de que usa o jurista são conceitos de dois mundos diferentes: o mundo fático, em que se dão os fatos físicos e os fatos do mundo jurídico, quando tratados somente como fatos do mundo fático, e o mundo jurídico em que só se leva em conta o que nele entrou, colorido pela regra jurídica que incidiu. O mundo jurídico está, pois, todo, no pensamento do jurista e do povo. Por isso mesmo, é a soma dos fatos jurídicos. Há fatos que não interessam ao mundo jurídico, isto é, são estranhos ao direito, A nuvem que está passando, a estrela cadente, o eclipse do Sol ou da Lua, o que ocorre no fundo dos mares, ou na estratosfera, mesmo fatos que são de grande importância para o nosso como e para a vida dos animais, a cachoeira que está murmurando há milênios, tudo isso é fático e não é jurídico. Se algum desses fatos entra no mundo jurídico, é porque o direito se interessou por ele. A técnica que tem o direito, mero processo social de adaptação, para chamar a si o fato que antes não lhe importava, é a regra jurídica, A regra jurídica é sempre uma proposição, escrita ou não escrita, em que se diz: “Se ocorrem a, b e c (ou se ocorrem b e c, ou se ocorrem a e b, ou se ocorre a, ou se ocorre acontece d. A esses elementos chamam-se elementos fáticos. Se, todos estão juntos, ou se aparece o único que se exigia, o todo fático é como que carimbado pela regra jurídica. A esse todo deu-se o nome de suporte fático Tatbestand, e rejubilemo-nos por hoje vermos empregada a expressão, com certa freqüência, em trabalhos forenses e em decisões dos tribunais. Nem todos os fatos do mundo fático (o nascimento, a morte, a manifestação da vontade, a ofensa) entram no mundo jurídico; nem entra só o fato simples: dai chamar-se “suporte fático o que contêm um fato único (e. g., morte), ou o que contêm dois ou mais fatos (morte por outrem; manifestação de vontade mais forma especial). Enquanto não se compõe o suporte fático de modo que a regra jurídica incida, os elementos a, b e c continuam no mundo fático. Só a incidência da regra jurídica é que determina a entrada do suporte fático (sf) no mundo jurídico. Precisamente: do suporte fático; não de cada elemento. No mundo jurídico, há três planos diferentes: o plano da existência, em que há fatos jurídicos (1) e não mais suportes fáticos; o plano da validade quando se trata de ato humano e se assenta que é válido, ou não-válido (nulo ou anulável ), o plano da eficácia em que se irradiam os efeitos dos fatos jurídicos: direitos, deveres; pretensões, obrigações; ações, em sua atividade (posição de autor) e em sua passividade (posição do réu), exceções (2)Extensão do mundo fático e extensão do mundo jurídico. Diante do mundo em que se sentiu incluído, mas cercado por todos os lados, entrando-lhe pelo nariz, pela boca, pelos ouvidos, tateável e ostensivo, o homem reconheceu-se sujeito a todas as vicissitudes e dependente do que se lançava contra ele- Daí os dois conceitos iniciais, sub-iectus, sujeito, e ob-iectus, objeto. Quando em vez de apenas colher os frutos das árvores, pescar, caçar e apanhar água, resinas e sucos vegetais, pensou ele em dar certa ordem e certa previsibilidade aos fatos em torno, criou, a principio inconscientemente, regras jurídicas. Não exageremos, porém, esse papel do pensamento. As sociedades animais e as sociedades humanas são subordinadas a leis de simetria, com todos os fatos do mundo inorgânico.

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Para que alguma regra jurídica existisse, tinha de haver a indicação dos fatos sobre que ela incidisse. Se é um só o fato, ou se são dois ou mais, de modo que, ocorridos, a regra jurídica incida, chama-se ao fato único ou ao conjunto de fatos suporte fático Muitos fatos do mundo, muitíssimos, não entram em suportes fáticos, ou só excepcionalmente entram. Por isso, há o mundo só físico, no sentido largo e científico, que abrange o próprio mundo psíquico, e o mundo jurídico, que é o mundo físico em que as regras jurídicas incidem, fazendo jurídicos fatos que, sem elas, estariam sem essa colocação que o homem lhes deu. O que aqui nos cabe fazer é classificar esses fatos do mundo, a que chamamos fatos jurídicos. 3. Efeitos dos fatos jurídicos. São efeitos dos fatos jurídicos as conseqüências que deles decorrem no mundo jurídico. Mas aí a eficácia já supõe a entrada do fato no mundo jurídico, com a sua irradiação. Para podermos bem classificar os fatos jurídicos, temos de considerar que só eles são fatos do mundo jurídico. Há o mundo o universo, e parte desse mundo é colorida pelas regras jurídicas que incidem em fatos que nessa porte do mundo se produzem. Não temos, portanto, de pensar em fatos que não interessam ou ainda não interessam ao direito, mas temos de dar a devida atenção a todos os fatos que são fatos do mundo jurídico. Desgraçadamente, descuraram disso quase todos os juristas, e o que hoje se consegue é o resultado de quase um século de pesquisas por alguns cientistas propensos a verem a realidade da vida, em vez de se satisfazerem com dissertações discursivas. São efeitos dos fatos jurídicos stricto sensu: a) a modificacão por adjunção, por mistura, ou pela confusão; b) a aquisição da propriedade pela percepção de frutos, tanto quanto a aquisição pela produção, ou pela pendência deles; c) a extinção dos direitos reais pelo perecimento da coisa; d) a geração do homem, seu nascimento, a capacidade (salvo o suplemento de idade), a incapacidade por idade, doença ou loucura, a morte; e) a retirada de coisas móveis que guarnecem o prédio locado. Dentre os fatos acima referidos, alguns são atos humanos, ou podem ser atos humanos, como se A mistura, adjunta, ou confunde, ou colhe frutos, ou destrói coisas, ou retira bens móveis que guarnecem a casa alugada. Em todos, porém, prescinde-se da origem humana do ato. Somente se lhes vê.o fato do mundo externo, que entra no direito, e aí produz os seus efeitos, abstraindo-se da vontade humana que acaso esteve à origem deles. A sobrevivência é elemento de alguns suportes fáticos; e. g., do suporte fático do beneficio à mulher e aos herdeiros ou aos alimentandos e à União. A sobrevivência somente é fato jurídico stricto sensu, tratando-se de viuvez; o estado de viduidade é efeito de sobreviver o cônjuge ao. outro. Para a sucessão a causa de morte, a sobrevivência é elemento do suporte fático em que figura como elemento subjetivo o sucessor há de ser vivo no momento imediato ao da morte = se duas pessoas, cada uma das quais herdaria da outra, morrem no mesmo momento, ou é de supor-se, nenhuma das duas herda). § 2º Classificação dos fatos jurídicos 1. Classificações principais dos fatos jurídicos. A classificação principal dos fatos jurídicos é em relação à origem do elemento fático (origem extra-humana e origem humana, origem humana que se apaga porque o direito, na espécie, somente vê o fato como extra-humano). Após ela vem a classificação binária conforme a atitude da Lei, isto é, conforme a licitude e. a ilicitude. Os fatos jurídicos lato sensu entram em quatro classes: fatos jurídicos stricto sensu, atos-fatos jurídicos, atos jurídicos stricto sensu, negócios jurídicos. Não há quinta classe — ou melhor, pode não haver quinta classe - porque o elemento orgânico está, aí, inserto no todo, em que o inorgânico também aparece. Qualquer das quatro classes tem de se dividir conforme a licitude ou a ilicitude. Tanto há fatos (jurídicos) ilícitos stricto sensu, e atos-fatos jurídicos ilícitos como atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos ilícitos. A classificação segundo a carga de eficácia tem de atender a cinco espécies de efeitos; declarativo, constitutivo,

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condenatório, mandamental e executivo. Se cogitamos dos fatos jurídicos stricto sensu, ou eles constituem algo, ou permitem que se constitua, ou dão ensejo à condenação, ao mandamento, ou à execução. Por aí se vê que tais pesas de eficácia não são, como sempre se supôs, peculiares às ações e às sentenças. A inundação constitui, positiva ou negativamente. A confusão, a comissão e a adjunção podem ser lato jurídico stricto sensu, ou ato-fato jurídico, com o efeito de constituir, positivamente, ou, em parte, negativamente. A especificação é tipicamente constitutiva. 2. Exemplificações (1) a) A concepção do ser humano é fato jurídico stricto sensu. Desse lato jurídico não se irradia o “efeito” de personificação; mas irradiam-se outros: o direito, a pretensão e a ação de alimentos a favor do nascituro; as medidas a benefício do nascituro, como a missio in possessionem (Comentários ao Código de Processo Civil, XII, 356-381), o pátrio poder e a curatela do nascituro. A concepção impede que a mãe, ou o pai, adote alguém, porque é a validade, e não só a eficácia, da adoção que fica dependente do nascimento com vida: ocorrendo este, a adoção foi atingida pela ressalva dos direitos do nascituro (Theodor Kipp, Lehrbuch, II, 2, 18ª-2ª eds., 381, nota 15, in fine repelido, pois, que a possibilidade de ter filhos exclua a adoção (sem razão, H. Dernburg, Dos Búrgerliche Recht, IV, 3ª ed., nota 4), ou que seja sem consequências a concepção (sem razão, a opinião dominante na doutrina alemã, cf. G. Planck, Kornmentor, IV, 34 ed., 620, e Th. Engclmann-Keidel, em J. von Staudingers Kommentor, IV, 2, 1.163). b) A possibilidade de prole (persona futuro) entra como elemento de suporte fático de alguns fatos jurídicos (e. g., testamento a favor de prole eventual de pessoa designada e existente ao tempo de se abrir a sucessão). Não é, por si, fato jurídico; porque não é fato, é possibilidade de fato. c) O nascimento com tida é fato jurídico stricto sensu. Dele irradia-se a capacidade de direito e provêm todos os direitos que se prendem à pessoa. O nascimento sem tida é fato extintivo dos efeitos que haja produzido a concepção. (2) A ocupação é ato-fato jurídico: não é, pois, negócio jurídico, nem ato jurídico não-negocial ou stricto sensu (sem razão, Josef Schmitt, Die Okkupatiori ais Eigenturnserwerb, 47 s., que a reputava negócio jurídico, como Alfred Manigk, Das Anwendungsqehiet der Vorschriftcn 11) die Rechtsgeschàfte, 24, e outros). No direito brasileiro, não temos a ocupação como causa de aquisição da propriedade, se a coisa é bem imóvel, ainda que se trate de ilha nascida no mar (em direito romano, L. 7, § 3, D., de adqurendo rerm domínio, 41, 1; cf. Paul Schlesier, Der Eigentumserwerb au herrenlosem Lande, 28). Só há ocupação, modo de aquisição, em se tratando de bens moveis. As coisas extra comercium não podem ser ocupadas (H. Wappâus, Zur Lehre vou deu dern Rechtsuerkehr entzogenen Sochen, 17 s); nem os res omniuni communes, porque não são nullus, pertencem a todos, e as inalienáveis, porque o adjetivo só tem sentido quanto a coisas apropriadas. Se bem que se possa apropriar parte da água do mar e do ar (de pouco alcance prático, razão por que as fontes não se referem a elas, cl. A. Kappeler, Der RechtsbegrífJ des óffenthchen WosserIoufs, 50). No direito brasileiro, que tem a saisina, não se precisa abrir exceção para as coisas hereditárias (L. 1, D., de divisione rerum et qualitate, 1, 8): a propriedade, à diferença do que se passava no direito romano, já se transmitiu, automaticamente. O que não é de alguém, de razão natural é que se confira ao ocupante. Os bens que há na Terra ou pertencem a alguém ou a ninguém pertencem. Quem se apropria moto-próprio dos que são sem dono, quem os ocupa, deles se faz dono. “Quod enim nullus est, id ratione naturali occupanti conceditur.” O que não é de ninguém concede-se, por natural razão, ao ocupante. O capio, que há em occupare, mostra que se colhe, que se prende, que de algo alguém se apodera, e o ob, que deu o oc-, reveja que se põe o sujeito, o subiectus, diante do que se lhe opõe, o objeto, a res. Gaio (L. 3, D., de adquirendo rerum domínio, 41, 1), depois de lançar aquela frase, passa a explicar: “Não importa, quanto às bestas-feras e às aves, que alguém as colha em seu próprio fundo ou no alheio. Mas ao que entra em fundo alheio para caçar ou passarinhar (venandi aucupandive gratia) pode, com direito, o dono proibir, se o percebe, que entre’) (L. 3, § 1). “Todavia, qualquer desses aninflis que houvem-os apanhado entende-se ser nosso, enquanto está em nossa custódia: quando se houver evadido de nossa custódia e houver recobrado sua liberdade natural, deixa de ser nosso e se faz, outra vez, do ocupante” (L. 3, § 2).

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O simples afã ou esforço para ocupar não tem efeito apropriativo. E preciso que se apanhe o objeto, que se ocupe. Gaio, na L. 5, § 1, dá o exemplo do anima! ferido que, se o podemos segurar, é nosso, mas, se não o podemos colher, em vez de outra pessoa, nosso não é. Se, diz ele, durante o tempo em que o perseguimos, outrem o captou, com ânimo de apropriar-se, uns entendem que houve furto, e outros, que não, porque muitos fatos podem acontecer que nos impeçam de apanhá-lo; o que é verdadeiro, acrescentou. A primeira opinião era a de Trehácio, que considerava nosso o animal se lhe estamos no encalço; a segunda, adotou-a Gaio, Ao ocupante é dado saber, ou não, se a coisa é sem dono. A ocupação ocorre ainda que o ocupante ignore que se apodera de res nullus. O ladrão, se a coisa deixou de ter dono, toma-se proprietário; o que tirou a coisa com intenção de furto, ou de roubo, sem que dono tivesse a coisa, ocupa e faz-se dono. A discussão sobre ser de exigir-se a vontade de posse própria, ou a vontade de adquirir a propriedade, que Alfred Manigk (Das Anweridunqsgebiet der Vorschriften fur die Rechtsgeschàfte, 128 s.) tinha como a mesma vontade, está — no direito brasileiro superada; e não se confunde com a derrelição a ocupação, nem se pode, hoje em dia, considerar a esta como contrarius actas da derrelição (cf. Gúnther Friebe, Ist zuni Eiqenbesitz der soq. animus domini erforderlich, 77). A ocupação pode ser pelo louco, pelo surdo-mudo incapaz de exprimir vontade, pelos menores absolutamente ou relativamente incapazes. Quem pode ter posse própria pode ocupar e adquirir a propriedade mobiliária (cf. Josef Schmitt, Die Okkupotion ais Eigentumserwerb, 48; Eerdinand Kniep, Der Besitz des ECE., 96 e 104; R. Kasten, Kann der Geschéiftsunfdhige nach dem BEO. okkupieren?, 34 s,). No direito alemão, quando os intérpretes se sentem sem argumentos para defender a exigência da opinio domini ou do animus domini como elemento necessário da posse própria na ocupação, apegam-se eles ao ais ihm gehõrend (como pertencente a ele) do § 872 (posse própria), porém tal expressão não aparece no Código Civil brasileiro (1916), que usou, no art. 592, de preciso, e certo, se assenhorear de coisa”. (3) A tipicidade dos fatos ilícitos absolutos está na abstração de qualquer relação jurídica que possa existir entre o lesante e o lesado. A técnica Legislativa evita referir-se a boa-fé, sem que haja a ausência da alusão em direito penal. A responsabilidade, essa, pode ser sem que haja ilicitude do fato ou do ato que causou o dano. Aí ressalta o erro dos que pretendem que só haja responsabilização se houve culpa ou dolo (cf. G. Torregrossa, il Problema della Responsabilitá da atto lecito, 10 s.). (4) Os atos-fatos jurídicos são os fatos jurídicos que escapam às classes dos negócios jurídicos dos atos jurídicos stricto sensa dos atos ilícitos, inclusive atos de infração culposa das obrigações, da posição de réu e de excetuado (ilicitude infringente contratual), das caducidades por culpa, e dos fatos jurídicos stricto sensu. Abrangem os chamados atos reais, a responsabilidade sem culpa, seja contratual seja extracontratual, e as caducidades sem culpa (exceto o perdão). Ainda quando, no suporte fático, de que emanam, haja ato humano, com vontade ou culpa, esses atos são tratados como atos-fatos. Os fatos ou atos excludentes (não os confundamos com os fatos ou atos extintivos) não entram nessa classe, porque o direito somente se preocupa com eles, para enunciar, ainda no terreno fático, que, se o suporte fático A é suficiente ocorrendo o fato a ou o ato, positivo ou negativo o suporte fático fica diminuído de a, ou de b, e, pois, é insuficiente. O direito, por isso mesmo que, a propósito de tais fatos excludentes, se mantém no plano fático (= na descrição do suporte Fático suficiente), pode entender que o suporte fático do momento A somente entra no mundo jurídico se a, ou b, não ocorre. Ato humano é o fato produzido pelo homem; às vezes não sempre, pela vontade do homem. Se o direito entende que é relevante essa relação entre o fato, a vontade e o homem, que em verdade é dupla (fato, vontade-homem), o ato humano é ato jurídico, lícito ou ilícito, e não ato-fato, nem fato jurídico stricto sensu. Se, mais rente ao determinismo da natureza, o ato é recebido pelo direito como fato do homem (relação ‘fato, homem”), com o que se ilide o último termo da primeira relação e o primeiro da segunda, pondo-se entre parênteses o quid psíquico, o ato, fato (dependente da vontade) do homem, entra no mundo jurídico como ato-fato jurídico. Não se desce à consciência, ao arbítrio de se ter buscado causa a fato da vida e do mundo (definição de vontade consciente); satisfaz-se o direito com a determinação exterior, Actus vem de ago, agere. Há movimento próprio, com objetivo, ou mesmo fim; não há só o alcance, que é o da pedra que rola e bate na muralha, ou da finita que cai. Agir com o dedo indicador deu indago, indagação, Agir, indeciso, deu ambiguus, ambigüidade. Porque já há opção no agir, e bastou o prefixo para a confundir. Tanto é implícita a opção no agir, que at, “mas’, no latim, e ak, mas”, no gótico, no anglo-saxônico e no velho saxônio, têm o mesmo étimo. No factuim, há, apenas, o feito’; donde poder distinguir-se

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do fato a vontade (distinquire voluntatem a facto). Se esvaziamos os atos humanos de vontade (= se dela abstraímos = se a pomos entre parênteses), se não a levamos em conta para a juridicização, o actus é factum, e como tal éque entra no mundo jurídico, E de tratar-se, então, como aqueles fatos que, de ordinário, ou por sua natureza, nada têm com a vontade do homem. E o casus (cf. casus, fortuitus, Casum sentit dominus, Casus o nullo praestatur), a simples queda, o acaecimento, ou acontecimento, duas palavras portuguesas que têm o mesmo étimo (cadescere, como cadere, cair) (5) Ato ou fato humano é o fato dependente da vontade do homem. Já aí o direito excluiu todos os atos que os animais ou vegetais praticam. Tal eliminação peneira os atos, de modo que muitos seres que agem, para satisfação de seus prazeres (no sentido mais largo), foram abstraídos, radicalmente. Ainda a respeito de atos do homem, pôde o direito abstrair da vontade humana, para os considerar, como aos atos que os animais ou vegetais praticam, atos-fatos, fatos puros, de que apenas provém fatos jurídicos stricto sensu ou atos-fatos jurídicos. Os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos são o campo psíquico dos fatos jurídicos. São os meios mais eficientes da atividade inter-humana, na dimensão do direito. Neles e por eles, a vontade, a inteligência e o sentimento inserem-se no mundo jurídico, edificando-o. Para trás ficaram os atos ilícitos (atos jurídicos ilícitos), os atos-fatos jurídicos e os fatos jurídicos stricto sensu, como o nascimento, a morte, a aparição da ilha, a inundação, a frutificação e o incêndio ocasional. A distinção entre negócios jurídicos e atos jurídicos stricto sensu e assente na boa doutrina. Mas, quando se procura mostrar em que consiste a diferença, o mesmo engano e hábito, que levaram a definir-se o negócio jurídico pela escolha de efeitos, conduzem a caracterizá-la por serem, nos negócios jurídicos, resultantes da vontade os efeitos e, nos atos jurídicos stricto sensu, da Lei. No ato jurídico stricto sensu, a vontade é sem escolha de categoria jurídica, donde ceda relação de antecedente a conseqüente, em vez de relação escolha a escolhido. Toda caracterização do negócio jurídico como regulador de relações jurídicas, normativo, preceptivo, ou algo semelhante, deriva de engano, que é o de se crer na edicção de normas jurídicas pelas pessoas. Tal não se dá; e o próprio conteúdo-lei dos tratados internacionais, quando o há, e o próprio chamado contrato normativo, não seriam prova de que os negócios jurídicos pudessem estabelecer qualquer regra jurídica. Temos de considerar, fundamentalmente, que (a) são fatos jurídicos quaisquer fatos (suportes táticos) que entrem no mundo jurídico, portanto — sem qualquer exclusão de fatos contrários a direito, (b), o hábito de se excluirem, no conceito e na enumeração dos fatos jurídicos, os fatos contrários a direito, principalmente os atos ilícitos, provêm de visão unilateral do mundo jurídico, pois os atos ilícitos, como todos os fatos contrários a direito, entram no mundo jurídico, são fatos jurídicos contrários a direito, que, recebendo a incidência das regras jurídicas, que neles se imprimem, surtem efeitos jurídicos (direito, pretensão e ação de indenização e até de restituição, direito ao desforço pessoal, à retificação etc.). Donde termos de falar dos latos jurídicos contrários a direito e dos atos (jurídicos) ilícitos. Os fatos jurídicos são: a) fatos jurídicos stricto sensu; b) fatos jurídicos (contrários a direito), compreendendo fatos ilícitos stricto sensu, atos—fatos ilícitos, atos ilícitos (de que os atos ilícitos stricto sensu são espécie, como os atos ilícitos caducificantes), ora absolutos, ora relativos; c) atos-fatos jurídicos; d) atos jurídicos stricto sensu; e) negócios jurídicos. Há figuras jurídicas que são suscetíveis de entrada em mais de uma classe, conforme a espécie, o que mostra tratar-se de duas ou mais de duas figuras, genericamente mencionadas. Por exemplo: a opinião que vê no pagamento, em senso estrito, contrato (e. q., P. KLein, Die Natur der causo solvendi, 45 s.; F. Lent, Me Anweisung ais Vollrnacht, 30 sj.), afasta-se completamente da realidade; bem assim a que nele vê, pelo menos, negócio jurídico (Alfred Menigk, Das Anwendunqsgebiet, 40 s,; Leo Rosenberg, Der Verzug dús Glâubigers, Jheríngs Jahrbucher, 43, 211 s.). Nem sempre há o caráter negocial (James Breit, Die Geschdjtsfdhigkeit, 227 5.; Rudolf Stammler, Das Recht der Schuldverhâltnisse, 221 5.; Paul Kretschmar, Die Erfúliung, I, 94 s.) Ato-fato jurídico pode adimplir (guarda da coisa, omissão, vigilância, prestação de serviço). Outros adimplementos são atos jurídicos stricto sensu. Algumas vezes tem de haver colaboração ou anuência do credor, inclusive negocial. Outras vezes, o pagamento é por meio de negócio jurídico, ou de contrato. O pagamento, em senso estrito, é ato-fato jurídico. Nos livros de doutrina, fora da zona germânica, devido, em parte, à tradução errada da palavra Rechtgeschàft,

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emprega-se a expressão atos jurídicos com certa ambigüidade, sem se distinguirem dos negócios jurídicos os atos jurídicos stricto sensu”. Se examinamos as classificações que os escritores do direito público propuseram, quase sempre sem a distinção de que acima falamos, vemos que se apegam à classificação binária, absolutamente superada, em atos declarativos e atos constitutivos (criativos, modificativos e extintivos). Deve-se evitar transformar tal classificação em classificação quaternária, porque os atos criativos, os modificativos e os executivos são subclasse dos atos constitutivos. Disso ainda não se haviam livrado Georg Meyer Gerhard Anschutz (Lehrbt,ch des deu tschen .Staotsrechts, 757 s.) e Otto Koellreuter (Deu tsches Verwaltungsrecht, 73 s.). 3. Classificação dos fatos jurídicos em fatos de direito público e fatos de direito privado. A classificação dos fatos jurídicos em fatos regidos pelo direito público e fatos regidos pelo direito privado está na L. 1, § 2, D., de Iustitia et iure, 1, 1, que foi tirada das Institutiones de Ulpiano: publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem.’ Todavia, os juristas romanos ainda não haviam precisado os limites dos dois campos. Um dos erros consistia em se porem, às vezes, entre as regras de direito público, as regras juridicas cogentes, o ius cogens. Por exemplo: L. 38 (Papiniano), D., de pactis, 2, 14, L. 15, § 1 (Papiniano), D., ad legem Falcidim, 35, 2; L. 42 (Papiniano), EX, de operis libertorum, 38, 1; E.20, pr. (Ulpiano), D., de religioses et sumptibus funerum et ut finos ducere Iiceat, 11, 7; L. 1, § 9 (Ulpiano), D,, de magistratibus conveniendis, 27,8; L. 45, § 1 (Ulpiano), D., de diversis requlis iuris antiqui, 50, 17. O direito privado é cheio de regras jurídicas cogentes. Grande falta, no direito público, foi a de se não isolarem os fatos jurídicos stricto sensu”, Lícitos e ilícitos, e os atos-fatos jurídicos, lícitos e ilícitos, como se todo o direito público somente contivesse atos jurídicos. Por outro lado, longe estiveram os juristas de aprofundar a distinção entre atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos. Como a ciência do direito pré-processual e do direito processual estava mais avançada, devido a descobertas memoráveis, que ainda nºo cessaram, os maiores juristas, no ramo do direito administrativo, mesmo eles, desesperadamente, ou devagar, mas às cegas, passaram a transplantar para o campo do direito administrativo o que, no campo do direito pré-processual e no campo do direito processual, se havia obtido a propósito da natureza e da classificação das decisões judiciais. Ora, só uma parte, pequena, dos atos administrativos é jurisdicionaliforme, isto é, á semelhança dos atos judiciários de julgamento. Se o mar avança e retira terras do Estado, o mar territorial muda de linha terminal. O fato jurídico é fato jurídico stricto sensu. Nenhum ato humano foi a causa. Dar-se-ia o mesmo, se devido a terremoto, ou outro fato não-humano, se desloca para o mar a orla da praia. Fato jurídico stricto sensu, que é de direito (las gentes e de direito constitucional. Provavelmente, também de direito privado, porque, se, ali, perdeu dimensões o terreno de alguém, aqui, com o avanço, o de outrem as ganhou. 4. Fatos jurídicos no direito público. No direito público não há só atos. Nem, sequer, no direito administrativo. Surpreende que só se pense em atos criminais, em atos administrativos, em atos processuais. Basta pensar-se, para se ver a sem-razão de tal hábito a cientifico, em que, a respeito do requisito de dolo ou de culpa, há condenabilidade, por exemplo, do dono ausente do edifício ruinoso, porque o dolo ou a culpa, nas contravenções, só é elemento necessário do suporte fático da regra jurídica se a lei é explícita. Os fatos de direito público entram no mundo jurídico como fatos jurídicos stricto sensu; por exemplo a morte do funcionário publico, ou a sua aposentadoria automática a certa idade, o perecimento dos cavalos do exército, ou do navio da armada, ou do avião militar ou oficial. Também entram como fatos “stricto sensu” ilícitos, se, por exemplo, pelo desastre, a despeito da força maior ou caso fortuito, é responsável o Estado, em virtude de regra jurídica de direito público. São atos-fatos jurídicos, regidos pelo direito público, a entrada na posse de terras a déspotas, o abandono da posse de objetos ou de bens imóveis pertencentes ao atado. São atos-fetos ilícitos a tomada de posse com violação da posse de outra autoridade (a violação da posse de outra entidade, ou de particular, rege-se pelo direito privado). A feitura de títulos do atado,ou de moeda, antes da assinatura de algum funcionário público competente ou da autoridade competente, é ato-fato jurídico. A assinatura é criação; portanto, declara-se unilateral de vontade. A emissão é ato-fato jurídico.

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§ 3º Atos e fatos e direito público 1. Atos de direito público e sua classificação. Conforme dissemos, Os expositores do direito público deixaram de ver, ou viam e não mencionaram, os fatos jurídicos stricto sensu, lícitos e ilícitos, que existem no direito público, e os atos-fatos jurídicos, lícitos e ilícitos, que também existem. Agora, depois de havermos apontado aqueles e estes, termos de examinar os atos jurídicos de direito público, para vermos como os podemos classificar cientificamente. A distinção mais necessária é a que consiste em determinação da entrada do ato humano no mundo jurídico. Ou esse ato entra no mundo jurídico como simples fato, a despeito da sua procedência, e então temos ato-fato jurídico; ou entra como ato jurídico; portanto, sem que se reduza a pouco elemento tático o ato humano, Aqui, temos apenas de classificar esses atos humanos, praticados no campo do direito público, que entram no mundo jurídico como atos, e não somente como fatos. A classificação fundamental é em atos jurídicos stricto sensu e em negócios jurídicos. Os atos administrativos são atos que supõem outorga de poder. O poder estatal, que está com o povo, confere poderes de Constituição, donde surgiu o poder constituinte. Este, por sua vez, divide os poderes que hão de ser exercidos, um dos quais o de legislar. Os atos administrativos têm de ser praticados na medida e como a Constituição, ou a lei, os permita, de modo que não há o princípio de autonomia da vontade, tal como existe no direito privado, dai se pode dizer que é permitido tudo que se não proíbe (cf. Georg Meyer — Gerhard Anchutz, Lehrbuch des deutschen Staatsrechts, 760). Não se pode exagerar a diferença porque os próprios particulares, a respeito de muitos atos jurídicos, somente podem praticá-los conforme a Constituição, ou a lei, os permite. A respeito da validade e da eficácia dos atos do direito público, não há, no direito brasileiro, a diferença, que se tem apontado, ou se tem pretendido apontar nos sistemas jurídicos estrangeiros em que não há o controle das leis e demais atos do poder público, ou em que o emprego desse controle ainda não criou a compreensão da igualdade de sorte dos atos jurídicos. O direito constitucional brasileiro teve por fito estabelecer a subordinação dos atos administrativos, legislativos e ate judiciários ao controlo judicial. Temos de atender a que aludir-se à declaratividade e à constituividade não basta. A respeito dos próprios atos norma-tivos, Modestino (L. 7, D., de legibus senatusque consultis et longa consuetudine, 1, 3) dizia: Legis virtus haec est: imperare vetare permittere punire.) Impor, proibir, permitir e punir. Por onde se vê que a classe dos atos condenatórios ê ineliminável, tanto mais que são freqüentes os atos de condenação sem que provenham de autoridades judiciais. Vamos aos exemplos. Atos declarativos de direito público: os atos de admissão a concurso para cargos públicos, os atos de verificação de qualidade para se inscrever em montepio, ou instituto de seguros (o ato de quem se apresenta, este, é constitutivo), as certidões e atestados, e todos os atos de indeferimento. Atos constitutivos de direito público: as permissões ou autorizações, as licenças, como a de pôr meio-fio e a de abrir armazém de secos e molhados, hotel ou outro estabelecimento, as revogações e cassações de pensões, autorizações e licenças (cf. Adolf Merkl, Allqemeines Verwaltungsrecht, 186; Julius Hatschek, Lehrbuch des deutschen und preussischen Verwaltungsrech 7ª-8ª eds., 7). E preciso que não se confunda pressuposto de legalidade com dever e obediência, que expõe às penas disciplinares. Quem desobedece à potentior persona assume risco maior, sem que se deva trazer à baila qualquer distinção entre ilegalidade manifesta e ilegalidade não-manifesta. O dever de obediência cessa onde o ato não poderia ser praticado pela própria pessoa que manda. Assim, há os atos condenatórios, como há os simples atos declaratórios, os constitutivos, os mandamentais e os executivos. A autoridade administrativa, como a legislativa e a judiciária, tem a vantagem de ter poder público, mas o exercício ilegal dessa vantagem é de repelir-se como abuso do poder. A classificação dos atos de direito público, notadamente dos atos administrativos, em atos positivos e atos negativos, é útil. Mas anterior à própria entrada dos atos humanos no mundo jurídico. Em todos os ramos do direito tem-se de atender a ela. Os atos negativos podem ser expressos ou tácitos, inclusive há expressões de vontade pelo silêncio. Dá-

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se o mesmo com os atos positivos. No direito administrativo, como no direito processual e no direito privado, ainda há os que cometam o erro de sustentar que os atos declarativos têm eficácia ex tunc e não têm os constitutivos (e. g., R. 1-1. Herrnritt, Grundlehren des Verwoltungsrechts, 276). Estes por vezes a têm. A classificação dos atos de direito público tem de atender a que alguns atos são normativos (atos de legislar, de regulameditar, de regimento interno, de decreto, de aviso, de circular de portaria); outros, aplicativos, pois que apenas dobram (pelicano) sobre as situações concretas as regras jurídicas; outros, finalmente, auto-regrantes, dentro do branco que às autoridades deixaram as regras jurídicas. Nos atos de aplicação, o que é de direito público, necessariamente é a regra jurídica que se invoca e se faz efetiva in casu. O fato a que o ato aplicativo se refere pode não ser de direito público. E o caso dos casamentos, dos registros de decisões ou atos que deles dependem para a sua eficácia. Atos condenatórios de direito público: penas de serviço ou disciplinares; penas, inclusive multas, em que a autoridade não pune por falta no serviço ou por indisciplina, como a que o guarda da estrada impõe ao automóvel que infringe o regulamento. Atos mandamentais de direito público: as ordens, positivas ou negativas, são inconfundíveis com o que por ordem se faz; bem assim, os mandados em geral. O que se impõe ou se veda é inconfundível com o ato de ordem, de imposição ou de redação. Supõe-se que alguém haja de obedecer, como se o delegado ordena ao carcereiro que solte o preso, ou como se o fiscal ordena ao policial que apreenda o contrabando. Recomendar ou avisar não é mandar. O ato mandamental tem de ser dentro da lei. Se esta só permite que se mande apreender mercadoria, não se pode man-dar que se apreendam objetos de uso: a fortiori, não se pode mandar que se prenda alguém. Se a lei só anuiu em que se mandasse abster-se, não se pode mandar fazer. Nem não fazer, se não se pode mandar que alguém se abstenha. O mandamento também não se confunde com ato posterior, concernente à desobediência ou ao desrespeito do mandado. Aí, o ato é condenatório, quer, com o mandamento, se haja comunicado a cominação, quer disso não se haja cogitado mas resulte da lei. As ordens são mandamentais, como os mandados, que deram nome à classe. Somente depois do trabalho de Georg Kuttner, para o direito processual, foi que se pôde prestar a devida atenção aos atos mandamentais do direito administrativo. Atos executivos de direito público: no plano do direito judiciário civil, qualquer execução forçada; no plano do direito judiciário penal, toda restituição de posse, que possa resultar de decisão administrativa (e. g., nos casos dos arts. 119, 120 e 123 do Código de Processo Penal). Os atos do delegado, que entrega ao dono ou ao possuidor o bem que fora furtado e apreendido, são atos executivos. Quando a maioria dos juristas diz que os atos de direito público, particularmente os atos de direito administrativo, se regem pelos princípios e regras jurídicas concernentes ao direito privado, por estarem mais conhecidos os princípios e as regras do direito privado (e. g., Karl Kormann, System der rechtsgeschàftlichen Staatsakte, 89), desatende a que essa explicação supõe que a revelação do direito privado é independente da adaptação do homem à vida social. Quando os grupos sociais, pelo costume ou por intermédio de órgãos legislativos, editam regras jurídicas, ou levam em consideração fatos concernentes só ao direito privado, ou fatos concernentes ao direito privado e público. Não há extensão das regras jurídicas do direito privado ao direito público; o que há é segunda revelação, e por vezes a primeira se fez no plano do direito público. Nem se pode antepor a essa explicação, de fundo sociológico, a de ser preferível o paralelismo entre os dois ramos do direito (H. \J. Mangoldt, Nebenbestimmungen bel rechtsgewúbrende Verwaltungsakten, Verwoltungsorchiu). 2.Atos jurídicos, stricto sensu, no direito público. Atos juridicos stricto sensu, no direito público, são as reclamações, com as provocações e as interpelações, as comunicações de vontade, como a de que não vai cobrar o imposto antes de determinada data, ou de que não vai permitir faltas de comparecimento dos funcionários públicos, no dia santificado,

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ou no sábado, e como as cominações e os mandados (atos Jurídicos stricto sensu mandamentais), o anúncio volitivo, as comunicações de conhecimento e as comunicações de sentimento (e. g., perdão). 3.Negócios jurídicos bilaterais entre pessoas privadas, no direito público. Muito ainda se discute se negócios jurídicos bilaterais de direito público, notadamente contratos, podem ser entre pessoas privadas. Aos que o negam podemos lembrar o ato de transação em Juízo, depois de instaurada a instância, ato negocial bilateral, concernente embora à matéria da res in iudicium deducta. Outro exemplo, fora do direito processual e já no direito administrativo, é o do contrato entre dois vizinhos quanto à rua que tem de ser aberta, desde que a lei lhes deixou determinar a situação (cf. E. Eyermann — L. Frõhler, Verwaltungsgerichtsgesetz, § 22). 4. Atos do Estado no direito privado. Sempre que o Estado tem de exercer o poder público, o que lhe incumbe persiste no direito público, ou tem ele de tratar com as outras pessoas, ou com o unus ex publico, como se fosso pessoa de direito privado. Quando a autoridade pública compra peças para o automóvel oficial, ou quando interna em hospital particular o funcionário público, ou quando compra ou aluga o terreno ou prédio de que precisa para construir ou instalar escola, não pratica ato de direito público, mas sim de direito privado. O poder outorgado à autoridade, este, sim, é de direito público, como é de direito privado a procuração que se dá a advogado para ato de direito público, e. g., o ato de petição ou de recurso. Aqui, convêm que se precate o jurista com a confusão vulgar entre o serviço público, como é o serviço das repartições lançadoras e arrecadadoras, o das escolas públicas, o dos telégrafos e correios do Estado, e os serviços ao público, como o das empresas de luz e força, de estradas de ferro e de transportes marítimos e fluviais. Se o Estado, em consequência de dessecamento de lagoa ou pântano, adquire propriedade de mais uma porção de terra, o fato é de direito privado. Se alguém fez oferta de compra de imóvel do Estado, a despeito de quaisquer atos de direito público que sejam necessários, o negócio de compra e venda e o acordo de transmissão são de direito privado. Idem, se há oferta parte do Estado comprador, ou se houve invitatio ad offerendurn por parte dele (A. Brand, Das deutsche Beamtengesetz, 218 e 313), ou há algum acordo sobre muros-meios ou paredes-meias (cf. Hans Delius, Die Beamtenhaftpflichtqesetze, 261). 5. Fatos administrativos. A redução de todos os atos administrativos à dedaração de vontade foi erro grave, que não se há mais de tolerar. Quando se trata de ato de nomeação, se o poder público não tem escolha, vontade não há, salvo a de cumprir a lei, o que há de estar em qualquer ato. Ai, o poder público constitui” sem que tenha sido a sua vontade o elemento decisivo. Tratando-se de atos discricionários, sim: o poder público manifesta a sua vontade, unilateral ou bilateralmente, nos limites que lhe fixaram para o arbítrio. Nas nomeações por escolha, o arbitrio é mais limitado e há, como ali, manifestação de vontade. Por outro lado, é preciso que se distinga do ato administrativo de declaração, de constituição, de condenação, de man-damento ou de execução, o ato administrativo de cumprimento ou de ultimação da execução. O próprio ato administrativo de comando oral, de ordem oral, de mandamento oral, expressão que é mais abrangente, supõe — na mente de quem comanda, ou ordena, de quem manda -a implícita declaração de que tem direito a fazê-lo. A regra é serem escritos os atos jurídicos, mas há-os orais, há-os até pelo silêncio. E esse elemento declarativo, como o constitutivo e os outros, existe em todos os atos administrativos, se os queremos classificar conforme sua eficácia. A classificação das ações e das sentenças por sua eficácia foi assunto de cursos que demos. Atos administrativos há, que estão sujeitos aos mesmos exames das suas cargas de eficácia. Mas, aqui, o que nos interessa é a classificação dos fatos jurídicos, de que os atos jurídicos de função jurisdicional são espécie. Os que tentatavam definir os atos discricionários como atos políticos não atendiam a que a feitura da lei é ato político. A diferença entre o processo de adaptação social, mais estável, a que se chama Direito, e o processo de adaptação social, que é a Política, só se pode caracterizar, quanto à lei, pela contemplação em dois momentos: o de criação de regra jurídica e o da incidência da regra jurídica, que são marcos no caminho que vai da Política ao Direito. Também houve os que queriam distinguir administrar e praticar atos discricionários, como se administrar fosse só aplicar as leis. Ora, os atos discricionários do Poder Executivo são atos de administração lato sensu.

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Alguns juristas não prestaram a devida atenção a que o ato administrativo, mesmo quando não é discricionário, pode ser sem qualquer comunicação escrita do que se vai fazer, ou do que cabe fazer-se. E o caso do fiscal de fronteira que prende o contrabandista e lhe tira a posse imediata do contrabando, indo a posse mediata imprópria à autoridade superior, ou apenas retira a posse imediata para a atribuir à autoridade superior, por só se lhe dar o papel de servidor da posse. Certamente, é preferivel que se apresente a nota de prisão, ou a nota de destruição da obra proibida, antes do ato de prender ou de destruir; mas isso não é essencial para o ato. Nas próprias Constituições, alude-se, não raro, à nota de prisão, dita nota de culpa. 6. Fatos de direito público conforme a hierarquia das regras jurídicas. Os fatos do direito público ou são fatos do direito constitucional, ou do direito editado pelo Poder Legislativo, abaixo das regras jurídicas constitucionais sobre esse poder, ou do Poder Judiciário, abaixo das regras jurídicas constitucionais sobre esse poder, ou do Poder Executivo, abaixo das regras jurídicas constitucionais sobre esse poder. Ai está o direito administrativo, algumas de cujas regras são sobre atos do Poder Legislativo e sobre atos do Poder Judiciário. Porém, não pára aí o direito público: há as regras jurídicas dc direito penal, de direito processual civil e penal e de direito relativo a liberdades, a eleições e a riquezas. Mais ainda: se o sistema jurídico tem o referendo ou o plebiscito, as regras jurídicas sobre aquele, ou sobre este. O direito administrativo não regula somente os fatos concernentes à atividade dos poderes administrativos, como fatos regidos por direito material. O direito administrativo processual também é direito administrativo lato sensu. A concepção do direito administrativo como só referente à atividade administrativa limita e deforma: limita, porque conceitualmente apenas admite no conceito o que é de direito material; deforma, porque não atende a que a autoridade administrativa para a qual se recorre também pratica ato administrativo, ou reformando ato de que se recorreu, ou fazendo-o seu. A afirmação da supremacia natural e lógica da administração, em relação às outras funções do estado, revela resquício de tempos despóticos, A medida que se progride, nos sistemas democráticos liberais, em que se tem porfito cada vez maior igualdado, ou a atividade privada cresce e só a lei é que a controla, ou a atividade privada quase toda se publiciza, com a ditadura, a socialização ou a comunização, O direito administrativo tem, de qualquer maneira, grande relevo, porém não só o ato administrativo é elemento do suporte fático do direito administrativo. O principio da legalitariedade exige que todos os fatos que tenham de ser regidos por alguma ou algumas regras jurídicas o sejam pelas regras jurídicas que a Constituição permite que o sejam. Assim não há ilegalitariedade, se o que podia ser inserto em regulamento só o foi em regulamento. Idem, em se tratando de regimento, aviso, circular, ou portada. A portaria, o aviso ou a circular não podem editar o que teria de achar-se na Constituição, ou na lei, ou no regulamento, ou no regimento. O regulamento, ou no regimento não pode conter regra jurídica que somente poderia estar na Constituição ou em lei. Em lei geral não há de estar o que só seria matéria para lei especial. Nem em lei geral ou especial se pode edictar o que só a Constituição teria de conter. Se uma espécie de regra jurídica reproduz o que outra, superior, já disse, apenas a lembra, apenas a repete. O princípio de legalidade stricto sensu impõe que a regra jurídica seja em lei. O principio da constitucionalidade assenta que a regra jurídica há de ser obra de Poder Constituinte. 7. Atos discricionários dos poderes públicos. No branco que a Constituição ou a Constituição e as leis deixam à atividade do Poder Executivo, os atos dizem ser atos discricionários. São, por isso mesmo, atos regrados por fora, atos que têm de ocorrer como se houvesse aquário em que os peixes nadassem, parassem, se encostassem, descessem e subissem. É liberdade dentro de limites, como todas as liberdades. Não se trata de quarta zona, ou região, como parecia a Otto Mayer (Detitsches Verweltungsrecht, 1, 8). São atos do Poder Executivo, de ordem criadora, como os há ão Poder Legislativo e do Poder Judiciário, mesmo quando os atos deste, ou daquele, não são, excepcionalmente, atos executivos. Tais atos podem ser em decretos, em regulamentos, em avisos, em circulares, em portarias. O que é

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preciso é que a lei haja deixado o branco dentro do qual possam ser praticados. Se a discricionariedade é de edição de regra jurídica e no suporte fático necessariamente há elemento que implica igualdade perante a lei, o ato discricionário tem de ser em forma de decreto, de regulamento, ou de outra espécie de norma jurídica, De qualquer maneira, a própria lei não pode dispensar o exame da compatibilidade do ato discricionário com os princípios constitucionais, nem dos limites que existem fundados em lei, ou em regra jurídica, a que os atos discricionários hajam de ater-se. À Justiça cabe dizer se há o branco e se, dentro dele, sem qualquer violação da Constituição ou de alguma regra jurídica que se havia de observar, foi exercido o poder discricionario. Também o Poder Judiciário exerce, embora excepcionalmente, arbítrio puro, mas existe a mesma exigência de respeito aos limites e ao exercício. Quando o Poder Legislativo legisla, exerce arbítrio, dentro do branco que se lhe deixa. Por onde se vê quão reprovável é a preocupação dos juristas que tentam caracterizar a atividade discricionária como quarto poder, ou setor de poder. Capítulo II Direitos, Deveres, pretensões, ações e exceções § 4º Direitos e deveres 1. Direito subjetivo e titularidade; precisão do conceito. Rigorosamente, o direito subjetivo foi abstração, a que sutilmente se chegou, após o exame da eficácia dos fatos juridicos criadores de direitos. A regra juridica é objetiva e incide nos fatos; o suporte fático toma-se fato jurídico. O que, para alguém, determinadamente, dessa ocorrência emana, de vantajoso, é direito, já aqui subjetivo, porque se observa do lado desse alguém, que é titular dele. A principio, os juristas trabalhavam com os conceitos, sem os precisar, e quase lhes bastava aludirem a estados: tem direito”, ‘teve direito”, ‘terá direito”, ‘cessou o seu direito’. A despeito da sua extraordinária finura, os juristas romanos não desceram ao fundo do problema. Na linguagem comum, “direito” tem sentidos múltiplos, dando ensejo, por vezes, a equívocos. Não raro, tratando-se de dever moral, ouvimos que “A não tem direito de fazer isso”; ou, a respeito de alguém que deseja vender bens, que tem “direito de dispor do que e seu , As leis mesmas cometem esses erros, turbando a precisão técnica, Para o jurista, direito tem sentido estrito: e a vantagem que veio a alguém, com a incidência da regra juridica em algum suporte fático. Na distribuição dos bens da vida, que é toda feito pelas regras jurídicos, se excluimos a arbitrariedade — cada posição de titular de vantagem, que se confere a alguém, é direito. Antes de cada direito, esteve, pois, a ordem jurídica, a Iex, a regra: o mesmo étimo deu rex, rei,rego, regere, regulo; o outro, Ieq-, deu lego, legere, Iegio e lex. Regra, rei; ler, legião, lei. 2. Lado passivo da relação jurídica. A regra jurídica, com a especificidade do processo sodal de adaptação, de que é meio, dirige-se às pessoas, fixando-lhes posições em relações jurídicas. Inclusive, quando diz que: ‘Todos os homens são pessoas”, fixa posição ativa para cada uma delas, presentes e futuras, perante todas, mesmo ela. Ela é pessoa; as outras têm o dever de a tratar como pessoa. Se A, para a regra jurídica, deve entregar a B alguma coisa, deve-a; B tem o direito a ela. Se A não cumpre o que deve, o Estado tem posição passiva diante de B: a que deriva da sua funçáo de tutela jurídica do direito, razão para que possa B exercer contra ele a pretensão à tutela jurídica e postular o seu casus. O dever é posterius; o que importa é o direito, prius: dai poder terceiro entregar a coisa devida. Outras vezes, o dever é prius; o direito, posterius: e o que se passa com os deveres . O dever jurídico é o correlativo de todo direito. Se não é o caso de dever dc determinada pessoa, dá-se dever de todas as pessoas de não desatender ao direito. O titular do direito tem sempre, diante de si, alguém, desde que a correlatividade é ineliminável. Quando Julius Binder (Rechtsnorm und Rechtspflicht, passim) negou que existissem deveres juridicos, porque o direito só se dirige aos tribunais e a órgãos executivos, confundiu a direção do direito e a direção da pretensão à tutela jurídica.

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3. Correlação entre direito e dever. O dever jurídico é correlato do direito: ao plus, que é o direito, corresponde o minus do dever. Há de haver relação juridica básica, ou re1ação jurídica interna à eficácia (relação intrajurídica), para que haja direito e, pois, dever. Quem está no lado ativo da relação jurídica é o sujeito do direito; quem está no lado passivo, é o que deve, o devedor (em sentido amplo). A atividade (= qualidade de ser ativo) de um é o direito; a passividade é o dever. Por isso mesmo, não há direitos contra si mesmo, na direção de si mesmo; nem deveres perante si mesmo, na direção de si mesmo. (Quando se fala, por exemplo, em “culpa da vitima”, não se está no plano dos direitos e deveres; e sim no plano dos fatos, que hão de compor suportes fáticos.) As relações jurídicas não contêm, ou não produzem, só direitos de A para B; podem contê-los, ou produzi-los, de A para B e de B para A; de modo que as relações juridicas básicas são, por vezes, envoltórios ou focos de direitos e de deveres para cada sujeito. Os patrimônios atenuam isso. Mas a correlação dos direitos e deveres não significa que o direito e o dever sejam o mesmo, visto de dois lados diferentes. Se isso ocorre, por exemplo, na compra e venda, não é o que se passa na propriedade: o direito aparece mais do que o dever, porque o seu correlato se dilata, minguando, pulverizando-se, em dever das outras pessoas. Quando os legisladores e juristas definem o direito de propriedade como o direito exclusivo em relação às outras pessoas, aludem a essa direção irradiante: à afirmação, a favor de A, corresponde negação (dita proibições) a E, C, D etc. A correlação existe; a diferença é devida à pluralidade de sujeitos passivos. E o princípio da correlatividade dos direitos e deveres. O Estado tem interesse em que o direito objetivo seja atendido, tal qual é, e para isso estabelece exames de quaestiones iuris. Tendo monopolizado a aplicação das regras jurídicas, cabe-lhe decidir os pleitos em que se aleguem direitos e deveres pretensões e obrigações, ações e exceções. Há, porém, outras consequências do não-cumprimento dos deveres e obrigações, como a reparação do dano, a caducidade de direitos, a exigência de formalidades e outras mais. Tanto a aplicação da regra jurídica pela justiça não é essencial ao dever (— há deveres que não expõem à execução, ou à condenação), que existem deveres a que não corresponde, do outro lado, a ação para que se cumpram, e deveres que podem ser objeto de pretensão à declaração, e não de pretensão executiva (e. g., o dever de convivência conjugal). Ainda aí, se atendemos a que esses deveres só são suscetiveis de serem discutidos em ação declaratória, positiva ou negativa, vemos bem que a aplicação da regra jurídica pela justiça não é essencial à concepção dos deveres. A coercibilidade é plus; já pertence ao plano das ações e da tutela jurídica; e há pretensões inacionáveis. Por vezes, o sistema jurídico satisfaz-se com a incidência de outra regra jurídica para reafirmar o dever. O caso da mora e o da impossibilidade de cumprir dão exemplos. Até que este ou aquele se dê, o credor está, de ordinário, sem via para impedir que ocorra mora, ou impossibilidade de cumprimento; salvo se há regra jurídica especial, pela aparição de outro suporte fático. A negligência do devedor entra como degrau entre o não-cumprir regularmente o dever e o ingresso em juizo. Não há, antes, ato do credor. Também o cônjuge administra os bens comuns e, se é o caso, os particulares do outro cônjuge, empregando os capitais com prudência, sem que haja meio de o obrigar a isso, se não cumpre o seu dever; salvo em casos especiais, não há medidas de segurança. No caso do dever do marido, ou da mulher, há direito da mulher, ou do marido: falta a pretensão; falta a ação. Por onde se vê que é ao direito que corresponde dever; e não à pretensão. Caberia, em relação a esta, a obrigação, no sentido estrito. 4. Bens da vida e interesses. Na distribuição dos bens da vida, incluindo-se neles o próprio viver, a liberdade e os direitos políticos, bem como a honra e a incolunidade individual, grande parte dos direitos se conserva insubjetivada, constituindo domínio do direito objetivo puro, e outra parte subjetiva-se, merce daquele plus a que antes nos referimos. A linha divisória entre os direitos subjetivos e os direitos não-subjetivos varia com os lugares e com o tempo. Vulgarmente, exames desatentos confundem o direito subjetivo, a pretensão e a ação. A ação, a actio, supõe, sem necessitar, o direito objetivo, que a dê, e fato, que constitua a razão de seu exercício. Por isso mesmo não se identifica com o dever do sujeito passivo. Se o direito subjetivo tende à prestação, surgem a pretensão e a ação. A ação, que supõe haver-se transgredido a nomia, constitui outro plus e tende, não à prestação, mas a efeito jurídico específico. O credor tem direito subjetivo ao que se lhe atribui: tem-no, desde que a relação nasceu. A exigibilidade faz-lhe a pretensão. Se o devedor não paga como e quando deve pagar, cabe-lhe, então, a ação. Não se diga que a coação a caracteriza, nem que caracterize os dois, a ação e o direito subjetivo; porque o que existe de coativo no direito é comum ao direito objetivo não-subjetivado e aos direitos subjetivos. Para bem se ver quanto são inconfundíveis os direitos subjetivos, as pretensões e as ações, basta que se pense no seguinte: a) é possível permanecer intacta a legislação quanto ao direito subjetivo e mudar quanto às pretensões, ou

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permanecer inalterado quanto àquele e a estas, e mudar quanto às ações; b) haver prazos para a ação, sem que com a extinção dela se extinga a pretensão ou o direito subjetivo; c) existirem direitos subjetivos e até pretensões sem ação, como os créditos de jogo e certas situações, transitários, de tempo de guerra ou de golpes de Estado. No entanto, a doutrina do século passado e começo deste emaranhou-se em conceitos a priori, que lhe impediam alcançar a necessária clareza, em assunto preliminar de tanta magnitude. Em 1817, Poncet (Traité des Actions) e, posteriormente, F. von Savigny, G. F. Putchta, G. Pescatore e a maioria dos juristas dos povos latinos entenderam que a ação é poder inerente ao direito e, pois, elemento mesmo do direito subjetiva Identificar-se-ia com ele, ou pelo menos, com a sua fase correspondente à violação. No fundo, o resíduo dos séculos despóticos, que tentara prevalecer contra a decantação dos elementos de vontade violenta, psicanaliticamente insertos na legislação e na doutrina. Outra teoria, oriunda da célebre polêmica de Th. Muther com E. Windscheid, sobre a actio romana, já considerou a ação como direito subjetivo público, direito do indivíduo à tutela jurídica por parte do Estado. Com cedas variantes, é isso o que pensavam Konrad Hellwig, Paul Langheineken e outros. Adolf Wach explicou tal direito como dirigido contra o Estado e contra o adversário, e distinguiu-o da ação. Outros juristas procuravam eliminar a direção contra o Estado, operação evidentemente difícil, uma vez que se partiu da afirmação de direito público subjetivo. Aliás, já se quisera apresentar as duas variantes como correspondentes às duas tradições e às duas mentalidades, a germãnica e a latina: a relação seria contra o Estado e contra o adversário, no direito alemão; contra o adversário, nos sistemas jurídicos latinos. Tal distinção é artificial, porque: ou seria só privada a reiação, e não haveria direito público subjetivo, ou haveria direito público subjetivo e a maior visibilidade, por parte dos latinos, da direção contra o adversário, pertenceria à psicologia dos povos, e não à Teoria Gera! do Direito. Seja como for, aos poucos se foram extremando os conceitos de direito público subjetivo à justiça e de pretensão à tutela jurídica, de pretensão material, que se vai “invocar” em juízo (não exercer), e de ação que se vai~ “mover”. Outros processualistas de primeira plana conservaram a afirmação de ser a ação, aliás a pretensão à tutela jurídica, direito público subjetivo, acrescentando-se que é pertencente a quem se creia, de boa-fé, com direito a ser ouvido em juízo e constranger o adversário à satisfação. Feriu-se um dos pontos mais perturbadores — aquele de se tratar de direito, mas poder ser exercida a pretensão e usada a ação por quem não tenha “razão”. Falou-se de direito abstrato de agir, a cuja concepção servia a alusão à boa fé. Que direito subjetivo seria esse que pertenceria a quem não pertence e cujos resultados, no caso da má-fé do titular abusivo, seriam os mesmos que os obtidos pelo titular de boa-fé? Não seria mais fácil recorrer-se à noção de faculdade jurídica, em vez de direito subjetivo? Que diferença existe entre o que não tem direito e crê tê-lo, o que não tem direito e sabe não o ter e o que tem direito e exerce a ação não crendo tê-lo? Tudo isso mostra que andou bem um dos fundadores de tal teoria, Heinrich Degenkolb, em mais tarde a rejeitar. Entendeu Oskar Bulow que não existe ação como direito subjetivo anterior ao juízo. Com a demanda nasce o direito à sentença justa, ao funcionamento eficaz do aparelho justiferante do Estado. O direito à sentença favorável não existe antes da convicção do juiz e do julgado. Josef Kohler e Heinrich Degenkolb apoiaram-no. Tal cisão — direito à sentença justa e direito à sentença favorável — parece-nos de todo impertinente. Não há direito à sentença favorável. Existem direito e pretensão à sentença, que se presume justa, porque o Estado ou os árbitros “prometem” justiça. Implícita em tal promessa está a de ser favorável ao que tenha razão. Como a razão é objetiva (provas + direito objetivo), e não subjetiva, no sentido de ligada à convicção ou interpretação do direito pelas partes, qualquer alusão à futura sentença favorável desloca o problema, ao mesmo tempo que procede àquela injustificável distinção. Note-se também que a teoria fixa no dia do processo o direito público subjetivo, a pretensão, com o que contraria a realidade técnica do direito. Não existiria pretensão antes de se instaurar a contenda. Com isso, nega-se a pretensão, como a ação, e deixa-se de explicar o que independe das teorias: o fato mesmo de existirem a pretensão e a ação antes do processo. Para bem apanharmos o assunto, que é de toda a importância para a Teoria Geral do Direito e para esta obra, mostremos alguns casos em que a pretensão e a ação existem, necessariamente, antes do processo, e alguns em que elas não existem. A minoria vencida na modificação dos estatutos de uma fundação pode, dentro de prazo, promover-lhe a decretação da nulidade. As nulidades podem ser alegadas por qualquer interessado ou pelo Ministério Público, quando lhe cabe intervir e até pronunciadas de ofício. As anulabilidades não: só os interessados podem alegá-las, e aproveitam exclusivamente aos que as alegarem, salvo o caso de solidariedade ou a hipótese de indivisibilidade. Tanto a minoria vencida na modificação dos estatutos da fundação como os interessados por solidariedade ou indivisibilidade têm pretensão e ação antes do processo. Deixar-se de explicar tal fato seria elidir-se a questão mesma que se pôs. Já ai

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temos evidenciado que a pretensão invocada pertence ao corpo mesmo do direito material, é intrínseca ao direito, que a tem, e os direitos que não a têm porque eles mesmos foram nascidos sem ela, ou a regra objetiva a fez precluir ou prescrever. É ponto que merece toda a atenção: a pretensão invocada é instituto do direito material, e não do direito formal ou processual. A viúva ou o viúvo que tem filho do cônjuge falecido, enquanto não faz inventário dos bens do casal e não dá partilha aos herdeiros, fica sujeito a efeitos patrimoniais da infração. Igualmente, a viúva, ou a mulher, cujo casamento se desfez por ser nulo, ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez ou da dissolução, salvo se, antes de findo esse prazo, der à luz algum filho. Também o tutor, o curador, o juiz, o escrivão e outras pessoas ligadas a eles por parentesco não podem casar com a tutelada ou curatelada ou pessoa de circunscrição. Há pretensão. Não há ação para se anularem tais casamentos, porque não há imoralidade. A pretensão acabou. Portanto, não há direito objetivo nesse ponto, nem direito subjetivo, nem pretensão, nem ação. Nos casos de coação, incapacidade, ou inaptidão para consentir, há direito objetivo, direito subjetivo, pretensão, e ação, exercível esta pelo coacto ou por seus representantes legais. Se o impedimento foi de idade e por falta de consentimento de pessoa que devia consentir, a ação cabe a tal pessoa, que, na hipótese, iria contra a vontade do que casou. Se, ainda depois de proposta a ação, sobrevém gravidez, não se anula o casamento. Há prazo de prescrição. Tudo isso é bem que esteja na lei civil, por se tratar de direito material: a pretensão de certo o é; e a prescrição, no sistema de direito do Brasil e da maior parte dos países, também dele faz parte. 5. Direito e dever; sujeito ativo e sujeito passivo. O “direito” e o dever”, concretamente, têm de ser um só, ou de sujeitos plurais, de modo que é princípio da Teoria Geral do Direito vindo do conceito mesmo de direito, que duas pessoas separadamente, não podem ter o “mesmo” direito. O “direito” é dotado, assim, de individualidade, como eu, a minha filha mais velha, o marido de A. Estamos no plano dos individuais. Rege, pois, o princípio da individualidade dos direitos. Direito nasce, transforma-se, e morre; por isso, pode transmitir-se, conservando a sua identidade. A regra jurídica tem tanto com isso como tem com a identidade da página 100 do exemplar deste livro, que o leitor está lendo, a máquina de impressão que baixou oito mil vezes sobre as folhas de papel. A página de papel foi o suporte fático; a chapa molhada de tinta é a regra jurídica; o contato éa incidência; a página impressa é o fato jurídico, que há de ser necessariamente algum fato de interesse às relações humanas. A página 100 tem a sua individualidade, quer se cogite dela como página 100 dentre as oito mil páginas 100 que foram impressas, quer dela se cogite como a página 100 dentre as páginas deste exemplar. Todo direito subjetivo, como produto da incidência de regra jurídica, é limitação à esfera de atividade de outro, ou de outros possíveis sujeitos de direito (= outras pessoas). Dissemos limitação, porque, ainda quando A restrinja a sua esfera jurídica, a incidência da regra jurídica sobre a sua declaração ou manifestação de vontade é que limita. Todo o mundo (espaço-tempo energia) jurídico é feito com essas criações e limitações. O pedaço de terreno de 50x50 metros é coisa, no sentido do mundo fático; mas a sua apropriação por A é no plano das relações humanas, interpessoais: nem B, nem C, nem outrem podem apropriar-se dele. Como coisa, o terreno não pode sentir, nem ter atenção para o que se passa; e tudo que se passa, no tocante a ele, juridicamente, é só no mundo jurídico. Apenas esse mundo jurídico, por sobre o mundo fático, mas integrado nele, é que dá acesso, ou que fecha passagem para o mundo fático. Se o objeto é coisa, ato ou omissão de outrem, tem isso importância no que diz respeito à determinação dos sujeitos passivos, isto é, das pessoas que ficam no lado passivo da relação jurídica. A, devendo-me, só A me deve; adquirindo de A o prédio, não sou só proprietário perante A, sou proprietário perante todos. Aqui aparece a figura dos direitos com sujeitos passivos totais, de que adiante trataremos. 6. Direito subjetivo e faculdades. O direito subjetivo não é faculdade, ainda que seja ela uma só; o direito subjetivo é que contêm a faculdade. Porque o direito subjetivo é o poder jurídico de ter a faculdade. A faculdade é fática, é meio fático para a satisfação de interesses humanos; o direito subjetivo é jurídico, é meio jurídico para a satisfação desses interesses. Na ilha deserta, sem ordenamento jurídico, o náufrago dá a outro náufrago o fruto que colheu; não doa. Doação é categoria jurídica. Se esse náufrago diz a outro que encontrou caverna, em que poderiam, sem perigo, dormir, não fez nenhuma declaração de vontade que obrigue a irem os dois dormir na caverna. Há, aí, faculdade, e não há direito subjetivo. Não há direito subjetivo sem regra jurídica (direito objetivo), que incida sobre suporte fático tido por ela mesma como suficiente. Portanto, é erro dizer-se que os direitos subjetivos existiram antes do direito objetivo; e ainda o é afirmar-se que foram simultâneos. A regra jurídica é prius, ainda quando tenha nascido no momento de se formar o primeiro direito subjetivo.

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7. Poderes contidos nos direitos. Quase sempre, nos direitos estão contidos poderes, que os enchem, ou que os integram. Tal é o poder de alienar que se contém no direito de propriedade, ou o de ceder, que se contém no direito de crédito. Por vezes, a lei ou o negócio jurídico faz ablação do poder; são, respectivamente, as limitações (legais) de poder e as restrições (negociais) do poder. Os direitos reais inalienáveis e os direitos de crédito incessíveis são, por definição, direitos limitados em poder. Os direitos de personalidade e os direitos de família são-no de regra. 8. Poderes-direitos; direitos potestativos; direitos formativos. Há, porém, poderes que existem por si, que são direitos, independentemente de outros. No direito privado, permite-se a quem tenha interesse na sucessão a ação de indignidade. Não é preciso que, julgada a ação, seja o autor o beneficiado; portanto, não é poder contido ou anexo ao de suceder, concretamente. Chamou Emst Zitelmann a tais direitos ‘direitos de poder jurídico”, Rechte des rechtlichen Kônnens (Internatioriales Privatrecht, 1, 43), direitos potestativos. A expressão “direitos secundários” (Andreas von Tuhr, Der Allgemeine Teu, 1, 160) é infeliz. Se atendemos a que à pessoa é dado o poder, às vezes, de influir na esfera jurídica de outrem, adquirindo, modificando ou extinguindo direitos, pretensões, ações e exceções, ressalta a existência de direitos formativos, que são espécie de direitos potestativos. Tais direitos se exercem por ato unilateral do titular ou seja por declaração unilateral de vontade ao interessado, ou a alguma autoridade, ou seja por simples manifestação unilateral de vontade, ou seja por meio de ação (e. g., ação de suplemento de idade). As classes principais são a dos direitos formativos geradores, constitutivos ou criadores, a dos direitos formativos modificativos e a dos direitos formativos extintivos. (a) Nos direitos formativos geradores ou constitutivos estão incluídos os direitos de apropriação, que são os de adquirir o domínio ou outro direito real, pelo exercício deles. O direito de opção também é direito formativo constitutivo, que se não há de construir como compra e venda sob condição si voluero. Também a favor do destinatário da oferta revogável ou irrevogável nasce direito formativo gerador: mediante o seu exercício, compõe-se o negócio jurídico bilateral. Outrossim, o poder de encher documento em branco (A. von Tuhr, Die unwiderrufliche Vollmacht, 50; Julius Siegel, Die Blanketterklàrung, 16). Quem ratifica exerce direito formativo gerador. (b) São direitos formativos modificativos: o direito de escolha, nas obrigações alternativas; o direito de interpelar, notificar ou protestar, para constituir em mora; o direito de substituição do terceiro, no caso de negócio jurídico a favor de terceiro; o direito de estabelecer prazo para prestação; o direito do devedor de, oferecendo a coisa, constituir em mora o credor, inclusive se se trata de facultas alternativa. (c) São direitos formativos extintivos: o de alegar compensação, o de pedir separação judicial ou divórcio, o de requerer o levantamento do depósito em consignação e os mais direitos a que E. 1. Bekker chamava direitos negativos. As vezes, a eficácia extintiva é só quanto ao titular (renúncia da herança, abandono ou renúncia da propriedade, renúncia de outros direitos reais). Outras vezes, opera-se na esfera jurídica de outra pessoa: direitos, pretensões e ações de decretação de nulidade ou de anulação, ou direitos e pretensões à resolução, ou à resilição, ou à rescisão, ou à revogação da doação, ou à revogação dos poderes, à denúncia da locação ou da sociedade, e ações respectivas etc. Nem sempre a eficácia extintiva atinge a relação jurídica toda (decretação de nulidade, anulação, denúncia, resolução e resilição, rescisão): em muitas espécies, a eficácia extintiva só atinge algum efeito (direito, pretensão, ação, exceção, como se dá com a alegação de compensação ou com a renúncia); noutras, a eficácia dita extintiva é só encobridora de eficácia, como se dá com as exceções. O exercício dos direitos formativos extintivos é, quase sempre, por declaração unilateral de vontade. Sobre tal exercício incide a regra jurídica; entra ele no mundo jurídico, no qual a sua eficácia é a extinção prevista. Pense-se na datio in solutum e na denúncia da locação. De regra, é de exigir-se a declaração de vontade. Não há possibilidade de supri-la o juiz (se profere sentença em ação declaratória do direito formativo extintivo, tal declaração não é exercício); nem bastaria que ele, incidenter, declarasse existir o direito formativo extintivo, não exercido. A ação é por vezes exigida. Os direitos formativos extintivos são renunciáveis. A relação jurídica, ou o efeito, que seria atingido, pelo exercício deles, passa a ser incólume. A eficácia extintiva pode ser ex tunc ou ex nunc. De regra, a denúncia só tem eficácia ex nunc. Tratando-se de negócios jurídicos de prestação duradoura, como a locação, há resilição (ex nunc), e não resolução (ex tunc). A

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decretação da nulidade ou da anulação opera ex tunc. Se o exercício do direito formativo extintivo leva à extinção ex tunc, ou ex nvnc, mas há óbices a que os efeitos produzidos totalmente se apaguem (e. g., a coisa foi consumida, ou alienada a terceiro, que a adquiriu; o locatário já ocupou a casa algum tempo, ou o locador recebera aluguéres adiantados), nascem à pessoa, que seria prejudicada, créditos, pretensões e ações à restituição ou reparação. Os direitos formativos extintivos extinguem-se com a relação jurídica, que eles, se exercidos, atingiriam (perecimento da coisa, contrarius consensus, renúncia à relação jurídica). As vezes concorrem dois ou mais direitos formativos extintivos: o titular deles exerce o que entende; talvez possa exercer a todos, de um em um se a eficácia extintiva é parcial; apenas não pode extinguir o que já está extinto. Cumpre, ainda, advertir-se que, se a eficácia do direito formativo extintivo é ex tunc, a extinção ex nunc da relação jurídica, ou do efeito ou dos efeitos, não é óbice a que se exerça o direito formativo extintivo. Há o interesse na irradiação total dos efeitos desde o principio. Nada impede que se promova a decretação da nulidade, ou anulação, ou resolução ex tunc do contrato de locação, que foi denunciado, ou resilido; nem a rescisão por vícios redibitórios é empecilho à decretação da nulidade ou da anulação do contrato. 9. “Dever mora1”, “obrigação natural”. Nem todos os deveres morais têm efeito jurídico; a obrigação natural, a que as leis aludem, são deveres a que fa!ta ou está encoberta, em sua eficácia, a pretensão, mas a que o sistema jurídico atribui efeitos jurídicos, ainda que um só. Para que o dever moral tenha efeito jurídico, é preciso que seja dever jurídico, isto é, que ele mesmo seja efeito jurídico, ou que entre, como dever moral e somente como tal, no suporte fálico de alguma regra jurídica, de modo que não seja efeito (dever jurídico), mas fato do mundo moral que serviu à composição de suporte tático que entrou no mundo jurídico. Quando, nas leis, se diz que não se pode repetir o que se pagou para cumprir obrigação natural, em verdade se estatui: se houve prestação e se havia dever moral a que essa prestação correspondesse, o fato jurídico da solução + a existência de dever moral, a que ela correspondeu, perfazem o suporte fático da regra jurídica sobre a irrepetibilidade do que se prestou, para solver divida prescrita ou adimplir obrigação natural. O dever moral não passou a ser dever jurídico, de jeito a apagar-se a distinção entre o jurídico e o ético. Não se trata de efeito imediato da naturalis obligatio, o que a tomaria, contraditoriamente, civilis obligatio. Trata-se de incidência de regra jurídica que pré-elimina a repetibilidade. Também se preexclui a revogabilidade das doações, por ingratidão, se foram em cumprimento de obrigação natura!. Também aqui não se tomou jurídico o dever moral, arrebentando-se os diques entre o direito e a moral; apenas se admitiu que em algumas doações o motivo seja relevante e, se esse motivo é cumprimento de obrigação natural (= dever moral), sejam irrevogáveis. Não se fez dever jurídico o dever moral; somente se admitiu que entre na composição de suporte fático de regra jurídica sobre irrevogabilidade das doações. Dizer-se que o dever jurídico ou a obrigação natural é dever jurídico em parte, ou que é dever reconhecido juridicamente pela metade (Friedrich Endemann, Einfúhrunq, I, 6ª ed., 419), ou conceber-se a entrada do dever moral no mundo jurídico como por espécie de furo no navio por onde a água penetra, é pôr em contradição consigo mesmo o sistema jurídico: o jurídico é, ou não é; não pode ser e não ser. A todo direito corresponde sujeito passivo — ou total, nos direitos absolutos, ou determinado, nos direitos relativos. Os direitos formativos, quer geradores, quer modificativos, quer extintivos, não são sem sujeitos passivos: há sempre esfera jurídica alheia, em que se opera a eficácia do exercício de tais direitos. Apenas, nos direitos formativos e nas faculdades de poder, o efeito é ou pode ser mínimo. Se é certo que, nos direitos formativos, não se precisa de ação de condenação específica, ou de abstenção, como se dá nas violações dos direitos absolutos, nem de ação de condenação, como se dá nas violações dos direitos relativos, é porque sobre o suporte fático do exercício dos direitos formativos incide a regra jurídica, e toda discussão seria sobre ter, ou não incidido. Aliás, se B nega que A pudesse retirar a oferta, a discussão é em tomo da vinculabilidade de A, que, se vinculável estava, deu ensejo, pelo menos, à pretensão e à ação declaratória positiva de B. Se C contratou com A, gestor de negócios de B, e E ratificou os atos de A, mas C entende que se não vinculou a B, há questão de existência de efeito mínimo. § 5º Conceito e conteúdo da pretensão

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1. Conceito de pretensão e conceituações a serem evitadas. Alguns juristas alemães, levados pela infeliz definição do seu Código Civil (§ 194: “O direito de exigir de outrem ato ou abstenção (pretensão) submete-se a prescrição”), conturbaram o conceito de pretensão. Parecia que limitavam o conceito de pretensão às prestações de fazer e de não fazer. Vítima de tal proposição, Andreas von Tuhr (Der Aligemeine Teu, 1, 240 s.) advertiu que as ações, na maioria dos casos, se baseiam em pretensão de tal natureza (existem, portanto, pretensões de outra natureza) e se costuma falar de ações de condenação; mas há muitos casos em que o fim do litigante não consiste em algum fazer ou algum não-fazer do demandado (e. g., ações declarativas e constitutivas): a essa classe de ações sem pretensão material (Xlagen ohne materiellen Anspruch) pertenceriam ações declarativas e constitutivas. O problema não se confunde com o da existência de direitos sem pretensão; e Andreas von Tuhr não analisou, em 1910, como deveria, as espécies que apontou. E verdade que o destinatário da pretensão não pode outorgar a decretação da repetição, mas a razão disso está em que o Estado se interpôs. É preciso não se elidir, nos raciocínios, o fato histórico do monopólio estatal da justiça e da determinação dos limites dele pelas leis. A pretensão nasce, ainda que nasça sem a exigibilidade de pessoa a pessoa. Mas, se há ação, e o titular do direito é o mesmo da ação, aí a ação é o que resta da pretensão. 2. De como se exigem as pretensões. Que é que contêm as pretensões? As pretensões contêm exigibilidade, de pessoa a pessoa, ou pelo ato administrativo, ou pela “ação”. Se ainda é exigível a prestação, ou a satisfação do direito, sem já se ter ação, ainda há pretensão; se não se pode exigir a satisfação, ou a prestação, mas há a ação, há pretensão: porque, se bem que possam ser separadas as exigibilidades, elas compõem a pretensão, e, enquanto há uma, há pretensão. Não há exigibilidade sem pretensão. Há direitos sem pretensão porque há direitos que não podem ser exigidos. Há direito só sem ação porque há direitos que somente podem ser exigidos fora da ação. Há direitos que somente podem ser exigidos pela ação: a pretensão deles e, pois, eles mesmos, em sua eficácia, foram canalizados. 3. Diversidade do conteúdo das pretensões. O conteúdo das pretensões é diverso, de conformidade com o direito de que emanam. Tem-se dito que se tratam como os direitos de crédito; mas logo se abre exceção para as pretensões reais. No fundo, essas coincidências obscurecem, em vez de clarearem, o assunto. Melhor é vê-las em si mesmas e estudá-las de per si. A cessão da pretensão pessoal pode fazer-se sem se ceder o crédito (sem razão, L. Enneccerus, Lehrbuch, 1, 573), porque não se identificam pretensão e direito: o que se fez foi dar a outrem o exercer em interesse próprio o direito alheio. Passa-se o mesmo com as pretensões reais; salvo regra jurídica especial. No direito romano, exatamente porque lhe era estranha a sucessão singular de créditos, nomeava-se procurador em seu próprio interesse (procurator in rem suam) aquele a quem se queria transferir o crédito; assim a relação jurídica processual se formava entre o procurador e a parte contrária. De modo que, em verdade, a cessão começou por ser cessão da actio. Portanto, da ação, ou da pretensão, quando se reconheceu a actio utilis em caso de morte do mandante, ou para obstar à revogação. O procurador, feito dominus litis, recebia a eficácia da sentença; com o desenvolvimento posterior, a procuração in rem suam fez-se irrevogável antes da denuntiatio, de modo que houve três degraus subidos: irrevoga-bilidade no momento da litis contestatio; irrevogabilidade no momento da denuntiatio (momento da comunicação ao devedor); irrevogabilidade antes da denuntiatio (praticamente, ao ser cumprido o mandatum ad agendum). 4. Ação declaratôria e pretensão de direito material. Problema extremamente delicado é o de saber se a ação declaratória faz parte da pretensão de direito material. A resposta para a ação declarativa positiva tem de ser separada (porém não é necessariamente diferente) da resposta para a ação declarativa negativa. Quando Andreas von Tuhr (Der Aligemeine Teil, 1, 240) pensou que a ação declarativa é sem pretensão, que lhe corresponda, cometeu erro enorme: primeiro, teria de se indagar se a pretensão (ação é elemento de pretensão, de modo que haver ação é haver, pelo menos em parte, pretensão!), aí, é a) a de direito material comum ou b) a de direito pré-processual (pretensão à tutela jurídica); segundo, se a pretensão à declaração é de direito material, c) Como explicar-se que possa ser exercida para a negação da existência? Cedo, Oito Geib (Rechtsschutzbegehren und Anspruchsbestàtigung, 11 s.) tomou atitude a favor da tese a). Quase se descurou de b). Fica em aberto c), que não é tese, mas problema. (a) Há direito subjetivo à declaração? Ou a pretensão à declaração é elemento da pretensão, e não direito subjetivo autônomo a que ela corresponda? Dar-se-á que a ação de declaração exista sem direito subjetivo e não faça parte da pretensão correspondente a algum direito subjetivo? Todas essas questões são verdadeiras questões, científicas e cientificamente, respondíveis. A elas não juntamos a questão “Existe a ação declarativa e não faz parte de nenhuma

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pretensão?”, porque seria perguntar “Existe o tampo da mesa e não faz parte de nenhuma mesa?” (b) Toda pretensão, pois que existe, há de conter a pretensão a ser declarada; porque, ao exercer-se, se declara a si mesma, ou provoca o órgão ou o corpo competente a declará-la. Ainda nos sistemas jurídicos deficientemente explicitados ou, de iure condito, deficientemente concebidos, em que não há “ação declaratória”, o elemento pretensão à declaração é ineliminável: em toda ação de condenação, constituição, mandamento ou execução, há elemento declarativo, que, de ordinário, é questão prévia. A essencial pretensão de toda relação jurídica é a pretensão à afirmativa da própria existência da relação jurídica. Mas estamos a saltar para o plano da tutela jurídica. (c) A pretensão, que não existe, não pode conter a pretensão ou a ação à declaração de que não existe. Essa pretensão e essa ação teriam de ser de outra fonte, noutro plano. O titular da pretensão é pessoa, portanto — possível sujeito de direitos ou de deveres. A pretensão à declaração negativa ou pertence ao direito de personalidade, ou pertence ao direito mesmo que não existe mais, por proteção póstuma. Se a lei, explicitamente, ou a interpretação assente estabelece que há ação declarativa negativa, o problema está em se saber onde se situa, no sistema jurídico, essa ação e, pois, a pretensão à declaração. 5. Pretensão que contêm ação e pretensão sem ação. De ordinário, a pretensão contém a ação, que é exigência + atividade para a satisfação. A ação não é só exigência: se digo ao vendedor que desejo que me pague o que me deve, exijo-o; porém, ainda não ajo contra ele: se lhe tomo a coisa, que me deve, ajo condenatoriamente, condeno e executo. Os dois atos só são hoje permitidos onde a lei especialmente os permite. A ação, depois que a justiça passou a ser monopólio, ficou separada da declaração, da constituição compulsória, da condenação, do mandato e da execução; estas, tomadas funções exclusivas do Estado, são objeto de prestação (jurisdicional), quando os titulares de ações, não mais podendo tutelar os seus próprios direitos, pretensões e ações, tiveram pretensão á tutela jurídica contra o Estado. Exercem-na, para que a ação, que é permissão de ato inicial para a satisfação, chegue ao que colima. Por isso mesmo, os juristas que confundiram e ainda confundem a actio e a pretensão à tutela jurídica (que é sempre de direito público) não só desatendem aos antecedentes históricos, como à sistemática do direito. A ação é, existe, antes de ser exercida pela dedução em juízo e antes, portanto, de qualquer invocação da pretensão à tutela jurídica. Esta diz respeito ao que se estabelece entre o autor e o Estado; aquela é objeto de exame pelo juiz, como um dos elementos da res in iudicium deducta. A ação não é “direito à proteção judicial”. O próprio L. Enneccerus (Lehrbuch, 1, 574), que reconhecia dever-se a Adolf Wach (Handbuch, 1, 19 s.), portanto ao ano de 1885, a nítida distinção entre a ação e a pretensão à tutela jurídica, ainda não se havia livrado da anterior confusão (nem dela se livrou Hans CarI Nipperdey, na 39ª ed.). A pretensão contém exigir; a ação, além de exigir (ex-igere), que é premir para que outrem aja, leva consigo o aqere do que pretende; ação sua; e não de outrem, premido. Quem age é ágil; uem cumpre o que deve é exato. Cumprir é exação; exigir é “premir” a exação. 6. Direitos absolutos e pretensão. Tanto os direitos absolutos quanto os direitos relativos, portanto os direitos assim de personalidade e os reais, como os de créditos, geram pretensões. Nos direitos absolutos, o exercício do direito é quase só pelo uso do objeto do direito: assina o nome nos escritos e nos recibos, constrói no terreno, lavra ou cava a terra, come os frutos; mas há pretensões, que se manifestam na proibição geral de turbação e de esbulho (certo, Konrad Hellwig, Anspruch und Klagrecht, 25 5.; Lehrbuch, 1, 220, 3; sem razão, G. Planck, Bbrgerliches Gesetzbuch, 1, 47, cf. Kommentar, 1, V ed., 504 5.; Andreas von Tuhr, Der Alígemeine Teu, 1, 243). O argumento de que de alguém, que não pensa em violar a minha propriedade, se pode dizer que lhe é proibido turbar ou esbulhar o meu direito, porém não que lhe posso exigir isso, é argumento fraco. A absolutidade do direito consiste exatamente nisso; e proibir é exigir ato negativo. Não há cindir-se o lado passivo dos direitos absolutos em proibir, que seja prius, e exigir, que seja o conteúdo da pretensão, como posterius. Confundem-se, aí, a ação e a pretensão: a pretensão é erga omnes, consiste em proibição geral, que corresponde à estrutura dos direitos com sujeitos passivos totais; da infração, da não-satisfação da exigência geral de abstenção, é que nasce a ação. Não se deve dizer que do dever negativo geral emana a pretensão quando alguém turba ou esbulha o titular: ao dever negativo corresponde, de regra (porém, não necessariamente; e. g., o possuidor de boa-fé tem o dever de respeitar a propriedade, porém não a obrigação disso, portanto há o direito, porém, não a pretensão do proprietário); se há turbação ou esbulho, havendo a pretensão, nasce a ação. Nas servidões negativas, há o direito e há a pretensão contra todos (cf. Konrad l-lellwig, Anspruch und Klagrecht, 26; e Paul Langheineken, Anspruch und Em rede, 9). Nos direitos relativos, é que a pessoa, a quem se pode exigir o ato positivo ou negativo, é determinada; a fortiori, quanto à ação.

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7. Direitos formativos e pretensão. Tem-se escrito que dos direitos formativos geradores, modificativos ou extintivos, não nascem pretensões: ao exercício deles basta o ato unilateral, próprio, do titular; de modo que não poderia o sujeito passivo, singular ou total, “opor-se”, nem precisaria o titular de exigir dele que se abstivesse de qualquer ato positivo ou negativo. Há, aí, da parte de alguns juristas (e. g., Andreas von Tuhr, Der Aligemeine Teu, 1, 244), confusão entre desnecessidade de intervenção ou cooperação do sujeito passivo e inexistência de pretensão: o sujeito passivo tem de abster-se de impedir ou de dificultar o direito formativo. Tanto assim que, se B impede que exerça o meu direito de caça em terras dele, tenho a ação, por violação do seu dever e obrigação de se abster. Mais: se ainda vou propor ação de nulidade de negócio jurídico contra B, e invocando o negócio jurídico, cobra o que diz ser-lhe devido, é a pretensão à desconstituição o que alego contra a sua exigência, e não a ação constitutiva negativa. O mesmo raciocínio cabe a propósito de direitos expectativos. Aqui, adquire-se o direito expectado, sem ser preciso qualquer ato do expectante. Para obstar às turbações e esbulhos, os sistemas jurídicos criaram reações aos atos turbativos ou esbulbantes. Há, pois, direito e pretensão - pretensões a que não se frustre ou não se prejudique o direito expectativo, frustrando-se ou prejudicando-se o objeto expectado. Diz regra jurídica que se reputa verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição, cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte, a quem desfavoreceu. Considera-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento. 8. Direitos relativos e pretensões. Direitos relativos geram pretensões contra pessoas determinadas; direitos absolutos, pretensões erga omnes. A ofensa de terceiro que atinja o direito relativo gera direito, pretensão e ação, porque invade a esfera jurídica de outrem; gera-os também a que atinja o direito absoluto. Daí a diferença essencial: a pretensão e a ação pelo ilícito absoluto são fundadas na culpa, são ligadas ao dever de se não invadir a esfera jurídica de outrem, e supõem contrariedade a direito e culpa; a pretensão e a ação pela ofensa ao direito absoluto são ligadas à absolutidade deste: a pretensão e a ação de abstenção independem da culpa, porque aquela existe contra todos, e esta nasce do simples fato de se esboçar a determinação lesiva do sujeito passivo singular. Esboça-se esta com o simples temor ou preocupação de turbações futuras como se caracteriza com a simples negação do direito absoluto. Os que negam a existência de pretensão erga omnes, em se tratando de direitos absolutos, discutem a respeito de ação e falam de pretensão: a ação é que há de ter sujeito passivo singular. § 6º Pretensão e obrigação 1. Conceito de pretensão. Dever corresponde a direito; obrigação, a pretensão. Todos têm o dever de atendimento dos direitos de personalidade e de propriedade. Daí falar-se em responsabilidade civil quando se trata de dano. Há dever, que foi violado; alguns juristas mal se dão conta de que o ato é ilícito porque houve violação de algum dever, que não se origina da regra jurídica, logicamente posterior, sobre responsabilidade pelo ato ilícito. Porque à pretensão é que corresponde a obrigação, há direitos sem pretensão e pois, do outro lado, sem obrigação. Não, porém, obrigações sem dever (a isso levariam certos raciocinios de Hermann Isay, Die GeschãftsJihrung, 193 e 255, quanto ao fiador e ao mandatário exorbitante). Nada têm o dever e a obrigação, o direito e a pretensão com o ter de sofrer a execução forçada, porque esta é deferimento ao pedido feito ao Estado, com ou após o exercício da pretensão à tutela jurídica. Pretensão é a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa. Não tenho direito nem pretensão no tocante ao devedor de A; mas A a tem, salvo se a sua posição subjetiva de credor está mutilada, de modo a se tratar de direito sem pretensão. O correlato da pretensão é um dever “premível” do destinatário dela, talvez obrigação (no sentido estrito), sempre obrigação (no sentido largo). Ao “posso” do titular da pretensão, corresponde o “ser obrigado” do destinatário. Não há pretensão sem destinatário; nem obrigação, sem que haja a pretensão. A pretensão pessoalmente obrigacional é subclasse de pretensão; porém, se conceituássemos obrigação como a posição passiva de quem “deve”,haveria obrigação a que não corresponderia pretensão. Obrigação tem, pois, dois sentidos, o direito:do dever, que é larguíssimo (posição subjetiva passiva correlata de posição subjetiva passiva correlata à de pretensão. Vai longe o tempo em que Johannes Biermann (Búrgerliches Recht, 1, 108) tomava direito (de obrigação) e pretensão como equivalentes, erro que os juristas, fora da Alemanha, continuaram a cometer. Aliás, a expressão “Recht”(direito) no Código Civil alemão, § 194, embora de inconvenientes afastáveis, deveria ter sido evitada; porque permite falar-se de direito (direito subjetivo), de direito a exigir (pretensão) e de direito à ação. Rigorosamente, há três posições em

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vertical: o direito subjetivo, a pretensao e a açao, separáveis. Serve-se à boa terminologia, dizendo-se: direito, dever; pretensão, obrigação; autor, réu; excipiente, excetuado. Actio é a pretensão, e não a ação (E. Windscheid, Die Actio des rómischen Civilrechts von .Standpunkt des beutigen Recbts, 5), nem, a fortiori, a “ação” (conceito processual). 2. Fim da pretensão. Toda pretensão tem por fito satisfação: é meio para fim; a satisfação é pelo destinatário, porém não necessariamente por ato ou abstenção sua. A exigibilidade da separação judicial ou do divórcio, através de ação constitutiva, não é menos exigibilidade; há pretensão constitutiva, como há condenatória; há pretensão declarativa, como há pretensão constitutiva e pretensão mandamental. Apenas a pretensão declarativa é no plano do ser e do não-ser. Não seria lógico que se admitisse a pretensão a constituição negativa do negócio jurídico (a decretação da invalidade), sem se admitir a pretensão a declarar-se o não-ser ou o ser. 3. Precisão do conceito de pretensão. Pretensão é, pois, a tensão, para algum ato ou omissão, dirigida a alguém. O pre está, ai, por “diante de si’ O direito é dentro de si mesmo, tem extensão e intensidade; a pretensão lança-se. Não é o direito, nem a ação, nem, a fortiori, a ação (sentido processual); há direitos que perderam, ou não têm pretensão; há ações, sem que o autor delas seja o titular da pretensão; e pretensão, sem a “ação” ou sem a ação e a “ação”. Na pretensão, o direito tende para diante de si, dirigindo-se para que alguém cumpra o dever jurídico. Esse dever jurídico pode ser o de sujeitos passivos totais (com razão, B. Windscheid, em Die Actio des rómischen Civilrechts, a quem se deve a fixação do conceito científico de pretensão). Quando o Código Civil alemão, § 194, definiu a pretensão como “o direito de exigir de outro fazer ou não fazer”, confundiu os dois, o direito e a pretensão, definindo o efeito pela causa. Certamente, a pretensão dirige-se a pessoa determinada, a sujeito único ou total, que é o sujeito passivo da relação jurídica; mas, se ela é a direção, a atividade do direito diante de si, não se identifica com ele. Atividade potencial para frente, faculdade jurídica de exigir; portanto, algo mais. Argumenta-se que não há pretensão nos direitos reais e em outros direitos com sujeitos passivos totais, porque não pode ser cedida, nem prescreve a faculdade geral de não ser perturbada. Mas esquece aos que assim pensam que a pretensão à omissão continua, nos direitos de créditos, somente começa a prescrever quando se infringe o dever de omitir, tal como acontece às pretensões dos direitos com sujeitos passivos totais. Ninguém ignora que a pretensão à omissão continua e desde ai, nos direitos de crédito, existe ainda antes de se ter obrado contra o dever de omitir. Também aí a prescrição ainda não começou de correr; somente se inicia com o ato contrário, com a infração do dever. Por quê? Porque, tanto nos direitos com sujeitos passivos totais quanto nos créditos de omissão continua e desde o inicio, a pretensão está sendo satisfeita e, pois, cumprido o dever: a continuidade implica essa satisfação no presente e no passado; e, à medida que se avança no futuro, a satisfação continua, até que ocorra a violação do dever por parte dos sujeitos passivos, totais ou não. Essa a explicação verdadeira, que vem, ainda embaçada, de B. Windscheid, em 1856, de E. R. Bierling (Zur Kritik, II, 182), de Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 42 s.) e de Paul Langheineken (Anspruch und Enrede, 8 s.) 4. Pretensão e figuras que com ela não se confundem. (a) As pretensões não se confundem com os direitos formativos geradores, modificadores ou extintivos. Estes operam por si, sem necessidade de ato ou de omissão do devedor; as pretensões exigem a ação ou omissão do devedor. E possível a pretensão à constituição, modificação ou extinção, se do fato jurídico resultou que alguém se obrigou a constituir, modificar ou extinguir e só por si não o poderia o credor. (b) De ordinário, as pretensões são acionáveis (ditas íntegras); mas, por isso mesmo que podem não o ser, a pretensão distingue-se da ação. (c) Não há exigibilidade sem pretensão. O direito subjetivo pode ser inexigível. Na L. 108, D., de verborum significatione, 50, 16, diz-se que “Debitor intellegitur is, a quo invito exigi pecunia potest”. O texto de Modestino não satisfaria mais, se éque podia, então, satisfazer. Deve-se, mesmo quando a dívida não é exigível, ou ainda não é exigível, ou não é mais exigível. (d) As identificações do direito subjetivo com as pretensões (Siegmund Schlossmann, Der Vertrag, 256, 258 e 273) e com as ações (A. F. J. Thibaut, Spstem, 1, 9ª ed., §§ 63 e 158) chegaram ao auge com E. R. Bierling (Zur Rritik, 11, 69): “Pretensão jurídica é norma jurídica em concepção subjetiva.” Eugen Fuchs (Das Wesen der Dinglichkeit, 27 s.) não precisou ir até aí: a coisa é apenas o objeto final (Zweckobjekt) do direito real, e não o objeto do direito mesmo; a diferença seria apenas quanto à absolutidade. As ações são sempre contra alguém (excelente, Wilhelm FUndeI, Das

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Rechtsgeschéift und sem Rechtsgrund, 153), de modo que a transplantação do problema para o plano das ações seria inútil. Por onde se vê que a ciência e a técnica do direito muito ganham em se partir de conceitos precisos de direito, subjetivado ou não, de pretensão, de ação e de exceção. Sem eles, dificulta-se qualquer inteligência das leis e dos livros. Tanto mais quanto por vezes se tem de entender “pretensão” onde a lei diz direito, ou entender que, na espécie, há direito, sem pretensão onde diz que falta ação. § 7º Espécies de pretensões 1. Pretensões pessoais e pretensões reais. As pretensões de direitos das obrigações são ditas pessoais; as de direito das coisas, reais. Diz-se que a pretensão pessoal se identifica com o crédito, que é a sua base, pois entre os dois não há diferença que caracterize a alguns deles (e. g., L. Enneccerus, Lehrbuch, 1, 571). Porém essa afirmação, já de si contraditória (“identificação” e “servir de base”), deixa de levar em conta os direitos não munidos de pretensão, ou porque nasceram sem elas, ou porque as perderam. Razão bastante para se ter por falsa e se evitar. 2. Pretensões obrigacionais ditas in rem scriptae. Algumas pretensões obrigacionais se dirigem contra quem é o titular, no momento, de algum direito real ou de posse; são ditas in rem scriptae. São a classe intermédia entre as pretensões pessoais dirigidas contra determinada pessoa e as pretensões oriundas de pretensão sem ação têm, ai, de comum, a exclusividade daquele e a proibição contra todos, que é peculiar à pretensão real, e exatamente no que falta a ambos é que consiste o conteúdo da ação. Porque direito e pretensão são diferentes, têm de ser diferentemente tratados: direito não prescreve; prescreve a pretensão ou a ação; a prescrição das pretensões reais somente começa do momento em que deixa de ser satisfeita; é continua e negativa, de modo que nao infringi-la é ir satisfazendo-a continuamente; contra as pretensões de propriedade pode, às vezes, ser oposta exceção (direito de retenção), ainda que o direito do proprietário nada possa sofrer; a pretensão depende do direito, que lhe é base, com ele nasce, ou dele nasce, e com ele se extingue (ainda se foi cedida). 4. Pretensões e direitos ulteriormente nascidos, ou nascidos à parte. O que a pretensão real, no sentido largo, tende a obter é a continuidade do estado que se não há de perturbar; a sua infração produz a ação, para o restabelecimento daquele estado. Essa pretensão é, portanto, inconfundível com os direitos de crédito que surjam, posto que algumas regras jurídicas sejam comuns às pretensões reais e aos direitos de crédito que vinculam alguém (por exemplo, o proprietário): as regras jurídicas sobre mora são coincidentes; outrossim, as regras jurídicas sobre cessão. As pretensões que se originam dos direitos de família também não se confundem com os direitos de crédito; e aquelas não são, de regra, cessíveis. 5. Pretensão real, ação real e créditos surgidos da violação. A pretensão real preexiste à ação. É inadmissível que se identifique aquela com esta, como o é identificar-se com os créditos (direitos) nascidos da violação. A pretensão real consistente em proibição de perturbar-se o direito não pode ser identificada com o crédito que nasça da perturbação. Uma coisa é a pretensão e outra é a não-satisfação dela: a pretensão continua idêntica a si mesma, embora se dêem, ao correr do tempo, as infrações à pretensão sem ação têm, aí, de comum, a exclusividade daquele e a proibição contra todos, que é peculiar à pretensão real, e exatamente no que falta a ambos é que consiste o conteúdo da ação. Porque direito e pretensão são diferentes, têm de ser diferentemente tratados: direito não prescreve; prescreve a pretensao ou a ação; a prescrição das pretensões reais somente começa do momento em que deixa de ser satisfeita; é contínua e negativa, de modo que não infringi-la é ir satisfazendo-a continuamente; contra as pretensões de propriedade pode, às vezes, ser oposta exceção (direito de retenção), ainda que o direito do proprietário nada possa sofrer; a pretensão depende do direito, que lhe é base, com ele nasce, ou dele nasce, e com ele se extingue (ainda se foi cedida). 4. Pretensões e direitos ulteriormente nascidos, ou nascidos à parte. O que a pretensão real, no sentido largo, tende a obter é a continuidade do estado que se não há de perturbar; a sua infração produz a ação, para o restabelecimento daquele estado. Essa pretensão é, portanto, inconfundível com os direitos de crédito que surjam, posto que algumas regras jurídicas sejam comuns às pretensões reais e aos direitos de crédito que vinculam alguém (por exemplo, o proprietário): as regras jurídicas sobre mora são coincidentes; outrossim, as regras juridicas sobre cessão. As

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pretensões que se originam dos direitos de família também não se confundem com os direitos de crédito; e aquelas não são, de regra, cessíveis. 5. Pretensão real, ação real e créditos surgidos da violação. A pretensão real preexiste à ação. É inadmissível que se identifique aquela com esta, como o é identificar-se com os créditos (direitos) nascidos da violação. A pretensão real consistente em proibição de perturbar-se o direito não pode ser identificada com o crédito que nasça da perturbação. Uma coisa é a pretensão e outra é a não-satisfação dela: a pretensão continua idêntica a si mesma, embora se dêem, ao correr do tempo, as infrações à obrigação de não-perturbar. Ao longo do tempo, estarão os créditos, com suas pretensões e ações. Assim, a luta, entre os que vêem no momento da infração a) o nascimento da pretensão própria do direito absoluto (e. g, L. Enneccerus, Lehrbuch, 1, 573) e b) os que aí vêem direito de crédito, nunca poderia chegar à solução satisfatória (e. g., Konrad Hellwig, Anspruch und Riagrecht, 5 sj: a pretensão à prestação continua (proibição) vem desde o inicio; a ação, por violação dela, não é crédito, no que somente é infração da proibição, e pois elidivel pela recontinuação da omissão; há crédito, se da violação resultou plus que há de ser tratado como outro direito que aquele de que vem a pretensão. Ou se vê a diferença entre a infração da obrigação do devedor (nos direitos com sujeitos passivos totais e nos outros) e o ato ilícito, ou não se pode chegar a conclusão que se imponha. Os juristas romanos aproximavam-se da distinção quando discriminavam o campo das actiones rei persecutoriae e o das actiones poena (es: por aquelas só se pede o que estava com o titular; com estas, há desvantagem para o réu. A pretensão real é dependente; as outras, não, ou, pelo menos, podem não o ser. A ação de prestação futura põe ação antes de exigibilidade. A sua natureza sugere dela tratarmos especialmente, como elemento de pretensão condenatória antecipada, o que se há de fazer no lugar próprio. Capítulo III Exercício dos direitos, das pretensões, das ações e das exceções § 8º Conteúdo e exercício 1. Conteúdo e exercício. Todo direito, toda pretensão, toda ação e toda exceção tem o seu conteúdo. O ato, positivo ou negativo, do titular, segundo esse conteúdo, é o exercício do direito, da pretensão, da ação, ou da exceção. & figurássemos qualquer deles como espaço limitado, seria como o ato de andar dentro desse espaço. 0 conteúdo de cada um deles é determinador da sua extensão; conforme a natureza deles, o conteúdo varia. Os direitos de personalidade, o de propriedade e alguns direitos reais sobre a coisa alheia, como o usufruto, o uso, a habitação e as servidões exercem-se mediante atos fáticos, isto é, conduta humana que, ficando dentro do espaço a que aludimos, é sem outras conseqtiências jurídicas que as derivadas de ser “exercício”. Essa conduta pode ser fato ou estado de coisas, a que corresponda inação de outrem. Assim, nas servidões negativas, o exercício é a continuidade do fato, a quietude, a que corresponde a abstenção do proprietário ou possuidor do prédio serviente. Existir servidão negativa é existir proibição, que consiste no fato mesmo de existir, ainda que só se trate de servidão negativa em certos dias, semanas, meses, estações, ou outras épocas. O usuário exerce o seu direito real, usando; o usufrutuário, usufruindo; o titular do direito de habitação, habitando. São tautologias, mas expressivas: porque se pode ser usuário, sem se usar, isto é, sem se exercer o direito de uso; ser usufrutuário, sem se usufruir; ser titular de direito de habitação, mas sem habitar. O confinante que primeiro constrói pode assentar a parede divisória até meia espessura no terreno contíguo. Se o faz, exerce direito de vizinhança. O direito real não é só a soma de proibições de turbação; é, também, a refe-rência a espaço que pode ser enchido pelo exercício. Essa concepção, que é a científica, põe de lado o unilateralismo proibicionista de August Thon (Rechtsnormen und subjektives Recht, 154 s.), como o unilateralismo facultativista, para o qual há conteúdo que se exercita (res merae facultatis). O primeiro tomaria por finalidade o que é conteúdo; o segundo não distingue conteúdo e exercício. Os outros direitos absolutos também se exercem por atos fáticos, sem que se possa eliminar a relação jurídica, isto é, sem que se lhes possa apagar que são direitos a sujeitos passivos totais. Os direitos de autor são exercidos pela impressão do livro, pela exibição e alienação da tela, ou da estátua, ou pela gravação do disco, ou pela impressão da música.

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2 Pedido de cumprimento e exigência de pretensão. No exercício dos créditos, há exigência da pretensão, extrajudicial ou judicialmente, a que se segue o recebimento da prestação devida, ainda que a exigência seja intrínseca à pretensão, ou caiba a outrem exigir. Se a prestação é abstenção, a exigência da pretensão é intrínseca: quando nasce pretensão à abstenção, já nasce exigida, ou a ser exigida desde certo momento ou fato. Se a prestação é a terceiro, pode bem ser que o estipulante, e não o terceiro, a exija, ou se trate de pretensão que nasça exigida. (Se o direito é desprovido de pretensão, o titular pode pedir o cumprimento, não o pode exigir.) (a) A interpelação ou se tem como ato preparatório do exercício da pretensão, ou já como se fosse exercício dela. A primeira opinião é a de Konrad Hellwig (Lehrbuch, III, 280 5.); porém a ação e qualquer “fazer respeitar-se” (geltend machen) já implicam exercer-se a pretensão, ou o direito, em que se funda. A dificuldade de construção concernente ao exercício da tutela jurídica, sem se ter o direito, ou a pretensão, ou a ação, é só aparente; porque se estão a confundir, aí, o plano da pretensão tutela jurídica e o plano da res in iudicium deducta. Se não se tem direito, pretensão, ação, ou exceção, não se exerceu qualquer deles; exerceu-se a pretensão à tutela jurídica, e a sentença foi desfavorável. (b) Os atos tendentes à execução forçada são já atos de exercício, mas, a respeito deles, dá-se o mesmo que no tocante aos atos para se obter sentença de cognição. (c) Se o crédito é de uso da coisa e o credor tem a posse, mediante atos fáticos exerce-se o direito, à semelhança dos direitos reais. Tal o que se passa com o locatário da coisa. (Na anticrese, esse exercício é do direito real e do direito de crédito.) (d) Quando alguém exerce a justiça de mão própria, exerce pretensão à autotutela e, se tem direito, pretensão, ação, ou exceção, exerce o que lhe cabe, mediante atos fáticos. (e) O exercício dos direitos formativos, que integram os direitos de crédito, são exercício destes (e. g., escolha, denúncia, compensação). 3. Escala dos exercícios. Quando se exerce a pretensão, a ação, ou a exceção, exerce-se o direito em que se funda. Se se exerce a ação, exerce-se a pretensão de que faz parte. O exercício da exceção é exercício de direito, que a dá, ou de pretensão, ou de ação. 4. Exercício dos direitos formativos. Os direitos formativos exercem-se, de ordinário, por manifestação unilateral de vontade àquele que há de tolerá-los. Só em alguns casos o sistema jurídico exige que se exerçam judicialmente, inclusive, às vezes, com a sentença constitutiva. O direito de opção (nos negócios jurídicos de opção) exerce-se pela declaração de vontade à outra pessoa. O direito de retrovenda também se exerce por declaração de vontade ao comprador. O direito do que recebeu a oferta, pelo aceitá-la: da oferta nasce-lhe direito, resultante da irrevogação até este momento, ou da irrevogabilidade dela. Isso, só por si, bastaria para se provar que há negócio jurídico no ofertar e negócio jurídico no aceitar, composto, assim, o negócio jurídico bilateral. Aliás, não aceitar é dispor; a oferta irrevogável e aceitável é valor; valor é a própria oferta revogável, enquanto não se revoga. Nos casos em que a lei permite que se encha documento em branco, firmado por outro, o direito do nomeado, ou do endossatário, ou do portador, a enchê-lo é direito formativo, e exerce-se por esse ato fático (Andreas von Tuhr, Die unwiderrufliche \/ollmacht, 50; Julius Siegel, Die Blanketterklârung, 16). Também é exercício de direito formativo a ratificação. Tanto ela é negócio jurídico, quanto a recusa a ratificar o é, pois que, ali e aqui, se declara, sendo, pois, renúncia a recusa a ratificar (contra, G. Planck, Kommentar, 1, 4ª ed., 491; certo, Andreas von Tuhr, Der Aligemeine Teu, 1, 163 e nota 13): o ratificante entra em relação jurídica com o terceiro, com quem o gestor negociou sem poder; ou há recusa por parte do que poderia e teria direito de ratificar. O direito (formativo) de determinar o terceiro, ou de substitui-lo, exerce-se por meio de declaração ao obrigado. O direito formativo de constituir em mora o credor exerce-se por manifestação de vontade, em ato jurídico stricto sensu; bem assim o de oferecer o devedor a prestação, nas obrigações facultativas. 5. Exercícios das pretensões. As pretensões exercem-se pelo fato, positivo ou negativo, tendente a que se cumpram. O exercicio de direito é o enchimento do espaço-exercício, pelo ato do titular; a pretensão exerce-se no espaço-exercício, mas o enchimento há de ser pelo que tem a obrigação (que é o correlato da pretensão, como o dever o é do direito).

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6. Exercício das ações. As ações exercem-se em juízo ou fora dele. Quem fala de ações, no sentido do direito material, que é tratado das Ações o próprio, somente por associação (fato psíquico, extrajuridico) alude à justiça estatal, ou à própria autotutefa. 7. Exercício das exceções; princípio da indiferença das vias. As exceções podem exercer-se extrajudicial ou judicialmente, pelo ato de recusa (ato jurídico stricto sensu, e não negócio jurídico). Sempre que o titular exerce o direito, a pretensão, ou a açao, ou a exceção, extrajudicialmente, também o titular da exceção ou da réplica pode opõ-la extrajudicialmente (Paul Langheinekefl, Anspruch und Einrede, 341). Se o direito, a pretensão, a ação, ou a exceção, se exerce extrajudicialmente, por meio de manifestação de vontade ao obrigado, o exercício da exceção, ou da réplica, segue a mesma via, em manifestação de vontade ao exercente do direito, pretensão, ação, ou exceção. A lei não exige forma especial. A opinião que só admitia oposição judicial das exceções (ainda, Felix Friedenthal, Einwendung und Em rede, 63, e Emest Zitelmann, Aligemeiner Teil, 31) foi repelida por CarI Crome (System, 1, 183 s.) e Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 11 s.; Lehrbuch, 1, 250). É hoje assente o princípio da indiferença das vias. É preciso, para o exercício da exceção, que se diga em que consiste ela; mas já é opor exceção negar-se a atender à prestação, alegando-a. Alegar não é só apresentar os fundamentos da exceção; e basta alegar sem fundamentar, e. g., opor que se deu prescrição (Andreas von Tuhr, Der Aligemeine Teu, 1, 297). O exercício da exceção exclui a eficácia da mora; não se deve dizer que exclui a mora, tanto que, satisfeita a exceção, se é o caso, a mora opera-se, e, não satisfeita, nenhum efeito, ainda antes da oposição da exceção, tem a mora. Aí está uma das aplicações conceituais de que toda exceção só se passa no plano da eficácia, e não no plano da existência ou no da validade, quanto a direitos, pretensões, ações e exceções. O exercício extrajudicial da exceção pode vir a ser apreciado, depois, em processo; e o fundamento dela discutido, ainda se foi, alhures, judicialmente oposta. Não é preciso que a exceção, se a prestação foi exigida extrajudicialmente, se excerça imediatamente a esta, salvo regra jurídica especial. A eficácia retroativa da exceção tem ensejo de operar-se, até que ela se extinga, ou, sobrevindo processo, tenha precluído o prazo para a sua oposição. Oposta, extrajudicialmente, a exceção, ou a réplica — a pretensão, a ação e a exceção ficam encobertos em sua eficácia. Se o credor vai a juízo e já discute a exceção oposta extrajudicialmente, negando-lhe a existência, ou a extensão, ou a eficácia, o réu não precisa rearticulá-la, pois está implícita na petição do autor; se fala no processo, há de aludir a tê-la oposto, e não mais a poder opó-la. Aliás, no exame do caso, há de o juiz atender à exceção, se está implícita nas afirmações do autor. Se o autor nega que tenha havido exercício extrajudicial da exceção, ou o réu afirma e prova o contrário, ou afirma e não prova tê-la exercido, ou de novo a opóe, o que é superposição do exercício judicial ao exercício extrajudicial duvidoso. A doutrina de ser desnecessária a re-oposição, ou a afirmação de ter oposto o réu a exceção, se o autor implicitamente afirmou a oposição, teve adversário em Paul Langheineken (Anspruci-) und Einrede, 351), por lhe parecer que seria infração ao princípio Ne procedat iudex ex officio, e o mesmo argúem outros juristas. Sem razão: o autor, ex hypothesi, admitiu que a oposição se deu. 8. Exceções e direitos formativos extintivos, após a coisa julgada. As exceções do réu, com a coisa julgada, estão excluídas, salvo as que cabem nos embargos do executado, e estas só após a coisa julgada podem ter nascido. Resta saber-se qual a sorte dos direitos formativos extintivos. Ou se diz, como a respeito das exceções, que a) o exercível deveria ter sido exercido em tempo (isto é, ainda se havia prazo maior para o exercício dele, com o pedido de cumprimento do que seria atingido pelo direito formativo extintivo, extingue-se este pela preclusão); ou b) se extim gue, quer já exercivel, quer não; ou c) se pré-exclui a preclusão a respeito dos direitos formativos extintivos, qualquer que seja o tempo para exercício, desde que não foram matéria de exame. A opinião a) é a verdadeira e corresponde à regra de direito processual civil, segundo a qual se suspende o curso da execução se se alega pagamento, novação, compensação com execução aparelhada, transação ou prescrição superveniente à sentença exequenda (cf. casuisticamente, Konrad Hellwig, Anspruch und Klagrecht, 407). Com b), Emil Sechel (Die Gestaltungsrechte, 232). O assunto toma-se mais sensível quando se trata das ações de anulação, que só após a prescrisão poderiam ser exercidas e. g., o erro só foi descoberto depois, mas dentro do prazo da prescrição. Levar-se até aí a eficácia da preclusão seria atribuir-se à sentença na ação declaratória ou de condenação

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eficácia própria da declaratória negativa (— d — d = + d) na ação de constituição negativa, o que é lógica e dogmaticamente inadmissível. A ação declaratória e a de condenação podem coexistir, no foro, com outra ação — de constituição negativa ou ser sucedida pela propositura dela se, in concreto, a coisa julgada numa daquelas não compreendeu a matéria desta. § 9º Exercício de poderes 1. Poderes e exercício. O poder de disposição, o poder de representação, o poder de administração e outros poderes supõem no seu titular aptidão que se insere no mundo jurídico, como poder integrante do direito mesmo (e. g., o poder do proprietário de alienar, de nomear bens à penhora, de empenhar a coisa, de ceder o crédito), ou de relação jurídica com outra pessoa (eI g., o ius vendendi do credor com direito de penhor, se lho atribui, expressamente, o contrato, ou o faz o devedor mediante procuração especial, o poder do procurador, o pátrio “poder”, o “poder” matrimonial). Os poderes exercem-se mediante conclusão de negócios jurídicos com alguém, terceiro (ainda no caso de poder ser o próprio este terceiro, no negócio juridico consigo mesmo), ou o ato jurídico stricto sensu, ou de ato-fato juridico (excepcionalmente, e. g., posse adquirida pelo procurador, ou representante). Escapou a Andreas von Tuhr (Der Aligemeine Teil, III, 546) o poder exercido por ato jurídico stricto sensu e, excepcionalissimamente embora, por ato-fato jurídico. 2. Alienação. A alienação é poder contido no direito e exerce-se como tal. De ordinário, há outros elementos que integram o conteúdo do direito, pretensão, ação, ou exceção, e podem existir sem o elemento ‘poder de dispor” (e. g., se é inalienável a propriedade ou incessível o crédito); casos há, porém, em que é o poder de disposição, fora da posse (quase), todo o conteúdo; o dinheiro, a ficha que se dá nos bancos para recebimento de dinheiro ou documentos. Não se pode dizer que, no dinheiro, só o poder de disposição exista; há outros elementos, como a pretensão à substituição da cédula rota, ou suja, ou a recolher-se, e o poder ser empenhado (e. g., se tem valor acima do nominal). 3. Escala de exercícios. O exercer pretensão, ou ação, ou exceção, que se contêm no direito, é exercer o direito. A alguns poderes correspondem ações para se realizarem ou serem “declarados”. Aqui, está um dos pontos mais relevantes da Teoria Geral do Direito: em todo direito, pretensão, ação ou exceção, tem-se como incluido o elemento poder de revelar-se, se alguém obsta ou dificulta ou nega a revelabilidade. Esse poder de revelar-se é actio e corresponde ao conteúdo favorável da sentença quando se exerce a pretensão à tutela jurídica. O poder de se fazer “respeitar”, de ter atendimento, exaure o conteúdo de todas as ações declarativas, constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas, e começa desde as medidas preventivas ou cautelares. A terminologia alemã emprega a palavra Geltendmachvng, que é imprópria, uma vez que valer, existir e ser eficaz são três conceitos distintos: ou se empregas gelten (ter valor, valer; gótico gildan, velho alto-alemão Keltan), no seu sentido próprio (cf. Jacob Grimm e Wilhelm Grimm, Deutsches Wôrterbuch, ‘1, 1, 3066 s.), ou se adota o senso jurídico estrito. Traduzindo-se por “fazer valer”, ainda mais inadequada é a expressão, pois que valer está em existir e pode estar em ter eficácia, mas há o que existe sem valer, o que vale sem ter efeitos e o que tem efeito e pode deixar de ser, por invalidade. A revelação da relação jurídica, de que resulta direito, pretensão, ação, ou exceção, é apenas um de seus modos de atendibilidade, de “respeito”; corresponde, tão-só, ao “poder de obter declaração”, ou de “declarar-se”. Note-se bem que o titular do direito, que o expõe, que o revela, que o postula, que o alega, exerce poder que faz parte do direito. Passa-se o mesmo com o titular da pretensão, da ação, ou da exceção. Esse poder é o primeiro elemento de todo direito, pretensão, ação ou exceção; porque é o poder de revelar (exprimir, enunciar) a própria existência. Exercer esse poder já é exercer, no mínimo, o direito, a pretensão, a ação, ou a exceção. Afirmação de que existe é começo de exercício, desde que se fez no plano da eficácia, presente ou futura; é preciso, porém não basta que se faça a alguém (6. H. C. Hirsch, Die tilbertragung der Recbtsausúbung, 62). A afirmação a si mesmo, ou sem recepção, não inicia exercício não é, ainda, nos planos da existência e da eficácia; a afirmação a alguém, sem ser nos planos da existência e da eficácia (= para efeito jurídico; cf. Konrad Hellwig, Lelirbucb, III, 280), não é exercício de direito, pretensão, ação ou exceção. A afirmação judicial já é começo de exercício e se faz como res deducta ao se exercer a pretensão à tutela jurídica, que tem como finalidade a “declaração” pelo Estado, ou seja em ação, ou em defesa, ou em exceção,

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ou para obtenção de medida cautelar. Pode ser que se não exerçam os outros poderes (exercício do direito, em senso estrito) e só se exerça a ação declaratória, tanto quanto o proprietário pode exercer o seu direito sem estar preocupado com a afirmação dele nos planos da existência e da eficácia: há, então, afirmação da existência do direito, da pretensão, da ação ou da exceção, somente no mundo fático, não no mundo jurídico. O exercício do direito, em sentido estrito, é o exercício dos outros poderes, pretensão, ações e exceções, que não o de revelação só; porém no exercício judicial vai implícito este, e a ação declaratória já é exercício de poder contido no direito. Quanto à ação declaratória negativa, é poder contido na esfera jurídica do autor: é poder que está implícito no seu direito de personalidade; é o poder de afirmar que alguém não é titular de relação jurídica, que seria invadente da esfera jurídica do autor. 4. Exercício consumptivo e exercício não-consumptivo. Há o exercício consumptivo do direito, pretensão, ação, ou exceção, e o exercício não-consumptivo. Se cobrando, recebo a prestação, ou se o devedor, de si só, me veio pagar e recebi a prestação, consumi o meu direito, e o crédito extinguiu-se. A compensação tem o mesmo efeito de consumpção. Outrossim, a venda amigável do penhor pelo credor com direito de penhor, o exercício dos direitos formativos criativos, modificativos, ou extintivos. Os direitos a sujeitos passivos totais são inconsumptíveis (liberdade, propriedade), quer se exerçam judicial, quer extrajudicialmente, quer consista o exercício em uso material da coisa, quer em exercício de pretensões, ações ou exceções; mas há exceções: o direito do credor hipotecário, pignoratício, ou anticrético, ou pela caução, é consumptível; se a coisa é consumível, o direito sofre consumpção com o consumo da coisa. 5. Ato de disposição. Diz-se que, na medida em que o exercício do direito altera a consistência do direito, é ato de disposição. Não é sempre, todavia, o exercício, mas o consequente a ele que importa disposição: se exerço a ação de condenação, não disponho; se levanto o depósito, ou se recebo o pagamento durante o processo, ou depois, sim. § 10 º. Exercício e limites do conteúdo 1. Limites do conteúdo. E obvio que dentro dos limites do conteúdo dos direitos, pretensões, ações e exceções, é que estes se devem exercer. Se o exercício os excede, não mais é exercício: em “exercício” há ex, mas também, arcere, por tapume, fechar; é ação dentro de cerca, e não por fora. Seria invasão, ultrapassar de linhas. Ora, o exercício do direito, da pretensão, da ação, ou da exceção, é como dentro de arca (também do étimo de arcere e de exercitium). Em concepção absolutista, nenhum choque se daria entre exercícios de dois ou mais direitos. Em verdade, porém, há colisões e irregularidades como ocorre em caso de exercício irregular de direito. Onde se vai além dos limites, o ato já não é exercício, é ato ilícito ou ato ineficaz (e. g., a denúncia do contrato pelo que não pode denunciá-lo, o protesto pelo que não pode protestar). 2. Excesso e contaminação do ato. As vezes, o excesso não contamina todo o ato, separa-se dele, tem sorte à parte; então, não há irregularidade ou ilicitude no que foi dentro dos limites, ou no que o agente podia praticar, ou no que o credor podia exigir. § 11º. Exercício e consciência dos atos 1. Afirmação de direito. Se o exercício consiste apenas em afirmação do direito, pretensão, ação, ou exceção, é preciso haver consciência dos atos. Vimo-lo antes. Há de ser a alguém e para efeito no mundo jurídico. Sem isso, ficaria no mundo fático. No mais, todo exercício (exercício em senso estrito) independe da consciência. Todo ato de andar (ex) dentro dos limites do conteúdo do direito (arcere), pretensão, ação ou exceção, é exercicio. O que é dono do prédio dominante, ainda que não saiba que tem a servidão, exerce-a, se, sendo, por exemplo, de trânsito, passa pelo caminho, habitualmente. A consciência pode eliminar o exercício; e. g., se o dono do prédio dominante pediu licença para essas passagens pelo prédio serviente, ou se é seu costume pedi-la quando tem de passar (cf. Andreas von Tuhr, Der Alígemeine Teu, lii, 548, nota 28). Licença que não seja mera cortesia.

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2. Comunicação de conhecimento. Por outro lado, a capacidade de ato licito consiste em poder-se praticar ato que seja negócio jurídico, ou ato processual (H. C. Hirsch, Die (ilbertragung der Rechtsausàbung, 52), ou ato jurídico stricto sensu (para as comunicações, Ernst Zitelmann, Die Rechtsgeschàfte, 33; somente para as comunicações de vontade, por lhe parecer que as comunicações de conhecimento, que só são vantajosas para o incapaz, são válidas e eficazes, Peter Klein, Die Rechtshandlungen im engeren Sinne, 149, 151 s., 166 5.; contra ele, Aifred Manigk, Willenserklàrung und Willensgeschàft, 167). A eficácia da comunicação de conhecimento, feita pelo incapaz, somente poderia ser no terreno psicológico (mundo fático); portanto, depende de ser tal, que a recepção importe dever de verificar, excluindo-se, assim, a boa-fé de quem a recebeu. § 12º. Liberdade do exercício 1. Princípio da liberdade de exercício; dever de exercício. Segundo o principio da liberdade de exercício, o exercer, ou não, os direitos, pretensões, ações e exceções fica ao titular, bem como o exercê-los de acordo ou contra os seus interesses. Todavia, há direitos ligados a dever de exercício, o que limita aquele principio, e é possível que circunstâncias, inclusive relações jurídicas de ordem negocial, criem o dever de exercício, a) Os direitos do titular do pátrio poder, e. g., são direitos-deveres. Os poderes do representante, mandatário ou não, se não foram concebidos a líbito do investido deles, hão de ser exercidos conforme regras de dever de atuar. O credor anticrético tem de dever de perceber os frutos; razão por que responde pelos que, por sua negligência, deixou de perceber. O que arrenda prédio agrícola, que perderia em não ser cultivado, tem o dever de cultivo. b) As circunstâncias podem criar o dever de exercício. Se A aluga a B o prédio, junto ao em que mora, e após a locação entra em acordo com outro vizinho, dono de prédio serviente, de modo que a restrição ou extinção da servidão a favor do prédio de moradia de A prejudique a B, que contava com ela, A falta a dever de exercício. 2. Não-exercício; consequências. O não-exercício pode ter consequências contra os interesses do titular do direito, da pretensão, da ação ou da exceção, ainda quando não haja dever de exercício: a)prescrição; b) perda do direito, pretensão, ação, ou exceção, pelo prazo preclusivo; c) morte do titular, se não há transmissibilidade hereditária; d) perda do direito de escolha, de retrovenda, ou de opção; e) extinção do crédito alimentar, quanto ao passado; f) não inclusão dos créditos no concurso de credores ou na falência; g) não-atendimento no processo dos embargos do executado, ou no processo dos embargos de terceiro. § 13º. Titularidade e exercício 1.Quem exerce os direitos, as pretensões, as ações e as exceções. É o titular do direito, de regra, quem os exerce, a) Não se diga que, no caso do fiador que opóe exceções que competem ao devedor, não provenientes de incapacidade, exerce ele direito alheio: dá-se-lhe direito a exceções iguais às do devedor, não as exceções do devedor. Por isso mesmo, se as deixa de exercer, ou a elas renuncia o devedor, o fiador exerce as suas. b) Também as exceções do dono do bem que serve de garantia real à dívida de outrem derivam de regra da lei, ainda que não escrita: são dele, e não do devedor. c) O exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções pelo síndico, pelo inventariante, ou pelo testamenteiro, é em representação, porque a lei o tirou ao titular do direito, da pretensão, da ação ou da exceção. Aliter, em caso de incapacidade, ou pena, e. g., suspensão do pátrio poder. Há direitos, pretensões, ações e exceções, que somente podem ser exercidos pelo titular, pessoalmente (= excluída qualquer representação voluntária). Exemplo: os direitos de sócio; o direito de crédito, cuja prestação só à pessoa do credor pode ser feita; o direito daquele a favor ou contra quem se estipulou que a prestação só se fizesse pessoalmente; o direito de locação, se não cabe a sublocação sem permissão do locador; o direito de comodatário. Se a outrem se dá, por lei ou por ato jurídico, exercer direito, pretensão, ação, ou exceção, ocorre a representação legal ou voluntária. Em princípio, todos os direitos, pretensões, ações e exceções são excercíveis por meio de representante ou auxiliares.

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2. Atos-fatos jurídicos. (a) Se o exercício consiste em atos que não sejam negócios jurídicos, nem atos jurídicos stricto sensu, a prática dos atos não requer “poder” de alguém: o que os pratica para outrem ‘poderia” praticá-los para si (especificar, descobrir tesouro, compor música, escrever livro, adquirir posse). Se alguém os pratica para si ou para outro, é questão que há de ser apreciada, antes, no mundo fático, e não no mundo jurídico. Não há o representante; há, apenas, o auxiliar, ainda quando seja locatária de serviços a pessoa a quem auxilia. O empregado, que serviu na escavação e achou o tesouro, estava auxiliando àquele a quem locou os seus serviços. Quem leva a cada de crédito de A a B nenhum ato pratica que represente; dá-se o mesmo com o empregado de A que, na oficina, especifica, ou pinta, ou compõe canção, como ato ou peça do seu serviço. Na L. 25, D., de adquirendo rerum dominio, 41, 1, Calistrato disse, tratando da especificação como causa de aqui-sição da propriedade: “salvo se houver sido feita em nome de outrem, com o consentimento do dono; porque, em vidude do consentimento do dono, toda coisa se faz daquele em cujo nome foi feita (tota res ejus fit, cuius nomine fada est).” Pompónio, na L. 27, § 1, a respeito de comistão, falou da propriedade daquele cuius nomine foi feita. Na L. 31, § 1, D., de donationibus inter virum et uxorem, 24, 1, ainda Pompônio se referiu à veste feita pela mulher suo nomine e à veste feita por ela viri nomine. A ambiguidade ressalta, por se empregar aflus nomine e suo nomine em vez de “para alguém” (alguém para o qual) e para si”. Não se tratava de representação, posto que se pudesse praticar como de outro (= para outro) ato-real ou outros atos-fatos juridicos (certo, Max RUmelin, Das Handeln in fremdem Namen Archiu fàr die civilistische Praxis, 93, 283 5.; Alfred Manigk, Willenserklãrung und Willensgeschàft, 666 s.). (b) Se o exercicio do direito consiste na conclusão de negócios jurídicos ou de atos juridicos stricto sensu, a representação para exercício é determinada pelo ato que se há de praticar para o titular. O exercício do direito alheio, em si, não exige representação; o que exige representação é o ato que no exercício do direito de outrem se há de praticar. Não têm alguns juristas prestado atenção a esse ponto; e daí resultam dificuldades e erros. O exercício dos direitos toca ao titular. Bem assim, o da pretensão, o da ação, o da exceção. Enquanto se pode, no mundo fático, exercer o direito, a pretensão, a ação ou a exceção, não se precisa de representação, nem cabe representação. Quando já se tem de entrar no mundo jurídico, a representação cabe, e é de exigir-se segundo os princípios. Se B tem posse do prédio de A e a exerce, não precisa exibir procuração: no mundo tático,é o mesmo ter posse, sem procuração de A, como ter posse, com procuração de A. Passa-se o mesmo com os impressores da obra, para o editor A, ou com os empregados da drogaria, que misturam os medicamentos, para o droguista A. De representação só se pode cogitar quando o ato, que se pratica no exercício do direito, da pretensão, da ação, ou da exceção, o permite; e dela se há de cogitar se o ato a exige. Há atos para os quais ela cabe sem ser exigida: tanto posso dar procuração a B, para receber os meus honorários de um parecer que C me pediu, como enviar o recibo por meu motorista, ou pelo datilógrafo, ou por algum amigo, que não precisa, nem sequer, identificar-se. Aqui, essas pessoas se conservam no mundo fático, talvez no pequeno mundo das relações pessoais estreitas, e atuam como se fosse boca e mãos minhas que fossem até o consulente. 3. Disposiçâo e exercício. Não se há de confundir o exercício do direito, da pretensão, da ação, ou da exceção, com o exercício de outro direito, que derivou daquele, de outra pretensão, ação, ou exceção, que derivou daquela pretensão, ação, ou exceção. É exercê-lo dispor deles, ou constituir a favor de outrem algum direito, pretensão, ação, ou exceção, com algo daquilo de que se é titular; mas, após isso, o exercício por outrem já é estranho ao que dispôs ou constituiu a favor de outrem. O que constitui uso, usufruto, ou habitação, perdeu aquilo que o usuário, usufrutuário, ou habitador vai exercer. Por outro lado, o que fica só é exercível pelo titular; no exemplo, o nu-proprietário. 4. Exercício por outrem. Se o titular deixa a outrem exercer o seu direito, pretensão, ação ou exceção, nem por isso dispõe daquele, ou de alguma destas. A disposição seria plus. Em consequência, se, por meio de representação (mundo jurídico), ou como auxilio fático, A deixa o exercício a B, as regras juridicas concernentes aos atos dispositivos o suporte fálico, sobre que incidissem (e. g., que A acrescentasse: “fique com o recebido para você”, “o que apurar, ou colher, é seu”, “dê, depois a C “ ). 5. Direitos derivados. O exercício do direito derivado de outro pode subsistir sem que aquele subsista. O penhor subsiste, se o dono da coisa empenhada vem a perdê-la; o usufruto do prédio, se o proprietário o abandona, ou alguém

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ganha a ação de reivindicação contra ele, e não contra o usufrutuário, ou o terceiro. O exercício do direito, pretensão, ação, ou exceção alheia somente se pode dar, ou subsistir, enquanto o direito, a pretensão, a ação, ou a exceção subsiste em quem deixou e deixa de exercê-lo, ou exercê-la. A reivindicação da casa atinge a locação, o comodato, ou qualquer outra relação juridica (pessoal) entre o titular e o exercente; a Fortiori, o exercício para o titular e a simples posse. Se sobrevém reivindicação, tudo que permaneceu no mundo fático, ligado ao titular, é como se não tivesse existido, ou não existisse; de modo que a tutela jurídica de algum interesse de outrem somente pode ocorrer se há regra jurídica especial, que se possa invocar. 6. Poderes. Se há representação, no exercício do direito, pretensão, ação, ou exceção, e o ato somente pode ser “em nome do titular”, o ato, que o representante pratica, é como se fosse do titular. O mandatário do dono do prédio “transmite” a propriedade em nome do proprietário: cabe e é exigido o “poder”. Se o mandante disse que o mandatário cobraria a dívida, se e quando o entender, o devedor não pode, ciente, pagar o credor; se o não disse, a todo tempo a procuração pode ser revogada, e o devedor paga bem, se o faz ao credor. Se o ato somente poderia ser praticado em nome do titular, toda ação ou julgado, contra o ato do representante, há de ser contra o representado. § 14º. Divisibilidade do exercício 1. Exercício indivisível. Se o exercício do direito, pretensão, ação, ou exceção, consiste num fato só, é indivisível: ato não se divide. Se consiste em dois, ou mais atos, é questão de fato saber-se se podem ser praticados separadamente e com efeitos próprios. Se a resposta é afirmativa, diz-se que há divisibilidade do exercício. O ato de declarar ou de pedir declaração estatal ésempre separável. Não se precisa cobrar a dívida, se só se quer que a sentença a declare. Não se precisa, sequer, pedir indenização, se só se deseja deixar claro que B injuriou, ou derrubou o muro, ou cortou a água. 2. Divisão. Por onde pode ser separado o elemento do exercício, o titular pode escolher o que há de exercer, ou deixar que outrem exerça; e. g., dar a posse do sitio a B, ou só lhe permitir que dele tire lenha, ou água; permitir que passe a pé, ou com cavalos, ou a pé e com cavalos, ou que passem veículos; permitir que more na casa ou passe o verão, porém sem utilizar a horta e o pomar. Não importa se o exercício separado implica o exercício de um dos elementos, e o não-exercício dos outros, ou se há exercício de um, ou alguns, e exercício de outro ou de outros, ou se há transmissão e é transíativa ou constitutiva, ou só exercicio. O titular pode fazer combinações, ou preferir a transíação, a constituição, ou a simples permissão de exercício, negocial ou não (o exercente é então puro auxiliar, como servidor da posse). Nos direitos em que a transíação é proibida, ou não se compadece com a natureza do direito, pretensão, ação, ou exceção, só há o meio da permissão (e. g., o usufrutuário pode ceder o exercício, a titulo gratuito ou oneroso). O direito ao nome é intransferível: o direito ao sobrenome adquire-se por eficácia de relações de família: a atribuição pelo que tem direito ao nome apenas cria, no outorgado, exercício de direito alheio. Se o exercício do direito se realiza sem ser preciso negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu, de regra outrem que o titular, em representação, pode exercer o direito: tudo se passa, então, no mundo fático; e a relação entre o titular e o exercente é psicológica, e não necessariamente jurídica. Á diferença dos direitos cujo exercício consiste em negócios jurídicos, ou atos jurídicos stricto sensu, porque, a propósito destes, o que pratica o não-titular é ato seu e somente seu, se não representa o titular. De ordinário, porém não sempre, cai no vácuo: a intimação promovida pelo não-credor é sem qualquer eficácia; a declaração de vontade, pelo que não é titular do direito formativo, nada cria, modifica ou extingue; a aceitação por aquele a que não foi dirigida a oferta não prende o oferente nem o aceitante (salvo se implica contra-oferta). Se o titular aprova o exercício pelo não-titular, faz seu o ato ou a série de atos alheios, e há eficácia ex tunc. § 15º. Pressupostos objetivos do exercício 1. Começo do exercício. O direito, a pretensão, a ação e a exceção são exercíveis desde que se criam. De regra, com o nascimento deles começa a eficácia e, pois, a exercibilidade. As exceções funcionam, porém, como encobridoras de

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eficácia, obstando ao exercício do direito, da pretensão, da ação ou de outra exceção. A exercibilidade extrajudicial, a despeito da exceção, estabelece situação contrária a direito, que tem de ser apreciada e julgada no processo que sobrevier, com as alegações e as provas respectivas. A exercibilidade judicial obedece a princípios como o Audiatur et altera pars, o Iudex iudicet secundum allegata et probata partium, ou Ne eat iudex ultra petita partium, e outros. Se há a oposição de replicatio, ou se o réu nega o direito, a pretensão, a ação, ou a exceção do autor, tem este de provar-lhe a existência. Se alega nulidade, anulabilidade, ou ineficácia, o ônus da prova é seu. 2. Pressuposto probatório e legitimação com cártula. Os sistemas jurídicos exigem, em cedas espécies, que se satisfaça cedo pressuposto probatório. Um deles é o de constar do registro de imóveis quem dispõe de algum prédio. O oficial do registro há de negar-se a transcrever a escritura de alienação, se o alienante não é a pessoa que figura como dono no registro de imóveis. No entanto, é possível registrarem-se documentos, diferentes, de alienação do mesmo bem móvel. A razão está em que, nesse registro, não se estabelece linha histórica dos bens; o registro éde documento, e não de sucessão na titularidade. Não há o fato da legitimação. As vezes, legitima-se alguém com o instrumento que o identifica, ou o aponta como investido de poderes, ou assistido. É o caso da cadeira de identidade ou do passaporte; ou o do mandatário; ou o do menor, relativamente incapaz, ou o do cônjuge, nos negócios e atos juridicos stricto sensu, em que aquele ou este precisa do consentimento do representante legal ou do assentimento do outro cônjuge. O cessionário legitima-se apresentando o título da cessão, ou por meio de notificação do cedente ao cedido. Chamam-se títulos de crédito aqueles documentos, sem os quais o titular do direito não pode exercer o seu direito, inclusive dispondo deles. Em tais créditos dá-se especial relevãncia ao título”. Alguns há, ditos títulos de crédito incompletos, para os quais o titulo é necessário ao exercício, não à disposição. Os títulos ao portador são aqueles que servem à exigência da prestação, só por si, sem qualquer identificação do titular, e só eles servem. O devedor paga ao portador (apresentante do título); e libera-se, ainda que não seja este, na história jurídica do titulo, o dono dele. Passa-se o mesmo com os “títulos de legitimação”. 3. Titularidade e legitimação. Se alguém se legitima sem ser o titular do direito, não pode este, de ordinário, exercê-lo (não é legitimado) e aquele pode exercer direito que não é seu. Tratando-se de legitimado que não é o dono do bem imóvel, ou este pode pedir (= tem direito a) a retificação do registro, por meio de processo contencioso, ou não o pode (= não tem direito a retificação). § 16º. Limites do direito e limites do exercício 1. Princípio da coextensão do direito e do exercício. De regra, os limites do exercicio são os mesmos do direito (princípio da coextensão do direito e do exercício). Todavia, esse principio da coextensividade falha quando os limites do exercício são aquém dos limites do direito. Então, não se pode falar de limites do direito e limites do exercício, indiferentemente. Daí falar-se de limitações (H. C. Hirsch, Die Ubertragung der Rechtsausàbung, 32 s.) e de restrições ao exercício. Limitações são contornos que o próprio sistema jurídico traça, donde dizerem-se, para explicitação, “legais”; restrições são o que se diminui, em vidude de ato jurídico, ao conteúdo dos direitos ou do seu exercício. Se as restrições cessam, o direito ou o seu exercício se restaura. Tal é o que se passa com as exceções, que, por definição, encobrem a eficácia do direito, da pretensão, ou da ação, ou de outra exceção. De ordinário, as regras de direito público limitam direitos, pretensões, ações e exceções; mas os negócios jurídicos de direito público somente os restringem se aquelas mesmas o permitiram. 2. Coexistência dos direitos e exercício de direitos. Pode ser concebida a coexistência dos direitos como (a) em sistema de proposições em que haja alguma ou algumas contradições, e nada impede que, nesse mundo juridico, direitos, pretensões, ações e exceções haja, cujos limites passem pela área ocupada por outros, (b) em sistema de proposições em que não haja contradições entre os direitos, pretensões, ações e exceções, e nesse mundo jurídico os

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limites de todos os direitos, pretensões, ações e exceções nunca passam pela área ocupada pelos outros, (c) em sistema de proposições em que o principio da prevenção corta, imediatamente ao surgirem, as contradições, de modo a assegurar a não-contradição do sistema, e o princípio da igualização as reduz por fracionamento dos direitos colidentes. O exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções é suscetível das mesmas concepções: a primeira, absolutista, fundada na “ilimitação do exercício” (Qui iure suo utitur neminem laedit), se dentro dos limites do direito; a segunda, fundamentalmente relativista e excludente de toda a contrariedade, sem auxílio dos princípios da prevenção e da igualização; a terceira, relativista, mas apenas em virtude desses dois princípios. Cumpre observar que, na evolução do direito, algumas regras surgem destinadas a atender, desde logo, à necessidade de não-contradição; isto é, os dois princípios são seguidos antes de se darem as contradições. Assim, o sistema (c) aproxima-se do sistema (b). O § 903 do Código Civil alemão, comparado com os arts. 524 e 554 do Código Civil brasileiro de 1916, é exemplo frisante (os arts. 524 e 554 eram, sob a Constituição de 1891, só no plano dos exercícios e não dos direitos); o § 903 é no plano dos direitos, não sendo razoável interpretar-se o § 903 como só no plano dos exercícios; a limitação foi aos direitos mesmos, porque o direito ilimitado de propriedade já se não admite. Dizer-se, como Andreas von Tuhr (Der Allgemeine Teu, III, 559), que o exercício dos direitos encontra limite nos direitos alheios que se lhe opõem e que, de ordinário (III, 558), os limites dos direitos são também os do seu exercício, é postular o sistema. Tratando-se de direitos derivados, por transferência constitutiva, não há limitação propriamente dita, diante do domínio, porque a constitutividade negocial de si mesma demonstra que está diante de restrição. O direito real na coisa alheia tem os seus limites, oriundos de regra jurídicas especiais, que definem a categoria juridica; em relação ao domínio, ele só o restringe, só o debulha, só lhe retira elementos: o proprietário tem a sua propriedade restringida pelos direitos reais que contra ele têm eficácia; a consolidação, quando cessa algum direito real, mostra que não se trata de limitação, e sim de restrição. Limites vão e vem; não avançam e retrocedem. Muito diferente é o que se passa com a posse: a posse de B não restringe só a propriedade de A; limita-a, ainda quando haja direito do proprietário à posse. Porque a posse é algo que independe da propriedade, e pode opor-se a esta; o proprietário não tem o exercido que seria o da posse, porque não tem a posse, e o exercício das suas pretensões e ações não são exercício fático, mas jurídico. 3.Promessas quanto a coisas ou atos. Mais fracas do que as restrições, portanto a fortiori, do que as limitações, são as promessas (obrigações) quanto à coisa, ou ao ato. Não pode A entrar no terreno de B: o dano a B é limite do direito de liberdade de A. Não pode A impedir que B, titular de direito de servidão, passe por seu terreno: o direito de B restringe o de A. Se A, em vez de dar servidão, apenas se obrigou (prometeu) deixar B passar, o seu direito de propriedade (ainda) não sofreu limitação, nem restrição. Nem o direito nem, sequer, o exercício foram atingidos. O exercício contra o que prometeu apenas levará à reparação do dano, talvez após exercício de ação do lesado, penhora e execução forçada. O que prometeu a coisa (e. g.,vendeu o imóvel) pode aliená-la a outrem. Responde pelo ina-dimplemento. 4. Dano a outrem com o exercício de direitos. E óbvio que as regras juridicas, com a sua incidência, criam direitos, pretensões, ações e exceções, que são a eficácia dos fatos jurídicos resultantes da impressão das regras jurídicas nos suportes fáticos. Se essas regras jurídicas exaurissem o sistema jurídico, o princípio Qui iure suo utitur nerninem Ioedit seria verdadeiro, ninguém precisaria, exercendo os seus direitos, pretensões, ações e exceções, preocupar-se com os direitos, pretensões, ações e exceções dos outros: a lei mesma ter-se-ia posto à frente dos interesses do titular do direito, pretensão, ação ou exceção. Nenhum credor precisaria levar em conta os créditos dos outros credores. As limitações resultantes de “outras” regras jurídicas, ou daqueles dois princípios (da prevenção e da igualização), mostram bem que aquelas regras jurídicas longe estão de exaurir o sistema jurídico. As regras jurídicas relativas à desapropriação e aos direitos de vizinhança são exemplo nítido, se limitações não há ao direito, à pretensão, à ação, ou à exceção, ou ao seu exercício, a consideração dos interesses dos outros somente pode ser objeto de proteção em virtude de restrições ou de promessas. Se não as há, podemos levantar o edifício tirando ao edifício anteriormente construído, ou projetado, ou ao futuro edifício ainda não projetado, a bela vista que tem ou poderia ter. Sem regras jurídicas especiais não se pode pensar em limitação do conteúdo; nem em limitação do exercício sem as regras jurídicas sobre ilicitude absoluta; nem em consequências de ilícito relativo, sem promessa.

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A regra jurídica que, contrario sensu, se extrai de regra juridica que diz não ser ilícito o exercício regular de direito, incide sobre o suporte fático (exercício irregular de direito), produzindo ato ilícito absoluto. Tal regra juridica estabelece “limitação do exercício”: a lei põe limite ao exercício; entre o exercício e o ato fora do exercicio contrário a direito, põe o exercício irregular, que é exercício, mas, em virtude da existência de outro direito, contrário a direito. O exercício irregular não é o ato que finge ser exercício, e não o é, nem o ato que se situa além (fora) do exercício; é ato de exercício, mas irregular. 5. Irrelevância do fim de exercício dos direitos e da reserva mental. O fim que tem o titular, ao exercer o seu direito, éirrelevante para o direito, tanto quanto o são os motivos na conclusão dos negócios jurídicos e na prática dos atos jurídicos stricto sensu. Não importa, tampouco, a reserva mental. O credor pode cobrar ainda que a cobrança, pelas circunstâncias do caso, acarrete a falência do devedor e a sua. Não se recusa eficácia ao direito de provar, na compra e venda a contento, se o comprador, sem razão, recusa a coisa: exerce direito. Se cabe invocarem-se o direito e a pretensão de resolução, a ação pode ser exercida ainda que a finalidade do credor seja outra que a de liberar-se da sua obrigação: não se pode entrar em tal indagação (Otto Gradenwitz, Anfechtung und Reurecht beim Irrtum, 2). Por outro lado, se há razão para se denunciar, ou para se pedir resolução ou resilição de contrato, e o titular da ação não a exerce, não se pode culpar a ele pelo não-exercício; salvo se a inatividade, por si só, perfaz ilícito, absoluto ou relativo. § 17º. Pactum de non petendo 1. Pacto concernente ao exercício. Há um pacto que, por definição, diz respeito ao exercício. E o pactum de non petendo. Dele nasce, de ordinário, exceção, oponível ao devedor e ao cessionário; não, ao que apresenta, de boa-fé, título ao portador, ou a endossatário de boa-fé. Se, em vez de pactum de non petendo, se desfez o crédito, é questão de interpretação, cuja solução positiva implica que se distratou, ou que se renunciou, ou se desistiu, ou por outro modo se desfez o vínculo; isto é, que se usou, erradamente, do nome pactum de non petendo. Se o pactum de non petendo é somente para algum tempo, apenas “adia”, dá prazo de tolerãncia. Pode haver, além disso, mutilação. Não se presume. 2. Direitos reais e pactum de non petendo. Se o pacto implica redução de algum direito real, é preciso que possa ser e tenha sido registrado. Se não o foi, não operou a redução, e apenas se há de tratar como promessa; é negócio jurídico de direito das obrigações, que se não alçou ao direito das coisas. Então, pode o pactuante ser condenado pela infração da promessa de não usar ou fruir “de certo modo” o bem em usufruto, ou de não exercer integralmente a servidão (= de deixar de servir-se de certo modo); porém não pode ir com as pretensões ou ações de direito das coisas. Sempre que a redução somente poderia ser formal, a promessa não-formal, válida em direito das obrigações, só neste permanece. § 18º. Exercício das pretensões 1. Exercício extrajudicial e exercício judicial das pretensões. A pretensão exerce-se ou perante o obrigado, diretamente, ou através do Estado, de regra o juiz (exercicio judicial de pretensão). A pretensão perante o Estado é outra coisa; é a pretensão que teria o titular daquela à tutela jurídica. A interpelação, de regra, é exercício da pretensão com prestação positiva; a intimação a não fazer, a Abmahnung da terminologia alemã, é a comunicação proibitiva, a advertência reclamativa, que também interpela. Algumas vezes é pressuposto da ação a interpelação. Por parte do obrigado, há de cumprir ele aquilo a que está obrigado desde que a pretensão nasceu (data fixa, ou quando resulte da própria relação juridica, como se há dever de aviso, ou quando alguém administra negócios alheios, ou após interpelação). Se já existe a pretensão e o obrigado não tem de prestar desde logo, porque o titular da pretensão não a exige, dá-se separação entre constituição da pretensão e exercício dela, de modo que o que é obrigado pode esperar que o titular da pretensão a exerça. O nome, proposto por P. Langheineken (Anspruch und Einrede, 101 s.) de pretensões retidas (verhaltene Ansprúche) seria, aí, admissível. Pretensão já existe; já existe, pois, obrigação: o ato do titular não faz nascerem pretensão e obrigação, ou extinguirem-se. A propósito, por exemplo, dos

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títulos ao portador, assunto dos mais delicados, somente com a apresentação do titulo nasce a pretensão do portador, razão por que somente dessa data corre a prescrição: se há prazo para apresentação, não concerne à pretensão — concerne ao direito à cártula. 2. Exercício da pretensão e exercício da ação. Uma coisa é o exercício da pretensão, judicialmente, e outra, o exercício da ação. Quem judicialmente interpela exerce, judicialmente, a pretensão; não propôs a ação. Nem sempre os juristas evitam essa confusão. Se, ao propor-se a ação, a citação pode ter efeitos que poderiam ter sido os da interpelação, ainda aí é a citação que contém interpelação e vocatio in ius. Exercer pretensão é exigir a prestação; propor “ação” é pedir a tutela do Estado, deduzindo-se o que se pede (pretensão, ação). Quem apenas interpela não aciona As vezes, o titular da pretensão exige, porém não pode propor ação. São as pretensões sem ação. Se o obrigado cumpre, a pretensão está satisfeita. Se o titular exige e o obrigado não cumpre, não pode aquele acionar a este, exceto quanto à declaração da existência da relação jurídica. E preciso, portanto, que não se confundam exigir e acionar. Tampouco, exigir e acionar com pedir: se há o crédito sem pretensão e sem ação, o credor pode pedir, porém não exigir ou acionar o devedor. Se não se pode acionar, nem exigir, é que não há ação, nem, sequer, pretensão. Se se pode exigir e não se pode acionar, há pretensão e não há ação. Exigere (ex, ago) é empurrar, reclamar, empuxar, com o fito de que o obrigado cumpra, operar fora para que o obrigado seja exato. Acionar, agere, sem o ex, não: é ir por si, já sem querer mover o obrigado. O Estado, cumprindo a prometida pretensão à tutela juridica, é que exige, nas ações propostas: o réu é o obrigado da pretensão à tutela juridica que o Estado realiza, porque prometeu aos autores tal tutela. A relação jurídica processual é em ângulo: autor, Estado; Estado, réu. Pode dar-se que a pretensão ainda não haja surgido e caiba a ação de prestação futura; aí, o sistema jurídico põe no presente a condenação que só se poderia conceder mais tarde. A natureza da ação exige trato especial. 3. Pretensões reais e seu exercício. As pretensões reais nascem com a exigibilidade irradiada do direito; o que somente nasce com a oposição ao direito é a ação (sem razão, Andreas von Tuhr, Der Allgemeine Teu, 1, 242 e 262). Tudo se passa como a respeito das obrigações pessoais. Quanto a nascerem as pretensões pessoais, se há termo ou condição, junto com o crédito, ou depois, houve divergências na doutrina: Konrad Hellwig (Anspruch und Rlagrecht, 6; Lehrbuch, 1, 217), Paul Langheineken (Anspruch und Einrede, 21) e L. Enneccerus (Lehrbuch, 1, 3Oª ed., 570) afirmaram-no; negaram-no Gari Crome (.System, 1, 509 s.), Eduard Hõlder (Uber das Klagrecht, Jherings iahrbíicher, 46, 296) e outros. O problema é dependente da Iex lata e da sua incidência, ou não, na espécie. O termo e a condição, operando no plano dos efeitos, podem, em princípio, referir-se a qualquer deles. Se a legislação positiva entende que a suspensão ou resolução se refere a c, e não a a e a b, claro é que, onde a regra jurídica incide, c ainda não existe, isto é, não nasceu. Se a regra jurídica não incide, porque a vontade dos declarantes ou do declarante não fez c dependente do advento do termo, ou do implemento da condição, então c já existe. Seja como for, não há de definir pretensão conforme a regra jurídica que foi adotada a propósito de condição ou de termo. A regra jurídica não é sobre a pretensão, nem serve a defini-la, ou a retificar-lhe a definição. Há direito nascido, que é direito expectativo, na condição; outra coisa é o direito expectado. 4. Exigibilidade e pretensão. Desde que há exigibilidade, há pretensão; de modo que o problema se limita ao problema do termo ou condição concernente a vencimento. Questão precisa: Crédito, cujo vencimento para a prestação ainda não se deu, já é crédito munido de pretensão?” Que é vencimento? Vencida é a dívida exigível? Cai-se em tautologia, mas fica evidente que vencida é a divida com obrigação, portanto há o crédito munido de pretensão. A pretensão pode surgir depois da existência do crédito; não depende da simultaneidade de nascimento; crédito não vencido é, exatamente, crédito a que ainda não nasceu pretensão; não se pode dizer, portanto, que a existência da pretensão nada tem com o vencimento (com razão, e. g., Eduard Hólder, Koni mentor, 423, Uber Ansprflche und Einreden, Arcbiv fíJr die civilistische Praxis, 93, 42, Anspruch ind Klagrecht, Jherings Jahrbúcher, 46, 291; Otto von Gierke, Dauernde Schuldverhãltnisse, Jherings Jahrbúcher, 64, 368; Josef Kohler, Lehrbuch, 1, 174; Cari Crome, Systern, 1, 509; H. Demburg, Das Búrgerliche Recht, 1, 4º ed., 577; Andreas von Tuhr, Der Aliqemeine Teu, 1, 263, e II, 510 nota 25; A. ten Hompel, Der Verstãndigungszweck, 53 s.; contra: para o direito comum, Ferdinand Regeisberger, Pandekten, 217; B. Windscheid, Lehrbuch, 1, 9° ed., 314; para o direito contemporâneo, O. Planck, Kommentor, 1, 4ª ed., 506; Paul Oertmann, Allgemeiner Teu, 583; Friedrich Endernann, Lehrbuch, 1, 8ª-9ª ed., 555; e outros, principalmente Konrad Hellwig, Anspruch ind Klagrecht, 7, e Paul Langheineken, Anspruch und Em rede, 21). Se o titular da pretensão tem de reclamar, mas poderia reclamar antes, prova isso que a pretensão já existia.

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5. Insatisfação e ação. O que nasce quando se exige a prestação é a ação, se o devedor obrigado não a satisfaz. Se se repete a exigência, nada de novo nasce, salvo se a anterior ou anteriores não entraram no mundo jurídico. Se é perdurável a atitude do devedor obrigado, desde o momento em que a pretensão nasce em diante, a pretensão é uma só, inclusive se se trata de pretensão de abstenção permanente, e se é única (Paul Langheineken, Ansnruch ind Einrede, 255; sem razão, HIeinrich Lehmann, Die Unterlassungspfiicht, 322). § 19º. Pretensão, ação e remédio jurídico processual 1. Pretensão e ação. Além dos três fatos típicos, direito subjetivo, ação, remédio jurídico processual, os juristas alemães, B. Windscheid à frente, falaram do Anspruch, da pretensão, nome a que não conseguiram, a principio, dar significado preciso. Desde faculdade derivada do direito, segundo Josef Kohler, ou emanação, desenvolvimento ou manifestação do direito subjetivo, conforme CarI Crome e H. Ostermann, até o fato autônomo entre o direito subjetivo (Willensmacht) e a ação (actio, Hiage), de acordo com B. Widscheid. A pretensão ou Anspruch seria razão jurídica de atuar, em contraposição à razão judiciária. Estaria para o direito como a actio para a fórmula (Georg Jellinek). De posse de uma apólice ao portador, que adquiri, tenho jus a perceber-lhe os juros. A cada semestre, nasce-me o Anspruch a receber-lhe os juros. Ser atual e concreta caracteriza a pretensão jurídica. Georg Jellinek tornou-a concreta, pelo menos mais concreta do que o direito subjetivo. Depois foi descoberto que só faltara o nome aos antigos juristas e que a pretensão é fato do mundo, e não só conceito. Á medida que o direito subjetivo se acentua, se atualiza e se integra pelo advento de circunstâncias e condiciones iuris, surgem as pretensões jurídicas. Não é aqui o lugar para descermos à analise de tal noção, nem lhe discutirmos os serviços que possa prestar à técnica jurídica. Ao nosso assunto de agora muito nos interessa, de modo que poucas considerações nos bastam. Muitas questões resolveremos graças a ela. Quando se simplifica o conceito até a redução da pretensão à faculdade de exigir, facultas exigendi, distinta e “segundo momento” do direito subjetivo, a noção traz-nos enormes esclarecimentos aos institutos que temos de estudar: as relações jurídicas processuais. Muitas vezes, é ni-tidamente perceptível; outras, não. Demais, as ações dependem dela. De maneira nenhuma se deve identificar com a ação ou, a fortiori, com os remédios jurídicos processuais. No correr da exposição, à medida que as dificuldades surjam, distinguiremos, nas aplicações práticas, pretensão, ação e forma (remédio jurídico processual). Estudos superficiais puseram as pretensões no direito processual. As consequências seriam embaraçantes. No direito dos Estados a dois sistemas de direito, a pretensão teria de ficar aos legisladores do direito processual, o que seria absurdo. No direito internacional privado, a pretensão seria a da lex fori e nunca a da lei pessoal ou outra que tivesse de ser aplicada pelo juiz estrangeiro. Portanto, a prescrição seria processual e processuais seriam os prazos preclusivos impostos, solução abertamente contrária aos sistemas de direito. Em tudo isso, a confusão já não concerne ao direito subjetivo, à pretensão e à ação — atinge o remédio jurídico processual. 2. Ação. Que é ação? Actio atuem nibil aliud est, quam ius persequendi iudicio quod sim debetur (pr., 1, de actionibus, 4, 6): “mas a ação não é outra coisa que o direito de perseguir em juízo aquilo que se deve.” A definição é de Celso, na L. 51, D., de obligationibus et actionibus, 44, 7: “Nihil aliud est actio quam ius quod sibi debetur, iudicio persequendi.” Não se trata de regra de direito, mas de conceito científico e de enunciado cientifico, suscetível, portanto, de se lhe apurar a verdade. Na história do direito processual, tal definição frenou, aqui e ali, o desenvolvimento deste, por ter materializado a ação (de direito material), como devera, e a pretensão à tutela jurídica e a ação processual (o que constituía erro). O erro de conceituação tornou-se mais grave àmedida que se ascendia em descobrimentos técnicos de tutela jurídica; e. g., na explicitação teórica e na inserção legal prática da ação declaratória típica e frequente. Os romanizantes, um pouco para salvar a materialização (ou, mais restritamente, a privatização celsiana), recorreram, ainda no século XIX e no século XX, a vários “expedientes”. Com isso, insistiam no erro do proculeiano P. Juvêncio Celso. Peripatético, portanto: a aplicação do direito, que seria forma, e a incidência, matéria, tornar-se-iam o mesmo, porque, no ser, o que importa é a forma; de modo que o direito privado e o processo eram um só direito. Gaio, que era sabiniano, e pois estóico, pondo a matéria como prius, não teria dado aquela definição — ele que chamou à litis

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contestatio “actia” (Gaio, IV, § 11: “in actione vites nominaret”). É pena que os juristas europeus não tivessem estudado a filosofia que estava à base da definição reacionária do peripatético Celso, que morreu, provavelmente, no reinado de Adriano, e já era fruto mingue junto ao sabiniano Sálvio Juliano, que lhe sucedeu. Quais foram os principais ‘expedientes”, a que acima se aludiu, vale a pena apontar. (a) Explicaram os Motive (464 s.) da Ordenação alemã que a actio (no sentido de poder que têm ou não os titulares de direitos; portanto, em sentido do direito material) pode ser declaratôria ou condenatória. De modo que faria parte do sistema jurídico a proposição sobre a própria existência das proposições. Ter direito com ação seria ter direito à condenação, em caso de infração, ou à simples declaração. Por conseguinte, a ação declaratória estaria no direito material. Em termos práticos, a regra jurídica sobre ela devia achar-se, e. g., no direito privado, no Código Civil. O legislador alemão não prestou atenção a que ele mesmo estava a redigir o artigo da Ordenação processual, o primitivo e famoso § 231, que hoje é o § 256. Ressalta a absorção civilística do direito público. (b) Otto Bãhr (Die Anerkennung ais Verpf1ichtwgsgrund,2ª ed., 279, 285 e 315) recorreu ao conceito de dever de reconhecimento que tem o demandado, de modo que violar tal dever é o mesmo que violar o dever próprio que resulta do direito. Isso reduziria a ação declaratória à ação de condenação. Seria antecipação do processo condenatório. Como Otto Bãhr, muitos outros, desde E. Hellmann (Lehrbuch, 375 s.) até hoje. Não viram eles que a proposição sobre a existência ou inexistência de uma relação não faz parte do sistema lógico em que a relação está, nem advertem em que pode haver ação declaratória sem a pretensão de direito privado (razão disso: o critério hodierno de interesse é mais largo que o de actio). 3. Remédio jurídico processual. O remédio jurídico processual é que toca ao processo. Fácil é verificá-lo quando se está no campo do direito internacional privado: se o individuo tem pretensão e ação, no sentido de direito material, responde a lei dominadora do negócio jurídico; qual o remédio jurídico processual que cabe, responde a lei do foro. Nos Estados de duplo direito, a matéria das ações toca ao poder que faz o direito material, ao passo que os remédios dependem dos legisladores do direito processual. Infelizmente, encambulham-se sob o nome genérico de “ações” o que significa estar em situação de exercer em juízo a pretensão e o que constitui remédio processual. Quando se diz “as ações são especiais ou ordinárias”, distinguiram-se remédios, e não pretensões. As categorias “ações reais, ações pessoais” pertencem ao direito material. Compreende-se perfeitamente o que o Código Civil de 1916, no art. 177, quis exprimir quando disse que as ações pessoais prescrevem ordinariamente em vinte anos, as reais, em dez entre presentes e, entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas. Os conceitos e as qualificações, aí contidos, pertencem ao direito material. Ação está, em tal texto, em lugar de “pretensão” ou ação. Quando se estatui, por exemplo, que a nulidade do casamento se processa por ação ordinária, na qual se nomeará cu-rador que o defenda, o legislador invade o terreno do direito processual; e em 1916, aos legisladores locais, competentes para as leis de processo, é que cabia dizer se a ação seria ordinária, ou não, ou qual o rito que deveria ter, uma vez que, aí, “ação” só significa remédio jurídico processual. Dentro do mesmo pais, a usurpação quase sempre se resolve, considerando-se “materializado” (aliás, “federalizado”) o direito processual, prevalecendo a regra do legislador central contra a dos legisladores locais. Não poderia ocorrer o mesmo em se tratando de países diferentes. A nulidade dos casamentos regidos, como a própria nulidade, pela lei brasileira, processa-se nos outros países conforme o rito que a tais demandas der a lex fori. A regra juridica não pertence ao estatuto pessoal das pessoas, e sim ao Brasil quando Estado do foro. E regra de direito processual. “Ação”, ai, não é pretensão, é remédio jurídico processual. A verdadeira pretensão quanto à nulidade de casamento pertence ao direito material e é longamente tratada na lei civil. Também nela se diz que a ação de separação judicial (leia-se: remédio jurídico processual da sepa-ração judicial) será ordinária e somente competirá aos cônjuges. A primeira parte da regra é de direito processual; a segunda parte, de direito material. Os cônjuges têm pretensão e ação; o remédio jurídico processual é ordinário. O direito subjetivo e a pretensão não se confundem com ação, que é, por sua vez, um plus. Enquanto o direito subjetivo e a pretensão tendem à prestação, a ação supóe combatividade e, pois, tende, não à prestação, mas a efeito jurídico específico. Pode mudar a legislação quanto ao direito subjetivo, sem que mude quanto à ação, ou vice-versa. Não raro, antes de se extinguir o direito subjetivo, é a pretensão, ou a ação, que se extingue. Há direitos subjetivos sem ação. As ações populares, ainda quando não concebidas como remédio jurídico processual, podem ser explicadas,

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em alguns casos, como ações a que não correspondem direitos subjetivos, salvo no que implicam, quanto ao remédio jurídico processual, a existência de pretensão ou de direito público subjetivo. Das regras de direito objetivo privado exsurgem, nos casos de subjetivação, direitos privados subjetivos, pretensões e ações de direito privado. Das regras de direito objetivo público, nos casos de subjetivação, dimanam direitos públicos subjetivos, pretensões e ações de direito público. Claro que supomos, além da subjetivação, a atribuição da acionabilidade, porque não basta, para isso, aquela. Incorreram em grave erro Konrad Hellwig, Paul Langheineken e outros, quando viram na ação direito público subjetivo, fruto de confusão entre a pretensão, a ação e o remédio jurídico processual, que se concebe também coletivo, se à base estão pretensões e ações individuais homogêneas, coletivas ou difusas. A pretensão de alimentos é, de direito privado, regida pelo direito civil, ao passo que o remédio jurídico processual e o seu rito são de direito público, de direito processual, regidos pelas leis processuais. O remédio jurídico processual é o oriundo da lei processual, o caminho que tem de ser perlustrado por aquele que vai a juízo, dizendo-se com direito subjetivo, pretensão e ação, ou somente com ação. Tão diferentes são ação e remédio jurídico processual, que todos os dias, ao julgarem os feitos, os tribunais declaram que o individuo não tem a “ação”. No entanto, usaram do remédio jurídico processual. Poderiam dizer mais: que não tinham, sequer, pretensão; nem, ainda mais, direito subjetivo. 4. Pretensâo à tutela jurídica. Quando se propõe uma ação, qualquer que seja, exerce-se a pretensão pré-processual, que éa pretensâo á tutelo jurídica, pois o Estado, desde que se estabeleceu o monopólio estatal da Justiça, a essa tutela se vinculou, e exerce-se, com o remédio jurídico processual adequado, a ação de direito material. As vezes se chama ação ao remédio jurídico processual (e. q., ação ordinária, ação sumária), o que leva a equívocos, em razão da ambignidade. A ação é classificada conforme aquilo que se espera da sentença, se a ação for julgada procedente. Se de força eficacial declarativa a sentença que se espera, declarativa chama-se a ação. Se constitutiva a eficácia da sentença que se espera, constitutiva chama-se a ação. Se condenatória, mandamental, ou executiva a sentença que se espera, condenatôria, mandamental ou executiva diz-se a ação. Se, em vez de se alcançar, com trânsito em julgado, sew tença favorável, o que advêm é sentença desfavorável, por ser julgada improcedente a ação (= propôs-se ação que o demandante náo tinha), declara-se a inexistência da ação. Uma vez que o autor não tinha a ação, exerceu pretensão à tutela jurídica, exerceu a pretensão ao remédio jurídico processual, porque não podia esperar sentença favorável quanto à ação de que se supunha ser titular. A perda, na lide, pelo autor da ação pode consistir em se decidir que a ele não assistia pretensão à tutela jurídica, ou que, na espécie ou no caso, o remêdio jurídico era impróprio. Ai, a sentença desfavorável não negou a existência da ação. O que há de comum entre todas essas decisões desfavoráveis é o elemento constitutivo negativo, que atinge ab initio a atividade de quem propôs a ação. As vezes, a decisão desfavorável apenas apanha ato processual, ou atos processuais que podem ser desconstituidos sem que a propositura da ação seja desfeita. A sentença desfavorável, que se refere ao mérito da ação proposta e a julga improcedente, é sentença declarativa negativa, pois que se nega a existência da açáo e se afirma a improcedência. Não importa a eficácia que teria a sentença, que se desejava (declarativa, constitutiva, condenatória, mandamental, ou executiva). A desfavorabilidade da decisão final fá-la declarativa negativa. § 20º. Pretensões desprovidas de ação 1.Devedora que não se pode exigir. O destinatário da pretensão desprovida de ação é obrigado; tratando-se de pretensão de direito das obrigações, é devedor, e está na obrigação de pagar. Se solve a dívida, não se pode acusar de haver desviado bens, sempre que não se lhe poderia exprobrar o ato, se a pretensão fosse íntegra. Nenhuma invocação de condictio indebiti caberia. Pagou, solveu; porque devia. O que ele entregou, animo solvendi, entregue está, e não se há de pensar em negócio jurídico gratuito. Se a solução foi feita por terceiro, nem por isso se alteram os princípios que regem a solução por terceiro. Pelo fato de ser sem ação a pretensão, não pode o devedor solver em parte, se o credor não anui em receber. Cabem os princípios concernentes à imputação do pagamento, ainda se uma das dívidas é sem ação. A dívida sem ação tem a sua causa, de modo que se pode dar pagamento injustificado e caber a repetição.

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Simples reconhecimento declarativo da dívida sem ação não lhe dá ação; seria constitui-la. Pode tal divida ser objeto de sucessão passiva e a inacionabilidade só perdura se concemia à divida, e não ao pertencirnento ao sujeito substituído (e. g., divida do marido à mulher, ou vice-versa). As regras jurídicas sobre solidariedade têm de ser atendidas, salvo a inacionabilídade. Cabe fiança de divida sem ação, sem se precisar recorrer, para essa proposição, à noção de obrigação natural, erro, esse, de W. Westerkamp (811 rgschaft and .Schuldbeitritt, 82 5.); e a fiança, a despeito de acessória, tem as suas ações, que não ficam cortadas: o fiador que responde, em ação, pela dívida inacionável, não é fiador que responda mais duramente do que o devedor inacionável: responde plenior, ainda que venha a ser o próprio devedor (cl, A. D. Weber, Spstetnatische Entwicklung der Lehre von der natúrlichen Verbindlichkeit, 573 s.), e não durior. O fiador pode obrigar-se de modo mais eficaz, inclusive com pactum de non compensando. Há princípio de que o fiador pode opor exceções e a nulidade da divida nada tem com as dívidas sem ação; porque não há, nelas, nulidade, nem inacionabilidade é exceção (Hans Reichel, Unklagbare Ansprúche, Jherings Jahrbúcher, 60, 46). O fiador do direito, ou da pretensão, ou da ação mutilada, ainda que não tenha conhecido a mutilação, “renunciou” o benefício de discussâo (H. Hasenbalg, Die Bíirgschaft, 143 5.; contra, A. D. Weber, 3ª ed., 492). Resta saber se também renunciou o beneficium excussionis personalis (seu ordinis), que é a favor dos credores com hipoteca, em caso de ação executiva. A resposta há de ser afirmativa, porque sena chamar o devedor a juízo, embora pela prenda dos seus bens, mas o fiador, que fora inciente da mutilação, pode propor a ação de anulação da fiança por erro, ou pelo dolo do credor. A renúncia do devedor à inacionabilidade da dívida afiançada não se há de interpretar como renúncia do credor à ação contra o fiador, ou execução dos bens deste; nem a renúncia à inacionabilidade da dívida principal, posterior à fiança, se há de interpretar como exclusão do benefício de discussão ou do beneficio (processual) de excussão ou ordem. Cumpre, ainda, observar-se que a responsabilidade do fiador é pela dívida, não só faticamente como juridicamente; o beneficio da discussão é que pode ser renunciado, e a fiança da dívida inacionável supõe-no. O que se disse sobre a fiança também concerne às garantias reais. Se a inacionabilidade da dívida garantida por hipoteca importasse ser inacionável a hipoteca, reduzir-se-ia a eficácia desta à ineficacidade das alienações e onerações contra ela (Hans Reichel, Unklagbare Ansprúche, Jherings Jahrbíicher, 60, 51, falou de “nada”, esquecendo o resto da pretensão hipotecária). A hipoteca é real; pode garantir dívida inacionável; a executividade não pode ser elidida, salvo em casos especialissimos. A hipoteca pode excluir, e. g., a compensação da dívida; ou permiti-la, se aquele ou esse fato não resulta da lei cogente; e tomar inacionável a divida, sem ser pela excussão do bem hipotecado. O penhor tem mais exigibilidade extrajudicial do que judicial, porém nem sempre, nem totalmente. Não importa à extensão da sua eficácia, inclusive ação, se a dívida, que ele garante, é acionável, ou não. 2.Inacionabilidade de pretensão e direito de retenção. A inacionabilidade da pretensão não exclui o direito de retenção; e o credor da pretensào inacionável não está privado de exercer exceção non adimpleti contractus ou a exceptio retentionis, nem, sendo o caso, de exercer a pretensão à resolução do contrato. 3.Interpelabilidade e Inacionabilidade. Se a dívida pertence à classe daquelas cuja mora só se estabelece pela interpelação, surge a questão da interpelabilidade: aqueles que não distinguiam a pretensão inacionável do direito contemporâneo e a obligatio naturalis do direito romano foram levados a citar o “Nulia mora ubi nulia petitio” de Q. Cervidio Cévola (L. 88, D., de diversis regulis iv ris antiqul, 50, 17: “Nulia inteliegitur mora ibi fieri, ubi nuila petitio esi”; também na L. 127, D., de verborum obligationibus, 45, 1) e às vezes a ter a interpelação como forma da ação (aliás seria outro ação, e não a que se cortou), recorrendo-se à L. 127, D., de verborum obligationibus, 45, 1 (H. A.Schwanert, Die Naturalobligationen, 169 s.); aqueles, que distinguem o conceito de dever só moral (= nào-jurklico) e de obrigação sem exposição à ação do credor (= jurídico deficiente), têm por interpelável o devedor inacionável (assim, Hans Reichel, Unklagbare Ansprtiche, Jherings Jahrb(icher, 60, 55 s.). O problema circunscreve-se à interpelação judicial, porque a outra é evidentemente exercício do direito do credor, independente da ação. Quanto à interpelação judicial, se é certo que o débito moral, não-juridico, não daria base a ela, não se pode dizer o mesmo onde há direito, embora mutilado, ou pretensão, embora mutilada. 4. Pena convencional e inacionalibidade. Outra questão é a pena convencional para as pretensões inacionáveis. A

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cláusula penal concerne à pretensão; e, ex hypothesi, está em causa obrigação sem exposição à ação (pretensão inacionável), e não ato jurídico nulo. Este, sim, faria cair a cláusula penal. Nada impede a pena convencional concernente à pretensão sem ação (H.Dernburg, Die .Schuldverhàltnisse, 269). 5. Penhor e pretensão sem açâo. A pretensão sem ação não permitiria o penhor legal, devido à peculiaridade do direito brasileiro, que é a homologação (aliter, no direito alemão, § 561). Se há perigo na demora, há casos de defesa própria (.Selbsthilfe), e a defesa própria, embora seja “o que restou’, depois de haver implantado o monopólio estatal da justiça, e aí não passe de sub-rogado da medida de segurança (Hans Albrecht Fischer, Die Rechtswidrigkeit, 257), entra na classe dos atos de exigência extrajudicial. O Estado não a concebe como sucedâneo da sua atividade judicial. 6. Açâo e compensabilidade. A compensabilidade não entra no conceito de ação. Dividas inacionáveis podem ser compensáveis. A incompensabilidade por pactum de non compensando pode recair na dívida, no tocante ao devedor, ou no tocante ao credor, ou a ambos. A compensação independe do juiz, que apenas pode declará-la. A discussão a respeito das dívidas de jogo e aposta é falsa questão, porque aí ou não há direito, ainda mutilado, se proibido o jogo, ou aposta, porque do nulo não se irradiam efeitos, ou há direito mutilado, ou, tratando-se de certos jogos regulados, direito e pretensão íntegros. A mutilação das dividas de jogo e aposta pertencentes à segunda classe é da pretensão, e não só da ação. Essas diferenças, não estudadas conveniente-mente, levaram H. Demburg (Das Búrgerliche Recht, II, 1, ed., 353), Otto Fischer e W. Henle (Btirgerliches Gesetzbuch, 8º ed., 241), CarI Crome (Svs tem, II, 296) e outros a considerar incompensáveis as pretensões sem ação: a compensação, exigindo a acionabilidade, não poderia dar-se com as pretensões inacionáveis (Paul Oertmann, Das Recht der Schuldverhàltnisse,3ª,4ª ed., 290), mas poder-se-ia compensar contra dívida de jogo ou aposta (L. Enneccerus e H. Lehmann, 1, 2, 11º recomposição, 199, nota 18) ou “outra” obrigação natural, ou pretensão inacionável. Ora, exatamente à dívida de jogo, ou aposta, falta toda a pretensão, pelo menos; salvo se permitido o jogo, ou a aposta, e regulado com a atribuição de acionabilidade dos créditos. § 21. Pretensão sem ação e cognição judicial 1. Pretensâo sem ação, alegada em juízo. A pretensão sem ação pode ir a juízo, incidenter, ou não; e a função da justiça é declará-lo. Não há ação, posto que se haja exercido a pretensão à tutela jurídica. O que “falta” falta na res in iudicium deducta. É mérito, que se aprecia. A situação toma-se digna de estudo quando se propõe a ação declaratôria e tem-se de discutir se, ao se mutilar a pretensão, também se lhe tira pretensão a ser declarada, que é ligada à existência da pretensão. Naturalmente, é preciso que a postulação da ação aluda a relação jurídica que exista. Se a dívida é de jogo proibido, ou de aposta proibida, não existe relação jurídica; nem direito, portanto, nem pretensão; nem qualquer ação. Para se afastar a repetibilidade da solução, tomam-se o jogo e a aposta, como fatos, que se não podem deduzir em juízo. Se a dívida é de jogo não-proibido, ou de aposta não-proibida, dá-se o mesmo, posto que somente cortada a pretensão. Tampouco, é possível adiantamento de execução, ou mandamento de segurança (cautelaridade), se a dívida é sem ação; a fortiori, se sem pretensão (dívida de jogo não-proibido ou de aposta não-proibida), ou se não tem juridicidade (jogo proibido, ou aposta proibida; ou dever simplesmente moral). Verificado que é inacionável a pretensão, ou que não há a pretensão, denega-se o arresto, ou sequestro, ou qualquer medida cautelar. Se o titular de pretensão sem ação, ou de direito sem pretensão, vai a juízo (exercício da pretensão à tutela jurídica), não se produz qualquer efeito, de direito material, da citação, ou da litispendência. 2. Direito e pretensão à declaração. Se o titular de direito sem pretensão, ou sem ação, ou o destinatário de dever moral vai a juízo em ação declaratória positiva, a sentença tem de ser-lhe favorável, no que existe de pretensão à declaração; e essa tautologia exige que se verifique se o direito é sem pretensão por proibição da lei (e. g., jogos proibidos), porque então a pretensão à declaração também foi destruída. Se só se excluiu a acionabilidade, entende-se que não se exclui a ação de declaração. Se se excluiu a esta, o juiz não pode declarar o direito, ou a pretensão, ainda em questão prejudicial. Quanto à negação da relação jurídica ou da sua eficácia, o juiz mantém a sua competência, que é a de fechar as portas da justiça às pretensões inacionáveis, ou, a fortiori, aos direitos sem pretensão: e há o interesse daqueles que, sem isso, estariam expostos à ação das pretensões inacionáveis, ou às pretensões amputadas ou inexistentes ab initio.

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A transação, a respeito do direito sem pretensão, ou pretensão sem ação, pode-se dizer que há de versar sobre a mutilação ou não-mutilação, e não sobre a matéria da pretensão, ou da ação; salvo se, na espécie, a transação mesma é excluída. O juízo arbitral, segundo os arts. 26 e 28 da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, tem de circunscrever-se àquele ponto da mutilação, ou não-mutilação. Não se compreenderia juízo arbitral para pretensão inacionável, ou para direito sem pretensão. A desistência processual nada tem com a pretensão, que falta ao direito deduzido em juízo, ou com a falta de ação; diz respeito ao exercício da pretensão à tutela jurídica e à sua cessação segundo os princípios. Se a pretensão inacionável, ou o direito sem pretensão, vem a exame em questão prejudicial, da qual depende a decisão da causa, cumpre distinguir: a) se houve exercício da pretensão à tutela jurídica, sem dedução da açao inexistente, casos em que há só declaração positiva ou negativa, sem que se possa ver, aí, exercício da pretensão ou da ação; b) se houve o exercício da pretensão à tutela jurídica com dedução da ação inexistente, ou da pretensão inexistente, casos em que o juízo decide a questão prejudicial pela declaração necessariamente negativa. Se a irrepetibilidade de solução foi alegada pelo réu, então examina o juiz se houve o fato que fez a solução ser irrepetível; se foi o autor que a alegou para se defender de postulação de solução de outra dívida, passa-se o mesmo. (Os leigos estranham que o sem ação vá a juízo e tenha direito a ter sentenciado o feito, isto é, direito à sentença. No fundo, confundem a pretensão de direito material e a ação com a pretensão e o exercício da pretensão à tutela jurídica. Quando A propõe a “ação declaratória negativa”, exerce a pretensão à tutela jurídica e a sua ação de declaração tem base em texto que não é aquele que lhe dariam as outras ações, que ele, ex hypothesi, não tem, porque a res in iudicium deducta é a não-existência de relação jurídica.) § 22. Exemplos de mutilação 1. Direitos mutilados e pretensões mutiladas. São casos de direito mutilado ou de pretensão mutilada: a) O cônjuge A não pode acionar o cônjuge B, no tocante a frutos dos bens de A ou à sua meação, antes de cessarem a administração e o usufruto. O corte é temporal. Dá-se o mesmo no caso de a administração ou de o usufruto passar a A. b) A lei pode cortar a ação, em regra especial, se algo ocorre. Discutiu-se se essa regra é ius cogens, ou ius dispositi-mim. Não há, porém, resposta a priori; porque depende de ratio iuris. c) Os titulares das ações podem cortá-las às pretensões (Erich Danz, Die Auslegung der Rechtsgeschàfte, 3ª ed., 390; Hans Reichel, Unklagbare Ansprúche, Jherinqs Jahrbticher, 59, 445 sj: se pode alguém renunciar a direito, ou a pretensão, por argumento a maiore ad minus pode renunciar a ação. Entre as condições defesas se incluem as que privarem de “todo” efeito o ato; e a regra jurídica só se refere a condições — e a renúncia à ação, ficando o resto da pretensão ou do direito, não tiraria “todo” efeito ao negócio juridico. Mas há direitos e pretensoes a que não se pode extrair a ação. Á semelhança da renúncia da açáo, há o pactum de non compensando, a renúncia do direito de penhor, a renúncia à averbação (Hans Reichel, Die Umsch reibung der Vormerkung, 47 s.) e a renúncia à executividade (que é excluida, salvo se só renuncia à execução, sozinho, o credor, havendo outros). Às vezes é a lei que diz não poder certo direito, ou certa pretensão, ou ter ceda eficácia, e. g., ser acionado o sujeito passivo, ou dar-se compensação, ou ser apresentado a pagamento amigável. Ali, ocorre o direito ou a pretensão desprovida de ação; nos dois outros exemplos, não. 2. Excepcionabilidade e acionabilidade. Se a pretensão está sujeita à exceção, diz-se excepcionável, e não inacionável. Ainda que se trate de exceção duradoura. A exceção de prescrição não corta na pretensão; não a exclui: apenas há a exceção de direito material, que encobre a eficácia e, pois, faz a decisão ser contrária ao exercício da pretensão e, pois, da ação, por parte do autor. Não é preciso pensar-se em obrigação natural. 3. Pretensão futuro e ação. A pretensão futura não é dotada de ação (= não contém ação), porque ainda não é

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pretensão e, não sendo pretensão, ação não poderia conter. Em todo caso, há ação de prestação fritura, se satisfeitos certos pressupostos. A fortiori, se se trata da pretensão sujeita a termo ou condição suspensiva, que, no sistema jurídico, não é pretensão presente: é futura, como acontece com os direitos. Naturalmente, não se trata do negócio jurídico: este existe. A condição, de que se trata, concerne à eficácia (direito, pretensão, ação etc.). Enquanto pende a condição suspensiva, o efeito querido não se produz; a vinculação é outra coisa, de modo que pode haver direitos ligados a ela e, por definição, os há (e. g., não pode haver revogação). Não se hão de confundir o direito futuro, ou a pretensão futura e o direito expectativo (direito a adquirir o direito quando cumprida a condição), a que a lei pode juntar ações. Por outro lado pode ocorrer a ação de prestação futura, condenatória, alhures estudada nesta obra. 4. Falta de pressupostos processuais. A falta de pressupostos processuais por parte do autor não é o caso de inacionabilidade da pretensão. A pretensão de direito material, res in iudicium deducta, lá está, no que se articulou; nada tem com o direito processual formal ou material, que diz respeito à relação jurídica processual; nem com o direito concernente à pretensão à tutela jurídica. Salvo coincidência de pressupostos do in iudicium, deduzido e de pressupostos processuais (cp. Arthur Nussbaum, Die Prozesshandlungen, 140 s.). 5. Falta de ação, em vez de mutilação. Também não se trata de direito mutilado, ou de pretensão mutilada, quando alguém não pode, contra B, propor ação. Aí, o titular do direito, ou da pretensão, não tem ação, porque o direito ou a pretensão mesma não lha dá, e não porque se haja mutilado o direito, ou a pretensão. Toda ação tem o seu destinatário, ainda que sejam todos os que se achem ao alcance da pretensão. A subjetividade ativa e a subjetividade passiva das ações são elementos da sua definição, isto é, da definição de cada uma delas. No fundo, é a lei que dá os limites subjetivos, como dá os limites objetivos. A regra é que ninguém pode acionar o herdeiro que (ainda) não aceitou a herança (Julius Binder, Die Rechtsstellung des Erben, 1, 156 5.;Hans Reichel, Aktiv und Passivprozesse des vorlãufigen Erben, Festgabefur August Thon, 141); por isso, há a cominatoriedade para que aceite no prazo fixado, se não renuncia. 6. Concordata concursal e concordata falencial. A concordata concursal estabelece a pretensão do credor quanto à sua quota; quanto ao resto, o direito e a pretensão extinguem-se. O fato parece-se com o da partilha dos bens comuns. Não há dever moral quanto a esse resto nem o principio da irrepetibilidade do que se prestou é invocável. Nenhum dever jurídico subsiste, nenhum direito; ainda mutilados (Hans Reichel, Die Schuldmitíibernahme, 547). Sentença que julga cumprida a concordata declara a extinção das responsabilidades do devedor. Nenhum dever moral resta.

PARTE II

Ações em geral

Capítulo 1 Ações § 23. Pretensão e ação 1. Princípio geral da acionabilidade das pretensões. É hoje principio fundamental do direito, em geral, que a toda pretensão corresponda ação que a assegure. Onde há pretensão há, se ocorre óbice, a ação respectiva (Otto Fischer, Recht und Rechtsschutz, 65 5.; Paul Eltzbacher, Die Unterlassungsklage, 81; Otto Geib, Rechtsschutzbegehren und

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Ansprucbsbesttitigung, 29). De modo que as espécies ou os casos, em que isso não se dá, são excepcionais; e podemos, com toda a exatidão, falar de direitos mutilados ou pretensões mutiladas. A mutilação pode ser na exigibilidade extrajudicial, ou na exigibilidade judicial (não se falando aqui no que não interessa ao direito material: no corte do rito sumário por exemplo), ou em toda a exigibilidade. Temos caso de corte de parte da exigibilidade extrajudicial no pactum de non compensando. É corte de toda a exigibilidade judicial qualquer um que atinja a ação toda. Discutiu-se se podem ser amputadas a exigibilidade por ação e a exigibilidade fora da ação. Naturalmente, tal pretensão não é mais pretensão. O que se amputou, mutilando-se o direito, foi a própria pretensão. Para que reste algo de pretensão, é preciso que, de todos os seus elementos constitutivos, pelo menos um não haja sido eliminado. Sempre que a pretensão só se pode exercer em “ação”, há pretensão sem exigibilidade extrajudicial e há ação (judicial). Pode dar-se que ela não tenha aquela e a ação ainda não tenha nascido; então, a pretensão existe: é pretensão sem exigibilidade extrajudicial e de exigibilidade judicial futura. A exigibilidade potencial basta ao conceito de pretensão. Porém há um ponto que ainda merece referência. A exigibilidade através de órgãos do Estado ou de corpo que tutele o direito (e. g., juízo arbitral, obrigatório ou não) não se limita à justiça. Quando se fala de acionabilidade e de exigibilidade judicial como sinónimos, parte-se do quod plerumque fit. Somente com essa advertência é possível usar-se a sinonímia. Os órgãos estatais não-judiciais e os órgãos não-estatais (se o monopólio estatal da tutela jurídica o permite) apresentam espécies de exigibilidade que não é a auto-satisfativa. Também ocorre, por vezes, que a pretensão perde apenas essa via (administrativa, arbitral, insertiva no orçamento) e conserva a ação perante a justiça. Esta é, portanto, espécie (ou uma das direções) da ação e leva à “ação”, processual. Não se pode excluir, ainda nos casos que não são de ações de prestação (ações condenatórias), a pretensão do autor; nem mesmo, quando não é ele que tem a ação, se poderia eliminar a pretensão, que aí se separa da “acionabilidade” processual, por ser de outra pessoa. Inclusive nos casos de ação declaratória e de ações constitutivas positivas ou negativas (Otto Geib, Recbtsschutzbegebren und Anspruchsbestéitiguflg, II s.). 2. Ação (em direito material) e “ação” (em direito processual). A ação exerce-se principalmente por meio de “ação” (remédio jurídico processual), isto é, exercendo-se a pretensão à tutela jurídica, que o Estado criou. A ação exerce-se, porém, de outros modos. Nem sempre é preciso ir-se contra o Estado para que ele, que prometeu a tutela jurídica, a preste; nem, portanto, estabelecer-se a relação jurídica processual, na qual o juiz haja de entregar, afinal, a prestação jurisdicional. A ação nada tem com a pretensão à tutela jurídica. As exceções são inconfundíveis com os direitos formativos. A exceção, o direito de exceção, é o direito de alegar o que encubra a eficácia do direito, da pretensão, da ação ou da própria exceção que se exerce contra o titular do lus exception is. Não se objeta: não se alega fato que impediu o nascimento do direito, que o modificou, ou que o extinguiu. Excepciona-se: contrato há, vale e é eficaz, mas não se pode exigir a execução por um dos figurante se quem exige não adimpliu, como devera (exceção non adimpleti contractus, exceção non rite adimpleti contractus); ou está prescrita a pretensão; ou tem o obrigado ou demandado direito de retenção, que exceção é. É erro considerar-se exceção a alegação de direito real ou pessoal à posse da coisa, se se trata de reivindicação ou de vindicação da posse. O excipiente recusa-se a satisfazer a pretensão porque a eficácia desta está encoberta. Não objeta, não alega fato extintivo ou modificativo, ou que teria impedido o nascimento do direito do demandante. A coerção jurídica nem sempre é judicial. Há, por exemplo, a compensação, que é jurídica, e não é, de regra, judicial: nela, é evidente o fato de auto-satisfação do credor. Há a excepcional defesa própria, que em verdade é o anterior, historicamente, à execução forçada, e o exercício da coerção física que os sistemas jurídicos excepcionalmente permitem (sem razão, H. Titze, Die Notstandrechte, 32). 3. “Ação” judicial e “ação” administrativa. Á ação corresponde ou a “ação” (judicial), ou a “ação” administrativa (qualquer que seja o nome que lhe dê), trate-se de tribunal administrativo, ou de simples administração, e a “ação” em juízo arbitral em outro como não-estatal, ou paraestatal, ou qualquer, ou a “ação” própria, em justiça de autotutela. Se qualquer desses caminhos lhe é fechado, ou se lhe obstrui, nem por isso deixa de existir a ação; porque tais cortes são no direito processual, ou no direito público, provavelmente constitucionais. O corte total ou parcialda ação tem de ocorrer no direito material. A ação não é a constelação dessas “ações”; mas o sol do sistema. 4. Pretensão sem ação e falsa ablação da ação. A pretensão sem ação é pretensão que não pode ser forçadamente executada, embora exequível por outros meios que o direito admita: a pretensão a executar está à base da (‘ação

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executiva”, porém esta não a enche toda. Há ações acionáveis, porém não acionáveis executivamente (e. g., a ação de restabelecimento da vida conjugal, a ação de locação de serviços contra o locador). (a) Pretendeu-se que a pretensão a que outrem não faça seria desprovida de ação. As obligationes in non faciendo não corresponderia ação de abstenção. A ciência pôs fora essas dúvidas e a existência de ações como a ação cominatória para abstenção e a ação de execução para se cumprir a condenação à abstenção é significativa. Também não é desprovida de ação a pretensão, à qual ainda não nasceu a ação; mesmo se o nascimento da ação de-pende de fato não-humano, e nao de fato humano, ou depende de denúncia (a denúncia é exercício de pretensão; sem razão, M. Lesser, Der Inbalt der Leistunqspflicht, 73; com razão, Hans Reichel, Unklagbare Anspruche, Jherings (Jahrbijcher, 59, 419), não é ser desprovida de ação a pretensão a que ainda não surgiu a ação de condenação. (b) Pretendeu-se também que as obligationes naturales fossem correlatas aos direitos obrigacionais sem ação: seriam pretensões pagáveis, porém não acionáveis. A equivalência é falsa; tanto mais quanto as pretensões inacionáveis quase sempre podem ser declaradas: são “pretensões — (ação — ação de declaração)”. A tentativa de explicar as pretensões sem ação pela obligatio naturalis já de inicio é condenável, porque ainda hoje (e provavelmente sempre) não há acordo entre os romanistas sobre a teoria romana das obrigações naturais; e a razão está em que o direito romano não teve a teoria. O que Adolf Dietrich Weber, em 1784, escreveu, no prefácio da obra sobre “a evolução sistemática da teoria da obrigação natural e de sua eficácia judicial”, ainda perdura na ciência: a teoria, qualquer que seja, falha. Ainda se lhe inserimos a distinção de H. A. Schwanert entre obligatio naturalis e naturale debitum. Explicar o fácil pelo difícil seria desaconselhado; se não há conceito unitário de obrigação natural, todo esforço de explicação seria, e é, inútil. A literatura inteira, que se avolumou em séculos, não chegou àsolução; nem podia.c) Utilizando-se os conceitos de dívida (Schuld) e de responsabilidade (Haftung), tentou-se explicar o direito sem ação como dívida sem responsabilidade (Scbuld ohne Flaftung). Ora, o termo Haftung é suscetível de mais de um sentido, quantitativamente; de modo que, para alguns juristas, nessa dívida sem ação ainda estaria responsabilidade (~ ser exigível a dívida, por ação ou sem ela): e haveria responsabilidade na dívida compensável (e. g., Erich Dúmchen, Schuld und Haftung, Jherings (Jahrbúcber, 54, 406; C. von Scherin, Schuld und Haftung, 15)Com o conceito de responsabilidade, dar-se-ia o mesmo que com o conceito de obrigação natural: explicar-se-ia o que é unidade pelo que é suscetível de mais de um sentido. 5. Pretensão à tutela jurídica e renunciabilidade das pretensões. A pretensão à tutela jurídica é irrenunciável, ainda que sejam renunciáveis o direito, a pretensão, ou a ação, que, invocando aquela, a parte deduza in judicium. Contrato ou outro negócio jurídico sobre aquela pretensão seria contra-senso (cf. Konrad Hellwig, Prozessbandlung und Rechtsgeschéiift, 47) 6. . Nem se poderia admitir tratar-se de contractus minus quam perfectus. Outra coisa é a renúncia ou o contrato eliminativo da ação (direito material a deduzir-se em juízo): a) quanto ao direito, pretensão ou ação deduzíveis, se o direito é irrenunciável, pretensão e ação também são irrenunciáveis; se o é a pretensão, a ação também o é; b) sempre que o direito, a pretensão e a ação envolvem dever, este é irrenunciável e, pois, a sua irrenunciabilidade contagia-se ao direito, à pretensão, ou à ação; c) ainda que renunciáveis o direito, a pretensão e a ação, a pretensão à tutela juridica é irrenunciável, posto que renunciável seja o direito de recorrer. Se o direito foi mutilado, ou a pretensão o foi, ou a ação foi cortada, é renunciável o direito a alegá-lo, se a mutilação ou o corte não proveio da lei; porém nunca o direito do réu à pretensão à tutela juridica. § 24. Precisões sobre o conceito de ação 1.Ação, no sentido do direito material. Ao conceito de ação, no sentido do direito material, não é preciso fazer-se qualquer referência ao juíza em que se deduza. A ação existe durante todo o tempo que medeia entre nascer e preclu ir, ou por outro modo se extinguir. Como veremos, a prescrição não a faz precluir; só lhe encobre a eficácia. A deductio in iudicium é acidental, na duração da ação; tão acidental, tão estranha ao conteúdo daquela (= tão anterior é ela ao monopólio da justiça pelo Estado), que se pode dar (e é frequente dar-se) que se deduzam em juízo ações que não existem, tendo o Estado, por seus juizes, de declarar que não existem, ou não existiam quando foram deduzidas. 2.De quando nasce a ação. A ação ocorre na vida da pretensão, ou do direito mesmo, (a) quando a pretensão exercida

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não é satisfeita e o titular age (reminiscência do ato de realização ativa dos direitos e pretensões), ou (b) quando, tratando-se de pretensões que vêm sendo satisfeitas pelos atos positivos ou negativos, ocorre interrupção dessa conduta duradoura- Assim a) enquanto o direito de propriedade, os outros direitos reais e outros direitos com sujeitos passivos totais vêm sendo atendidos pela não-ingerência de outrem (= continuidade da omissão, ou continuidade de atos, que eles exigiam), não há ação; b) enquanto os outros direitos (com sujeitos passivos não-totais) não sofrem com a interrupção da conduta duradoura (= com o omitir ou com o fazer), ou com a falta de ato em determinado momento, não há ação; c) enquanto os direitos, de que se falou em a), não têm de ser reintegrados em elementos seus que serviram a outros direitos, não há ação. Se já passou em julgado sentença, a ação foi satisfeita; não há mais ação, salvo as que resultem da eficácia da sentença. O fundamento dessa cessação da ação é o mesmo da existência do plano processual, superposto ao do direito material. 3. Ação sem haver pretensão. Pode ser que a ação seja o único elemento que se refira ao direito, e os casos, que não são raros, provam por si sós, que a ação pode existir sem a pretensão (ou sem o resto da pretensão). Tal o que ocorre com os direitos formativos, ou sejam geradores, ou modificadores, ou extintivos, se exercíveis por ação (aliter, se apenas há pretensão ou se há direito e pretensão à constituição positiva, modificativa, ou negativa). Quanto às ações declarativas positivas, há pretensão àdeclaração, e há ação; quanto às declarativas negativas, a reação do autor à afirmação do réu apresenta-se como pretensão e ação e já antes o estudamos. A ação de arresto e outras medidas de segurança, em casos de direitos futuros ou incertos e outros semelhantes, são ligadas a pretensões de segurança. 4. Ação e tutela jurídica. A ação é inflamação do direito ou da pretensão. ‘Direito de ação”, no sentido privatístico, é expressão que se deve evitar: há ação, se há direito, ainda que de outrem; direito de ação é confusão entre ação e a ligação dela ao direito. A confusão vai mais longe, porque, no direito público, se fala de direito de ação (Klagrecht) como de direito subjetivo à tutela jurídica, a que corresponde a pretensão àtutela jurídica, que, exercendo-se, suscita a ‘ação”. Ora, deduzindo-se in iudicium, há direito deduzido, pretensão deduzida e ação deduzida; não há direito à pretensão nem direito à ação. Direito de ação seria o direito de “ação”, direito e pretensão àtutela jurídica, que, exercendo-se, suscita a ‘ação`. Ora, se não se têm, rente à vida juridica, os olhos, se não se chega a noções claras, tudo se confunde e baralha, com prejuízo para a ciência e para a justiça. O direito à tutela jurídica, com a sua pretensão e o exercício desta pela “ações”, é direito, no mais rigoroso e preciso sentido; o Estado não é livre de prestar, ou não, a prestação jurisdicional, que prometeu desde que chamou a si a tutela jurídica, a Justiça. Vai longe o tempo (1888) em que o tentou negar Josef Kohler (Der Prozess ais Rechtsuerhàltnis, 13). O Estado tem o dever correspondente a esse direito, que é direito subjetivo e dotado de pretensão, um de cujos elementos é a “ação”, o remédio jurídico processual.

Capítulo II

Classificação das ações § 25. Espécíes de ações 1. Classificação das ações segundo o quanto de eficácia. As ações ou são declarativas (note-se que as relações jurídicas, de que são conteúdo direitos e pretensões, ou de que direitos ou pretensões derivam, antes de tudo existem);

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ou são constitutivas (positivas ou negativas; isto é, geradoras ou modificativas, ou extintivas); ou são condenatórias; ou são mandamentais; ou são executivas. A preocupação da ciência do direito até há pouco foi a de conceituar as ações e classificá-las como se cada uma delas só tivesse uma eficácia: uma fosse declarativa; outra, constitutiva; outra, condenatória; outra, mandamental; outra, executiva, O que nos cumpre é vermos o que as enche, mostrarmos o que nelas prepondera e lhes dá lugar numa das cinco classes, e o que vem, dentro delas, em espectração de efeitos. Não só, por conseguinte, vermo-las por fora, com as suas características exteriores, mas também por dentro. Essa exploração interior das ações é de riqueza prática extraordinária, e não só de alto alcance teórico e doutrinário. Imaginai o histologista antes do uso do microscópio e o histologista depois do uso do microscópio: o de hoje vê o que outrora não se via. 2. Ações e preponderância de eficácia. As classificações de ações de que usaram os juristas europeus estão superadas. Assim a classificação binária como a classificação ternária (ação declaratória, ação constitutiva, ação condenatória) não resistem às criticas e concorreram para confusões enormes que ainda hoje estalam nos espíritos de alguns juristas, como também não viam que uma coisa é força de sentença (eficácia preponderante) e outra a eficácia imediata ou a mediata, sem se falar nas duas menores, com que se completa a constante da eficácia das ações e das sentenças. (a) A ação declarativa é ação a respeito de ser ou não-ser a relação jurídica. Supõe a pureza (relativa) do enunciado que se postula; por ele, não se pede condenação, nem constituição, nem mandamento, nem execução. Só se pede que se tome claro (de-clare), que se ilumine o recanto do mundo jurídico para se ver se é, ou se não é, a relação jurídica de que se trata. O enunciado é só enunciado de existência. A prestação juridiscional consiste em simples clarificação. Tem havido certa lentidão e certa dificuldade em perceberem os juristas que da existência do direito de B contra mim, nascido de relação jurídica entre mim e B, deriva, para mim, o dever de reconhecê-la e, pois, aos seus efeitos, e para ele o direito, a pretensão e a ação para isso. Se não existe essa relação jurídica, que B afirma existir, e tenho interesse em pôr-se claro (= declarar-se) que não existe, a promessa de tutela jurídica de incidência de regras jurídicas, que o Estado faz a todos, estaria sacrificada, se não tivesse eu direito, pretensão e ação para a declaração negativa. A vocatio in ius traz A à declaração positiva ou à negativa. Se afirma que a relação jurídica existe, a minha ação é negativa, e própria; se também diz que não existe, o Estado tutela o direito, declarando este ‘vazio de relação jurídica”, ou negando-o, e ao mesmo tempo exerce a sua função de pacificação social. O direito romano já reconhecia algumas ações declarativas, as chamadas actiones praeiudiciales. E freqüente a ação, ou a questão prejudicial, ou o ponto prejudicial, em julgamentos declarativos prévios; daí as primeiras descobertas, timidas, da especifidade da declaração sentencial. A ação declaratória, geral, autônoma, com o seu conteúdo delimitado e definido, só se alcançou no direito contemporâneo; e ocorre sempre que haja interesse jurídico na declaração, quer positiva, quer negativa. O interesse jurídico há de consistir na prestação jurisdicional de declaração da existência, ou inexistência, de relação jurídica, ainda futura, se nela está, ou estará ou se dela decorreu, decorre ou vai decorrer direito, pretensão, ou ação, ou exceção, ou se há de o autor defender-se, ou excepcionar, no futuro, quanto a tal direito, pretensão ou faculdade. A espécie única de ação declaratória com respeito a fato (= acontecimento do mundo fático) é a concernente, e. g., à declaração da falsidade ou autenticidade de documento. A ação não cogita, diretamente, do direito, ou do dever, ou da pretensão, ou da obrigação ou da exceção; mas da relação jurídica que existe, ou não existe, inclusive se há terno, ou condição, ou se trata de relação jurídica de que só surgem direitos formativos, ou, e. g., se se trata de declarar estranho à porção legítima algum filho. Não importa se a relação jurídica é básica, ou intrajurídica (eficácia de outra). O conteúdo de disposição de última vontade é interesse jurídico suficiente, se já eficaz. Se há interesse jurídico distinto, na declaração, a relação jurídica já dotada de outra ação (e. g., de condenação) pode ser objeto de ação declaratória. Basta a negação ou a afirmação da existência, por parte do outro sujeito da relação jurídica, ou de alguém que poderia litisconsorciar-se necessariamente, para que se caracterize o interesse jurídico. Porém nem sempre o interesse jurídico depende de que o outro termo da relação jurídica negue, ou afirme (e. g., sobre a duração da fiduciariedade). As circunstâncias podem mostrar que, sem negar, ou afirmar, o demandado deu ensejo a nascer a ação declaratória. Nada obsta a que se dê à ação declaratória caráter de ação prejudicial, ou que, se está em causa, ai, questão de inconstitucionalidade de lei, se peça o per saltum. A propositura incidental depende do direito processual. (b) De regra, a ação constitutiva prende-se à pretensão constitutiva, res deducta, quando se exerce a pretensão à tutela

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jurídica. Quando a ação constitutiva é ligada ao direito, imediatamente, não há, no plano da res in judicium deducta, pretensão constitutiva (há-a, no plano do direito subjetivo à tutela jurídica, que é a especialização, pelo exercício, da pretensão à tutela jurídica em pretensão constitutiva). Então, o titular da ação age para a constituição, a que tem direito, ou por ato próprio (direito de denúncia, direito de resolução), ou através de ato judicial (sentença), ou de outra autoridade que o juiz. Pode dar-se, porém, que a ação de constituição se ligue a pretensão que não foi cumprida (espanta que o desconhecesse L. Enneccerus, Lehrbuch, 1, 579): no mandato irrevogável (obter, se há procuração em causa própria, pois aí se separam o direito e a pretensão), se o mandante se opõe à lavratura de escritura pública, tem o mandatário ação para a constituição positiva como conteúdo próprio da sua pretensão constitutiva. As ações de nulidade e de anulação, de rescisão, de resolução e de resilição são constitutivas negativas. A de revogação, também, mas vindo de mais fundo no desconstituir — desde o suporte fático, onde está a vox. Há casos, todavia, que, se bem que pareçam ser, não são de ações constitutivas. Por exemplo, à mulher competem a direção e a administração do casal quando o marido está em lugar remoto, ou não sabido e, naturalmente, para essa investidura não precisa de ato judicial que lha dê, porque, se assim não fosse, a sua administração seria, antes, de fato, dependente de eficácia ex tunc da sentença, exceto, está claro, para os atos que não dependeriam de assentimento do marido, mesmo sem estar em lugar remoto e não sabido o marido, nem em cárcere por tempo previsto na lei, ou interdito. Se não é preciso o ato judicial para a investidura da direção e administração do casal, qualquer ação a respeito é declarativa; se fosse preciso, a ação seria constitutiva positiva. Aí estaria, portanto, um dos raros casos de ação constitutiva positiva. Nas Ordenações Afonsinas (Livro IV, Título 94, pr.), previa-se o caso do ausente, que nom teve mulher, ou padre, sob cujo poderio fosse ao tempo de seu cativeiro”, sendo administrados os bens pelo juiz e o curador, ‘tanto que lhe notificado o requerido for por qualquer do povo A regra jurídica passou às Ordenações Manuelinas (Livro 1, Titulo 69) e às Filipinas (livro 1, Título 90). A investidura é por ato da mulher e a seu risco. A fortiori, nos casos de alienação dos bens comuns ou do marido ou de administração dos bens do marido, porque, aqui e ali, há eficácia anexa da sentença. A ação do marido para que cesse a eficácia da sentença de separação do dote é constitutiva; mas negativa do estado que a sentença produzira: como a da separação fora negativa, é ela positiva (re-constitutiva). A ação de demarcação, quando vai até a divisão, não é constitutiva positiva (sem razão, L. Enneccerus, Lehrbuch, 1, 580), e sim, mesmo sem divisão, executiva. Também não é verdade que, no direito comum, tenham sido de constituição as três ações da divisão. A ação de separação judicial, como a de nulidade ou a de anulação do casamento, é constitutiva negativa. (c) A ação de condenação supõe que aquele ou aqueles, a quem ela se dirige, tenham obrado contra direito, que tenham causado dano e mereçam, por isso, ser condenados (com-damnare). Não se vai até a prática do com-dano; mas já se inscreve no mundo jurídico que houve a danação, de que se acusou alguém, e pede-se a condenação. À ação executiva é que compete, depois, ou concomitantemente, ou por adiantamento, levar ao plano fático o que a condenação estabelece no plano jurídico. (d) A ação mandamental prende-se a atos que o juiz ou outra autoridade deve mandar que se pratique. O juiz expede o mandado, porque o autor tem pretensão ao mandamento e, exercendo a pretensão à tutela jurídica, propôs a ação mandamental. (e) A ação executiva é aquela pela qual se passa para a esfera jurídica de alguém o que nela devia estar, e não está. Segue-se até onde está o bem e retira-se de lá o bem (ex-sequor, ex-secutio). No definir títulos executivos e em apontá-los, o direito material reputa-os suficientes para começo de execução (cognição incompleta). É comum às sentenças condenatórias que passam em julgado terem em si elementos de cognição completa para a execução, salvo lex specia lis. § 26. Ações e pesos de eficácia 1. Precisões sobre eficácia. Imaginai uma tela que estivesse colocada no salão de exposição de pintura, em espaço correspondente às obras do pintor B, mas fosse de autoria do pintor A. Se alguém enuncia que o quadro foi erradamente posto naquela parte da parede, porque o autor é A, e não B, esse observador bem informado declaro a autoria de A, o que equivale a declarar que B não é o autor. Há um é, a respeito de A, e um não-é, a respeito de B. Se A não expôs obra suas e foi B quem levou a tela, como se dela fosse o autor, o diretor da exposição pode chamar a B

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e dizer-lhe que tire de lá a tela; ao dano que B fez, expondo o que não era seu, o diretor da exposição faz corresponder outro dano, o dano correspondente, o com-dano, de onde vem o termo técnico “condenação”. Suponhamos que B não retira o quadro. O diretor da exposição registra o quadro como de A e, após esse ato de constituição de concorrência de A à exposição, afixa o nome de A por sobre a tela. Pode acontecer que a função de registro esteja à cargo de alguma seção do instituto a que pertence a exposição, subordinada ao diretor da exposição; então, manda ele que se proceda ao registro e à afixação. Se A já figurava como expositor, a transferência da tela, que se achava no espaço com a indicação de B, para o espaço com a indicação de A, pode ser por vontade de B, ou por ato de A, ou por ato do diretor. Por ato de B, houve execução voluntária. Por ato de A, houve justiça de mão própria. Por ato do diretor, houve execução forçada. Estão aí as cinco espécies de resoluções, na vida diária, e fora da justiça. O que se passa na justiça não é diferente, nem poderia ser. A lógica com que se conduz o homem, nas relações privadas, não é outra lógica: a justiça pelo Estado apenas se iniciou por medida de monopolização estatal da justiça, para que não pódesse e não tivesse o homem de se fazer justiça por si mesmo. Podemos ir mais fundo na exploração daquelas proposições. A tela pertence a C. C enuncia que foi A que a pintou e acrescenta que é o melhor quadro da sua pinacoteca. Duas declarações fez C: dois enunciados de fato, emitidos claramente. Retenham-se as expressões: clara, claramente, declaração. Se, em vez de fazer declarações, C retira o quadro e põe-no junto aos outros trabalhos de A., algo ocorreu que fez o momento posterior ser nitidamente diferente do momento anterior. Se C diz que B copiou o quadro de A e não mais quer adquirir obras de B, C pune, de certo modo, a B. Se B havia apagado a assinatura de A e C manda verificar se a assinatura de A pode ser reavivada, alguém recebe esse mandamento. Se B a reaviva, ou ordena que se reavive, a autoria de A aparece, por efeito de ato de outrem. É possível que o próprio B, envergonhado, o faça. Há expressões comuns a essas cinco situações: a primeira situação é a mesma que era, daí dizer-se é ou não é; a segunda faz existir algo que não existia, ou deixar de existir o que existia; a terceira afirma que houve ou não houve, e impõe que não haja ou que haja; a quarta resulta de ato de alguém que não a fez, porém mandou que se fizesse; a quinta faz passar o que existe a outro lugar onde não existia, porque ai é que devia existir. 2. Elementos componentes da eficácia e preponderância. Não há nenhuma ação, nenhuma sentença, que seja pura. Nenhuma é somente declarativa. Nenhuma é somente constitutiva. Nenhuma é somente condenatória. Nenhuma é somente mandamental. Nenhuma é somente executiva. A ação somente é declaratória porque sua eficácia maior é a de declarar. Ação declaratória é a ação predominantemente declaratória. Mais se quer que se declare do que se mande, do que se constitua, do que se condene, do que se execute. No seu peso de eficácia aparece 4 na coluna da mandamentalidade; é a chamada eficácia imediata, a eficácia que vem logo após, como peso, à força mesma da sentença. O vencedor, que teve declarada a relação jurídica, que lhe interessava, pode exercer a pretensão à preceituação nos próprios autos da ação declaratória. O sistema jurídico brasileiro viu e exprimiu isso como nenhum outro. O autor pode ir contra o réu com o preceito, se o réu tem algo a fazer em contrário ao declarado, ou se algo fez em contrário. Não se precisa da propositura de ação nova. Se precisasse, a carga seria mediata, e não imediata. Sempre que na carga de uma sentença há o número 4, a eficácia, que tal número aponte, ou já se realizou, ou não precisa da propositura de nova ação. A ação somente é constitutiva porque a sua carga maior é a de constitutividade. Ação constitutiva é a ação predominante-mente constitutiva. A sentença, que ela espera, mais constitui do que declara, do que manda, do que executa, do que condena. A carga de eficácia imediata é de declaração. Daí ter eficácia de coisa julgada material. De regra, tem-se de pedir algum mandado, para que se atribua toda eficácia à constituição positiva ou negativa, que a sentença decretou. A ação somente é condenatória porque preponderantemente o é. Ação condenatória é a ação predominantemente condenatôria. Mais se pede condenar do que declarar, do que executar, do que constituir, do que mandar. Não se há mister pedir, em ação nova, que se declare a relação jurídica a que se prende a condenação: já se declarou, na sentença, imediatamente. Mas precisa-se propor ação executiva, porque a carga de executividade é apenas de 3. A ação somente é mandamental porque preponderantemente o é. Não há ação mandamental pura. A sentença, que ela pede, é sentença que mais mande do que declare, do que constitua, do que condene, do que execute. A declaratividade

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aparece, de ordinário, como eficácia imediata. Mas às vezes cede lugar a outra eficácia. A ação executiva é a ação preponderantemente executiva. Não há ação executiva pura. Ainda nos tempos da justiça de mão própria, todo ato de execução continha, implícito, o ato de declaração do próprio direito: apenas a condenação também estava implícita (4), em vez de haver eficácia mandamental imediata (4), que foi introduzida pela justiça estatal. A execução de mão própria era do tipo 3, 2, 4, 1, 5. Sempre que a sentença, de qualquer classe que seja, apresenta 5, 4, ou 3, de declaratividade, produz coisa julgada. 3. Perguntas e respostas sobre a força e a eficácia. Três perguntas ocorrem quando se tem ultimado a classificação das ações pela força e pela eficácia que têm por fito: a) A classificação quinária, com a constante 15, é exaustiva? b) A carga eficacial da sentença é sempre a que tem a ação? é sempre a que tem pretensão processual? c) Por que não se prefere a classificação quinária com as cargas 3, 2 e 1, dando a constante 6 Noutros termos: Por que não se desprezam os elementos ou parcelas 2 e 1, na constante 15, rebaixando-se o número das três primeiras cargas? Respondamos às três perguntas. Na vida de estudos diários, intensivos, de mais de meio século, nunca encontramos, nem conhecemos qualquer ação ou sentença que não caiba numa das cinco classes. Ciência é livre disponibilidade de espírito: o cientista há de ter grande alegria em descobrir o erro em que estava, ou em acrescentar algo novo à sua ciência. Está aí a resposta à primeira pergunta. Dizer-se que a ação é declarativa ou constitutiva, ou condenatória, ou mandamental, ou executiva, é função do direito processual, mas é preciso atender-se ao fim do direito processual. O direito processual trata de qualquer delas, ou de classes delas, para lhes apontar o remédio juridico processual, que pode ser usado pelos autores. As vezes, provê a possíveis cumulações subjetivas ou objetivas, simultâneas ou sucessivas, ou de cognição incompleta para adiantamento de executividade, ou de mandamentalidade, ou de constitutividade. O conceito de ação, a classificação das ações por sua eficácia, tudo isso consulta o direito material, porque o fim precípuo do processo é a realização do direito objetivo. Na própria classificação das ações e das sentenças, o direito processual tem de atender à eficácia das ações segundo o direito material. A margem de liberdade que se lhe deixa é pequena, mas existe. Quanto à segunda pergunta, que é a respeito dos pesos eficácias da ação de direito material e da sentença, é de respon-der-se, firmemente, não. Quando se classificam as ações pelos pesos da sentença que se pretende, supõe-se que a sentença seja de integral satisfação, ou que se tenha como sentença a soma das sentenças que se obtêm com o exercício da ação. Se a sentença, não é em virtude de cognição completa, a ação tem eficácia mais intensa do que a eficácia da sentença, ou devido a lhe faltar força declarativa, ou mesmo eficácia imediata ou mediata de declaração: a declaratividade, que tem, é suscetível de novo exame. Então, a eficácia declarativa é 2, ou 1. Tal o que se passa com a sentença denegatória na ação de mandado de segurança, se apenas foi denegado por não ser ‘certo e líquido” o direito, e com a sentença do juiz ao resolver dúvidas do oficial do registro de imóveis. Se a cognição é completa, a eficácia da sentença favorável ou a eficácia da soma das sentenças parciais favoráveis é igual à eficácia da ação. As sentenças de cognição incompleta são sentenças deficitárias — deficitárias no que havia de ser a sua força, a sua eficácia imediata e a sua eficácia mediata. A carga de eficácia declarativa,nelas, não é 3, nem 4, nem 5. Podem ser expressas essas eficácias sob forma interrogativa: 3?, 4?, 5? Nem há coisa julgada material, nem constitutividade, nem qualquer outra eficácia, que não possa ser afastada em posterior e completa cognição. Resta saber-se se há diferença entre os pesos da pretensão processual, da ‘ação” de direito processual, e os da sentença. Se a lex specialis não permitiu julgar acima ou abaixo do pedido, a resposta é negativa, porque a sentença seria ultra petita ou citra petita. Se a lex specialis o permite, tampouco há diferença, porque a pretensão processual

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tem de ser concebida como alternativa. Quanto à terceira pergunta, tem-se de advertir em que: a) os elementos 2 e 1 são inelimináveis, porque não há qualquer sentença em que não haja elementos declarativo, constitutivo, condenatório, mandamental e executivo: toda sentença favorável declara, pelo menos, que podia ser exercida a pretensão à tutela jurídica, ou o interesse do autor; toda sentença favorável constitui, pelo menos, a si mesma, isto é, não havia, antes, sentença, e passa a haver; toda sentença favorável condena o réu, pelo menos, a sofrer a força e a eficácia da sentença e as conseqüências processuais; todas as sentenças têm elemento mandamental, que se exprime na observância de registro, certidões e outros atos; toda sentença favorável, ainda se não retira bem da vida de um para outro patrimônio, põe na esfera jurídica do autor o julgado, que é plus em relação à situação da esfera juridica do réu, em que este se pôs em atitude, ou foi posto em atitude, que justificou o minus expresso na decisão. 4. Número exato das classes. Exames superficiais de cada ação levam por vezes os escritores e os juizes a vacilar entre duas classes de ações, ou a trocar pela classe em que o peso é apenas eficácia imediata a classe em que está a força eficacial, o peso 5. Através dos séculos permaneceram discussões sobre serem declarativas ou constitutivas algumas ações, e o que é mais grave é que não raro não se atinava com a classe em que estaria o peso 5 e se divergia a respeito de dois outros que apenas poderiam ser os da eficácia imediata ou da eficácia mediata. Quando não se tem preciso informe sobre a ação, é fácil confundir-se com a força, isto é, com o peso 5 o que é simples peso 4. As ação declaratórias com peso 4 de constitutividade aparecem, aqui e ali como ações constitutivas; e vice-versa. Compreende-se que se tomem por declarativas a ação de interdição, que é constitutiva-declarativa, a do obrigado à preferência, a de desapossamento de titulo ao portador, proposta para se obter novo título, a de nova cártula em caso de destruição, a de denúncia, a de renovação de contrato, a de venda, locação ou administração da coisa comum, a de eleição e a de nomeação de cabecel, a de dispensa de cabecel, a de parede-meia ou tapume-melo, a de nomeação de inventariante, as integrativas de testamento, a de apresentação de testamento, a de reconciliação dos cônjuges, a de nulidade de instituição, todas constitutivas declarativas. Todas as ações de decretação de nulidade são ações constitutivas negativas: declaratividade, 3; constitutividade, 5; condenatoriedade, 1; mandamentalidade, 2; executividade, 4. Também são constitutivas negativas as ações de anulação, de resolução e de rescisão. A carga não é a mesma para todas elas. As ações de revogação, como atos jurídicos revogatórios, são constitutivas negativas, com a diferença apenas entre a resolução, que solve o ato, o que implica, no plano do mundo jurídico, pôr-lhe fim a rescisão, que cinde do começo até ao momento da decisão o ato jurídico, e a revogação que é retirada da vox, por baixo do ato jurídico, portanto — no plano do mundo fático. Quem propõe ação de nulidade de negócio jurídico pede que se restitua o objeto que está com o réu. Esse pedido altera a estrutura eficacial da ação constitutiva típica, porque o elemento executivo cresce: a ação torna-se constitutiva (negativa) -executiva, porque se decreta nulidade e se vindica. Não se dá o mesmo com as ações de anulação, de resolução, de rescisão e de revogação: quem pediu decretação da anulação do contrato de compra e venda, sem pedir a restituição da coisa entregue, não pode obter mais do que a intimação da sentença ao réu e a pretensão à preceituação, noutra ação, porque o peso de eficácia mandamental da sentença que conseguiu é apenas, normalmente, de 3. Por isso há de o autor pedir a restituição, cumulando, expressamente, os pedidos, se pela natureza do pedido não está implícito o segundo. As ações de anulação, de resolução, de rescisão e de revogação são proponíveis antes ou depois da entrega da coisa. As cargas de eficácia são as mesmas. O pedido de restituição faz subir o elemento executivo. A execução faz-se contemporânea à constituição. Se o autor da ação constitutiva negativa não incluiu o pedido de restituição, está munido, ao transitar em julgado a sentença favorável, de decisão constitutiva. O réu, que tem consigo o bem, que fora objeto do negócio jurídico desconstituído, possui o bem, e tem de ser pedido tal objeto. § 27. Medida de eficácia imediata e de eficácia mediata 1. Ação declarativa e sentença declarativa. Se a sentença favorável preponderantemente declara, provavelmente contêm mandamento como eficácia imediata, ou mediata. Se o peso de eficácia mandamental é imediato, tem-se de indagar qual o quanto de eficácia que vem após: de regra, é a eficácia constitutiva. Se o peso de eficácia mandamental é o mediato, há de ser procurado o elemento que se lhe segue: pode ser constitutivo (ação de verificação de crédito;

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exceptio rei inter alios íudicatoe; habilitacão posterior), pode ser condenatório (ação declaratória-condenatória) em caso de pedirem os herdeiros ou credores a devolução dos bens da herança que foram entregues à Fazenda Pública), pode ser executivo (ação de habilitação incidente; ação de habilitação de herdeiros). Na primeira fase da ação de demarcação de terras, o elemento mandamental só aparece com peso 2. Na segunda fase, passa a ser 3, mas já a decisão ganha em executividade, tornando-se de força executiva a ação e a sentença e descendo a ser eficácia mediata a decisão declarativa, que foi antes força da ação. A raridade extrema mostra que se trata de anomalia provinda da cisão da ação em duas fases. 2. Ação constitutiva e sentença constitutiva. Se a sentença preponderantemente constitui, provavelmente, ou declara em peso imediato ou com peso imediato manda, de modo que, quando a eficácia de quatro unidades não é declarativa, é mandamental, sendo mediata a outra. Todavia escapam a essas proposições: a ação do titular do direito de preferência, em que a declaratividade e a executividade passam à frente da maridamentalidade; a ação de desapossamento do titulo de portador para obter novo titulo em que a executividade é eficácia imediata e a mandamentalidade apenas de duas unidades, e o mesmo se passa com a ação de abstenção de nova cártula em caso de destruição (observe-se que a executividade, com o peso 3, é a do titulo); a ação de denúncia, vazia ou não, em caso de locação ou outros contratos, em que o peso de declaratividade é de 4 unidades, mas a eficácia mediata é a executiva; a ação de venda, locação e administração da coisa comum, em que o mesmo se dá; a ação de destituição de foreiro em que a condenatoriedade é imediata e mediata a executividade; a ação de destituição de inventariante em que há 4 de condenatoriedade e 3 de declaratividade, mas, em caso de remoção prevista na lei, a ação toma-se mandamental; a ação de sonegados, em que as cargas imediata e mediata são de condenação e de executividade; a ação de apresentação de testamento em que há 3 de exclusividade, em vez de 3 de mandamento; a ação para cumprimento de testamento em que os pesos 4 e 3 são de mandamento e de executividade, tal como ocorre na ação para alienação e gravação de bens dotais; ação de separação judicial consensual, em que há executividade 4 e mandamento 3; a ação de separação judicial litigiosa, com a condenatoriedade 4 e a executividade 3; a ação de reconciliação, com a declaratividade 4 e a executividade 3; a ação de sub-rogação e a de negócios jurídicos sobre bens de incapazes, em que há mandamentalidade e executividade, respectivamente, 4 e 3; na ação de alimentos provisionais, declaratividade 3 e executividade 4; a ação de separação de corpos, declaratividade 4 e executividade 3; as ações de venda da coisa comum e de autorização de venda, em que se dá o mesmo; a ação de arrematação, cuja mandamentalidade e executividade têm, respectivamente, os índices 3 e 4; a ação de interpelação, em que há carga de mandamento, 4, e de condenatoriedade, 3, enquanto na de protesto cambiário, 4 de mandamentalidade e 3 de executividade; na ação para venda de mercadorias da carga do navio, há declaração e executividade, como eficácias imediata e mediata, como na de autorização de venda; na ação de apreensão de embarcações, há 4 de condenatoriedade e 3 de executividade; a ação constitutiva da prova da avaria, em que há declaratividade 4 e condenatoriedade 3 a ação de venda de salvados marítimos em que a declaratividade é 4 e a executividade, 3. 3. Ação condenatória e sentença condenatória. Se a sentença condena, também declara, com peso de eficácia imediata ou mediata. Se a eficácia declarativa é imediata, tem-se de investigar qual a eficácia que vem depois: quase sempre é a executiva. Se a eficácia declarativa é mediata, tem-se de investigar qual a eficácia imediata e, de regra, é a executiva. Tudo se resume, portanto, em se saber se a executividade é mediata, ou imediata; noutros termos, se a execução é nos próprios autos, por ser inclusa na sentença. Há sentença condenatória que não tem eficácia imediata, nem mediata, de executividade: é condenatória, com eficácia imediata de mandamentalidade e mediata de decla-ratividade — a ação de extinção do usufruto ou fideicomisso. As ações executivas de títulos extrajudiciais são ações cumuladas; começa-se, em adiantamento, pela execução e processa-se a ação de condenação, simultaneamente, mas a soma dos pesos nos dá sentença em ação executiva com eficácia imediata de condenação. A ação administrativa de contrabando tem condenatoriedade preponderante e eficácia imediata de executividade, exceto quanto à multa, porque a executividade é somente mediata (— tem de ser feita, depois, a execução). 4. Ação mandamental e sentença mandamental. Se a sentença, preponderantemente, manda, provavelmente a declaratividade é 4 e a constitutividade, 3. As vezes, porém, a eficácia mediata passa a ser de condenatoriedade (caução em ação cominatória; ação de manutenção de posse; extinção de usufruto ou fideicomisso, sem ser por culpa do usufrutuário ou do fideicomissário); ou de executividade (ação de manutenção provisória da posse, se duas ou mais pessoas se dizem possuidoras; ação de habilitação de herdeiros nos casos de já terem sido entregues à Fazenda

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Pública os bens arrecadados; ação de embargos de terceiro contra a arrecadação de bens da herança; ação de abertura de sucessão provisória; ação do ausente que aparece depois da sucessão definitiva, acudindo à provocatio ad agendum). Outras vezes a declaratividade diminui para 3, passando a ser 4 a condenatoriedade (ação de nunciação de obra nova; ação de regulação de avarias), ou a constitutividade (ação de interdito proibitório; a de reserva de bens para pagamento de dívidas; a de averbação no registro civil; a de instituição de bem de família e registro a despeito de reclamação; a de sequestro; a de depósito de filhos), ou a executividade (ação de entrega de objetos próprios; ação de posse em nome do nascituro). A mandamentalidade como eficácia mediata é só no futuro. Revela-se na ação de renovação de contrato de locação, na de nunciação de obra nova, na de eleição de cabecel, na de demarcação de terras, na de inventário e partilha, na de nomeação de inventariante, nas ações integrativas de testamento, na de petição de herança vacante, na de habilitação incidente de herdeiros, na de verificação de crédito, na de pedido de prêmio ao achador, na de devolução à Fazenda Pública, nas ações modificativas do estado civil, nas de nomeação de tutores e curadores e de escusa, nas de remoção em caso de causa acidental, na de interdição, na de levantamento da interdição, na de nulidade da instituição, nas de dissolução e liquidação, na ação de caução, na de exibição de livro, nas ações de vistoria, arbitramento e inquirições, na de obra de conservação em coisa litigiosa, na de homologação de penhor legal, na de venda judicial, nas habilitações incidentes. Há sempre mandado, que se pede depois. Quando o juiz sentencia não manda: a eficácia é da sentença, mas para que se exerça depois a pretensão mandamental. 5. Ação executiva e sentença executiva. Se a sentença preponderantemente executa, provavelmente se segue à força da sentença e eficácia mandamental. Temos, pois 5 de executividade e 4 de mandamento. Porém isso nem sempre ocorre. Se não se trata de execução de sentença, mas de execução de título que dê ensejo a cognição incompleta e, pois, permita as duas ações, a condenatória e a executiva de títulos extrajudiciais, vem em segundo lugar a eficácia condenatória, e o mandamento passa ao quarto lugar, como eficácia sentencial porque o mandado saiu e foi cumprido inicialmente. O mesmo ocorre com a ação de reivindicação, cujas eficácias — é interessante observá-lo — coincidem com as das ações executivas de títulos extrajudiciais e a da ação de quem perdeu ou a quem foi furtado titulo ao portador ou outro bem móvel (ação de vindicação da posse), a da ação de excussão pelo vendedor com reserva de domínio, a da ação de despejo por inadimplemento, a da ação de depósito, e a da ação de indenização no caso de nunciação de obra nova. Pode-se dizer que, nas ações executivas, a carga de eficácia imediata ou é de mandamento ou de condenação, salvo quanto à ação de divisão, à de demarcação, à de inventário e partilha, às de dissolução e liquidação de sociedade, à de exibição de livro ou coisa comum, ou de documento, à de obra de conservação em coisa litigiosa e à de distribuição. As ações de divisão, de demarcação, de inventário e partilha de dissolução de pleno direito e liquidação de sociedade, de obra de conservação em coisa litigiosa de distribuição são executivas-declarativas, isto é, têm força executiva e eficácia imediata declarativa. A ação de dissolução contenciosa e liquidação de sociedade e a de exibição de livro ou coisa comum ou de documento têm força executiva e eficácia imediata cons-titutiva. § 28. Particularidades da eficácia mediata 1. Elemento declarativo e elemento constitutivo. Um dos fatos que mais nos surpreendem é o da diferença entre a situação no tempo do elemento declarativo e do constitutivo, de um lado, e a situação no tempo dos outros elementos. “Por que” — logo nos ocorre perguntar — a carga mediata de elemento declarativo é inclusa, isto é, já a sentença, a respeito dela, se basta, e a carga mediata de condenação ou de mandamento ou de executividade é sempre exclusa, isto é, exige que se proponha outra ação?” “Por que a carga mediata de elemento constitutivo é sempre inclusa, e é exclusa a carga de eficácia mediata de condenatoriedade, de mandamentalidade ou de executividade?” Sabemos que assim é porque os fatos no-lo mostraram. Portanto, por indução. Queremos a explicação de como e por que assim é. Temo-la em poucas palavras: a) Quem declara põe a proposição, que faz a decisão, após, no tempo, ao que se declara, ainda quando se pense declarar relação jurídica futura, o que se declara é relação jurídica anterior à declaração, se bem que relação jurídica de que outra inevitavelmente resulta. A eficácia mediata, 3, e não só a força da sentença, e a eficácia imediata ficam lógica e cronologicamente antes da sentença ou dentro dela. b) Quando se constitui, há, no tempo, momento passado, a, em que algo não havia, e momento b, em que algo se cna, se constitui. O peso de eficácia mediata, 3 (e não só a força da sentença) e o peso de eficácia imediata são dentro da sentença,

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contemporânea da irradiação da sua força. Não se pode constituir e esperar que outro juiz, ou o mesmo juiz, noutra ação, constitua. Quer se trate de elemento declarativo 3, quer de elemento constitutivo 3, a eficácia é mediata no pretérito, isto é, em algum momento do passado até o trânsito em julgado da sentença inclusive. Não no futuro. 2. Elemento condenatório. Se o peso de eficácia condenatória é mediato, só é no futuro. Nenhuma ação de peso de eficácia mediata condenatória tem tal eficácia, quanto ao passado ou ao presente. Na caução em ação cominatória, há mandamento e há declaratividade, que passam à frente; o elemento condenatório é para que arque com as conseqüências do seu ato o demandado que caucionou: é no futuro que ao dano se faz corresponder dano, é condenatoriedade para o futuro. Nas chamadas ações de nulidade de patente de invenção e marcas de indústria e de comércio, não há, sequer, peso mediato de condenatoriedade, razão por que as leis prevêem que se lhe cumule a de indenização. Se não se cumulou, tem de ser proposta depois, trânsita em julgado a sentença na ação de nulidade de patente de invenção, sem qualquer apreciação do ilícito. Na ação de manutenção de posse, o mandado de manutenção supõe que se declarou a relação de posse e se ameaça o demandado com a condenação, em caso de inflação. A condenatoriedade é posterior ao mandado, tenha ou não havido contestação do réu. Na ação de imissão na posse, a executividade da força é evidente; o mandamento é imediato e haverá condenação de perdas e danos, no futuro, isto é, quando os houver e na execução de sentença se liquidarem. Escapa ao tipo a decisão de imissão nas desapropriações (Tratado de Direito Privado, XIV, § 1.625). Na ação declaratória de relação de obra nunciável, o elemento de condenação aparece, mas posto no futuro, e é assaz interessante observar-se que o ser declaratória de relação de obra nunciável faz mediata, 3, a eficácia de condenatoriedade, que é apenas de 2 na ação declaratória típica, perdendo um elemento de constitutividade. A ação de excussão da primeira hipoteca ou da hipoteca do prédio adquirido é ação em que se executa, saindo mandado, mas o credor ou o adquirente pode licitar, e se deposita o preço, porque — salvo se o primeiro credor já estava promovendo a execução da hipoteca, ação executiva condenatória — a condenatoriedade é efeito pós-sentencial, se a sub-rogação não se deu a favor do credor hipotecário. Na ação de demarcação de terras, pode acontecer que o peso de condenatoriedade seja mediato, se a indenização pecuniária pela invasão de área não foi pedida simultaneamente com o pedido de homologação ou antes de transitar em julgado a sentença homologatória. Na ação de investidura da inventariança, pois que há pena de sequestro, a condenatoriedade só é no futuro (se o notificado não comparece ou não apresenta contestação irrelevante ou não provada, ou em ação ordinária). Na ação “embutida” de pagamento de imposto e custas (por ocasião de inventário e partilha), há declaração, como força, mandamento, como eficácia imediata, e condenação, que se prevê: a ação foi suscitada antes de se haver base para a condenação, tanto que qualquer interessado pode pagar os impostos e custas. Não se chega a condenar por impostos e custas. Na ação de extinção de usufruto ou fideicomisso, sem ter havido culpa do usufrutuário ou do fideicomissário, que é mandamental-declarativa, o elemento condenatório aparece, mas apenas como base para que se vá contra o usufrutuário ou contra fiduciário que não entregue os bens ou tenha de prestar indenização. Na ação de verificação de crédito concernente a herança, ação incidental, há declaratividade, há mandamentalidade, mas ainda não há condenação na sentença: há a base para ela. Na ação de exibição de livro ou de coisa comum, ou de documento, há executividade e constitutividade, e a

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condenatoriedade é no futuro, inclusive se o documento se acha com terceiro que, notificado, não o exibe. Na ação incidental de falsidade, a condenatoriedade é mediata: a sentença declara o falso e desconstitui a prova (constitutividade negativa), mas deixa base para condenação. Na ação de interpelação, constitui-se por meio de mandado; ainda não se condena, mas prevê-se a condenatoriedade, com que se ameaça. Na ação de apreensão de titulo, se não houve contestação do crédito, a execução faz-se mediante o mandado, e condenação somente pode haver no futuro, porque a própria prisão (adiantamento de execução) depende de não ser restituido o título, ou pago o valor das despesas, ou depositado, de ser iniciada a ação penal dentro de prazo da lei e de ser proferido o julgamento dentro do prazo a partir da data da execução do mandado de prisão. Se houve contestação, ganha condenatoriedade, perde em mandamento: o demandado restituiu o titulo e discute o crédito. Na ação constitutiva da prova da avaria, o elemento constitutivo e o declaratório, que vêm à frente, dão base a futura ação, ação de condenação, ou à ação pendente, que é outra ação, a ser julgada depois. 3. Elemento mandamental. Na ação de renovação de contrato de locação e, portanto, nas de igual estrutura, na de nunciação de obra nova demolitória, nas de eleição e de nomeação de cabecel, e nas nomeações de inventariante, tutores e curadores, a mandamentalidade é mediata, no futuro. Na ação de demarcação de terras (2ª fase), na de inventário e partilha, na de petição de herança vacante (declarativa negativa), na de habilitação de herdeiros, na de verificação de créditos, na de dissolução e liquidação de sociedade, na de obra de conservação em coisa litigiosa, na de arrematação, dá-se o mesmo, ou porque a execução não tenha transferido a posse, ou porque, sendo declarativa a ação, se precise do mandado, aí, efeito mediato, em virtude de outro elemento que ficou entre a eficácia preponderante e a mandamentalidade (na ação de petição de herança vacante, a condenatoriedade; na de habilitação de herdeiro, a executividade; na de verificação de crédito, a constitutividade). Quando a mandamentalidade é 3, tem-se de pedir, como eficácia mediata da decisão, o cumprimento. Não o determina na própria sentença o juiz. O interessado pede, não reclamo. Reclama ele quando não se expediu ou não se cumpriu o mandato, sendo imediata a eficácia mandamental. 4. Elemento executivo. Quando a ação tem por fito 5 de executividade, é ação executiva. Quando tem 4 de executividade, a eficácia imediata revela-se em que ou já se executou o que se pretendia, ou se executa com a sentença. Tudo se passa em momento que fica entre a propositura da ação e o trânsito em julgado da sentença, conforme as espécies; portanto, no pretérito. Se a carga de eficácia executiva é 3, não; nada se executou; permitiu-se, noutra relação jurídica processual, executar-se. E o que se passa com as ações cominatórias, com as ações do obrigado à preferência e do titular do direito de preferência contra o terceiro para a indenização, com a ação de desapossamento do título ao portador para obtenção de novo título, ou de nova cártula em caso de destruição de titulo, do vendedor com reserva de domínio para cobrança do saldo, do pré-contraente-vendedor para exigir o preço, com a ação para aplicação da multa prescrita na legislação sobre loteamento, com a ação de denúncia vazia, com as ações de venda, locação e administração da coisa comum, com a ação de venda de quinhão da coisa comum, com a de destituição de foreiro, com a de dispensa de cabecel, com a ação sobre constituição ou conservação de tapume, com a de parede-meia ou tapume-meio, com a de sonegados, com a de habilitação de herdeiros, inclusive em se tratando de herança jacente, e tantas outras. Uma vez que a mediatidade é no futuro, e não no passado, a execução tem de ser pedida, firmando-se nova relação jurídica processual. O 3 de executividade simboliza a actio ludicati. Onde ele aparece há pretensão à execução de sentença. Não só a ação condenatória típica tem tal peso- Algumas vezes, em vez do peso 4 de declaratividade, 2 de constitutividade, 5 de condenatoriedade, 1 de mandamentalidade e 3 de executividade, que é o peso da ação típica de condenação, aparece a executividade 3 ou a) em ações constitutivas-declarativas, ou b) em ações mandamentais-declarativas, ou c) em ações declarativas-mandamentais, ou d) constitutivas-condenatórias, ou e) constitutivas-madamentais. Temos exemplo de a), na ação do obrigado à preferência e na do titular do direito de preferência e muitas outras. De b), na ação de posse, se há pluralidade de possuidores e cabe a manutenção provisória, na de habilitação de herdeiros, inclusive se se trata de herança jacente, na de embargos de terceiro contra a arrecadação, na

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de abertura de sucessão provisória, na ação do ausente que aparece depois da sucessão definitiva, na ação de habilitação, acudindo-se à provocatio ad agendum, na ação de embargos de terceiro conforme as espécies e na ação provocada de habilitação. De c), na ação de habilitação, acudindo-se à vocatio in bis. De d), na ação de destituição de foreiro, na de sonegados, na de separação judicial litigiosa, na de apreensão de embarcações. De e), na ação para cumprimento de testamento. Se a eficácia da sentença favorável — a eficácia ação, conforme se prevê — é mediatamente executiva (3), a ação executiva nasce da sentença. Não há a execução nos mesmos autos, porque não se trata de executividade com eficácia preponderante, nem de executividade imediata. Tem-se de propor a ação executiva. Esse é dos pontos mais relevantes da classificação das ações. A ação declaratória de abertura da sucessão definitiva é de eficácia executiva mediata (3). A ação do terceiro, se outrem foi convidado pelo juiz, por editais, para entrar na posse dos bens arrecadados, é ação de eficácia executiva mediata (3). A ação de anulação de negócio jurídico é ação de eficácia executiva mediata (3). Bem assim, a ação revocatória falencial, a ação do obrigado à preferência, a ação de desapossamento do título ao portador para obter novo titulo, a ação de nova cártula, em caso de destruição, a ação de denúncia vazia, a ação de denúncia cheia, em caso de locação, a ação de venda, locação ou administração da coisa comum, a ação de venda do quinhão da coisa comum, a ação de destituição de foreiro, a ação de dispensa de cabecel, e muitas outras, que a tabela que apresentamos no tomo II melhor indica. § 29. Elementos mínimos da eficácia sentencial. 1. Preliminares. Quanto aos elementos mínimos das decisões (1, 2), a despeito da sua pequena relevância, são eles inelimináveis. Em toda sentença, há, pelo menos, a declaratividade de ‘Vistos e examinados os presentes autos (...)“, “Acordam os juizes do tribunal (...)“ e semelhantes enunciados. Em toda sentença, há, pelo menos, a constitutividade que resulta de ter sido proferida Em toda sentença, há, pelo menos, a condenatoriedade, que vem à composição da condenação nas custas, e a que consiste em reprovar-se o exercício da pretensão à tutela jurídica, como autor ou como réu. Em toda sentença, há, pelo menos, a mandamentalidade do “Publique-se, registre-se (..4” ou semelhante mandamento. Em toda sentença, há, pelo menos, a executividade que deriva de se pôr na esfera jurídica de alguém (evitemos dizer no patrimônio de alguém, pois nem sempre é patrimonial o interesse) a prestação jurisdicional, à custa do que se deixa, com sinal contrário, na esfera jurídica de outrem. Mesmo que se trate de alguma ação declaratória, há, após o trânsito em julgado, para A, + p, e, para B, — p. Não ter razão é menos do que não ter razão e estar declarada a sem-razão. 2. Análise das ações. (a) Em relação às ações e às sentenças declarativas, todas as outras têm um plus no tocante à declaração. a) Toda sentença constitutiva declara, porque não se poderia conceber que a prestação jurisdicional pudesse consistir em modificar o mundo jurídico sem partir do conhecimento deste e da afirmação de existir a relação jurídica correspondente ao direito à constituição positiva, modificativa, ou extintiva. b) Toda sentença condenatória também declara, pois não seria de admitir-se que se sancionasse sem se afirmar a existência da relação jurídica e da infração. Na ação constitutiva, a sentença completa a finalidade do direito; na ação condenatória, posto que se possa ter a condenação como suficiente, pela repercussão social, de regra a sentença leva à execução, em outra ação, ou, por se ter composto com peso de eficácia imediata, no próprio processo. Mas, em si, a sentença exerce a prestação jurisdicional. Toda teoria que reduza a ação condenatória à ação declarativa é falsa. Como é falsa toda teoria que diga ser a ação condenatória pré-ação para a ação executiva.

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c) Toda sentença mandamental declara, porque não seria legitimo mandar sem afirmar que há razão para isso: o mandamento sem declaração prévia seria a arbitrariedade, ou, pelo menos, o imperativo sem premissas, a possibilidade do arbítrio, pela pré-eliminação de qualquer expressão de raciocinio. d) Toda ação executiva declara, porque seria grave que já não estivesse, noutra ação, assente a legitimidade da entrada na esfera jurídica de outrem, e que, na própria ação executiva, não se declarasse tal legitimidade. (b) Todas as sentenças declarativas constituem, porque, com a sentença, se têm a eficácia de coisa julgada material e algo novo. Todas as sentenças condenatórias constituem, porque há o título de condenação, que se firma na eficácia de coisa julgada e, em geral, algo novo, que se liga à dívida. Todas as sentenças mandamentais constituem, porque a decisão do próprio mandado foi elemento que fez o momento b ser diferente do momento a. Todas as sentenças executivas constituem, porque a execução supõe alteração, no tempo. (c) Em relação às ações e sentenças condenatórias, todas as ações e sentenças declarativas condenam, pelo menos, ao pagamento das custas, e o mesmo ocorre com as ações e sentenças constitutivas, mandamentais e executivas. (d) Em relação às sentenças mandamentais, todas as ações e sentenças declarativas, constitutivas, condenatórias e executivas mandam, porque há a decisão sobre publicação, registro, arquivamento e outras formalidades que resultam de mandamento do juiz. (e) Em relação às ações e sentenças executivas, todas as ações e sentenças declaratórias, constitutivas, condenatórias e mandamentais têm eficácia executiva, por mínima que seja. § 30. Concorrência de ações 1. Conceito e espécies de concorrência. Há concorrência de ações quando do mesmo fato jurídico se irradiam duas ou mais ações (concorrência de ações por fluência, ou causalística), ou quando ao mesmo resultado, ou a resultado aproximado, chegam duas ou mais ações (concorrência de ações por fim, ou finalística). Nos velhos doutrinadores, distinguiam-se: a concorrência subjetiva (entre os mesmos sujeitos de direito) e a objetiva (entre diferentes sujeitos de direito). A subjetiva pode ser cumulativa, ou sucessiva (por subsidiariedade, em sentido estrito). A concorrência não se confunde com a afinidade. A ação de exibição, exercida preparatoriamente (L. 1, D., ad exhibendum, 10, 4), é afim da ação principal, sem ser concorrente; idem, quanto à ação preparatória de prestação de contas. A concorrência causalística dá-se, por exemplo, entre a ação declaratória positiva, ou negativa, e qualquer outra ação em que seja questão prévia a existência ou a inexistência da relação jurídica, ou a não-falsidade ou a falsidade de documento. Uma pode ser exercida independentemente da outra. Só a coisa julgada sobre aquele ponto impede a rediscussão e novo julgamento (exceção de coisa julgada). A concorrência finalística ocorre seactiones eiusdem rei no-mine, una quis experiri debet”): a quem quer que se negue dever não se proíbe que use outra defesa, salvo se a lei lho impede; mas, sempre que concorram muitas ações, pela mesma coisa, só uma se deve exercer. J. Cujácio havia apontado a interpolação de “nisi lex impedit”. 2.Propositura de outra ação concorrente. Se, após o trânsito em julgado da sentença quanto a uma ação, ainda há interesse na propositura de outra, porque esta corresponde a algo mais, que não se satisfez, a segunda pode ser proposta (L. 18, § 3, D., de pecunia constituta, 13, 5; L. 42, D., pro socio, 17, 2; L. 13, D., de rei vindicatione, 6, 1; L. 36, § 2, D., de hereditatis petitione, 5, 3). No direito brasileiro e, em geral, no direito moderno, não se precisa ressalvar a outra ação, senão para maior clareza e vantagem de explicitude; nem se precisa caucionar de não propor a outra (para o direito romano, cp. L. 13, D., de rei vindicatione, 6, 1). 3.Ações subsidiárias. Quando, no direito romano, havia mais de uma ação, que correspondesse ao direito ou à pretensão, sendo indiferente o uso de uma, ou o uso de outra (ações concorrentes), e não o sendo (ações afins), tinha-se de saber se uma era subsidiária da outra. Por exemplo: a) Na L. 27, §§ 15-17, D., ad legem Aquiliam, 9, 2, previa-se a ação da lei Aquília, para as lesões que causam dano, e a ação de injúria, para toda ofensa. Note-se o que há de menos, aqui, no suporte fático. Dizia-se subsidiária da actia legis Aquiliae a actio iniuriarum, porém não é esse o

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sentido (GarI Jahr, Ist die actio de dolo subsidiár 9). b) Na L. 3, D., de praescriptis verbis et in factum actionibus, 19, 5, Juliano disse que é preciso lançar mão da ação praescriptis verbis quando se trata de contratos a que o direito civil não deu nome (contratos inominados). Já aqui o conceito de subsidiariedade é outro. c) Na L. 14, § 12, D., de religiosi et sumptibus funerum et ut funus ducere iiceat, 11, 7, Ulpiano atribuiu a Labeão que não se pode usar da ação funerária, pelos gastos dos funerais, quando se tem outra ação para se ressarcir. Tem-se, ai, então, terceiro sentido. A ação de dolo, para indenização, aparecia como cabível em espécies a que não mais se pode propor outra ação, ou não se quer. Criação pretória, no ano 66 antes de Gristo, é ação que nasce à parte, concorrentemente, porém sem subsidiariedade no sentido de c), nem no sentido de b). O Edito dava-a, se faltasse outra ação (Ulpiano, na L. 1, § 1, D., de dolo maio, 4, 3; L. 43, § 3, D., de furtis, 47, 2; L. 2, C., de dolo maio, 2, 20), porém não se disse que somente em tal hipótese. Na L. 3, § 1, D., stellionatus, 47, 20, Ulpiano aludiu à simetria entre a ação de dolo, em direito privado, e a ação de estelionato, em direito penal, que cabem, respectivamente, onde falta a figura do ilícito civil, ou a do crime. Gomo se vê, a noção de subsidiariedade não é mais de grande préstimo. Na L. 7, § 3, D., de dolo maio, 4, 3, Ulpiano dizia que Labeão admitia a ação de dolo se não houvesse outra, ou se sobre tal existência dúvida houvesse, e aí ressaltava a discordância de Ulpiano, ainda que somente quanto ao exemplo dado por Labeão (cf. K A. Schneider, Die aligemein subsidiéiren Klagen, 206; & Jahr, Ist die actio de dolo subsidiàr 16). No direito brasileiro, a subsidiariedade ou não-subsidiariedade da ação de dolo (indenizatória) é sem importância; e tem-se de entender que não é subsidiária, no sentido c). § 31. Ação de abstenção 1. Tutela jurídica e pretensão à abstenção. À medida que se foram revelando os direitos absolutos, sem ser o de propriedade, manifestou-se, mais viva, a necessidade de tutela jurídica à abstenção. Quanto aos direitos relativos, o problema resolvia-se, na prática, na falta de mais segura investigação científica, pela ação de condenação, ou pela ação de preceito cominatório, isto é, a ação de abstenção com o preceito inserto na citação. A primeira técnica foi a do preceito inserto na citação mesma. Nas Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 80, § 6, em que se tinha o processo de preceitação como de “autos nom começados, mais (mas) cominatórios”, dizia-se que “a parte, que se teme ou receia ser agravada, se pode socorrer dos Juizes da terra, improrando seu Officio, per que mandem prover como lhe nom seja feito tal aggravo”. A cominação podia ser extrajudicial (§ 7), devendo pedir-se ao juiz a aplicação do preceito: “(...) poderá fora do Juizo apelar de tal comminaçam, a saber, poendo-se sob poderio do Juiz, requerendo, e protestando da sua parte a aquelle, de que se teme ser aggravado, que tal aggravo lhe nom faça- E se depois do dito requerimento, e protestaçam assy feita, fôr algua novidade cometida, ou atentada, e o Juiz depois for requerido pera ello, mandará todo tomar, e restituir ao primeiro estado.” A cominação extrajudicial era, no fundo, o exercício da pretensão à abstenção, fora da via de propositura judicial da ação. Acrescentou o § 8: “E em tal apelaçam, ou protestaçam assy feita deve ser inserta, e declarada a causa verisimil e resoada, por que assy apelou, ou protestou, como dito he nas outras apelaçoens. Pode-se poer exemplo: Eu me temo de algum, que me queria ofender na pessoa, e me queria sem rezam ocupar, e tomar minhas cousas; se eu quero, posso requerer ao Juiz, que segure mim e minhas cousas delle, a qual segurança me deve dar; e se depois deila eu receber ofensa do que fuy seguro, o Juiz deve hy tomar, e restituir todo o que for cometido, e atentado depois da dita segurança dada, e mais proceder contra aquelie que a quebrantou, e menosprezou seu poderio.” No § 9: “E se nam quero, ou nam posso direitamente hir ao Juiz, posso fora do Juizo apelar, ou protestar a aqueile, de que me areceo ser ofendido na pessoa, ou beens, sometendo-me, e poendo-me sôo o poderio do Juiz, e requerendo da sua parte, que me nam faça tal ofensa, declarando alguuma justa e verisimil rezam, em que me funde fazer a dita apelaçam, ou protestaçam; e se depois que ela assy fôr feita, eu delie receber alguuma ofença em meus beens, o Juiz da terra requerido per mim, e informado somente da dita appelaçom, ou protestaçom, mandará loguo todo tomar ao primeiro estado, em que ante estava; e se me fôr feita ofença na pessoa, procederá contra elIe asperamente, assy como aquelle, que cometeo cousa grave, e desprezou o requerimento, que lhe foi feito por parte da Justiça.” Nas Ordenações Manuelitas, Livro III, Titulo 62, §§ 5-7, reproduziram-se as regras jurídicas afonsinas, que também passaram às Ordenações Filipinas, Livro III, Titulo 78, §§ 5 e 6, mas resumidas, como passamos a ver.

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Se o interessado preferia a cominação judicial, tinha por ele o § 5, 1ª e 3ª partes: “E quanto aos autos extrajudiciais, que não são começados, mas cominatórios, dizemos que a parte, que se teme, ou receia ser agravada per a outra parte, pode recorrer aos Juizes da terra, implorando seu Ofício, que o provejam, como lhe não seja feito agravo”: “E se depois do dito requerimento e protestação assi feita, fôr alguma novidade cometida, ou tentada, mandará o Juiz (se for requerido) tornar e restituir tudo ao primeiro estado. E em tal protestação será inserta e declarada a causa verosimil e razoada, por que protestou: pode-se por exemplo: se algum se temer de outro, que o queira ofender na pessoa, ou lhe queira sem razão ocupar e tomar suas cousas, poderá requerer ao Juiz, que o segure a ele e as suas cousas do outro, que o quiser ofender, e se depois dela ele receber ofensa daquele, de que foi seguro, restitui-lo-á o Juiz, e tomará tudo o que foi cometido e atentado depois da segurança dada, e mais procederá contra o que a quebrantou, e menosprezou seu mandado, como achar per Direito.” No § 5, 2ª parte, e no § 6, cogitou-se da cominação extrajudicial. A ação de abstenção, sem ser com o mandatum de non offendendo, ou de non faciendo, existia e existe, a fortiori (João Álvarez da Costa, em nota do Repertório, IV, 86: “(...) ainda que regularmente as ações se devem seguir por libelo de artigos, contudo o ofício do Juiz se implora ad mandatum non faciendi”; Manuel de Almeida e Sousa, Ações Sumários, 1, 251, verbis “o preceito cominatório, evitando-se a ação negatória ordinária”). A pretensão e a ação de abstenção não são pretensão e ação ex delicto. Nem a culpa lhe é pressuposto necessário. Se a culpa existe, é plus. Só se exige o ser contrário a direito o ato que se teme, ou cuja continuação se tem por fito evitar. O mandado de non offendendo pode ser a) inserto na citação, existindo, pois cognição incompleta pelo juiz, que há de examinar as alegações do preceitado (mandatum cum clausa la); ou b) ser posterior à sentença, como efeito sentencial mediato, tal como se só se obteve sentença declaratória (aliter, se imediato ou se só se obteve sentença de condenação a prestação futura); ou c) ser inserto na sentença, por ter sido pedido e tê-lo dado o juiz, após plena cognitio. O mandado da espécie a) é cum clausula; o efeito da espécie b) já leva em si a coisa julgada da sentença declaratória, porém não é sine clausula quanto à condenação; o efeito da espécie c), este é sine clausula, já se inseriu em sentença condenatória, ainda se futura a prestação, porque, então, se é certo que não houve a apreciação da violação, condenação já se proferiu, o que faz o plus em relação à declaratória. E de advertir-se, todavia, em que, ainda quando sine clausula o preceito, o preceitado pode alegar contra a inexistência ou a nulidade da sentença (não a rescindibilidade!) ou a falsidade da afirmação da infração. Aí, o preceito é extra fine suos et in casibus facti dub ii; por isso, é oponível a ob- ou sub-repção dos pressupostos. 2. Extensão do cabimento da ação de abstenção. A ação de abstenção pode ser usada para os direitos absolutos e para os direitos relativos, bem como para os direitos a não ser molestado, ainda que não subjetivados. A ação de abstenção pode ser de presente, ou de futuro. Nada obsta a que, havendo razões para temor de não-cumprimento da obrigação ainda por nascer, com base no crédito se exerça a ação de abstenção com o ação de prestação futuro, isto é, para a omissão quando a obrigação surgir (sem razão, Flad, von der Unterlassungsldage, iberings Jabrbúcher, 70, 351). (a) Os direitos de personalidade e os demais direitos absolutos podem ser ofendidos sem culpa; e a ofensa entra no mundo jurídico. A ação de abstenção, que se dirige contra toda usurpação, ou turbação, inclusive da posse, mas principalmente dos direitos de personalidade, nasceu no direito das coisas, onde apareceram os primeiros ou mais nitidamente delineados dos direitos absolutos, e fez-se, mais tarde, por analogia iuris, a ação geral de abstenção ou específica de condenação. (Não se trata de interpretação extensiva.) A ação de abstenção pertence, em primeiro plano, à tutela dos direitos absolutos — não de todos os direitos subjetivos. Os direitos de personalidade são direitos sub-jetivos absolutos. Já nas Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 80, § 8, verbis “que me queira ofender na pessoa”, e § 9, verbis ser ofendido na pessoa” (Ordenações Manuelitas, Livro III, Titulo 62, §§ 6 e 7; Filipinas, Livro III, Titulo 78, § 5 e 6), se admitia, em geral, o preceito cominatório (ação de cominação com preceito inserto na citação) como tutela da pessoa. (b) A ação de abstenção, quando o direito é relativo, tem-se de fundar na responsabilidade negocial ou ex delicto, raramente em regra de lei e em responsabilidade sem culpa (em todo o caso, pode usar-se, se alguém teme que outro continue a praticar atos de perigo pratica deterioração ou destruição, de coisa alheia, para remover iminente, se o agente e a pessoa a favor de quem os não podem ressarcir).

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(c) Se a lei protege, mediante proibição, algum interesse, sem que da sua incidência resulte direito subjetivo, ou se impõe pena pela prática de algum ato culposo, de modo a proteger interesse particular, sem que caiba pensar-se em ação de indenização ex delicto, por ainda não se ter produzido dano — discute-se se também aí cabe ação de abstenção. Não há, ex hypothesi, direito absoluto, nem, sequer, direito subjetivo. A resposta af irmativa equipara tais situações, ou direitos não-subjetivados, a direitos subjetivos, sem encontrar contradição em não serem direitos subjetivos e defenderem-se por ação. A resposta negativa circunscreve a ação de abstenção aos direitos subjetivos, absolutos ou não, temendo a contradição de não-subjetivação com subjetividade: o que tem protegido o seu interesse, sem que dessa proteção resulte direito subjetivo, estaria, com a sua ação, subjetivando, motu proprio, o seu direito ou situação jurídica. A resposta afirmativa pode ser no sentido a) de ação de abstenção pela ofensa, ou b) no de ação de abstenção ainda por simples ameaça; ali, seria preciso ter havido a infração da regra jurídica; aqui, bastaria o temor; mais: c) no caso de ofensa objetiva; ou d) no caso de ofensa subjetiva. Donde a) c), a) d) e b), chamadas ação quase-negatória de abstenção, ação delitual de abstenção e ação cominatória de abstenção. Naturalmente, pode dar-se que haja, ou ainda haja, ação penal, e esta seja suficiente, tanto ou mais expedita; e diz-se, em argumento contrário, que seria superflua a ação civil. Sem razão; porque a tutela civil independe da penal; tanto mais quanto, nas espécies, ação a) c) e a ação b) vão além da ação penal, que seria apenas correspondente à ação a) d). A existência da ação b) implica que também existam as duas outras; e existe a ação b), ainda com preceito cominatório inicial. Esse direito de exigir não é só o direito subjetivo, que se faça respeitar pela ação delitual; basta que a pessoa possa exigir providências do Estado, e. g., policiais. Para a ação de abstenção, é suficiente a contrariedade a direito (não é ação por delito, que pressuponha culpa). O problema da tutela dos direitos não subjetivados pôs-se cedo no direito português. A L. 2, § 5, D., de aqua et aquae pluviae arcendae, 39, 3, tratou da solução de Paulo, após as negativas de Varro e de Labeáo. Dizia Varro que, arrebentando o dique natural, não havia ação contra o vizinho para o reparar; Labeão admitia-a se o dique foi feito à mão, embora sem memória de quem o fez; Paulo entendeu que competiam a ação útil ou o interdito, ainda que faltasse, como faltava, direito escrito (“haec aequitas suggerit, etsi iure deficiamur”). Os juristas portugueses viram nesse ofício innoxiae utilitatis a entrada para ações civis de proteção a direitos não subjetivados (às vezes, analogia juris com a Lei de 9 de julho de 1773 e com o Alvará de 24 de novembro de 1804). A tutela jurídica (melhor, a pretensão à tutela jurídica) pode existir, sem que existam o direito subjetivo ou a pretensão de direito privado. Bastaria pensar-se no arresto ou embargo, se o direito é futuro, ou na ação de condenação por prestação futura. A ação de abstenção nos casos de direito não subjetivado seria o melhor exemplo, se não fosse o tema mesmo da discussão. Um dos elementos para o estudo do problema são as actiones populares (e até exceptiones populares ou quase popu-lares, cf. Ulpiano, Fragmento Vaticana, 266) do direito romano. Em todo o caso, é de grande interesse científico e prático distinguirem-se os casos em que a ação corresponde à titulatidade do direito (todos os cidadãos) e os em que a ela não corresponde. O interesse comum pode justificar a ação popular, ou a exceção popular, sem ir até à justificação de se fazer comum o direito ou ser de tal intensidade que o direito mesmo seja comum (sujeitos de direito ativos totais). Quando o Pretor deu aos cidadãos os interditos concernentes às coisas públicas, res publicae, estava diante do mesmo problema que desafiou os juristas do século XX, a propósito das ações de abstenção e dos preceitos cominatórios cum clausula. A principio, exigiu o interesse do que queda acionar; depois, abstraiu desse interesse. Acabou por adotar in factum actiones, em vez de interditos. Nos jurisconsultos clássicos, encontramos interditos e ações populares, pretorianas, atribuidos a qualquer cidadão; se dois ou mais de dois exerciam as ações, ou prevalecia a do que tinha interesse particular, como plus (L. 2 e 3, § 1, D., de popularibus actioruibus, 47, 23, verbis “idoneiorem”, e “cuius interest”; L. 3, § 12, D., de homine libero exhibendo, 43, 29, verbis “idonejor est”; L. 3, pr. e § 9, ali “justissima causa” e aqui a todos), ou a do que mais preparado estava para levar a cabo e a bom termo a demanda (“iustissima causa”). A distinção entre os casos de ações populares, em que o sujeito do direito é o povo, e aqueles de ações, em que o sujeito do direito não é o povo, é assaz importante para a resposta ao problema moderno da ação de abstenção, não havendo direito subjetivado. A ação intentável por alguém do povo, cuivis ex populo, somente pode ser ação correspondente a direito de cada um, pois que ela o é de todos, e não em lugar de outrem. (d) A actio popularis da L. 5, § 6, O., de bis, qui effuderint vel diecerint, 9, 3, cabia a quem quer que fosse, se o perigo, oriundo da coisa colocada em edifício de que pudesse cair, fosse comum (caias casas nocere cai possit). E a actio de positis et suspensis. Não há

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dúvida em que se pode propor a ação de abstenção (= continuação de causar o risco), inclusive a de preceito cominatório. A actio popularis da L. 3, pr. D., de sepulchro violoto, 47, 12, para que qualquer cidadão pedisse a aplicação da multa por violação de sepulcro, mostra que a actio compete a outrem que o titular do direito subjetivo: “si nemo erit, ad quem pertineal, sive agere nolel: quicumque agere volet, ei centum aureorurn actionem dabo.” (Se não houver alguém a quem pertença, ou não queira exercer a ação, dou-a a quem quer que a queira exercer por cem áureos.) As ações procuratórias não têm a mesma natureza: pleiteia o cidadão, em nome do Estado. (A discussão sobre o nome actio popularis também servir às actiones procuratórias é só de interesse histórico do direito romano; pela afirmativa esteve Th. Mommsen, Die Popularklagen, Zeitschrift der Savigny-Stiftung, 24, 1 5.; contra, C. O. Bruns, Níeinere Schriften, 1, 313 s. Se distinguimos ações populares stricto sensu e ações populares, compreendendo aquelas e as procuratórias, elidimos, na terminologia hodiema, a discussão.) Assim, se o interesse de alguém é ferido, cabe, sem dúvida, a ação por fato ilícito absoluto; se se trata de bem de uso comum, qualquer é legitimado à ação; se se trata de bem de uso especial comuneiro, ou do patrimônio da unidade política, só a lex specialis pode permitir a ação procuratória. A ação popular que se menciona em texto constitucional é, de regra, ação popular lato sensu, procuratória. (e) A ação cominatória em caso de crédito de omissão, oriundo de negócio jurídico, tem sido confundida com a ação de abstenção de presente. Aquele que exerce a ação de abstenção tem pretensão à omissão ou usa a ação de abstenção de presente para que se respeite o seu direito não subjetivado; na ação cominatória, em caso de crédito de omissão, ainda não está nascida a pretensão (não se venceu a dúvida). Há crédito; não há pretensão. As leis permitem tal ação com preceito inicial: tanto se pode cominar para a omissão desde já, com o a partir de certo dia, ou fato. Se a ação cominatória com preceito na citação éde admitir-se, a fortiori, a ação de abstenção com preceituação na sentença. Não é de exigir-se reclamação prévia, cuja infração justifique a ação de abstenção fundada em negócio juridico (sem razão, Paul Eltzbacher, Die Unterlassungsklage, 158 s.); ainda em se tratando de locação, não se confunde com a ação de resilição do contrato. É pressuposto necessário da ação de abstenção que a omissão seja devida, ou de obrigação — como dever, ou como obrigação independente; razão por que o cuidado (obrigação de omitir atos no cumprimento da obrigação positiva) não pode ser objeto de ação de abstenção: falta-lhe a independência para a acionabilidade. A ação de preceito cominatório inserto na citação tivemo-la desde cedo (Ordenações Afonsinas, Livro III, Titulo 80, § 10; Manuelitas, Livro III, Titulo 62, § 8; Filipinas, Livro III, Título 78, § 7). A ação de abstenção com preceito na sentença não conseguira tratamento sistemático, mas existia e usava-se. 3. Prescrição da ação de abstenção. A prescrição da ação de abstenção ou é por analogia com as ações delituais, ou é a prescrição das ações pessoais negociais? Forremo-nos a dar resposta a priori, como a doutrina alemã. Se a ação, que se quer propor, é a ação por ofensa subjetiva (ação delitual de abstensão), prescreve como a ação civil do delito; se a ação que se quer propor é a ação por ofensa objetiva, a prescrição depende da analogia com a ação da condenação, que toque ao direito; se a ação, que se quer propor, é a de cominação por ameaça (e não para se evitar repetição), dura enquanto há o direito e a ameaça. Preventividade da ação. A ação de abstenção é preventiva; mas, ação de cominação, com preceito inicial, ou na sentença, é condenatória à prestação presente, ou futura, e às vezes apresenta-se a circunstância de existir estado de fato positivo que precisa ser removido, para se evitar a contradição entre o preceito e a realidade já estabelecida. É inegável, então, o elemento de executividade, tal como ocorre com a ação cominatória, e. g., em caso de proprietário ou possuidor, imediato ou mediato, para impedir o mau uso do prédio vizinho, ou para demolição, reparação, ou caução pelo dano iminente, ou em caso de entidade estatal para medidas de interesse próprio ou do público. Nem por isso toma o caráter de condenação pelo ato ilícito culposo. É a ação de abstenção, cumulada com a de condenação ao desfazimento, condenatória-executiva, ou vice-versa; de qualquer modo, em globo, ação de condenação especifica dos direitos absolutos, pessoais ou reais, e, excepcionalmente, dos direitos relativos, em que, para medidas a que acima nos referimos, ou na proteção possessória, o lesado pode pedir o desfazimento, de que a execução demolitória é a espécie mais relevante. O industrial ou comerciante, que pede a cessação (não-repetição) do boicote, pode pedir a

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retirada dos meios já empregados. A pessoa, que pede a abstenção da publicação falsa ou injuriosa, pode pedir a inserção da resposta ou da retificação; ou a apreensão referida, ou a divulgação contrária correspondente, com ou sem apreensão. § 32. Sentenças e eficácia 1. Conceito de sentença. A sentença é a prestação jurisdicional, objeto da relação jurídica processual, cuja estrutura já conhecemos. Põe fim, normalmente, à relação. É para a sentença que se segue a existentia fluens da relação jurídica processual, pela direção de toda relação jurídica para a realização do seu conteúdo. O juiz entrega a prestação, e o seu oficio acaba: functus officium. Tanto assim é que, para a execução, precisa ser provocado de novo e deferir o pedido de citação do vencido. A sentença, se existe, é justa ou injusta, válida ou nula. 1) É injusta a sentença: a) quando aplica ao caso concreto lei que não incidiu ou deixa de aplicar a que incidiu, ou b) quando viu no caso concreto o que ele não é e aplica a lei que incidiria sobre o caso que ela viu, e não a que incidiria sobre o caso concreto, ou c) é superlativamente injusta, aplicando lei que não incidiria sobre o caso que ela viu, nem sobre o caso concreto, ou d) aplica ao que “viu” o que não incidiria sobre ele. Tal definição consegue esvaziar do voluntarismo em que incidem tantos processualistas, Giuseppe Chiovenda à frente. (‘É ingiusta quando ritiene esistente una volonlà di Iegge concreta che non esiste, o ritiene inesistente una volontá che esiste. “) II) É nulo a sentença: se falta algum requisito de validade (não ‘havendo” relação jurídica processual não “há” sentença); se ocorreu, no curso do processo, alguma nulidade que se não sanou (quebrada a cadeia dos atos processuais, são nulos os atos dependentes; e a sentença é um deles), em si mesma. A nulidade da sentença trânsita em julgado pode apurar-se em querela de nulidade. Tal o sistema do direito processual brasileiro. Restam as inexistentes, que são: a) a sentença proveniente de autoridade pública não judiciária civil; 14 a sentença que não foi publicada, nem consta, do jornal oficial, ou do jornal em que se costuma publicar o expediente do foro, ter sido publicada, nem foi proferida em audiência; c) a sentença publicada sem ser prnferida em demanda civil a cuja instruçáo e debate imediatamente se ligue (e. g., proferida ao mesmo tempo que pronúncia penal, ou a que se ditou em processo diferente daquele a que se destinavam as notas; é ineficaz no caso de impossibilidade física, lógica, jurídica e moral, no conteúdo da sentença, como a que manda cortar a terra pelo meio, ou atribuir o domínio a um cavalo, ou dccreta a escravidão, ou permite o incesto ou o castigo a fogo, ou a venda de documentos secretos do Estado a pais estrangeiro); d) a sentença contra pessoa que goze de extenitorialidade etc. O Tribunal de Justiça de São Paulo julgou, a 21 de novembro de 1908 (Sâo Paulo J., 18, 346), que é nula a sentença proferida em processo anulado. Sem razão. Se processo foi desconstituido ab initio, se desfez, não existe mais não há relação juridica processual; a sentença é inexistente, e não nula. Não precisa ser rescindida, nem dela cabe recurso; se dela recorreu, basta ao juiz ou ao tribunal declarar que dele não conhece porque falta a relação jurídica processual mesma. As espécies a), b), c) e d) são de sentenças inexistentes. No caso só de ineficácia, a sentença existe, mas é inexecutável, ou não tem eficácia constitutiva ou declaratória, bastando, porém, que haja qualquer parte válida para que somente possa ser atingida pela ação rescisória. Na espécie d), dá-se a falta completa de jurisdição e a sentença cai no vácuo: não existe. Se as partes ou uma das partes não existe, a teratologia consiste em que se atribuiu algum direito ou se condenou a quem não existia: num e noutro caso, a sentença não existe, a despeito do principio de que o Estado poderia julgar sem provocação (o Ne index procedat ex officio é principio fundamental, porém não a priori) e sem audiência de réu, podendo haver relação juridica processual só entre autor e juiz, órgão do Estado. Se a parte aparente existe e foi trocado o nome, existe a sentença, de modo que pode ser rescindida. A sentença duplificante, que é a segunda sentença no mesmo processo, é inexistente, e entra na espécie c), salvo se a outra era nula. O plus que aparece na sentença, considerada como atividade mental do juiz, alcançando conclusões, é o que deriva da sua imponibilidade. Essa imponibilidade é estatal; podia não ser, como acontecia aos terceiros, ocasionais, a que povos primitivos e mesmo antigos confiavam decidir, e como acontece ainda hoje, no plano moral, sempre que deixamos a outrem resolver controvérsias em que somos interessados.

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2. Eficácia das decisões. Falando-se de eficácia de resolução, tem-se de cogitar de força e efeitos, porque a eficácia é a propriedade de ter força ou efeitos. É eficácia: a) certa imodificabilidade pelo prolator que varia da modificabilidade, quando o juiz volte a ter de examinar o assunto, até à sentença, que de regra é imodificável (sentença apelável) e só excepcionalmente alterável por provocaçao Guizo de retratação; embargos); b) a força formal de coisa julgada; c) a força ou o efeito declaratório, ou a força ou o efeito material de coisa julgada; d) a força ou o efeito constitutivo, condenatório, mandamental, ou executivo, se o tem; e) os efeitos próximos ou laterais; f) os efeitos-reflexos, que são os da sentença como ato jurídico ou fato jurídico. Em sentido estrito, eficácia seria o ter os efeitos a) e b). Teremos ensejo de tratar da força e das eficácias imediata, mediata e mínima das sentenças. Força sentencial é a eficácia preponderante (5). Eficácia imediata é a que resulta da sentença (4), sem ser necessário qualquer novo pedido do vencedor. Eficácia mediata ou é a que concerne a questão prévia ou prejudicial ou a que enseja novo pedido (3). A sentença em que se ressalva é sentença com reserva, porém não condicional resolutiva. Tem-se de evitar a assimilação. A sentença condicionada fez-se a si mesma a reserva da resolução. Porém, nem toda sentença de reserva é sentença sob condição resolutiva. Seja como for, umas e outras são sentenças, sujeitas às mesmas impugnativas e com as suas respectivas eficácias (força e efeitos). A sentença de execução provisória é sentença com reserva, de condição resolutiva — o que a distingue é que a causa da resolução é a alteração ou cancelamento da sentença de que o novo processo é efeito. Uma das mais velhas e usuais reservas é a da alegação de compensação. Constituição de Justiniano (L. 14, C., de compensationibus, 4, 31) permitiu aos juizes separar as duas matérias, reservando a outro juízo (“alii iudicio reservent”) se fosse preciso maior indagação (“maiorem et ampliorem exposcere indaginem”). Se a compensação se operou por força da lei, ainda assim pode o juiz reservá-la — mais um ponto em que se patenteia a diferença entre incidência e aplicação da lei. A sentença cinde, porque o direito processual o autoriza; não seria assim, se a aplicação da lei tivesse de ser adstrita, ainda aí, à incidência. Se o autor faz dois ou mais pedidos, sendo um só procedimento, há cumulação objetiva de “ações”. Ações, aí, não são só as ações de direito material mas as ‘ações”, pretensões processuais, pretensões ao remédio juridico processual, que pode ser geral ou especifico (“especial”). Por isso mesmo se pode desistir da “ação”, dentre as “ações” cumuladas, sem se renunciar a ação de direito material; mas, renunciando-se a ação, põe-se o juiz em situação de julgar improcedente a ação proposta. 3. Eficácia sentencial e processo. A eficácia da sentença concerne: a) ao processo, que ainda continua, após ela, pois as próprias intimações e os recursos são processo; b) à demanda, que se ultima com ela, ou com a sentença que a reformar; c) àrelação jurídica ou a inexistência de relação jurídica, ou aos fatos, que ela examinou, por terem sido objeto do pleito; d) ao conteúdo da sentença como prestação estatal (declaração, constituição, condenação, mandamento, execução); e) a efeitos anexos ou a efeitos reflexos da decisão; f) à sentença mesma como ato jurídico; g) à sentença mesma como simples fato. Eficácia é (a) a energia automática da resolução judicial. A sentença ou o despacho toma-se suscetível de ser obrigativo, eficaz, no momento em que faz entrar na espécie abstrata a espécie tática; mas ainda é a lei que vai marcar o momento dessa eficácia. As decisões sobre mandado têm eficácia, posto que não haja litígio. Outras (b) precisam de execução para que tenham eficácia completa. A regra é que a eficácia depende da coisa julgada formal, mas a lei conhece casos de exceção (e. q., as medidas preventivas). A eficácia compreende, portanto, a força (e. g., a eficácia consistente na força de coisa julgada material da sentença declarativa) e o efeito (e. g., eficácia consistente no efeito de execução da sentença condenatória, efeito que as sentenças declarativas de onilinário não têm). 4. Classificação das sentenças pela eficácia. As sentenças, como as ações, podem ser declarativas, constitutivas, condenatárias, mandamentais e executivas. A força, que tem, é que as classifica. Além dessa força, que as define

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entre as outras, podem ter efeitos outros. A ação da condenação tem sentença com eficácia de coisa julgada material mais o efeito executivo, que a ação declarativa não tem. Em cedas ações constitutivas, como a de nulidade de casamento, há efeito de coisa julgada material e até de execução, efeito correspondente ao elemento condenatório. Vai longe o tempo em que Adolf Wach (1885) distinguiu três categorias de sentenças (declarativas, constitutivas, condenatórias). O elemento executivo e o mandamental são irredutíveis. Por outro lado, a falta da distinção entre força e efeito (duas classes de eficácia) levou a apriorismos inaceitáveis. Alguns processualistas fazem esforços desesperados por superar as dificuldades, tentando ‘dilatar” o conceito de coisa julgada material. A ação só se pode classificar, quanto à qualidade, pela preponderância do elemento declarativo, constitutivo, condenatório, mandamental ou executivo. Nenhuma, que se conheça, é sempre pura, isto é, com um só elemento. O mesmo acontece às sentenças. Cedas sentenças declarativas apresentam elemento constitutivo; cedas sentenças constitutivas são também declarativas, ou condenatórias. Ao elemento declarativo, que prepondera, por definição, nas sentenças declarativas, e é de grande relevância, porém não preponderante, nas ações condenatórias e respectivas sentenças, corresponde a eficácia de coisa julgada material. Viu-o Konrad Hellwig; a ciência, depois, retocou-lhe o conceito. Nas ações mandamentais, o elemento declarativo assume, de regra, a mesma relevância, só inferior à força do mandamento, que as distingue, e é por isso que, salvo exceção, a sentença que se profere pode ter efeito de coisa julgada material. Se essa eficácia supera a do elemento mandamental, então a ação e a sentença são de condenação ou, excepcionalmente, declarativas. Não há outro meio científico, de classificar as sentenças, que por sua força, pensando-se-lhes, por bem dizer, a eficácia (força e efeitos). A classificação em cinco categorias atende à preponderância dos elementos (à força), porque, se tivéssemos de atender a todos os efeitos, desceríamos à casuística. A sentença de condenação condena mais do que qualquer outra, é declaratória mais condenatôria; porque é declarativa, tem ela o efeito de coisa julgada; porque é ondenatória, tem o efeito executivo que a declarativa não tem. Para fazer corresponder a força condenatória às ações condenatórias, Konrad Hellwig tinha de estender para além dos limites próprios o conceito de ação declarativa: a eficácia declarativa (Feststellungswirkunq) abrangeria mais do que a ação declarativa e mais do que as ações declarativas e as de conde-naçao. Há elemento declarativo em toda ação e em toda sentença, porém nem sempre é relevante, nem, a fortiori, preponderante. Daí existirem sentenças que não têm efeito de coisa julgada material e sentenças que o têm sem que esse efeito seja a sua força especifica. A sentença declarativa, de regra, não opera erga omnes: falta-lhe elemento constitutivo, ou condenatório, ou mandamental, erga omnes, ou elemento executivo. As sentenças em que o juiz aplica regra de arbítrio (“conforme as circunstâncias”, “se for justo”, “por equidade” etc.) não são classe à parte de sentença. A distinção concerne à regra legal, e não à sentença. Sem razão, W. Kisch (Beitráqe, 110 s.) e F. Carnelutti; certo, E. T. Liebman (Eficácia e Autoridade da Sentença, 25, nota b). Por isso mesmo, o assunto é estranho à coisa julgada material. Aliás, a regra juridica sobre poder o juiz novamente decidir questões relativas à mesma lide se antes a decisão fora por equidade e as partes pedem revisão por se haver modificado o estado de fato, nada tem com o problema da coisa julgada material. O elemento declarativo da sentença não constitui, nem condena, nem manda, nem executa. Se há efeito constitutivo, condenatório, mandamental, ou executivo, é que há elemento constitutivo, condenatório, mandamental, ou executivo, que o investigador ou o prático deve procurar, e aí está excelente campo de pesquisa científica útil. Outro ponto a explorar-se é o de se saber qual o elemento que prepondera: então, se não é o declarativo, há outra força, que caracteriza a sentença e lhe dá o lugar cedo na classificação. Se a sentença é constitutiva e se discute se faz ou não coisa julgada material, tem-se de procurar o elemento declarativo e pesar-lhe a relevância. (A discussão se a sentença constitutiva tem eficácia de coisa julgada material, ou se não há tem, ignorou a causação unívoca entre o elemento e eficácia. Elemento declarativo só produz eficácia declarativa, a que se liga a coisa julgada material. Elemento condenatório é o que suscita eficácia condenatória, força especifica, acompanhada, de regra, do efeito executivo. Elemento mandamental é o que pode causar mandamento do juiz, isto é, execução simultânea à sentença, força — em vez de efeito, como se daria com o mandado para execução de sentença. Elemento constitutivo éo que constitui. Elemento executivo é o que pode dar ingresso à execução. O interessante é que a estas tautologias não chegaram processualistas da mais alta ciência, em razão de serem recentes as indagações sobre a eficácia da sentença) As sentenças condenatórias contra a Fazenda Pública podem ser exemplo da exceção ao efeito executivo de tais sentenças. Não seria possível negar-se a autonomia do efeito executivo, que independe, em certos casos, do próprio trânsito em julgado. Nem a da força executiva. Nem a da força e do efeito condenatórios. Nem a da força e do efeito mandamentais. Por isso mesmo, é sem base jurídica estender-se a regra jurídica da necessidade do trânsito em julgado

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ou de não ser suspensivo o efeito do recurso a todas as outras forças ou a todos os outros efeitos que a força e o efeito executivos stricto sensu. Aliás, a eficácia automática da sentença na ação em que se “condena” à declaração de vontade contém exceção explícita ao principio da necessidade da res ludicata ou de não ser suspensivo o recurso, para se ter por feita a execução. A força e o efeito de coisa julgada material de modo nenhum estão sujeitos a efeitos recursais. Quando se diz que o recurso não tem efeito só suspensivo, quer-se exprimir que a força e o efeito da sentença suscetíveis de serem produzidos desde logo não se suspendem com ele. Ora, a sentença, quanto à coisa julgada material, édependente do trânsito em julgado, e não da sentença só. Nenhum juiz pode, noutro processo, atender a exceção de coisa julgada, porque há sentença de que ainda pende recurso com ou sem efeito suspensivo: exige, e cabe exigir, que tenha passado em julgado. A não-suspensividade só aproveita à força e ao efeito que a sentença já tem. Isso põe claro que a força e o efeito de coisa julgada não se confundem com as outras forças e efeitos — são a consequência da fixação ou incontestabilidade da prestação jurisdicional entregue, algo de semelhante ao pagamento recebido. Tal fixação é no plano do direito processual, e não no plano da justiça da sentença, isto é, de ser a decisão a verdade sobre o que era o direito. Donde o prestígio da teoria processualística da coisa julgada em relação à teoria materialística. Para se atenuar a diferença de nível foi que se criaram as ações rescisórias. Forremo-nos, porém, de crer que as forças e efeitos das sentenças só se produzem noutro processo. Produzem-se na vida, pela respeitabilidade da eficácia da sentença. Naturalmente, por ocasião de outro processo é que se toma mais sensível a força ou o efeito. Força declarativa ou efeito declarativo mais indiscutibilidade (preclusão, força formal de coisa julgada) é igual a força ou efeito de coisa julgada material. (Inadmissível a força material de coisa julgada independente da força formal. Sem razão, E. T. Liebman, na obra citada. Há duas faces do trânsito em julgado. Quando E. Camelutti fala de “duas fases”, certamente é contraditório, pois a chamada imperatividade antes da imuta-bilidade mandaria que o juiz atendesse à força material da coisa julgada antes de transitar em julgado, forrnalmente, a sentença.) O que a realidade nos mostra é que a coisa julgada material exige a formal, posto que haja coisa julgada formal de resoluções judiciais que não produzem coisa julgada material. O haver coisa julgada formal é elemento necessário, porém não suficiente. Quando se diz que o recurso não é suspensivo não se precisa excluir a força ou o efeito material de coisa julgada pela razão de que talvez não os haja. Porque essa força e esse efeito dependem ou podem ainda depender de outro momento, E. T. Liebman recusa-se a considerar “eficácia” da sentença a coisa julgada material. E dar ao fator tempo importância que ele não tem, e negar o caráter de força ou de efeito ao que não é força ou efeito contemporâneo á publicação da sentença. Só seriam força e efeitos dos fatos a força e efeitos que eles tivessem imediatamente — a força e efeitos próximos- Tal atitude se chocaria com a ciência do direito; e não somente com ela: com a física e com a teoria do conhecimento, com a lógica das ciências. A função declaratória da sentença, ou prepondere (ações declarativas), ou seja apenas relevante (ações condenatórias, mandamentais ou outras), é condição sine qua non da coisa julgada material. Não é a mesma coisa “declarar” e “produzir coisa julgada material”. Há julgamentos declarativos (e. g., interlocutórios) que não produzem coisa julgada material. A identificação é falsa; mas identificação e causação são coisas diferentes. Tanto erram os que identificam força declarativa e força de coisa julgada material, no que incidiu Konrad Hellwig, e com ele ficou quase toda a doutrina, quanto os que, como E. T. Liebman, pretendem força de coisa julgada material sem elemento de declaração. E. T. Liebman prestou o serviço de cancelar a identificação, mas logo caiu no exagero de teorizar a diferença entre eficácia e coisa julgada material. O que ele passou a chamar eficácia, restringindo o conceito, foi eficácia menos coisa julgada material, com tanto direito quanto nós teríamos de chamar casa, de agora em diante, só a que fosse feita de cimento armado. A antecipação da força e dos efeitos da sentença é que é anormal, porque ainda não está entregue a prestação jurisdicional, tanto quanto é anormal que a lei inconstitucional seja respeitada enquanto não se lhe decreta a inconstittjcionalidade. Partir-se da anormalidade da eficácia pré-trânsito em julgado para se arquitetar teoria da coisa julgada material e da eficácia das sentenças aberra da metodologia científica. O estudo anômalo, da psiquiatria, serve à psicologia; seria absurdo, porém, que fosse aquela que elaborasse a psicologia toda, fazendo normal, hásico, o material psicótico. É inegável que, executando-se sentença, se atende à eficácia declarativa dessa sentença, mas só secundariamente, como componente do elemento condenatório. A força declarativa não está em causa; está o efeito. Esse efeito mais a coisa julgada formal é que faz o efeito de coisa julgada das sentenças de condenação. Porém, se tomamos sentença declarativa — ação declaratória típica, por exemplo — logo percebemos que nenhuma força tem antes de passar em julgado. Aquele elemento declarativo, de que nos servimos na ação de execução de sentença ainda não passada em julgado, somente apareceu mesclado à condenação. Em estado praticamente puro, a sentença declarativa, antes de passar em julgado, não tem nenhuma força. A E. T. Liebman caberia o ônus de mostrar ação declarativa que tenha eficácia antes do trãnsito em julgado. Depois, que essa eficácia é normal.

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5. Obrigação estatal de decidir e sentença. A sentença é a prestação estatal, com que o juiz solve a obrigação do Estado de decidir a questão, ou decidir quanto à aplicação do direito, ainda que não controvertido — declarando, constituindo, condenando emitindo mandamento, ou executando. Força ou efeitos são, pois, declarativos, ou condenativos (e. g., “a pagar perdas e danos”, a entregar a coisa”), ou constitutivos (‘decreto a separação judicial”,” fica interdito por prodigalidade B”), ou mandamentais (“julgo procedentes os embargos de terceiro à execução”, “julgo procedentes os embargos do devedor B”, “proceda-se ao registro do imóvel em nome de A”), ou executivos. Quanto às custas, trata-se de efeito que nada tem com a coisa julgada material da sentença, posto que os pressupostos para a condenação possam coincidir. Liga-se à sentença como fato, e não quanto ao seu conteúdo. Cedo, a respeito, James Goldschmidt (Der Prozess ais Rechtslage, 504). 6. Sentenças sobre o mérito e sentenças sobre processo. As sentenças podem ser, quanto ao alcance, a) sentenças sobre o mérito, ou de mérito, ou sentenças sobre o fundo, e b) sentenças sobre processualidade (= sentenças que não julgam o mérito).Há sentença sobre o mérito quando e decide sobre a res deducta, sobre a relação jurídica que se controverte, sobre o objeto do pedido (Sachurteil), porque toda sentença sobre pedido tem objeto. Há sentença sobre o processual (Prozessurteil) quando só se decide quanto a algum ato jurídico processual, ou pontos de direito processual, ou sobre a própria relação jurídica processual, sem se atingir a relação jurídica controvertida. Se se disse que o credor não tem direito, pretensão, ou ação, ou que procede a exceção de prescrição, ou outra que encobre a pretensão ou a ação de direito material, decidiu-se quanto ao mérito. Se se disse que foi inepta a petição, ou que faltou a legitimidade ad processum, ou que a citação faltou, ou foi nula, ou ineficaz, decide-se quanto a processo. 7. Pesos de eficácia das sentenças. Se a sentença é favorável, inteiramente, ao petitum, a soma dos pesos de eficácia da sentença é igual à soma dos pesos de eficácia que o autor pediu, ou que foi pedida pelo reconvinte. Se a sentença julga improcedente a ação, a força sentencial é declarativa. Força sentencial é o peso maior no cômputo da eficácia. Daí haver cinco classes de sentenças de que falamos e falaremos. § 33. Prestação jurisdicional 1. Conclusio in causa, sentença e eficácia sentencial. O fim do processo é a entrega da prestação jurisdicional, que satisfaz à pretensão à tutela jurídica. Mas, a respeito da sentença, as leis costumam, por muito, subentender o que a ciência assentou sobre ela e sobre a sua eficácia. A forma de comentários sacrificaria a boa exposição do direito processual, se não fosse acomodada a essa necessidade de plenitude lógica, que os Sistemas ou Tratados de direito processual têm por fito. (a) A sentença é emitida como prestação do Estado, em virtude da obrigação assumida na relação jurídica processual (processo), quando a parte ou as partes vieram a juízo, isto é, exerceram a pretensão à tutela jurídica. Tal explicação científica da necessitas cognocendi et iudicandi satisfaz as exigências práticas e teóricas. Inspirado em G. W. E. Hegel, a ela chegou, primeiro que todos, Oskar BUlow, em 1868. Adolf Wach (Handbuch, 37) mostrou o caráter de direito público da pretensão àtutela jurídica; e Heinrich Degenkolb (Einlassungszwang nnd Urteilsnorm, 36 s.), bem como A. Plósz (Beitrâge, 15 s., 40, 76 sj, a sua independência em relação à pretensão de direito material, à res in judicium deducta. Naturalmente, quem invoca a tutela jurídica alega direito, isto é, alude a lei (regra com incidência jurídica). A. Plósz (Beitrdge, 17) excluia da tutela jurídica o que pedia o pagamento da dívida de jogo. Aqui, já surge o problema da inexistência, ou existência e nulidade, ou existência e repelibilidade do pedido (“improcedência”). Posto que a petição inicial já possa ser indeferida — uma vez que o juiz não a repeliu desde logo, a relação jurídica processual existe e tem de ser desfeita para deixar de existir. Os partidários da dependência da pretensão à tutela jurídica quanto à pretensão de direito material esbarraram diante da ação declaratória para a prova da falsidade ou autenticidade de documento. No fundo, eles sofriam com a falta de coincidência, levados pelo idealismo filosófico em que viviam: prefeririam que só pudesse ir a juízo quem tivesse razão, e raciocinavam, no terreno jurídico, como se assim fosse. Ainda eram resquícios daquelas duas análises do Estado, que G. W. E. Hegel combateu (o Estado tal como deveria ser e o Estado como deve ser), em vez do Estado tal

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como é (Grundlinien der Philosophie des Rechts, 18 s.). Ora, não se podendo saber quem tem razão antes de se proceder ao exame in casu, a situação humana impôs que se cindisse o direito em direito material (civil) e direito processual (formal), a que correspondem a pretensão e a ação de direito material, de um lado, e, do outro, a pretensão de direito público, pré-processual, e a “ação”. O Estado não pregou a sua infalibilidade no julgar, a ponto de fazer passar a coisa julgada material como a incidência mesma da lei, nem as suas sentenças, todas, como sentenças justas. Há concepções idealistas do Estado; ele, porém, não é idealista, porque ele é fato, somente fato. Para se ver a que ponto chegou a concepção extrema, basta lembrar-se que houve quem escrevesse: “!crime só existe quando se profere a sentença!” (b) Toda pretensão tem por fito a satisfação. Ela é somente meio; a satisfação é fim. Se não se exerce, como que dorme. A lei fixa prazos, ditos de prescrição, em que esse sono se faz parálise. A regra é que a cada pretensão possa corresponder ação, se os pressupostos para esta nascer ocorrem; mas casos há em que a pretensão fica sem ação. Além da ação, que é um dos modos de satisfação, há a imperfeição ou perda da exigibilidade fora da ação (e. g., pactum de non compensando). O que não se pode dar é a penda da exigibilidade pela ação e a perda da exigibilidade fora da ação; porque então não há mais pretensão. “Uma pretensão só se mostra” (só existe) quando, pelo menos, “o direito de auto-satisfação ou o direito de ação, no todo ou ainda em parte, continua para ser obtido” (Hans Reichel, Unklagbare Ansprúche, 8; Jherings Jahrbúcher, 59, 416). Sempre que não se pode ir a juizo exigir (= fazer efetiva) a prestação, é que a pretensão é sem ação, inacionável. Muitas vezes pode ser exigida perante autoridades públicas não-judiciais. Continuam de ser inacionáveis. Caso intermédio é o da pretensão que pode ser acionada perante tribunais administrativos, porém não perante tribunais judiciários. Outro, ainda, o da pretensão que já se não pode acionar nos juízos da administração, e só se pode acionar na justiça. A ação é um poder, no sentido em que se chama, por exemplo, “restrição de poder” à cláusula de inalienabilidade. Os direitos subjetivos são cheios e cercados de poderes. Sempre que, do outro lado, alguém pode ter de sofrê-lo, o poder é pretensão; sempre que se pode exercer para efetivar-se, estatal-mente, essa sujeição — é ação. (c)A pretensão à tutela jurídica pertence a maior número de pessoas do que às partes; as partes exercem-na. Essa correção a Adolf Wach, que ainda fazia objeto da demanda a pretensão à tutela jurídica (Handbuch, 19), deve-se a Richard Schmidt (Lehrbuch, 25). Assentou-se, assim, a pré-processualidade da pretensão à tutela jurídica. O autor exerce-a; O Estado, por seu órgão, toma parte na relação jurídica processual que se estabelece, chamando o réu (citação), se tem de ser angular a relação; a sentença satisfaz aquela pretensão (a toda pretensão correspondente alguma satisfação) e constitui, com o trânsito em julgado, terminação, normal ou anormal, da relação jurídica pro-cessual. As concepções de relação jurídica processual entre as partes são subestruturas de situações materiais da vida, em espíritos receptivos das dependências capitalistas de devedor a credor, expressas nos livros sacros e agora nos juristas (e. g., Giuseppe Chiovenda, Saggi, 1, 14; “Poichê dove un cittadino, giovandosi dei mezze che l’ordinamento giuridico pone a sua disposizione, sia la legge sia l’attività degli organi di Stato, puô con un atto di sua volontà produrre determinati effetti giuridici di fronte ai cittadino, ivi noi vediamo una relazione di potere trci cittadino e cittadino”). Daí à concepção fascista do obrigado “súdito” do credor, representada em Francesco Camelutti e outros, houve apenas um passo. (d) A pretensão à tutela jurídica pertence a maior número do que o daqueles que tem pretensão de direito material. O processo é todo encadeado para se chegar ao fim dele, que é a sentença, com a eficácia que lhe advenha da natureza da ação e das circunstãncias do processo. Não é o juiz que lhe confere a eficácia, segundo quer; é o direito processual, segundo a sua concepção da questão e da sentença. Efeitos anexos ou reflexos, ditos, impropriamente, secundários, que acaso tenha a sentença, também dependem do que se passou; porém não seriam previsíveis pelos que somente vissem de dentro do processo e do interior da sentença. São efeitos que não são próprios e necessários da sentença, posto que ela, dadas certas circunstâncias exteriores, os tenha de produzir. São efeitos que se vêem, olhando-se do lado de fora para a sentença. Quando o juiz entregou a prestação jurisdicional não os via, necessariamente, como poderia (pre-) ver a coisa julgada formal, a coisa julgada material, a força ou o efeito constitutivo, a força ou efeito condenatório, a força ou efeito mandamental, a força ou efeito executivo. E por isso que essas forças e esses efeitos servem para se classificarem as ações e as sentenças; e os efeitos exteriores, nao: são os efeitos, próximos, de direito

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privado, ou público, e os efeitos reflexos. Quando Oscar Búlow (Riage und Urte II, 55) chamou a atenção para o fato de que o juiz somente é obrigado a proferir sentença de fundo (mérito!) depois que se encerra o debate oral, portanto antes não era obrigado a dar determinada sentença, teve razão em parte, e em parte não. Teve razão, porque, no momento em que se encerra o debate, se há de ter como determinada a sentença (a favor, ou não; no todo ou em parte). Não teve razão, querendo argumentar, com isso, contra a préprocessualidade da pretensão, ou, noutros termos, contra a pretensão à sentença (inclusive à de execução). A pretensão à tutela jurídica não é pretensão à sentença “favorável”, e aí tem razão Oscar Bulow; mas, simplesmente, à sentença ou à execução. Por isso mesmo temos de afastar qualquer concepção que construa a pretensão à tutela jurídica como pretensão à sentença favorável. Essa “favorabilidade” denuncia que ainda os próprios descobridores da pretensão à tutela jurídica tinham os olhos atados àpretensão de direito material que predeterminaria o ser a favor da sentença. (e) Quando se fala de força e efeitos da sentença— englobadamente, da “sua” eficácia — entende-se que se sabe o que éeficácia jurídica. A linguagem vulgar e, infelizmente, a grande maioria dos juristas não distinguem força e efeitos, conceitos ambos contidos em “eficácia”, palavra com que se traduz Wirkung. A eficácia jurídica supõe que exista mundo juridico, que o nosso espírito capta em suas relações, de modo que toda mudança desse mundo é eficácia jurídica (cf. A. Manigk, Uber Rechtswirkungen, 6-13). 2. Ação e sentença, quanto a eficácia. A soma eficacial da sentença é sempre a soma da eficácia que tem a ação? Não. Se a sentença não é em virtude de cognição completa, a ação tem eficácia mais intensa do que a da sentença, devido a lhe faltar força declarativa, ou mesmo eficácia imediata declarativa: a declaratividade, que tem, é suscetivel de novo exame. Tal o que se passa com a sentença denegatôria na ação de mandado de segurança, se apenas diz não ser “certo e líquido” o direito, e com a sentença do juiz ao resolver dúvidas do oficial do registro de imóveis. A eficácia própria das sentenças deriva da pretensão ou pretensôes à tutelo jurídica de cujo exercício resultou a “ação”. A eficácia das sentenças, que, normalmente, somente começa findo o processo, é, portanto, pós-processual; contra o que em geral se tem ensinado — não é mais do que a projeção, através do processo, da pretensão ou das pretensões (pré-processuais) àtutela jurídica. Porque foi para alcançar essa eficácia (declarativa, constitutiva, condenatória, mandamental, executiva) que a pretensão ou as pretensões se exerceram. O processo é o desen-volvimento necessário, formador da relação jurídica processual, entre aquela ou aquelas pretensões e a eficácia própria da sentença. Se a sentença tem força a e efeito b, é que a pretensão à tutela juridica continha duas pretensões (a e b). Conforme adiante veremos, a eficácia é pós-processual, ainda que logicamente o ato do juiz, em que ela consiste, seja incluso (sentença constitutiva), imediato (sentença mandamental), ou a eficácia apenas consista em enunciado de fato (sentença declarativa e, com o dado de reprovação, sentença condenatória). 3. Limites das espécies de eficácia. É de repelir-se a teoria de que existe eficácia (Jurídica) da sentença, fora dos casos correspondentes aos elementos de declaração, constituição, condenação, mandamento e executividade. No estado atual dos sistemas jurídicos ocidentais, essa lista é a única encontrável, e é exaustiva. A autoridade, que possa ter a sentença, fora daí, tem de ser como ato estatal, e não como sentença. Não seria então para ser considerada como eficácia da sentença. A eficácia, que conhecemos, erga omnes e ultra partes, não é da coisa julgada material; é a da constituição, ou a de certos fatos que o mandado torna oponiveis a todos, ou ao grupo, categoria ou classe. Isso não quer dizer que os legisladores não possam conceber a coisa julgada erga omnes, com o que reedificariam, desde os alicerces, o mundo jurídico, fundindo eficácia de coisa julgada material e constitutividade. A remodelação do mundo jurídico seria completa. A sentença nos processos de cognição pode ter de apreciar a reconvenção em que se alegou a compensação (ou a defesa mesma de que a compensação foi uma das exceções, nas raras espécies possíveis). A atitude do juiz, em tais casos, não é a mesma que a lei lhe impõe em se tratando de compensação com execução aparelhada, a respeito de processos de execução de sentença. Os processos executivos de títulos extrajudiciais e os demais não estão sujeitos a restrições peculiares àqueles. A iliquidade não é obstáculo a que se orecie o outro crédito: ou (1) o juiz, desde logo, fixa o quanto, ou leva em conta o crédito ilíquido e condena o autor na reconvenção (ou manda computá-lo no deve e haver); ou (2) concebe o julgado como sentença de reserva, com a condenação, menos o que se apurar (assim, Edler Schrutka von Rechtesntamm, Die Richtigkeit der Forderungen als Voraussetzung der Kompensation, 29). 4.Precaução de método. A inclusão das discussões em tomo da natureza da sentença, ao se tratar da classificação das

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sentenças, confunde: (1) o problema do erro do juiz ou como erro no plano processual ou como modificação do mundo jurídico material; e (2) o problema, necessariamente posterior, da distribuição das sentenças conforme a sua eficácia. O problema (2) nada tem com o problema de ser verdadeira a proposição ‘aplicação = incidência” ou a outra “é sentença em que aplicação = incidência”, porque o problema (1) diz respeito às relações entre a lei e a sentença, ao passo que o problema (2) somente se refere às relações entre a sentença e o seu futuro. Quando se fala, por exemplo (;e tantos o fazem!), de eficácia declarativa da sentença como de relação entre a lei e a sentença, troca-se de problema; a questão de eficácia é o problema (2), e não o problema (1). A confusão somente pode levar a erros. A sentença declaratória típica está na mesma situação que qualquer das outras (constitutivas, de condenação, mandamentais, executivas) para o problema (1)- O que nos importa, no problema (2), é a eficácia, e aí, sim, se tem de classificar as ações e as sentenças, para se saber (a) em quantas classes (duas, três, quatro ou cinco) se hão de dispor as ações e as sentenças (sem que a classificação daquelas tenha de a priori coincidir com a destas), (b), como se hão de definir estas classes, (c) qual a força preponderante que corresponde a cada classe, admitido que renunciamos a classificação das ações e a das sentenças pela força única de cada uma. Por isso, quando se fala, no só plano do problema (1), de ser declarativa” ou de ser “constitutiva” (dicotomia) a sentença, empregam-se as duas palavras em sentido diferente (A) daquele que se lhe atribui quando estamos a classificar ações ou sentenças (B). Diferente e impróprio. Impróprio, porque o problema (1) também se levanta quanto às sentenças declarativas e constitutivas: As sentenças declarativas (sentido B) são declarativas ou constitutivas (sentido A)? As sentenças constitutivas (sentido A) são declarativas ou constitutivas (sentido A) Pode-se imaginar a que trapalhada, nos raciocínios, leva isso; mas — desgraçadamente não havendo “lei” que preveja a mudança nas res iudicata, esta persiste. De Oscar Bulow, em 1885, a ,.Julius Binder (Prozess and Recht, principalmente 198 e 245), a tentativa de considerar o processo integração do direito, que seria incompleto, ou de reduzir o direito à ação, não logrou firmar-se. Ali, confundiu-se a interpretação criativa com a aplicação; aqui, deslocou-se para o momento da aplicação o fato da incidência. O prius é a pretensão, a ação que dela nasce, regida pelo direito material. Porque há, fora desse, noutro ramo do direito material, a pretensão àtutela jurídica, pode quem “alega” aquela, ainda que não a tenha, exercer a pretensão à tutela jurídica. A decisão impecavelmente justa estabeleceria a coincidência entre a aplicação (concreta) e a incidência (abstrata). Desde que tal coincidência não se dê, pois que os dubia denunciam a incerteza humana (não só no processo da rota onde são explícitos, F. Menestrina, II Processo Ciu.’e neilo Stato Pontificio, 25 s.) — a situação criada pela sentença não é a que a lei instituiu. Explicar o fato como integração, ou complemento, ou substituição, ou correção da lei e da situação jurídica anterior (de direito material), é atribuir ao processo função que ele somente teve ao tempo em que incidir e aplicar eram um só ato. Recorre-se a esses expedientes para se borrar a distãncia temporal, ineliminável, entre um e outro fato. Mas —perguntar-se-á — texistiu esse tempo em que aplicar e incidir foram, sempre, um só ato? Coisa julgada material como à lei e a todas as coisas. O problema (4) da lei posterior que atinja a coisa julgada é estranho ao problema (2); porque se trata de derrogação da lei processual anterior, com incidência no passado. A coisa julgada material, aí, desaparece, ou é atingida, porque é eficácia da sentença proferida no momento e, em virtude de relação jurídica processual formada segundo a lei processual vigente no momento d (quando se propôs a ação), para aplicação da lei de direito material promulgada no momento b e incidente, ao se chegar ao momento c , nos fatos da ação proposta. Ora, a lei processual nova, posterior à sentença no momento e, revogando ou derrogando a lei vigente no momento d, por ter levado a sua eficácia retroativa até o momento a, tirou toda a base do que se passou entre o momento d e o momento 1 a lei foi revogada ou derrogada no passado, a sentença deixou de ser, portanto desapareceu a sua eficácia. Não há eficácia de sentença que não existe. Se a lei nova é de direito material e revoga ou derroga a lei de direito material vigente no momento b, não se pode entender que esteja atingida a coisa julgada material, porque sentença existiu e continua de existir, prova cabal de que a lei e a sentença são atos estatais inconfundíveis. Para que se alcance a coisa julgada material, é preciso ou que se legisle com regra expressa de desfazimento dessa eficácia, ou da sentença mesma, ou da lei de direito processual, com retroatividade aos casos julgados. Não há, pois, pensar-se em derrogação do direito material pelo processual. Tudo se passa no plano do sobredireito, do direito intertemporal (isto é, das regras jurídicas sobre a incidência da lei, no tempo). 5.Sentença e lei. Também a inclusão da sentença na classe das leis, por ser regra jurídica concreta, que substitui a regra abstrata, quanto à res in iudicium deducta, pertence a essa espécie de identificações pelo simples fato de se encontrar elemento comum (o serem atos estatais) e parecerem da mesma natureza. Servindo-se dessa premissa errada, alguns juristas tentaram explicar a coisa julgada material como... a permanência da lei, no seu Ersatz. Ora, a

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diferença entre aplicação e incidência livra-nos do assim “como se julgou” (teoria da ficção, da verdade formal, da engano de crer que a sentença refaz, ou é o próprio direito objetivo, de modo que a relação de direito material sempre foi presunção de verdade, ou qualquer outra), porém, fora de qualquer dúvida, também nos livra de considerar sem vigor a lei, no caso julgado, porque no seu lugar se pôs a sentença. Nem a aplicação é incidência, nem é incidência nova. Imaginemos, por exemplo, que lei posterior criou recursos para cedas sentenças irrecorríveis, violência de que tivemos casos em 1930-1932 e 1937-1945. Se a vigência da lei tivesse cessado, a destruição da coisa julgada material nada deixaria em seu lugar. Essas observações mostram que o problema da classificação das ações e das sentenças (2) nada tem com os outros problemas acima. Tratando-se de classificação quanto à eficácia da sentença, que é o critério mais interessante, assim em ciência como em terreno prático, o problema da natureza da eficácia da classificação das diferentes classes de eficácia é que pode estar incluído no problema da classificação das ações e das sentenças. A sentença declarativa é a sentença que tem a sua força no declarar. Não se pode dizer que a declaração lhe exaure a eficácia. Apenas que nenhuma outra força — a de constituição, a de condenação, a de mandamento, ou a de execução — lhe passa à frente, em relevância teórica e prática. A sentença constitutiva é aquela em que prevalece a eficácia de constituição. Portanto, aquela em que a tutela jurídica de declarar não supera as outras tutelas, em que se constitui mais do que se declara, do que se condena, do que se manda, do que se executa. A sentença de condenação tem cognição e, pois, elemento declarativo e de constituição, que serve mesmo, em combinação com a declaração, ao fato novo, ao nouum processual da condenação; e não se lhe pode apagar o que possui de mandamento e o que possui de execução, que também se revela no efeito executivo de quase todas as sentenças de condenação. Ela é de condenação, porque o condenar prima, enche quase tudo que se destina à eficácia da sentença. A sentença mandamental supõe declaração, constituição e condenação, em doses fortes ou mínimas, porém o mandado do juiz, como eficácia, é o que mais importa. E o elemento prevalecente, o alvo da ação que a sentença marca ao autor vencedor. A sentença de execução também resiste a qualquer redução às classes referidas. Só Francesco Carnelutti ainda se afoitou a incluir o processo de execução na cognição, apagando a distinção entre pretensões tão características. Mas o fracasso da tentativa espoucou. 6. Análise das classes. A análise das classes de sentenças dá-nos a seguinte tabela para o que mais acontece a respeito de cada classe: Tabela II. Elementos das ações

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Sentenças

Elementos declarativas

Sentenças constitutivas

Sentenças condenatórias

Sentenças mandamentais

Sentenças executivas

Declaração a (a) (a) (a) (a) Constituição (b) a (b) (b) (b) Condenação (c) (c) a (c) (c) Mandamento (d) (d) (d) a (d) Executividade (e) (e) (e) (e) a

Ou seja: 1. Sentenças declarativas: a) Força de declaração (declarativa e de res iudicata material -Elementos (efeitos) em ordem variável: b) constitutivo; c) condenatório; d) mandamental; e) executivo. II. Sentenças constitutivas: a) Força de constituição (mudança no mundo jurídico). Elementos (efeitos) em ordem variável: b) declaratório; c) condenatório; d) mandamental; e) executivo. III. Sentença de condenação: a) Força de condenação. Elementos (efeitos) em ordem variável: b) declaratôrio; c) constitutivo; d) mandamental; e) executivo. IV. Sentenças mandamentais: a) Força de mandamento. Elementos (efeitos) em ordem variável: b) declaratório; c) constitutivo; d) condenatório; e) executivo. V. Sentenças executivas: a) Força de execução. Elementos (efeitos) em ordem variável: b) declaratória;

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c) constitutivo; d) condenatório; e) mandamental. Declaração: nada pressupõe necessariamente de outro elemento; supõe todos os outros elementos. Constituição: pressupõe declaração. Condenação: pressupõe declaração e supõe constituição. Mandamento: pressupõe declaração e constituição; supõe condenação. Execução: a) se de sentença: pressupõe declaração, constituição e condenação; supõe mandamento; b) se de título que não seja sentença: pressupõe declaração e constituição; supõe mandamento; desloca de pressuposto para suposto a condenação. Com a sentença de declaração, que nada pressupõe, “marcam-se os limites” à res in iudicium deducta, que fica “exposta”, de si mesma e por si mesma. Com a sentença de constituição, que pressupõe declaração, que marque os limites” à constitutividade, de modo que possa a sentença constitutiva “enchê-los” (plus da constituição), o juiz declara e constitui. Com a sentença de condenação, que pressupõe declaração e constituição de estado que “encha” a condenação, de modo que a faça plus em relação à simples declaração, o juiz declara e constitui nova situação jurídica além da função constitutiva. Com a sentença de mandamento, que pressupõe declaração, constituição e condenação, delas recebe o juiz todos os elementos que permitam “limites” e “ato”. Com a sentença de execução, que pressupõe todos os outros elementos, o juiz, valendo-se da declaração, da constitutividade, da condenação e do “mandado”, procede à entrada na esfera juridica do executado — solvendo a responsabilidade executiva do executado. 7. Eficácia de coisa julgada material. A eficácia enunciativa depende do sistema de regras jurídicas em que a proposição declarativa se encontra. Por isso mesmo, diante de elemento declarativo das sentenças trânsitas em julgado e das resoluções que não têm força de coisa julgada formal, duas atitudes surgiram entre os juristas: (a) a dos que viram nisso a prova de haver eficácia declarativa fora e essencialmente distinta da eficácia de coisa julgada material, pois aquelas resoluções que forrnalmente não passam em julgado e não têm, em consequência, força ou efeito material de coisa julgada, produzem eficácia declarativa- (b) a daqueles que revidam, com energia, que o falar-se de eficácia de declaração sem a coisa julgada material seria absurdo: a eficácia de declaração seria apenas “lógica”, não “jurídica” (Enrico Allorio, La Cosa giudicata rispetto ai terzi, 39). À tese e àantítese respondamos, como em síntese (c): o sistema de regras (falamos no sentido da lógica contemporânea) em que se coloca a declaração contida nas resoluções judiciais que não passam formalmente em julgado não é, como supõe a atitude (b), sistema somente lógico; portanto, a antítese (b) é falsa. No sistema lógico em que há resoluções judiciais que transitam, formalmente, em julgado, e resoluções judiciais que não transitam, formalmente, em julgado, há regras jurídicas que se aplicam àquelas e a estas, de modo que o sistema é jurídico em toda a sua abrangência. O valor da resolução judicial que não passa, formalmente, em julgado, é mais do que lógico: é jurídico; apenas, dentro do mesmo sistema de regras jurídicas, essa resolução e esse valor não são regidos por um grupo de regras que somente regem as resoluções judiciais que transitam em julgado. Quando somamos eficácia declarativa e força formal de coisa julgada (preclusão) é que podemos falar de eficácia de coisa julgada material. O elemento declarativo, como o constitutivo, o condenatório, o mandamental e até o executivo, que se encontra nas resoluções judiciais que não passam formalmente em julgado, é o mesmo que aparece nas resoluções judiciais que formalmente transitam em julgado. O plus está na força formal da coisa julgada, que há aqui e ali não há. A distinção entre resoluções judiciais que têm força de coisa julgada formal e resoluções judiciais que não têm força de coisa julgada formal nada há com a classificação das resoluções judiciais em declarativas, constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas. Quando dizemos que a sentença declarativa a tem força de coisa julgada material, referindo-nos a resolução judicial que entra na classe das

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resoluções judiciais declarativas e na subclasse das resoluções judiciais declarativas que passam, formalmente, em julgado: assim, a eficácia de coisa julgada material depende daquela conjunção de dois elementos da classificação em duas classificações diferentes, o trânsito formal em julgado e o elemento declarativo. Se a antitese (b) é falsa, não o é menos a tese (a). Do fato de haver elemento declarativo nas resoluções judiciais que não transitam formalmente em julgado, não se há de tirar que uma coisa seja elemento declarativo e outra, essencialmente diferente, a res iudicata. A água é outra coisa que o hidrogênio, porém não essencialmente diferente: o hidrogênio é, e está na água, como o elemento declarativo é, e está na coisa julgada material. Se a resolução judicial, que não tem força formal de coisa julgada, pode ter eficácia declarativa (aliás, também pode ter eficácia constitutiva, condenatôria, mandamental, ou executiva), é porque é declarativa, ou tem suficiente elemento declarativo: falta-lhe a força formal, oriunda da preclusão, para que pudesse ter eficácia de coisa julgada material. Temos situação parecida nas sentenças condenatárias ainda não passadas formalmente em julgado e já exequíveis: têm a eficácia executiva das resoluções judiciais que não passam em julgado, enquanto lhes falta a força de coisa julgada formal. O problema é, portanto, o mesmo, quer se pense na eficácia declarativa, quer na eficácia constitutiva, ou condenatôria, ou mandamental, ou executiva, das resoluções judiciais que passam.formalmente em julgado e das que não passam formalmente em julgado. O que se pretendeu ver de “diferente” entre a eficácia declarativa daquelas e a destas está na presença e na ausência da preclusão, e nunca em diferença da declaratividade. Algumas vezes, os juristas se esforçaram por apontar a eficácia declarativa além das partes e assim distinguir a eficácia declarativa, comum a sentenças trânsitas em julgado e as sentenças que não passam em julgado, e a eficácia de coisa julgada material; porém ficavam no terreno de especulaçáo pura, sem apoio em fatos, ou lamentavelmente confundiam a eficácia constitutiva, ou a mandamental, ou a executiva, e a declarativa. 8. Imperatividade e imutabilidade. Em erro igualmente grave incorreram os que tentaram separar, como sendo ambos os conceitos ‘conceitos fundamentais”, a imperatividade e a imutabilidade das resoluções judiciais. Ora caiam na confusão entre elemento mandamental e irnperatividade, ora entre elemento declarativo e imperatividade. O conceito de imperatividade, nome aliás impróprio porque já usado noutras distinções diferentes, apenas alude a que o conceito de resolução “judicial” se subsume no conceito de resolução, jurídico, e não só lógico. Nada tem com o conceito de eficácia da resolução judicial, porque também possuem imperatividade a resoluçào administrativa e a legislativa, todas as três estatais. Nada mais perigoso do que, discutindo-se problema de eficácia das resoluções judiciais, se deslocar a disputa para o plano da Teoria Geral do Direito ou da Teoria Geral do Estado: cai-se, aqui, em vaguidades e superficialidades pseudocientificas, ou confusão de planos de conhecimentos, como ocorreria a quem nào sabe em qual andar do prédio se acha a cada momento que observa a fala. De tais considerações foi que partimos para submeter a revisão, rente aos fatos da vida forense, classificação das ações e a das sentenças, segundo a sua eficácia específica: Sobre os incisos acima: 1. Wilhelm Sauer (Grundlagen, 302 s.). 2. Cp. Wilhelm Sauer (Grundlagen, 302 s., 560; ‘sinal de perseguibilidade”). O titular da “ação privada” criminal tem pretensão à tutela jurídica; não tem a pretensão de direito material. E é parte. Os combatentes da pretensão à tutela jurídica ficam embaraçados e têm, como Giuseppe Chiovenda (Saggi, 1, 16), de admitir direito público subjetivo à ação privada. Para se ver a dificuldade das velhas doutrinas, leia-se, por exemplo, Borsari (Azione Penale, 371), que a reputava condição (!) da ação pública. 3. Cf. nosso Tratado de Direito de Família, 1, 2ª ed., 275; Tratado de Direito Privado, 1, V ed., 4. Sempre que o marido ou a mulher podem cobrar dividas comuns ou exercem ação quanto a bens comuns, sem que a mulher ou o marido precisem ser parte, dá-se o previsto acima. 5. A litispendência toma “litigiosa” a coisa, porém o ser litigiosa não impede à coisa o ser objeto de negócio jurídico, por uma das partes, nem exclui a cessão da ação exercitada. Apenas exclui esses negócios quanto à eficácia da futura sentença na demanda pendente. Cp. Wilhelm Sauer (Grundlagen, 305). 6. Adolf Wach (Handbuch, 1, 520), Konrad Hellwig (Anspnch und Klagrecht, p. 244), A. Skedl (Das õsterreichische Ziuliprozessrecht, 1, 121), Hans Sperl (Lehrbuch, 1, 163) e Wilhelm Sauer (Grundlagen, 305) entendem que o sujeito da relação jurídica processual, a parte, é o administrador, e a massa tem a pretensão à tutela

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jurídica. Rudolf Pollak (Zwangsverwaltung wirtschaftlicher Unternehmungen, 29; Systern, 121) sustenta que o administrador da massa somente é representante. A resposta, a nosso ver, depende do sistema jurídico do país; tem de ser a posteriori. 7. Schrutka von Rechtenstamm (Grundriss, 8), W. Kisch (Das Reichsgericht und der Parteibegriff, Reichsgerichtspraxis, VI, 33), e Rudolf Pollak (System, pp.119 e 121). 9.Pressupostos objetivos. Quanto aos pressupostos objetivos, cumpre que se distingam inexistência (1), existência e nulidade (II) e existência da relação jurídica processual e improcedência da ação (III). 1. Se falta o pressuposto objetivo essencial, a relação jurídica processual não existe. Ao pressuposto objetivo essencial já se referia Karl Birkmeyer (Deutsches Strafprozessrecht, 68). E o “Sachgestaltugsmerkmal” de Wilhelm Sauer (Grundlagen, 187 s.). A relação jurídica processual não se constituiu. Não há falar-se dela; nem de instância; nem de delitos processuais ou de dolo ou culpa processual; nem de abuso do direito processual (posto que se possa falar de ato ilícito de direito material). Não há nulidade, nem se precisa de propor ação rescisória contra a sentença; nem se haveria de pensar, tampouco, em qualquer eficácia. Exemplos: a) execução de divida no juízo criminal; execução perante o Tribunal de Justiça fora dos casos previstos em lei; b) nas demandas da competência do Tribunal pleno, se foi proposta perante o relator de algumas das Câmaras; c) algum animal, como autor; o não concebido, como autor ou como réu. 1. Se o caso não é cível, mas, por exemplo, criminal, a relação processual civil não se constitui. Também não se constituiria no crime a relação jurídica processual criminal se o que se pôs como res in iudicium deducta é só cível. Chama-se a esse pressuposto pressuposto objetivo essencial de matéria. 2. Onde se põe como de condenação a questão que seria só de declaração ou só de constituição, a relação jurídica processual civil certamente se forma, porque houve troca apenas: há pretensão à tutela jurídica. Também se é posta como de execução o que só seria de condenação, ou só de constituição (aliás, a questão de condenação contém a de declaração: de modo que nada impede que o juiz só declare). Inexistência só se dá se falta a pretensão à tutela jurídica. O pressuposto da tutela jurídica é pré-processual (James Goldschmidt, Zivilprozessrecbt, § 12, nº 4, põe tal pressuposto no direito judicial material”). Em relação a eles, os chamados pressupostos processuais são simplesmente “supostos” (processuais) da sentença. Em todo o caso, note-se, quanto à troca deles, o que se diz adiante. 3. É preciso que se ponha caso concreto, ainda para ação declaratória, a fim de que a lei se aplique. Inclusive quando se trata de autenticidade do documento ou de falsidade (ação declaratória especial), porque, aí mesmo, não se examina simples fato (não há declaração de fato, mas do fato em relação a alguém, com inclusão desse fato em certo conceito juridico, como bem acentuou Emst Beling, Informativprozesse, 24). Chama-se a esse pressuposto pressuposto objetivo essencial de individualização, ou de individuo lizabilidade. 4.Não é pressuposto objetivo essencial, no direito processual brasileiro, o procedimento típico, de modo que se pode falar no caso de troca de forma, de processo que existe. Mais do que isso: que existe, e não é eivado de nulidade. A lei é explícita. Mas é preciso que “exista” procedimento, isto é, que tenha existido o que é substantialia para a formação da relação jurídica processual. Quase sempre, a citação, porque a grande maioria dos processos é de processos angulares. Sempre, a petição (às vezes chamada, erradamente, em algumas leis, “requerimento”). Outros substantialia são apenas para o andamento do feito; e a sua falta só tem efeitos desde esse momento; o processo, ainda que teratológico, existe. Chama-se a esse pressuposto pressuposto objetivo essencial inicial do procedimento. Há processos de ofícios, excepcionais. II.Os pressupostos objetivos aí referidos são de uma classe que escapou a Wilhelm Sauer. Ele viu somente os sinais materiais” (1) e os “pressupostos materiais” (III); donde o dilema; ou inexistência ou improcedência. Há três classes. Os juizes brasileiros, na esteira da praxe tradicional, sempre consideraram a falta dos processos prévios necessários como causa de nulidade, e não de inexistência, nem, tampouco, causa de improcedência. E com toda razão.

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1. A falta ou nulidade do processo prévio concerne à prova futura, ou a alguma exigência ligada à res in iudicium deducta (pretensão de direito material), não à processualidade. Assim, não poderia impedir a formação da relação jurídica processual. Por outro lado, raramente conceberia o legislador a quebra de tal exigência como obstáculo à dedução da pretensão de direito material, ou ao seu fundamento. Se isso acontece, tem cabimento pôr-se o caso II, 1, em III, 1, ou III, 2, ou III, 3, ou III, 4. Não é, porém, o que mais acontece. No processo penal, o que mais acontece é a segunda hipótese. A relação juridica processual pode terminar pela absolutio ab instantia, com o desfazimento; ou pela cessação (desistência, transação), que não preexclui a relação no pretérito; ou pela decretação da nulidade do processo, e. g., em caso de incapacidade processual, ou de incompetência, ainda ratione materiae (se civil a jurisdição); pela sentença sobre o mérito (repelindo ou acolhendo o pedido). Adolf Wach (handbuch, 38) distinguiu a sentença sobre os pressupostos processuais e a sentença sobre o mérito. Devemos separar a decisão (a) sobre os pressupostos da tutela jurídica (1) e os pressupostos processuais essenciais (II) [a decisão sobre aqueles não é entrega da prestação jurisdicional, mas simples “~Não houve relação jurídica processual!”; a decisão sobre os pressupostos processuais (II) e (III) diz ser nula (b) ou não ter eficácia (c), e não que não existe a relação juridica processual]; e (d) a decisão sobre o mérito. Advirta-se que, no direito brasileiro, a absolutio ah instantia compreende casos de ineficácia e casos de nulidade, tendo parecido ao legislador, não que “desconstituir” e “julgar ineficaz” se equivalem, porém que a ineficácia de todo o processo, em certos casos, podia ser tratada como desfazimento (a anulação, com efeitos ex tunc). Nos casos em que a absolutio ah instantia compreende casos de ineficácia, o julgamento “anula”, devido à técnica legislativa, que aponta os casos em que, a requerimento do demandado, pode o juiz extinguir o processo sem julgamento do mérito. 2. a) A questão de mandamento contém a de declaração. A de constituição e a de execução, também. A condenação contém a de declaração. Se a ação é de constituição e se propôs a de declaração, a relação jurídica processual existe, para a só declaração. Também assim, se foi proposta ação de declaração, e seria o caso para condenação, ou mandamento, ou execução (raramente útil a de declaração da executividade da sentença; muitas vezes o é a de declaração da executividade de títulos não-judiciais). A questão de mandamento não contém a de constituição, salvo se, no caso, há a de constituição como base; só contém a de condenação, se está, no caso, compreendida. Quem pede a execução de sentença não pede condenação, nem constituição, nem mandamento (senso estrito); mas, se a ação é de execução de título não-judicial, a de condenação está implícita. Para a execução de sentença, a falta da sentença condenatória é causa de nulidade (II, 2, a). Chama-se a esse pressuposto pressuposto objetivo de configuração. Atende à especificidade — escalar — da pretensão. b) No caso de petição inicial não instruída com os documentos exigidos, a sanção é a de nulidade, não a de improce-dência; absurdo, crer-se inexistente a relação juridica processual. Extingue-se o processo sem julgamento do mérito; desfaz-se a relação jurídica processual, por falta de documento indispensável à propositura da ação. 3. Ainda quando a lei fiscal exige que só se proponha a ação juntos os recibos de impostos, é de regra de nulidade, e não de regra de inexistência, que se trata. Como regra de inexistência estaria contra o princípio de que a lei processual contêm a si mesma. Porém não se há de admitir, sem texto expresso, que a sanção seja a nulidade. 4. Se a relação jurídica processual se formou, qualquer falta ou nulidade somente atinge ex nunc o seu desenvolvimento, não ela mesma. III. Os pressupostos de que aí se trata são pressupostos objetivos não-essenciais, da classe dos que Wilhelm Sauer (Crundlagen, 211 s.) denominou “pressupostos materiais de configuração” (para ele, os pressupostos 1 são sinais materiais de configuração). A sanção consiste na improcedência.

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1. A falta ou falsidade do fundamento — quer nas ações de cognição, quer na ação executiva de sentença — tem como consequência a improcedência da ação. Tendo errado em não isolar a pretensão à execução, capaz de fazer preponderar o elemento executivo e obrigar à admissão de classe autônoma de ações, Wilhelm Sauer (Grundlagen, 212 s.) teve de distinguir o “fundamento da causa”, Klagegrund, e o “fundamento do julgado”, Urteilsgrund, que é o conteúdo exequível da sentença. Ora, esse conteúdo é fundamento da causa, da actio iudicati, e a sentença exequível está para a ação de execução de sentença como o documento indispensável à petição inicia] está para a ação de cognição. Por isso mesmo, se falta ou se é nula ipso iure a sentença exeqilenda, a atitude do juiz é a mesma que aquela que teria se faltasse o documento. Se a sentença exequenda lá está no processo, e não foi anulada (naturalmente subentendemos que “seja” sentença, que existia), o juiz que a examina, e examina o fundamento da causa executiva, tem de julgar improcedente a ação, e não anular ou extinguir o processo. Esses pontos são extremamente importantes, e descurouos Wilhelm Sauer, partindo, como partiu, de distinção artificial. . 2. A inabilidade do documento para prova na ação específica (ação executiva, mandamental, ou outra), concerne à procedência da ação, e não à existência ou validade da relação jurídica processual; e não se confunde com a troca (II, 2, a) da pretensão à tutela jurídica (e. g., mandamental, em vez de condenatôria, salvo os casos raríssimos de inclusão). Quem propõe ação executiva contra a Fazenda Pública troca a pretensão: o erro ocorreu no terreno processual. Quem propõe contra a Fazenda Pública ação de condenação ou ação mandamental (retificação de regis-tro), sem satisfazer as exigências de documentação prévia feitas pela lei respectiva, propoe a ação com documento inábil. O caso III, 2, também não se confunde com o caso II, 2, b. 3. A falta de fundamento para cumular, reconvir, litisconsorciarse, ou intervir, é falta de pressuposto objetivo não essencial, especial, como o III, 2. Tais pressupostos se superpõem ao pressuposto não essencial geral (III, 1), que há de ter qualquer causa. 4. Comparem-se os casos II, 2, a e b, e III, 2 e 4. Ali, há nulidade (ou desfazimento); aqui, improcedência. Também, com a troca de “procedimento”, assunto a que as leis soem dar tratamento benévolo. Se nada de essencial se aproveita (e. g., nem a citação, nos processos angulares), o caso subsume-se em 1, 4. Tabela VI Sorte jurídica da sentença I. Inexistência da sentença em matéria civil (isto é, “não sentença”). 1. Falta de jurisdição cível (não-juiz, juiz do crime, juiz dos tribunais administrativos; juiz estrangeiro ou supra-estatal, inter-estatal ou paraestatal; tribunal sem número legal). 2. Falta de capacidade de ser parte: e. g., não ser homem, estar morto o autor, ou o réu, no momento do despacho da petição inicial, ou da citação, respectivamente. 3. Falta da pretensão à tutela jurídica em geral (abstrata!). 4. Não existência da parte (“parte fingida”); ainda na parte da condenação referente às custas (Wilhelm Sauer, Grundlagen, 505; contra, W. Hein, Identitdt der Partei, 1, 347). 5. Isenções. 6. Exterritorialidade (direito das gentes). Os dois últimos casos concernem à insatisfazibilidade subjetiva, à impersiguibilidade por “inatacabilidade” do réu.

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II. Existência e nulidade (“sentença nula”): 1. Incompetência do juiz do cível ratione materiae. 2. Impedimento e suspeição do juiz. 3. Incapacidade processual das partes. 4. Falta de poderes dos representantes das partes, ou dos seus procuradores, ou incapacidade processual deles. 5. Incapacidade postulacional (falso advogado, advogado nãoinscrito, ou advogado impedido — no ãmbito do impedimento —, suspenso, licenciado ou que passa a exercer atividade incompatível com a advocacia). 6. Caso do processo com infração da regra jurídica de máximo de extinções do processo e perempção do direito de demandar. . 7. Infração da regra jurídica que exige do juiz que, encerrado o debate, profira a sentença. 8. Troca das pretensões à tutela jurídica, com infração do processo. O trãnsito em julgado tem, de regra, eficácia sanatória. Não a tem, quanto a II, 1. III. Existência da relação jurídica processual e desfazimento (“sentença desfazente”): 1. Extinção do processo sem julgamento do mérito (absolutio ah instan tia). 2. Deferimento da reclamação fundada na regra jurídica que impõe ao juiz indeferir a petição inicial se manifestamente inepta, ou se ilegítima a parte, depois da citação do réu. IV. Existência da relação jurídica processual e simples cessação (“sentença sem fundo”): 1. Transação. 2. Desistência. 3. Compromisso (se permitido). V. Existência da relação jurídica processual e improcedência do pedido (“sentença com fundo ou que julga o mérito”): 1. Prescrição da pretensão ou só da ação. 2. Inexistência da pretensão (res in iudicium deducta). 3. Existência, mas eliminação parcial ou total por algum fundamento jurídico. A insistência de alguns juizes do Supremo Tribunal Federal em considerar a prescrição exceção de direito processual veio da confusão reinícola entre o direito material e o direito processual nas Ordenações. E incrível que persistissem nisso, depois do Código Civil, que pôs o assunto como de direito material. onde regras jurídicas de prescrição no Código de Processo Civil? Ao legislador é que compete determinar a qualificação dos fatos jurídicos; e ele o fez. VI. Existência e ineficácia:

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1. Aparência de processo. 2. Não-seriedade do processo ou só da sentença 3. Continuação do processo, a despeito da abertura do concurso de credores. 4. Litispendência de outro processo (Ne bis in idem). 5. Infração da coisa julgada material (Ne bis in idem). 6. Impossibilidade lógica, gnosiológica ou juridica, do pedido ou da sentença: e. g., o processo civil em que se pede ou em que se condena o serviço forçado. O que acima se disse sobre o processo civil tem aplicação, atendendo-se às diferenças típicas, ao processo criminal.

Capítulo III Classificação das sentenças § 34. Sentença declarativa 1. Conceito. A sentença declarativa é a prestação jurisdicional que se entrega a quem pediu a tutela jurídica sem querer “exigir”. No fundo, protege-se o direito ou a pretensão somente, ou o interesse em que alguma relação jurídica não exista, ou em que seja verdadeiro, ou seja falso, algum documento. E o caso típico da pretensão à sentença — à sentença declarativa, sem outra eficácia relevante que a de coisa julgada material. O que mais a caracteriza é a proteção, sem ser examinada outra pretensão que a pretensão mesma à declaração. Trata-se de pretensão, a que talvez falte ação de direito material. Ação declarativa é exercício de pretensão à sentença. A dificuldade dos não-técnicos em compreendê-la resulta do fato de ter sido empregada a palavra “ação” erradamente, no só sentido de ação, a que corresponde a pretensão à condenação, executiva, constitutiva ou mandamental, mais conhecidas. Ainda no caso da ação declaratória da falsidade ou autenticidade de documento, a “ação” corresponde ao interesse, que é protegido por lei e, pois, é direito, é pretensão. A diferença está em que a pretensão de direito material, a res in iudicium deducta, é, aí, nascida no direito pré-processual, por deficiência da concepção em direito material, antes, quando não havia regra jurídica processual especial; ou está em que prescinde dela. 2. Problema da coisa julgada material. Grande parte da dificuldade em se conceber a eficácia só declarativa (coisa julgada material) estava em que se lia “perseguibilidade judicial” em sentido de intentabilidade das ações que têm por fito a força de ato (ações executivas e mandamentais) ou o efeito executivo (ações de condenação e constitutivas), empregando-se “executivo” no senso mais largo, correspondente a “realização por ato”, à adequação prática, em contraposição a qualquer adequação no plano apenas da palavra do juiz. Ora, a eficácia declarativa é somente nesse plano, no plano do verbo, no plano do enunciado que se mantém como enunciado, e se basta. Basta-se, porque

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também a lei é separada do fato e incide; a lei começa a dominar os fatos antes de aplicar-se a eles. A eficácia declaratória e as outras eficácias distinguem-se com o se distinguem do julgamento indicativo os julgamentos imperativos. Não é imperativo para a incidência da regra: seria lei. Nem é imperativo para a realização fática imediata: seria a sentença de execução ou a de mandamento, ou de constituição; ou para a realização fática mediata: seria a sentença de condenação. A sua realização é aplicação, sem alcançar, desde logo, os fatos da vida em sua materialidade. Tal interpretação não é idealista, porque está a analisar o que se passa, como resultou da evolução histórica. A coisa julgada material, tendo como fundamento o Ne bis in idem (não como conseqUência), impõe o julgado. Se a sentença estabelece situação jurídica e impede que seja reexaminada a razão de tal estabelecimento, logicamente impõe aquela situação. A discussão sobre se a coisa julgada material tem função só positiva, ou só negativa, é sem qualquer apoio nos fatos, de um e de outro lado. Tudo se resume em disputa em tomo do fundamento, ou, se prefere, do prius lógico (a função negativa, ou a positiva?). A prioridade cabe à função negativa, se encaramos o problema do lado da sentença, que é o que mais nos importa, se estamos analisando a eficácia da sentença; cabe à função positiva, se o encaramos do lado das outras autoridades, que têm de atender à sentença. A coisa julgada material, como eficácia da sentença, abrange as duas, porque a função positiva é consequência do Ne bis in idem: conseqUência de eficácia, eficácia é. A coisa julgada formal é aquela eficácia de coisa julgada que somente diz respeito ao processo em que foi proferida a sentença. Querendo salvar a proposição, tantas vezes examinada na doutrina, de Adolf Wach (Zur Lehre von der Rechtskraft, 20 e 116), segundo a qual a coisa julgada entre partes operaria em relação a todos, Giuseppe Chiovenda (Principil, 921) caiu em novo deslocamento do problema — em vez de responder à pergunta precisa a eficácia da coisa julgada material apanha terceiros, e não só a parte? escreveu que ela prevalece perante todos, e não pode prejudicar a terceiro. Ora, a coisa julgada material nem prejudica nem aproveita a terceiro. Se C pudesse invocar, em relação com B, a coisa julgada material entre A e B, porque lhe aproveita”, B estaria prejudicado. Se a coisa julgada material entre A e B pudesse ser invocada por C, e B não fosse prejudicado, então A, que perdeu a ação contra B, perderia contra C. Essa expansão subjetiva do julgado não existe, fora dos casos de litisconsórcio e de intervenção de terceiro, que fizeram partes A, B e C, ou das hipóteses pertinentes a (a) direitos difusos, (b) coletivos e (c) individuais homogêneos, se (c) a pretensão não foi julgada improcedente por (a) e (b) défice de prova. O problema toma a figura precisa, concreta, quando se pergunta: (1) Os efeitos ditos reflexos, segundo o conceito de Rudolf von Jhering, são efeitos da coisa julgada material? A resposta afirmativa teria o valor de enunciar que os efeitos reflexos são efeitos da eficácia da sentença, porque coisa julgada material eficácia é. Porém a resposta afirmativa à pergunta (2) — Os efeitos reflexos são efeitos da eficácia da sentença? — não importaria responder-se que os efeitos reflexos são efeitos da eficácia da coisa julgada material. A questão (1) é, pois, a que primeiro nos interessa. Depois é que se há de passar à questão (2). Aquela é o problema dos limites subjetivos da coisa julgada material. Esta não chega a merecer discussão. Ora, os efeitos reflexos podem provir de sentenças constitutivas, mandamentais etc. Voltamos, assim, ao assunto do conceito. 3. Ações de estado e eficácia erga omnes. (a) Não há eficácia erga omnes de coisa julgada material nas ações de estado. O que é erga omnes, nelas, é a eficácia da constitutividade. A confusão entre as duas eficácias tem levado a erros sem conta. Imaginemos que A impugne a ação de filiação, proposta por C, que se diz seu filho, nascido de B, sua amante, e perde, por ter o filho provado que houve a coabitação, conforme os pressupostos da lei. A sentença é constitutiva e o elemento declaratório, que está implícito na condenação, suficiente para produzir coisa julgada material quanto aos artigos provados. Não tendo B sido parte, propõe ação de negação da paternidade de A, alegando que a sentença não tem eficácia de coisa julgada erga omnes; e argumenta que o interesse na eliminação de tal suspeita da sua coabitação com A é bastante, não só por ser moral, como por se tratar de filho que sairia do seu pátrio poder. B, não tendo sido parte, pode intentar a sua ação. Se ganha, entre B e A estabelece-se a coisa julgada material. Para o processo tinha de ser citado o filho, parte na ação constitutiva: a coisa julgada material entre B e C é nova, e não desfaz a que entre A e

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C se implantara; o elemento constitutivo, sim, porque, sendo C parte, se desconstituiu o seu status. Nada disso tem a ver com a eficácia da coisa julgada material, nem a constitutividade é sempre óbice a outras ações constitutivas. C continua a poder, por exemplo, exigir de A, mesmo se citado, alimentos. Como o fundamento foi a não-coabitação, C pode negar a maternidade de B, se o único elemento para a prova da paternidade foi escrito do pai. Dir-se-á que tudo isso causa complicações graves. Sim; mas derivados de não terem sido citados, no primeiro processo, a mãe, e, no segundo, o filho. Se admitimos que C propôs contra A ação de filiação, presente a mãe, B, e passou em julgado a sentença constitutiva com elemento condenatório, e, depois, D, outro filho de A alega a falsidade do parentesco — a ação de D ataca a constitutividade, e não a coisa julgada material, que é só entre partes, e D não foi parte no outro processo. A coisa julgada material da primeira sentença não é óbice ao segundo processo. A constitutividade não repugna o bis in idem; é à coisa julgada material que ele repugna. Não há exceptio rei iudicatae contra a repetição da eficácia material da coisa julgada, se houve nova sentença constitutiva. b) A sentença de separação judicial consensual — como se dá com a sentença de divórcio — não tem elemento suficiente de declaração (ou de condenação) para total eficácia de coisa julgada. Tem, porém, a eficácia de constituição negativa. A constitutividade, enquanto existe, opera; não é obstáculo a outra ação que a negue. Se os separados consensualmente não se poderiam separar de novo, não é porque o impossibilitasse a coisa julgada material, pois não teria a sentença tal eficácia, nem porque a constitutividade, ainda erga omnes, lançasse o Ne bis in idem, e sim porque não se poderia “desfazer” sociedade conjugal “já desfeita”. E preciso ter-se sempre muito cuidado com a distinção entre as duas eficácias — a eficácia derivada do elemento constitutivo e a derivada do elemento declaratório (ou implícito no condenatório). 4.Modificação da eficácia da sentença. Outro caso é o de demanda que procura obter modificação da eficácia da sentença quando não se previu a caução, que circunstâncias posteriores tornaram imprescindível, ou quando a caução prevista se tomou insuficiente. A pretensão à segurança, concretamente atendida pela sentença, também projetada no futuro como eficácia desta, faz-se valer, sob circunstâncias novas; ou passa a impor-se, uma vez que mudaram as circunstâncias sob as quais se dispensou ou se silenciou quanto à caução. É a ação de modificação da segurança. Não há qualquer ataque à coisa julgada, à sentença mesma; nenhuma infringência. A força ou efeito de coisa julgada material pode ser objeto de discordância das partes, que se resolve pela exceção de coisa julgada, ou pelo negócio jurídico de arbitragem para o exame da sua extensão, ou, até, da sua existência. Esse negócio jurídico não ofende a coisa julgada material; é negócio jurídico a respeito da pretensão à coisa julgada. As sentenças de mandamento obrigam as autoridades a que se dirige o mandado. Porém não se fale, ai, de coisa julgada material. É possível que a sentença contenha elemento declarativo (ou condenatório) suficiente para a produção da coisa julgada material, naturalmente inter partes; mas é erro falar-se de eficácia de coisa julgada material quanto àquelas autoridades, ou quanto a pessoas que não foram partes. Se alguma eficácia erga omnes tem algumas sentenças mandamentais, resulta do elemento constitutivo que possuem, em dose suficiente. Todavia este é outro assunto de pesquisa; e eficácia constitutiva não significa sempre vedação de outro exame, como pretendem aqueles que não sabem distinguir eficácia constitutiva e força ou efeito de coisa julgada material. § 35. Sentença constitutiva 1.Conceito. Quem constitui faz mais do que declarar. Quem somente declara não constitui. Quem somente declara, necessáriamente se abstém de constituir. ‘Declaração constitutiva” não seria classe de declaração, mas soma de declaração e constituição. Quando Francesco Camelutti, nas Lezioni (II, nº 71), falou de “declaração constitutiva”, cometeu o erro enorme (com razão E.T. Liebman, Eficácia e Autoridade, 28 s.) de tomar como classe de declaração a soma “declaração mais constituição”. Procedeu como o jardineiro que, tendo peras e uvas para vinho, dissesse que possui “pereiral vinícola”. A constitutividade muda em algum ponto, por mínimo que seja, o mundo jurídico. A declaração somente o altera pela posição humana de falibilidade: a interpretação e a aplicação podem ser, por erro do juiz, que é homem, diferentes da incidência. Na declaração, supõe-se que se declarou com justiça; e tal suposição foi adotada pelo legislador para a aplicação da lei, a despeito da humana falibilidade. Na constituição, também se interpreta e aplica a lei, e também se pode errar; mas, em tal caso, o erro é no plano declarativo, e não no constitutivo, que vem, logicamente, após aquele e nele está, ex hipothesi, o decisum tendo sido a declaração (1) simples motivo, ou (2) questão prejudicial, ou (3) elemento computável do decisum. No segundo caso (2), há efeito de coisa julgada material; e, no terceiro, pode haver tal efeito. São separáveis, nas sentenças constitutivas, a força constitutiva e o efeito de coisa julgada material. No fato

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de existirem tal força e tal efeito está a razão das dúvidas e das discussões em tomo de cedas sentenças quanto a serem constitutivas ou declarativas: às vezes, há maior eficácia constitutiva, e são elas constitutivas, com efeito declarativo; outras vezes, é maior a eficácia declarativa, e são declarativas, com efeitos constitutivos. Dir-se-á que melhor fora que se buscasse classificação sem esse hibridismo, sem esses campos cinzentos entre o branco e o negro; verdade é, porém, que tal atitude idealista esbarra diante da natureza compósita das realidades. O mundo não é como queríamos que fosse. A ação declaratória em que se pede a “declaração” da nulidade de uma relação jurídica, em vez da declaração da sua inexistência, é ação constitutiva negativa disfarçante; ou ocorre a troca de um dos sentidos de “declarar” por outro. “Declara-se” a nulidade do casamento ou do contrato; mas este “declara” está aí no sentido de direito material, que é o de dizer que já se constituíra, antes, alguma relação jurídica, em oposição a só se constituir, agora. “Declarar”, no sentido do direito processual, é menos e mais do que isso: é não condenar, não constituir, não executar, não mandar, mas, apenas, enunciar, autoritativamente, que existe, ou que não existe. A própria ação declaratória da falsidade ou autenticidade do documento (que é caso especial) é enunciado de fato (no sentido lógico) sobre a existência ou não-existência do conceito jurídico (autenticidade). Na sua origem, as actiones praeiudiciales bem mostravam que mais serviam ao fundamento de juízo ulterior. A declaratividade principal, isolada, foi criação posterior da técnica. Nada obsta, por exemplo, a que se peça a declaração da existência ou não-existência da pretensão à condenação, à constituição, à execução, ao mandamento; não se pode, porém, pleitear, por ação declarativa, a “declaração” da condenação, a “declaração” da constituição, a “declaração” da execução, ou a “declaração” do mandado. Vê-se bem que tudo isso baralha conceitos, mistura fatos e elementos heterogêneos, contra a natureza das coisas, revelada nesses elementos mesmos. Muito diferente é o que se passa com as ações cujas sentenças têm força constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva, e efeito declarativo. Aí, há justaposição, ou melhor, superposição (predominância de um elemento, que é a torça) entre eficácias, razão por que, a respeito dessas sentenças, se fala, acedadamente, de efeito de coisa julgada material (e. g., separação judicial litigiosa, que é ação de constituição negativa, com elemento declaratório e condenatório). O que a ação declarativa tem por fito é declarar a relação de direito (afirmativa ou negativamente), ou a autenticidade ou falsidade do documento. Não poderia por ela pedir que se declarasse (a) a existência da obrigação da companhia de estradas de ferro de indenizar o dano que, no desastre, sofre o passageiro, e (b) a importância dele. O pedido (a) ficar-lhe-ia bem; o pedido (b) excede a função declarativa, é forte demais. Tem de ser pleiteado por ação de condenação. A ação de declaração da maternidade ou da paternidade, que o nosso direito chamava, na doutrina, “ação de posse do estado de filho” (ações de turbação, cf. nosso Direito de família, 1ª ed., 303), contestáveis por aquele “que justo interesse tenha”, dependente do teor da petição, que se limita a postular a existência da filiação no termo do nascimento, é declarativa. Também são declarativas as ações em que se peça a declaração da inexistência da relação jurídica constante do registro ou do ato de reconhecimento voluntário se nunca existiu a pessoa reconhecida, ou aquela que se diz ter reconhecido. Porém não é ação declarativa aquela em que se pede a “declaração” (?) de nulidade, ainda ex tunc, de qualquer ato; porque aí relação existe, embora nula. Tal é o que ocorre com o reconhecimento feito pelo menor de dezesseis anos, pelo louco, ou surdo-mudo inábil a exprimir a sua vontade, ou “declarado” ausente, ou o que ocorria no caso de incesto ou adulterinidade, antes da edição das regras jurídicas do § 6º do ed. 227 da Constituição de 1988. Também entram em tal classe o reconhecimento com infração de regra de forma, o reconhe-cimento do filho tido como legítimo, por terceiro que se diga genitor, e o reconhecimento sem consentimento do filho, se este já era maior. Todos são casos de nulidade. Em todos estes evidentemente aparece, a mais, outro elemento que o declarativo. 2. Falsos casos de declaratividade. (a) Vejamos o caso da impugnação da legitimidade do filho, que muitos juristas têm como ação declarativa. A confusão, conforme veremos, resultou da ambiguidade do termo declarar” (tomou-se o sentido do direito material como se fosse o do direito pré-processual público ou o do direito processual). Para afastar as dificuldades, pensou-se em isolar classe nova, ou subclasse, que seria a das “ações de impugnação”. Com isso, apenas se confessava que a classe das ações declarativas era fraca para as conter. Aliás, a concepção da ação negativa da legitimidade revela a insistência privatística ou o caráter privatístico do jurista que a sustenta. Não é sem razão de ser que se invocam os Motivos (IV, 85, 95 s.) do Código Civil alemão e alguns civilistas, para serem tidas como declarativas as chamadas “ações de impugnação”. Os processualistas repelem a inclusão delas na classe das ações declarativas e a criação de classe ou subclasse nova (Paul Langheineken, Der Urteilsanspruch, 246 5.; Konrad Hellwig, Anspruch und Klagrecht, 467 s., também contra tratar-se de ação declarativa: Priedrich Oetker,

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Konkurzrecbtlicbe Grundbegriffe, 1, 579; Adolf Wach, Der Feststellungsanspruch, 29, e Zur Lebre uon der Rechtskraft, 17). Trata-se de ação constitutiva com eficácia ex tunc da sentença, com forte dose de condenação e de declaração. b) Outro caso é o da ação de separação judicial ou da ação de divórcio que também se entendeu, a princípio, fosse declarativa. Nada menos que Josef Kohler (Prozessrechtliche Forschungen, 104 s.) e Friedrich Hellmann (Klagerecht, Feststellungsklage und Anspruch, Jberings iabrbúcher, 31, 99 s.). Mas Paul Langheineken (Der Urteilsansprucb, 234 s.) pôs à mostra para sempre, o erro. (c) A ação de impugnação da herança por indignidade para herdar, dita ação de indignidade do sucessível, também foi tida com o ação declarativa. No Brasil, cresceu de monta a confusão em virtude do art. 1.596 do Código Civil, verbis ‘será declarada por sentença em ação ordinária”. Não há dúvida que a eficácia da sentença é ex tunc, o que ajudou a confusão. Foi Konrad Hellwig (Anspruch ind Klagreclit, 468 s.) quem pôs claro tratar-se de ação constitutiva (negativa), com resolutio ex tunc. Naturalmente, no terreno do direito civil, o jurista pode continuar a dizer que o indigno nunca foi henileiro, mas está a falar “depois” da eficácia constitutiva da sentença. O elemento condenatório da ação e da sentença é forte, porém não preponderante; diga-se o mesmo do elemento declaratório. Todos são vitimas, se pensam que é declarativa, da antinomia do tempo: antes de morrer, sou vivo; morto, não sou. O ato é que é nulo, mas a sentença lhe é indispensável, é ato existente e precisa ser tornado inexistente: isso ele só se toma depois de passar em julgado a sentença. Alguns confundem a eficácia constitutiva erga omnes desses julgados com a pretendida (e nunca provada) eficácia da coisa julgada material em relação a terceiros. A boa classificação evita-o. A ação de “declaração” de morte, nos sistemas jurídicos que a têm, e a de ausência, não são ações declarativas — são constitutivas. A ação do pai (ou de outrem) para impugnar a legitimidade da filiação é ação constitutiva e não, declarativa. Assim, Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 464) e Paul Langheineken (Der Urteilsanspruch, 267-269) têm razão contra Giuseppe Chiovenda (.Saggi, 1, 24). O elemento constitutivo (negativo) vem em primeira plana (e. g., no caso de ausência do marido, a situação jurídica continua). Giuseppe Chiovenda deixou-se levar pelo “outro” sentido de declarar, que também faria declarativas as ações de interdição. A eficácia da sentença é, principalmente, a eficácia (força) erga omnes da sentença constitutiva. O efeito de coisa julgada material existe, mas é secundário. A eficácia é ex tunc. Se a interdição e a ação de impugnação da filiação fossem declarativas, £como se daria baixa ou se corrigiria o registro? 3. Ações de nulidade e de anulação do casamento. Não são ações declarativas as ações de nulidade, nem as de anulação do casamento (aliter, a de não-existência ou de existência do casamento), inclusive a de nulidade do casamento por incompetência do juiz (nosso Direito de Família, 1ª ed., 41 , não aplicável ao direito do processo pré-constitutivo matrimonial Jurisdição graciosa) o principio de que o processo perante juiz cível, sem ser competente ratione materiae, existe e é nulo, porque o casamento não é ato processual civil, como não o seria a assinatura da escritura pública no tabelião. O casamento em iminente risco de vida passou a ser considerado ato processual civil, regido pela lei processual civil, para a confirmaçâo. Isto dá certa preponderância à declaratividade, no tocante à celebração 4. Solução consensual da lide. A solução consensual da lide não significa que as partes se substituam ao juiz; significa que fizeram cessar a demanda, pelo acordo, ou pela transação, ou pela desistência. Nem aquela nem esta são declarativas. Aquela é constitutiva, talvez a forte dose declarativa; esta, constitutiva e restrita ao processo, pois a lei processual não disciplinou a renúncia, relativa ao direito material. Tampouco se tem cogitado do reconhecimento, que seria declarativo. A questão do efeito ex tunc da transação é outra questão, e hoje se sabe que nenhum fundamento tem a opinião dos que só admitiam a constitutividade ex nunc. § 36. Sentença de condenação

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1. Conceito. A sentença de condenação é essencial a condenação; não se dá o mesmo com o efeito executivo. A sentença de condenação ao restabelecimento das relações conjugais não o tem. Nem as sentenças em que se condena a Fazenda Pública. Aos que entendem ser essencial o efeito executivo bastada opor mas esses casos, O elemento executivo é substituível conforme a natureza do processo (no processo penal, em vez da execução nos bens, a prisão, a privação de algum direito, como o pátrio poder, o cargo público etc.); ou eliminável, como nos casos acima referidos. Essa explicação, rente aos fatos, dispensa o conceito de sentença de condenação como “declaração de ato ilícito”, extravagância de Francesco Camelutti, nas Lezioni (mais tarde, Titolo esecutivo, Revista, 1932, 1, 154-159), “declaração das consequências jurídicas da injúria (torto)”. Algo como “vou pôr o meu vestido de paletó”. Mas paletó não se toma, com esse dizer, colete; nem calças. Condenar não é declarar a injúria; é mais: é “reprovar”, ordenar que sofra. Entra, além do enunciado de fato, o de valor. A sentença que somente declarasse ter o réu incorrido em pena seria declarativa, não condenatória. O que leva alguns juristas a falarem de declaração é o efeito declarativo contido na sentença ou junto à parte da sentença que produz a força de condenação. 2. Falsos casos de condenatoriedade em casos especiais. A sentença que decreta a resolução do contrato bilateral ou a resilição, sem culpa do réu e sem perdas e danos, não condena, preponderantemente — constitui negativamente. Se há culpa, a condenação está formulada. A sentença que marca o prazo para o adimplemento da obrigação não é de condenação — ou é declarativa, ou, se o prazo é a arbítrio do juiz, constitutiva. Se a lei atribui ao título, depois disso, força executiva, é ao titulo, e não à sentença (completativa) que se deve (sem razão, Francesco Invrea, La sentenza di condanna, Rivista, 12, 1, 46). A sentença de extinção do processo sem julgamento do mérito é de condenação, porque na relação entre réu e juiz, aquele exerce sua pretensão à tutela jurídica, e essa contém a pretensão à extinção do processo. A eficácia executiva das sentenças de condenação é só efeito, não é força. Por isso mesmo, não lhe é inerente, essencial. As sentenças condenatórias contra a Fazenda Pública são sentenças condenatórias como quaisquer outras; e no entanto lhes falta o efeito executivo, a que corresponderia a actio iudicati. A força condenatôria delas é completa; a executiva, nenhuma. Quando o Estado cria medidas como as dos pagamentos pela Fazenda Pública, que foi condenada, conforme a ordem das requisições, atenua essa falta de efeito executivo que fere, de regra, as sentenças contra a Fazenda Pública. No direito brasileiro, transformaram-se as ações de condenação, em matéria de alimentos, em ações mandamentais — particularidade técnica que revela a capacidade de invenção dos juristas brasileiros.

3. Direito Intertemporal. Pode dar-se que lei posterior corte o efeito executivo da sentença de condenação. Já trânsita em julgado . Tal lei não importa em violação da res iudicata material, nem sequer, formal . A lei nova somente cortou efeito: extinguiu a actio iudica ti, antes da sentença, ou, talvez, antes de ser exercida a pretensão a executar.

§ 37. Sentença mandamental

1. Conceito. Na sentença rnandamental, o ato do juiz é imediatamente, às palavras (verbos) — o ato, por isso, imediato. Não é mediato, como o ato executivo do juiz a sentença condenatória alude (anuncia); nem é incluso,o ato do juiz na sentença constitutiva.

Na sentença mandamental, o juiz não constitui: “manda”. Na transição entre o pensamento da sentença condenatória e o ato da execução, há intervalo, que é o da passagem em julgado da sentença de condenação e o da petição da ação iudicati. Nas ações executivas de títulos não-judiciais, essa mediatidade desaparece, de modo que o ato prima; ainda que se tenha de levar em conta o elemento condenatório, a ação é executivo. (Advirta-se que falamos sempre em

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termos de preponderãncia de eficácia.) 2. Essencialidade do mandado. Na ação mandamental, pede-se que o juiz mande, não só que declare (pensamento puro, enunciado de existência), nem que condene (enunciado de fato e de valor); tampouco se espera que o juiz por tal maneira fusione o seu pensamento e o seu ato que dessa fusão nasça a eficácia constitutiva. Por isso mesmo, não se pode pedir que dispense o “mandado”. Na ação executiva, quer-se mais: quer-se o ato do juiz, fazendo, não o que devia ser feito pelo juiz como juiz, sim o que a parte deveria ter feito. No mandado, o ato é ato que só o juiz pode praticar, por sua estatalidade. Na execução, há mandados — no correr do processo; mas a solução final é ato da parte (solver o débito). Ou do juiz, forçando. § 38. Sentença executiva 1. Conceito. Pretensão a executar, pré-processual como as outras, vai até à eficácia executiva (força) da sentença. Cumpre, porém, observar-se que há todo um desenvolvimento que se termina pelo ato de solução da dívida. Por isso mesmo, é possível a pluralidade de solução e, pois, de sentenças, no mesmo processo executivo. A continuidade e a eventual pluralidade do ato refletem-se nas execuções, em contraposição à instantaneidade unitária das outras sentenças.

A sentença favorável nas ações executivas retira valor que está no patrimônio do demandado, ou dos demandados, e põe-no no patrimônio do demandante. Pode ser pessoal ou real. A ação de despejo é pessoal; a ação executiva pignoratícia, a hipotecária e as possessórias são reais. 2. Espécies. As sentenças executivas ou restituem (sentenças restitutivas) ou extraem valor (sentenças extrativas de valor). São exemplos, respectivamente, a sentença, na ação executiva pignoraticia ou hipotecária, e a sentença, na ação executiva anticrética.

As sentenças nas ações executivas ou são pessoais ou reais.

A diferença entre a sentença definitiva na ação de execução de cognição incompleta e a sentença na ação executiva de cognição completa é apenas devida a elemento temporal, porque as sentenças, por sua definitividade e por estar ultrapassada, a respeito da sentença na ação de cognição incompleta, a fase da rion plena cognitio, são eficacialmente iguais.

A eficácia da sentença na ação de cumprimento da obrigação de declaração de vontade não é efeito anexo (sem razão, E.T. Liebman, Eficácia e Autoridade, 66): é força executiva, própria da sua classe. § 39. Eficácias probatória (a), anexa (14 e reflexa (e) 1. Distinções conceituaís. (a) Considerada em sua eventual eficácia probatória, a sentença pode ser posta em segunda plana pela prova contrária, de modo que essa vulnerabilidade exclui qualquer assimilação da eficácia probatória à eficácia anexo (ou conexa) e, o fortiori, à eficácia própria da sentença. Foi grande mérito de Adoli Wach (Hondbuch, 1, 626 s.) ter isolado a eficácia anexa, que, antes dele (e. g., A. Renaud, Lehrbuch, 472; A. Mendelssohn-BarthOldy, Grenzen der Rechtskraft, 39), andava confundida. Lafalete Rodrigues Pereira (Direito das Coisas, II, 153) e João Monteiro (Programa, III, 50 s.) que bem viram a criação do efeito pelas Ordenações Filipinas (Livro III, Titulo 84, § 14), nas pegadas próximas da Ordenança francesa de 1566 (de Moulins), art. 35, poderiam ter visto a anexa çâo do efeito, aquele em 1877, e este, ainda em 1905 (2º cd.), embora tardio de vinte anos. Não a viram. Na própria Itália, o

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interesse só foi despertado em 1930-1932, no campo internacional, por Giacomo Delitala (1930) e por Gactano Moreili (1931), e no campo interno, ao de leve, por Piero Calamandrei (Appunti sulia sentenza come faifo giuridico, Rivisto di Diritto Processuale Civile, IX, 1, 15-23). Outro estudo, mas de espirito prevenido, foi o de Salvatore Satta (Gil effetti secondari deila sentenza, Rivisto, XII, 1, 251-272). Desde 1922, no Sistema (1, 430 s.), já púnhamos o problema dos efeitos reflexos no terreno da relatividade dos direitos, das pretensões, ações e exceções. Quanto aos efeitos anexos, aqui e ali os temos referido em nossas obras. Seda útil antes de se ler essa parte reler-se o que escrevemos sobre relai-tividade dos direitos, noutros livros, principalmente nos Comentários ao Código de Processo Civil, 1, 1997, 350 s.

O simples prejuízo de fato nem autoriza a que o terceiro recorra da sentença, nem a que assista, só intervindo, nem a que se oponha. Estaria então no plano do direito, dos prejuizos de direito. Nem ao lesado de fato poderia aproveitar a alegação de que a coisa julgada material só opera entre partes: o principio apenas diz que a coisa julgada material só opera, juridicamente, entre partes; como fato, a sentença tem eficácia física, que está abaixo do tecido relacional do mundo jurídico. Todos os credores de B podem ser prejudicados, no terreno dos fatos físicos, pela sentença na ação de A contra B.

(1) O prejuízo de C, D e E, advindo da interdição de B, pedida por A, pode ser de fato, e pode ser de direito. Por exemplo, interdição de E tem a eficácia de serem nulos os atos que B praticar e, portanto, ser nulo o contrato entre B e C, D e E. Mas essa eficácia está fora de qualquer discussão sobre ser, ou não, efeito reflexo. Trata-se da eficácia direta, própria, da sentença constitutiva. Outra sentença constitutiva negativa aplicará a lei.

(2) A e B são casados e A alugou o apartamento de B a C; A e B separam-se judicialmente, sendo B condenada na açâo; B pede o apartamento para morar. C não pode pretender que B não se defendeu na ação; tem de sofrer todos os prejuizos, de fato on de direito, que decorram da eficácia constitutiva negativa da sentença.

(bi Os juristas costumam falar de efeitos anexos privatisticos, desde AdoIf Wach e Georg Kuttner até Hans Sperl (Lehrbuch, 1, 829), Rudolf PoIIak (System, 548) e outros. Mas os efeitos anexos tambêm podem ser publicísticos, inclusive de direito processual. Temos exemplo no mandado, quanto a multas previstas pelo direito privado, cobráveis pela entidade estatal, em caso de medida cautelar.

Os efeitos anexos ainda podem provir de acordo (Leo Rosenberq, Lehrbuch, 2º ed, 482; 5º ed., 672), ou de declaração unilateral de vontade (e. g., prospecto do Banco em que promete x aos que forem triunfadores em causa contra A). Uns e outros são efeitos do fato da sentença; por isso, anexos. Não são minas, nem pars, mas aliud (Rudoli Pollak, System, 548): não pertencem à eficácia própria da sentença.

Uma vez que os efeitos anexos não pertencem à coisa julgada material, não pode o juiz considerá-los de ofício, nem, a respeito deles, cabe exceção de coisa julgada. É possível mesmo que o beneficiado não tenha sido parte, nem obrigado ope legis, ou em virtude de negócio jurídico. Nenhum remédio lhe cabe contra a injustiça da sentença. Cabe aos terceiros a exceção das partes, ainda contra terceiros (Georg Kuttner, Urteilswirkungen ausserhalb des Zivilprozesses, 200). Naturalmente, a pretensão à tutela jurídica (declarativa) toca a quem quer que tenha, no efeito, interesse em ser declarada a existência ou inexistência de relação jurídica, ou de ser declarada a falsidade ou autenticidade de documento (Rudolf PoIlak, System, 549). 2. Efeitos anexos e mandamentalidade. O efeito anexo é efeito anexo da sentença e pressuposto do direito, pretensão, ação ou poder, que se crie com ele. Cumpre não se ter o efeito mesmo como tal.

O ato do juiz, pelo qual ele realiza o efeito anexo, é mandamental, e não executivo, como, sem razão, pensava Giuseppe Chiovenda (Princip II, 205, nota 1). Não como ato realizador do efeito próprio, mandamental, da sentença; mas realizador do efeito anexo, pois falta elemento próprio, suficiente, de mandamento, às sentenças de condenação. Em todo o caso, pode o efeito dispensar qualquer ato do juiz. No caso da hipoteca judiciária, uma vez que tem por fito a sequela, o elemento constitutivo, contido no mandamental, aparece.

São, por exemplo, apontados como efeitos anexos, estatísticos: a) os frutos dotais que correspondem ao ano corrente são divididos entre os dois cônjuges ou entre um e os herdeiros do outro, proporcionaírnente à duração do casamento, no decurso do mesmo ano; e daí em diante pertencem ao cônjuge (efeito anexo à sentença de separação judicial); b) a comunhão de bens dissolve-se com a sentença de separação judicial; c) a cessação da tutela, ou do pátrio poder da mãe, se o filho vence a ação de filiação; d) a dissolução da sociedade pelo fato de ter sido decretada a falência;

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e) a reparação do dano resultante da execução, sofrido pelo demandado na ação executiva, que é efeito anexo à sentença que reformou ou anulou aquela que provisoriamente se executou; f) a obliteração ex tunc da execução provi-sória, se foi anulada ou reformada a sentença provisoriamente executada; g) a hipoteca judiciária.

Tem-se argumentado que pelo menos as sentenças nos casos a, b e c são constitutivas, e a eficácia erga omnes explica o que parece efeito anexo. Assim, Lothar Seuffert e Hans Walsmann (Rommentar zur Zivilprozessordnung, 543). É fazer a constitutividade estender-se objetivamente para lá do seu objeto próprio: em a), do contrato de casamento ao contrato de dote, que é tão separado que pode ser nulo sem o ser aquele e está sujeito à pretensão à separação do dote (ação e sentença constitutivas autônomas, com efeito condenatório, que a ação de separação judicial consensual e certas ações de anulação não têm); em b), do contrato de casamento ao de comunhão, que também é autônomo, podendo ser anulada só essa parte do registro ou o contrato pré-nupcial; em c), a lei poderia, em tais casos, permitir ou determinar a continuação da tutela ou do pátrio poder, sem quebra da eficácia própria da sentença — por-tanto, o efeito é anexo; em d), a lei poderia dispor diferentemente; em e), tudo resulta de ter a lei permitido a execução provisória, por política jurídica — o que não é princípio a priori; em f), pela mesma razão; em g), é evidente a sem-razão do argumento.

Se o efeito anexo é direito, pretensão ou ação, ou simples poder, depende da lei, pois estamos, por ora, a falar dos efeitos ope legis, e não dos consensualmente ou unilateralmente criados. Nada obsta a que a lei determine que a rescisão posterior da Sentença não atinja o direito, a pretensão ou a ação anexos. Nisso não atentou Leo Rosenberg (Lehrbuch, 5ª ed., 672); e damos exemplo de lege lata: o casamento de alguém — cujo casamento anterior fora anulado ou cuja nulidade já fora decretada, ou mesmo cuja inexistência foi declarada (no sentido processual) — entre essa sentença e a que acolheu a ação rescisória, a priori não é nulo, nem inexistente.

Porque os efeitos anexos dependem da lei, nada obsta a que deles resulte direito, pretensão ou ação, ou simples poder (pode dar-se o caso de existir pretensão à tutela jurídica de tal situação). Quanto aos limites subjetivos dos efeitos anexos, nenhuma resposta a priori se tem, nem as leis têm o mesmo critério em fixá-los.

O pagamento de taxas pós-processuais da sentença é efeito anexo de direito fiscal. As taxas devidas antes são anexas àpropositura ou outro ato, tanto que, se não houver sentença, não se restituem; posto que a lei possa ligá-las à sentença, considerando-as devidas desde já. O legislador tem ampla liberdade de anexação — respeitadas as regras jurídicas constitucionais, já se vê (outra questão).

Não importa, para se saber se a eficácia é anexa, ou não, indagar-se do que era a vontade do autor, ou do réu, nem, sequer, se declarou (no sentido de “declaração de vontade”) que queria o efeito anexo. O thema decidendum é o da configuração do pedido, segundo a eficácia própria da sentença: ou a lei subonlinou o efeito anexo à sua inserção na comunicação de vontade que está no petitum (o que não é de esperar-se aconteça), ou qualquer ajuntamento dessa comunicação é um plus, que não a faz thema decidendum.

A ligação do efeito anexo pode ser a qualquer ato do juiz, e não só à sentença. De regra, é a certa classe de sentenças. Nada impede, de lege feren da, que seja a qualquer sentença: a sentença passa a ser pressuposto de fato, como, para a lei de direito administrativo, ou fiscal, o registro em repartições públicas. Não é preciso que se leve em conta a sua eficácia especifica. Não viu isso Georg Kuttner (Die privatrechtlichen Nebenwirkungen, 5), porque restringiu, demasiado, o seu assunto. Também é possível que o pressuposto para anexação seja efeito secundário mas próprio, da sentença (aliás, nesse sentido havemos de interpretar a regra jurídica segundo a qual, se da sentença resulta que há hipoteca judiciária, tem o juiz de mandar registrá-la: a hipoteca judiciária diz respeito à eficácia condenatória da sentença, seja força ou seja efeito).

Discute-se se a hipoteca judiciária já está no conteúdo da sentença, ou se é independente e autônoma. (a) Se está implícita no petitum, na sentença está; mas, se assim é, a lei de direito material, adotando-a, não só a qualificou como efeito anexo privatistico — também a concebeu como pretensão de direito material, pré-processual. Poder-se-ia divergir dessa concepção, (b) atribuindo-se a efeito anexo da sentença, privatistico, ou publicistico, mas seria o direito positivo que teria de decidir. Não há solução a priori. Terceira concepção, seria (c) a que mandasse registrar e especializar todos os bens a serem executados e fizesse dependente disso qualquer execução, mas valendo erga omnes. Ter-se-ia apenas recorrido ao expediente de à custa da pronta execução se anexar efeito erga omnes. A quarta

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concepção (d), que fizesse eficácia própria da sentença a hipoteca judiciária, teria de supor a existência de nova pretensão à tutela jurídica, além das conhecidas, ou subsumi-la na pretensão a executar. Nem essa subsunpção ocorre; nem aquela pretensão à hipoteca judiciária, pré-processual e de direito público, como pretensão àtutela jurídica, existe. São pontos que precisam ser fixados e meditados, por sua importância teórica e prática.

A hipoteca judiciária não está compreendida no petitum, nem no decisum. A lei de direito material (no Brasil, privado) anexa esse efeito à sentença, depois de passar em julgado. Assim, se, antes de ser ordenado o registro, a lei civil for revogada, não há direito adquirido à hipoteca judiciária. Tudo isso está inteiramente de acordo com as fontes históricas do instituto anexo: a) na Ordenação francesa de 566 (de Moulins), art. 35, diz-se “dês lors et à l’instant de condamnation donnée en demier resort, et du jour de la pronontiation, il serait acquis à la partie droit d’hypothêque sur les biens du condamné, pour l’effet et exécution des jugements et arrêts par lui obtenus”; b) idem, nas Ordenações Filipinas, Livro III, Titulo 84, § 14, verbis “não os poderá alhear, durante a demanda, mas logo ficarão hipotecados por esse mesmo feito e por esta ordenação”.

É falsa a afirmação de que a sentença constitutiva nunca produz coisa julgada; e falsa, porque aquilo a que se chama «sentença constitutiva” é sempre — a sentença só preponderantemente constitutiva: ao elemento constitutivo corresponde a eficácia constitutiva, provavelmente erga omnes; ao elemento declarativo, se é suficiente, a coisa julgada material.

A hipoteca judiciária é efeito anexo da sentença, efeito dependente, segundo a praxe, de ser pedido, após a sentença, pelo que obteve a condenação. Isso mostra que é efeito estranho à eficácia própria da sentença, posto que (no direito brasileiro é privatístico) pudesse ser, de lege ferenda, publicístico. Efeito anexado à sentença, pelo art. 824 do Código Civil, a que a lei processual se refere. Em consequência disso, a sentença estrangeira, sem quebra dos princípios e conceitos científicos, pode ter esse efeito anexo, se a lei do pais da situação dos bens que concede. Não há por onde se meter na pesquisa de boa classificação das sentenças, menos ainda das ações, como elemento diferenciador, a hipoteca judiciária. Se a sentença de condenação autoriza o pedido da hipoteca judiciária, tal efeito é fruto da lei, que o criou, que o regulou, que o ligou à condenação; e não da sentença mesma, ou da condenação.

A perempção do direito de demandar, por parte de quem deu causa a sucessivas extinções do processo sem julgamento do mérito, é efeito anexo, publicístico, pré-processual (embora conste de lei processual), à terceira sentença de extinção do processo sem apreciação e julgamento do meritum causae. 3. Efeitos reflexos. Pode haver (eventuais) efeitos reflexos, cuja previsão, de si só, justifique as intervenções dos assistentes, inclusive intervenções em caso de litisdenunciação, ou de litisnomeação, ou de chamamento ao processo ou de oposição de terceiro. Tais efeitos não são os da coisa julgada entre as partes, mas exatamente os que adviriam de atos processuais, como a penhora, ou de sentença, que tratasse a matéria só entre as partes. Essas figuras processuais, do interveniente-assistente, do litisdenunciado, do litisnomeado, do chamado ao processo e do oponente, não estão sujeitos à coisa julgada material; e no entanto a lei supõe o interesse delas em intervir. Também o recurso do terceiro prejudicado pode fundar-se nessa previsão do efeito reflexo.

Que efeitos são esses? Salvos os casos de eficácia erga omnes da sentença constitutiva, executiva, ou mandamental, têm de ser efeitos decorrentes da repercussão da coisa julgada ou da condenação no mundo jurídico, provavelmente da diferença entre o que se acreditava ser a relação de direito material e o que se declara, na sentença, como decisum. Ainda a possibilidade de haver sentença que aplique injustamente, ou a possibilidade de que erre quem crê justa a sua situação, mais ou menos ligada àde outrem, são as causas de repercutir na esfera de terceiros a decisão inter partes. Não se trata de efeitos da coisa julgada, nem da condenação, mas de efeitos da sentença, não anexados por lei, mas tomados inevitáveis, e. g., pela existência da pretensão do terceiro que depende da existência da pretensão de alguma das partes. No fundo, a diferença entre os efeitos anexos e os reflexos — que chamariamos conexos, se a palavra “conexão” não tivesse sentido mais técnico e menos comum — está em que a lei quanto àqueles, intencionalmente os cria, ocorrendo certas circunstâncias relativas aos bens da vida, e, quanto a estes, é a vida que os cria, devido à entremistura das incidências das leis. A nexidade é comum àqueles e a estes: ali, propositada; aqui, Ocasional

Certamente, há “terceiros” que teriam de sofrer a sentença entre partes devido a ter de ser única e uniforme para partes e para ele a sentença. Mas esses “terceiros” são litisconsortes necessários e unitários: só são terceiros porque não começaram a demanda, ou não foram os visados pelo autor como réus. A respeito destes, os efeitos não são reflexos; são próprios — são força, ou eficácia especifica, própria da classe de sentença de que se trata. Por isso mesmo, se a

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parte interessada não promove a citação deles, o processo é extinto sem julgamento do mérito.

A existência de eficácias anexa e reflexa e de eficácia erga omnes, não ligadas a coisa julgada material, tem levado a teorias falsas sobre a coisa julgada. Exemplo:

1. Direito material: Inválido o negócio jurídico entre A e B, também ficam invalidados os atos posteriores ligados a ele; o mesmo ocorre em caso de resolução, de resilição, de rescisão ou de revogação, donde a regra Resoluto iure dantis, resolvitur lus accipientis, a que as leis criam exceções.

II. Direito processual: A coisa julgada somente opera inter partes: portanto, se a sentença nos casos 1 tem eficácia ex tunc — processualmente há o problema de se saber até que ponto o julgado atinge os terceiros.

III. Direito público (supradireito civil e supradireito processual): O enunciado do direito material não determina que a sentença opere contra todos, ou contra terceiros, pelo fato de ser ex tune; o conceito de sentença não pertence ao direito material, o direito material supõe que a incidência baste ao direito. A vida, os casos concretos e a condição humana impõem que os Estados e os homens se satisfaçam com a sentença que resistiu aos recursos. Por isso mesmo, não poderia, sem prejudicar a força da lei, conceber a coisa julgada material erga omnes. As leis processuais, primacialmente, procuram obviar a esses inconvenientes de não ser sempre parte forçada o que teria interesse no resultado da ação; mas o seu êxito é restrito, e não exaure aqueles inconvenientes. De modo que o problema dos limites subjetivos da coisa julgada material fica de pé. (Com razão, nesse ponto, E. T. Liebman, Eficácia e Autoridade, 134, contra Manuel Aureliano de Gusmão, Coisa Julgada, 2º ed., 61 s.

No caso de direito de regresso, ou a) o direito material faz esse regresso incólume, ainda se houve a propositura da ação do ou contra o titular do direito de regresso, sem este provocar o obrigado eventual a prestar em regresso, ou b) não o faz. Nos casos a), a pretensão de direito material contra o terceiro existe, criada, talvez de lege ferenda erradamente, e existe a pretensão à tutela jurídica. O direito processual nada tem com isso, porque não se levanta qualquer questão de coisa julgada. Quando o titular da pretensão de regresso exerce a sua pretensão à tutela jurídica, invoca o fato de ter perdido na ação, e não a coisa julgada material. O legislador reputou, bem ou mal, suficiente esse fato: ter tido sentença contra. Nos casos b), o titular do direito ao regresso provoca o eventual obrigado (e. g., requer chamada à autoria). Não há questão de coisa julgada material em relação a terceiros, porque, a hypot hesi , o “terceiro” não o é — foi chamado à relação jurídica processual. Não há resposta a priori, uniforme, para os casos a) e b). Nem problema de extensão da coisa julgada material; há apenas o problema de definição de quem é parte.

Quanto às obrigações solidárias, ativa ou passivamente, não se pode falar em extensão subjetiva da coisa julgada material (João Monteiro, Programa, 111, 270, aliás citando texto de Petro Cogliolo sobre co-realidade); nem, o fortiori, do ser extensiva aos devedores solidários a coisa julgada material favoráuel (Paula Batista, Teoria e Prático, §§ 188 e 183), o que importaria admitir a extensão da coisa julgada secundum eventum litis, e não pro et contra (cf. Adolf Wach, Zur Lehre von der Rechtskraft, 78; A. tun Mendelssohn-Bartholcly, Grenzen der Rechtskraft, 332).

Quanto aos fiadores, é de repelir-se a extensão da coisa julgada material a eles, como entendia J0ã0 Monteiro (Programa, III, 270), bem como a eficácia da sentença favorável (Paula Batista, Teoria e Prática, 3ª ed., §§ 188 e 183). Não há lugar para essas proposições hoje tidas como falsas. Se o juiz do processo em que é parte o fiador consulta o julgado do outro processo, a sua conduta restringe-se a decisão para evitar que se sirva de processo para vinculação ou obtenção de fim proibido. Não cabe falar-se, nem sequer, de inversão do õnus da prova (sem razão a comparação de Otto Bachmann, Das rechtskrdftige Zivilurteil, 55): o ônus da prova “impõe-se” ao juiz; é ligado à eficácia probatória. O juiz não está adstrito a preferir o julgado inter alies, por ser julgado; pode preferi-lo, como apreciação sua, dentro do seu livre convencimento. Aliás, o mesmo se passa a respeito dos devedores solidários e dos credores solidários. Se alguma lei atribui à perda da ação pelo credor solidário, ou pelo devedor, ou pelo devedor principal, a extinção ou nascimento de alguma pretensão ou da pretensão do co-credor, ou do co—devedor, ou do fiador, éassunto do direito material e não do direito processual, conforme dissemos a propósito do direito de regresso.

O que acima expusemos serve-nos à classificação das ações e à classificação das sentenças pela eficácia daquelas e destas. As ações e as sentenças têm de ser classificadas por sua eficácia própria, e não pela eficácia anexa ou pela eficácia reflexa que delas deriva. Daí a importância, para o juiz, o advogado, o intérprete e o cientista, de prévia decantação do material. Tem-se de classificar as ações e as sentenças pela eficácia que apresentam, mas essa eficácia

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não há de ser a eficácia anexa ou reflexa. Havemos de distinguir, preliminarmente, o que é eficácia própria e o que é eficácia anexa ou reflexo. Só a eficácia própria ématerial para a classificação quer das ações, quer das sentenças. § 40. Publicação da sentença 1. Audência e publicidade da sentença. O princípio da publicidade do proferimento estabelece que, proferida na audiência a sentença, se tem como publicada. Conceme, porém, a eficácia da sentença proferida na audiência após o encerramento do debate As decisões proferidas noutras ocasiões caem sob o princípio da necessidade de conhecimento (e. g., intimação de parte) ou sob as regras especiais a elas. Aquele concerne, portanto, ao começo da existência da sentença ditada após a audiência oral. À semelhança das sentenças do primeiro grau de iurisd.ção as proferidas em sessão de tribunal começam a existir de momento em que se anuncia o resultado da votação e julgamento0 e não da sessão de conferência, ou da publicação do acórdão no órgão oficial. Existe, assim, trato de tempo entre o dia em que principia a existir e o dia de que se conta o prazo do recurso. Quanto ao decisum, a imodificabilidade pelos juizes é desde o começo da existência; a corrigibilidade dos fundamentos (não do até a conferência do acórdão; a impugnabilidade, dewe que se publica no órgão oficial. Esses três momentos se juntam num só quando a sentença é a que se tem por publicada na audiência em que se profere, salvos os casos previstos em lei.

A sentença que tem de ser proferida em audiência ou publicada em audiência só é válida se se observou a exigência É substancial o ser em audiência. A opinião contrária da Câmara Cívil do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul - insustentável (25 de junho de 1942, RF, 92, 496).

Disse, com acerto, a V Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, a 17 de julho de 1951 (D. da J. de 29 de julho: “A publicação tem de ser ato funcional da autoridade que instruiu o processo e positivou na sentença a solução jurídica justa das questões suscitadas e debatidas, para o que a lei do processo impõe o respeito à oralidade concentrada, de cujo sistema são essenciais a predominância da palavra falada, a imediatidade e a identidade física do órgáo judicante”) e a 22 de abril de 1952. 2. Audiência oral e sentença. As sentenças ditadas ao fim da audiência oral, ou quando resultem de terem as partes dispensado e o juiz deferido o requerimento de dispensa do debate-oral, são eficazes desde a publicação na audiência, se delas não cabe recurso. Quer se trate de audiência ordinária, quer de audiência especial, quer de continuação noutro dia, quer na sede do juízo, quer fora dele. A publicação contém intimação das partes, ainda que estejam ausentes, se previamente intimadas. É da publicação que se conta o prazo para a interposição do recurso, se na audiência se profere a sentença. Não assim para a oposição de embargos infringentes, embargos de declaração ou embargos de divergência, ou para a interposição de agravo, apelação, recurso ordinário, recurso especial, recurso extraordinário ou outro previsto na legislação processual, porque de hipótese não se dando a publicação do decisum em audiência oral, o prazo será contado da intimação subsequente à publicação. Quanto à execução, esta depende da exequibilidade da sentença, portanto — do efeito só devolutivo do recurso ou do trânsito em julgado. Existe, assim, grande diferença entre o momento de que se vem para a existência formal da sentença quanto às partes e o momento em que se pode iniciar a execução da sentença. Quanto ao juiz ou ao tribunal, cabe saber-se se pode ser modificada no intervalo entre o lançamento ou ditado e o começo do prazo para o recurso, momento nenhum no caso de sentença apelável. As proferidas por tribunal são imodificáveis desde que o presidente proclamou o resultado; e não desde a conferência do acórdão ou da publicação no órgão oficial, posto que de tal publicação se conte o prazo para a oposição de embargos infringentes do julgado, ou de declaração, para a interposição do recurso ordinário, especial ou extraordinário, e para a oposição de embargos de divergência em recurso especial e em recurso extraordinário. § 41. Decisão total e decisão parcial 1. Sentença e questões decididas. As teorias sobre a construção da coisa julgada são muitas: a ficção da lei (E. von Savigny, Joseph Unger), sem que dai se pudesse tirar explicação, por exemplo, para a rescisão do julgado

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processualmente válido e injusto, sendo de afastar-se ficção legal atacável; b) lei concreta ou lex specia lis (Oskar BUlow), a que se há de fazer a mesma crítica; c) simples economização da renovação dos processos (J. Chr. S. Schwartz, Konrad Hellwig, E. Bõtticher), o que de si só não justificaria tratarem-se igualmente a decisão justa e a injusta; d) regra de pacificação (Julius Binder); e) necessidade de segurança extrínseca, como sempre entendemos (assim, Eduard Bematzik, Franz Klein, A. Lõffler, Hans Sperl, Richard Schmidt, Rudolf Pollak). Alguns, como A. 5. Schultze e François Gény, pensaram em praesumptio iuris et de iure. A perfeição, oriunda da oW tenção possível <crescente) da segurança intrínseca ou justiça de direito material, é fim, e não elemento de definição.

A falta de legitimação ativa em determinado processo não impede a propositura de outra ação (2º Turma do Supremo Tribunal Federal, 12 de dezembro de 1947, RT 184, 412). 2. Eficácia setencial e coisa julgada. Pretende-se que a sentença tem “força de lei”, nos limites da questão decidida. Certo, a coisa julgada, como a lei, tem de ser reconhecida pelo juiz; porém não de ser conhecida. O iura nouit curia nunca seria aplicável a sentenças. Demais, a força material da coisa julgada, se tem de ser levada em conta pelo juiz, de ofício, precisa ser provada em caso de dúvida, e não impede às partes a renúncia às consequências dela, nem, sequer, à transação sobre ela, ou de lançar mão do negócio jurídico de arbitragem para o exame da força material da coisa julgada. Foi o Projeto italiano de L. Mortara (1926) o responsável pelo estranho emprego da expressão “força de lei” (‘lona di legge”) em textos legais. Por onde se vê como o erro de terminologia ou de conceito, que se comete num país, pode ir estalar no sistema jurídico de outro.

O que se decidiu e chegou a ser coisa julgada impõe-se ao futuro, pela firmeza, estabilidade (necessária à ordem extrínseca), que se fazem indispensáveis para se pôr termo à vacilação, à dúvida, ou ao distúrbio, oriundos da instabilidade quanto à verdade intrínseca <dois conceitos que pusemos bem claros nos Blãtter fíir vergíeichende Rechtswissenschaft sind Volkswirtschafts recht de Felix Meyer, em 1922, com o artigo Rechtssicherheit und innerliche Ortnung”. O que ficou sacrificado pela apreciação errada dos fatos, ou pela má aplicação da lei, permanece, com o único corretivo, excepcionalíssimo, da ação rescisória de sentença, tendente a dar válvula ao amontoamento de aplicações de leis que não incidiram, ou de não-aplicações de leis que incidiram, ou de casos graves quanto ao órgão do Estado, que entregou a prestaçao jurisdicional, ou de ofensas exatamente à coisa julgada. O que épreciso é que se acabem as controvérsias, a insegurança, o pisar e repisar das questões; a isso serve a coisa julgada material. A psicobiologia explica-a como necessidade de que as descargas aos estimulos combativos tenham fim. Por outro lado, a força julgada material impede as decisões contraditórias. Mas dai a se assimilar à força da lei a força da coisa julgada longa distãncia vai, e a expressão a que nos referimos é, pelo menos, inelegantia juris. 3. Sentença sobre questão prejudicial. A ação prejudicial não é só a “ação”, no sentido do direito processual, com o só nome do juiz e a intentia, com que ainda se conformavam B. Windscheid (Lehrbuch des Pandektenrechts, 1, 9º ed., 195 s.) e outros. No plano do direito material já se estabelecem situações em que direitos, pretensões ou ações supõem a existência de outro direito, ou de outra pretensão, ou de outra ação, de modo que a vereda foi aberta no direito comum, saindo—se da casuística romana (praeiudicia relativos ao estado da pessoa, praeiudicia relativos a direito das coisas). Hoje, temos de reconhecer que a prejudicialidade já exsurge no direito material e que há a pretensão à tutela jurídica, de cujo exercício resulta ter o juiz de decidir quanto ao praeiudicium. 4. Sentença em ações de medidas preuentivas. As ações de depósito preparatório dependem, em muito, da ação de que são prius. De modo que há certa variabilidade quantitativa nos elementos eficaciais secundários. Tem—se de dar os pesos típicos. O elemento mandamental decresce, em relação aos depósitos preventivos e ao seqüestro; o constitutivo cresce; o elemento executivo é o mesmo, sendo voluntária a execução nos depósitos preparatórios, e forçada, nas medidas preventivas. As cauções preventivas e as preparatórias distinguem-se quanto à maior declaratividade e à menor mandamentalidade daquelas. (Cumpre advertir em que não são cauções preparatórias as cauções preventivas prévias ou pré-pendenciais.)

Capítulo IV

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Tutela jurídica pelo Estado § 42. Processo e função social 1. Direito e processo. O direito, como a economia, a política, a moral, a arte, a religião e a ciência, além da moda, é processo social de adaptação. Cada um deles possui qualidades específicas, suscetíveis de estudo por parte do sociólogo. O cientista que particularmente se ocupa com um deles pode submetê-lo à observação e à experimentação, segundo métodos sociológicos, ou pesquisar-lhe os critérios com que se desenvolve, como é o caso do jurista ao tratar dos assuntos jurídicos. Todavia, dentro do próprio dominio especial de cada um dos processos adaptativos, se faz sentir a atuação do que poderíamos denominar a evolução dos métodos, de modo que, ainda no terreno das regras jurídicas, das regras morais, da prática política, das convicções e ritos religiosos, da técnica econômica ou artística, bem como no plano dos próprios sentimentos e do pensar, há a passagem de periodos rudimentares, brutalmente empíricos, para outros períodos de maior dose de intervenção da consciência, quer pelo raciocínio, quer pela introdução do critério científico.

O processo civil, por exemplo, é produto recente na história humana. Nele vemos retratados os séculos que vêm da Grécia e de Roma para cá; e nele observamos as transformações por que vem passando, através deles, a consciência humana. exemplo, em crescente introdução do elemento científico em todos eles. Compreende-se isso pelo papel, realmente extraordinário, que desempenha a ciência, com a característica de ser o processo social de adaptação mais rico de indicatividade e mais esvaziado de imperatividade, o que permite a utilização dos seus indicativos por parte dos imperativos dos outros processos de adaptação, e de ser aquele em que está, por bem dizer-se, o zero de instabilidade e de frenamento; enquanto a economia, a política e o próprio direito instabilizam, e a arte, a moral e a religião frenam, a ciência é como se fosse abstenção de frenar e de instabilizar. Isso resulta, no campo social, do caráter mesmo do processo específico da ciência, que se realiza por meio da procura e da exposição de indicativos. 2. Justiça de mão própria. Diante dos bens da vida, a forma primitiva de solução dos conflitos entre os homens, ou entre as entidades personificadas, foi a luta material. Ainda hoje, em povos que correspondem a tempos passados, persistem formas simbólicas das decisões por atos próprios. A medida que o direito se substitui ao regramento com base exclusiva na força, não só aparece a magna função do juiz, como tambem princípios surgem que punem severamente o fazer-se justiça, por mais exata que seja, com as próprias mãos. Isso não significa que tenha desa-parecido de todo, ainda fora do terreno da posse, como se dá com os atos permitidos da cobrança direta e com a ocupação de bens abandonados. Sobre o assunto, Tratado de Direito Priuado, II, §§ 182, 191-201; III, § 346, 3; VI, §§ 628, 10, 650, 2; X, §§ 1.069, 1.092, 1.100, 1.114, 1.117, 2, 1.118, 5, 1.121-1.125; XVII, § 2.104. § 43. Conceito e natureza da pretensão à tutela jurídica 1. Justiça de mão própria e tutela jurídica. (a) Desde que o Estado eliminou e proibiu a justiça de mão própria, monopolizando a distribuição da justiça, salvo pouquissimas exceções àquela eliminação ou a este monopólio (e. g., arbitragem), tinha de prometer e assegurar a proteção dos que precisassem de justiça, isto é, prometer e assegurar a

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pretensão à tutela jurídica. Toda técnica legislativa, administrativa e judiciária se empenha no cumprimento desse propósito. Com isso, o Estado realiza o direito objetivo e pacifica. O Poder Judiciário foi criado para isso e o processo judiciário tem por fim organizar a provocação e a prestação de justiça. Se a incidência das regras jurídicas, criando os direitos, os deveres, as pretensões, as obrigações, as ações e exceções, bastasse à realização da justiça, não se precisaria da justiça privada, nem da justiça estatal. Mas a incidência só se passa no mundo do pensamento, embora impecavelmente aconteça; e os homens e o próprio Estado nem sempre apreendem, em seus pormenores, em sua inteireza, aqueles direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções — razão por que se tem de proceder à aplicação (ad, plicare, pôr nas dobras, plica, provavelmente depois de abri-las, de ex-plicare), quando à incidência não corresponde a realidade da vida. Tal aplicação, que foi privada, e, depois, iudicium privatum, se fez estatal, ou se conservou justiça de mão própria ou arbitral onde o Estado o permitiu.

(b) Seria absurdo tentar-se fundir a pretensão que nasce do direito civil ou de outro ramo do direito material e a pretensão à tutela jurídica, se bem que o Estado enuncie que a todo titular daquela correspondente a titularidade desta. Tem pretensão à tutela jurídica quem foi ofendido pelo passante da rua, embora venha este a provar, em suas alegações, que exercia, regular-mente, direito seu.

(c) Ao longo da história, não se podem eliminar as épocas em que o Estado não tinha a função de julgar ou em que apenas integrava a forma das escolhas de juizes, ou dos compromissos. Quando monopolizou a justiça, prometeu prestá-la a quem a tivesse, e também isso não se pode eliminar. Não depende da opinião dos juristas existir, ou não, a pretensão à tutela jurídica. Se não existisse, não teria o Estado o dever de julgar; e tem-no. E mais: tem a obrigação de julgar, através de seus órgãos, se alguém exerce o direito correspondente àquele dever.

O conteúdo e a finalidade da pretensão à tutela jurídica, que é de direito público, consistem na obtenção da tutela jurídica. Dirige-se contra o Estado, quer a exerça o autor, quer o réu. Se o réu atende ao pedido do autor, extingue-se a pretensão ou a ação de direito material, e apenas fica sem objeto a pretensão à tutela jurídica e, portanto, a pretensão processual, que nasceu do exercício dela. Não se dirige contra o demandado, se dela étitular o autor, nem contra o demandante, se dela é titular o réu; nem contra o demandante e o demandado, se dela é titular o terceiro. Só se satisfaz a pretensão à tutela jurídica se o Estado faz a prestação jurisdicional prometida. Por outro lado, a pretensão à tutela jurídica pode existir ainda onde não se trate de pretensão a sentença de condenação, ou com carga forte imediata ou mediata (4, ou 3) de condenatoriedade. Aqui, graças à classificação das ações pela eficácia preponderante, atendendo-se aos demais elementos do peso eficacial, podemos evitar, por impreciso, dizer o que escapou a Leo Rosenberg (Lehrbuch, 5º ed., 401), quando escreveu que a pretensão serve de base a todo procedimento, ao passo que a pretensão de direito material só às demandas de condenação e assim por diante. 2. Finalidade do processo; função judiciária; petição e demanda. (a) A finalidade preponderante, hoje, do processo é realizar o Direito, o direito objetivo, e não só, menos ainda precipuamente, os direitos subjetivos. Na parte do direito público, tendente a subordinar os fatos da vida social à ordem jurídica (sociologicamente, a prover ao bom funcionamento do processo de adaptação social que é o Direito), uma das funções é a da atividade jurisdicional. (Dissemos uma das funções, porque muitas outras existem, como a polícia preventiva, a fiscalidade, a administração e a própria atuação educacional do Estado.)

(b) Desde que a natureza do Estado obrigou, se não à extinção, pelo menos à grande diminuição da possível justiça de mão própria, impôs-se-lhe prover à distribuição dos julgamentos onde quer que se faça preciso restaurar o direito ferido. Seria erro crer-se que a organização judiciária é consequência necessária do direito objetivo. Não seria impossível a concepção romana primitiva, nem a estrutura de vida social em que as ofensas aos direitos ficassem entregues inteiramente a árbitros, portanto a terceiras pessoas que não são órgãos estatais.

O Estado só responde e só se interessa pela função judiciária dentro da sua esfera. O direito objetivo que ele aplica é o seu ou de outro Estado; daí se vê que não existe a ligação necessária entre o direito objetivo e o aparelho de justiça. O processo não é mais do que o corretivo da imperfeita realização automática do direito objetivo. Daí dizerem muitos juristas que é meramente instrumental. Outros vão além: consideram as regras jurídicas processuais como secundárias, inconfundíveis com as de direito material, tidas por primárias. Legislação e Justiça seriam funções sucessivas, em ordem decrescente. Não é aqui o lugar para se criticar tão defeituosa compreensão da atividade jurisdicional, nem para se chamar a atenção, o que seria fácil, para a arbitrariedade separativa que faz do legislador o único foco da elaboração jurídica, e da justiça atividade de segunda plana, mecânica e incapaz de criação. A base de tudo isso está a inadmissível identificação de direito e lei. O legislador faz a lei. O direito é feito pelo legislador e por outros aparelhos jurisferantes, dentre os quais está o juiz, desde que não se apague a origem democrática da lei,

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princípio básico nos países civilizados. No momento em que alguém se sente ferido em algum direito, o que é fato puramente psicológico, o Estado tem inte-resse em acudir à sua revolta, em pôr algum meio ao alcance do lesado, ainda que tenha havido erro de apreciação por parte do que se diz ofendido. A Justiça vai recebê-lo, não porque tenha direito subjetivo, de direito material, nem, tampouco, ação: recebe-o como a alguém que vem prestar perante os órgãos diferenciados do Estado a sua declaração de vontade, exercendo a sua pretensão à tutela jurídica. A petitio não é mais do que ato jurídico processual, como existem os atos jurídicos de direito civil, de direito comercial, de direito administrativo, de direito das gentes. A justiça de mão própria foi a justiça primitiva. Mas, a pretexto de justiçar, o mais forte fazia prevalecer o que lhe interessava. Aos poucos foi-se introduzindo a escolha de juiz e, depois, a vigilância estatal para essa escolha. A justiça estatal, tal como é hoje, resulta de desenvolvimentos milenares. À medida que se acentuava e se estendia, proibiram-se os atos de justiça de mão própria. A substituição desta por aquela processou-se mediante a assunção da tutela jurídica pelo Estado, que a prometia e criava os órgâos necessários a ela. 3. Petição e direito a que o estado preste justiça. A petitio contém elemento de comunicação de vontade, que é o desejo de solução à demanda, comunicações de conhecimento, que são as afirmações em juízo (aí, na petição inicial); mas o que prepondera é a declaração de vontade, com que se estabelece o ato jurídico de direito público entre o Estado e o autor, depois entre Estado e réu. Teremos ensejo de explorar e usar o conteúdo dessas verdades, a que a ciência do direito processual conseguiu chegar. Mediante tal explicação, fica sem pertinência o espanto daqueles que se detinham em excogitar o problema de ir alguém a juízo sem razão, isto é, sem pretensão de direito material. Houve quem pensasse que a coerência ordenava fossem punidos todos aqueles contra os quais se pronunciassem os julgados definitivos. Nem isso se dá, nem seria possível se desse sempre, porque o Estado só organizou a lide judiciária com o intuito de pacificação, como sucedâneo dos outros meios incivilizados de dirimir as contendas, e o de realização do direito objetivo, que é abstrato. Paz, mais do que revide, é a razão da Justiça. Existe, pois, direito público subjetivo a que o Estado, por seus órgãos, preste justiça. É o direito à prestação jurisdicional. Ou, melhor: a pretensão à tutela jurídica, de que é espécie a pretensão à resolução judicial. O sujeito ativo é aquele que vai a juízo, o sujeito passivo é o Estado ou, por de, seus órgãos. A mesma relação pode ser de direito privado no caso dos árbitros, quando a declaração de vontade dos que se submetem põe no lugar do juiz estatal o juiz extra-estatal. Por vezes, o Estado leva até aí o seu interesse pela justiça e organiza o próprio juízo arbitral, cercando-o de regras de direito processual, portanto de direito público. O individuo, que vai a juízo, declara o que pretende (petitio), alega ter direito subjetivo, ou pretensão, embora o direito caiba a outro, e termina por pedir que os orgãos do Estado apliquem o direito objetivo. O Estado é duplamente interessado em tal função: mediante a atração dos que se crêem lesados, ou que crêem ofendido direito cuja ação lhes caiba, propugna a paz; mediante a oportunidade, que se lhe dá, de dizer ou redizer o direito objetivo e realizá-lo, promove a plenitude do processo social de adaptação, que é o Direito. Se o que veio perante o juiz, com a sua declaração de vontade, e suscitou, assim, o ato jurídico—processual, tinha direito subjetivo de direito material, ou não o tinha, dispunha de pretensão, ou não dispunha, é indiferente à função integradora da ordem jurídica, que tem a Justiça. Por isso, o que usa de remédio processual exercita pretensão preexistente: além do direito de estar em juízo, a pretensão à tutela jurídica, conferida, conforme os tempos e os lugares, ora a todos os que se acham no pais, ora só aos domiciliados, ora só aos nacionais, ora a parte dos nacionais. Bastaria tal fato para mostrar que os princípios que regem o direito processual não coincidem com os que governam o direito material. O que comparece para pedir a indenização do dano sofrido exercita o direito público de inxocar a justiça (pretensão à tutela jurídica), ou pedindo apenas sentença (Urteilsanspruch) ou já pedindo execução (Vollstreckunsgsanspruch), entrega sua pretensão à forma processual adequada (obrigatória ou facultativa) e quer que, exercitada a acho, se lhe dê ganho de causa quanto à pretensão de direito material, talvez pretensão sujeita a exame apenas para os efeitos declarativos da sentença. Demanda é o ato juridico com o qual o autor põe o juiz na obrigação de resolver a questão, ainda que seja “se cabe a constituição ou mandamento, ou a execução”. A base da sua legitimação para esse ato jurídico estão a capacidade de

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ser parte e a necessidade da tutela jurídica (uma e outra pré-processuais). Da demanda é que surge o dever concreto de resolver o de dar sentença favorável é dependente de ser fundada (“procedente”) a ação. 4. Exercício da pretensão à tutela jurídica e jurisdição. Todo o exercício da pretensão à tutela jurídica supóe dever do Estado de fazer a prestação jurisdicional, qualquer que seja esta: declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental, executiva; de sentença ou em execução forçada; em cognição completa, ou em incompleta cognição; quanto a decisão definitiva, ou não; em processo de medida constitutiva, assecuratória ou não; de simples aplicação da lei, ou de arbítrio judicial, ou de desempate, ou de escolha de solução. O dever existe ainda se o juiz apenas há de dizer que não tem pretensão de direito material, res in judicium deducta, o autor ou o réu. Há dever de prestar a decisão, segundo as regras jurídicas processuais. Jurisdição é a atividade do Estado para aplicar as leis, como função específica. O Poder Legislativo, o Poder Executivo e os próprios particulares aplicam a lei, porém falta a todos a especificidade da função. Quando A e B acordam em que B reduza a escrito e que prove a dívida de B a C, A e B aplicaram lei, sem terem função especifica de aplicá-la, sem jurisdição. Antes de ter o Estado monopolizado a função de julgar, havia a justiça de mão própria, mas essa justiça ainda não era aplicação da lei como função específica. Cumpre ainda observar-se que o próprio Poder Legislativo aplica as leis. A cada momento aplica regras jurídicas constitucionais; porém não só as regras jurídicas constitucionais são aplicáveis pelo Poder Legislativo: também aplica regras jurídicas que ele mesmo fez e, não raro, atendendo a atos do Poder Executivo, no que este podia criar regras jurídicas, aplica regras jurídicas que provêm de atos desse poder público. A especificidade da função de julgar, atribuida ao Estado teve por fito impedir a desordem, os excessos (e, pois, injustiças) da justiça de mão própria, e assegurar a realização menos imperfeita possível (em cada momento) das regras jurídicas. Daí as regras jurídicas penais que colimam impedir que as pessoas retomem a aplicação da lei aos casos controversos ou dificílmente resolúveis, por si mesmos — o que, certamente, no sentido da evolução social em todas as latitudes da Terra, seria regressão grave. Os pressupostos da tutela jurídica somente podem ser os pressupostos para que o Estado tenha de julgar, não os pressupostos para que tenha de julgar favoravelmente ao autor ou ao demandado, ou ao terceiro, que foi contra o demandante e o demandado. Porque, se se chega até aí, se misturam pressupostos da tutela jurídica com pressupostos da pretensão de direito material. 5. Ineliminabilidade do conceito de pretensão à tutela jurídica. Os argumentos maiores dos que negam a existência da pretensão à tutela jurídica são os que consistem em se procurar apagar a diferença entre os pressupostos processuais e a pretensão à tutela juridica, com a alegação de não se terem de examinar aqueles e esta, no tocante à possibilidade da sentença de fundo. Se falta algum daqueles, ou esta, não se pode decidir o mérito (certos, Adoli Wach, Der Feststellungsansprucb, 26; e O. Schuler, Der Urteilsanspruch, 46 e 73). Mas o valor de tais argumentos é nenhum, porque os pressupostos da tutela jurídica têm de vir, conceitualmente, antes dos pressupostos processuais e são, por isso mesmo, também eles, pressupostos processuais. Não há exigência pré-processual que não seja também processualidade. Dai a indiferença prática, que se alardeia entre pressupostos da tutela jurídica e pressupostos processuais. Não há processualidade sem se haver admitido a pré-processualidade; pois a própria pretensão processual é efeito do exercício da pretensão à tutela jurídica. Os que reconhecem quanto contribuiu a concepção da pretenção à tutela jurídica, para o direito processual dos liames à privatística, e falam do conceito de necessidade da tutela jurídica como indispensável, ou caem em superada teoria do direito público, anterior à revelação dos direitos públicos subjetivos e das pretensões de direito público, ou mal encobrem a pretensão à tutela jurídica, que eles confundem com o efeito do seu exercicio, a pretensão processual. Não se trata de expediente simplesmente construtivo. Quando se acrescenta o adjetivo “favorável” a “sentença”, nas expressões “pretensão à sentença favorável”, “prestação de sentença favorável”, falseia-se o conceito de pretensão à tutela jurídica, porque (a) o Estado não prometeu sentença favorável, prometeu sentença, prestação jurisdicional, (b) tanto o Estado não prometeu sentença favorável que autor e réu, ou autor, réu e terceiro têm a pretensão à tutela jurídica, (c) quando o Estado decide, desfavoravelmente, não nega que se tivesse e se haja exercido a pretensão à tutela jurídica, nem nega que tivesse sido admissível e admitida a pretensão processual. Os inimigos da pretensão à tutela jurídica aproveitam, para as suas

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críticas, essas confusões. § 44. Exercício de pretensão à tutela jurídica e atendimento 1. Capacidade para ser parte e prestação futura. (a) Quanto à capacidade para ser parte, estão de acordo em que se considere pressuposto pré-processual (portanto, inerente à pretensão à tutela jurídica) Konrad Hellwig (Klagrecht und Klagmóglichkeit, 63 s.), James Ooldschmidt (Materielles Justizercht, Fest gabe fbr B.Htibler, 19) e G. Schfller (Der Urteilsanspruch, 33 s.). (b) Quanto à admissão da ação de prestação futura, cumpre que se observe de início o que se passa nos fatos: a) o conceito mesmo de prestação futura implica que não há, no direito material, pretensão à prestação, pois o que só será futuramente ainda não é, agora; b) não há pensar-se em ação de direito material, porque, ex hypothesi, não há ação, e excepcionalmente se admite ‘ação” (de direito processual); c) a “ação” (de direito processual) provém do exercício da pretensão à tutela jurídica, portanto é no plano da pretensão à tutela jurídica que se tem de pôr o problema da criação da ação de prestação futura. Não existe pretensão de alguém a que o Estado julgue favoravelmente; nem a atitude do Estado, em sua tarefa geral de tutela juridica, há de ser interpretada como indiferente à existência, ou não, da pretensão à tutela jurídica: se bem que haja casos em que o juiz, de ofício, ou por provocação do Ministério Público, realiza a tutela jurídica, independentemente do exercício da pretensão à tutela jurídica, por parte do interessado, a máquina judicial de ordinário só se move por ato dos titulares da pretensão à tutela jurídica. 2. Prestação jurisdicional e sentença justa. Tem-se entendido que a pretensão à tutela jurídica é pretensão a sentença favorável. Se, para argumentar, admitíssemos que a pretensão à tutela Jurídica fosse pretensão a sentença favorável, o Estado, quando o juiz errou, não teria prestado o que prometera. No entanto, a prestação jurisdicional, com o trânsito em julgado, foi feita. Tanto foi que, se o caso se inclui naquelas espécies em que não cabe ação rescisória, nem revisão criminal, nada há mais a fazer-se. j)Foi ou não foi feita a prestação jurisdicional, que o Estado prometera, e o juiz, por ele entregara? Embora injusta a sentença, sentença prestou-se, irremediavelmente. Somente para algumas sentenças há a ação rescisória ou a de revisão criminal. A ação rescisória apenas cria aos que tiveram sentença desfavorável, inclusa na classe rescindíveis, a pretensão (nova pretensão de direito material, embora colocada em lei de processo) à propositura, dentro de prazo preclusivo, da ação de rescisão de sentença Sentença houve, trânsita em julgado; a prestação jurisdicional foi entregue: portanto, fora isso o que o Estado prometera. Excepcionalmente, a lei, satisfeitos certos pressupostos, permite a rescisão. A própria sentença que se deu na ação rescisória pode vir a ser rescindida, embora em menor número de espécies. Depois nada mais se pode obter. Como seria possível pensar-se em ser objeto da prestação devida pelo Estado ao titular da pretensão da tutela jurídica a sentença justa ou a sentença favorável? O que o Estado prometeu foi exercer a tutela jurídica. Para que prometesse a quem exercesse a pretensão à tutela jurídica prestação de sentença justa ou favorável, seria preciso que houvesse prometido a infalibilidade, ou, pelo menos, o reexame da sentença a qualquer tempo e por indeterminado número de vezes. Também seria preciso que titular da pretensão à tutela jurídica somente fosse quem fosse titular de direito material, objeto do litígio. Ora, autor e réu têm pretensão à tutela jurídica, o que de si só bastaria para mostrar que não se prometeu a sentença justa, mas a sentença, e não poderem ser pretensão á sentença justa as pretensões à tutela jurídica do autor e do réu, na mesma ação. Quando alguém pede, inclusive o réu, que o Estado decida, exerce, com o pedido, a pretensão à tutela jurídica. O funcionário do Estado, que admitiu o processo, obrigou-se (= obrigou o Estado) à decisão; isto é, se o juiz, a dar sentença, que, ainda se contrária a quem pediu, não nega ter existido a pretensão à tutela jurídica, nega que tivesse razão o autor, e, ainda se contrária ao réu, não nega que tenha tido

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pretensão à tutela jurídica. A tutela jurídica ao réu manifesta-se no direito e pretensão a ser ouvido no processo, para que a angularidade processual se dê, e a ser-lhe entregue a prestação jurisdicional. Razão por que há de assentir na de-sistência pelo autor. 3. Prê-processualidade da pretensão à tutela jurídica. Argumenta-se que demandado somente poderia ter pretensão à tutela jurídica depois de exercer o autor a sua, de modo que não seria pré-processual, mas processual a pretensão (Leo Rosenberg, Lehrbuch, 5º ed., 401). Mas sem razão. Primeiro, a pretensão à tutela jurídica existe antes de ser exercida, como toda pretensão. Segundo, a pretensão à tutela jurídica, por parte do demandado, existe, ainda que não se exerça, porque iura novit curia. O Estado, pelo órgão judicial, tem o dever e a obrigação de aplicar o direito e, pois, de atender ao pedido. A sentença pode ser favorável, ou não. Quer o seja, quer o não seja, com ela cumpre o Estado o dever de entregar a prestação jurisdicional, a que correspondem o direito e a pretensão à tutela jurídica, e a obrigação de entregá-la, que se estabeleceu com o exercício da pretensão à tutela jurídica e, pois, com o nascimento da pretensão processual. Quando nasce a pretensão processual, o Estado assume a obrigação de decidir sobre o fundo, o mérito; mas, se falta algum dos pressupostos processuais, o juiz resolve sobre esse nascimento, e não sobre a pretensão à tutela jurídica. Daí poder e dever dizer que a “ação” é inadmissível. A “ação” que é de direito processual. 4. Pressupostos da tutela jurídica. São pressupostos da pretensão à tutela jurídica: 1) A capacidade de ser parte, porque a pessoa que não existe, ou que ainda não existe, não pode ser titular de preten-sões; portanto, não tem pretensão à tutela jurídica. Só a lei pode cogitar da tutela jurídica excepcional, cuja construção nos tem preocupado muitas vezes, dos nascituros e das pessoas jurídicas em formação. 2) A admissão da ação de prestação futura, ou de reclamação de prestações periódicas, inclusive em se tratando de ações assecuratórias, porque é a tutela jurídica que está em causa, não é, ainda, o direito material, o pressuposto da favorabilidade da sentença, nem pressuposto processual. 3) A necessidade da tutela jurídica (legítimo interesse). A pretensão futura não é dotada de ação (= não contém ação), porque ainda não é pretensão e, não sendo pretensão, ação não poderia conter. Em todo o caso, há ação de prestação futura, se satisfeitos certos pressupostos. A fortiori, se se trata da pretensão sujeita a termo ou condição suspensiva, que, em nosso direito, não é pretensão presente: é futura, como acontece com os direitos. Naturalmente, não se trata do negócio jurídico: este existe. A condição, de que se trata, concerne à eficácia (direito, pretensão, ação etc.). Enquanto pende a condição suspensiva, o efeito querido não se produz; a vinculação é outra coisa, de modo que pode haver direitos ligados a ela e, por definição, os há (e. g., não pode haver revogação). Não se hão de confundir o direito futuro, ou a pretensão futura, e o direito expectativo (direito a adquirir o direito quando cumprida a condição), a que a lei pode juntar ações. Por outro lado, pode ocorrer a ação de prestação futura, condenatória, alhures estudada nesta obra. Tem-se dito, em contrário, que o exercício da pretensão como exigível no futuro só é admissível em casos excepcionais e se trata, sempre, de pressuposto processual, que se deve examinar de ofício, tendo ao autor (ou reconvinte) o ônus da prova; ou que a existência da ação de prestação futura somente é ligada ao direito material. A ação de prestação futura pode ser proposta ainda que a prestação dependa de contraprestação, como se dá no caso de alugueres. Não se exige, tampouco, que também se peça prestação já vencida (Leo Rosenberg, Lehrbuch, 5º ed., 365), ou em dinheiro, de modo que é repelivel que pré-exclua a ação de prestação futura: quando alguma regra jurídica diz que o pedido compreende frutos, foros, vendas e outras prestações periódicas, apenas reputa, nas espécies de que trata, incluso o pedido de prestações futuras, pois que periódicas. A pretensão à omissão dá ensejo a ação de prestação futura (Stein-Jonas-Schõnke, Kommentar, nota 99 ao § 253; Trotado de Direito Privado, V, § 627, 2; A. Stephan, Die Unterlassungsklage, 63 sj, porque, ainda que não haja discriminação de tempo, a obrigação de prestação de omissão pode vir a ser violada (sem razão, Friedrich Stein, Uber die Voraussetzungen des Rechtsschutzes, 33 5.; Konrad Hellwig, Anspruch und Klagrecht, 388 5.; Flad, von der Unterslasungsklage, Jherings Jahrbticher, 70, 350; Leo Rosenberg, Lehrbuch, 5~ ed., 366).

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A ação de prestação futura é “ação” de condenação, que a lei permitiu a despeito de ainda não existir a ação. A tutela confere-se excepcionalmente, por ocorrer ratio legis que se impós ao legislador. Está em causa a pretensão à tutela jurídica, de modo que se há de julgar admissível ou não a demanda. O exame do fundo levaria, sempre, a se reputar improcedente, se a ele tivesse de tocar a resposta. Quanto à espécie, apenas se há de apreciar se o direito e a pretensão, in casu, lograram compor o suporte fático da lex specia lis. Quanto à necessidade da tutela jurídica, isto é, quanto ao interesse nela, todos os sustentadores da existência de pre-tensão à tutela jurídica estão de acordo. Os que combatem o conceito discordam quanto à classificação da necessidade da tutela 5. Competência judicial e tutela jurídica. Problema delicado, mas para o qual não tem havido precisão nos argumentos para se chegar a conclusões seguras, é o que concerne às regras jurídicas de direito constitucional, ou de direito público ordinário, que distribuem as competências dos órgãos estatais conforme os poderes (Poder Judiciário, Poder Executivo, Poder Legislativo). Não é nas leis de processo que se sói inserir o que delimite a função da Justiça e a dos outros poderes, e daí ter-se pensado na pré-processualidade de tais regras juridicas. A questão apresenta-se com diferentes formas e em diferentes termos; (a) A regra jurídica que diz caber à autoridade administrativa a cognição de determinada questão (e não, ou ainda não, ao Poder Judiciário) é pré-processual? (b) A admissibilidade da via judicial e a jurisdição nacional são elementos da pretensão à tutela jurídica ou pressupostos processuais? São tentados os juristas a ver nas regras jurídicas, que estão acima das regras jurídicas processuais, regras que se referem a pressupostos pré-processuais. Mas o engano facilmente se desfaz. As regras jurídicas sobre competência dos poderes públicos (Judiciário, Executivo e Legislativo) são regras que vêm antes das regras jurídicas que, após elas, determinam a competência intra-judiciária, intra-executiva ou intralegislativa dos órgãos estatais, mas isso de modo nenhum estabelece a situação de pré-processualidade e de processualidade. Tais regras jurídicas são prévias em relação às outras regras que distribuem a competência recebida, porém não pré-processuais. Não são antes do processo; são antes das regras jurídicas de competência, formando o todo. O processo, tendo por fim aplicação do direito, tem de atendê-las, como regras de competência. As regras de direito processual internacional e as regras de direito intertemporal do direito processual são regras de sobredireito do direito processual, porém de modo nenhum regras de direito pré-processual. Dá-se o mesmo com as regras de interpretação e fontes do direito processual. São regras de sobredireito, porém não regras de pré-direito processual, ou regras jurídicas pré-processuais. Quando se atende a regra de direito processual já se atendeu ao seu sobredireito, mas simultaneamente. Não é o mesmo o que se passa com a pretensão à tutela jurídica: a verificação da existência da pessoa física ou jurídica, ou da excepcional pretensão à tutela jurídica antes do nascimento daquela ou desta, é pré-processual, e não processual; bem assim a verificação da tutelabilidade da pretensão, ou da ação futura, ou da necessidade da tutela jurídica. Não existe pretensão de alguém a que o Estado julgue favoravelmente; nem a atitude do Estado, em sua tarefa geral de tutela jurídica, há de ser interpretada como indiferente à existência, ou não, da pretensão à tutela jurídica: se bem que haja casos em que o juiz, de oficio, ou por provocação do Ministério Público, realiza a tutela jurídica independentemente do exercício da pretensão à tutela jurídica, por parte do interessado, a máquina judicial de ordinário só se move por ato dos titulares da pretensão à tutela jurídica. Se o fim que teria a “ação” do autor, ou o pedido do réu, em defesa ou em reconvenção, tem de ser satisfeito pelas autoridades administrativas, das quais depende (e. g., se o Estado chamou a si pagar os salários do trabalhador despedido, ou entregar casa ou alojamento aos locatários que vão ser despejados), a via judicial está condicionalmente pré-excluída ou excluída (cf. Adolf Schónke, Das Rechtsschutzbedíirfniss, 25 si; isto é, salvo se as autoridades administrativas se negam a atuar, ou se não mais seria oportuna a sua atuação. Algumas vezes as leis abrem a via judicial se já houve resolução na via administrativa. Princípio constitucional, com ressalvas pertinentes à disciplina e às competições desportivas, impede que, tratando-se de direitos individuais, se remeta, exaustivamente, à via administrativa. As regras jurídicas sobre admissibilidade da via judicial são cogentes. Não pode haver acordo entre os interessados, que valha, se elas aumentam ou restringem a via judicial. A verificação tem de ser para cada pretensão processual e para cada ponto mérito (fundo de causa). A exceção de não caber a via judicial é irrenunciável; e o juiz a todo tempo pode decidir pela inadmissibilidade da demanda. Basta que a

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via judicial seja admissível no momento em que se ultima o debate, quer a satisfação do requisito haja ocorrido em virtude de lei nova, quer por ter sobrevindo a resolução (prévia) administrativa, que era necessária à abertura da via judicial. 6. Direito material e direito formal. (a) No direito processual civil e no direito processual penal há regras jurídicas de direito material, porém não devemos exagerar-lhes a significação. Destinam-se a compor ou a assegurar forma, procedimento, de modo que a sua materiabilidade é interna, secundário. Por outro lado, a supra-ordenação que há no direito processual, como direito público, cobre a todas de inconfundível destinação política (realização do direito objetivo, pacificação). Todo processo judicial — civil ou penal — revela que a incidência da lei, que é automática e fatal, não bastou, ou não basta, ou não bastará. Supõe a imperfeição dos homens para a captação do que se passa no mundo do pensamento, tal como eles mesmos conceberam. Dessa imperfeição é que deriva não se realizar integralmente o direito objetivo e haver controvérsias e dúvidas entre os homens. (b) No processo, há o procedimento, que é a série dos atos processuais, no tempo e no espaço (e. g., exigência de imediatidade ou de presença), quer nas partes, quer dos juizes e outras pessoas que sirvam à justiça; e há a relação jurídica processual, uma ou totalizada (= totalidade das relações juridicas processuais que ocorram). A todo processo corresponde relação jurídica processual ou totalidade de relações jurídicas processuais, salvo se tal processo só tinha aparência de processo (= era inexistente) ou se é nulo. É preciso que não se confundam as situações jurídicas que são estados particulares, durante o processo, e a relação jurídica processual, que apanha todo o processo e independe de subsistirem umas daquelas situações. O erro de James Goldschmidt, na luta contra a concepção da relação jurídica processual, resultou, principalmente, dessa confusão. § 45. Exercício da pretensão à tutela jurídica 1. Dever dos órgãos do Estado. Os juizes e tribunais estão no dever de administrar justiça e são obrigados a isso desde que os interessados, com pretensão à tutela jurídica, a exerçam. A pretensão processual, que nasce desse exercício, corresponde a obrigação de prestar a justiça (= entregar a prestação jurisdicional). Antes, apenas o Estado era vinculado pelo que prometera, fazendo nascer a pretensão à tutela jurídica. Se o interessado não tem pretensão à tutela jurídica, não se obriga à decisão do Estado; o juiz ou tribunal declara que não há tal pretensão, e a decisão, que dá, preexclui o procedimento. Praticamente, tudo se passa como se fosse processual o pressuposto, porque vem antes a exigência, e a falta do pressuposto pré-processual necessariamente causa falta de pressuposto processual. Os juizes e tribunais têm de examinar o pré-processual e o processual, para, depois, examinarem o fundo da causa. 2. Relação jurídica processual. A relação jurídica processual é una e unitária; vai do começo ao fim do processo, salvo se o procedimento é julgado inexistente, porque, a decisão do juiz ou do tribunal tem função de autodefesa. Juiz ou tribunal diz um “não é”, que implica ter afastado, declaratoriamente, qualquer eficácia do procedimento. A relação jurídica processual é uma só até que se profira a sentença terminativa e transite em julgado. Por isso mesmo, e de repelir-se qualquer proposição em que apareça o conceito de relação jurídica que leva até a execução, se a sentença mesma não teve carga de executividade que predomine ou seja a de eficácia imediata. 3. Segurança intrínseca. Na lei, o fito que prepondera é a segurança intrínseca, isto é, o resolver bem (no interesse do dirigente, ou dos dirigentes, ou do maior número ou de todos). Na sentença, a segurança extrínseca passa à frente. O processo tem a finalidade política de realizar o direito objetivo, tal como incidiu. É possivel, porém, que não o logre, nos casos concretos. Nem por isso deixa de precluir a tempo para se recorrer das sentenças ou para se impugnar a sentença irrecorrível. ação. A aplicação da lei é a que se realiza espontânea ou forçadamente. Porém ainda que não mais caiba recurso, nem ação contra coisa julgada, a lei incidiu conforme a sua interpretação vigente ao tempo da incidência, que pode ter sido e pode não ter sido a que o juiz deu. As vezes ocorre que foi esse juiz mesmo que

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encontrou a nova interpretação tomada vigente. Aqui ressaltam as duas funções de juiz: a de interpretar e a de aplicar a lei. Está depende, para se impor, da preclusão, que é conceito “interno” do processo. Aquela depende de prevalência nos fatos, extraprocessualmente, salvo se o sistema jurídico contém a regra absurda de admitir a interpretação ab eterno de textos por determinada pessoa ou colégio. 4. Eficácia sentencial. Quando alguns escritores e leis dizem que a sentença tem “força de lei” não podem enunciar que ela se ponha no lugar da lei, como se a derrogasse no caso concreto. Essa é a concepção de algumas pessoas) em cuja mentalidade ainda jaz a indistinção absolutista de regra jurídica e do julgado como ato do rei. A força da sentença é estatal, não há dúvida; mas estatal processual, e não material. Quando se fala de força material da coisa julgada alude-se a fato da vida pós-processual, de fronteiras entre direito processual e direito material, porém nunca invadente deste. A vedação de ofender o julgado ainda éde ordem formal, de processualistica, e dirigida aos juizes. Se a lei constitucional proibe normas que ofendam a coisa julgada (formal, e em consequência material), essa proibição é de direito constitucional, sem que para ela concorra o direito processual; exceto quanto ao conceito de “coisa julgada”, na falta de conceito estabelecido pelo próprio direito constitucional. A sentença, aplicando lei, tem força criativa própria, o que permite (1) o ter havido incidência sem haver aplicação, (2) não ter havido incidência e haver aplicação e (3) o coincidirem aplicação e incidência. Este último é o fim do processo; não éessência da decisão do processo. Há sentenças que erram in interpretando e in applica rido. Se a coincidência entre aplicação e incidência fosse necessária, toda sentença seria justa. Só haveria sentenças justas. Toda aplicação seria perfeita: poder-se-ia mesmo definir como segundo momento da incidência. O cair da regra legal sobre os fatos conteria, já, todos os elementos para a aplicação impecável. A função falível de aplicar não permite que essa aplicação mecânica, de precisão invariável, se dê sempre. Só é infalível a incidência da lei. 5. Partes ou figurantes da relação jurídica processual. Partes são os pólos ativo e passivo da relação jurídica processual em ângulo, ou da relação jurídica processual em linhas, convergindo para o Estado, como se dá na pluralidade subjetiva das ações em ângulo. Ou o autor, simplesmente, em linha reta, sem angularidade. Dizer-se, por exemplo, que toda relação jurídica processual supõe sujeito ativo e sujeito passivo é pôr-se de lado qualquer caso em que as partes acordam em ir a juízo pedir outra coisa que a condenação, ou outra coisa que a coerção executiva. O individualismo antigo, típico no frag. de Paulo, L. 29, D., de iudiciis: ubi quisque agere vel convenire debeat, 5, 1, saía-se da dificuldade transformando-se o sentido de actio, conceito de direito material, em actio, conceito atécnico de “entrar primeiro em juízo”. Daí poder dizer, em tautologia tirada dessa mudança de sentido, “Qui appellat prior, agit”. Assim, a especialidade das ações divisórias esvala-se pelo passe de mágica da transmutação de sentido. As línguas latinas herdaram esse duplo sentido, essa ambiguidade, se não equívoco, fonte de tantos erros em teoria e em prática. Os Romanos, ainda ao tempo das legis actiones, estavam naquela fase anteestatal da justiça em que as partes estão em contato, apostam com a garantia do juramento, o que ainda se observa e se observará sempre na idade individual infantil quando há discordância e vontade de resolver, sem ser pelos métodos primitivos da luta. Iam as partes ao pretor “apostar”, postulare, de posco, apostar, obrigar (Vanicek, Etymologisches Vtlórterbuch der Lateinischen .Sprache, 2º ed., 164). Apostava-se, porque antes fora assim, ao tempo em que se confiava a terceiro, em nada ligado ao Estado. Ainda hoje, a palavra nos ficou como alicerce de raciocínio, axioma, enunciado fundamental em lógica ou em matemática: postulado. As apostas ficaram, sob fórmulas sacramentais, até o século II antes de Cristo. Depois, o raciocínio processual explicitou-se: a intentio (nas ações declarativas, proeludicia de nada mais se precisava); a demonstratio; condemnatio (sempre em dinheiro!). As variantes quanto às espécies de ações não lhe mudavam a estrutura. O Romano ainda não podia distinguir a pretensão à sentença, a “ação”, de que aquela é conteúdo, e a actio do direito material iniciado na demanda. O primitivismo germânico agravou a situação. É preciso nunca nos esquecermos de que em toda relação jurídica há fato da vida, a relação humana em concreto, que é a matéria, digamos assim, submetida a certa estrutura, à determinação exterior da lei. A lei dá a forma dessa relação humana e a faz jurídica. E a lei, portanto, que lhe imprime direção, segundo os propósitos dos legisladores. As relações humanas que se dizem tuteladas pelo direito são relações a que o direito conferiu proteção, levando em conta o interesse do individuo, ou o seu próprio. Os dirigentes instilam nesse ordenamento a sua concepção da vida, a sua tábua de valores humanos. Quando o Estado considera o que atribuiu a alguém e o vê do lado daquele a quem o

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atribuiu, toma-o como vetor, que é o direito subjetivo. Analisando-se esse conceito, descobre-se-lhe um elemento, que é a ação, a actio romana, presenciada pelo juiz, e não pela lei, e outro, que é a pretensão, presenciada pelo direito, feita abstração do juiz. O despotismo romano somente concebia a razão judiciária, o ato que há em actio, a espada, a toga, ao passo que o homem pós-romano evolvia para a concepção de outro elemento, o fato da atribuição, em vez do ato. O conceito de “pretensão” impunha-se. De tal modo se impôs que se pôde revelar a pretensão à tutela jurídica ou de tutela jurídica, isolada por Adolf Wach, pretensão que é dirigida ao Estado. E de direito público. Tudo isso, através de discussões sutis, apenas traduzia a mudança das condições econômicas, políticas e morais, no sentido de se submeter a concepção do direito a conceitos mais coerentes com o destino da civilização ocidental. Juristas, que representavam correntes opostas a esse movimento bimilenar, tentaram impedir que o Estado se submetesse ao direito e que o direito se submetesse às descobertas da sua técnica e à crítica das suas injustiças. Alguns puderam ver que o processo era, ao mesmo tempo, indice e fator de civilização. Aos mais argutos não passa despercebido que a explicação da relação jurídica processual como relação entre o autor e o réu, conforme Giuseppe Chiovenda, contra Adolf Wach, representava retentativa de informá-la como domínio de homem sobre homem, com a reinserção do coeficiente de vontade (tipicamente romano) quando Adolf Wach já havia conseguido eliminar a influência da filosofia hegeliana. O ter-se isolado, como se diz em laboratório, a ‘pretensão”, como o poder pretender-se que um bem da vida se lhe assine, significou evolução técnica e evolução psicológica. Não é ato, como a actio, nem debate, peleja; é razão por si, pela existência da lei. O ato é efeito disso. Antes de propormos ação, estamos apenas em estado de exigência. Lendo-se os Códigos Civis, surpreende-nos, aqui e ali, o conceito ou a regra, que ainda lembra a presença do tribunal. Desagrada-nos. Isso provém de que as circunstâncias mesmas da vida já nos ensinaram a distinguir as “pretensões” e as “ações”. Lá estão direitos, que podem ser considerados in abstracto, e as “pretensões”, que exigem o interesse concreto, ainda que em potência, sem exigirem a atividade da actio. 6. Quem é parte. Partes são as pessoas para as quais e contra as quais é pedida a tutela jurídica. As partes é que pedem ou é contra elas que se pede. De regra, são as partes os sujeitos do direito e do dever, da pretensão, da obrigação, ou da exceção, que se discute. Todavia pode dar-se que terceiro, que não é o sujeito ativo ou passivo da res deducta, possa ser parte, isto é,ter a ação”. Daí se tira que o conceito de parte é de direito formal, e de ordinário coincide, porém não precisa coincidir, com o de titular do direito na relação jurídica controvertida, ou com o de sujeito passivo dessa relação. Às espécies em que se atribui a alguém, que não é sujeito da relação jurídica deduzida em juízo, o ser parte, tem-se dado o nome de sub-rogação processual ou de substituição processual. O nome “substituição processual”, usado por Giuseppe Chiovenda (Principii, 596-601), para designar os casos em que o sujeito da relação jurídica processual não é o titular da relação de direito material, é impróprio. Exatamente “substituição” é o que não se dá. Josef Kohler, que iniciou o estudo desses fatos, não usara tal expressão — vira-os como casos especiais de subjetividade processual em relação à res in judicium deducta. Tão-só. Desde que passamos à concepção da relação jurídica processual como publicística, perdeu a significação, que poderia ter, de “anormalidade”, a não-coincidência entre os dois sujeitos; por outro lado, a distinção entre a pretensão à tutela jurídica e a pretensão de direito material ainda mais viva põe a irrelevância da especialidade. Dizer “substituido” o titular da relação de direito material é persistir, inconscientemente, e tal foi o caso de Giuseppe Chiovenda, na atmosfera da concepção privatística. Os processualistas italianos vulgarizaram o nome com esse evidente prejuízo, e Galgano (Nápoles, 1911) chegou a escrever monografia Sulia Dottrina deita Sostituzione processuale. Parte é, portanto, quem entra, como sujeito, ativo ou passivo, na relação jurídica processual. Partes são figurantes processuais; há partes que não são os sujeitos da relação jurídica, objeto do litígio. A lei cria-as. Mas pode ocorrer que o titular do direito dê poder para a presença como parte, como se o cessionário outorga ao cedente poder para, em nome próprio, exercer a ação contra o cedido (dita, então, substituição processual voluntária).Há, ainda, os que, de ofício, podem exercer a pretensão à tutela jurídica, têm “ação”. Por exemplo, os administradores das massas concursais, o síndico da falência, o inventariante e o testamenteiro. Tais pessoas não são representantes: não estão em lugar de outrem; e, na maior parte das vezes, os interesses que estão em causa são divergentes. Nem são órgãos, de modo que, em vez de representarem, presentassem outras pessoas, como ocorre com o órgão da pessoa jurídica. A massa concursal ou falencial, a herança e o interesse da execução testamentária não são pessoas. Demais, o representante legal do menor de dezesseis anos, ou do louco, ou do surdo-mudo que não pode

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exprimir a vontade, não é parte. Nem é parte o órgão da pessoa juridica. Ao passo que são partes o administrador da massa concursal, o curador da herança jacente, o síndico da falência, o inventariante e o próprio testamenteiro. Também é parte o administrador de bens reunidos ou adquiridos por subscrição pública ou em coletas. Quando se atribui ao Ministério Público a propositura da “ação”, ou a defesa, como parte, também se lhe reconhece ser parte, por ofício. Sobre as partes por ofício, F. Oetker (Ronkursrechtliche Grundbegriffe, 1, 25 s., 51, 112, 314 s.), Adolf Schõnke (Lehrbuch, 7ª ed., 89 s., 116 e 275), Arthur Nikisch (Ziuilprozessrecht, V ed., 109, 120 e 347), W. Bemhardt (Grundriss, 84) e Max Pagenstecher (Der Ronkurs, 2~ ed., 33), que sustentaram a Amtsheorie (teoria do ofício). Contra: W. Kisch (Das Reichsgericht und der Parteibegriff, Die Reichsgerichtspraxis, VI, 15 s.), E. Jãger (Kommentar Konkursordnung, 1, 6º-7º eds., nota 1 ao § 6), F. Lent (Die Rechtsprechung des Reichsgerichts Uber die prozessuale Stellung der Konkursverwalters, Die Reicbsgerichtspraxis, VI, 275; Zwangsvollstreckungs und Konkursrecht, § 44; Prozessfúhrung des Vermôgensverwalters, Festschrift ftir Adolf Wach, 1). 7. Representação e presentação. As partes têm de ser representadas processualmente (não se confunda com a repre-seritação de direito material, como a de menores e de incapazes por psicoses ou neuroses, nem com o mandato propriamente dito), ou atuar em causa própria. A representação processual, salvo os casos de causa própria, quando a lei o permite, e de falta de advogado, é necessária. Hoje está de parte a velhíssima classe dos solicitadores, válvula que havia à vocação jurídica ou advocatícia das classes pobres. Nela fizeram carreira, inclusive política, alguns vultos da história do Brasil. Aqueles, a que a designação pejorativa chamou rábulas, exerceram função ao mesmo tempo conservadora de boas práticas e inovadora de idéias, livres, como eram, das teias de aranha (ou de arame) do ensino , reacionário, oficial, artificial, superficial, oratório, das Faculdades de Direito. Observe-se que na comparência da parte por um órgão não se trata de representação, mas de presentação. O órgão presenta a pessoa jurídica: os atos processuais do órgão são atos dela, e não de representante. De modo que há a presentação (de direito material) e a presentação processual, necessariamente sem atuação em causa própria: o órgão presenta, materialmente; e, processualmente, também presenta. 8. Princípio de igual tratamento das partes. As partes têm de ser tratadas com igualdade, salvo se lei, que não ofende a Constituição, cria, diante de circunstâncias, trato especial. Aequalitas servanda est in judicio inter litigantes. Non debent actor et reus ad imparia iudicari (cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria, II, 39 e 46). 9. Conceito do autor. O individuo que vai a juízo e declara o que pretende é o autor. O Estado, atendendo ao seu pedido, chama a juízo a outra parte, de modo que se estabelece relação em ângulo, entre o autor e o Estado, e o Estado e o réu. É possível pensar-se, e há exemplos na legislação, no estabelecimento da relação jurídica em linha simples entre o suplicante e o Estado, só admitida, mais tarde, a formação da outra linha o ângulo, isto é, entre o Estado e o réu. E o que ocorre, por exemplo, em todos aqueles casos em que há uma decisão antes de ser ouvido o suplicado (e. g., o pedido de manutenção ou de reintegração, initio litis, se feito dentro do prazo legal). Também há relações em linha simples (autor, Estado), sem réu, portanto. Na reconvenção, o réu faz-se autor, porque pede, então, a promessa estatal da prestação jurisdiciona]. O reconvinte vem tomar parte no mesmo processo, porém não na mesma relação jurídica processual. A figura, que se forma e de que trataremos no lugar oportuno, é a de novo ângulo (reconvinte e Estado, Estado e reconvindo), inversa à primeira. 10. Autor e assistente do autor. O interesse do autor, ou do assistente do autor, aprecia-se durante toda a elaboração do processo. Não é só quanto ao pedido que ele tem de ser apurado. Se bem que a petição, traçando limites à atuação do autor, constitua como que o salão dentro do qual se tem de mover, atos há, praticáveis pelo autor ou requeríveis por ele, que exigem a caracterização particular do interesse. Se alguma diligência ou, mesmo, algum simples termo continuativo do processo, não o prejudica, nenhum interesse tem, por exemplo, em recorrer. Interesse também lhe falta para análises, violentas ou pejorativas, de depoimentos que não lhe empioram a situação no processo. Mediante as duas regras — a de ser necessário o interesse econômico ou mora] para propor a ação e a de ser necessário para a contestação — adquire o juiz certo poder de moralização do processo, contra o qual reage, e não podia deixar de reagir, a velha concepção do processo como luta corpo a corpo, espécie de circo em que o Estado ainda não realizou a sua função de juiz e, pois, não saiu do seu papel de assistente, de expectador. Uma das aplicações mais notáveis do

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princípio da exigibilidade está na regra jurídica que permite a extinção do processo sem julgamento do mérito (ja requerimento do réu!) se, pela exposição dos fatos e indicação das provas, o juiz entende que a “pretensão” do autor se funda em interesse imoral ou ilícito (antijurídico). Pretensão, aí, estaria em sentido não-técnico. Diga-se: a intentação da demanda, o intuito de pleitear. Mediante esse poder do juiz, pode dar-se o caso de pretensão (no sentido técnico) sem ação futura. Todavia, a apreciação da ilicitude ou da imoralidade desce do plano da pré-processualidade para o plano do direito material: quem foi repelido por ser ilícito, ou imoral, o seu interesse, não pode mais volver a litigar quanto à mesma res in judicium deducta, razão por que o próprio recurso da decisão é o recurso que se interpõe das decisões sobre o mérito. A falta de interesse de agir é falta de necessidade da tutela jurídica. A ilicitude ou imoralidade do interesse atinge o mérito da causa, o fundo. Teremos de versar as consequências de tal distinção, que nos livra de muitos erros. 11. Conceito de réu. Já vimos que o réu é aquele contra quem se propõe a ação. Quer dizer: o outro pólo da relação jurídica de direito material, que se está a invocar, e outro pólo da relação jurídica nascida, pelo chamamento dele, entre o Estado e ele —relação em ângulo. E possível que o próprio réu chame outro. O réu “contesta”. Aí, as leis processuais soem empregar o verbo em sentido mais largo do que noutros lugares (e. g., a propósito da resposta do demandado), quando a contestação se define como resposta negativa do réu. Não se dê, contudo, muito valor de precisão à expressão “contestação”; o reconvindo e, não só o reconvindo, outros réus “impugnam”, ou embargam Os réus e quaisquer pessoas no pólo passivo da relação jurídica processual “impugnam”. Impugnam também os autores e quaisquer pessoas no pólo ativo da relação jurídica processual, se ocasionalmente têm ônus de responder a pedidos dos réus. Na ação de condenação, a sentença condena a pagar, a restituir, ou, no processo penal, à prisão, à morte. Com-dena (com-damna), como que a transmitir sofrimento, dano. Tal sentença tem efeito executivo, quer dizer — abre a porta à ação de execução, que por isso se chama (ação de) “execução da sentença”. Se a sentença tem força executiva, em vez de simples efeito, a ação foi executiva mandamental; ou a sua força apenas confirmou execução, que se adiantou, mediante cognição incompleta, confirmação que se deu quando se completou a cognição, e então a ação foi executiva. Não se procure ver a diferença em distinções de natureza da pretensão de direito material, porque se cairia nos erros enormes de Erancesco Camelutti (Lezioni, II, nº 73). Na ação constitutiva, o que ressalta é o elemento constituição de nova situação ou nova relação jurídica, incluindo-se a negativa (resolução do contrato por inadimplemento da outra parte, separação judicial etc.), e a sentença integra ou constrói, de todo, o negócio juridico ou o status. Os efeitos são o da nova situação ou relação jurídica. A sentença, esta, tem força constitutiva. (Algumas vezes parece que tem efeito, e não força, como se apenas habilita a registro. Mas há ilusão: esse efeito é da situação ou relação que ela constituiu ou integrou; e não efeito dela, diferido.) 12. Interesse legítimo; econômico ou moral. Para propor, ou para contestar ação, é necessário ter legítimo interesse econômico ou moral. O interesse moral só basta à propositura da ação, ou à contestação, quando é diretamente do autor ou da sua família, ou pessoa do grupo ligado a ele. Mas há outros interesses, ditos morais. Os legisladores costumam pôr a regra jurídica sobre o interesse na lei de direito material e na lei de direito formal. Tudo isso denuncia, assim nos legisladores do direito civil quanto nos legisladores do direito processual, bem superficial conhecimento do problema de técnica legislativa. O indivíduo, ou tem direito subjetivo, ou pretensão, ou não o tem. O individuo, ou tem ação, ou não a tem. Se tem ação, ou a lei lhe dá o uso dos remédios jurídicos processuais ordinários, ou não lho dá. Desde que o individuo tem ação, pode acionar; desde que não a tem, não pode acionar. A tautologia ressalta. Por outro lado, se o sujeito tem ação e não há remédio jurídico processual nas leis processuais, o defeito é da lei, evidentemente manca. A todo direito corresponde uma ação que o assegura. E o princípio da co-extensão do direito, da pretensão e da ação, que os sistemas jurídicos podem conter ou não. O sistema brasileiro contém-no. Contém-no, expressamente. O direito alemão tem-no, mas somente de modo implícito e revelado pela jurisprudência e pela doutrina (Paul Eltzbacher, Die Unterlassungsklage, 81; Andreas von Tuhr, Der Allgemeine Teu, 1, 258). Se existe a pretensão, existe a ação. Já falamos das pretensões sem ação.

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O problema técnico não é um só. O enunciado “quem é titular de direito, pretensão, ação ou exceção também o é de pretensão à tutela jurídica” seria tautológico se o monopólio estatal da justiça fosse co-extensivo à tutela jurídica judicial, isto é, nada escapasse ao exame do juiz sem exigência, em qualquer caso, de resolução prévia administrativa. Não há tautologia, porque se tem de indagar da existência, na espécie, da pretensão à tutela juridica pelo juiz. De modo que se tem de entender existente a regra jurídica: “Onde com a incidência do direito objetivo não coincide a realização dele e a pessoa tem interesse em que se produza a coincidência, cabe-lhe a pretensão à tutela jurídica, desde logo ou, se a lei o exige, após resolução administrativa.” Esse é o conteúdo doutrinal, por exemplo, dos arts. 5% XXXV, e 217, § 1º da Constituição de 1988. No plano do direito material, princípio de que a cada direito (ou pretensão) corresponde ação somente pode significar que a ofensa ao direito (ou à pretensão) faz, sempre, surgir ação. No plano do direito processual civil, ou penal, o exercício da pretensão à tutela jurídica faz nascer a pretensão processual, de modo que “a cada pretensão à tutela jurídica corresponde ‘ação’ processual” (remédio jurídico processual), para que o Estado cumpra o que prometeu e se lhe pediu, com a propositura da demanda. (Ambas as regras — a de co-extensão do direito e da pretensão e a de co-extensão da pretensão e da ação — sofrem exceções, que alhures temos mostrado. Covis Bevilacqua traduziu, para o seu projeto de Código Civil, o art. 36 do Código de Processo Civil italiano (Trabalhos da Comissâo Especial de Câmara, 1, 221); mas traduziu-o mal: nem o Código de Processo Civil italiano dissera, antes, que a todo direito corresponde ação que o assegura, nem o dito Código falou de ação, conceito de direito material, e sim de “demanda in giudiz lo”, que é remédio jurídico processual. Por outro lado Clovis Bevilacqua transformou em regra legal a opinião de E. Gianturco, que, depois de se referir ao interesse material e moral, restringiu este ao que “toca diretamente ao autor e à sua familia” (Digesto italiano, III, 505), “familialismo” demasiado italiano, em conceito que de nenhum modo exaure o conteúdo de interesse moral. O art. 76, parágrafo único, do Código Civil diz: “O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou à sua família.” A matéria concerne à pretensão à tutela jurídica. A lei processual civil não mais cogitou de tal limitação. O interesse moral da instituição de que se é órgão, ou a que se deu o nome, o interesse moral da classe, ou região, ou cidade, permite o exercício da pretensão à tutela jurídica. Naturalmente, em se tratando de tutela do nome, ou matérias que somente tocam à familia, o interesse mesmo se limita. E curioso observar-se que o legislador do Código de Processo Civil cortou a regra de E. Gianturco, o que levantou o problema de se saber se a regra jurídica de direito civil foi der-rogada. Foi. Não caberia mais invocar-se a restrição do civilista italiano. Volvemos, ai, à tradição — certa — do direito brasileiro (João Monteiro, Teoria do Processo Civil, 1, § 20, nota 4, 103: “(...) não é preciso que o interesse tenha por conteúdo uma relação econômica, ou seja conversível em dinheiro. Um interesse de honra, um interesse de família, um interesse de profissão, bem podem legitimar o uso da ação civil”). Uma das consequências da eliminação está em que se pode propor ou contestar “ação” que se funde, por exemplo, em insulto ou difamação de classe (médicos, advogados, fundidores, sapateiros etc.), ou regiões (Paulistas, Gaúchos, Pernambucanos, Mineiros etc., habitantes do município A). As ações coletivas e civis públicas, u. g. populares, são de direito público e, desde que o direito material as tenha, não se lhes poderia negar o ingresso em juízo, através dos remédios jurídicos processuais, próprios ou gerais. Convêm que haja o máximo de rigor de terminologia: há direito sem pretensão, há pretensão sem ação. De modo que somente a prática e a meditação dos casos concretos nos dirão todo o conteúdo da ação declaratória e das outras ações. 13. Legitimidade do interesse. “Legitimo interesse”. Se o interesse é legitimo, a lei o protegeu, é interesse que ela tem como direito, pretensão, ação, ou exceção. Intruso o adjetivo, ou sem sentido. Traduzindo o texto italiano, que o inspirou, Clovis Beviiacqua meteu esse ‘legítimo” que lá não estava. Se só os interesses “legítimos” autorizassem a propositura das demandas, ser autor seda ter razão; portanto todo processo seria coisa inútil. O propósito do legislador italiano foi o de dizer que ter interesse na entrega da prestação jurisdicional, por parte do Estado, constitui requisito

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necessário para se propor ou se contradizer a propositura. Interesse, sem mais nada. Se lhe corre a razão, o autor ganha; se não lhe corre, perde. Tal a “promessa” do Estado- Se esse interesse é legítimo, ou se o não é, depende do direito do autor o do réu. Intercalando, no texto, o adjetivo, ou não atendeu o jurista ao problema que o legislador italiano, seu modelo, se propusera; ou quis antecipar-se à decisão da demanda, o que se não compreenderia. Atribuir ao adjetivo “legítimo” o sentido de permutido por lei, seria traçar duas linhas divisórias: uma, entre interesses e não-interesses; outra, entre interesses legítimos e ilegítimos, que seriam os interesses suscetíveis de proteção pelo direito e os interesses não-suscetíveis de tal proteção; os interesses do que tem razão e os interesses do que não tem razão, dos quais só aqueles seriam os legítimos. A única solução é lermos o adjetivo “legítimo” como se estivesse em vez de ‘jurídico”, de modo que dentro dessa forma contenham interesses econômicos, morais ou outros. Ou não o ler. Ou apenas entendermos que se fez pré-exclusão dos interesses contra o direito. O interesse juridico é o interesse que seria legitimo se o autor ou o réu tivesse direito, pretensão, ação ou exceção, que o amparasse. Não é preciso que se verifique tal legitimidade, porque, então, se transformaria o julgamento em julgamento de mérito. O interesse de agir, a que o Código Civil chamou legítimo, não sendo repetido pelo Código de Processo Civil, é o interesse em que se admita a demanda e se profira a sentença. Nada tem com o mérito. A pré-processualidade ressalta. Falta de interesse de agir, dito na lei interesse legítimo, é falta de necessidade da tutela jurídica. O Estado prometeu tutela juridica aos que dela precisem; não aos que dela não precisam. Tal verificação prévia se lhe impunha, para evitar gastos inúteis, assoberbamento dos serviços judiciários e incômodos às pessoas que teriam de entrar na relação jurídica processual ou de ser chamadas a angularizá-la. Na lei processual civil, o princípio, que se formula, é o princípio da necessidade da tutela jurídica, também chamado princípio do interesse na tutela jurídica. Na ação declarativa, há de existir interesse em se obter a declaração; na ação constitutiva, o de se conseguir que o juiz constitua o direito, a pretensão, a ação, ou a exceção; na ação condenatória, o de ser condenado a prestar aquele contra quem se demanda; na ação mandamental, o de que alguém, a quem o juiz manda, cumpra o mandado judicial; na ação executiva, o de que se passe de um patrimônio para outro algum bem da vida. A necessidade, de que se trata, é a necessidade objetiva da tutela pelo juiz, sem se ter de indagar se, no autor, havia, ou há, a necessidade subjetiva da propositura da ação. Quando o juiz acolhe a preliminar da falta de interesse, não julga improcedente a ação, nem ilegitimado, ativamente, o autor; apenas lhe declara a falta do interesse na tutela judicial. O único elemento extradeclaratório é o de condenação nas custas. As regras jurídicas sobre necessidade do interesse são de direito material da justiça, de direito público; portanto, não formal. Nem seria de admitir-se que pertença ao direito privado, como parecia a James Goldschmidt (Der Prozess ais Rechtslage, 395, Zivilprozessrecht, § 12, nº 4, c), nem que seja pressuposto da sentença de fundo, como sustentou Leo Rosenberg (Lehrbuch, 5º ed., 367). A decisão sobre a falta de necessidade de tutela juridica supõe que o demandante possa alcançar a finalidade sem pedido à justiça, ou que a justiça nada possa fazer. O pressuposto é de ordem pré-processual. O interesse, de que se trata, é, por conseguinte, precisamente, o interesse pré-processual em que se tutele o direito. Se há caminho presto, só dependente do titular do direito, como se tem ele dinheiro do réu, com que possa por algum efeito jurídico compensar, sem necessidade de decisão judicial, não precisa ir a juízo. Se o bem pereceu e cabe a indenização, não há ação para havê-lo in natura; não há falta de interesse. Não se deve entender a regra jurídica processual civil no sentido de “Pas d’intérêt, pas d’action” ou “L’intérét est la mésure des actions”, “L’interesse é la misura delie azioni”. O interesse, de que se fala, é estranho ao conceito de ação, em direito material. Tem-se, portanto, de evitar toda a confusão entre falta de interesse de agir e falta de direito, de pretensão, de ação, ou de exceção. Ali, só se cogita de pretensão à tutela jurídica, por conseguinte de pressuposto pré-processual; aqui, de mérito, da própria res in iudicium deducta. O processo pode ser civil, ae o interesse público? Aqui se põe claro que o direito material privado tem conteúdo de interesse privado, porém o interesse a que se alude nas leis não é necessariamente privado. Pode A propor ação declaratória da sua nacionalidade, e o interesse de modo nenhum é privado, é piablico. As lides sobre impostos têm base em interesse público, com repercussão no patrimônio particular da parte. Em compensação, quando o Estado litiga para haver perdas e danos pela destruição de prédio seu, baseia-se em interesse privado. A finalidade do processo civil é realizar o direito e dirimir questões; portanto, não poderia ter fundamento no interesse das partes. É pública, porque o interesse público em que se firma o processo em geral pode recair na dirimência de questões de direito público ou de direito privado e, sem que as duas dicotomias coincidam, na suscitação pelas partes ou pelo Estado. Chama-se processo civil, porque, nele, o maior número de interesse das partes é privado, não porque tal interesse seja, em todos os casos, privado. O processo penal também possui, à semelhança disso, a ação privada, que é excepcional. Numa e noutra espécie, o direito de ir a juízo é direito público subjetivo cujo conteúdo corresponde,

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sempre, a interesse público, e não se confunde com o interesse de tutela juridica, com o interesse no pedido, que é outra coisa. A pretensão à tutela jurídica, esta, não é de direito privado. Quando se exige que o autor tenha interesse, naturalmente se invoca relação de direito que o justifique. Tratando-se de condomínio, nenhum dos condôminos pode atuar sem ser para os atos que a lei lhe permite praticar sozinho, ou para os atos que obtiveram consentimento dos outros condôminos. Se falta esse consentimento, de modo expresso, o ônus da prova cabe a quem o afirma. Aí, pode intervir a máxima de ser melhor a condição de quem proibe; porém, se não houve oposição, quando podia ser eficiente, não se há de exigir a repristinação, e sim apenas a indenização do dano. Tudo isso tem incidência: a) se há comunhão pro indiviso e no terreno comum o condômino, sem oposição dos outros, constrói casa sua, porque não mais cabe a nunciação de obra nova nem a demolitória; b) se, na comunhão pro diviso, está em causa o edifício mesmo no seu exterior, ou terreno, ou parte comum. Se o que o condômino pede já foi feito, falta interesse na tutela jurídica. Se o que pede já foi feito e outra seria a ação, tem-se de ter a indicação da ação proponivel como explicitação, e não como admissão, porque a demanda foi, pré-processual-mente, afastada pela falta de interesse de agir. 14. Interesse do autor e interesse do réu. O interesse do autor ou do réu é o que ele tem na prestação jurisdicional favorável, no dizer final da justiça. Claro que esse interesse pode ser o de declaração do direito, da existência da relação jurídica entre autor e réu, ou o de declaração da autenticidade ou falsidade de documento, ou o do exercício do direito, ou, até, solução de questão sobre a sua extensão no espaço, no tempo, ou no mundo dos direitos em que ele se aloja ou se exerce. Tal interesse tem de ser relativo à propositura ou à contestação da demanda. Antes dele está, ou não, o direito; mas a apreciação desse direito, ou da sua estrutura, constitui matéria de exame do pedido em seus fundamentos. O interesse na constitutividade, ou na condenatoriedade, ou na mandamentalidade, ou na executividade, pode não existir, existindo na declaração, se bem que, de regra, haja de existir na declaração para que exista em qualquer outra eficácia das ações. A pretensão que está à base do pedido, pretensão de direito material, nem sempre coincide com a de direito processual. O que é credor tem pretensão a receber e pode ter pretensão a condenar. As vezes, só tem pretensão a ser declarada a relação jurídica ou esta e a pretensão a executar, que, ex hypothesi, não tinha. Executando, pode dar-se que tenha pretensão a sentença de mandamento para que se cancele algum registro. A sua pretensão a adjudicar leva-o à pretensão a licitar (puramente processual) e a que se lhe permita repor o excesso do valor do bem (pretensão a constituir). Há todo um entrelaçado de interesses e ceda convergência das pretensões para se apoderar dos bens da vida. Quem tem interesse na petição, ou na contestação, pode não ter direito ao que pede ou ao que nega. Quem diz — A tem interesse em propor “ação” ou em contestar — não diz que A tem ação, menos ainda que A tem direito, ou pretensão. Diz apenas que A pode pedir ao Estado que se pronuncie, isto é, tem “interesse” em que o Estado se pronuncie. Esse interesse é, na maioria dos casos, econômico. A medida que as estruturas sociais se sucederam no sentido de explicitar a organização preponderantemente econômica da sociedade, tomou-se difícil (e pareceu ingênuo) que se litigasse por interesses só morais. Certos escritores de povos economizados até à saturação chegaram a considerar “imorais” os indivíduos que agem somente por interesses morais. O conteúdo da vida seria só material; o interesse espiritual seria do outro mundo, ou coisa íntima, que se deve ter pejo de expor. O que é útil é verdadeiro; o que vence na ordem econômica tem razão; o que foi lesado nos seus haveres, ou teme ser lesado, tem direito, e só ele o tem, à proteção judicial. Vida e propriedade seriam os únicos bens terrestres. Mas tal concepção da vida não resiste à análise filosófica. Pertence às eras criticas do capitalismo agressivo ou do capitalismo pacífico, mas tardio em suas estruturações políticas e culturais. Na 6ªCâmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 6 de agosto de 1946 (D. da J., de 24 de junho de 1948, 1693), negou-se aos irmãos do de cujus interesse legitimo em que se decretasse invalidade de testamento por existir quem herdasse antes dele; in casu, a viúva. Não está certo. Poderia a viúva renunciar a herança, ou haver contra ela ação de deserdação, ou alegação de estar separada judicialmente. Demais, poderia ser moral o interesse dos irmãos, como se o testamento contivesse dizeres ofensivos a eles. O interesse só existente quanto a um dos pontos do pedido, ou só existente quanto a determinada eficácia, ou

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determinadas eficácias, basta a que se admita, quanto a esse ponto ou quanto à eficácia ou as eficácias, de que se trata, o exercício da pretensão à tutela jurídica. 15. Interesse moral. Interesse moral é o interesse não-patrimonial, se bem que se encontre, de regra, nos interesses patrimoniais, interesse moral, e nem sempre os interesses morais se apresentem em estado puro. As vezes, o interesse moral contradiz o interesse econômico do autor ou do réu; e isso de modo nenhum lhe impede o exercício das ações em juízo. Posso ser contemplado em testamento como “usufrutuário” e, devido à minha opinião sobre a interpretação de verbas semelhantes à que está na cédula, ter interesse em que se me considere apenas como “fiduciário”. Quando se exige que o réu, ou, em geral, quem responde ao arrazoado do proponente da ação, tenha interesse, econômico ou moral, em assumir a atitude de defesa, parece que se pretendeu obrigar essa pessoa provocada a apresentar maior razão do que a sua própria situação de demandado. Não têm faltado juristas que reclamem contra tal condicionamento do direito de contestar ao interesse do contestante. Para eles, o interesse resulta do próprio chamamento a juízo, ou, em regra, de qualquer provocação. O provocado apenas reage. A provocação seria apenas estímulo. Nem o interesse do autor está implícito na propositura, nem o do réu, ou de qualquer outra figura passiva do processo, está implícito ou é imediatamente decorrente da sua passividade. Assim, quando alguém propõe ação contra a Fazenda Pública, ou algum menor, ou incapaz, sem outro interesse que o de simular a existência de relação jurídica, quaisquer que sejam os seus intuitos com tal astúcia, ainda que o representante da Fazenda, ou o do menor, ou o do incapaz, conteste, não está inibido o juiz de apreciar a falta de interesse. Qualquer que seja a decisão do juiz, uma vez que passe em julgado, Livra a Fazenda Pública, o menor, ou o incapaz, de quaisquer efeitos da malograda simulação. A regra jurídica sobre a necessidade do interesse, no que se refere ao réu, ou a quem quer que reaja à atividade processual de outrem, não contém tautologia, nem enunciado supérfluo, nem, tampouco, constitui norma destituída de atuação na vida prática. § 46. Remédio jurídico processual e razão das partes 1. Direito pré-processual e Justiça. A função integradora da ordem jurídica, que tem a Justiça, é indiferente que o autor tenha ou não, razão, seja, ou não, o titular de direito subjetivo, ou da pretensão. O que lhe importa é que, de acordo com as leis, tenha ele o direito público subjetivo à justiça. Tal direito público subjetivo é o resultado de regra jurídica de direito pré-processual, ainda quando, o que ocorre no direito constitucional brasileiro, a regra jurídica de direito pré-processual se tenha feito de direito constitucional. O remédio jurídico processual é meio, é expediente, é instrumento. Se o direito objetivo se realizou, sem luta, de remédio jurídico processual não precisou o individuo. Che-gou-se ao fim sem o meio. Se o direito não se realizou, usa-se do meio para se chegar ao fim. A regra incidiu, mas não foi aplicada. E a diferença, a muitos respeitos capital, entre a incidência e a aplicação da lei. A lei incide no momento em que se tem de criar a relação jurídica ou a situação jurídica; a lei é aplicada quando incidiu, se ao fim se chegou normalmente, ou quando a parte, que a deixara de respeitar, passou a respeitá-la, ou quando o juiz, mediante aquela prestação jurisdicional, a que aludimos, a aplica. E por isso que, se uma lei foi revogada depois de haver incidido, ainda os juizes, nas sentenças, a têm de aplicar. Sobre incidência e aplicação da lei, Tratado de Direito Privado 1, §§ 1-5, 10, 14,111, § 271, e V, 565 e 506, 2. O fito que se tem na relação jurídica processual é a aplicação da lei. Por “lei” não se entende somente a lei escrita, mas a lei no sentido mais largo, que é a de fonte de direito. O que o juiz aplica é o direito, e não só o texto escrito. Na relação jurídica processual hão de figurar o titular, a que se chama “autor” (ou “reconvinte”), e o Estado; não o reus deben di, porque este é o sujeito passivo da relação em exame, isto é, da relação de direito material, que se quer fazer reconhecida pelo Estado. Será o sujeito do outro lado do ângulo, que completará a relação juridica processual em ângulo. Não é necessário que exista. Pode não aparecer; pode mesmo ser dispensado. A angularidade obedece a princípio diferente. Do ato jurídico processual nasce a relação jurídica processual, com todas as suas consequências. Durante ela,

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desenvolvem-se os argumentos e as questões, quer sobre a matéria de fato, quer sobre a matéria de direito. Cada parte procura provar o que afirmou. O juiz examina tudo, e diz o que lhe parece. No momento em que ele profere a sentença não está definitivamente entregue a prestação jurisdicional. Tanto assim que as leis permitem reexames das sentenças proferidas, ou pelo próprio juiz, ou por outro juiz ou tribunal. Temos aí a noção de recurso. O recurso é inconfundível com qualquer reexame da sentença depois de entregue definitivamente a prestação jurisdicional. Não se pode falar de recurso em se tratando de revisão criminal ou de ação rescisória das sentenças. Ambas são remédios jurídicos processuais, para pretensões características, a de rever e a de rescindir. Há a coisa julgada formal: contra ela vai a revisão criminal ou a ação rescisória. Também não são recurso os embargos de terceiro ou a oposição de terceiro: o terceiro, embora obrigado, como todos, a reconhecer o que se julgou, isto é, o que se contém na prestação jurisdicional, definitivamente entregue, não pode ser atingido, em seus direitos, pelo que se passou entre estranhos e o Estado, como obrigado à prestação jurisdicional. Tampouco, poderia o Estado querer obrigar-se pelo que constituiria motivo de distúrbio social e de desrespeito ao direito objetivo, em vez de colimar o seu fim, quando distribui justiça, que é o de apaziguar, bem simbolizado nas mãos cruzadas, emblema encontradiço nas civilizações primitivas. Mas, em casos especiais, a lei permite que se integre ou se expanda a relação jurídica processual, como se passa v. g. com o mandado de segurança coletivo. O processo não defende só direitos subjetivos ou pretensões. Se bem que muitas vezes os suponha, o destino do processo é a atuação da lei, a realização do direito objetivo. Hoje, só secundariamente é que protege os direitos subjetivos. Por isso mesmo, o direito, a pretensão e a ação existem a despeito da existência, ou não, dos remédios processuais. Quando deles lança mão alguém, crendo-se, ou não, com direito, não lhos nega o Estado. Se só os que têm a pretensão tivessem direito ao uso dos remédios, haver-se-ia de começar do fim para o principio: quem tem razão (direito, pretensão) tem ação, quem tem ação tem remédio processual. Ora, só se sabe quem tem “razão” depois que se instaurou o processo (remédio), que se verificou ser procedente a ação (isto é, existir), por se terem produzido as provas, e se pronunciou a sentença, contendo o direito objetivo. Daí ser intimamente ligado ao foro o processo: nele, vários atos são coordenados, regulados, com o intuito de se realizar em determinado lugar e tempo, a justiça. Em conseqUência disso, os princípios que o governam, no direito intertemporal e no direito processual internacional, são diferentes daqueles que decidem em assuntos de direito material. Além disso, pode bem ser que se alegue titularidade de direito, de pretensão e de ação, e não se tenha esta, ou não se tenham aquela e esta. A decisão, que aprecie o mérito (isto é, o fundo da causa, o direito material que se quer aplicado), pode reconhecer o direito e a pretensão, sem reconhecer a ação, ou somente reconhecer o direito. Tal decisão faz coisa julgada, ali, favoravelmente, quanto ao direito e à pretensão, e, desfavoravelmente, quanto à ação; aqui, favoravelmente, quanto ao direito e, desfavoravelmente, quanto à pretensão, e à ação. Por outro lado, a decisão pode só dizer que a pretensão ou a pretensão e a ação ainda não existem, o que faz restrita ao momento em que se encerrou o debate a coisa julgada. Vimos que reduzir a ação a elemento do direito subjetivo seria desatender à realidade. Há direitos subjetivos sem ação. B. Windscheid tentou mostrar a diferença entre a actio romana e o Klaqrecht, que seria conceito arbitrário, criado pelos juristas; mas as suas meditações não resolveram o problema. Não viu ele a prestação jurisdicional do Estado, desde o momento em que monopolizou a justiça, fato, esse, que não se diferença, essencialmente, daqueles em que o Estado estabelece outros monopólios, como o de telégrafos, de correios e de demais serviços — e é o fito da pretensão à tutela jurídica. 2. Preexistência do direito, da pretensão e da ação. O direito subjetivo, a pretensão e a ação preexistem ou se supõe que preexistem, ao exercício, ao uso dos remédios jurídicos processuais. Se o direito do Estado A confere a ação, mas o do outro não possui o remédio, o titular do direito subjetivo, da pretensão e da ação não pode, no outro Estado, provocar a justiça. A ação não existe porque se vai exercer, condicionada à entrada do titular em juízo. Existe por si, independente de qualquer manifestação de vontade do titular. Ainda mais: o remédio jurídico processual é conferido a quem quer que se ache em situação de propô-lo, variando apenas os pressupostos de legitimação ativa e passiva. O que dele se utiliza pode ter ou não ter ação. Lamentável confusão entre ação e remédio em Ugo Rocco (L’Autoritâ delia Cosa giudicata, 533), que admite seja a ação (?) universal, abstrata, indeterminada. A ação é direito a reclamar. Não é o direito subjetivo, que já definimos, nem o direito-meio, que os Estados conferem com os remédios jurídicos processuais. O direito de ação não é contra determinado Estado, o que dele faria direito público subjetivo; mas admissão, por parte do direito mesmo que cria a

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relação, No direito brasileiro, há pretensão, e não ação, nos casos de jogo ou aposta, ou de empréstimo para jogo ou aposta; nas chamadas obrigações naturais — nem pretensão nem ação. d) A “ação” é outro grau em que já se confere a alguém, autor, titular da ação, o reclamar, através ou por meio de ato, a verificação, a atuação da lei. e) O remédio jurídico processual é meio instrumental, que o direito formal põe a serviço de pessoas que estejam em determinadas situações, para que, com o uso dele, possam suscitar a decisão, a prestação jurisdicional. Ao direito das gentes, por exemplo, falta apenas o aparelhamento que assegure tais remédios, o que de modo nenhum quer dizer que não existam direitos subjetivos das gentes, pretensões ou ações de direito das gentes. Do mesmo modo, a liberdade física existe, como direito, onde não exista direito ao habeas corpus ou onde se negue a ação de liberdade física, se bem que se reconheça o direito. Subjetivação, pretensão, ação, remédios jurídicos processuais —são quatro fatos diferentes. f) As “ações” são para que se declare, ou se constitua, ou se condene, ou se mande, ou se execute. Quando o interessado exerce a pretensão à tutela jurídica, nasce-lhe a pretensão processual, dependente da eficácia daquele exercício. Durante esta obra muito teremos de levar em conta (e de empregar) a classificação das ações, segundo os pesos de eficácia de cada uma; convém, todavia, que prestemos atenção, desde já, a algumas precisões técnicas. 3. Importância da classificação das ações. Investigações da natureza das pretensões e das ações de declaração, de constituição, de condenação, de mandamento e de execução levaram-nos a atitude diferente da que se firmara na Europa antes de 1939. A ação é de declaração, porque quase se satisfaz com isso. Provas: condena, tanto que há réu, e é condenado; constitui,como toda sentença, a si mesma; manda, tanto que vale como preceito. A ação é de mandamento, porque é mais específica em mandar. Provas: a sentença de mandamento declara (alguns escritores alemães entendem que as onlens provisórias de registro e cedas medidas são unzias de declaração, mas é sem fundamento tal afirmação); constitui a si mesma, e tanto, que o seu efeito executivo é explicito e inerente a ela; condena, tanto que, em vez de condenar para que seja ulterior a execução (sentenças de condenação), condena, dirigindo-se, desde já, ao órgão de execução. A ação é de constituição, porque é mais constitutiva, ou mais explicitamente o é, do que as outras. Provas: na sentença constitutiva, declara-se, porque toda constituição, modificação ou extinção de relação de direito por sentença implica declaração da existência desse direito à ação constitutiva; manda-se, porque o resíduo autoritativo do mandado lá está na própria atuação ex tunc ou ex nunc da sentença (“anulo”, “revogo”, “rescindo”, “constituo”); condena-se, porque algumas têm mesmo, explícita, a condenação (e. g., sentença de nulidade de casamento, de separação judicial). A ação é de condenação, porque o elemento condenação à prestação aparece mais do que nas outras classes de ações. Provas: a ação de condenação é também declarativa, pois que a sentença do juiz, que condena, declara a existência ou a inexistência de relação jurídica, e aplica a lei (declaração autoritativa, que de nenhum modo se distingue daquela que se revela na sentença da ação declaratória); constitui, porque se constitui a si mesma; manda, porque há, no juiz, ineliminável, o mandamento. A ação é mandamental porque o que se decide, a respeito do pedido, é expedição de mandado, embora, para isso, tenha sido preciso declarar o direito, com outros elementos eficaciais, que compõem a eficácia total da sentença. A ação é executiva porque, qualquer que tenha sido o titulo, primacialmente se retira do patrimônio de 13 o que se retirara do patrimônio de A, a quem se entrega. Compreende-se que, para isso, tenha de haver os outros elementos eficaciais, em menor dose. Para que o acima exposto fosse destruído, fora preciso que se apontasse, pelo menos, “uma” sentença pura de condenação, outra de declaração, outra de constituição, outra de mandamento, outra de execução. Não há Nem nunca houve. A qualidade de cada uma resulta, apenas, da quantidade ou intensidade de um dos elementos (declaratividade, constitutividade, condenatoriedade, mandamentalidade, execução). A ação executiva tem mínimo de declaratividade. Daí chamarem-se as outras ações declarativas, em sentido lato. Mas, se de cognição incompleta, e admitida pela

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certeza do titulo não-judicial, condena provisoriamente: é ação de condenação mais a execução adiantada. Se de cognição incompleta, e admitida por serem restritas as exceções, condena por parte: é ação de condenação mais adian-tamento da execução. Se de cognição incompleta, e admitida pelo valor do exame superficial do título, condena injuncionalmente: é ação de condenação mais adiantamento de execução. é, Por que então não se põe a pretensão de executar como fonte de ação executiva, tão autônoma quanto as outras ações? A ação executiva de títulos ou de sentenças é classe, como a ação declarativa (em sentido largo) — as ações de declaração, condenação, constituição, mandamento, de que falamos, seriam subclasses desta. 1. Ações declarativas latissimo sensu: a) ação declaratória; b) ação de condenação; c) ação constitutiva; d) ação de mandamento. II. Ações executivas: a) ação executiva (senso estrito); b) ação executiva de julgado. As ações 1, a), b), c) e d), correspondem à pretensão à sentença (Urteilsanspruch), ou à declaração pelo juiz; e à pre-tensão à execução (Vollstreckungsanspruch) as ações II, a) e b). A classificação ganha em valor teórico e prático se formos mais rigorosos e atendermos ao fato de que a ação declaratória não é mais do que ação mais cheia de elemento declarativo do que as outras, e de que as ações 1, b), c) e d) são ações em que o elemento de condenação, de constituição, ou de mandamento sobreleva, e a que a própria ação executiva lato sensu é declarativa, no seu tanto. Há mesmo ações executivas em que o elemento declarativo é tão grande que a dúvida, dentro da ciência, está exatamente em se saber se são declarativas ou executivas. Deixamos de dar exemplos, pelo termos de miudear os casos, nos momentos próprios do estudo de cada ação. Assim, a clas-sificação pela preponderância de um dos cinco elementos dá-nos outro quadro: 1. Ação declarativa: a) ação declarativa; b) ação declaratóxia de inexistência ou existência de relação jurídica ou de autenticidade ou falsidade de documento. 2. Ação de constituição. 3. Ação condenatória. 4. Ação de mandamento. 5. Ação executiva lato sensu: a) ação executiva, por antecipação ou adiantamento da executividade, de que são exemplos as de títulos extrajudiciais, mas de cognição incompleta ao tempo da eficácia executiva; b) ação executiva, sem antecipação ou adiantamento da executividade, de modo que a sentença final é que é a “executiva”; c) ação executiva de sentença (“execução das sentenças’, que são títulos para se iniciar execução, já sem a elaboração da cognição completa, porque a sentença exequenda deixou atrás aquela elaboração e tende a explorar a cognição completa que traz em si). Por essa classificação guia-se este livro, sem descurar de apontar, pelo menos, o segundo elemento preponderante, para que ressaltem os diferentes efeitos das sentenças. Por outro lado, devido a não serem sempre contemporâneas a eficácia predominante e a sentença, nem sempre a característica da sentença está na eficácia que ela produz — às vezes só confirmativa, e. g., de completar a cognição; outras, somente de ingresso. A pretensão à tutela jurídica à asseguração de ceda situação de fato (inclusive prova), concessão de medida preventiva ou de asseguração da execução, é chamada, em terminologia científica do direito processual, pretensão à segurança ou à asseguração. Pressupõe-se outra pretensão, ou à sentença ou à execução; porém, como veremos no lugar próprio, é autônoma. As ações e sentenças, que então se preferem, são mandamentais. Não há por onde se criar sexta espécie de ações. Se elas tomam a natureza de execução para segurança (por exemplo, adiantamento da execução), são executivas. Têm razão, portanto, os que consideram à parte a pretensão à segurança (e. g., Rudolf Pollak, .System, 144), porém não os que consideram as ações correspondentes como classe própria. Por onde se vê, como em outros casos, que a classificação das ações não corresponde à classificação das pretensões. Por outro lado, erram os que têm a execução adiantada como se fosse espécie das ações de segurança (preventivas). A preventividade de tais ações é, ou passou a ser, elemento ínfimo junto à sua executividade específica.

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Quanto à pretensão à asseguração da prova, é de justiça reconhecer-se que foi Rudolf Pollak (Systern, 46) quem mais se preocupou com a sua natureza e classificação e quis pôr a ação respectiva ao lado da ação declaratória de documento, mas teve de renunciar à assimilação. Se as ações chamadas “oposição de terceiro” e “embargos de terceiro” são mandamentais; e mandamentais as sentenças respectivas, discutiremos nos lugares próprios. (a) A ação declarativa tem como conteúdo obter a declaração de relação jurídica, ou da inexistência dela, ou de ser falso ou verdadeiro algum documento, ou de alguma situação jurídica. (b) As ações constitutivas têm como conteúdo a obtenção de sentença constitutiva, correspondente ao elemento constitutivo que prepondera. (c) A ação de condenação tem como conteúdo obter decisão condenatória. Se bem que seja excepcional não terem efeito executivo (e. g., condenação ao restabelecimento da vida conjugal) as sentenças de condenação, esse efeito não lhes é essencial; nem, tampouco, necessariamente posterior. Combinadas com o adiantamento de execução, dão-nos as ações executivas de títulos extrajudiciais, mas, aí, a executividade prepondera. Alguns escritores pretenderam definir a sentença de condenação como a sentença em que se declara a violação de uma obrigação ou eventualmente a lesão de um direito; mas é evidente o equívoco que nasce de se empregar o termo “declarar” sem se lhe medir o conteúdo: há declarar latissimo sensu, em que a açao declarativa compreende a declarativa stricto sensu, a constitutiva, a condenatória, a mandamental e a executiva; há declarar lato sensu, que apanha a ação declaratória de existência ou inexistência de relação jurídica, ou de autenticidade ou falsidade de documento, e as outras preponderantemente condenatôrias, constitutivas ou mandamentais, ficando de fora as executivas. Nada mais perigoso, em ciência, do que esse trocar de conteúdo mostrando-se o mesmo frasco. Não é o nome que importa, o que importa é a coisa. Definir a ação de condenação como a em que se declara a violação de obrigar, ou a lesão de direito, é o mesmo que definir homem como animal que éhomem, ou como bípede que fala etc. Nas ações de condenação, a sentença tem como efeito normal, pois que não houve adiantamento de execução ou de mandamento, o efeito executivo, pela formação de título executivo; mas a sentença não é executiva, menos ainda a ação. Uma coisa é ser executiva, ter força executiva; outra, ter efeito. Por isso mesmo, a inclusão ou o nomear-se a ação de condenação como ação executiva peca pela base; e devem ser repelidas as sugestões de J. W. Planck (Lehrbuch, II, 10) e de Konrad Hellwig (Lehrbuch, 1, 46) a esse respeito. A sentença de condenação não executa — permite a execução; tampouco, manda que se cumpra a prestação abre portas a que se peça a execução e o juiz executor execute (sobre esse ponto, James Goldschmidt, Ungerechtfertigter Vollstreckungsbetrieb, 45-48). Em conse-qúência disso, a ação para que o devedor emita declaração de vontade não devia estar na execução de “sentença”, nem tampouco é preponderante, nela, o elemento condenatório. (d) O conteúdo da ação de mandamento é obter mandado do juiz, que se não confunde com o efeito executivo da sentença de condenação (sem razão, James Goldschmidt). A sentença de condenação pode conter, também, mandamento ao que executar a sentença, mas isso é outra questão. No despacho ou mandado administrativo, o Estado tem interesse quanto ao próprio conteúdo, o que não se passa quanto à decisão judicial. Nesta, o interesse do Estado é apenas o de que se realize o direito objetivo e, hoje secundariamente, se pacifique. Mas isso não tira à administração certas incursões excepcionais, porém não anormais, na realização do direito objetivo in abstracto. A ação de mandamento fica a meio do caminho, entre o ato judicial (declarativo a forte dose) e o ato de administração. (e) As ações executivas, lato sensu, nem sempre têm como conteúdo a obtenção de declaração ou de condenação. As ações fundadas em títulos extrajudiciais são ações executivas que têm por fito execução antecipada (adiantamento dos efeitos da cognição) e a condenação final. Não assim as ações executivas de títulos judiciais. Algumas ações executivas mesclam-se de elementos constitutivos (e. g., ação de extinção de usufruto ou de fideicomisso e partilha do bem ou dos bens). Se bem que Wilhelm Kisch (Beitrâge, 73 s.), Max Pagenstecher (Zur Lehre von der materiellen Rechtskraft, 29, nota

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60) e Franz F. Heim (Die Feststellungswirkung, 70 s.) duvidassem, Konrad Hellwig (Anspruch, 478 s.), James Goldschmidt (Nachprafung der Vertragsauflõsung, Archiv fíir die civilistische PraxEs, 117, 19), Giuseppe Chiovenda (Istituzioni, 1, 179-182) e Arthur Nussbaum (Die Prozesshandlungen, 38) provaram existir efeito declarativo em toda sentença constitutiva. Teremos ensejo de mostrar as diferentes doses desse elemento, com as suas consequências apreciáveis. Seria de proveito denominar-se cada sentença pela sua força e por seu efeito imediato — sentença declarativa constitutiva, sentença condenatória mandamental, sentença de mandamento constitutiva etc. — e isso teria todas as conveniências de aludir a conceitos conhecidos, desde que se atendesse à preponderância do primeiro elemento. Andaram por perto de tal sugestão, que nos lembre agora, E. Seckel, no célebre escrito da Fest gabe de R.Koch, e Francesco Carnelutti (Studi, 1, 311 si; mas ainda vitimas de certa perplexidade, diante de tema tão novo. A existência de elemento declarativo em todas as sentenças, estabelecendo-se doses diferentes entre elas, ainda entre as executivas e as constitutivas, afasta a possibilidade de se poder enunciar, a priori, que tal ou tal sentença, por ser constitutiva, ou executiva, não faz coisa julgada material. A distinção de classes de sentenças que produzem coisa julgada material e classes de sentenças que a não produzem é lenda de jurista. A eficácia depende da relevância da declaratividade na sentença, em virtude do pedido. O que há são classes que sempre têm esse efeito e classes que o têm em menor probabilidade. A resposta há de ser, quanto a essas classes, a posteriori. Teremos ensejo de ver: a) que o peso de eficácia das ações e das sentenças é constante, b) que há cinco elementos que compõem o peso, em ordem decrescente, chamando-se força ao primeiro, c) que é o preponderante e dá a classe à ação ou à sentença, e d) que o segundo (eficácia imediata) e o terceiro elemento (eficácia mediata) são de importância considerável. Na jurisprudência, por falta de conhecimentos de direito processual, encontram-se erros infantis quanto às sentenças, sua natureza, classificação e efeitos. Um deles é o que resulta de se ignorar a diferença de peso de declaratividade, constitutividade, condenação, mandamento, executividade. Por exemplo: a Corte de Apelação do Distrito Federal, a 7 de agosto de 1924 (RD, 74, 190), e o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 25 de outubro de 1933 (RT, 91, 570), não viam possibilidade de atributividade da sentença: todas as sentenças só seriam declarativas. Alguns autores falam, a mais, da pretensão de segurança e da ação de segurança, de que é exemplo a ação do que pede o depoimento ou a vistoria em perpétua memória, o registro da hipoteca legal, ou da hipoteca judiciária, que a lei processual pode transformar em efeito da sentença, como se deu em 1939 e em 1973. As medidas preventivas ou acautelatórias entram ai. Rudolf Pollak (System, 44) frisou que se trata, no fundo, de pretensão à sentença ou à execução. Aparece essa pretensão, porque o meio normal seria inábil. Mas se esse meio provisório ou emergencial constitui pretensão à parte? No processo cominatório temos alguns casos. Tanto não é pretensão á parte que só se permite nos casos previstos pela lei processual ou resultantes do seu sistema. Não poderíamos tê-la como a sexta espécie de ações. O que se autoriza é a entrega de mandado. Também é pretensão a de tomar parte secundariamente no processo alheio (pretensão à tutela jurídica secundária), quer declarativo, loto sensu, quer de execução. Ai, G. Petschek (Die Zwangvollstreckung, 1, 160) falou de pretensão a tomar parte na execução. A existência da pretensão à condenação, ou à constituição negativa, ou positiva, ou à executividade, ou ao mandamento, e a existência de ações correspondentes a tais pretensões de modo nenhum excluem a proponibilidade da ação declaratória. Quem já tem a pretensão à condenação (a ser pago, ou a que o réu seja condenado a prestar algo a si, ou a outrem) pode satisfazer-se com o exercício da simples pretensão à declaração: não cobra, pede que se ponha claro que é credor; não promove a condenação do réu, pede que se ponha claro que ele, réu, é devedor. O que foi ofendido por ato jurídico inválido, podendo pedir a decretação da nulidade, ou anulabilidade, pode satisfazer-se com o pedido da declaração da outra relação jurídica, de que lhe emanam direito, pretensão e ação. O que poderia pedir a execução (ação executiva de título, ou outra; ação de reintegração de posse, ou de reintegração de funcionário público inconstitucional ou ilegalmente demitido) pode pedir a simples declaração da relação jurídica, de que é titular. O que teria a ação mandamental (e. g., habeas corpus, mandado de segurança) pode pedir a simples declaração da res deducta. O fato de já se achar proposta a ação de condenação, ou outra, não obsta à propositura da ação declaratória. A classificação quinária das ações de cedo modo as escala, de tal jeito que as ações menos simples se podem cindir,

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tornando-se proponíveis as mais simples, independentes da restante eficácia; e. g., propõe-se a declaratória, que seria questão prévia da condenatória, e depois, já trânsita em julgado a sentença na ação declaratória, a condenatória, para a qual se leva a res ludicata da sentença anterior. § 47. Processo 1. Conceito. Processo, de procedere (pro-*zdo), ir dali para frente, é fato em seguimento, em que não há referência necessária a algum fim, pois há processos, químicos e biológicos, em que o fim não aparece. Pode haver apenas alcance ou objetivo. No sentido jurídico, nele há série de ações humanas, que entre si se prendem, para se atingir determinado fim, que é a prestação jurisdicional, administrativa ou legislativa pelo Estado, ou — mais largamente — por entidade jurídica. Lis, judicium, iurgium, eram os termos usados no direito romano: lis é luta (lucta, luita, luta); iudicium é dição do direito (o iudex diz o ais); lurgium é disputa jurídica (jurga é ius-igo). A função do Estado, através do pretor, era até a litiscontestatio (procedimento in iure). Somente depois aparecia a figura do iudex (procedimento apud iudicem). Percebe-se a transição entre a justiça de mão própria e a justiça estatal, que só veio depois: era o iudicium privatum, forma mista, intercalar, dependente da vontade das partes, já manifestada perante a autoridade estatal. No procedimento in iure punha-se em fórmula a controvérsia. A incoação que fora só pelas partes passou a ser pelo magistrado. 2. Procedimento e autos de processo. A palavra “processo” serve, às vezes, para se aludir ao procedimento, sem se exigir que somente haja a relação jurídica processual, a que corresponde. Nesse sentido diz-se que a ação e a reconvenção correm no mesmo processo; isto é, e a mais, a reconvenção há de ser formulada com a contestação. A cada momento empregam-se as expressões “processo “pleito” e “litigio” como sinônimos perfeitos. Advirta-se, porém, em que não há litígio, necessariamente, em todos processos civis, nem, sequer, controvérsia. Por outro lado, casos há em que, nos processos em que pode haver litígio, a concordância inicial do demandado afasta qualquer disputa. Demais disso, fora do processo, podem as partes resolver, por ato juridico declarativo, ou por transação, ou remissão, as controvérsias que há ou é possível que surjam entre elas. 3. Processo civil. Processo civil é o procedimento regulado por lei ou outra fonte de direito para a realização do direito, mediante declaração, condenação ã prestação, constituição, mandamento ou execução ou asseguração de direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções para que tenham as pessoas pretensão à tutela jurídica perante o Poder Judiciário ou juizes arbitrais, em matéria de interesse não-penal. 4. Processo penal. Processo penal é o procedimento regulado por lei ou outra fonte de direito para realização do direito penal. Processo administrativo é o procedimento regulado por lei ou outra fonte de direito para realização do direito administrativo, perante autoridades administrativas. 1-Há legislação de processo civil especial, como a do trabalho, a de execução fiscal e a de desapropriação, e de processo administrativo, como a eleitoral. O processo (criminal) de responsabilidade do Presidente da República e de outras autoridades federais, estaduais e municipais também é objeto de leis especiais. § 48. Pedido e relação jurídica processual 1. Conceito de pedido. É preciso não se confundir o pedido, o petitum, com o direito, a pretensão, a ação ou exceção cuja declaração, ou sanção condenatória, ou constitutiva, ou mandamental, ou executiva se pede. Não se pede a ação; pois que a ação se tem: pede-se que se declare, se constitua, se condene, se mande, ou se execute. A pretensão

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processual é pretensão à sentença, por se ter exercido a pretensão à tutela jurídica. Se chamamos demanda” ao pedido de outorga da tutela jurídica mediante sentença, cumulação de ações é cumulação de demandas, e não de ações de direito material, se bem que, de ordinário, a cada ação de direito material corresponda “ação” de direito processual, pretensão processual. Quando se exerce a pretensão à tutela jurídica, exerce-se pedindo que se cumpra a promessa estatal de tutela jurídica. Tal exercício dá ensejo a que nasçam pretensões à sentença, pretensões processuais. O que se exerceu, pré-processualmente, foi a pretensão à tutela jurídica. Quem a tem ainda não tem pretensão processual: a pretensão processual depende (= nasce) do pedido. Quem tem pretensão à tutela jurídica, tem-na ainda que não a exerça. Quem a exerceu não a perde e faz-se titular da pretensão processual, pretensão ao remédio jurídico processual. Quando a Constituição prometeu habeas corpus, habeas dato, mandado de injunção e mandado de segurança, inclusive coletivo, nas espécies que definiu, criou pretensão à tutela jurídica por meio de mandamentos, porém somente quem impetre o mandado tem pretensão processual. No texto constitucional, não só se promete tutela jurídica; promete-se tutela jurídica mandamental. A qualificação da tutela jurídica não a desnatura. A pretensão processual, ainda quando haja qualificação, somente nasce com o exercício daquela. Quando a pretensão à tutela jurídica se qualifica, diminui a margem de liberdade que tem o legislador do direito processual. Essa diminuição pode ser obra do direito constitucional. 2. Dever de administrar justiça. Os juizes e tribunais estão no dever de administrar justiça e são obrigados a isso desde que os interessados, com pretensão à tutela jurídica, a exerçam. A pretensão processual, que nasce desse exercício, corresponde a obrigação de prestar a justiça (— entregar a prestação jurisdicional). Antes, apenas o Estado era vinculado pelo que prometera, fazendo nascer a pretensão à tutela jurídica. Se o interessado não tem pretensão à tutela jurídica, não se obriga à decisão o Estado; o juiz ou tribunal declara que não há tal pretensão, e a decisão, que dá, pré-exclui o procedimento. Praticamente, tudo se passa como se fosse processual o pressuposto, porque vem antes a exigência; e a falta do pressuposto pré-processual necessariamente é falta de pressuposto processual. Os juizes e tribunais têm de examinar o pré-processual e o processual, para, depois, examinar o fundo da causa. A relação jurídica processual é una e unitária; vai do começo ao fim do processo, salvo se o procedimento é julgado inexistente, porque, aí, a decisão do juiz ou do tribunal tem função de autodefesa. Juiz ou tribunal diz um “não é”, que implica ter afastado, declaratoriamente, qualquer eficácia do procedimento. A relação jurídica processual é uma só até que se profira a sentença terminativa e transite em julgado. Por isso mesmo e de repelir-se qualquer proposição sem que apareça o conceito de relação jurídica que leva até a execução, se a sentença mesma não teve carga de executividade que predomine ou lhe seja a de eficácia imediata. É de grande relevância saber-se que o dizer o juiz que não cabe o procedimento ordinário, ou o especial, inclusive o executivo de títulos e o de sentença, apenas concerne à admissibilidade da demanda (pressuposto processual). Se o juiz entende que a ação, que se havia de intentar, seria para declarar, e não para constituir, ou condenar, ou mandar, ou executar, ou para condenar, e não para qualquer dos outros fins, ou para constituir, e não para qualquer dos outros fins, ou para mandar, e não para qualquer dos outros fins, ou para executar e não para qualquer dos outros fins, houve impropriedade de “ação”, no sentido processual. Se, examinando o caso, o juiz decide que não tem o autor o direito, a pretensão ou a ação de direito material, entrou no exame do mérito, porque não se restringiu à apreciação do pressuposto processual. A exceção de direito material é mérito. 3. Admissibilidade processual e mérito. A petição é que determina o conteúdo e a extensão do procedimento, faz nascer, com o despacho, a relação jurídica processual, induz, com a citação, litispendência e determina, se não sobrevém restrição, o conteúdo e a extensão da sentença. Quando se diz que a petição determina a classe e a medida da tutela jurídica, hão de ressalvar-se as espécies em que a pretensão à tutela jurídica já estava qualificada. Esse é um dos pontos a que alguns juristas não têm prestado a devida atenção. Apenas se enuncia que a demanda determina a classe e a medida da tutela jurídica. Se a pretensão à tutela jurídica foi qualificada, a demanda é exercício dela; não determina classe, nem medida da pretensão à tutela juridica. A propositura da açào, com a petição, não é negócio jurídico. Trata-se de ato jurídico stricto sensu, composto de mani-festação de vontade e declaração de conhecimento. (A propósito, observe-se que Leo Rosenberg, Lehrbuch, 59 ed., 258, identifica, de um lado, declarações de vontade e negócios jurídicos e, do outro, -reduz a manifestações de vontade,

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sem “declaração”, os atos juridicos stricto sensu, o que é de repelir-se, energicamente,: há negócios juridicos que provêm de manifestações de vontade; e atos jurídicos stnicto sensu que se originam de declarações de vontade. A declaração de vontade é a manifestação de vontade que se declara, isto é, que se manifesta claramente.) A sentença há de corresponder à petição, pois é a petição que lhe determina a classe e a medida. Não se trata de resposta a pergunta do autor, ou do reconvinte; porque o autor interroga, o autor exerce a pretensão à tutela juridica e a pretensão processual, nascida com a petição. Devemos evitar tais comparações que conturbam a inteireza lógica da exposição científica. Quando a sentença, em vez de dar a razão porque julga procedente, ou improcedente a ação, põe tem ao feito, sem lhe julgar o fundo, apenas desfaz a relação juridica processual, por entender que não foi regular o exercício da pretensão à tutela jurídica, ou o exercício da pretensão processual. Então, a demanda mesma é inadmissível. Quando o autor exerce a pretensão à tutela jurídica e lhe nasce a pretensão processual, tem o juiz de sentenciar: se o exercício foi irregular, ou se se tomou irregular, a sentença não é sobre o fundo, sobre o mérito, se bem que seja terminativa do feito. A sentença que decreta a invalidade desde o inicio é sentença de reexame, que não admite, ex tunc, a demanda. A pretensão à sentença é a pretensão processual; a pretensão à sentença sobre o mérito é a pretensão processual que não foi julgada inadmissível. A admissibilidade do procedimento depende de pressupostos positivos (pressupostos da existência de algo) ou negativos (pressupostos de não-existência de algo). A competência, a capacidade para ser parte e a capacidade processual são pressupostos processuais positivos. A coisa julgada é pressuposto processual negativo; se existe, o processo, que sobrevém, é inadmissível, porque o pressuposto processual positivo falhou. Tem-se chamado impedimentos processuais às exigências negativas, que dependem de reclamação do demandado, tais como; a) a exceção de compromisso, que derivou de negócio jurídico bilateral, ou unilateral, ou por lei, este inafastável por acordo posterior, b) a exceção de caução às custas, e c) a exceção de falta de pagamento das custas, inclusive nas espécies de extinção do processo sem julgamento do mérito, com ou sem repropositura da ação. Se não falta algum dos pressupostos processuais e se não ocorre algum impedimento processual, tem o juiz de julgar a ação, quanto ao mérito. No direito brasileiro (note-se: no direito brasileiro), devido a não se poder pronunciar nulidade não cominada se não a argúiu o interessado na observância da formalidade ou na repetição do ato, há fatos positivos ou negativos, que seriam pressupostos processuais, mas tiveram, de lege lato, o trato dos impedimentos. Também atinge a categoria dos pressupostos processuais, reduzindo-os a impedimentos, a regra jurídica que veda ao juiz pronunciar a nulidade ou ordenar suprimento ou repetição do ato se pode decidir do mérito a favor da parte a quem a decretação da nulidade aproveitaria. Quando se permite que o juiz, em caso de impropriedade da ação, só decrete invalidade dos atos que não puderem ser aproveitados, afasta-se, acertadamente, a solução que entendia ser caso de nulidade por impro-priedade de ‘ação”, isto é, do remédio jurídico processual. A demanda é inadmissível se há falta de pressuposto processual, ou se há impedimento processual. Todavia, se falta só existe para uma das pretensões processuais ou para um dos fundamentos da demanda, somente para aquela ou para este ponto é que se há de julgar inadmissível. Seria confusão irritante se o juiz, tendo de admitir a demanda, a repele porque infundada; ou se a julga improcedente, se a espécie seria de inadmissibilidade; ou se, tendo de considerá-la inadmissível, julga procedente a ação. Tampouco, se tem dúvidas sobre ser, ou não, admissível pode manifestar essa dúvida: só se entra no mérito quando se tem por ceda a admissibilidade. Julgada inadmissível a demanda, o juiz tem-se de abster de permitir qualquer discussão ou produção de prova sobre o mérito. Isso não quer dizer que, prosseguindo, não possa deferir ou admitir a discussão em separado da questão de admissibilidade. O juiz tem de apreciar, de oficio, os pressupostos processuais. Para isso, pode suscitar discussão, inclusive quanto ao valor da causa. Nos casos em que o juiz, que era incompetente, se faz competente, tem-se de pensar em que se criou o pressuposto processual que faltava. Tem-se pretendido que a pessoa que não tem direito não tem pretensão à tutela jurídica, mas apenas possibilidade de demandar. Não ter direito é, aí, não ter direito, pretensão, ação ou exceção de direito material. Em vez de se examinarem os fatos antes da demanda, que é exercício de pretensão à tutela jurídica, pula-se, no tempo, até a sentença, que é a prestação obtida em virtude da pretensão processual, nascida do exercício da pretensão à tutela jurídica.

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A ação exercida só é procedente (fundada) se o autor tem direito, pretensão, ação, ou exceção (de direito material). Antes disso, teve-se de verificar se os pressupostos processuais foram satisfeitos e, antes ainda, se foi exercida e se existe pretensão à tutela jurídica. As partes podem renunciar a alegação e prova dos impedimentos processuais na acepção vista: exigências negativas que dependem de reclamação do demandado. Se não se alega a existência de qualquer deles, dentro do tempo, preclui a alegabilidade: o impedimento desaparece. 4. Prolação do sentença e ordem dos julgamentos. Encerrado o debate, ainda assim se pode arguir a falta de pressuposto processual, ou a existência de impedimento processual, com responsabilidade pelas custas de retardamento. Até então não se pôde tomar competente o juízo incompetente material e fundamentalmente, nem depois; a parte pode ratificar a procuração, ou apresentar o assentimento marital ou uxório. No segundo grau de jurisdição pode ser enchida a falta do pressuposto processual ou desaparecer ou afastar-se o impedimento processual. A preclusão das exceções de incompetência relativa e suspeição somente concerne às partes e mais interessados. Ao juiz permite-se dar-se por absolutamente incompetente, impedido ou suspeito, depois da contestação. Examinada a petição, o primeiro julgamento do juiz ou tribunal há de ser o da própria competência. Ou é competente, ou não o é. Só o juiz ou tribunal competente pode decidir sobre as outras matérias. Razão por que, se exame superficial da petição mostra que não lhe cabe a cognição, deve o juiz abster-se de qualquer julgamento, inclusive sobre inépcia ou impropriedade da “ação”. O juiz suspeito ou impedido é como juiz incompetente. Depois, tem o juiz de resolver sobre a admissibilidade da via judicial e do rito processual, sobre a perempção, a litispendência ou a autoridade da coisa julgada, sobre a existência das partes, sobre a capacidade de ser parte e sobre a capacidade processual, sobre a representação legal ou voluntária, sobre a capacidade do procurador. Somente após lhe cabe decidir sobre os impedimentos processuais. Alguns entendem que apenas nesse momento é que se teria de dizer admissível, ou não, o rito processual (admissibilidade do procedimento escolhido, e. g., reconvenção, ação de modificação, modificação da demanda, processo executivo, processo cominatório, processo provocatório). Em verdade, há de vir antes do próprio exame da litispendência ou da coisa julgada. A necessidade da tutela jurídica (interesse de agir) pode ser apreciada logo após a leitura da petição, se não há dúvida quanto à competência; mas não importa a ordem em que se resolve sobre ela, pois que a falta do interesse pode só se revelar mais tarde, ou só ocorrer mais tarde. Erram os que a têm como matéria de mérito. A representação legal é pressuposto processual. A representação voluntária, não. Os atos do Falsus procurator são ine-ficazes; não são nulos. A capacidade de postulação, no direito brasileiro atual, é pressuposto processual de validade. O ato do incapaz de postulação é eivado de nulidade cominada, tendo o juiz de apreciá-la de oficio. Arraigou-se na linguagem técnica portuguesa e na brasileira o emprego das palavras “procedente” e “procedência” como sinônimos de “fundado” e “ter fundamento”, isto é, como juizos sobre o mérito. Noutras línguas, fala-se de procedente ou de improcedente com o sentido de admissível ou inadmissível a demanda. Á primeira vista, pode parecer que não devíamos usar termo que tem étimo em procedere, processus, para aludirmos ao fundo da demanda. Mas lá está em Paulo, na L. 32, D., de hereditatis petitinne, 5, 3: “Per servum adquisitae res heredi restituendae sunt: quod procedit in hereditate liberti et cum de inolficioso agitur, cum interim in bonis esset heredis.” As coisas adquiridas por intermédio de escravo ao herdeiro se hão de restituir; o que procede, na herança do liberto e quando se age por inoficiososidade, como quer que estivesse, no ínterim, entre os bens do herdeiro. Já ai “procedere” se refere ao mérito e viu-o B. P. Vicat (Vocabularium iuris utriusque, II, 53). Também é de Paulo (L. 24, D., de donationibus inter virum et uxorem, 24, 1) o fragmento em que se diz; “Se entre estranhos houver sido feita doação e, antes do tempo de se ter adquirido o domínio legítimo, se casaram, ou, ao contrário, se a doação foi feita entre marido e mulher e, antes de implir-se o tempo acima dito, se dissolve o matrimônio, a despeito disso consta que procede o benefício do tempo, porque, num caso, foi entregue sem vicio a posse e no outro foi afastado o vício” (‘(...) nibilo minus procedere temporis suffragium constat, quia altero modo sine vitio tradita est possessio, altero quod fuerit vitium, amotum sit”). Na L. 21, §

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5, D., de receptis: qui arbitrium receperint ut sententiorn dicant, 4, 8, Ulpiano põe o verbo “procedit” no sentido de ser cedo quanto ao fundo, se bem que a questão versasse sobre negócio jurídico de compromisso e a questão sobre prorrogação ou não-prorrogação. Na L. 7, § 4, D., ad legem Aquiliam, 9, 2, Ulpiano, referindo-se à luta entre pugilistas, em que houve morte, disse que se pré-exclui a incidência da lei Aquília, porque se entende que se causou o dano gloriae causa et virtutis, não mm ria causa. Para dizer que isso se não estendia ao escravo, mas sim quanto ao filho família, inseriu Ulpiano, respectivamente, “non procedit” e “procedit”. Na L. 2, § 20, D., pro emptore, 41, 4, Paulo, para exprimir que o tempo do vendedor favorece, para usucapião, ao comprador, escreveu: “Emptori tempus venditoris ad usucapionem procedit.” Logo adiante, Juliano (L. 7, pr.), ainda a respeito do tempo para usucapião se os escravos deixaram a terra comprada, falecendo o comprador, serviu-se, duas vezes, do termo “procedere”. Como se vê e atendendo-se a que processus, no sentido de processo (judicial, ou administrativo), só exsurgiu na Idade Média, acertado é o sentido que lhe dá a praxe portuguesa. Todavia, o senso largo, independente da distinção entre pressupostos processuais e impedimentos processuais, de um lado, e mérito do outro, tem toda pertinência; e. g., procede a (alegação da) exceção de incompetência. O sentido que o reduziria à apreciação daqueles pressupostos e impedimentos, como soem fazer escritores espanhóis, é que não devemos acolher. Julgar procedente a ação é, para nós, julgar o mérito, e não declarar que é admissível. § 49. Eficácia sentencial de coisa julgada (coisa julgada formal e coisa julgada material) 1. Decisões interlocutórias e coisa julgada material. Durante o processo, questões surgem que o juiz tem de resolver, processuais ou materiais, de fato ou de direito, que não dizem respeito à entrega da prestação jurisdicional. As resoluções do juiz, as decisões, que então pronuncie, são dotadas, ou não, de força formal de coisa julgada, a despeito da interlocutoriedade, isto é, de serem palavras (locutio) ditas entre a promessa estatal de julgar e a sentença final. São, ainda quando obtenham força formal de coisa julgada, simples preparações para aquela sentença de acolhida do pedido ou de rejeição dele. Não têm força material de coisa julgada. A sua eficácia é restrita, limitada a exigências de ordem e de desenvolvimento rítmico ou seguro do processo, com a preclusão da faculdade de serem renovadas no mesmo processo as questões dirimidas, se não forem de ordem pública. Porque lhes falta a força material de coisa julgada, noutro processo, posto que entre as mesmas partes e até a propósito do mesmo objeto (e. g., se foi nulo o processo anterior, ou se vai completar a cognição), é possível renovarem-se as mesmas questões e serem resolvidas diferentemente. As questões acidentais, quando não insertar em pedido e conteúdo autônomo de decisum, são questões que se tratam como em resoluções interlocutórias. De modo que, em virtude de lei, ou de conduta das partes na petição inicial ou na defesa (ou explicitação posterior da inserção no pedido ou na defesa), a questão prévia pode deixar de ser “interlocutória”. Se no processo se elevou de categoria a questão, fazendo-a uma das causae maiores, então a decisão faz coisa julgada material. O “acidente” passou a ser “final”. Não éa vontade do juiz que pode suscitar essa transformação, que equivale a pedir e a defender. É preciso que uma das partes, ou as partes o tenham querido e que a questão interposta possa e seja elevável a prejudicial-pedido. Tais considerações são de grande interesse prático, porque, frequentes vezes, os juizes só se preocupam com o ponto do decisum que não é prejudicial, fazendo aí todo o campo da eficácia de força material da coisa julgada, ou, o que não é menor erro, com a atitude oposta, que é de estendê-la a toda resolução que resolveu questões de fato ou de direito, ou mistas. Não raro, a ligação da prejudicial à questão-cerne (e. g., aquela proposição que responde imediatamente se o devedor tem, ou não, de prestar) é tão essencial à solução, que a própria construção jurídica lhe premarca a posição de pedido. Então, a coisa julgada material chega até ela. questões há, examinadas e resolvidas por decisões interluctórias (quaestio incidens) e definitivas (quaestio principdis). O elemento germânico e canônico revela, nesses pontos como em tantos outros, a sua necessidade feudal, absolutista, de tudo escalonar, ordenar, dotar de estabilidade, o que hoje denuncia na cultura ocidental a reaparição do receio de se quebrar o arcabouço social, produto da Idade Média. O próprio juiz perdeu a sua autonomia na apreciação das provas. De tudo havia de ficar escrito, expressão material que permanecesse. A resolução judicial que denega a anulação da arrematação não é despacho meramente interlocutório, no sentido das leis (sem razão, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 14 de janeiro de 1942, RF, 91,

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190). 2. Jurisdiçâo voluntária e coisa julgada material. As resoluções, sentenças ou decisões, proferidas em jurisdição voluntária ou graciosa, não têm força material de coisa julgada, porque a coisa julgada material se liga à segurança extrínseca, ao evitamento de litígios futuros. Uma das conseqUências é a de que a justiça, proferindoas, não fica tolhida de conhecer do mesmo objeto, achando-a posteriormente, noutro processo, injusta. Está mesmo autorizada a isso (Franz Schlegelberger, Die Gesetze (iber die Angelegenheiten der freiwilligen Gerichtsbarkeit, 1, 24). A regra res fudicata 1 us focit inter partes não pode ser invocada, para atribuir às sentenças proferidas em processo de jurisdição voluntária ou graciosa eficácia de coisa julgada material. Houve quem pretendesse elevar a regra à categoria de regra geral de direito público (assim, Konrad Schneider, Das Beschlussverfahren u. die Rechtskraft, Zeitschrift, 29, 153 s.); mas abusivamente, por só se tratar de regra de processo civil. No XXVI Congresso dos Juristas (tlerhandlungen, 1, 86 s., II, 32, III, 378 s.), M. Schultzenstein e E. Bematzik destruíram algumas afirmações de Konrad Schneider. Aliás, Conrad Bomhak (Verwaltungsrecht, II, 475) já fora claro, excluindo o principio em direito administrativo. Tentou-se também descobrir (ou indagar se seria possível descobrirem-se) casos de força material de coisa julgada na jurisdiçãovoluntária. Alguns escritores enfrentaram o problema de lege ferenda. Vale a pena referir o que dizia F. Stein (Grenzen und beziehungen, 102): “Devemos lembrar-nos de que, dentro dos próprios domínios, o reconhecimento da coisa julgada (material) não é ‘dado’ conceitualmente adquirido (‘begrifflich Gegebenes’), mas sim questão resolvida com extremo cuidado de finalidade.” Aqueles mesmos que pretendem levar a coisa julgada material a outros ramos do direito público, o que, a priori, não é vedado, tal como Seidier, no XXVI Congresso de Juristas (Verhandlungen, III, 385), não desconhecem a gravidade do passo. Maior interesse público é de se poderem, de regra, corrigir despachos errados na jurisdição administrativa. Nem se aleguem o interesse das partes e a segurança jurídica; pois que não houve litígio. Nem cabe argumentar-se com o interesse ser público, e não privado, no processo penal: a acusatoriedade assegura a vigilância pelo promotor e pela parte ou partes. A conseqUência prática, maior, em geral, é a de não ter força de coisa julgada qualquer decisão anormal do juiz em processo de jurisdição voluntária, resolvendo questão que tocaria ao processo contencioso. As sentenças e decisões proferidas na jurisdição voluntária têm eficácia, sem produzirem coisa julgada material; outra eficácia quanto às partes ou outra eficácia quanto aos outros juizes, inclusive os tribunais e os terceiros. (Há resoluções “administrativas” que têm força de coisa julgada formal e material, com as quais, todavia, não é incom-patível estarem tais resoluções administrativas sujeitas ao exame judicial segundo o princípio constitucional.) Os cálculos de imposto, quando controvertidos, são causa da Fazenda Pública dentro do processo alheio. Por isso, é erro dizê-los de jurisdição graciosa, se gracioso o processo em que ocorrem, e contencioso, se contencioso o processo. A contenção do processo nada tem com o cálculo; nem o cálculo com o processo. De regra, os cálculos são amigáveis e suscetíveis de contenção, que suscita a discussão e a decisão judicial com força de coisa julgada. Cedas, nas conclusões, as Câmaras Conjuntas do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 30 de janeiro de 1941 (RF, 90, 435). O relator, desembargador Gomes de Oliveira, tocou o ponto, que merece ser explorado pelos tribunais. Trata-se de caso de processo alheio dentro do processo. O melhor método prático para se descobrir se a ação ou a sentença é de jurisdição contenciosa ou voluntária é o de se começar por indagar se não pode ser voluntária. Ficam, então, de fora para ulterior exame se, podendo ser voluntária, os elementos de contenção permitem que se considere tal. Se a ação não é tendente a (a) suprir capacidade jurídica, nem a (b) cooperar na constituição (positiva ou negativa) do negócio jurídico, nem a (c) transformá-lo, e sim a (d) aplicar direito a caso em que o direito incidiu, então não há jurisdição voluntária, e a questão está resolvida desde já. Mas isso não significa que todas as outras espécies pertençam à jurisdição voluntária. O elemento contencioso pode superar a voluntariedade ainda nas espécies (a), (b) e (c). De modo que nem sempre depois do primeiro exame, se pode responder que “é” de jurisdição voluntária, posto que se possa responder, às vezes, que “não é”. Ninguém desconhece a contenciosidade das destituições de tutor e curador. Não é a forma que decide de ser voluntária ou contenciosa a jurisdição. A preponderância da contenção deriva da pretensão mesma, da sua estrutura de pressão contra alguém, que se defende ou pode defender-se, isto é, afirmar em contrário ao afirmado no pedido. A forma, essa, mais leva em conta o quod plerum que fit, portanto a mais vulgar maneira de se exercer a pretensão, e não a pretensão mesma. Por isso, encontramos procedimentos concebidos como sem contraditôrio e até inaudita altera parte, parecendo de jurisdição voluntária, que, em verdade, são contenciosos, como as medidas preventivas e aqueles processos em que a parte ré pode introduzir a contraditoriedade, ou deixar que se ultime como se de jurisdição voluntária. O fato de haver o legislador processual concebido o “procedimento” como de jurisdição voluntária, não basta para afastar a existência ou,

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pelo menos, a possibilidade do contraditório. As vezes, a sua técnica prevê a insurgência da contenção; outras, nao: so se preocupa com o que mais acontece, ou com os casos sem contenção. Seja como for, a distinção entre jurisdição voluntária e jurisdição contenciosa não pode ser feita dentro da lei de processo, porque os dois conceitos não são de direito processual; são pré-processuais; são mesmo “dados”, e não “construídos”; estão antes das leis de organização judiciária e das leis de processo. Daí a dificuldade de serem tratados como conceitos de direito processual. Regra juridica que exclui a coisa julgada material das sentenças em jurisdição voluntária, não só nelas exclui, nem confunde coisa julgada material e força ou efeito constitutivo. Algumas ações de jurisdição voluntária são constitutivas, de modo que a sentença tem força constitutiva, ou tem, pelo menos, efeitos constitutivos. Posto que Friedrich Stein (Grenzen und Beziehungen, 93, 94) ainda vacilasse em separar a força constitutiva (ou efeito constitutivo) e a força material (ou efeito material) de coisa julgada, Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 480, 487; Wesen und subjektiue Begrenzung der Rechtskraft, 4) as separou com precisão. Desgraçadamente, muitos juizes andam, nesse ponto, com atraso de mais de cinquenta anos, razão por que, falando de ações de status, jurisdição voluntária e de coisa julgada material, e afirmando que a sentença não tem força ou efeito de coisa julgada material, ~lhe negam a força ou efeito de constituição! Já Josef Kohler advertia na força erga omnes de certas ações de jurisdição voluntária, exatamente por serem constitutivas, e Max Pagenstecher pretendera resolver a questão retirando das ações de jurisdição voluntária as ações constitutivas. Em verdade, ações constitutivas podem ser graciosas ou contenciosas; não vem ao caso. Se são de jurisdição voluntária, falta-lhes a força de coisa julgada material, não a força constitutiva, que é da sua essência mesma. Por outro lado, a distinção, em que temos insistido, entre força e efeito das sentenças, pode esclarecer-nos sobre os casos em que, excepcionalmente, há efeitos de coisa julgada material nas sentenças de jurisdição voluntária. Se o processo comporta contenciosidade sobre alguma prejudicial ou algum incidente e se há parte declarativa ou condenatória da sentença, a sentença, em si, não tem força de coisa julgada material, mas o incidente ou a parte dela pode ter esse efeito. Quando o elemento declarativo ou condenatório predomina, claro que o processo é contencioso e a sentença tem força de coisa julgada material. Se ésimples elemento secundário, pode haver o efeito de coisa julgada material. As ações de jurisdição voluntária, que não têm eficácia de coisa julgada material, são as ações sem elemento declarativo relevante ou condenatório relevante, cujo efeito de coisa julgada material é teoricamente nenhum — sentenças a quase zero de declaratividade. Verdade é que muitas dessas ações são constitutivas, com efeito erga omnes, e nem todas as sentenças constitutivas cabem na jurisdição voluntária — algumas são contenciosas, pelo elemento declarativo, ou condenatório; há sentenças com força constitutiva, erga omnes, ou não, e efeito de coisa julgada material. O que é assaz importante é prestar-se atenção a que, se há eficácia erga omnes, essa eficácia não deriva da coisa julgada material, que é só entre partes ou pessoas equiparadas a partes, mas, sim, de se tratar de algum julgamento sobre fato ou fatos (cf. Georg Kuttner, Die priuatrechtlichen Nebenwirkungen, 117 s.) ou sobre constituição de negócio jurídico. Se se tomou contenciosa a jurisdição, há o efeito de coisa julgada material, uma vez que a declaração foi em litígio (1ª Turma do Supremo Tribuna! Federal, 17 de setembro de 1951, RF, 144, 167). Isso pode ocorrer ainda que somente em parte do julgado. A coisa julgada a que aqui nos referimos é a coisa julgada material — razão por que é erro não se admitir a ação rescisória de sentenças em processo de jurisdição tida como administrativa, em que há coisa julgada formal (confusão dos dois conceitos, lamentavelmente, no acórdão das Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 10 de março de 1952, RT, 203, 389). Coisa julgada é, no sentido das leis processuais, coisa julgada material. Coisa julgada contra a qual se pode propor ação rescisória é coisa julgada formal e a ofensa à coisa julgada, de que se fala, é ofensa à coisa julgada formal. A sentença de separação judicial consensual é tida como sentença meramente constitutiva. A sua eficácia não é a coisa julgada material, mas a da constituição; de modo que se tem de raciocinar com a eficácia constitutiva. A regra juridica pré-excludente somente se refere à coisa julgada material, e não à formal. A sentença de separação judicial consensual passa, formalmente, em julgado; e muitas vezes se tem de invocar a eficácia de força formal do trânsito em julgado. Tudo ocorre, como sempre, no plano da inimpugnabilidade da sentença. A sentença pode ser rescindida. 3. Ações de estado. Se a lei supõe que a eficácia erga omnes das sentenças proferidas nas ações de status, portanto nas

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açoes de separação judicial litigiosa que nelas se incluem, seja força da coisa julgada material (o que é erro), faz parecer ao legislador que seria útil excluir das sentenças proferidas nas ações de status, com eficácia de coisa julgada material, a ação de separação judicial consensual. Nas ações de separação judicial podem ser vistos, com facilidade, a força constitutiva, o efeito anexo ou o lateral e o efeito reflexo, além da eficácia material de coisa julgada das sentenças e da força de coisa julgada formal. Respectivamente, a força ex nunc do estado de separado judicialmente ou de separação sem quebra do vínculo conjugal; o efeito de poder o marido proibir o uso do seu nome pela mulher culpada, o que se põe em lei, ainda se não foi incluido na sentença, pois que se trata de Nebenwirkung, efeito anexo ou próximo; o efeito de poderem ser interpretados atos jurídicos posteriores entre os separados judicialmente, tomando-se por base o que combinaram a respeito dos bens ou das relações com os filhos, efeito da sentença como ato ou fato jurídico; a eficácia de valer a sentença entre as partes de modo que afaste a rediscussão do pressuposto admitido pelo juiz; a eficácia de não mais se poder impugnar a sentença. Cf. Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 479) e Georg Kuttner (Die privatrechtlichen Nebenwirkungen, 3). A sentença em processo de separação judicial consensual pode ter tido de decidir ponto em que o acordo não poderia assentar a solução, ou que foi suscitado pelo órgão do Ministério Público. A sentença em processo de separação judicial litigiosa normalmente decide questões de que resulta eficácia declarativa mediata. Daí não se tire que a lei permite a promoção de separação judicial dos já separados consensualmente. Um dos pressupostos para a separação judicial é o da existência da vida em comum, para serem separados, pela sentença, os cônjuges; e esse pressuposto cessou de existir com o novo status: a força constitutiva da sentença de separação judicial cortou-o. No caso de revogação de doação pelo cônjuge, por fato anterior à separação judicial, nenhum obstáculo é a separação judicial consensual; porém não se diga que isso resulta de lex special is. Dar-se-ia o mesmo nas separações judiciais. A vitória do autor da ação de separação judicial pode ter efeitos, quanto à revogação da doação ao culpado, não de coisa julgada, mas, tão-somente, efeitos anexos ou “próximos” (James Goldschmidt, Nachprflfungsrecht hin-sichtlich der Wurdigung der Rechtsnatur, Archiu fur die civilistiche Praxis, 117, 9; contra a ligação, A. Mendelssohn-Bartholdy, Grenzen der Rechtskraft, 476 s.). 4. Eficácia de coisa julgada material e eficácia erga omnes. Andam muito confundidas pela doutrina do país, pela falta de se proceder à distinção entre força constitutiva e eficácia de coisa julgada material, a eficácia erga omnes e a inter partes. Os juristas menos atilados vêem eficácia erga omnes e atribuem tal eficácia à coisa julgada. Os efeitos da coisa julgada são inter partes. A eficácia constitutiva ou configurante da sentença constitutiva é, em geral, a favor e contra todos, particularmente os juizes (Konrad Hellwig, Anspruch und Klagrecht, 480; Wesen und subjektive I3egrenzung der Rechtskraft, 3, 18; Georguttner, Urteilswirkungen, 19; Franz E. Heim, Die Feststellungswirkung, 72; Arthur Nussbaum, Die Prozesshandlungen, 55; Friedrich Stein, Grenzen und Beziehungen, 120). Tudo se passa como a respeito das conhecidas sentenças sobre status (Karl Kormann, Jahrbuch des õffentlichen Rechts, VII, 13 5.; Konrad Hellwig, Grenzen der Ríickwirkung, 30 e 53). As sentenças nas ações de separação judicial, por exemplo, não têm a “força” de coisa julgada material; têm a eficácia do elemento constitutivo. Realizativa, como é a partilha, a sentença é executiva- A força erga omnes de sentenças constitutivas foi descoberta por Theodor Kipp (Die Verurteilung, 29 s.), refletindo-se em Konrad Hellwig (Anspruch und Is’lagrecht, 480). Advirta-se em que a força constitutiva da sentença se limita àquilo para que se proferiu a sentença; não para qualquer outra questão de ordem declarativa (Emil Seckel, Die Gestaltungsrechte, 247). Quando se quer que a sentença com força declarativa, ou com eficácia imediata ou mediata declarativa, irradie sua força, ou sua eficácia, em toda a ambiência jurídica, e. g., quando o autor quer que se possa opor a quem quer que seja a sentença favorável declarativa na ação de declaração da propriedade, imobiliária ou mobiliária, tem de pedir o procedimento edital desde a citação. O simples registro da sentença declaratória, em ação que somente correu entre A e B, ou entre A, autor, e B e C, réus, não teria tal consequência — apenas publicaria a eficácia entre A e B, ou entre A e B e A e C, figurantes. Aliter, na sistemática das ações coletivas e civis públicas: os efeitos da coisa julgada poderão ser inter partes, ultra partes e erga omnes, como se observa da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965 (art. 18), da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 (art. 16) e da Lei n0 8.078, de 11 de setembro de 1990 (art. 103, 1, II e 111, §5 1º, 2º e 31, v. g.

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§ 50. Imodificabilidade da sentença 1. Sentença definitiva. O principio da imodificabilidade da sentença definitiva é de origem romana. O da imodificabilidade das resoluções interlocutórias equiparadas a sentenças, de origem germânico-canônica. O direito romano não conhecia sentenças interlocutórias (expressão desconhecida até o século XVII), e sim interlocuções. Regra juridica que diga ser principio hásico a imodificabilidade, e mal diz quais as exceções, é de má técnica legislativa: primeiro, porque, se do despacho não cabe recurso, as vezes pedido de reconsideração é possível, sem que esteja ex-pressamente na lei; segundo, porque, falando de decisões, se misturam resoluções interlocutórias e sentenças definitivas; terceiro, casos há de mutabilidade de pressupostos da pretensão, no plano do direito material, refletindo-se no direito processual, sem que caibam nas exceções apontadas. Cumpre advertir que está em causa, apenas, a coisa julgada formal. Tal regra jurídica não se entende que se refira à coisa julgada material. Pertinente, pois, à preclusão, à coisa julgada formal, ao trânsito em julgado no mesmo processo. O que é importante é que se ponha por princípio a preclusividade das resoluções judiciais, de modo que só haja exceções a ele, se expressas, ou se ocorre o que a regra jurídica exceptiva prevê. Existem, portanto, resoluções recorriveis, resoluções irrecorríveis; nem todas as irrecorríveis são modificáveis. Conclusão: há resoluções irrecorríveis, que fazem coisa julgada formal. Distinguindo-se, tem-se: (1) Tratando-se de sentença definitiva, a redecisão das questões somente pode dar-se a) pela ação rescisória, atingindo a coisa julgada material; ou b) quando, no caso de solução por equidade, a sentença contém, explícita ou implícita, a cláusula de modificabilidade mesma, ou c) quando há cláusula rebus sic stantibus. Existe a condenação às prestações futuras e a mudança de algum pressuposto tem de influir para a modificabilidade. (2) Quando a sentença é sobre questão prejudicial, mas processada autonomamente, a fim de que faça coisa julgada material, os princípios são os mesmos que governam as espécies de decisão total ou parcial. (3) Se não é caso de arbitramento de custas a serem consignadas, a revisibilidade intraprocessual, a requerimento da parte, é permitida. Há regras juridicas que projetam no tempo os próprios pressupostos, admitindo variações dos elementos quantitativos e qualitativos, de modo que a incidência delas não é instantânea como a sucessão causa mortis, as obrigações do locatário e dos locadores, a transmissão da propriedade. A aplicação da lei que incidiu no momento da exigibilidade da pretensão, como se fosse de uma vez por todas, dentro do tempo, transformaria em regra de incidência instantânea, permanente e imutável a regra que, de si mesma, atende à modificação futura das circunstâncias. Portanto, a imutabilidade feriria a regra, em vez de obedecer ao que ela estatui. É o direito material que determina a qualidade das suas regras, de modo que a coisa julgada formal ou material não é ofendida por essa mutabilidade, nem pela consequente alterabilidade dos termos da interpretação ou versão executiva inicial da sentença. A coisa julgada material supõe essa mutabilidade, porque é dentro da natureza da regra de direito material que ela se deve conter e, ex hypothesi, a regra de direito material pertence àquela classe de regras que projetam no tempo os seus pressupostos de conteúdo suscetível de variação. Não se diga que a força material da sentença vige enquanto persiste o status quo; a força material vige sempre, porque ela mesma se projeta no tempo deformável conforme a regra de direito material que está à sua base. Nem há exceção ou atenuação à força material da coisa julgada; nem caso especial de sentença. Há, apenas, caso especial de regra de direito material. Muito diferente é a modificabilidade pelo provimento da ação rescisória, porque, ai, sim, se atinge a coisa julgada material. Por onde se vê que, rigorosamente, nas espécies (b) e (c), não há modificação da sentença, e sim da sua execução, sem nenhuma ofensa à imodificabilidade da sentença proferida na execução, que é só para o pretérito, para os atos executados, e nunca para o futuro. Salvo se se supõe nula a modificação. Não pode o juiz reformar decisão inserta no saneamento do processo, se precluiu (2ªTurma do Tribunal Federal de Re-cursos, 29 de setembro de 1948, RT, 188, 464), ou se não tem de falar em recurso. Nem mandar fazer outro cálculo, se já julgara o que fora feito (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 18 de maio de 1950, 188, 304), nem reformar, de oficio, a decisão de adjudicação (2~ Turma do Tribunal de Justiça do Espirito Santo, 21 de junho de 1950,

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RTCJES, V, 294). 2. Decisão de acordo com a equidade. O juiz competente para a modificação do julgado, se mudou o estado de fato e foi proferido por equidade, é o da execução. Porque a coisa julgada fica incólume. O mesmo se dá nos casos de revisibilidade de custas, pois que se determinou a coisa julgada material deformável conforme o seu próprio critério de modificabilidade. 3. Ação de modificação. Quando, em caso de condenação a prestações periódicas futuras, as circunstãncias se modificarem de tal maneira, que não mais se justifiquem as prestações, no todo, ou em parte, ou a própria condenação, ou a duração delas— cabe à parte reclamar pela chamada ação de modificação. Nós já a tínhamos, invocando o velho Allgemeines Landrecht prussiano (1, 6, § 119) ou o Código Civil francês, arts 209 e 210, a respeito de prestações alimentares. A generalização foi obra da ciência. Muitas vezes a jurisprudência confunde ser suscetivel de modificação a sentença e não ter força ou eficácia de coisa julgada. As sentenças em ação de alimentos, embora suscetíveis de modificação, têm eficácia imediata de coisa julgada. A própria sentença em ação declaratória da relação jurídica concernente a alimentos somente declara a relação jurídica tal como é até a data da prolação, sem vedar que se declare ser diferente do que se previa após mudança de circunstâncias. Exemplo de decisão que incorre no erro de confundir modificabilidade por mudança de circunstâncias e carência de eficácia de coisa julgada, tem-se na decisão da 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 18 de dezembro de 1952 (RT, 209, 239). Qual a sua natureza? (a) Tem-se entendido, às vezes, que se trata de efeito retroativo do segundo julgado, o que não se compadece com os fatos e os princípios. (b) Outras vezes, que é apenas limitação à eficácia executiva do julgado, diante da concorrência da pretensão do réu posterior ao julgado. A ação de modificação seria como as defesas em exceção (Arthur Nussbaum, Die Prozesshandlungen, 54) ou os embargos do executado com eficácia suspensiva, mas sem se identificar com eles. (c) Também se sustentou que a ação de modificação de modo nenhum ofende a coisa julgada; pois a sentença leva con-sigo a consideração implicita (ou explícita) de ser excetuável conforme as novae causae. Cf. Richard Schmidt (Lehrbuch, 757; Die Ãnderung, 59 sj, Jakob Weismann (Lehrbuch, 238; Die Feststellungsklage, 131, onde considerava a ação de modificação uma condictio liberationis), P. Klõppel (Die Einrede der Rechtskraft, 124 s.) e Georg Kuttner (Die privatrechtlicben Nebenwirkungen der Zivilurteile, 229 s4. Note-se a diferença em relação a (b): ali, a ação é contra a execução, como os embargos do executado; aqui, contra a inteligência da sentença como rígida, no processo da ação de condenação. (d) Friedrich Stein que, de começo, embora por cima, parecia pensar como em (b), explicou, na 10ª edição do seu comentário, a ação de modificação como “exceção equidosa” à coisa julgada — explicação bem imprópria do gênio de Friedrich Stein. A solução da concorrência de duas ações pela abertura emergencial da eqúidade choca-se com os métodos de pesquisa científica. Isso em 1911. Tal como Emst Eichhoff, em 1898 (Die Lebre von der compensatio lucri cum damno, 133 s.), e J. Ch. 5. Schwartz, em 1904, na sua tese sobre o § 829 do Código Civil alemão. (e) J. Ch. 5. Schwartz (Das Billigkeitssurteil des ~ 829 BGB., 48, 73, 88 s.) pensou em ação de enriquecimento, con-dictia ob causam finitam, que se coaduna com a eficácia de coisa julgada da sentença. Corresponderia à (não se subsumiria na) ação contrária à execução de sentença (e. g., embargos do executado). (f) Outros vêem na ação de modificação correção à decisão, espécie de impugnativa da sentença trânsita em julgado, como se dá na ação rescisória, com o fundamento político-jurídico de limitação aconselhável da coisa julgada (E. Neukamp). Ainda assim pensaram Ceorg Kleinfeller (Lehrbuch, 2ª ed., 258), Paul Langheineken (Der Urteilsanspruch, 261), que frisou o alterar-se o julgado pela sua injustiça material, e Wilhelm Kisch (Beitrélge zur Urteilsiebre, 183 e 185), que acentuou a diferença em relação à ação contrária à execução (embargos à execução) e a semelhança com as

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ações de restituição (e, pois, a ação rescisória). Felix Jaeger (Die Umwandlungsklage, 12 e 29 s.) referiu-se a condictio indebiti e a condictio sine causa. (g) Oppermann (Zeitschrift for deutschen Ziuilprozess, 38 e 445 s.) invocou a semelhança com a renúncia à execução e com a moratória: aludiu, portanto, aos pressupostos fáticos da eficácia do julgado (450 e 454), que foram (éou se tornaram?) errôneos. O lugar de tal ação não seria na ação de execução de sentença, como ação contrária (e. g., embargos do executado), posto que semelhante a ela. Também Konrad Hellwig (System, 810 5.; Anspruch und Klagrecht, 167; cp. Lehrbuch, 1, 238) admitia que a ação de modificação altere o julgado mesmo. Algo como ocorre aos embargos infringentes do julgado, se eles fossem “ação”, em vez de recurso. (h) Porém Josef Kohler (Uber die Grundlagen des Civilprozesses, Archiu fOr die civilistische Praxis, 97, 10) tomou, resolutamente, atitude à parte: a sentença mesma é dada na pressuposição de que, mudando as circunstâncias, ocorra a modificação. Existe, pois, reserva implícita, que se faz explícita com o outro e posterior julgado. Cláusula rebus sic stantibus implícita. A questão interessa à natureza e à classificação da ação. Tratar-se-á de embargos do executado? Outra ação, de cog-nição? Simples ação declarativa? Ou ação contrária à de condenação? Correção de cálculo, ou correção de sentença mesma? Ação semelhante aos embargos de declaração, que são recursos, ou semelhantes à ação rescisória, ou semelhante à ação que seriam os embargos infringentes do julgado se eles fossem ação? A (a) responda-se: nenhum efeito retroativo tem o segundo julgado; a eficácia é ex nunc, de modo que a construção com a noção de retroatividade destoaria de toda a metodologia da interpretação das leis e de todas as regras de investigação científica construtiva. A (b) responda-se: restringir-se a prestação, a que serve a ação de modificação, a simples pretensão a embargos do executado (ação contrária à execução), seria entender-se que só se repele efeito executivo. Não devemos admitir que tal ação de modificação só se refira a julgados em ações de condenação. Não podemos, a priori, exclui-la em caso de ação executiva loto sensu (exemplo, contra o julgado na ação de imissão de declaração de vontade), portanto contra a força executiva (e não só contra o efeito), nem em casos de ações declarativas constitutivas e mandamentais. A (c) responda-se: o juiz não “considerou” que as circunstâncias mudassem; nem a sentença, objetivamente, podia “considerar” qualquer coisa. As causae são alterae, e não novae. A (d) responda-se: a equidade, atuando contra a eficácia das sentenças, seria fundamento bem difícil de admitir-se e ex-tremamente perigoso. Responda-se o mesmo a (e), pois na condictio oh causam finitam não se enquadraria a construção. Sobre essa condictio, veja-se B. Windscheid (Lehrbuch, II, §§ 123, nota 13, 124, nota 3, 884, 887); e Tratado de Direito Privado, III, §§ 305, 2, 307, 1, IV, § 446, 2, VI, § 701, e XIII, § 1.489, 3. A (O responda-se: a ação de modificação de modo nenhum impugna a sentença, que foi a prestação jurisdicional quando o autor exerceu a sua pretensão à sentença ou à execução. Nada tem com a ação rescisória, nem com o recurso de embargos infringentes do julgado. A (g) responda-se: a) a renúncia à execução é exclusão voluntária da pretensão a executar e à ação executiva, ou desistência, com as conseqflências peculiares, que não excluem a existência, mas fazem cessar a instância. No caso b), a desistência nada tem com a sentença que foi proferida, porque diz respeito à relação jurídica processual em que ainda não se proferiu sentença; no caso a), a sentença anterior nada sofre em si mesma, ainda em sua eficácia, pois a renúncia não é elisão da sentença, mas da pretensão que corresponde à sua eficácia. Nem a ação de modificação é constitutivo, erro em que tantos processualistas incorreram. A (h) responda-se: não há sentença com reserva, no caso da sentença a cuja eficácia se prende a ação de modificação; a caracterização do primeiro julgado como tal (sentença condicional resolutiva) aberraria dos fatos. Não há dúvida que a ação de modificação não diz respeito à nâo-existência, nem à não-validade da sentença que se quer executar. Tão-somente à interpretação, ou versão, da sua eficácia. Houve modificação essencial e imprevista das circunstâncias que foram pressupostas para a condenação quanto ao futuro, a determinação do importe no futuro e a

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duração da prestação no futuro. E. g., em se tratando de alimentos e mudança da fortuna do obrigado. Futuro, aí, está por “depois de encerrado o debate oral”. Pretendeu-se que a ação de modificação fosse constitutiva (entre outros, Paul Oertmann, - Zur Lehre von der AbãderungsIdage, Archiu fúr die civilistische Praxis, 109, 318); porém ainda ignoravam tais juristas a existência das ações mandamentais. (i) Trata-se de ação mandamental contra a interpretação ou versão da eficácia da sentença — tal como os embargos de terceiro e os do executado. A eficácia da ação de modificação somente começa ex nunc, isto é, desde que se propõe (F. Jaeger, Die Umwand-lungsklage, 27). Por isso mesmo pode ser intentada desde que se encerrou o debate oral, pois nada tem com a apelação, a que se liga o exame do que ocorreu até à sentença da primeira instância. James Goldschmidt (Zivilprozessrecht, 2ª ed., § 63, nº 4) põe-na, por essa razão, como “ponto médio entre ação de mandamento e recurso em forma de sentença”; mas, em verdade, trata-se de ação mandamental! típica, contra a eficácia da sentença, proponivel — o que é a sua peculiaridade — desde o encerramento do debate oral pela parte-ré. A alusão a ponto médio entre ação e recurso cairia em hibridismo que nada esclareceria, nem se compadeceria com a evidente “ação” (nunca recurso!), que há na ação de modificação. Não têm razão os que a fazem semelhante à ação rescisória ou à revisão criminal, porque a revisão vai até todo o início do tempo em que se estabeleceu a eficácia do julgado, ao passo que a ação de modificação só atinge a sentença ex nunc. A questão de poderem concorrer a ação de modificação e os embargos do executado teve, durante anos, a maior voga. Discutia-se se podiam ser usadas as duas ações, ou se a ação demodificação se subsumia na de embargos do executado, ou se, usada uma, a outra estava excluida. Ora, ambas concernem a eficácia, sendo, porém, a ação de modificação mais ampla. Rigorosamente, a ação de modificação, mandamental, importa “embargos” à sentença, como se fosse “ação” de embargos interpretativos do julgado e tal ação existisse, e não embargos ao mandado de execução, como os embargos do executado. Mas é inegável o fundo comum mandamental negativo, relativo, na ação de modificação, à interpretação ou versão de qualquer eficácia da sentença que interesse ser elidida, e não só, como ocorre aos embargos do executado, à executividade. Ação mandamental, seria fraco (isto é, praticamente insuficiente) propõ-la como ação declaratória típica: valeria apenas como “preceito”, e não “mandado”. A cisão obrigaria a duas proposituras, uma de ação declaratória e outra de mandamento. A parte, que sofreu a eficácia além do previsto como justo, não pode pedir indenização, salvo a partir da propositura da ação de modificação, cuja sentença tem efeito desde esse momento (dito efeito ex nunc, em contraposição aos efeitos ex tunc da sentença, na ação rescisória). Portanto, se a propôs, e a execução sobrevém, a sentença favorável, que é mandamental, pode evitar que se ultime a ação de execução, ou servir de base à ação de dano. Em todo o caso, ainda quanto ao que se venceu após a propositura da ação de modificação, não há litispendência para obstar a continuação da ação de execução, pela falta de identidade de causa (ação mandamental, uma; actio iudicati, a outra). Outra questão vexante foi a de se saber se, tendo sido discutida a matéria da mudança de circunstâncias, ainda pode ser objeto da ação de modificação. Aqui, a coisa julgada material da sentença é óbice suficiente. Haveria bis in idem. Acima falamos da propositura antes de passar em julgado a sentença de cuja eficácia se trata. Aliter, quanto à ação res-cisória, no que ressalta a diferença entre as duas ações. A opinião que só a admitia depois de passar em julgado a senteiça teve por si Felix Jaeger (Die Umwandlungsklage, 17), Konrad Hellwig (System, 811) e alguns comentadores da Ordenação Processual Civil alemã (E. Neukamp, Skonietzki-Gelpcke, desde cedo, e outros). A exceção de litispendência seria oponivel. Repeliu-se essa doutrina, que desconhecia, de todo, a natureza da ação de modificação. Lothar Seuffert, L. Gaupp-F. Stein e Opperrnann firmaram a solução, sendo de notar-se que o primeiro excluiu a sentenciabilidade do segundo processo antes de ser sentenciado o segundo. Se foi proferida a segunda sentença antes da primeira, a ação mandamental não caiu no vácuo: a sentença no primeiro processo somente pode ir até aquele tempo em que ainda não começou o que foi decidido na sentença proferida no segundo. De modo que é recomendável aguardar-se; porém não necessário.

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Se a ação de modificação pede a exclusão da condenação, a sua eficácia, partindo, como parte, somente da propositura, de modo nenhum se choca com a da sentença no primeiro processo, uma vez que esta tem de parar onde a eficácia da sentença naquela começou. Por onde se vê que o mandamento negativo se dirige ao juiz da sentença no primeiro processo, ab initio. Quer dizer: desde o seu despacho sobre o pedido para além do tempo que o pedido no segundo processo abrange. Mandamento contra a eficácia da sentença que for proferida ou que se proferiu — razão por que a ação pode ser proposta antes de haver qualquer sentença do primeiro processo. A ação de modificação, ainda depois de transitar em julgado a sentença nela proferida, não obsta a outras ações de modificação que invoquem outras causas (e. g., mudança de circunstâncias em época mais próxima). A segunda ação pode ser somente do primeiro processo ou contra a eficácia da sentença na primeira ação de modificação. 4. Decisão e interpretação da sua extensão. Basta que decida; não importa se sobre todo o pedido, ou se sobre parte, ou se atendeu à defesa, ou se o juiz restringiu a decisão por ser caso estranho à lei que se pretendia ter incidido. A decisão é que tem de ser considerada; e interpreta-se como instituto de política jurídica, e não como conjunto de proposições de que se tenham de tirar consequências lógicas (Adolf Wach, Vortràqe, 142; Richard Schmidt, Lehrbuch, 2ª ed., 746). 5. Limites temporais, espaciais, objetivos e subjetivos da coisa julgada. Os Limites da coisa julgada material ou são no tempo, ou no espaço, ou objetivos ou subjetivos. (a) No tempo, porque ela fixa o estado da realidade regrada pela lei em dado momento, atribuindo à interpretação que a sentença acolheu, tal como lhe pareceu (julgou) após o encerramento do debate oral, valor de força material (não de lei). Essa força, ainda que haja de ser a mais próxima possivel da verdade dos fatos e da incidência abstraía da lei, é força, e só a impõe o Estado, embora aplicando direito estrangeiro. Parece-se mais com a ordem de caráter policial do que com a lei, posto que as três, no sentido da evolução humana, tenham o desígnio de ser as mais justas possível, as mais inspiradas pela reflexão. Sobre o estado de coisas juridico que a resiudicatci estabelece ou, se foi perfeita a decisão, consolidou, o tempo e as circunstâncias continuam a passar como a respeito de todos os outros estados de coisas jurídicas sem razões para demanda ou com as razões inaproveitadas para ela. Por isso mesmo, se A pleilcou o pagamento de alugueres contra B e ganhou, a sentença tem de configurar até quando são devidos esses alugueres. Se foram pedidos os vencidos, não se haveriam de compreender os vincendos até cessar a obrigação; mas, em virtude do dispositivo da sentença, que não poderia ser estendido no futuro, tem-se de entender que, se o pedido compreende frutos, foros, rendas ou outras prestações periódicas, além das prestações vencidas, se indicam as vincendas. (b) No espaço, porque o Estado somente tem competência para a força material dentro do seu território, sendo extensão o reconhecimento da coisa julgada das sentenças estrangeiras dentro de cada pais. (a) Quanto ao objeto, porque a coisa julgada é adstrita ao pedido e ao reconhecido pela sentença. Ainda mais: respeita os fatos, porque o legislador não permitiu ao julgador que os mude (nem um nem outro o poderiam fazer), e daí os mesmos fatos, que aqui se têm por provados, serem suscetíveis de se considerarem não provados noutro processo. Limita-se às relações juridicas, no propósito, nem sempre alcançado, de fazer coincidirem incidência da regra abstrata e aplicação da regra a casos concretos. Se as relações constitutivas do pressuposto da relação de que se trata são atingidas pela coisa julgada, isto é, se estende até o pretérito necessário do decisum, cabe às leis processuais resolver. A Ordenação Processual Civil alemã e a austríaca preferiram excluir esse efeito de atração do passado pela coisa julgada. No direito brasileiro, consideram-se decididas todas as questões que sejam premissas necessárias da conclusão. Fundamento novo e argumento novo são coisas diferentes. Se o fundamento é outro, outra é a pretensão; mas o novo argumento também material é excluído pela coisa julgada material. (d) Quanto aos limites subjetivos, a coisa julgada somente atinge as partes do processo (Res judicata jus facit inter partes), se não se está no regime das ações coletivas e civis públicas. O terceiro pode intentar demanda contra uma das partes e ganhar, a despeito da contradição lógica entre os dois julgados. Não há contradição jurídica, porque a sentença anterior não entra em contato com a posterior, em razão da delimitação pessoal das coisas julgadas. O juiz, por isso mesmo, não está vinculado à decisão anterior, ainda que seja a mesma pessoa física que proferiu a primeira e vai proferir a segunda. A sucessão pelo terceiro, por exemplo, estabelece o contato pessoal e a coisa julgada atinge o terceiro sucessor, quer a título universal, quer singular, e. g., pela aquisição do direito exercitado ou da coisa litigiosa.

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Equipara-se ao sucessor o adquirente da posse mediata. A coisa julgada material não atinge a esfera jurídica de terceiro, ainda que de fato o prejudique. A sentença contra o meu devedor pode prejudicar-me como fato que lhe diminui os haveres, porém não tirar o meu direito como credor. Entre as próprias partes, a força e o efeito materiais somente podem atingir-lhes a esfera jurídica naqueles pontos em que foram partes. Se o vendedor e o comprador discutem sobre a coisa e aquele não chama a juízo a pessoa de quem a adquiriu, o efeito somente pode ser reflexo, ‘acidental”, como frisava Rudolf von Jhering, e não “necessário”, como a força ou o efeito da coisa julgada material. A teoria do ‘tudo ou nada”, ou “a sentença tem eficácia contra terceiro ou não tem”, serve para os casos de eficácia necessária (forças e efeitos declarativos, constitutivos, condenatórios, mandamentais, executivos, particularmente a coisa julgada material). Não, para os efeitos reflexos. Seria bom que a teoria do “tudo ou nada” se aplicasse também aos efeitos reflexos; mas a vida social não é como desejamos que seja, e sim como e. Sempre que o juiz atende ao que se julgou, evitando a contradição da ordem jurídica, sem que seja forçado a isso pela coisa julgada material, atende a efeitos reflexos. Naturalmente, não há de afirmá-los onde ficaria sem proteção o terceiro. Quando, julgando, atribuímos valor de presunção bom mis a sentenças que não têm força de coisa julgada para alguma das partes ~que efeito é esse senão reflexo, posto que probatório? A 2~ Turma do Supremo Tribunal Federal, a 20 de janeiro de 1950 (RE 131, 410), aventurou: “Deve o autor exaurir na mesma ação as reclamações decorrentes da mesma relação jurídica. Não pode, por exemplo, propor ações sucessivas para pedir, numa, os danos emergentes, noutra, os lucros cessantes.” O enunciado a priori levaria a ressuscitar-se a consumptio romana. Se o que foi pedido, ou que foi alegado pelo réu, foi defendido, declaratoriamente, e não implicava que outro pedido Tratado das Ações se fizesse, ou se entendesse renunciado, qualquer outro pedido que se faça, e não se choque com a declaração feita, ainda épossível, noutra relação juridica processual. A natureza das ações — alternativas, dependentes, ou implícitas — é que pode determinar a improponibilidade de uma após a coisa julgada de outra. Pode bem ser que a coisa julgada sirva às duas ou mais ações, como elemento firme, no seu tanto. A coisa julgada sobre os juros não se impõe a que se haja de litigar sobre o principal. A ação de reivindicação por si só não estabelece coisa julgada sobre a propriedade. Quanto aos honorários de advogado, na atual fase de sua linha de evolução, tem-se o dado sentencial condenatório ainda sem pedido. O pressuposto necessário à incidência do art. 20 do Código de 1973 é um só: ter havido perda da causa, pelo autor, ou pelo réu, ou quem quer que seja o perdente. § 51. Juízo cível e juízo criminal 1. Preliminares. Proferido o julgamento criminal, pode o Juiz do Cível admitir a existência do delito civil, desde que a culpa civil, existindo, não contradiz a existência, firmada pelo juizo criminal, do delito penal. Em caso das revisões criminais, julgadas antes da ação cível, solvida está a questão: a inocência, então assente, impõe ao juízo civil a solução sobre existência e sobre quem seja o autor. Se a sentença cível foi anterior, só a ação rescisória pode, no direito brasileiro, obviar aos inconvenientes da separação dos dois juízos. O julgamento, passado em julgado, subsiste; só a ação rescisória pode dar caminho para o apagamento da injustiça. O princípio não evita a contradição entre os dois julgamentos. Exemplos: sentenças civeis definitivas, passadas em julgado, nas quais haja absolvição, e sentenças crimi-nais, definitivas, posteriores, passadas em julgado, com a condenação do réu. O cível não tem, em tais casos, influência no crime, de modo que um juiz, o do cível, diz sobre a existência do crime e quem seja o autor, e outro, o do crime, afirma o contrário. Sentenças cíveis, definitivas, passadas em julgado, em que haja condenação, e posteriores, do crime, que absolvam. Dir-se-á que electa una via non datur recursus ad alteram. Éimportante a invocação, porém, se as duas ações não são idênticas, não cabe o princípio. Mais ainda: um dos co-lesados pode preferir uma via; e o outro, a outra. A ação penal pode ser ação pública; a outra, não. Não se confunda a regra electa una via, que se invoca quando estão em apreciação a ação ex contractu e a ação ex delicto, com a mesma regra electa una via, se estão em exame a responsabilidade criminal e a civil. Rigorosamente, aí, não temos de cogitar do princípio. A ação civil não impede o prosseguimento da criminal, salvo quando algo dependa de julgamento civil. Resta a espécie, referida pelos franceses,

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incerta em P. Garraud e Faustin-Hélie: ignorância da delituosidade penal do fato, o que autoriza a intentar a ação penal depois da ação civil. A aplicação da regra não é de ordem pública, mesmo nos países que a têm explícita. Demais, pode ocorrer que se prefira uma, com o intuito de se declarar situação jurídica (sentença civil) ou fato (juízo criminal). O principio electa una via não tem a rigidez que alguns lhe emprestam; têm de ser invocadas pelo réu, afirmadas e provadas as circunstâncias, que possam permitir-lhes a aplicação. No Brasil, supõe-se que se eleja uma das duas, ou que se proponham as duas ações. O que não se pode é eleger as duas, querendo-se que uma possa ter as vantagens a e a outra as vantagens b, contraditórias. No direito inglês, o juiz pode decidir sobre as indenizações. O direito de ação funde-se na felony; suspende-se, portanto, se há felony, o atentado a direitos individuais. Não se dá o mesmo nos casos de misdemeanours. Exceto nos casos em que se declare que se impede a ação civil pelo mesmo fato, não faz prova, para o cível, o julgamento penal. No direito austríaco, a parte lesada pode tomar a via civil quando não se contente com a indenização concedida pela jurisdição criminal (Instrução Criminal de 1873, art. 372). Cp. Código Civil austríaco, arts. 1.338 e 1.340. No direito belga, admite-se a regra electa una via; a jurisprudência e a doutrina assentam que a sentença sobre crime faz coisa julgada para o cível. No direito espanhol, a ação civil não pode ser exercida enquanto a ação penal não for julgada e não passar em julgado. No direito alemão — salvo em caso de Busse — o lesado só pelo juízo cível pode obter indenização. O juiz penal entrega-lhe, então, os objetos (Ordenação de Processo Penal, art. 111). Na Suíça, rege o art. 53 da Lei de 1911. Há casos em que pode ser invocada situação jurídica, que, existente, excluiria a ilicitude. Então, o direito civil prima. Não se poderia estabelecer a criminalidade, sem, previamente, se resolver sobre a existência ou inexistência da situação de direito civil. São exemplos as alegações de servidão, ou de propriedade da coisa pretendida-mente furtada. Certo, discutida a existência, e resolvida, pelo juiz criminal, a questão (se lhe cabe resolver), há de ser respeitada a sentença. Conclusão: no Código Civil brasileiro, conforme o art. 1.525, intentada a ação criminal, não se deve tomar a via cível antes de decidida, ali, a questão da existência do fato ou de quem seja o seu autor. Tal significação da regra electa una via, no direito brasileiro. Salvo: se falecido o acusado, pois poderá continuar ou ser intentadas contra os herdeiros a ação cível; se ausente o acusado, pois não se há de parar ou deixar de intentar a ação civil, uma vez impedida, por fato do réu, a ação criminal; se a ação civil não se funda no dolo nem em culpa equivalente à criminal, pois, então, o que se quer é inatacável pelo juiz do crime; e. g., nos casos de responsabilidade objetiva ou de presunção absoluta de culpa. A desistência da ação não significa desistência ou renúncia à ação civil. Se os ofendidos deixaram de intentar, em vida, a ação civil, não se há de concluir que renunciaram a ela. Podem intentá-la os herdeiros. O fato de propor a ação civil, ou de desistir dela, não importa renúncia da ação criminal. j.E se renunciaram a ação civil? Respondia Teixeira de Freitas (Esboço, art. 3.638, 2ª parte) que se havia de considerar renunciada a ação criminal. Se convencionaram sobre a liquidação do dano? Igual solução sustentava Teixeira de Freitas. E o critério que devemos adotar. A propositura da ação civil após a criminal, antes de julgada esta, obriga a esperar a solução sobre o delito (existência do fato criminal, e autoria do crime). Mas as decisões criminais que declararam improcedente o corpo de delito, ou despronunciarem, ou não pronunciarem o acusado, não terão o efeito do art. 1.525. Não estava no projeto primitivo o art. 1.526 do Código Civil; veio-nos do projeto revisto e, se remontarmos à mais velha origem, encontrá-la-emos nos arts. 3.625 e 2.626 do Esboço de Teixeira de Freitas e no art. 616 do Projeto Feudo dos Santos. No projeto revisto (art. 1.820) aparecia: “O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança, salvo nos casos em que este Código determinar o contrário.” Na Câmara tiraram-se algumas vírgulas supérfluas; e no Senado à última parte do enunciado se substituiu: .4 exceto nos casos que este código excluir.” Lê-se no Esboço de Teixeira de Freitas, art. 3.625: “Esta obrigação passa aos herdeiros do culpado, sempre que para eles se transmitam os bens da herança, ainda que do ato ilícito não lhes viesse proveito, observando-se porém o disposto no Livro 49 sobre a aceitação de heranças e benefício de inventário.” O direito de haver a indenização do dano causado por atos ilícitos passa igualmente aos herdeiros do ofendido ou prejudicado. 2. Dados históricos do império. No Código Criminal, art. 32, estatula-se: “Em todo o caso, não tendo o delinqúente

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meios para a satisfação, dentro de oito dias, que lhe serão assinados, será condenado à prisão com trabalho pelo tempo necessário para ganhar a quantia da satisfação. Esta condenação, porém, ficará sem efeito logo que o delinqUente, ou alguém por ele, satisfizer ou prestar fiança idônea ao pagamento em tempo razoável, ou o ofendido se der por satisfeito.” No mesmo sentido o Código do Processo Criminal, art. 226: “O Presidente lavrará a sentença em conformidade: se a pena for simplesmente pecuniária, o réu dará fiança a ela como às custas, e dano; ou irá para a cadeia por tanto tempo quanto seja necessário para a satisfação, contando-se como se pratica acerca das fianças: se for de prisão ou correção, o réu não sairá mais da sessão, senão para o seu destino; e se, além disso, tiver de pagar indenização à parte, e o não fizer, será compreendido no que fica acima determinado até pagar.” Pela Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, entendeu Teixeira de Freitas (contra o que pretendia a Circular nº 183, de 18 de outubro de 1854) estar revogado o art. 32 do Código Criminal e, por igual razão, o art. 226 do Código do Processo Criminal: “j,Como é que a redução da satisfação do dano à prisão pode ser o efeito de sentença civil? Se não é efeito da civil, também não o é da criminal, que nada julga sobre a indenização, e Como é que o juiz criminal faz execução criminal sem sentença? j)Como se pode converter questão civil em questão criminal do mesmo processo, principiando esse processo no juízo civil, e acabando no juízo criminal? Se a indenização do dano proveniente do crime é hoje puramente civil, cai na disposição humanitária da Lei de 20 de junho de 1774, § 19, e Assento de 18 de agosto do mesmo ano. Jodia, diante de tão singelos mas fortes argumentos, prevalecer a doutrina da Circular nº 183, de 18 de outubro de 1854? Lê-se em Joh. Mascardus (Tractatus de Probationibus, 1, 50 em tom decisivo, pela concisão: “Sententia lata in causa criminali praeiudicat in civil.” Está em José da Silva Costa (Estudo teórico e prático sobre a Satisfação do dano causado pelo delito, 84 s.). “Por expresso preceito do art. 68 da Lei de 3 de dezembro de 1841, não se poderá questionar mais sobre a existência do fato, e sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se achem decididas no crime, pois que hoje a ação de indenização, como cível que é, está separada da criminal, o que não se dava quando vigorava o art. 31 do Código Criminal, segundo o qual a satisfação não tinha lugar antes da condenação do delinquente por sentença dada em juízo criminal e que houvesse passado em julgado. Essa regra padecia três exceções, que eram: no caso de ausência do criminoso; 2. quando falecia o delinquente e estando pronunciado antes; 3. preferindo o ofendido mover a ação civil contra o delinquente, e contra os herdeiros deste, na segunda hipótese. Concordante com a revogada doutrina do art. 31 do Código Criminal, era o legislado no art. 269, § 59, do Código do Processo Criminal que mandava o juiz de direito propor aos jurados o quesito sobre a indenização, bem como o disposto no art. 225, §§ 49 e 59, deste último Código, pelo qual o presidente da antiga junta de paz era obrigado a perguntar a esta se era devida a indenização e em quanto montava ela. A regra consagrada no art. 68 da Lei de 3 de dezembro de 1841 resolve questão importante, muito discutida pelos jurisconsultos franceses, que consiste na determinação do valor da decisão criminal e sua influência no juízo em que se pede a indenização. Entendem uns que o julgamento criminal influi, como caso julgado, no juízo da reparação civil, entre estes sobressaem Daíloz, Le Sellyer, Merlin, Sourdat e Boitard; outros, porém, como Toullier, negam no cível a autoridade da decisão criminal, a menos que a parte que pede a indenização não tenha sido parte no juízo criminal. Há quem negue peremptoriamente a influência da decisão criminal sobre o juízo civil, sob fundamento de que decisão criminal pode ser injusta e por isso reformável nos tribunais superiores. A esta objeção bem responde Daíloz, ponderando: 1º) que o erro e partilha de todos os juizes e sua possibilidade, aliás pouco provável, não deve impedir proclamar-se o princípio da estabilidade dos julgamentos; 2º) que os tribunais civis não são menos falíveis que os criminais, acrescendo que os meios de prova são naqueles tribunais mais restritos; 39) que, se pode ser reformado o julgamento criminal, também o pode ser o civil e a simples possibilidade de reforma não destrói a autoridade da causa julgada criminalmente. 3. Direito vigente. A responsabilidade civil é independente da criminal. Porém não mais se pode questionar sobre a existência do fato, ou quem seja o seu autor, quando tais questões se acharem decididas no crime. O fato de dizer que se não pode questionar sobre a existência do fato, ou quem seja o seu autor, quando essas questões se acharem decididas no crime, não exprime que a absolvição do responsável pelo dano causado importe, sempre, irresponsabilidade civil, consequente ao ato. Não são reparáveis somente os prejuízos decorrentes de atos puníveis (Câmaras Reunidas da Corte de Apelação do Distrito Federal, 4 de setembro de 1924). O princípio estabelece a independência das responsabilidades civil e criminal. Assim, se a decisão do juiz criminal reconhece a existência do fato, pode negar que tenha sido praticado pelo réu absolvido (1ª Câmara da Corte de Apelação, 5 de novembro de 1923). A absolvição versa sobre a imputabilidade criminal, que é diferente da imputabilidade civil. A negação de responsabilidade criminal, repitamos, não implica a de responsabilidade civil: para a última basta a simples culpa e há casos em que não se exige o pressuposto da culpa. Assim, a absolvição do réu, no crime, não deve, nem pode, utilmente ser invocada para o isentar da aplicação da lei civil (1~ Câmara da Corte de Apelação, de 15 de maio de 1919). No juízo criminal, nenhuma presunção, por mais veemente que seja, permite a aplicação da lei penal. No cível, cabem presunções, ou indícios concordantes, para que se condene alguém à reparação dos danos causados. Basta isso para que

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a própria existência do fato, se o juízo criminal absolve, por serem parcos os elementos probatórios (caso diferente da prova de nâo existir o fato ou de ser outrem o autor do delito), seja uma para o crime (provada, porém não negada com prova) e outra (provada) para o cível. Tais casos de insuficiência de prova são vulgares nas questões criminais de acidentes e seguros. O Supremo Tribunal Federal, há muito tempo, decidiu sobre caso tipico, em que — havendo absolvição pelo Júri, mas tendo existido a pronúncia (indicios veementes) — se deferiu a indenização Há hoje regras jurídicas fundamentais sobre a eficácia dos julgados criminais no tocante ao direito à indenização por ato ilícito absoluto. A ação civil pode ser proposta, quer antes, quer simultaneamente, quer depois da propositura da ação penal. Apenas tem o juiz da ação civil o poder de suspensão do curso do processo civil até que se julgue, definitivamente. Aliás, casos há em que o juiz criminal também pode suspender o curso do processo criminal, porque depende de alguma decisão civil a solução de questão, que é essencial à composição do suporte fático da regra jurídica criminal; e. g., há questão sobre a validade de cláusula testamentária, ou de ser dona do prédio alguma das partes. No direito processual civil cogitou-se das questões sobre estado civil das pessoas, porém não são as únicas. No direito processual penal, estatui-se que, se a decisão sobre a existência da infração depende da solução de controvérsia, que o juiz repute séria e fundada, sobre o estado civil das pessoas, o curso da ação penal fica suspenso até que no juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada em julgado, todavia sem prejuízo da inquirição das testemunhas e de outras provas de natureza urgente. Mas, se o reconhecimento da existência da infração penal depende da decisão sobre questão diversa da prevista, da competência do juízo cível, e se neste foi proposta ação para resolvê-la, o juiz criminal pode, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente. É digno de nota que a lei processual penal contém regra juridica de legitimaçâo ativa, quer para a proposição da ação civil, quer para o prosseguimento, no tocante à questão sobre estado civil da pessoa. Cumpre frisar-se que, se a controvérsia não é sobre estado civil, o juiz criminal, que suspende o curso do processo penal, pode prorrogar o prazo de suspensão. Mas, se, dentro dele, não há a decisão do juízo cível, o juízo criminal retoma a competência para resolver, de fato e de direito, toda a matéria da acusação ou da defesa”, diz a lei. Quer decretada pelo juiz do crime, de ofício, quer a requerimento das partes, ou de alguma das partes, pode o Ministério Público — se de ação pública o crime — intervir na ação cível, ‘para o fim de promover-lhe o rápido andamento”. Isso não quer dizer que não possa fazer alegações e apresentar ou acrescentar provas. Quanto à influência, no cível, do julgado criminal, o que a sentença criminal pode estabelecer é o suficiente para se saber que houve danos, ou que os houve e em quanto importaram, e é título executivo judicial, para que se peça a liqui-dação, salvo se do teor da sentença criminal já consta o débito liquidado (= o débito correspondente, liquidante, aos danos que foram alegados e provados na ação penal). E assim que se há de interpretar o art. 63 do Código de Processo Penal. Uma vez que os pressupostos para a divida de indenização são diferentes, quase sempre, dos pressupostos para a conde-nação penal, a ação cível pode ser proposta após a sentença absolutória proferida no juizo criminal, salvo se há a eficácia sentencial sobre “a inexistência material do fato”. Entenda-se: não se falou de ter a sentença criminal negado a autoria (disse que não foi A o criminoso), porém temos de dar ao art. 66 do Código do Processo Penal interpretação que coincida com a regra jurídica de direito material. Se o juízo criminal decide que houve estado de necessidade, ou legítima defesa, a sentença absolutória faz coisa julgada, porém não impede que alguém que sofreu dano proponha a ação de indenização contra a pessoa em defesa de quem se danificou a coisa, ou que foi culpada do perigo.ou da defesa”, diz a lei. Quer decretada pelo juiz do crime, de ofício, quer a requerimento das partes, ou de alguma das partes, pode o Ministério Público — se de ação pública o crime — intervir na ação cível, “para o fim de promover-lhe o rápido andamento”. Isso não quer dizer que não possa fazer alegações e apresentar ou acrescentar provas. Quanto à influência, no cível, do julgado criminal, o que a sentença criminal pode estabelecer é o suficiente para se saber que houve danos, ou que os houve e em quanto importaram, e é título executivo judicial, para que se peça a liqui-dação, salvo se do teor da sentença criminal já consta o débito liquidado (= o débito correspondente, liquidante, aos danos que foram alegados e provados na ação penal). E assim que se há de interpretar o art. 63 do Código de Processo Penal. Uma vez que os pressupostos para a divida de indenização são diferentes, quase sempre, dos pressupostos para a conde-

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nação penal, a ação civel pode ser proposta após a sentença absolutória proferida no juízo criminal, salvo se há a eficácia sentencial sobre “a inexistência material do fato”. Entenda-se: não se falou de ter a sentença criminal negado a autoria (disse que não foi A o criminoso), porém temos de dar ao art. 66 do Código do Processo Penal interpretação que coincida com a regra jurídica de direito material. Se o juízo criminal decide que houve estado de necessidade, ou legítima defesa, a sentença absolutória faz coisa julgada, porém não impede que alguém que sofreu dano proponha a ação de indenização contra a pessoa em defesa de quem se danificou a coisa, ou que foi culpada do perigo.