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Transição para agricultura de base ecológica: um processo social Transition to an ecologically-based agriculture: A social process PACÍFICO, Daniela A.¹; SOGLIO, Fábio Kessler Dal 2 1 Ministério do Desenvolvimento Agrário/ MDA, Brasília/DF, Brasil, [email protected] 2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil, [email protected] RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o projeto de transição para uma cafeicultura orgânica que foi realizado em duas comunidades rurais no norte do estado do Paraná, em 2003. A partir da pesquisa de campo e das consultas bibliográficas sobre a Agroeocologia e a perspectiva teórica orientada pelo ator (POA) constatou-se que o método de transição, ao se utilizar de um modelo preestabelecido de atividades de transição, impossibilitou a participação do ator social e não contribuiu com o processo de empoderamento desses agricultores acerca da nova cafeicultura que se estabelecia. É destacado que, para o processo de transição ter se dado por completo não apenas o método foi determinante, mas, sobretudo, as conseqüências geradas por ele ainda no decorrer da transição, como, por exemplo, o negligenciamento com as regras e normas sociais da comunidade; a inserção na lógica dos selos de certificação; e, a perspectiva motora de comercialização com a rede de comércio justo e solidário com a França. Conclui-se que caso se pretenda utilizar métodos de transição já utilizados em outros projetos de desenvolvimento rural voltado para a agricultura de base ecológica, necessariamente esse método deve ser reelaborado e ressignificado com o novo grupo de atores para inclusão das suas especificidades e suas questões mais relevantes. O método de transição deve buscar ainda a transição agroecológica do agroecossistema, sem tempo determinado para começar e terminar, e visando o funcionamento harmônico de homem e natureza na arte de fazer agricultura. PALAVRAS-CHAVE: cafeicultura orgânica, agroecologia, atores sociais, desenvolvimento rural, metodologias participativas, transição orgânica, sociologia rural. ABSTRACT: The current article aims at analyzing the project of transition towards an ecologically-based coffee farming which was carried out in two rural communities in the north of Paraná state in 2003. From the field and bibliographical researches on Agroecology and the theory perspective oriented by the actor (POA), it was seen that the transition method, by making use of a pre-established model of transition activities, made it impossible for the social actor to take part in it and did not contribute to the empowering process of these farmers regarding the new coffee farming being established. It is highlighted that, in order for the transition process to be concluded, not only the method was key, but, above all, the consequences generated by it still during the transition, such as, for instance, the neglect of the community’s rules and social norms; the adherence to the logic of certification seals; and the only possibility of doing business with the fair trade network in France. It is concluded that, in case one intends to use the transition methods already used in other rural development projects towards ecologically-based agriculture, this method must be elaborated and discussed again with the new group of actors in order to include their specificities and most relevant issues. The transition method must also seek the agroecological transition of the agroecosystem, with no established time to start and finish, while aiming at the seamless work between man and nature in the art of farming. KEY WORDS: organic coffee farming, agroecology, social actors, rural development, participative methodologies, organic transition, rural sociology. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 5(2): 50-64 (2010) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 06/07/2010

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Transição para agricultura de base ecológica: um processo social

Transition to an ecologically-based agriculture: A social process

PACÍFICO, Daniela A.¹; SOGLIO, Fábio Kessler Dal 2

1 Ministério do Desenvolvimento Agrário/ MDA, Brasília/DF, Brasil, [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil, [email protected]

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o projeto de transição para uma cafeicultura orgânica quefoi realizado em duas comunidades rurais no norte do estado do Paraná, em 2003. A partir da pesquisa de campo edas consultas bibliográficas sobre a Agroeocologia e a perspectiva teórica orientada pelo ator (POA) constatou-seque o método de transição, ao se utilizar de um modelo preestabelecido de atividades de transição, impossibilitou aparticipação do ator social e não contribuiu com o processo de empoderamento desses agricultores acerca da novacafeicultura que se estabelecia. É destacado que, para o processo de transição ter se dado por completo nãoapenas o método foi determinante, mas, sobretudo, as conseqüências geradas por ele ainda no decorrer datransição, como, por exemplo, o negligenciamento com as regras e normas sociais da comunidade; a inserção nalógica dos selos de certificação; e, a perspectiva motora de comercialização com a rede de comércio justo esolidário com a França. Conclui-se que caso se pretenda utilizar métodos de transição já utilizados em outrosprojetos de desenvolvimento rural voltado para a agricultura de base ecológica, necessariamente esse método deveser reelaborado e ressignificado com o novo grupo de atores para inclusão das suas especificidades e suasquestões mais relevantes. O método de transição deve buscar ainda a transição agroecológica do agroecossistema,sem tempo determinado para começar e terminar, e visando o funcionamento harmônico de homem e natureza naarte de fazer agricultura.PALAVRAS-CHAVE: cafeicultura orgânica, agroecologia, atores sociais, desenvolvimento rural, metodologiasparticipativas, transição orgânica, sociologia rural.ABSTRACT: The current article aims at analyzing the project of transition towards an ecologically-based coffeefarming which was carried out in two rural communities in the north of Paraná state in 2003. From the field andbibliographical researches on Agroecology and the theory perspective oriented by the actor (POA), it was seen thatthe transition method, by making use of a pre-established model of transition activities, made it impossible for thesocial actor to take part in it and did not contribute to the empowering process of these farmers regarding the newcoffee farming being established. It is highlighted that, in order for the transition process to be concluded, not onlythe method was key, but, above all, the consequences generated by it still during the transition, such as, for instance,the neglect of the community’s rules and social norms; the adherence to the logic of certification seals; and the onlypossibility of doing business with the fair trade network in France. It is concluded that, in case one intends to use thetransition methods already used in other rural development projects towards ecologically-based agriculture, thismethod must be elaborated and discussed again with the new group of actors in order to include their specificitiesand most relevant issues. The transition method must also seek the agroecological transition of the agroecosystem,with no established time to start and finish, while aiming at the seamless work between man and nature in the art offarming.KEY WORDS: organic coffee farming, agroecology, social actors, rural development, participative methodologies,organic transition, rural sociology.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 5(2): 50-64 (2010)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 06/07/2010

IntroduçãoA crise na agricultura brasileira e, em especial,

onde a agricultura familiar está associada aprodutos de exportação e a “commodities”, como éo caso do café, se evidencia por meio deproblemas sociais, ambientais e econômicos. Aproposta agroecológica de mudança de modelo deprodução com ênfase na valorização dodesenvolvimento endógeno, no aumento dareceita líquida pela redução de custos, naagregação de valor aos produtos e na adoção depráticas agrícolas ecologicamente adequadas,aparece, então, como uma forma segura deenfrentamento dessa crise e tem sido adotada porinúmeros projetos apoiados em diferentes políticaspúblicas governamentais ou de organizações nãogovernamentais.

No entanto, muitas dessas políticas públicasrepetem os mesmos métodos adotados nopassado, quando a modernização acelerada daagricultura brasileira se iniciou apoiada no tripé“pesquisa-extensão-crédito” com a adoção deprocessos diretivos de transferência detecnologias (DAL SOGLIO et al., 2006). Muitoembora, em teoria, a transição agroecológica devaestimular a busca de autonomia e a participaçãodas comunidades locais reforçando a capacidadede agência dos agricultores familiares, os projetosde desenvolvimento vigentes reproduzem aestratégia de transferência de tecnologia, mesmoque disfarçados de “participativos”, e reforçam,assim, a dependência e a transferência depacotes tecnológicos. Acabam por não atingirsuas metas justamente por não considerarem aperspectiva dos atores, o seu habitus e os seusconhecimentos sobre os agroecossistemas locais.

Neste artigo, será analisada a experiência deagricultores familiares de duas comunidades emLerroville, distrito de Londrina, norte do estado doParaná, que, estimulados pelo Projeto Café deLerroville (PCL), com apoio de instituiçõesestaduais e recursos federais, se empenharam natransição para uma cafeicultura orgânica, visando

à comercialização de um produto diferenciado porintermédio da rede francesa de comércio justo esolidário - ligada ao jornal Le MondeDiplomatique. Nesse projeto, os agricultores dascomunidades rurais Laranja Azeda e Limeiravisualizaram, na adoção do sistema orgânico deprodução, a superação das dificuldades deprodução e comercialização de café e aoportunidade de melhoria de condições de vida egarantia da reprodução social familiar.

Entretanto, em razão da não concretização desuas expectativas com a transição e após doisanos do início da transição para a cafeiculturaorgânica, a maioria dos agricultores se afastou doprojeto e retomou práticas convencionais deprodução ou migrou para a cidade. Desse modo,o PCL tornou-se uma experiência frustrada detransição no município e na região, e um casointeressante a ser estudado na perspectiva deidentificar as condições que levaram o projeto aum desdobramento inesperado por todos osenvolvidos.

A questão central aqui é compreender como ametodologia de transição para definiu oenvolvimento dos atores sociais e odesenvolvimento do Projeto Café de Lerroville(PCL). Busca-se discutir essa questão com basena Perspectiva Orientada pelo Ator de NormanLong e Van der Ploeg, e entender os impasses eos conflitos criados pela estratégia detransferência de tecnologias na transição e suasimplicações sociotécnicas e econômicas. Procura-se ainda compreender as motivações de retornoao manejo convencional e as migrações para acidade.

Por conseguinte, a hipótese diz respeito aosaspectos econômicos, sociais, culturais eambientais das comunidades, que, negligenciadospela metodologia de transição empregada,acabaram por gerar incompatibilidades deinteresses e de conhecimentos no processo de

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transição. Dessa forma, a hipótese indica que nométodo de transição residiram asincompatibilidades da mudança de sistema deprodução em razão do enrijecimento dasferramentas metodológicas perante os estilos deagriculturas existes em Lerroville, as necessidadesdos agricultores, o tempo determinado para atransição e a não apropriação do processo detransição por estes.

Para os desdobramentos dessa discussão,propõem-se quatro eixos temáticos: i) o resgate dahistória e do modo vida das comunidades ruraisestabelecidas sob a égide cafeeira e os principaiselementos de crise da cafeicultura na regiãoestudada; ii) a proposta de desenvolvimento ruraldo Projeto Café de Lerroville e as formas departicipação; iii) a abordagem teórico-metodológica da Agroecologia associada àPerspectiva Orientada pelo Ator; e, por fim, iv) ascontraditoriedades da transição para umaagricultura orgânica.

Remanescentes da história do café no ParanáNa história do Brasil, a cafeicultura é remetida

ao sinônimo de riqueza, latifúndio, progresso,concentração de terras, migração de famílias,exportações e aquecimento da economiabrasileira. Praticamente os mesmos sinônimospodem ser citados quanto ao papel do ciclo dacana-de-açúcar, da borracha, do cacau, docharque, da erva-mate, da madeira e, maisrecentemente na história brasileira, dos grãos:soja e milho. Esses ciclos são definidos como osgrandes ciclos produtivo-econômicos da históriabrasileira. Contudo, são efêmeras as discussõessobre os atores sociais remanescentes dessesprocessos produtivo-econômicos. A questão quese faz, em relação a esse tema, é de como osgrupos sociais rurais menos empoderados, quedeles participaram ressignificam(ram) seus papéise suas experiências como grupos na sociedade.Os agricultores de Lerroville expressam essaparticipação na história da cafeicultura e no

processo histórico do ciclo do café por meio dosrelatos das histórias de vida, que, muito emborahoje esteja ressignificada em suas memóriasanunciam seus papéis protagonistas na histórialocal.

Os remanescentes dos grandes processoshistóricos rurais e agrícolas criaram mecanismosde sobrevivência e de reprodução social tambématrelados às mudanças tecnológicas dos períodoshistóricos. Porém, compreender o que nos grupossociais se rompeu e o que permaneceu sugere oentendimento de como se iniciaram os ciclosprodutivo-econômicos regionais e quais seuspotencias elementos de crise e declínio. No casodo Norte Novo do Paraná, o café, denominado deouro verde, tem sua expressão na década de1950 e início da década de 1960, período que osetor cafeeiro paranaense desloca-se do NortePioneiro1 para o Norte Novo, impulsionando amigração de famílias e abertura de novas terras,(ARIAS, 1998).

Embora a colonização do Norte Novo tenha seiniciado na década de 1930, é na década de 1950que o movimento migratório para a regiãoefetivamente acontece e impulsiona a produçãocafeeira (ALMEIDA, 1997). O fluxo migratórioestabeleceu, além do início das pequenaspropriedades rurais, a oferta de mão de obra paraas grandes lavouras estabelecidas e em formação(BOLOGNESI, 2003). Essa cafeicultura, inspiradanas fazendas de café do Norte Pioneiro e nasgrandes lavouras paulistas, molda-se ao modelode colonização da região por estimular a produçãode café nos latifúndios e nos minifúndios etambém por estabelecer padrões modernos deproduções (ALMEIDA, 1997).

Nas décadas de 1970 e 1980, no Norte Novo,o café foi o cultivo permanente mais utilizado naregião e, mesmo já tendo iniciado seu processode declínio na economia, ainda era o cultivo maisfavorável à dinâmica social estabelecida peloprocesso migratório. Cabe mencionar que, nessas

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décadas, praticamente todas as famíliasencontradas durante a pesquisa de campo nosbairros rurais de Lerroville já estavam produzindocafé no distrito; significando e se constituindocomo cafeicultores, e construindo, assim, ahistória do Norte Novo.

Na década de 1980, com a emergência denovos setores agropecuários, há uma modificaçãoda lógica produtiva no Norte Novo. Aindustrialização da agricultura e a emergência desetores produtivos mecanizados e demandantesde pouca mão de obra, associadas a outrosfatores, definiram o declínio do setor cafeeiro noNorte Novo logo no início dos anos 80, fato queestimula o êxodo das famílias rurais para oscentros urbanos.

Os fatores climáticos adversos tambéminfluenciaram o declínio da cafeicultura,especialmente no Norte Novo e no oeste doestado de São Paulo no início da década de 1970.A geada de 1976 arrasou os cafezais ecomprometeu as safras seguintes. Essaintempérie também comprometeu a lógicareprodutiva e a dinâmica familiar dependente dacafeicultura. Esse fato acentua a situação que jávinha delicada para os cafeicultores em razão dacontínua queda dos preços do café brasileiro nomercado nacional e internacional, nos anosanteriores, por causa de safras acumuladas e deaos preços baixos do concorrente café colombiano(PADIS, 1981).

Contudo, a incorporação dos símbolos damodernidade pelos pequenos sitiantes deLerroville não foi suficiente para inseri-lo nadinâmica de uma agricultura mecanizada emoderna, todavia esta incorporação também não odistanciou suficientemente para inseri-lo na lógicade uma agricultura ecológica (DAROLT, 2000).Atualmente, a pequena cafeicultura continua aesbarrar em dificuldades, agora com maislimitantes porque o agricultor é mais dependentede tecnologias exógenas. Como se não bastasse

à limitação de acesso a mercados, produtividadedispendiosa devido a necessidade de contrataçãode mão de obra, preços baixos por sacas, safrasbianuais, problemas de saúde em razão do uso deagrotóxicos, etc., os agricultores de Lerroville, emespecial, ao se sentirem conduzidos pela lógicada agricultura industrializada assumiram aproposta da cafeicultura orgânica como aoportunidade que lhes foi negada até então.

Em 2003, os agricultores de Lerrovillevisualizaram a possibilidade de redução dedependência dos insumos industrializados pormeio do Projeto Café de Lerroville. Esse projetoentusiasmou os agricultores por apresentar-secomo a oportunidade que precisavam paradiferenciar a comercialização e a renda familiar.Comercializar por meio de comércio justo solidáriose mostrou rentável e fez aumentar a expectativapela fundação de uma minitorrefadora paraprocessamento do café, que já vinha sendoencaminhada pela cooperativa. Torrar, moer eempacotar o café produzido ali agregaria valor aoproduto orgânico e geraria empregos para osfamiliares dos agricultores.

O Projeto Café de Lerroville visou à inserçãodas associações de cafeicultores de Lerroville narede de comércio justo solidário. Para isso, oscafeicultores foram organizados na CooperativaAgroindustrial Solidária de Lerroville (COASOL),com o objetivo de facilitar a comercialização, oprocesso de transição orgânica e as certificações.A cooperativa teve início com 47 agricultorespertencentes a duas associações de cafeicultoresjá existentes, uma na comunidade Limeira (ACAL- Associação de Cafeicultores da Água da Limeira)e a outra na comunidade Laranja Azeda (APRALA– Associação de Produtores da Água da LaranjaAzeda) (ALMEIDA, 2005).

O projeto foi a primeira ação dedesenvolvimento rural especificamente voltadapara as comunidades rurais acima citadas eincitou uma expectativa de resultados múltiplos

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em torno da transição para o café orgânico. OPCL, através de suas muitas reuniões, possibilitouque outros temas importantes para a comunidadefossem discutidos com mais proximidades, como,por exemplo, o dilema com o transporte dosestudantes e a necessidade de atendimentomédico nos dois bairros rurais. Contudo, asmúltiplas necessidades das comunidades foramenvolvidas com o projeto de transição e asexpectativas se tornaram ainda maiores. Aomesmo tempo em que a ação e a participação nasdecisões sobre a transição eram suplantadas pelarigidez do método estabelecido.

Ação e participação para o desenvolvimentorural local

O período de transição foi de três anos, naintenção de que o ciclo de desintoxicação da terrase completasse. Esse tempo foi consideradosuficiente para converter as lavouras manejadascom os insumos industrializados em lavouraorgânica de manejos ecológicos. Contudo, ao finaldo terceiro ano de transição, havia trêscafeicultores no processo de transição. Os demaisforam desistindo aos poucos e, apesar das boasintenções e das diversas políticas públicasacionadas para que o projeto de desenvolvimentorural possibilitasse a melhoria da renda e daqualidade de vida das famílias, os agricultores nãose sentiram contemplados no processo detransição por que este, ao definir as atividades aserem realizadas, não considerou a necessidadeeconômica e alimentar da família. O método detransição ao especificar como e quando oagricultor deveria agir, desconsiderou anecessidade da família de gerir a propriedade e acasa com a renda da cafeicultura.

Por que o método de transição não foiadequado? Quais foram as dificuldades? O quedesmotivou os agricultores e comprometeu atransição para a cafeicultura orgânica? Para osagricultores entrevistados na pesquisa, as técnicas

de transição começaram a ser definidasunilateralmente, e não satisfez as necessidades eas possibilidades de gestão deles. Ainda segundoos agricultores, os cursos de formação e amudança abrupta do manejo das lavouras foramas principais divergências dos agricultores com ométodo de transição. Segundo a entrevista XI, oagricultor afirmou desconhecimento dosprocessos de transição e assegurou que, mesmodesacreditando das técnicas sugeridas pelosmediadores, realizou as atividades comosugeridas por eles.

Ao se compreender que a dinâmica datransição orgânica é estabelecida quando osatores sociais apropriam-se dos instrumentos desua realização como, por exemplo, ao verbalizaras dúvidas, mencionar dificuldades, discordar,opinar, escolher, definir, etc., compreende-se aparticipação como forte indicativo de apropriaçãonos processos sociais de mudanças. Assim,compreende-se que ações desempenhadas pelosatores estão sob seu próprio poder de tomada dedecisão e sob suas escolhas. Entretanto, alegitimação do saber científico e acadêmico nasociedade e a crença de que o mediador é maisinstruído e mais estudado delegam ao agricultoruma posição subordinada e um espaço de açãoreduzido. Se o método de transição não permitiu atroca de saberes e o desenvolvimento dehabilidades especificas de cada agricultor paracom suas lavouras, corroborou com a legitimaçãodo saber institucionalizado e engessou aconstrução do conhecimentos voltados paraagriculturas de base ecológica, visto que este seconstitui por meio da diversidade social do mundorural e dos experimentos realizados por estesatores segundo seus estilos de fazer agricultura.

Nessa perspectiva, cabe afirmar que osenvolvidos nos processos de transição ecológicasomente acionarão os instrumentos participativose se valerão de suas decisões se lhes forestimulado o empoderamento. A participação

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como elemento central de apropriação nosprocessos de mudanças sociais permeia teoria eprática no que tange à busca por adequaçõessociais e tecnológicas para a agricultura familiar(PLOEG, 2000). De tal modo, a participaçãoconstituiu-se em instrumento determinante para acompreensão do PCL.

A proposta de desenvolvimento rural do PCLcom sua abordagem ecológica e desustentabilidade impulsionou uma mudança dementalidade do agricultor de Lerroville,questionou-o sobre seus modos de fazeragricultura e o fez pensar acerca de suas práticas.No quesito educação ambiental, o PCL influenciouaté mesmo as crianças das comunidades eagradou as mulheres/mães que passaram a ter acerteza que o trabalho dos companheiros naslavouras não prejudicaria sua saúde. Entretanto,no momento em que o projeto passou a ter“vontade própria”, nas pessoas de seusmediadores, a construção coletiva da práticatransição se perdeu nas etapas do métodomandala.

Dessa maneira, buscou-se, no arcabouçoteórico-metodológico da abordagemAgroecológica, assim como na PerspectivaOrientada pelo Ator e nas ferramentasparticipativas de elaboração e desenvolvimento deprojetos sociais, rurais e comunitários respaldopara fundamentar as análises e as interpretaçõessobre o PCL no que tange o critério participação.Considerou-se que um dos elos que unem asformas de ação à leitura e interpretações darealidade é o fator participação, por estimular acompreensão holística da complexa relaçãointerpessoal entre o homem e a natureza, uma vezque a diversidade de compreensões e asrepresentações são consideradas nas decisões.Desse modo, o próximo item tratará da transiçãoagroecológica como instrumento de construção doconhecimento Agroecológico e empoderamentosocial dos atores em relação a transição orgânica

tratada no PCL.

Ponto de vista para análiseA participação dos atores sociais como forma

de estímulo e empoderamento para odesenvolvimento rural tem inspirado reflexões eteorizações em diversas áreas do conhecimento.As metodologias participativas são a expressãodisso nas ciências humanas e agronômicas. Porsua vez, as metodologias participativas têmdenunciado o fator comunicação comofundamental para a realização de trocas desaberes e organização dos processos detransição. A escolha da linguagem e o uso dossímbolos adequados podem contribuirsignificativamente, ao mesmo tempo em quepodem comprometer o desenvolvimento deprojetos e trabalhos coletivos.

Embora metodologias de transição para umaagricultura de base ecológica tragam, em geral, anoção de participação dos atores, a suaefetivação por meio da comunicação e da açãopode ser comprometida se o conjunto de métodosutilizados para a transição estiver previamenteestabelecido e impossibilitar o trânsito de novasvariáveis. Os aspectos socioculturais dascomunidades rurais estudadas, por exemplo, nãoforam contemplados pela metodologia doprocesso de transição em Lerroville no momentoque começou a interferir na manutenção dasociabilidade das famílias, geralmente fomentadaaos sábados à tarde, durante as partidas defutebol e, durante os feriados santos. Quanto aosaspectos econômicos, e digamos que estestenham sido os de maior impacto direto na gestãofamiliar, influenciaram diretamente a decisão dosagricultores, uma vez que com a queda daprodução diminuiu também a renda da família.

O rearranjo encontrado pelos agricultores,além de desencadear a insatisfação dos mesmoscom o projeto de transição, acarretou o retorno aomanejo convencional dos cafezais e, em vários

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casos acarretou o abandono da agricultura comofonte de renda e reprodução social da família.Alguns dos filhos dos agricultores envolvidos noprojeto se mudaram para a zona urbana em buscade outras oportunidades de emprego.

O processo de transição é munida decomplexidade, pois a relação dos agricultores eseus familiares e a relação da própria comunidadecom a mudança de sistema de produção não sãopuramente produtivistas. Ela [a relação] estáimersa nas outras esferas sociais que compõem ocorpo social e constituem o próprio agricultor. Nocaso, os agricultores que iniciaram a transição edesistiram do processo foram cobrados dentro efora da família. Dentro da família no momento emque os filhos partiram em busca de novosempregos, e fora da família - e aí se digasocialmente -, no momento em que a comunidadelhe indagou sobre o resultado da aventura a quese dispôs.

Tratar da transição como objeto de pesquisa ereflexão é também permear, se não assumir, queo conhecimento Agroecológico é a variável e abase em que se apoiam os processos detransição. A transição agroecológica coloca-secomo um redesenho do agroecossistema, umrefazer das condições sociais de trabalho e umdesenvolvimento de tecnologias sociaisadequadas ao homem e ao meio ambiente.

Dessa maneira, buscou-se uma abordagemteórico-metodológica para dar conta de explicarcomo o projeto de Lerroville, pautado pelo aparatode financiamentos, créditos e assistência técnicado Estado, deixou a desejar ao se propor transiçãoorgânica. Quando se avalia a autonomia dosagricultores no processo e as suas próprias ações,como, por exemplo, de migrar para um novosistema de produção, pode-se afirmar que adecisão em iniciar a transição para umacafeicultura orgânica esteve restrita a eles, esomente a eles, na perspectiva e expectativa deascensão social e reconhecimento perante a

história de vida e construção da cafeiculturaparanaense. Entretanto, a definição de como equando realizar a transição esteve saiu de suasossadas e partiu para a institucionalização doprocesso como um todo, desde o método até acomercialização.

Talvez tão importante quanto os aparatos doEstado (as instituições) seja a metodologia e/ouas tecnologias incluídas nas propostas dedesenvolvimento. Uma das mazelas dos modelosde desenvolvimento padronizados - queprivilegiam o exógeno - expõe o quão superficial enão familiar são as tecnologias e as metodologiasempregadas nos projetos de desenvolvimento(CANUTO, 2005). Dessa forma, entende-se que,para os processos de transição, a construção doconhecimento Agroecológico assume fundamentalrelevância (PETERSEN, DIAS, 2007), não só porser a possibilidade de acúmulo de experiênciaspráticas mas também por enfatizar que aAgroecologia se propõe ciência pelo fato de estarconstantemente em construção e permitir aadequação tecnológica e o uso dos sabereslocais, segundo as especificidades, em suaspropostas de desenvolvimento.

Nesse sentido, para a construção doconhecimento Agroecológico (teoria), tem-se atransição agroecológica (prática), e esta, em seusentido semântico, remete-nos à ideia de: estarem um modo e passar para outro distinto, o queimplica processo (COSTABEBER, 1998), eprocesso social. Para Costabeber (1998), atransição agroecológica não é apenas umprocesso natural e físico, monitorável ao longo dotempo e do espaço. Inclui processos sociaiscarregados de externalidades, com suascomplexas redes de relações e interações deatores sociais com o meio ambiente. Essacompreensão da transição como físico e socialaproxima o termo ‘transição’ de um conceitosociológico, que incorpora à análise o papel dosatores sociais como pessoas providas de poder de

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movimento dentro dos processos – a agência(COSTABEBER, 1998).

Há também, na construção do conhecimentoAgroecológico, o uso do termo transição em seusentido mais técnico, de mudança de status, emque o uso habitual refere-se a níveis de conversãodos agroecossistemas e fases de conversão(GLIESSMAN, 2005). A estratégia, nesse caso, évaler-se de momentos hierárquicos de transição, afim de atingir o redesenho do agroecossistema eindicar, assim, o foco do processo às respostas doambiente, desprivilegiando, todavia, aparticipação/agência dos atores.

Contudo, compreender a transição não apenaspor meio das respostas do ambiente e doredesenho do agroecossistema mas tambémcomo processo social, permeado das escolhasdos atores, permite-nos relacioná-la comabordagens que atribuem ao ator o poder demudar a direção da sociedade e/ou influenciar osprocessos de mudança social. Assim, associa-se aabordagem Agroecológica com a PerspectivaOrientada pelo Ator (POA), que, ao considerar oator social sujeito que age e toma decisões,possibilita a interpretação e análise do PCL epermite distinguir os limites do projeto e as suaspossibilidades no cenário configurado.

Para van der Ploeg (2000), as teorias que nãoatribuem ao homem a capacidade de mudar adireção da sociedade são simplificadoras,deterministas e excluem da análise a possibilidadedas pessoas influenciarem os processos demudança com suas escolhas e negações. Asteorias que atribuem o papel central dasmudanças às estruturas e as instituiçõesengessam em suas análises a possibilidade decompreender como os atores tomam decisões eagem cotidianamente. Essas conduzem a análiseno sentido de que o ator social édeterminadamente retido nos macroprocessoshistóricos e sociais sem a liberdade de escolha,como se tudo estivesse determinado

historicamente.O desafio nas Ciências Sociais é justamente

compreender a relação entre a estrutura e osatores, e compreender como essa relação indica ainsuficiência explicativa de algumas teorias.Algumas teorias acentuam a natureza deexploração e a tendência expansionista docapitalismo como motivadores de suas reflexões,ou seja, concebem o desenvolvimento dasociedade contemporânea como um movimentoprogressivo que tende a integrar tecnologia einstitucionalidade às formas sociais – o mito domoderno e do progresso.

No que tange à mudança social e ao papel dosatores em seus cotidianos, Long (2001) destacaque as perspectivas citadas veem a mudançasocial e o desenvolvimento nos espaços ruraiscomo advindos e decorrentes dos centros depoder externos aos atores e às localidades. Sãoteorias que desprivilegiam as práticas auto-organizadoras dos que habitam o rural eassumem, para as estruturas, o protagonismo dosprocessos de desenvolvimento.

Ademais, a Perspectiva Orientada pelo Atorbusca observar e compreender como grupossociais possuem diferentes modos de enfrentar asmudanças e criar espaços para influenciá-las e,ao mesmo tempo, instigar o desenvolvimento.Segundo Deponti (2007), ao comentar Long(2001), o desenvolvimento resulta de um longoprocesso de experimentação e inovação social, eé por esses processos que as pessoas constroemhabilidades, estratégias, discursos, assim comocriam confiança em si mesmas e buscampromover o crescimento econômico, a equidade, arenda e a liberdade política. Dessa forma,intrínseco a isso está o papel das instituições, dosagentes de desenvolvimento e dos mediadoresdos projetos, que, com participação e orientação,contribuem ou não para o empoderamento eenvolvimento dos atores sociais.

Os mediadores, também atores sociais que

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compõem o cenário do desenvolvimento rural, sãopeças fundamentais do processo. Costabeber(1998) se refere à transição agroecológica comoprocesso social, e remete a discussão à esferadas interrelações dos atores como determinantesno desdobramento das atividades de transição ede desenvolvimento rural. Para essa reflexão Long(2001) discute e apóia-se na afirmação de que asinterrelações dos atores geram as práticas deintervenção. A interação das partes e os grupostratam-se do momento de troca ou de imposiçãode conhecimento, geralmente incitado pelodetentor do conhecimento científico, que, por suavez, na maioria dos casos, é mantido pelo aparatoinstitucional do Estado.

Portanto, a abordagem Agroecológica e aPerspectiva Orientada pelo Ator privilegiam emsuas análises a participação e os métodos departicipação dos atores sociais envolvidos nosdesdobramentos do mundo rural e possibilitam aanálise de racionalidades, desejos, capacidades epráticas dos agricultores. Dessa forma, permitem aconstrução de um paradigma para a análise dodesenvolvimento rural centrado na noção desustentabilidade das atividades agrícolas epecuárias, considerando a localidade e oconhecimento local como pontos iniciais.

As contraditoriedades da proposta detransição do PCL

O Projeto Café de Lerroville (PCL) foiconstituído pela articulação das instituiçõesmediadoras locais: a assistência técnica eextensão rural - ATER, instituto de agriculturaorgânica, rede de comércio justo e solidário, e oscafeicultores organizados de Lerroville paradesenvolver as comunidades rurais, agregar valorao café produzido pelas famílias e inseri-los nodebate sobre sustentabilidade como promotoresdo desenvolvimento. A ATER do municípiorecorreu a recursos de fomento à agriculturaecológica e acionou recursos do Banco Mundialpara a construção do barracão da minitorrefadora.

Houve também a participação do instituto deagricultura orgânica no que tange à utilização dométodo e de recursos humanos, muito embora oinstituto tenha se distanciado quanto ao fato denão haver recursos financeiros para passar pelainstituição. A rede de comércio justo e solidário domunicípio participou na articulação e negociação,com uma organização não governamentalfrancesa da compra de café dos agricultores. Aparticipação dos agricultores constituiu em colocarsuas lavouras de café convencionais em transiçãopara lavouras ecológicas, o que necessitou doapoio dessas instituições e organizações. Porém,a metodologia de trabalho desse grupo teve poucaabertura para construção e inserção das variáveislocais e, assim, orientou e determinou asatividades e o tempo das etapas do método.

O elemento técnico-metodológico usado deforma pronta determinou as demais contradiçõesno processo de transição, que, comprocedimentos definidos segundo treze atividadesordenadas, teve prazo de três anos para serconcluído. O processo de transição incluiu, alémda mudança do sistema produtivo, a certificação,a organização dos agricultores em cooperativa, aconstrução da minitorrefadora e a exportação paraa França. Os cafezais tinham em média 35 anos eresponderam lentamente à técnica de substituiçãode insumos, o que provocou uma brusca queda daprodutividade no primeiro ano.

A certificação, além de ser uma etapa cara edependente de instituições certificadoras, tambémrequereu que todas as etapas anteriores, inclusivea conclusão de um período de três anos sem usode agrotóxicos e fertilizantes químicos, estivessemconcluídas para que fosse concedido o selo de“produto orgânico”.

A minitorrefadora de caráter comunitáriotambém foi proposta pelo projeto e foi mais umaadministração desafiadora para os agricultores. Orecurso para a construção do barracão foi obtidono Banco Mundial e as máquinas foram doadaspor projetos encaminhados pela extensão rural

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(EMATER-PR) e do Instituto Agronômico doParaná (IAPAR). Contudo, a obra não foiconcluída até o presente momento, por problemascom a construtora licitada, o que significou para osagricultores uma derrota, já que a ideia decooperativa esteve associada à construção dobarracão e à perspectiva de funcionamento daminitorrefadora.

A metodologia ordenada por atividadesdispostas em um organograma foi apropriada deum instituto de agricultura e seguiu,ordenadamente, as seguintes etapas:sensibilização; apresentação do método detransição; planejamento e diagnóstico; realizaçãodo diagnóstico; encontro de marco zero; visitastécnicas a outros agricultores; intercâmbios;palestras; definição da atividade agrícola;formação da cooperativa; planejamento eorganização da instituição; certificação;comercialização. Essas etapas preestabelecidasdeixaram pouco espaço para as variáveis própriasda comunidade, como, por exemplo, oconhecimento acumulado do agricultor, as suasnecessidades produtivas e, consequentemente,econômicas, ou as necessidades provindas daautonomia que o agricultor possui para realizar asescolhas de como prover a gestão da propriedade.De tal modo, o agricultor necessita autonomia paraescolher em quanto tempo que ele quer realizar atransição para que ela impacte minimamente areprodução social da família e a gestão dapropriedade.

Ao iniciar a mudança do sistema de produçãodos cafezais, os agricultores depararam-se comuma lógica de gestão semelhante à lógicadesenvolvida até então, sistema convencional. Odiferencial esteve no tipo de insumo utilizado. Atransição previa, primeiramente, uma substituiçãode insumos químicos por insumos orgânicos e,para o agricultor, foi determinada a incumbênciada gestão e usos dos novos insumos. Os insumos

orgânicos como o pó de rocha, húmus e a camade frango, indicados na primeira atividade datransição, eram insumos não disponíveis noDistrito de Lerroville, e, quando disponíveispossuíam preço alto, tornando-se inacessíveis einviáveis economicamente.

As caldas também eram provenientes decompras e misturas que os agricultoresaprenderam a fazer. Nessa etapa, houveestranhamento dos agricultores uma vez que acomposição da calda devia ser preparada para ouso. No modelo convencional, os agricultorescompravam os fertilizantes químicos por meio dasassociações, e por se tratar de insumos fáceis deencontrar nas agropecuárias locais e região,esses eram entregues na residência do agricultor.Com os insumos orgânicos, houve a necessidadede reorganizar a cadeia das atividades edispensar as várias facilidades ofertadas pelo usodos agrotóxicos e fertilizantes.

Para a transição, além da utilização deinsumos orgânicos externos já citados, osagricultores foram orientados a plantarleguminosas de adubação verde, como feijãoguandu e leucena, nas entrelinhas do cafezal,para servirem de matéria orgânica a serincorporada e auxílio na manutenção da fertilidadedos solos, controle de erosão, estímulo dapresença de minhocas e controle de organismosque causam doenças, como os nematoides.

O uso das leguminosas nas entrelinhas, noentanto, impediu a pratica comumente adotada nalocalidade do cultivo de outras espécies para oconsumo da família e dos animais do entorno dacasa, como, por exemplo, milho, mandioca,abóbora, e pequenas hortas. Assim, a técnica defertilização interferiu nas demais atividadesprodutivas praticadas nas entrelinhas, que eramrealizadas especialmente pelas mulheres. Nessecaso, a adequação sociotécnica2 (DAGNINO,2009) da transição deveria conciliar a prática de

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fertilização com adubos verdes com acontinuidade dos plantios de alimento paraautoconsumo nas entrelinhas. A inexistência deadequação social e técnica, além dedesconsiderar a participação dos agricultores,condicionou as respostas do ambiente por falta detempo hábil para que o agroecossistema reagisseexpressiva e positivamente à mudança defertilização, o que resultou na queda deprodutividade, não compensada pelosesporádicos ingressos de renda familiar.

O processo de transição definiu as tomadas dedecisão dos agricultores em relação a se manterna proposta estabelecida ou abandoná-la. Adecisão de se manter na transição esteverelacionada a atingir os objetivos iniciais decomercialização de café com a França, melhorespreços e, consequentemente, ascensão socialpara as famílias cooperadas da COASOL. Para osagricultores, abandonar a transição significoumais do que deixar a oportunidade de ascensãosocial, significou assumir uma responsabilidade eum estigma social de incapacidade de produzir deforma inovadora e moderna.

O fato da constituição da COASOL ter se dadopela união das duas associações locais deagricultores, especificamente para acomercialização na rede de comércio justosolidário, gerou uma indisposição dos agricultorespara com a realização das atividades. A junçãodas associações da Laranja Azeda e da Limeiraindicou a junção de dois modos de ver a gestãodas propriedades, uma de viés empreendedor eoutro de viés quase de subsistência. Por mais queos agricultores tivessem perfis semelhantes, emantivessem um bom relacionamento, até mesmode parentesco e compadrio, partilhavam de muitoscódigos e símbolos particulares às suascomunidades, fatos desconsiderados ao longo doprojeto.

Na Laranja Azeda, as famílias possuem grausde parentesco e/ou se reconhecessem como

família. Assim, a definição compadre/comadre érecorrente para se referir aos membros dasdemais famílias. Além do que, na Laranja Azeda,as propriedades são menores do que na Limeira,e a referência na atividade produtiva éestritamente a cafeicultura. Não há a participaçãode outras atividades produtivas, como há naLimeira. Nesse bairro, os agricultores possuemcomo fonte de renda também atividades como,“bicho da seda”, grãos, e trabalhos pluriativos. Aquantidade de terra é uma característica daLimeira. As propriedades são um pouco maiores,e os agricultores dessa comunidade sereconhecem como empreendedores e inovadores.A diversificação dos estilos de agriculturas nosbairros rurais é outro elemento que exige que ométodo de transição dê margem para as diversasadequações que cada agricultor tem o direito e anecessidade de definir.

O lazer e as festas são praticamente ligadosàs atividades religiosas nas duas comunidades,mas na Laranja Azeda a participação da mulher éfundamental na administração e na organizaçãodesses espaços de encontros que fazem dessasocasiões momentos de manutenção dasociabilidade e dos costumes - importante desdeo preparativo da festa, por reunir as mulherespara o preparo das receitas, até a organização erealização. Segundo Sahlins (1990), na tradição,mais importante que a manutenção passiva doscostumes é a capacidade de culturas reagirem aopresente mantendo vínculo com o passado, comoforma de perpetuação da reprodução social.Assim, o refazer da herança a cada festividade,além de manter viva as tradições e a história devida – quase história oral – a comunidadereinterpreta, continuamente, seus valorestradicionais baseados na cafeicultura, “no modode vida caipira” como diria Antonio Candido(1980) e na introdução das novas variáveis.

Na Limeira, a lógica de organização é similar,embora haja mais famílias que Laranja Azeda,

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onde a sociabilidade está intrínseca à festafamiliar. Na Limeira, a sociabilidade diz respeito àsreuniões de vizinhos e agricultores da região, quesão tipicamente organizadas pelos homens.Elementos como esses destacam a semelhançadas comunidades e apontam as pequenas noçõesque as diferenciam, por possuírem um código dereconhecimento e uma unidade própria.

O fato de as comunidades estaremorganizadas em associações distintas é indício deque a afinidade de seus membros é particular aoreconhecimento e ao fato de ser Limeira ou de serLaranja Azeda. Os bairros rurais, com suascaracterísticas de unidades de fomento identitário(CANDIDO, 1982), conservaram, ao longo dotempo, as relações de reciprocidade dascomunidades, responsáveis pela formação deredes sociais e pela manutenção da sociabilidadee do refazer da herança sociocultural esocioprofissional.

O método de transição minimizou adinamicidade do processo social da transição e oreduziu a aspectos puramente técnicos, atémesmo por ter modificado a dinâmicaorganizacional de lazer e festejos dascomunidades. A transição, e todas as suasatividades intrínsecas, permeadas por reuniões eviagens, ocasionaram o distanciamento dapropriedade por parte de alguns agricultores,justamente aqueles que estiveram envolvidos emviagens e reuniões técnicas também nos finais desemana. Embora as atividades de transição -enquanto conjunto de tarefas - eram entendidascomo necessárias pelos agricultores, o tempoocupados por elas impossibilitou a realização detarefas de cunho social e comunitário. Quando asreuniões se estendiam até o final da tarde desábado implicava na renuncia da partida defutebol. Nos dias de chuva, em que havia reuniõesdo projeto, os agricultores e suas famílias nãopodiam ir à cidade. E cabe ressaltar, que para o

agricultor, o dia de chuva é a oportunidade dele eda família ir para cidade fazer compras e resolvercompromissos pendentes.

A transição como processo social deconstrução de conhecimento requer que tanto asmetodologias quanto os agricultores interiorizem;no caso do método: as novas variáveis e asespecificidades locais, e no caso do agricultor: umnovo habitus produtivo. Os agricultores, comoatores dotados de poder de escolha, sãodeterminantes para o sucesso da transição.Entretanto, a transição, em seu aspecto técnico,requer adequações às condições sociais etecnológicas locais. O método, ao incorporar alógica de uso de insumos externos, enquadrou oprocesso de transição a um processo desubstituição de insumos químicos por insumosorgânicos, e esteve adverso à proposta detransição agroecológica como processo social deconstrução do conhecimento e uso de técnicas,saberes e tecnologias adequados aosagricultores.

Ao privilegiar a troca de insumos, o método detransição restringiu a diversidade depossibilidades que poderiam ser propostas pelosagricultores na tentativa de resolver seusproblemas mais emergentes. Também, porestabelecer prazo de término, o método nãoconsiderou o impacto que a transição poderiaacarretar aos agricultores que tinham na produçãode café o balizador econômico das propriedades edas famílias. A adequação, nesse caso, tomaimportância primordial relacionada e vida ereprodução da família. Porém, cabe destacar, queem meio aos desencontros e expectativasfrutadas, os agricultores internalizaramressignificaram e reproduziram o que lhespareceu mais significativo em meio a todas asdificuldades de transição.

Apesar, das dificuldades de uso da adubaçãoverde nas entrelinhas, os agricultores, mesmos

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após terem abandonado o processo de transição,mantiveram a adubação verde como maneiraacessível e eficiente de incorporar matériaorgânica ao solo. A explicação dada para isso é,que, há formas de produzir alimento nasentrelinhas associada à adubação verde. Asolução encontrada por eles, segundo relatos, foio de intercalar os plantios nas entrelinhas, ou, emalguns casos, de retirar o alimento e em seguidaplantar o adubo verde de período curto.

A transição agroecológica como base daconstrução do conhecimento agroecológicoprecisa se valer da diversidade de estilos deagriculturas e de agricultores, para se utilizar dosconhecimentos socioculturais e socioprofissionaisdesses a fim de aproximar o processo de transiçãode um processo de reconhecimento e deadequação social e técnica. A transição para asustentabilidade agropecuária deve evitar a merasubstituição de insumos. Deve agir na perspectivade interiorização de um novo procedimento doagricultor, um novo habitus produtivo, e deveconsiderar a complexidade das relações sociais eas especificidades das interações entre os grupos.A metodologia de transição, ao considerar oagroecossistema, deve considerar também que omanejo é realizado por um ator que toma decisõese é constituído por um social complexo e diverso.

Algumas consideraçõesNa busca da superação das dificuldades

históricas de produção e comercialização do café,os agricultores vislumbraram na transição para acafeicultura orgânica a oportunidade de mudançada condição de vida e trabalho. Entretanto, acomercialização por meio do comércio justo esolidário se apresentou cada vez mais como umaincógnita a ser desvendada e um desafio a sersuperado, que, nas ditas condições, seapresentaram mais distantes e mais inatingíveis acada atividade do método de transição.

A incorporação de um novo habitus produtivo

ao longo do tempo mescla o conhecimentoexistente com o conhecimento interiorizado sobrea agricultura de base ecológica e redefine ocafeicultor de Lerroville. O cafeicultor herdeiro daspráticas e da tradição não chegou a existirenquanto cafeicultor de base ecológica ecooperado da COASOL, mas o acúmulo deexperiências que o processo de transição lheforneceu, sem dúvida, ressignificou suasatividades e até mesmo seus modos de vida.

A metodologia de transição, por possuir umalógica de atividades determinadas, definiu oenvolvimento dos agricultores por inviabilizar ofluxo das variáveis locais e impediu a expressão ea comunicação horizontal entre os atores. Osagricultores, ao manter a cafeicultura como fontede renda mais expressiva na gestão da família eda propriedade, estiveram imersos também nadinâmica do monocultivo, razão pela qual a quedada produção durante a transição atingiusignificativa e comprometeu a reprodução socialda família. As dificuldades financeiras passadaspelos agricultores e seus familiares condicionou aida de seis famílias para as cidades, e possibilitouque mais filhos e filhas das comunidadesencontrassem trabalhos não agrícolas no entornode Lerroville e no município de Londrina.

Quando as pessoas se remetem ao PCL, logose vê que há dois discursos recorrentes: o demais visibilidade, aqui metaforicamente definidocomo os aspectos aparentes, aqueles que estãono palco da discussão e geralmente é o discursoque estigmatiza o agricultor e determina o términoda experiência do PCL pela cultura e pelo modode vida do agricultor, culpando-o pelo o insucessodo PCL, e atribuindo ao seu modo de vida poucoempreendedor o não sucesso a proposta detransição. Essa ideia é relacionada a nãoadequação do agricultor às orientações proferidaspelos mediadores do projeto, no sentido de que osagricultores não exerceram seus papéiscorretamente e não desempenharam o que lhes

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foi atribuído.O outro discurso corrente, metaforicamente

definido como os bastidores da transição, é o dascomunidades que viveram o processo detransição. Para a comunidade, as tecnologias detransição definidas pelos extensionistas nãocondiziam com a realidade das famílias e daslavouras. Os insumos exógenos, de difícilaquisição e transporte, além dos preços altos e dademora de entrega nas propriedades, não fizeramcom que as lavouras respondessem da formacomo os agricultores desejaram - no curto espaçode tempo - o que comprometeu a produção. Ainadequação sociotécnica desconsiderou asdemais atividades produtivas e sociais dapropriedade, de modo que se pode afirmar aimportância das questões socioculturais e dosestilos de agricultura como determinantes nodesenvolvimento do PCL. Portanto, a metodologia,ao dar ou retirar o espaço de atuação do atorsocial, determina o envolvimento e a participaçãodesse nos processos de mudança social.Enfatiza-se que caso se pretenda utilizar métodosde transição já utilizados em outros projetos dedesenvolvimento rural voltado para a agriculturade base ecológica, necessariamente esse métododeve ser reelaborado e ressignificado com o novogrupo de atores para inclusão das suasespecificidades e suas questões mais relevantes.A transição deve buscar ainda a transiçãoagroecológica do agroecossistema, sem tempodeterminado para começar e terminar, e visando ofuncionamento harmônico de homem e naturezana arte de fazer agricultura.

Notas1 Definição territorial usada pelos historiadores

para se remeterem à mesorregião Norte Centralna primeira fase de colonização.

2 Processo que permite a exploração daautonomia técnica, social e política para aexploração de rotas alternativas de

desenvolvimento tecnológico. Para outrasinformações ver: DAGNINO, R. Tecnologiasocial: ferramenta para construir outrasociedade. Brasília: Companhia de comunicação,2009.

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