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INTRODUÇÃO O Rorschach pode ser encarado, em duas dimensões básicas: uma dimensão intra-psíquica, em que se procura averiguar o funcionamento do aparelho psíquico do sujeito, o que é feito pela leitura dinâmica dos fantasmas transmitidos; ou numa dimensão inter-psíquica, na qual os fenó- menos transferênciais e contra-transferenciais entre sujeito e psicólogo traduzem a mútua influência entre os dois sujeitos (Marques, 1999/2001). Todo e qualquer tipo de objectos podem aparecer no protocolo, desde os objectos perten- centes aos reinos mineral, vegetal, animal até ao reino humano. O Rorschach aparece, assim, como uma espécie de espelho reflector entre os seres humanos e entre os seres humanos e o mundo. A subjectividade de cada ser humano parece imprimir, neste jogo de espelhos infinitos, um ângulo diferente às relações entre espelhos, produzindo de cada vez um grau de distorção (fantasmática) às figuras descritas. Torna-se assim possível que, não só o Rorschach reflicta o mundo, mas também que o mundo nas suas variadas facetas metaforize o próprio Rorschach. Tal como Lévi-Strauss (1964/1991) já tinha estabelecido para os mitos, parece que também para os temas rorschachianos “não existe um verdadeiro término na análise mítica, nenhuma unidade secreta que se possa atingir ao final do trabalho de decomposição. Os temas desdo- bram-se ao infinito” (op. cit., p.15). Neste sentido, a unidade da semiologia do Rorschach é apenas tendencial e projectiva, tratando-se assim de um “fenómeno imaginário implícito no esforço de interpretação, o seu papel é dar ao mito uma forma sintética e impedir que se dissolva na confusão dos contrários” (Lévi- Strauss, op. cit., p. 15). Ou seja, trata-se de saber, no Rorschach, como e porque razão se passa de um termo ao seu contrário, de um termo ao seu oposto, procurando reter e interpretar esta passagem. É como se as passagens entre vários termos criassem, por um desdobramento ao infinito, a ilusão de uma unidade sempre tempo- rária, precária e ameaçada, sempre relativa aos temas considerados. E porque as passagens se dão entre termos pertencentes a temas que se contêm e projectam uns nos outros, qualquer termo das séries em causa pode constituir um significado relativo a qualquer outro termo com ele relacio- nado. Qualquer objecto que aparece no Rorschach, 385 Análise Psicológica (2009), 3 (XXVII): 385-407 Transformações psicomitológicas no Rorschach (*) LUÍS MIGUEL BARREIROS (**) MARIA EMÍLIA MARQUES (***) (*) Artigo elaborado a partir da dissertação de Mestrado em Psicopatologia e Psicologia Clínica com o mesmo título, apresentada e defendida no ISPA em 2008. (**) Doutor em Psicanálise. (***) Psicóloga Clínica, Professora Associada do Instituto Superior de Psicologia Aplicada.

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Page 1: Transformações psicomitológicas no Rorschach (*) fileINTRODUÇÃO O Rorschach pode ser encarado, em duas dimensões básicas: uma dimensão intra-psíquica, em que se procura averiguar

INTRODUÇÃO

O Rorschach pode ser encarado, em duasdimensões básicas: uma dimensão intra-psíquica,em que se procura averiguar o funcionamento doaparelho psíquico do sujeito, o que é feito pelaleitura dinâmica dos fantasmas transmitidos; ounuma dimensão inter-psíquica, na qual os fenó-menos transferênciais e contra-transferenciaisentre sujeito e psicólogo traduzem a mútuainfluência entre os dois sujeitos (Marques,1999/2001).

Todo e qualquer tipo de objectos podemaparecer no protocolo, desde os objectos perten-centes aos reinos mineral, vegetal, animal até aoreino humano. O Rorschach aparece, assim,como uma espécie de espelho reflector entre osseres humanos e entre os seres humanos e omundo. A subjectividade de cada ser humanoparece imprimir, neste jogo de espelhos infinitos,um ângulo diferente às relações entre espelhos,produzindo de cada vez um grau de distorção(fantasmática) às figuras descritas. Torna-se

assim possível que, não só o Rorschach reflicta omundo, mas também que o mundo nas suasvariadas facetas metaforize o próprio Rorschach.

Tal como Lévi-Strauss (1964/1991) já tinhaestabelecido para os mitos, parece que tambémpara os temas rorschachianos “não existe umverdadeiro término na análise mítica, nenhumaunidade secreta que se possa atingir ao final dotrabalho de decomposição. Os temas desdo-bram-se ao infinito” (op. cit., p.15).

Neste sentido, a unidade da semiologia doRorschach é apenas tendencial e projectiva,tratando-se assim de um “fenómeno imaginárioimplícito no esforço de interpretação, o seu papelé dar ao mito uma forma sintética e impedir quese dissolva na confusão dos contrários” (Lévi-Strauss, op. cit., p. 15). Ou seja, trata-se de saber,no Rorschach, como e porque razão se passa deum termo ao seu contrário, de um termo ao seuoposto, procurando reter e interpretar estapassagem. É como se as passagens entre váriostermos criassem, por um desdobramento aoinfinito, a ilusão de uma unidade sempre tempo-rária, precária e ameaçada, sempre relativa aostemas considerados. E porque as passagens se dãoentre termos pertencentes a temas que se contêm eprojectam uns nos outros, qualquer termo dasséries em causa pode constituir um significadorelativo a qualquer outro termo com ele relacio-nado. Qualquer objecto que aparece no Rorschach,

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Análise Psicológica (2009), 3 (XXVII): 385-407

Transformações psicomitológicas no

Rorschach (*)

LUÍS MIGUEL BARREIROS (**)MARIA EMÍLIA MARQUES (***)

(*) Artigo elaborado a partir da dissertação deMestrado em Psicopatologia e Psicologia Clínica como mesmo título, apresentada e defendida no ISPA em2008.

(**) Doutor em Psicanálise.

(***) Psicóloga Clínica, Professora Associada doInstituto Superior de Psicologia Aplicada.

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pode constituir o significado apenas parcial paraoutro objecto com o qual se relacione. Algumasdas relações entre objectos e temas do Rorschachsão contidas, lidas e interpretadas por outrasrelações e noutros planos do próprio Rorschach,numa sempre procurada gradação contínua entre adescontinuidade objectal que o compõe. Tal comonos mitos de Lévi-Strauss, esta multiplicidade deobjectos e temas “oferece algo de essencial, poisestá ligada ao duplo caráter do pensamentomítico que coincide com seu objeto, do qualconstitui uma imagem homóloga mas sem jamaisconseguir fundir-se com ele pois evolui num outroplano”, podendo concluir-se por esta via que,assim como nos mitos, os temas e objectos doRorschach “são in-termináveis” (Lévi-Strauss,op. cit., p. 15), embora finitos. O Rorschachtorna-se assim um “sujeito semiótico” (significasempre), na medida em que é o seu próprioobjecto (relação de objectos).

Importa assim entender que consideramos oRorschach, nesta perspectiva e na sua formaempírica, como um simples efeito de superfíciede um vasto intervalo de significantes consti-tuintes materiais do sentido da existênciahumana. Não interessa o facto de serem x cartõese estas ou aquelas manchas, isso é arbitrário, talcomo o próprio Saussure (1916/1972) já tinhanotado na relação, constitutiva do signo, entresignificado e significante. A apresentaçãoempírica do teste (os cartões, as manchas, o quese deve ou não perguntar, as reacções que setêm, o tempo de resposta, etc.) é apenas umconjunto de significantes, eles próprios perten-centes à cadeia significante enquanto suporte dosentido da vida. Esta cadeia significante que, aocontrário de Saussure, tomou a primazia nateoria linguística desde Jakobson (1977), e foiadoptada por autores como Lévi-Strauss (1955//1970, 1950/1988) e Lacan (1966/1998), corres-ponde àquilo que Eco (1973/1997) denomina por“lei de progressividade do processo sígnico” ou“semiose ilimitada” (pp. 151-152).

É nesta semiose ilimitada que, argumentamos,o Rorschach labora na sua ilimitada, embora finitanos temas, produção de significados, “onde sejoga um processo em que a simetria, ao abrir oespaço para o múltiplo e o infinito, obriga eimpõe, também, o retorno, o reencontro e afixação no uno, no indivisível, no unido, integrado

e coeso para se operar, de novo, o espaço domúltiplo, do infinito finito. Este é o universo datransformação simbólica” (Marques, 1999/2001,p. 208). Na medida em que é um “processosígnico”, designá-lo-emos por “processoRorschach”, a fim de vincarmos a sua naturezasemiótica, que subjaz à mera apresentação empíricado teste. O que designamos por “processoRorschach” a esta luz, está na estreita continui-dade das teses de Chabert (1998/2000) e deMarques (1999/2001). A continuidade que oRorschach reconstitui na semiose ilimitada, operaa partir da descontinuidade dos significantes oudos objectos que aparecem nas descrições dosprotocolos Rorschach. Tal como Jakobson (1977)previa para os fonemas que isoladamente nadasignificam, mas apenas na sua mútua oposição, amesma hipótese pode ser colocada sobre asrelações entre os objectos descritos nos protocolosRorschach. Isto implica, dentro do paradigmalévi-straussiano, que o Rorschach pode serentendido como uma “linguagem”, embora use aprópria linguagem como mediador descritivo dasmanchas. O Rorschach enquanto sistema (de inter-pretação) é o que mais se aproxima da linguagem(sistema por excelência), na medida em que sejaentendido enquanto operador mítico que, precisa-mente nessa qualidade, detecta mitos pessoaisconstitutivos do aparelho psíquico do indivíduo.

Influenciado pela linguística estrutural deSaussure (1916/1972), Troubetzkoy (1939/1949)e Jakobson (1963, 1977), Lévi-Strauss (1955//1970) irá desenvolver uma análise consecutivarelativa à mitologia, que culminará numa grelhade duas entradas para análise dos mitos, a grelhasincro-diacrónica. É um procedimento diagramá-tico que estará omnipresente, embora latente, emtodas as obras das Mitológicas. A sua explici-tação decorreu no entanto de maneira mais clarae metódica em A Estrutura dos Mitos (Lévi-Strauss, 1955/1970).

A proposta do autor, exemplificada com omito de Édipo, consistiu em distribuir as acçõesdas personagens em linhas horizontais deno-minadas, por inspiração na linguística, por“sintagmas” ou “diacronias”, uma vez quedecorrem segundo a ordem cronológica dotempo linear. Aquilo que as acções diacrónicastêm em comum, quer em diferentes lugares nomesmo tempo, quer em diferentes momentos

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do tempo no mesmo lugar, foi colocado emcolunas verticais da grelha e denominado por“paradigmas” ou “sincronias”.

Pode-se ver aqui, desde logo, que o mito,segundo esta concepção, se joga numa constantetensão entre os acontecimentos reais e históricosdo tempo e os desejos que, fora do tempo, osalimentam e condicionam. O mito fala, portanto,daquilo que aconteceu algures no passado (masum passado que por não ser identificável remetepara o não-tempo, para a ausência do tempo, paraa sincronia) para explicar um estado de coisas nopresente (no tempo, na diacronia). O desconheci-mento do tempo por parte do inconsciente (Freud,1915/1981) encontra-se, portanto, esquematizadonas colunas sincrónicas da grelha dos mitos deLévi-Strauss. Segundo Lévi-Strauss (1955/1970),“um mito diz respeito, sempre, a acontecimentospassados: ‘antes da criação do mundo’, ou‘durante os primeiros tempos’, em todo caso, ‘fazmuito tempo’. Mas o valor intrínseco atribuído aomito, provém de que estes acontecimentos, quedecorrem supostamente em um momento do tempo,formam também uma estrutura permanente. Estarelaciona-se simultaneamente com o passado, opresente e o futuro” (p. 241).

Que lógica preside então à grelha de duplaentrada para análise dos mitos? A assumpçãobásica do autor é a da íntima relação entre mito elinguagem: “(...) Se os mitos têm um sentido, estenão pode ater-se aos elementos isolados queentram na sua composição, mas à maneira pelaqual estes elementos se encontram combinados.(...) O mito provém da ordem da linguagem, e fazparte integrante dela; entretanto, a linguagem,tal como é utilizada no mito, manifesta proprie-dades específicas. (...) Essas propriedades sópodem ser pesquisadas acima do nível habitualda expressão linguística; dito de outro modo,elas são de natureza mais complexa do que asque se encontram numa expressão linguística dequalquer tipo” (op. cit., p. 242).

Daqui chega-se à conclusão de que “(...) comotodo ser linguístico, o mito é formado porunidades constitutivas; (...) essas unidades consti-tutivas implicam a presença daquelas queintervêm normalmente na estrutura da língua, ouseja, os fonemas, os morfemas e os semantemas.Mas elas estão para os semantemas assim comoos semantemas estão para os morfemas e assim

como os morfemas estão para os fonemas. Cadaforma difere da que a precede, por um mais altograu de complexidade. Por esta razão, denomina-remos os elementos que provêm particularmentedo mito (e que são os mais complexos de todos):grandes unidades constitutivas” (op. cit., p. 243).

As grandes unidades constitutivas são os feixesde relações sincrónicas nas colunas verticais databela. Chegámos então aos mitemas, as unidadesmínimas constitutivas dos mitos: “Como seprocederá para reconhecer e isolar essas grandesunidades constitutivas, ou mitemas? Sabemos queelas não são assimiláveis, nem aos fonemas, nemaos morfemas, nem aos semantemas, mas sesituam num nível mais elevado: senão o mito seriaindistinto de qualquer outra forma de discurso.Será necessário pois procurá-las no nível daoração” (op. cit., p. 243).

A questão agora é a de saber qual a melhortécnica para diferenciar os mitemas uns dosoutros, na análise de cada mito e entre os mitos, afim de os colocar nas colunas verticais da tabela.Lévi-Strauss (1955/1970) usará então “(...) aseguinte técnica: cada mito é analisado indepen-dentemente, procurando-se traduzir a sucessão deacontecimentos por meio de frases o mais curtaspossíveis. Cada frase é inscrita numa ficha quetraz um número correspondente ao seu lugar nanarrativa. Percebe-se, então, que cada cartãoconsiste na atribuição de um predicado a umsujeito. Ou melhor, cada grande unidade consti-tutiva tem a natureza de uma relação” (p. 243).

Este ponto é importante para a tese aquiavançada, pois aqueles que denominamos por“objectos míticos” na estrutura dos protocolosRorschach, consistem na atribuição de predicadosa sujeitos detectáveis nas mais curtas frasespossíveis fornecidas pelos sujeitos. Ora, a predi-cação de sujeitos constitui uma inevitávelcaracterística das relações interpessoais. Trata-sede um outro modo de ver a definição generalistade “objecto”, nas teorias das relações de objecto,dada por Greenberg e Mitchell (1983/2003): “otermo tem sido utilizado para descrever quer aspessoas reais no mundo externo, quer as imagensque delas são formadas internamente”(p. 34),acrescentando que o respectivo conceito está “emconcordância com a experiência dos doentes cujomundo pode ser descrito por “objectos” que estãoactivos ou estáticos, vivos ou mortos, que são

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benignos ou malignos, etc. A própria generali-dade do termo indica a variabilidade da experi-ência de cada um com outras pessoas” (pp. 34-35)e admitindo ainda que “um objecto, de acordocom o emprego comum do termo, apesar da suadurabilidade, pode ser manipulado e modificado.Pode ser remodelado, pintado de novo, partido emdois, reparado ou pode mesmo ser destruído” (p.35) tal como os mitos, aliás, na acepção de Lévi-Strauss (1955/1970, 1964).

É assim que para Lévi-Strauss (1955/1970), asverdadeiras unidades constitutivas do mito(unidades que dão sentido às acções predicadasdos sujeitos), na qualidade de mitemas, “não sãoas relações isoladas, mas feixes de relações, e (...)é somente sob a forma de combinações de taisfeixes que as unidades constitutivas adquiremuma função significante. Relações que provêmdo mesmo feixe podem aparecer em intervalosafastados, quando nos situamos num ponto devista diacrônico, mas se chegamos a restabelecê--las no seu agrupamento ‘natural’, conseguimosao mesmo tempo organizar o mito em função deum sistema de referência temporal de um novotipo (...) Realmente, este sistema é de duasdimensões: ao mesmo tempo diacrónico e sincró-nico, e reunindo assim as propriedades caracterís-ticas da ‘língua’ e as da ‘palavra’” (p. 244).

Deste modo acabamos por obter umaesquematização da tabela mítica na forma doquadro abaixo reproduzido. A ilustração dométodo de análise mítica pela grelha funciona“como se nos fosse apresentada uma sequênciade números inteiros, do tipo 1, 2, 4, 7, 8, 2, 3, 4,6, 8, 1, 4, 5, 7, 8, 1, 2, 5, 7, 3, 4, 5, 6, 8, sendo--nos atribuída a tarefa de reagrupar todos os 1,todos os 2, todos os 3 etc., sob forma de quadro”(Lévi-Strauss, op. cit., p. 246). E o “quadro”tomaria a forma abaixo indicada:

1 2 0 4 0 0 7 80 2 3 4 0 6 0 81 0 0 4 5 0 7 81 2 0 0 5 0 7 00 0 3 4 5 6 0 8

É de acordo com tabelas reticulares sincro-dia-crónicas desta natureza, que mais tarde o autor irádesenvolver a sua metodologia de análise mítica,descrita sumariamente segundo os seguintesprocedimentos: “[a] nossa empresa (...) não se

deixa restringir a limites territoriais ou a classifi-cações. Não importa o modo como a encaremos,ela desenvolve-se como uma nebulosa, sem jamaisreunir de modo durável ou sistemático a somatotal dos elementos de onde tira cegamente a suasubstância, certa de que o real lhe servirá de guiae lhe mostrará um caminho mais seguro do queaqueles que poderia ter inventado. A partir de ummito escolhido, senão arbitrariamente, mas emvirtude do sentimento intuitivo de sua riqueza efecundidade, e em seguida analisado de acordocom as regras estabelecidas em trabalhosanteriores (...) configuramos o grupo de transfor-mações de cada sequência, seja no interior dopróprio mito, seja elucidando as relações deisomorfismo entre sequências extraídas de váriosmitos provenientes da mesma população. Assim,já nos elevamos da consideração de mitosparticulares à de certos esquemas condutoresque se ordenam sobre um mesmo eixo. Em cadaponto desse eixo assinalado por um esquema,traçamos na vertical, digamos assim, outros eixosresultantes da mesma operação, mas agora nãomais efectuada por meio dos mitos de uma únicapopulação, aparentemente diferentes, mas demitos que, embora pertencentes a populaçõesvizinhas, apresentam certas analogias com osprimeiros. Desse modo, os esquemas condutoressimplificam-se, enriquecem-se ou transformam-se.Cada um deles torna-se origem de novos eixos,perpendiculares aos precedentes em outrosplanos, aos quais logo irão agarrar-se por umduplo movimento prospectivo e retrospectivo,sequências extraídas de mitos provenientes depopulações mais remotas ou de mitos inicialmentedescartados por parecerem inúteis ou impossíveisde interpretar, embora pertencentes a povos jápassados em revista. À medida que a nebulosa seexpande, portanto, seu núcleo condensa-se eorganiza-se. Filamentos esparsos soldam-se,lacunas preenchem-se, conexões estabelecem-se,algo que se assemelha a uma ordem transparecesob o caos. Como numa molécula germinal,sequências ordenadas em grupos de transforma-ções vêm agregar-se ao grupo inicial, reprodu-zindo-lhe a estrutura e as determinações. Nasceum corpo multidimensional, cuja organização érevelada nas partes centrais, ao passo que na suaperiferia ainda reinam a incerteza e a confusão”(Lévi-Strauss, 1964/1991, pp. 12-13).

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Deste modo, todas as relações agrupadas namesma coluna apresentam, por hipótese, umtraço comum que se trata de evidenciar (Lévi-Strauss, 1955/1970). Neste ponto, e uma vez quenão vamos seguir até ao fim a demonstraçãopormenorizada de Lévi-Strauss, importaacrescentar que o autor prevê que a narrativa domito (exemplificado com o mito de Édipo)prossiga com a superação de oposições entre ascolunas. Significa isto que, relativamente aoquadro acima esboçado, por exemplo “a quartacoluna mantém com a coluna 3 a mesma relaçãoque a coluna 1 com a coluna 2. A impossibili-dade de manter em conexão grupos de relações ésuperada (ou mais exactamente substituída) pelaafirmação de que duas relações contraditóriasentre si são idênticas, na medida em que cadauma é, como a outra, contraditória consigomesma” (Lévi-Strauss, 1955/1970, p. 249). Esteponto é importante, pois retrata noutro para-digma um dos importantes conceitos freudianos,o de “série complementar”, que prevê que “aconstituição sexual hereditária apresenta-nosuma grande variedade de disposições, conformeseja herdado, com particular intensidade, um ououtro dos instintos parciais, sozinho ou em com-binação com os outros. A constituição sexualforma, portanto, junto com o factor da experi-ência infantil, uma ‘série complementar’exatamente semelhante àquela que já sabemosexistir entre disposição e experiência casual doadulto” (Freud, 1916-17/1996b, p. 365).

Ou seja, a “causação da neurose” requer uma“disposição devida à fixação da libido”, situadano domínio da experiência infantil, e umaexperiência casual traumática no adulto (Freud,op. cit.) que a substitui e a expressa por outrosmeios. Trata-se da polémica teoria do duplotrauma no aparecimento da neurose. Interpretadaem retrospectiva pelo prisma lévi-straussiano,diríamos que a neurose é uma transformaçãoestrutural por oposição e substituição entre duasoposições traumáticas na vida humana com umanova configuração mental como resultado:oposição traumática entre id e mundo externo,primeiro; oposição traumática entre ego e super--ego após internalização objectal, depois. Emtermos de segunda tópica do aparelho psíquico,há assim uma “primeira” oposição pré-edipianaentre o id e as exigências do mundo externo – é

o passado: “antes da criação do mundo”, ou“durante os primeiros tempos”, em todo caso,“faz muito tempo” (Lévi-Strauss, 1955/1970) – euma segunda oposição pós-edipiana entre ego esuperego – é o presente do aparelho psíquicodurante o qual os “mitos individuais dos neuró-ticos” (Lacan, 1953/1987) compõem e “transfor-mam” (Bion, 1965/1991) constantemente opassado.

Nesta perspectiva, entenderemos o processoRorschach como uma emissão de mitos trans-formáveis do presente para o passado (regressão)e do passado para o presente (progressão), namedida em que a combinatória das percepções erepresentações de cada cartão fornece umaconstante resposta mutativa aos traumas dosujeito. Isto implica entender o Rorschachenquanto Complexo-Mítico-Dinâmico-Transfor-mável, no qual as oposições entre [sujeito-prova]e [sujeito-sujeito psicólogo] são manifestadas,substituídas e superadas no processo Rorschachenquanto metáfora da segunda tópica doaparelho psíquico. A “exteriorização”, a “mani-festação” do aparelho psíquico dá-se deste modono processo Rorschach como o Outro Simbólicoda interacção imaginária eu (sujeito)-outro(psicólogo). Nesta perspectiva a tese deLeichtman (1996) que admite o Rorschach comoveículo ou meio de representação entre umemissor e um receptor seria entendida no sentidoem que tal “veículo” se caracterizaria pelaemissão e recepção de mitos, cuja combinatóriatransformadora entre percepções e represen-tações trocadas forneceria o valor simbólico dasinterpretações.

Defendemos aqui que o Rorschach tem porfunção fornecer configurações temporáriasestabilizadas dos mitos pessoais que o sujeitoformou até ao momento em que lhe é propostointerpretar as manchas.

O PROTOCOLO RORSCHACH

Para podermos exemplificar o paradigmaacima descrito, procederemos ao delineamentoda grelha psicomítica aplicada ao protocolo deRorschach de Régis, 24 anos, com diagnósticode esquizofrenia paranóide, publicado in Chabert(1998/2000, pp. 235-240).

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PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO RORSCHACH

As configurações temporárias dos mitospessoais formados são detectáveis através dametodologia agora proposta. Tal metodologiaconsiste na construção sistemática da denominadagrelha sincro-diacrónica ou grelha psico-mítica.A grelha consiste numa tabela de dupla entrada,na qual constam as mais curtas frases possíveisrelativas ao protocolo do sujeito. A tabela éformada por dez linhas horizontais relativas aosdez cartões que formam a prova. As linhas sãodesignadas por linhas diacrónicas, na medida emque são reguladas pelo tempo cronológico daverbalização do sujeito. As frases numeradas dosprotocolos são distribuídas pelas linhas hori-zontais relativas a cada cartão, respeitandosempre a sucessividade cronológica original.Cada frase ou oração corresponderá ao quedesignaremos por mitemas, significantes,objectos psicanalíticos ou elementos alfa, namedida em que constituem as mais pequenasunidades de significado constituintes dos mitospessoais do sujeito. Estas unidades elementaresou mitemas são organizadas ou arrumadas nascolunas verticais da grelha, que designaremos porcolunas sincrónicas. Tais colunas são a-temporaise são formadas pelos grandes temas da existênciahumana: morte, corpo, sexualidade, filiaçãointergeracional, entre outras. Cada mito pessoalserá identificado na medida em que constitua umarelação de equilíbrio temporária entre cada quatrocolunas, de acordo com a fórmula psicomítica deLévi-Strauss (1955/1970).

Neste protocolo analisaremos primeiro osmecanismos de defesa compostos sobretudo pormitemas nos domínios anatómico, botânico eanimal. Identificaremos dois códigos fundamen-tais no psicomito de Régis: o código espacial e oanatómico. A partir daqui deduziremos o núcleocentral edipiano do sujeito e, finalmente,identificaremos a relação de equilíbrio entre asquatro colunas centrais do mito pessoal de Régis,de acordo com os procedimentos da fórmulacanónica dos psicomitos inerente à estrutura dagrelha. Construiremos, finalmente, a grelha dequatro colunas relativa ao mito pessoal de Régisvigente na altura da administração do teste.

ANÁLISE DO PROTOCOLO DE RÉGIS

Grelha sincro-diacrónica original designadapor “grelha psicomitológica 1” na qual reproduzi-mos a narração cronológica conforme o protocolode Régis.

Na grelha psicomitológica 1 (Anexo) podemosverificar que logo no início continuam as duasprimeiras colunas do código edipiano (colunasda filiação) por preencher.

Tendo sempre em atenção o princípio segundoo qual aqui se trata de mediação de opostos,ultrapassagem de opostos a fim de construir novos“objectos psicanalíticos” (Bion, 1962/1991, p.68), definidos pelas “hipóteses de definição”(Bion, 1962/1991, p. 67) geradas na cadeia signifi-cante no seio de novas versões míticas da narraçãodo paciente, podemos verificar na diacronianarrativa dos cartões comentados um códigoespacial caracterizado pela oposição dos signifi-cantes dentro/fora e baixo/alto. No cartão II “umobjecto interplanetário entra na vagina” (sentido“fora→dentro” e “alto→baixo”). No cartão IX um“géiser sai do pescoço” (sentido “dentro→fora”) eno cartão X um “sinal de progresso (procura depetróleo no solo)” está “apontado ao céu, à divin-dade” (sentido “dentro→fora” e “baixo→alto”). Aordem cronológica do discurso do sujeito produztoda uma série de mediações, ao longo doRorschach, entre, digamos assim, uma “entradainaugural” (acontecimento mítico fundador, inau-gural) e uma “saída final”. Entre esta entrada eesta saída, o Ego de Régis empreende uma longaviagem.

O Ego de Régis aparece no cartão IX recalcadopelo jogo anagramático da linguagem e investidona figura do “géiser”: “Régis” deslocado, conden-sado e figurado no anagrama do “géiser” tentafazer um primeiro movimento de “dentro→fora”saindo de um pescoço, dimensão oral da suaregressão: “(...) o discurso em seu conjunto podetornar-se objeto de uma erotização, que segue osdeslocamentos da erotogenia na imagemcorporal. O discurso assume então uma funçãofálico-uretral, erótico-anal ou sádico-oral”(Lacan, 1953/1998, pp. 302-303). O falicismouretral ou o sadismo oral que o investimento no“géiser” por Régis parece indicar, desdobra-semais uma vez segundo o modelo da grelha míticasincro-diacrónica de duas entradas na medida emque se, com efeito, é necessária a linearidade que

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Saussure (1916/1972) considera constitutiva dacadeia do discurso, em conformidade com suaemissão por uma só voz, e na horizontal em queela se inscreve em nossa escrita, ela não ésuficiente” pois “não há cadeia significante,com efeito, que não sustente, como que apensona pontuação de cada uma de suas unidades,tudo o que se articula de contextos atestados navertical, por assim dizer, desse ponto” (Lacan,1957/1998, pp. 506-507).

A revelação das pulsões de Régis noinvestimento da imagem do géiser ao nível dopescoço, denuncia, em todo o protocolo e emtermos de código espacial e anatómico, odenominado deslocamento defensivo de baixopara cima, que acontece quando “as sensações eas inervações e até mesmo os processos deerecção, que pertencem propriamente aosgenitais, se [deslocam] para outras regiõesremotas do corpo – como, por exemplo (...)para cima, para a cabeça e a face” (Freud,1916-17/1996a, p. 329). Sobre isto temos: nocartão III, uma cabeça de monstro, uma auréolana cabeça de Cristo e um cérebro vermelho; nocartão V, uma cabeça de caracol; no cartão VI,os olhos e pulmões; no cartão VII, duas bocas;no cartão VIII, a árvore da vida em cima deduas estátuas, portanto acima do órgão dacabeça; no cartão IX, cornos e cérebro derinoceronte, cabeça oculta e testículos no lugardos braços no super-homem e busto de Deus; nocartão X, cabeça do diabo com capacetes. Há,no entanto, movimentos inversos de cima parabaixo, como no cartão IV, onde aparece umacauda de cacto picante e um monstro comventosas no lugar dos pés. Note-se agora comona coluna do cartão IV, onde aparece o mitemado “monstro com ventosas no lugar dos pés”aparece também o mitema que constitui oelemento culminante da narração do mitororschachiano de Régis: o “géiser”, no cartão IXe o petróleo, no cartão X, cujo símbolo da suabusca surge apontado ao céu, à divindade.“Géiser” que, duas colunas à frente, no mesmocartão IX, aparece associado ao significante“pescoço”. Portanto, no mesmo eixo semânticodo código espacial e anatómico (imagem docorpo), temos mitemas que vectorialmente nosdescrevem as direcções opostas de baixo paracima e de cima para baixo: o Ego de Régisobtém uma “libertação” sublimada, através de um

géiser que explode a partir de um pescoço (cartãoIX) e o mesmo Ego está “preso” no cartão IV nafigura de um monstro que tem dificuldade emdescolar da superfície da terra, um monstro quefunciona como figura mediadora, como termomediador entre o petróleo (fonte de energia paracombustão) abaixo da terra, contido no seio daterra e a ambivalência afectiva da divindade (deuse o diabo) que acima da terra tudo observa. Estetipo de monstro parece cinestesicamentesemelhante aos monstros ctónicos de algunsmitos, monstros que saídos debaixo da terraaparentam um andar atabalhoado e zigueza-gueante (as ventosas fixam-se à terra). Estesmonstros estão classificados na quarta coluna dagrelha mítica de Lévi-Strauss aplicada à análise domito de Édipo: “Em mitologia é frequente que oshomens nascidos da Terra sejam representados,no momento da emergência, como ainda inca-pazes de andar, ou andando desajeitadamente”(Lévi-Strauss, 1955/1970, p. 249).

O código espacial desdobra-se ainda noutrosub-código: o Ego de Régis projecta o conflitopulsional ao nível da imagem do corpo e daanatomia na geografia. De um código espacialinterno (anatómico), passamos a um códigoespacial externo, a terra com os seus elementosdinâmicos e ocultos: petróleo e géisers. O alto ebaixo são, neste código, definidos através designificantes que se situam abaixo ou acima dasuperfície da terra. A superfície da terra tornou-seagora significante do Ego dividido de Régis. Asimetria do Rorschach transportou Régis para ametáfora da “terra” enquanto significantedefensivo da cisão do seu Ego (cf. Freud, 1938//1996) e reconstrutor mítico temporário da funçãosintética do Ego. Abaixo da terra, as pulsõesrecalcadas, acima, a sua sublimação. Abaixo daterra, o petróleo a ser explorado, libertado,acima, a torrente fortíssima do géiser que expeleo substituto do petróleo, a água (também elasubterrânea), bem acima da crosta terrestre(cartões IX e X). E no cartão IV, o código anató-mico refere-nos a presença de um significanteoposto às torres de petróleo apontadas para cimae ao géiser de natureza fálica – uma cauda decacto, picante, apontada para baixo, para a terra.Uma cauda certamente penetrante, escavadorada superfície terrestre. Uma cauda que, enquantomembro sem cabeça (inverso de um pénis) nosremete para um super-homem sem cabeça e

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cujos testículos ocupam o lugar dos braços. Ocorpo inteiro (com o tronco entre dois testículos)é agora metáfora do órgão masculino – Ferenczi(1924/1993, p. 268) já tinha chamado a atençãopara a “identificação do organismo total com oórgão genital” enquanto uma das funções docoito. O pescoço sem cabeça (cartão IX), nestefeixe de relações, é o oposto complementar dacauda picante (cartão IV). A correlação poropostos, em termos de imagem corporal e códigoanatómico, liga estes dois significantes de umamaneira surpreendente: pois um pescoço e umacabeça constituem uma metáfora de um pénis eum pescoço sem cabeça um pénis castradorepresentado por uma cauda picante (analidadesádica). Segundo Wisdom (1961, p. 234), até ossímbolos fálicos ocos (como a chaminé) podemrepresentar simultaneamente um pénis e umavagina e, nesta medida, colocamos a hipótesesegundo a qual um pescoço, na qualidade deórgão por onde passam conteúdos, poderrepresentar também o órgão feminino. Se assimfor, Régis estaria a usar regressivamente abissexualidade, disfarçada sob conteúdosmanifestos de falicidade encobridora de um“conflito subjacente relativo a uma destrutivi-dade em direcção à mãe e vinda da mãe; e que osimbolismo pode ser dito inteligentementedesenhado para nos colocar fora de cena namedida em que é exteriormente fálico e interior-mente representativo da vagina” (Wisdom, 1961,p. 234). Embora aplicada à conversão histérica, ahipótese de Wisdom sobre a relação sexualsádica, tomada e vivida como introjecto malignoao serviço da defesa no mesmo indivíduo, poderiaestar presente no caso Régis, desde a entrada doobjecto interplanetário numa vagina (cartão II) atéà explosão orgásmica num géiser metafórico(cartão IX). Na mesma linha de pensamento, a“traqueia-artéria”, significante morfologicamentepróximo dos “mísseis” na cabeça e do “objectointerplanetário” (⇔“míssil”), serve de mediadorentre o alto e o baixo no código corporal anató-mico, entre a cabeça e respectivos significantesassociados e os pés que prendem à terra comoventosas. Esquematizemos:

“cabeça”→“traqueia-artéria”→“ventosas-pés”

Este é um dos segmentos da cadeia significanteou função-alfa, cadeia que descreve a transição

mediadora entre termos opostos. Em termos decódigo anatómico na narração de Régis, a cabeçaopõe-se à “traqueia-artéria” e esta opõe-se às“ventosas-pés”. Sendo extremo de duas cadeias(“cabeça”→“traqueia-artéria”+“traqueia-artéria”→“ventosas-pés”), o termo “traqueia-artéria” torna--se mediador entre dois extremos (este signi-ficante funciona agora como significante aoserviço da função sintética do Ego que, comoFreud referia, quando não encontra associaçõesverdadeiras não hesita em fabricar uma falsa).Estamos, todavia, no âmbito do mesmo códigoanatómico.

Note-se que o cartão que serve de mediadorno código espacial anatómico contém um signi-ficante mediador (“traqueia-artéria”), queconduz a outro significante que agora medeiaentre dois códigos. As ventosas constituem umamediação entre o que se situa agora no alto, ocorpo, e o baixo – o subterrâneo –, o qual nosconduzirá aos significantes “petróleo” e “géiser”que defensivamente aparecem invertidos, ou seja,no extremo semântico do código espacial internoanatómico (alto).

“cabeça”-“mísseis”→“traqueia-artéria”→→“ventosas-pés”→“géiser”, “petróleo”

Já estamos perante dois códigos: o códigoanatómico, interno, podendo ser lido espacial-mente em termos de imagem do corpo e o códigoespacial externo, que pode ser lido em termosdos significantes que se situam abaixo da super-fície da terra e acima dela. A imagem do corpobipartida entre o alto e o baixo está agora inves-tida no código espacial externo. O mesmo par deopostos atravessa agora dois códigos. Esteprocesso desdobra-se a partir do significante“ventosas-pés”: o monstro que se desloca comventosas anuncia uma “libertação” por vir; aextrema dificuldade do movimento com ventosassobre a superfície terrestre é o oposto comple-mentar da extrema facilidade com que se liberta aenergia antes contida sob a terra: a explosão dogéiser. Por isso, os significantes “géiser-petróleo”vão aparecer ao nível do pescoço, enquantoórgão anatómico situado no alto. Sigamos acadeia significante, tal como enquadrada pelatabela mítica, a fim de extrairmos mais conclu-sões. No cartão IX, podemos ver a presençaenigmática dos duplicados. Muitos significantes

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aparecem aos pares ao longo dos cartões e namesma célula da grelha do cartão IX podemosencontrar dois diabos que observam e doiscérebros na qualidade de órgão da cabeça. Ocódigo espacial inerente à cadeia significantepode ajudar-nos a encontrar resposta para estaspresenças. O diabo, enquanto oposto do divino, éconsiderado pelo senso comum como um ser doinferno situado abaixo da terra, em oposiçãocomplementar a Deus, cuja presença é frequente-mente conotada, ao alto, no céu. O voyeurismo dapulsão escopofílica, traduzido pelo significante do“diabo” duplicado, pode indicar uma ambiguidadeafectiva de Régis relativamente à figura paterna.Mas a cadeia significante “obriga-nos” a identi-ficar a cisão de Régis relativamente a esta figuracomo uma cisão defensiva do seu Ego, quecoloca o diabo observador enquanto mau objectoabaixo da terra e o diabo observador enquantobom objecto acima da terra. O diabo é umafigura monstruosa que anuncia também ele aexplosão por vir. A ambiguidade afectiva relativaao monstro com ventosas sobre a terra marca olimiar de passagem entre o mau objecto diabó-lico abaixo da terra e o bom objecto acima, namedida em que se assemelha a figuras divinas doalto (no cartão IX, nesta célula, Régis equipara os“diabos grávidas” a “estátuas daVirgem” e ao“busto de Deus”). A gravidez diabólica anunciatambém um “inchaço” anatómico (código anató-mico) enquanto significante contentor de umaenergia por explodir. E deveríamos tambémidentificar neste segmento da cadeia significantea explosão do géiser com o nascimento proveni-ente da gravidez. Aparecem ainda dois cérebrosverdes. O significante “verde” é mais difícil deexplicar, mas parece-nos possível classificá-locomo objecto bizarro, no sentido de Bion(1962/1991). Entretanto, o cérebro, enquantoórgão anatómico da cabeça e possuidor de doishemisférios, pode remeter-nos mais uma vezpara o código espacial que divide a terra em doishemisférios pela linha do equador. Aqui, a linhadivisória entre o que está abaixo e o que estáacima da terra torna a merecer a nossa atençãoenquanto significante organizador dos mecanis-mos de defesa de Régis. No mesmo cartão IX,Régis refere dois diabos com cornos derinoceronte: tendo o rinoceronte um só cornofálico, novamente a cadeia significante e a

estrutura binária do código espacial e anatómiconos remetem para a duplicidade da figuradiabólica enquanto situada abaixo e acima daterra (mundo cortado em dois), e para a terraenquanto dividida entre o alto e o baixorelativamente à sua linha de superfície.

A questão que agora se coloca é: porquerazão a rigidez típica da figura da estátua (nestecaso de uma mulher, a Virgem, e de um homem,Deus, aparece no cartão IX precisamente aonível da cabeça (ao nível do “alto” enquantosignificante condensador dos códigos anatómicoe espacial interno)? E porque razão o signifi-cante da “estátua” é aplicado a um aparentesubstituto do casal parental (“Virgem+Deus”),numa espécie de tentativa de reconstituição da“unidade parental” (1930/1996)? Segundo a tesede Freud (1922/1981), a decapitação da cabeçada Medusa, assim como o medo petrificante detomá-la como objecto do olhar, com os seusvários cabelos, simbolizava o medo petrificanteda castração, medo derivado da eventualobservação ou imaginação do órgão sexualfeminino enquanto castrado (teoria sexualinfantil) tendo os cabelos (púbicos) a função desubstituição do pénis em falta. Recordamos queo significante da “estátua” aparece no mesmocartão IX e na mesma célula da grelha psicom-itológica onde se encontra um “super-homemsem cabeça”. Este segmento da cadeia signifi-cante da narração de Régis indica-nos, portanto, aequiparação entre o “super-homem sem cabeça” eas figuras divinas em “estátua” através da castra-ção. Para “provarmos” isto, temos que ter umacorrespondência em termos de código anatómico eespacial que nos apresente um oposto complemen-tar da castração enquanto ausência de cabeça. Paratal, importa entender qual a função da reunião dospais na economia libidinal do ser humano.

Segundo Klein (1930/1996), “a criançaespera encontrar dentro da mãe (a) o pénis dopai, (b) excrementos e (c) crianças, identificandotodas essas coisas com substâncias comestíveis.De acordo com as fantasias (ou “teoriassexuais”) mais iniciais da criança a respeito docoito entre os pais, o pénis do pai (ou seu corpointeiro) se incorpora à mãe durante o actosexual. Assim, os ataques sádicos da criança têmcomo objecto tanto o pai quanto a mãe, que sãomordidos, despedaçados, cortados ou esmagados

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na fantasia. Os ataques dão origem à ansiedadede que o indivíduo seja punido pelos pais emconjunto. Essa ansiedade também é internali-zada em consequência da introjecção sádico--oral dos objetos e, assim, já é dirigida para osuperego primitivo. A minha experiência mostraque essas situações de ansiedade nas fasesiniciais do desenvolvimento mental são as maisprofundas e poderosas. Também descobri que osadismo uretral e anal, que logo se soma aosadismo oral e muscular, desempenha um papelimportante no ataque fantasiado ao corpo damãe. Na fantasia, os excrementos transformam-se em armas perigosas: o acto de urinar éequiparado a cortar, furar, queimar e afogar,enquanto a massa fecal é encarada como armase mísseis. Num estágio posterior da fase queacabo de descrever, esses modos violentos deataque dão lugar a agressões ocultas pelosmétodos mais refinados que o sadismo podecriar, e os excrementos passam a ser igualados asubstâncias venenosas” (p. 251).

Os “mísseis” que alguns psicomitemas doRorschach indicam estar ao nível da “cabeça”ficam assim ligados, por inversão (transformação)dos significantes do código anatómico e espacialde Régis, à analidade sádica da “cauda de cactopicante do monstro” (cartão IV). Agora já pode-mos lançar uma nova hipótese sobre o enigma do“mundo cortado em dois” (cartão IX), do “objectointerplanetário na vagina” (cartão II), da “Françacortada em duas” e do “totem cortado em dois”(cartão VI) ou do “sinal de progresso (procura depetróleo no solo) apontado ao céu, à divindade”(cartão X): constituem significantes da angústiasuscitada pela possibilidade de punição dos “paisem conjunto” sobre o sadismo da criança.

É de notar que continuamos a seguir amudança de “vértice” (Bion, 1965/1991) entreestes dois códigos, a transformação de umcódigo noutro através de significantes-charneira,significantes ou figuras intermediárias entreopostos consecutivos – recordemos a assumpçãobásica da linguística estrutural importada porLévi-Strauss (1955/1970, 1964/1991) e Lacan(1966/1998) para as ciências sociais e apsicanálise, assumpção através da qual Saussure(1916/1995) se referia ao valor dos signosdizendo destes que “quando dizemos quecorrespondem a conceitos, subentendemos queestes são puramente diferenciais, definidos não

positivamente pelo seu conteúdo, masnegativamente pelas suas relações com os outrostermos do sistema. A sua mais exactacaracterística é serem o que os outros não são”(p. 198). O oposto de cada significante nosistema dos psicomitemas Rorschach implicaprecisamente que o seu significado esteja sempreno significante onde o primeiro não está e nosignificante que o primeiro não é. Umsignificante obtém o significado deslocadonoutro significante, construindo assim umasignificação parcial, transitória: “a palavracontém a significação; inversamente, asignificação contém a palavra que se descobreou não” (Bion, 1970/1991, p. 117).

Os psicomitemas rorschachianos formamassim sistemas de forças contraditórias sempreem transformação, através de significantes--charneira que ligam, “soldam”, códigosdiferentes. A nossa grelha psicomitológicarorschachiana funciona também segundo aconceptualização de Bion. A mudança de códigos,neste caso entre o espacial e o anatómico e suarecíproca, corresponde ao conceito de “mudançacatastrófica” enquanto relação “transformada”com mudança de “vértice”. A relação recíprocaentre contentor e conteúdo no sistema ♀♂ prevêmudanças catastróficas sempre que umsignificante ou elemento alfa passa a conteroutro quando antes era contido e sua recíproca:isto verifica-se na grelha sempre que o códigomuda – mudança de vértice – e um significantetransita para o seu oposto através de umsignificante mediador – figura mediadora nafórmula canónica dos mitos de Lévi-Strauss(1955/1970). Deve dar-se atenção, ainda, aofacto de os códigos anatómico e, sobretudo,espacial, serem manifestações da proeminênciada contrapartida mental da visão ou do vérticevisual: afinal, as “imagens mentais prestam-seelas próprias à transformação em diferentesmeios” (Bion, 1965/1991, p. 92). Note-se comono caso aqui analisado o código anatómico setornou um meio transformado de manifestaçãodo código espacial e este um meio transformadoda manifestação do vértice visual, vértice atravésdo qual a nossa análise contentora (continente) e,nela contidos, os protocolos de Régis (conteú-dos), se transformaram mutuamente.

No cartão X aparecem aranhas e flores.Retornemos à divisão dual imposta pelo código

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espacial através da linha da terra ou superfícieterrestre. As “aranhas” e as “flores” são seresvivos que se encontram sobre a superfície daterra. Residem, portanto, numa zona mediadoraentre o alto e o baixo. Depois aparece acinestesia do sadismo de origem muscular sob aforma de “aranhas esmagadas”. Recordemos atese de Abraham (1922/2000), segundo a qual aaranha remeteria simbolicamente para o medo damãe fálica castradora. Não se trata de umainterpretação fixista, no sentido em que a aranhateria sempre que remeter, como que numdicionário, para o significado “congelado” dafigura materna. Trata-se de verificar que nanossa interpretação dinâmica do jogo entremitemas do Rorschach o significado da aranhaparece remeter também para a mãe. O “esmaga-mento” dá-se sobre algo que vem da terra, as“flores” e sobre algo que se encontra em cimadas flores, as “aranhas”. As “flores”, com as suasraízes abaixo da terra remetem-nos agora,através da cadeia significante, para a “árvore davida” no cartão VIII: aqui vamos encontrar o“fogo da terra” – significante do inferno e,portanto, do “diabo” já considerado –, abaixo da“árvore da vida”. Isto concorda ainda com aafirmação através da qual a “árvore da vida” seencontra acima das “estátuas da catedral deParis” (ligadas às figuras divinas de Deus e daVirgem, no cartão IX). Assim sendo temos,abaixo da figura mediadora da superfície terres-tre, Deus e a Virgem (casal parental unido) e oseu contrário, o Diabo. O Diabo representa,agora, o medo persecutório das retaliações docasal unido sobre Régis. A zona de ambivalênciaafectiva do código espacial, a superfície terrestreenquanto significante mediador, “evacua”psicoticamente os maus objectos internalizados,fazendo com que tudo o que seja filho do interiorda “terra” tudo o que brote da superfícieterrestre, seja sadicamente esmagado: recorde-seque é na superfície da terra que se movimentadesajeitadamente o “monstro” com “ventosas”nos “pés”, ventosas que, enquanto elemento docódigo anatómico, anunciam o vínculopersistente ao casal unido. Além disto, a ligaçãoentre os significantes “aranhas azuis” e “par desoutien azul” (cartão X) leva-nos a reforçar atese da maternalidade do símbolo da aranha e,além disso, permite-nos classificar o “azul”como objecto bizarro, no sentido em que, pela

definição de Bion já considerada, contém umelemento puro da sensação (elemento-beta).Havendo proximidade entre os significantes de“soutien” e “busto” podemos tornar a encontrar apresença da mãe fálica persecutória no extremosuperior (alto) do código espacial, agora imbuídade uma concepção imaculada da gestação e donascimento: sendo o busto uma figura humanaconsiderada em termos de peito e cabeça massem braços, torna-se possível ver como aausência de braços implica uma castração, namedida em que estes tinham sido substituídosimediatamente antes pela deslocação dostestículos de baixo para cima (tudo na mesmacélula do cartão IX). Não obstante o fantasma daunião parental estar presente na narração deRégis, a conjunção da Virgem e do busto de Deusparece indicar a presença de uma mãe fálicaauto-fecundante e de um pai passivo e castrado.Isto liga-se na mesma célula à presença de“diabos grávidas” o que reforça, por sua vez, apossibilidade da função da mãe enquanto mauobjecto para Régis.

A “unidade parental” (Klein, 1930) tem quese traduzir, em termos de projecção no códigoespacial, na conjunção entre o alto e o baixo.Além do cartão IV já analisado, no qual se dáuma descida de cima para baixo até à conjunçãomediadora no significante do monstro sobre aterra, também o cartão VI se revela agora comoum cartão de conjunção. Une o alto e o baixosob a figura mediadora de dois pássaros numbeijo. A oralidade (alto) de dois pássaros (seresque se movem no alto) a beijarem-se à distância(disjunção) é substituída na diacronia imediata-mente seguinte do mesmo cartão VII peladescida dos mesmos à superfície terrestre(mediação entre o alto e o baixo), lugar onde sedão as mãos (conjunção). A conjunção do códigoanatómico (mãos unidas) tem o seu corres-pondente no código espacial (pássaros na terra,sobre uma rocha). A mudança de “vértice” épossível através do isomorfismo dos doiscódigos dominantes no protocolo de Régis.

O cartão VII continua a ser um desenvolvi-mento do cartão VI. O cartão VI revela-se comoum cartão de mediação potencial através dafigura da conjunção de opostos, por excelência: acruz. O significante “cruz” é um significante--charneira entre o alto (vertical) e o baixo (hori-zontal). A cadeia significante oferece a Régis a

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possibilidade de colocar as “asas” na linha“horizontal” da “cruz”. Isto é congruente com odesdobramento do segmento seguinte da cadeiasignificante, no cartão VII, onde Régis irá colocardois “pássaros” (seres com “asas”) sobre a linhahorizontal da superfície terrestre, sobre “duaspedras”. O mesclar dos códigos espacial eanatómico (“horizontal” da “cruz” e “asas” na“cruz”) no cartão VI, desdobra-se no cartão VII.Os “pulmões” e o “amendoado” dos “olhos” navertical da “cruz”, pelo seu contorno morfológicoexterno, anunciam a sua posterior substituiçãopelos “testículos” no cartão IX. A “cruz na placade insectos” (“cruz” “esmagada”) remete-nos paraa cinestesia do “esmagamento” posterior, nocartão X: as “aranhas esmagadas” são seres quevivem ao nível da “superfície da terra” enquantofigura mediadora entre o alto e o baixo, entre overtical e o horizontal, no fundo enquanto símbolodos “pais unidos” (Klein, 1930).

O cartão V é também um cartão de conjunçãoentre o alto (“borboleta”) e o baixo (“caracol”).No entanto, a “cabeça de caracol” permite aposterior subida ao serviço do recalcamento nocódigo espacial e anatómico, potencializandodesde logo as funções já analisadas que a“cabeça” irá desempenhar quando agregada aoutros significantes. Embora situado no baixo(superfície da terra sobre a qual se arrasta),relativamente ao alto onde a “borboleta” semovimenta, a cinestesia do movimento do“caracol” contém já em si a mediação anunciadana linha da superfície da terra enquanto ambienteno qual se desloca.

O cartão III reconduz-nos novamente à concep-ção sádica do coito enquanto teoria sexual infantil:uma cabeça com coroa de sangue. Note-se comoum dos mitemas ou significantes bloqueou aassociação livre mais tarde explorada nos cartõesIX e X: não se trata de uma “auréola”, pois“Cristo tinha uma”. O divino irá no entanto apare-cer ao nível da “cabeça” (no alto do códigoanatómico), mais tarde. Por agora, a cabeça repre-senta uma racionalização defensiva inacabada,imperfeita – uma inteligência degradante doscivilizados, civilizados que, na medida em quediscutem, apresentam um “cérebro vermelho” pordetrás da “cabeça”. O “vermelho” enquantoelemento beta pode assim deixar antever na cadeiasignificante a futura cinestesia do “esmagamento”da “cruz” (cartão VI) – que se encontra na mesma

coluna contendo a “auréola” de “Cristo” – as“flores” e “aranhas” (cartão X), do esmagamento,afinal, dos pais unidos e sua retaliação fantasmati-zada. Note-se o eixo semântico de opostos emtorno destes significantes: os dois tipos que discu-tem estão associados, no mesmo cartão, à cabeça(órgão anatómico do alto), atrás da qual cadaindivíduo esconde um cérebro vermelho – tam-bém no cartão VII dois seres do reino animal, doispássaros, fazem boca a boca à distância. A cadeiasignificante liga dois cartões através de doisopostos complementares, mediante a conjunção dedois códigos, o anatómico (duas cabeças discutem– disjunção) e o anatómico-animal (bocas depássaros unidas – conjunção). Os significantes deambos os códigos transformam-se entre si atravésda projecção defensiva no código espacial: é noalto que tudo se passa.

Todo o processo de análise até agora realizadotem que ser sintetizado em oposições funda-mentais em equilíbrio pertencentes a códigos.Defendemos que estas oposições temporaria-mente estáveis são as que formam versõestemporariamente estáveis de psicomitos indivi-duais no seio de estruturas psicopatológicas.Quando os significantes transitam na cadeiasignificante ou função alfa para outros códigos,determinada versão psicomítica transforma-senoutra e a estrutura psicopatológica passa aapresentar uma configuração narrativa diferente.

Detectámos então dois códigos estruturadoresda narração rorschachiana de Régis: o códigoespacial externo constituído pelo eixo semânticodo baixo-alto e o código anatómico interno,também ele espacializável na medida em quedisposto segundo o alto e o baixo da imagemcorporal. Pode dizer-se que, de um modo geral,os significantes do discurso de Régis se articu-lam segundo o eixo semântico do baixo-alto naimagem corporal. Neste sentido, importa come-çarmos por isolar uma figura mediadora e vercomo, a partir desta, outras figuras mediadorasvão surgindo na narração enquanto forma deultrapassagem de opostos. Isto deve ser feitosegundo a lógica da fórmula canónica dos mitosde Lévi-Strauss (1955/1970), fórmula que nosajuda a melhor definir o que entendemos porpsicomito individual enquanto formação tempo-rária do inconsciente, tradutora da denominada“equação etiológica” ou “série complementar” daneurose (Freud, 1916-17/1981).

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Importa, deste modo, explicar a lógicasubjacente à fórmula dos mitos, na perspectiva deLévi-Strauss (1955/1970). Para o autor, “todomito (considerado como o conjunto de suasvariantes) é redutível a uma relação canônica dotipo: Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y) na qual, doistermos a e b sendo dados simultaneamente domesmo modo que duas funções, x e y, destestermos, afirma-se que existe uma relação deequivalência entre duas situações, definidasrespectivamente por uma inversão de termos e derelações, sob duas condições: 1ª que um dostermos seja substituído por seu contrário (naexpressão acima: a e a-1); 2ª que uma inversãocorrelativa se produza entre o valor de função e ovalor de termo de dois elementos (acima: y e a). Afórmula acima adquirirá todo seu sentido se nosrecordarmos que, para Freud, são exigidos doistraumatismos (e não apenas um, como se tem atendência de acreditar, tão frequentemente) paraque nasça esse mito individual em que consisteuma neurose. Tratando de aplicar a fórmula àanálise desses traumatismos (dos quais sepostulará que satisfaçam respectivamente àscondições 1 e 2 acima enunciadas), chegar-se-ásem dúvida a dar, da lei genética do mito, umaexpressão mais precisa e rigorosa” (p. 263).

Na fórmula do mito individual, Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y), o símbolo “:” pode ler-se “opõe-sea” e “::” pode ler-se “tal como”. O símbolo “::”(tal como) designa também ele uma segundaoposição entre termos, embora tratando-se deuma oposição que faz equivaler entre si as duasoposições da fórmula. “Resolve-as”, “anula-as”,como que temporariamente. Para que uma novaoposição estabilizadora surja na cadeiasignificante (= cadeia de oposições da fórmulamítica), algo tem que acontecer. Podemos, paratal, reparar que um termo, o termo “b”, transitouda segunda componente da primeira oposição daequação para a primeira componente da segundaoposição. Passou de um domínio de acção, odomínio y, onde os valores concretos das suasacções se actualizam, para um segundo domínio,o domínio x. Ora, assim sendo, este termo b,mediando entre dois domínios da função, cons-titui a nossa figura mediadora. Note-se que se afigura mediadora é o elo de conexão entre umalonga cadeia de mediações (cadeia significante,cadeia mítica ou função alfa), então teremos em

qualquer narração uma longa série de figurasmediadoras. Importa destacar, para começar, umadelas, aquela que mais tenha impressionado anossa atenção durante a análise da narração,aquela que tenha produzido a Transformação maisnotória entre o Vértice da narração rorschachianado paciente e o Vértice da compreensão possíveldaquele que procede à análise do discursosintomático. Qualquer uma das figuras media-doras na cadeia significante conduz às outras.Por isso, fica resolvida a questão da arbitrarie-dade da razão pela qual se escolhe uma e nãooutra figura mediadora em determinada narraçãodo Rorschach. Para que a figura mediadora entreoposições possa existir, tal implica a ocorrênciasimultânea das duas outras condições referidaspor Lévi-Strauss, nomeadamente a transfor-mação de um elemento no seu contrário (a em a-)e a substitução (transformação) entre um valorde termo (a) e um valor de função (y).

Note-se ainda que a fórmula no seu geral é ailustração de uma metáfora e não de uma analogia.Se fosse uma analogia, tal implicaria a recusa dasua transformação dinâmica e assumiria estaexpressão: Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fy(a). A analogiaé estática e não dinâmica. A proporção dasrelações entre os seus componentes é absoluta,não deixando qualquer “resto”. O “resto” queconstiturá aquilo que Lévi-Strauss colocará dolado do “significante flutuante” (Lévi-Strauss,1950/1988, p. 34), enquanto desfasageminsanável entre significante/significado e comotal fundamento da função simbólica (Merquior,1975). Por outras palavras, o “resto” que sempresobra de uma relação entre os componentes dafórmula e que constituirá material significantepara produção de mais significados: a metáfora.A fórmula no seu geral constitui a expressão dotropo da metáfora enquanto eterna produção denovos significados. A quarta componente dafórmula dos psicomitos corresponde aos ele-mentos não-saturados (ξ) de Bion, na medida emque o universo da significação caminha sempre àfrente daquilo que constitui o Ego do testado. Asaturação é relativa e expressa por “Ψ (ξ)” (Bion,1962/1991, pp. 95-96), correspondendo neste casoà estabilidade temporária das oposições resolvidasna fórmula. O encontro de determinadosignificado parcial pelo sujeito na interpretação damancha ou a execução de determinada acção

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por parte do Ego, via identificação projectiva ouqualquer outro mecanismo de defesa, durante anarração, constituem sempre uma “realizaçãoapropriada” (Bion, 1962/1991, pp. 95-96),relativa porque constituinte de uma versãomítica, versão existente entre outras do universomítico (sistema ♀♂). Em termos linguísticos, ooperador de abertura da fórmula, o últimomembro Fa-1(y), constitui uma metonímia(inversão da relação todo-parte) que traduz acapacidade de desenvolvimento da cadeiasignificante para novas mediações.

Como consideração geral poderemos consi-derar que, nos desenvolvimentos da fórmula, oEgo de Régis é representado pela figuramediadora b. Isto porque a viagem (passagem deuma função a outra) que o Ego de Régisempreende através dos disfarces, das máscaras,no fundo através dos significantes dos códigosanimal e botânico, constituem os seus mecanis-mos de defesa. A projecção do Ego de Régis nosdiversos significantes será, assim, representadapelo valor de termo a e de função a-1, na medidaem que as contradições das figuras que Régisencarna durante a sua narração se traduzem emoposições entre si. Considerar a figura media-dora b como a mais aproximada representaçãodo Ego, e colocá-la necessariamente comomediadora de dois opostos, leva-nos a tecer aconsideração generalizada de o valor de termo a[em Fx(a)] e o valor de função a-1 [em Fa-1(y)]ao qual se opõe, poderem constituir arepresentação mais aproximada possível do Id,para a primeira, e do Superego para a segunda,isto em termos da segunda tópica freudiana.

De acordo com a fórmula, só podem assumirvalores de termo os significantes expressamenteenunciados (Lévi-Strauss, 1985/1987, p. 64): nestecaso, no contexto da narração do protocoloRorschach, os animais, plantas, objectos oufiguras antropomórficas. Os valores de funçãodesignam o possível campo ou domínio da suaacção. Enquanto valor de função pode aparecer,naturalmente, o código espacial enquanto códigopor excelência estruturador da projecção defensivado Ego de Régis e outros valores como os de“esmagamento”, “libertação”, “conflito ou discus-são”, “morte”, “alimentação” ou “educação”.

Tendo presente a fórmula dos psicomitos,Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y), façamos agora o

exercício de procurar na cadeia significante oupsicomítica um segmento onde os significantes oumitemas se manifestem enquanto valores de termotraduzidos por oposições nítidas. Ao nivel docartão IX aparecem as figuras de Deus, Vírgem eo Diabo. A fórmula psicomítica obriga-nos, então,a colocar os opostos do seguinte modo:

Fx(diabo): Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(y)

Sendo um valor de função e não de termo, a-1designa um domínio de acções e não uma figuraconcreta da narração de Régis. Por isso preferimoscolocar o seu valor como “divino” e não como“deus”. Enquanto valor de termo a=diabo e a-1=deus, mas o inverso também se poderia fazer,porque as transformações dos termos entre siconduzem ao mesmo resultado. Também podería-mos ter começado por procurar a figura mediadorab, mas sendo várias as figuras mediadorasenquanto avatares do Ego de Régis, a tarefatornava-se mais difícil. Trata-se agora de, entredois opostos nítidos da cadeia significante,procurarmos os significantes mediadores que lhesestejam ligados com maior proximidade.

A questão que se impõe agora é: qual a funçãodo diabo ou o que faz o diabo, i.e., Fx(diabo)?Neste segmento da cadeia significante sabemosque seja qual for a função ou acções do diabo,este será substituído por uma figura (y) cujasacções se desenrolarão num domínio a-1 deacções benéficas, divinas, Fdivindade(y). Aquitemos que invocar o código espacial subjacente àprojecção defensiva de Régis. Já vimos que odiabo, sendo uma figura associada ao “fogo”(cartão VIII) debaixo da terra, implica umasituação de contenção (baixo). O diabo, e o queele representa em termos de pulsões sexuais eseus avatares, reside contido abaixo da linha desuperfície da terra. Depois vamos encontrar amesma figura do diabo na posição voyeurista deobservação de um géiser em libertação (cartãoIX). A função de contenção deu lugar à função delibertação. Para mais, o diabo encontra-seassociado à figura de deus, na medida em que éexpressamente identificado por Régis com a“estátua da Vírgem” e o “busto de Deus”. Istoleva-nos a ponderar sobre a ambivalência deRégis a respeito da eventual bondade ou maldadeinerentes à desejada libertação catártica(géiseriana) das suas pulsões sexuais. Basica-mente, podemos dizer que o que estava contido

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em baixo passou a estar libertado em cima (códigoespacial). Agora passemos à fórmula novamente:

Fx(diabo): Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(y), vai dar lugar a:

Fcontenção(diabo):Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(y?)

Mas em que figura (y) se dá a libertação?Estamos no alto do código espacial e anatómico(cabeça e pescoço), e no psicomitema da célulada grelha em consideração, Régis indica-nosque a libertação géiseriana se dá na figura de umsuposto “super-homem” dubiamente caracterizado,primeiro, sem cabeça e, logo a seguir, comcabeça e um pescoço onde explode o géiser, tudoobservado por “dois diabos grávidas” (cartão IX)semelhantes à “estátua da Vírgem” e ao “bustode Deus”. Os “diabos grávidas” reforçam a teseda contenção dos significantes que remetempara debaixo da linha da terra, para dentro daterra, e o géiser para a sua libertação. O que este“super-homem” realiza é, basicamente, a conclu-são de um processo de libertação, uma catarselibertadora sendo isto conotado com uma acçãoimbuída de valores divinos (valor de função a-1).Talvez por isso mesmo tenha que ser um super--homem. O que antes oprimia (diabo), depoisliberta (super-homem de características divinas).Teremos assim a seguinte fórmula:

Fcontenção(diabo):Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(super-homem)

No contexto da tabela psicomítica rorschachi-ana a apresentação da fórmula acima transcritafar-se-á do seguinte modo:

Filiação subestimada Filiação sobrestimada (contenção) (libertação)

Cartão ICartão IICartão IIICartão IVCartão VCartão VICartão VIICartão VII FogoCartão IV Diabo Deus, Virgem

Dois diabos observam Estátua da Virgem, busto de DeusDois diabos grávidas Super-homem

GéiserCartão X

Note-se que deixámos à direita duas colunaslivres. Isto porque trata-se de descobrir emseguida qual o significante que irá mediar entre

as duas colunas opostas já identificadas natabela. Esse significante terá uma determinadafunção na oposição a uma das colunas e outrafunção na oposição a outra das colunas e, aoopôr-se a uma e a outra das colunas em simul-tâneo – “duas relações contraditórias entre sisão idênticas, na medida em que cada uma é,como a outra, contraditória consigo mesma”(Lévi-Strauss, 1955/1970, p. 249) –, opera umaestabilização temporária que permitirá identificarum mito pessoal precariamente configurado.

A pergunta a colocar agora será: quemediações defensivas conciliadoras teve o Egode Régis de investir, a fim de resolver a contra-dição entre uma contenção pulsional tida comomá e a sua libertação desejada? Esta é a questãofulcral a que o psicomito de Régis tentaresponder. Todo o protocolo de Régis constituiuma narração sucessiva sobre as vicissitudespulsionais de um Ego atormentado que descreveum percurso que vai da prisão do recalcamentopulsional à tentativa da sua libertação.

Pelo caminho Régis houve um “monstro”,cujas “ventosas” (cartão IV) o fixam ao conti-nente da terra materna, continente que o atrai e oassusta. Um monstro que se desloca projectiva-mente no código espacial e anatómico, sabendoque para deixar o baixo da terra-mãe em direcçãoao cimo da “cabeça” libertadora (cartão IX), temque pagar o preço do sofrimento inerente àansiedade de separação dos pais (“cabeça demonstro com coroa de sangue”, “Cristo”, nocartão III). O Ego de Régis vive na ambiguidadeda bondade versus maldade dos pais, ele próprioora assume figuras diabólicas, ora divinas. O“monstro”, enquanto figura compósita e agrega-dora de vários significantes (cabeças, asas,pássaros, ventosas, cruzes, estátuas, etc.), serveneste protocolo Rorschach como metáfora detodas as outras figuras mediadoras. O “monstro” éa figura mediadora da Transformação, porexcelência, Transformação que vai desde aspulsões primárias subterrâneas diabólicas ao altoda “inteligência degradante dos civilizados”(cartão III). “Inteligência” por saber que só atravésdo auto-conhecimento (“cabeça”) se chega àlibertação pulsional “géiseriana”, “inteligênciadegradante dos civilizados” porque a essência doprocesso civilizacional reside na iluminaçãosublimatória, que deixa obrigatoriamente no

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escuro o segredo das pulsões mais íntimas doindivíduo. Para Freud, as vicissitudes de umapulsão até à sua sublimação percorriam as etapasda “reversão a seu oposto”, “retorno em direçãoao próprio Eu do indivíduo”, “repressão” efinalmente “sublimação” (Freud, 1915/1996, p.132). É isto que se passa na narração de Régis e éisto que a fórmula dos psicomitos enquadra nomito pessoal de Régis. A “inversão no seu oposto”traduz o conflito das pulsões e escolhas objectaisdo Ego de Régis, figuradas nos significantesmediadores da narração. Toda a inversão oumediação entre dois opostos implica sempre umretorno em direcção ao Eu do indivíduo, porquetoda a mediação constitui um investimento do Egona resolução de um conflito. Toda a mediaçãofeita é, simultaneamente, um recalcamento, namedida em que determinado conflito ficaassociado a outra corrente associativa de ideiasque se torna prevalecente. E tudo isto constitui umprocesso de sublimações parciais sucessivas(mediações parciais), que se estabelecem narelação do aparelho psíquico com o mundoexterno e que se estabilizam temporariamente emdiversas versões de mitos pessoais do indivíduo.

Passemos novamente à fórmula dos psicomitos afim de concretizarmos mais valores. A fórmulaFcontenção(diabo): Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(super--homem) fica, então, com a seguinte aparência:

Fcontenção(diabo):Fy(monstro)::Fx(monstro):Fdivindade(super-homem)

Primeira constatação: o “monstro” transitoude uma Função y para uma Função x. O mesmo éperguntar: qual a função deste monstro, ou seja,que acções (y e x) desempenhou este monstro nanarração de Régis? A análise ao nível destesegmento da cadeia significante obriga-nos aidentificar as acções num domínio x como sendoas acções desenvolvidas num domínio decontenção já identificado anteriormente (odomínio do diabo). A fórmula fica assim:

Fcontenção(diabo):Fy(monstro)::Fcontenção(monstro):Fdivindade(super-homem)

Agora temos que encontrar na narração deRégis um psicomitema de algum cartão que“empiricamente” verifique a dedução impostapela fórmula do mito individual estabilizado.Podemos encontrá-la no cartão IV, no qual o

“monstro” se desloca com ventosas num movi-mento que tanto transmite uma sensaçãocinestésica de fixação à terra, de dificuldade delibertação da terra como de contenção do que seencontra no interior da terra. A contençãorealizada pelo monstro é um domínio de acçãocompativel, aliás, com o esmagamento de animaisque vai aparecer posteriormente no cartão X.

O próximo passo é descobrir em que consiste odomínio de acções (y) do monstro, quando se opõeao recalcamento diabólico, à contenção diabólicadas pulsões. O periclitante andar do monstro,como que a ”coxear”, a balbuciar como um seracabado de nascer da mãe-terra já nos deixaadivinhar (conforme analisado mais atrás) que sejaa libertação o seu valor de função ou domínio deacção. Mas é a “lógica” da estrutura da fórmula dopsicomito de Régis que tem que nos guiar, a fimde confirmarmos esta hipótese (recordemo-nosque os cartões representam segmentos da cadeiasignificante que se “dobram” sobre si própriosnum processo de “semiose ilimitada”, odenominado “processo Rorschach”). Ora, sendo o“super-homem” o valor de termo (y) expressa-mente referenciado por Régis na narração doprotocolo e sendo no “pescoço” do “super-homem” que se dá a libertação géyseriana anagra-mática das pulsões (cartão IX), podemos concluírque a libertação é o domínio de acção y do mons-tro no segundo membro da primeira oposição dafórmula [Fy(b)=Flibertação(monstro)]. Umafigura mediadora que, simultaneamente, contém eliberta é uma figura que expressa uma dascaracterísticas mais prementes do inconsciente,segundo Freud, o não respeito pelo princípio denão-contradição (Freud, 1915/1991). Por isso, já odefendemos, as sucessivas mediações traduzidaspela fórmula dos psicomitos na cadeia significanterorschachiana constituem formações do recalcadoa caminho da sublimação.

A versão temporariamente estacionáriaconstruida pelos mecanismos de defesa de Régistoma então a seguinte aparência mítica:

Fcontenção(diabo):Flibertação(monstro)::Fcontenção(monstro):Fdivindade(super-homem)

Retenhamos a última apresentação da fórmula.Seguidamente apresentamos a nova configuraçãoda tabela psicomítica de acordo com a sucessãocronológica dos significantes mais marcantes:

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Note-se que a figura mediadora do monstro seencontra à direita da primeira oposição filiaçãosubestimada/filiação sobrestimada. E precisamos,de acordo com a lógica da fórmula psicomítica,de duas oposições que se anulem entre si umaterceira oposição surge para que se gere umaidentidade de relações estável. Para tal, teremosque nos regular pelas funções nas quais os signi-ficantes se expressam, e as funções são as de“contenção” e “libertação”. Assim sendo, àprimeira função de “contenção” na “filiaçãosubestimada” (primeira coluna), oporemos a

função de “libertação” da figura mediadora ouvalor de termo do “monstro” (quarta coluna). E àfunção de “libertação” na “filiação sobresti-mada” (segunda coluna), oporemos a função de“contenção” da figura mediadora ou valor determo do “monstro” (terceira coluna). É a figuramediadora ambivalente que permite a transiçãodinâmica entre as duas funções opostas daprimeira oposição e o consequente desenvolvi-mento do psicomito no aparelho mental. A tabelaadquire agora a seguinte aparência, de acordocom a última expressão da fórmula psicomítica:

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Filiação subestimada Filiação sobrestimada(contenção) (libertação) Monstro contentor Monstro libertador

Cartão ICartão IICartão III Cabeça de monstro com coroa de sangue

CristoInteligência degradante dos civilizados

Cartão IV Monstro c/ ventosas Monstro c/ ventosasCartão VCartão VICartão VIICartão VIII FogoCartão IX Diabo Deus, Virgem Cabeça

Dois diabos observam Estátua da Virgem, busto de DeusDois diabos grávidas Super-homem

Géiser/pescoçoCartão X Flores campestres por

baixo das aranhas esmagadas

Filiação subestimada Filiação sobrestimada(contenção) Monstro libertador Monstro contentor (libertação)

Cartão ICartão IICartão III Cabeça de monstro com coroa de sangue

CristoInteligência degradante dos civilizados

Cartão IV Monstro c/ ventosas Monstro c/ ventosasCartão VCartão VICartão VIICartão VIII FogoCartão IX Diabo Cabeça Deus, Virgem

Dois diabos observam Estátua da Virgem, busto de DeusDois diabos grávidas Super-homem

Géiser/pescoçoCartão X Flores campestres por

baixo das aranhas esmagadasSinal de progresso (procurade petróleo no solo) apontadoao céu, à divindade

A apresentação cronológica dos significantesficou subvertida, na medida em que sobreveio aapresentação lógica inerente à fórmula do mitopessoal agora construído, apresentação lógicalatente no discurso manifesto de Régis. A leitura

da tabela psicomítica e, consequentemente, dafórmula, também nos diz que a ambivalênciaafectiva de Régis luta pela libertação do núcleoedipiano, diabolizando-o, mas também teme umaexcessiva liberdade que possa aniquilar os

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conflitos inevitáveis inerentes ao Édipo. Isto namedida em que o monstro mediador tenta libertarRégis do diabo edipiano castrador, mas, simulta-neamente, também cerceia uma idealização exces-siva do Édipo, idealização que poderia chegar aoponto de o divinizar (no cartão X, uma contençãonum esmagamento de aranhas coexiste com umalibertação fálica apontada ao céu e à divindade).

Embora consideremos esta uma formaçãopessoal mítica caracterizadora dos conflitospsíquicos de Régis, tal não implica que a fórmulanão adquira outras variantes. Para chegar a estavariante pessoal estacionária do psicomito deRégis, procedemos a algumas explicações doprocesso de formação de mediações. O processoanalítico, ou eventualmente a administração demais protocolos Rorschach, certamente fariamaparecer outras variantes da fórmula, traduzindooutras formações psicomíticas na galáxia psico-mítica do aparelho mental de Régis. Poderiam serversões desta variante como poderiam também seroutras variantes que viessem a englobar aquelaque aqui expressámos. A problemática freudianada análise terminável ou interminável (Freud,(1937/1981) pode ser encarada nestes termos.Qual a versão mítica que melhor responderia àsnecessidades do paciente é uma problemáticaque só a dinâmica da relação analista-analisandoe a administração de Rorschachs sucessivospoderia responder. Isso significaria analisar outrossegmentos da cadeia significante ou míticaestruturadora do aparelho psíquico de Régis.

O mito pessoal de Regis parece assim indicar,através duma projecção do complexo de Édipo,que duas correntes contrárias se debatem nosseus fantasmas sobre o complexo familiar. Asrelações de filiação aos pais são sobrestimadas,na medida em que a bondade libertadora destesse projecta numa boa figura divina (Deus,Vírgem). As mesmas relações de filiação sãosubestimadas na medida em que estes sãomaldosamente fantasmatizados como figurasdiabólicas. Todos os outros significantesconsiderados conduzem, conforme a análise jáfeita, a estes significantes nucleares edipianos.De um modo geral, as duas outras colunas ondese arrumam todos os outros significantes anali-sados são encabeçadas pela figura mediadora domonstro que, ambivalentemente, ora contém oraliberta as pulsões, num movimento ascendenteque culmina na libertação explosiva géiseriana

de um super-homem de características divinassob observação de “dois diabos grávidas”.

A questão a que o mito pessoal de Régistenta responder é assim a de saber como selibertar de uma contenção pulsional (duascolunas centrais da fórmula onde impera a figurado monstro), gerindo simultaneamente aambivalência inerente aos vínculos de amor(coluna da filiação parental sobrestimada;vínculo L, de Bion) e ódio (coluna da filiaçãoparental subestimada; vínculo H, de Bion)relativos ao complexo familiar salvaguardando aintegridade do aparelho mental?

CONCLUSÃO

De um modo geral podemos referir comovantagens da análise do Rorschach segundo ametodologia para detecção de mitos individuais,que estes agregam em si a dinâmica operadaentre a simetria e o valor simbólico no espaçovirtual Rorschach, dinâmica que constitui o“universo da transformação simbólica”(Marques, 1999/2001, p. 208).

A transformação simbólica explana-se nafórmula canónica dos mitos, que inclui no seuquarto membro o valor simbólico responsávelpela conflitualidade assimétrica no universoideal das simetrias opostas mas sempresuperadas. É o quarto membro da equação querepresenta a pulsão dinâmica do universo míticoque, caso contrário, permaneceria estático noreino das simetrias perfeitas.

É este universo Rorschach de transformaçãosimbólica que, defendemos, se desenvolve “comouma nebulosa” (Lévi-Strauss, 1964, p. 13) nouniverso dos psicomitos. Aquilo a chamámos“processo Rorschach”, assente num processosemiológico mais vasto, constitui a transformaçãosimbólica que o teste empírico permite que semanifeste. O sujeito submetido à situação deprova, vive o processo Rorschach através daformação de mitos pessoais ou psicomitos.

O universo dos mitos pessoais do Rorschach éum universo que opera entre contracções eexpansões e onde “o desenvolvimento e ocrescimento impõem que se desfaçam e refaçam,num sem-cessar permanente, e face a elementosestranhos e disruptivos, novas relações, novassignificações, mas sempre num processo que

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reconduz de novo ao encontro com o igual, masum igual idêntico, donde modificado e transfor-mado, estabelecendo novas relações continente-conteúdo” (Marques, 1999, p. 207).

As contracções e expansões do universopsicomítico do Rorschach processam-se deacordo com o conceito de “cadeia significante”,conforme foi identificado no protocolo de Régis.A cadeia significante é sempre uma porção doprocesso semiológico inerente ao processoRorschach e é formada pelos mitemas ou frasesnumeradas dos protocolos Rorschach. Asucessividade cronológica dos mitemas queaparecem no protocolo é preenchida nas linhashorizontais diacrónicas da grelha psico-míticade cima para baixo e da esquerda para a direita.Os espaços vazios na grelha relativos a algunscartões podem ser preenchidos por outrosmitemas de outros cartões num processo dealternância regressiva/progressiva do aparelhopsíquico. Assim, novos temas aparecem, àmedida que os mitemas se reagrupam ou serearranjam em novas séries. Os novos temas quese constituem formam as denominadas colunassincrónicas verticais, colunas que subvertem aordem original que aparece no conteúdomanifesto do discurso do sujeito. Estas séries oucolunas correspondem ao conceito cartesiano desérie de enumeração de elementos, ao conceitobioniano da função alfa, ao chunk milleriano, ouainda à cadeia significante lacaniana. A subversãoda ordem dos mitemas originais na criação denovas colunas, corresponde ao conceito freudianoda “razão oculta” ou função intelectual que exigeunidade. O cruzamento das cadeias significantesforma a rede da grelha psico-mítica e nesta podegraficamente observar-se a explanação doreferido conceito de “enxertagem” de mitemas deuma cadeia significante noutra. Esta“enxertagem” mostra a expansão da grelha, namedida em que uma cadeia significante ou cadeiapsicomítica que agregue mais mitemas de outrascadeias faz aumentar o número de mitemas inter-relacionados, fazendo aparecer um núcleo duroque formará um futuro mito pessoal. Os mitemasmais fortemente relacionados por oposições,temporariamente resolvidas por mediações,formam o núcleo duro de um novo mito pessoal.É o caso das oposições entre Deus e o Diabomediados pelo Monstro no mito pessoal de Régis.Os mitemas mais ambíguos ficam na periferia do

núcleo e conectar-se-ão a outros mitemas com osquais formem oposições sem ambiguidade. Todoo mitema mediador é um potencial agregador deoutros mitemas. É o caso do Monstro no mitopessoal de Régis que desempenha funções demediação também noutros significantes do códigoespacial, por exemplo, na superfície terrestreonde medeia entre os significantes do petróleoabaixo da terra e do céu para onde as torrespetrolíferas apontam. Outro núcleo mítico pessoalpoderia nascer a partir daqui.

O universo psicomítico da grelha expande-sena medida em que uma cadeia agrega novossignificantes, contrai-se na medida em que osperde. No universo psicomítico nada se perde,nada se ganha, todos os mitos pessoais se trans-formam. As cadeias significantes que conectamnovos significantes ou mitemas formam novoscontinentes, as que os perdem tornam-seconteúdos de outros continentes. Formam-seassim novas relações continente-conteúdo.

Estas “novas relações continente-conteúdo”traduzem-se, afinal, pelas múltiplas “versõesmíticas”, versões que correspondem às transfor-mações de um suposto “mito originário” ou“objecto perdido”. De notar que a “realidadeúltima” – “O” de Bion – neste paradigma não só éa última inatingível como também a primeira. Atransformação K→O, a transformação que leva do“saber a respeito” da realidade psíquica ao“tornar-se” a própria realidade psíquica, significaassim a transformação do “saber a respeito” dedeterminada versão do mito individual da mentedo indivíduo particular ao “tornar-se” a realidadeda própria versão do mito que o anima: “Asqualidades atribuídas a O, os vínculos com O,todos são transformações de O, sendo O” (Bion,1965/1991, p. 140). As qualidades ou versões de“O” são as versões do mito original ou mito único.Este constitui o ideal inatingível das versões quese desenrolam no espaço virtual Rorschach.

Depois de Kris (1956), e na senda deste,autores houve que entenderam o mito individualcomo uma formação inconsciente ao serviçodos mecanismos de defesa do ego. Importaesclarecer que, em nossa opinião, tal posição semantém, embora ressalvando o pormenor de ocontinuum das variantes do mito, através doqual o aparelho psíquico tinge as suas transfor-mações, não estar estritamente ao serviço demecanismos de defesa. As variantes do mito

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individual assumidas pelo aparelho psíquicoconstituem a essência da maior aproximaçãopossível à verdade que o indivíduo é capaz deatingir, “tornando-se” a realidade da versãomítica que o anima. Foi o que Régis conseguiufazer na altura do seu protocolo, ao tentarunificar a imagem corporal fragmentada atravésdo mitema mediador do Monstro. Esta posiçãoreenquadra o que Bion (1965/1991) já referiu,segundo o qual “existe uma profunda diferençaentre estar a ser ‘O’ e a rivalidade com O. Estaúltima é caracterizada por inveja, ódio, amor,megalomania e o estado conhecido pelosanalistas como acting-out que pode serdiferenciado da acção; isto é característico de‘estar a ser’ O” (p. 141). Como distinguir destemodo o mito individual agido (acting out), comoresistência, do mito individual em acção(acting)? Pela distância que o separa do mitooriginário. Esta espécie de “distância topológica”entre versões míticas “mede-se” pela capacidadegenerativa de uma versão relativamente a outras.Quanto mais uma versão mítica individual forcapaz de gerar outras versões alternativas, maisantiga é – mais perto do “mito originário” seencontra – residindo nas camadas maisprofundas do aparelho psíquico, sendo a suaresistência à generatividade de novas versõesmais fraca. Em contrapartida, quanto menosuma versão mítica individual for capaz de gerarnovas versões míticas alternativas, mais longe do“mito originário” ela se encontra, mais recente é,sendo a sua resistência à generatividade de novasversões mais forte.

A fragmentação dos mitemas fornecidos noprotocolo Rorschach por Régis, indica que estevivia uma versão mítica pessoal próxima de umsuposto mito originário estruturado em termospré-edipianos, no caso, de natureza psicótica.

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RESUMO

Procuramos estabelecer, através do processo-respostaRorschach, o acesso aos mitos pessoais, pelo quepropusemos uma metodologia assente na construção deuma grelha, que denominamos por grelha psicomítica,enquanto estruturadora da narrativa Rorschach.

Através de uma revisão teórica onde procurámosestabelecer a natureza e essência do mito, tal comoestá expresso no paradigma lévi-straussiano e napsicanálise, avançámos os pressupostos epistemo-lógicos subjacentes à construção da grelha psicomíticarorschachiana identificadora dos mitos pessoais noaparelho psíquico.

O material usado como exercício de demonstraçãofoi num protocolo retirado de uma das obras de Chabert(1998/2000), de um indivíduo de nome Régis,diagnosticado como sendo uma esquizofrenia paranóide.

Na aplicação da grelha a este protocolo, oRorschach foi entendido como um processo semióticoassente numa constante transformação de mitospessoais entre si. A dinâmica desta transformação foidemonstrada através da fórmula canónica dospsicomitos, de Lévi-Strauss (1955/1970) e do conceitode série complementar ou equação etiológica dasneuroses, de Freud (1916-17/1981), enquantoconceitos subjacentes à grelha dos psicomitos.

Seguindo as transformações dos psicomitos deRégis determinámos qual o mito pessoal prevalecenteque presidia ao seu aparelho mental na altura daaplicação da prova.

Concluímos com o conceito de “transformaçõespsicomitológicas” enquanto paradigma de análise doRorschach.

Palavras chave: Mito pessoal, Rorschach, Transfor-mações psicomitológicas.

ABSTRACT

We try to reach the personal myths through theRorschach response-process. To identify the personalmyths in Rorschach we proposed a methodology basedon a psycho-mythic grid underlying the narrative ofthe tested subject.

Through a theoretical review which sought toestablish the nature and essence of the myth asexpressed in the lévi-straussian and psychoanalyticparadigm, we have made the epistemologicalassumptions underlying the construction of theRorschach psycho-mythic grid identifying the personalmyths in the psychic apparatus.

The material used as a demonstration exerciseconsisted on a protocol taken from a Chabert’s(1998/2000) work about a man named Regis whowas diagnosed with paranoid schizophrenia.

In applying the grid to the protocol the Rorschachtest was seen as a semiotic process based on thetransformations between personal myths. The dynamicof those transformations was demonstrated by thecanonical formula of the psycho-myths (Lévi-Strauss,1955/1970) and the concept of complementary seriesor etiology equation of the neurosis (Freud, 1916-17/1981) underlying the concepts of the psycho-mythsgrid. We concluded in the end with the identificationof the prevailing personal myth presiding temporarilyto the Regis’s mental apparatus at the time of the test.

We finished with the concept of psycho-mythological transformations as a paradigm foranalyzing the Rorschach.

Key-words: Personal myth, Psycho-mythologicaltransformations, Rorschach.

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