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transTudo o que você sabe está errado
texto Gabriela loureiro e Helena Vieira
design fernanda didini e rafael quick
foto julia rodriGues
Mulher trans, pesquisadora
em Teoria Queer na Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira e transfeminista
V46
Valentim* nasceu em Colorado, no interior do Paraná, há 16 anos. Des-
de pequeno, seu comportamento fugia do padrão
esperado para um menino: gostava de brincar de
bonecas, preferia andar com garotas e às vezes
vestia as roupas de suas tias. Não pegou muito
bem na família. Era comum Valentim ouvir coisas
como “vira homem” e “viadinho” durante a infân-
cia. O assédio machucava, mas, ao mesmo tempo,
deixava-o confuso. Como ele poderia ser gay se
também se sentia atraído por meninas? Como só
tinha referências de homo e heterossexualidade,
Valentim acabou se definindo como gay. Até que
a modelo transgênera Andreja Pejic veio ao Brasil
para um desfile e foi entrevistada por uma rede de
TV aberta. Na época, ela se apresentava como um
menino andrógino. A identificação foi imediata,
e Andreja tornou-se sua grande referência. Valen-
tim começou a pesquisar sobre a modelo na inter-
net e conheceu a página Travesti Reflexiva, no Fa-
cebook. Foi quando entendeu o que é gênero e a
diferença entre este e a orientação sexual. Entrou
em contato com outras pessoas trans nas redes
sociais e descobriu sua identidade: não binário e
bissexual. Assim como a cantora Miley Cyrus e
a atriz Kristen Stewart (que têm falado bastante
sobre o tema na imprensa),
Valentim não quer saber
de classificações homem x
mulher ou gay x hétero. E
ele não está sozinho: segun-
do pesquisa do instituto nor-
te-americano YouGov, 46%
dos jovens entre 18 e 24 anos
se definem heterossexuais, e
outros 6% se dizem homosse-
xuais. Isso significa que 48%
das pessoas estão fora desse es-
pectro. É que a identidade de gê-
nero é um pouco mais complexa
do que nos ensinaram: diz respeito
sobre quem somos, mas é regulada
por instituições sociais e por nossa
necessidade de categorizar indiví-
duos e suas atividades.
O conceito de transgênero ainda
é muito complexo para a maioria
das pessoas, que não entendem o
que isso tem a ver com identidade.
Muitos acreditam que transexuais
são apenas pessoas que nasceram
no corpo errado, um homem preso
no corpo de uma mulher ou vice-ver-
sa. Outros acham que para ser con-
siderado transgênero é preciso ter
feito cirurgia de mudança de sexo.
Quando se fala em transexualidade
há uma imensa confusão entre iden-
tidade de gênero e orientação se-
xual. É comum pensar que mulheres
trans e travestis são “tão gays que vi-
raram mulher” — o que, obviamen-
te, não é verdade. Sexo biológico é
diferente de gênero e orientação se-
xual. O primeiro é referente ao órgão
sexual do corpo humano. O gênero
é a identidade do que é considerado
feminino ou masculino, que não é
universal e pode variar ao longo do
tempo. Já a orientação sexual diz
de para o tema, por outro cresce a
polêmica: a palavra “gênero” virou
sinônimo de maldição para grupos
religiosos conservadores. No Brasil,
nunca se falou tanto no assunto co-
mo nos últimos meses, depois que
o Plano Nacional de Educação en-
trou em votação e o termo “gênero”
foi banido do texto após discussões
acaloradas no Congresso.
corpos bináriosDurante milhares de anos, as hijras
— o terceiro gênero, composto por
transgêneros, eunucos e interse-
xos — foram líderes espirituais e
políticos que celebravam casamen-
tos, abençoavam crianças e ocupa-
vam posições de prestígio na jus-
tiça indiana. Elas
estão presentes
em textos sagra-
dos do hinduísmo,
como o Maha-
bharata e o Kama
Sutra. Foi assim
até que a Grã-Bre-
tanha colonizou
a Índia e adotou
uma lei, em 1897,
que estabelecia
que ser hijra era
um crime. Desde
então elas foram
marginalizadas e
obrigadas a men-
digar ou se pros-
tituir para sobrevi-
ver — só voltaram
a conquistar seus
direitos no ano
passado, quando
o governo indiano
instituiu a catego-
ria terceiro gênero nos documen-
tos oficiais e as cotas de emprego
e de educação para o grupo. As hi-
jras são uma prova de que gênero
tem muito mais a ver com a socie-
dade na qual vivemos do que com
nossa identidade em si. E trazem à
tona o debate: só há uma forma de
ser homem ou mulher? Ou há uma
multiplicidade de masculinidades
e feminilidades possíveis?
“É menino ou menina?” costu-
ma ser a primeira pergunta depois
do anúncio de uma gravidez. Se a
criança não se adaptar ao que é es-
perado do comportamento de uma
menina ou menino, é provável que
passe o resto da sua vida ouvindo a
mesma pergunta — só que em for-
respeito ao tipo de atração, que pode
ser por pessoas do mesmo sexo, do
sexo oposto, os dois ou nenhum (ve-ja quadro na pág. XX). Ou seja, uma
pessoa transexual não é necessaria-
mente homossexual. Na verdade,
transgênero é um termo que abriga
todos que não se identificam com o
gênero atribuído a eles no nascimen-
to e também quem não se identifica
com gênero de forma alguma, que é
neutro, fluido. Como Valentim. “Não
nasci no corpo errado, a sociedade é
que tem uma leitura errada dele”, diz.
Bruce Jenner era um jogador
de futebol universitário quando
seu treinador o convenceu a tentar
o atletismo. Depois de muito trei-
namento, competiu pelos Estados
Unidos nos Jogos Olímpicos de
1976, quando ganhou a medalha de
ouro na prova de decatlo. O último
atleta a levar o título, quatro anos
antes, era um soviético. Em meio
à Guerra Fria, Jenner foi aclamado
como o grande herói norte-ameri-
cano. Foi convidado a dar palestras
motivacionais para inspirar seus
compatriotas durante o conflito.
Mas o maior símbolo vivo do sonho
norte-americano era só uma ence-
nação. Jenner, na verdade, sempre
foi uma mulher presa no corpo de
um homem — no caso, o de um
atleta famoso no mundo inteiro.
Apenas recentemente ele anunciou
que é transexual e, na capa da edi-
ção de julho da revista Vanity Fair, declarou: “Me chame de Caitlyn”.
Em várias partes do mundo, tran-
sexuais ganham espaço na mídia,
como a modelo brasileira Lea T e
a ex-BBB Ariadna. Se por um lado
isso ajuda a aumentar a visibilida-
As palavras usadas nas discussões sobre gênero podem ser incompreensíveis. Em caso de dúvida, recorra a este glossário:
abc do Gênero
AssexuADOPessoa que não sente atração sexual por ninguém nem vontade de fazer sexo
CisgênerOPessoa que se identifica com o gênero designado a ela no nascimento. Exemplo: nasceu com vagina, foi designada mulher e assim se identifica
CissexismOIdeias e discursos segundo os quais o gênero é definido pelo corpo, não pela identidade
CrOssDresserPessoa que usa roupas asso-ciadas ao gênero diferente
daquele designado a ela na hora do nascimento
DrAg queen e DrAg kingArtista performático(a) que se veste com roupas femininas (queen) ou masculinas (king) para apresentações, indepen-dentemente do gênero
HOmOfObiARepulsa e preconceito contra pessoas homossexuais
intersexuAlPessoa que nasceu com geni-tália ambígua, antigamente chamada de hermafrodita (essa palavra não se aplica à espécie humana)
nbNão binária, ou seja, neutra — não se identifica com o gênero masculino nem com o feminino
PAnsexuAlAquele que sente atração sexual por pessoas, indepen-dentemente do gênero
queerOriginalmente era uma ofensa, já que em inglês signi-fica “estranho”, mas passou a ser um termo de afirmação política de todos os “dissi-dentes” — isto é, aqueles que não se encaixam na categoria “heterossexual e cisgênero”
trAnsgênerO / trAnsexuAlPessoa que não se identifica com o gênero determinado no nascimento. Exemplo: foi designada como homem, mas se identifica como mulher
trAnsfObiAPreconceito e discriminação contra pessoas trans, aversão
trAvestiDefinição em disputa. É sinônimo de transexual, mas marginalizado. Ou um tercei-ro gênero. O termo é usado como afirmação política em razão do estigma enfrentado pelos travestis no país
ma de xingamentos e ataques. Não é por acaso
que essa é a primeira pergunta feita a respeito de
um ser humano, e também uma das mais impor-
tantes. Mesmo quando não se fala abertamente
sobre isso, é como se só existissem dois grupos
de pessoas: o dos homens e o das mulheres. Ao
nascer, você é automaticamente colocado num
dos dois, baseado nos seus órgãos genitais. Se
tiver um pênis é menino, se tiver uma vagina,
menina. Dali em diante, sentirá a pressão para
se conformar com as características designadas
a você. Meninos gostam de azul, jogam videoga-
me e são agressivos, enquanto meninas gostam
de rosa, brincam de boneca e são naturalmente
passivas e emotivas. Duas categorias para toda a
raça humana. Será o bastante? De acordo com os
estudos de gênero, um campo de pesquisa acadê-
mica que surgiu dos estudos feministas e pós-es-
truturalistas dos anos 1960, a resposta é não.
*Nome fictício para proteger a identidade do personagem
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Ainda
l i g a m o s
gênero ao se-
xo biológico e
nos acostumamos
a pensar que isso é na-
tural. No âmbito da pato-
logia , os indivíduos que fu-
giam dessa naturalidade foram
chamados de “transexuais” — ou seja, desvian-
tes. Recentemente, com os estudos de gênero,
começaram a pensar que essa designação inicial
e tida como “natural” é também arbitrária. Não
há uma naturalidade exclusiva na relação gêne-
ro-genital. O que existe é uma identidade, uma
forma de se reconhecer. Ela pode ser um senti-
mento de pertencimento, no caso da pessoa cis-
gênero (aquela que se reconhece com o gênero
que lhe foi atribuído ao nascer), ou uma identi-
ficação diferente, no caso da trans, que pode se
reconhecer com o gênero oposto, com nenhum
gênero ou com uma experiência de si que esca-
pa ao sistema binário homem/mulher. Mas nem
toda pessoa que não se reconhece como cisgê-
nero é trans, já que existem nuances e variações
de pertencimento. É o caso da “queer”, classe de
pessoas que não se reconhecem
em nenhum extremo (veja o dicio-nário na página anterior).
Gênero e disciplinaAlex era um menino de 8 anos da
periferia do Rio de Janeiro que gos-
tava de dança do ventre e de lavar
louça. Seu pai, Alex André Moraes
Soeiro, de 34 anos, não aprovava o
jeito afeminado da criança e tentava
corrigi-lo. As surras eram recorren-
tes e tinham como objetivo ensi-
nar o filho a andar como homem.
Como o pequeno não chorava en-
quanto apanhava, o pai batia ainda
mais. Um dia, a criança se recusou
a cortar o cabelo para ir à escola e
o pai resolveu acabar com
aquela desobediência. De
tanto apanhar, o fígado de
Alex foi perfurado e ele so-
freu uma hemorragia in-
terna. Chegou ao hospital
morto, com hematomas
pelo corpo todo e sinais
de desnutrição. Alex pa-
gou com a vida o preço de
não se adequar às normas
de gênero impostas pe-
la sociedade e aplicadas
de forma implacável pelo
próprio pai. Ele não foi o único. Em
2014, 326 pessoas foram assassina-
das no Brasil por não se encaixarem
nessas regras, segundo relatório
do Grupo Gay da Bahia (GGB). É
um número 4% maior do que o re-
gistrado no ano anterior. Entre as
vítimas, 134 gays, 134 travestis, 14
lésbicas, 3 bissexuais, 7 amantes de
travestis e 7 heterossexuais confun-
didos com homossexuais. A men-
sagem que essas estatísticas sobre
violência contra a população LGBT
passa é clara: se você desobedecer
às regras de gênero vai sofrer uma
punição física e pode até morrer. É
o poder coercitivo de gênero como
forma de policiar as pessoas, de
proteção aos cidadãos — família,
hospitais, prisões e escolas — foram
consolidadas como mecanismos de controle.
Mas o filósofo não acreditava que o poder de
coerção tinha uma só origem, como o Estado,
e sim que surgia de diversas fontes: são os mi-
cropoderes que transformam as condutas das
pessoas. Uma das formas de exercer poder é por
meio de discursos. Assim, as piadas, o modo co-
mo nos referimos a alguém e até os xingamentos
contribuem para normalizar alguns comporta-
mentos e estigmatizar outros — exemplo: usar a
expressão “que gay!” quando alguém demonstra
seus sentimentos ou a palavra “viado” ou “traves-
ti” como xingamento. Judith utiliza essa premis-
sa do discurso para tentar dissolver a dicotomia
sexo versus gênero. Para ela, vivemos numa or-
dem compulsória que exige coerência total entre
sexo, gênero e desejo sexual, que são obrigatoria-
mente heterossexuais. A autora sugere, então, a
contestação das expressões de gênero, já que a
identidade é formada com base na repetição de
atos performativos, ou seja, atitudes e gestos que
constroem o que é feminino e masculino.
fora dos livrosPor mais que a diferenciação de gêneros pareça
natural, ela não é. Boa parte dessa explicação está
no papel da medicina na Europa no final do século
18. Com a Revolução Industrial, a população euro-
peia começou a se concentrar em áreas urbanas,
migrando do campo para as cidades. A concentra-
ção de pessoas de diferentes regiões num mesmo
lugar provocou surtos e doenças, que alavancaram
a importância e o desenvolvimento da medicina.
Áreas como psiquiatria, sexologia e psicanálise
viram nisso a oportunidade de categorizar doen-
ças para atrair mais pacientes aos consultórios.
Assim, os especialistas substituíram os padres
no papel de guardiões das práticas sexuais e de-
terminaram os comportamentos aceitáveis e os
patológicos. Tudo que não tinha fins reprodutivos
foi considerado degeneração: homossexualidade,
transexualidade, masturbação, prostituição. Ainda
hoje, a transexualidade é considerada um trans-
torno mental pela medicina, como era a homos-
sexualidade até os anos 1970. “Os critérios ditos
biológicos (anatomia, hormônios, cromossomos,
glândulas) são contraditórios, às vezes incoeren-
tes. É só ver como os endocrinologistas forçam
as desVantaGens de ser inVisíVel
surraVerGonHa nacional
Como é a discriminação de pessoas trans nos EUA, onde há pesquisa sobre o tema:
O Brasil é o país mais violento para pessoas trans, segundo a ONG TransGender Europe:
1.731pessoas trans
foram mortas entre
2008 e 2015
1.350dos assassinatos
aconteceram na América Latina
*As pesquisas foram feitas com dados de assassi-natos reportados à polícia. Não se sabe quantos assassina-tos aconteceram até agora no total
Brasil n o r e s t a n t e d aAmérica Latina,
60%dos assassinatos de pessoas trans*
689 foram no
acordo com Judith Butler, uma
das mais respeitadas filósofas
de gênero da atualidade.
Judith parte das premis-
sas do filósofo francês Michel
Foucault para explicar como
as regras de gênero são per-
formáticas e não passam de
fenômenos repetidos para
simular uma ideia de natura-
lidade. Foucault disse que a
disciplina é um instrumento
de dominação e controle
para domesticar comporta-
mentos divergentes. Com
o Iluminismo, várias ins-
tituições de assistência e
Fontes: Fundação Americana para Prevenção de Suicídio. Instituto Williams (Ucla)
entre 0,25%
e 1% da população
norte-americana se declara
transgênera
3 em cAdA 4transgêneros sofrem abuso
sexual na escola
57%foram rejeitados ou abandonados
pela família
45%69%já ficaram
desabrigados
Violênciafísica ou sexual da polícia
sofreram
70% 30%
das pessoas trans tentaram o suicídio antes de
completar 24 anos
Aos 8 anos, Alex morreu por não se adequar às normas de gêneros
50um antagonismo hormonal entre testosterona e
estrogênio que não existe. Essas explicações de
transexualidade estão impregnadas de hormô-
nios como os fetos estão grudados ao ventre de
suas mães. E não estamos preocupados com a
origem biológica da heterossexualidade”, disse a
GALILEU Marie-Hélène Bourcier, professora da
Universidade de Lille II e uma das principais teó-
ricas queer da França.
Mais ou menos no mesmo período, cientis-
tas começaram a definir as principais diferenças
entre homens e mulheres com base no conhe-
cimento da época, que era fortemente marcado
pelas políticas de gênero — ou seja, a dominação
do feminino pelo masculino. Não é por acaso
que a primeira figura de um esqueleto feminino
só apareceu em um livro em 1759, com o objeti-
vo de deixar evidente a diferença entre homens
(fortes e com o crânio maior que o feminino) e
mulheres (muito mais frágeis). Pouco mais de
um século mais tarde, o biólogo escocês Patrick
Geddes usou a fisiologia celular para explicar
que mulheres são mais passivas e conservado-
ras do que os homens, que seriam mais ativos
e passionais. Segundo Thomas Laqueur, conhe-
cido sexólogo norte-americano, não há dúvidas
de que a criação de teorias
sem embasamento so-
bre diferenças entre
os sexos influenciou
o progresso cientí-
fico, bem como as
interpretações dos
experimentos. Ainda
hoje transbordam
estudos suposta-
mente científicos
que garantem ex-
plicar por que ho-
mens e mulheres
se comportam de
determinada ma-
neira. Nem todos
são descartáveis,
claro, mas é interessante questionar
qual é o interesse por trás dessas
pesquisas e suas influências históri-
cas. A produção de categorias biná-
rias e estáveis consolida relações de
poder entre elas: homem sobre mu-
lher, heterossexual sobre homosse-
xual etc. O binário é uma projeção
arbitrária do “dimorfismo” corpo-
ral, ou seja, a ideia de que existem
dois organismos distintos na espé-
cie humana, um com pênis, outro
com vagina. Mas essa taxonomia
biológica é falha, pois ela é incapaz
de dar conta dos corpos intersexos,
aqueles que nascem com pênis e
vagina, ou com genitália ambígua/
indefinida. Enquadrar as pessoas
em gêneros, desejos e categorias
estáveis é também uma forma de
castração. Quando nos limitamos
a isso, reduzimos e aniquilamos as
possibilidades múltiplas de vivência
do prazer e do desejo. E, claro, mar-
ginalizamos os desviantes.
Vida de desvianteLiége Martins é uma jovem transe-
xual de 19 anos que mora em uma
favela no Rio de Janeiro e iniciou
em segredo um tratamento hormo-
nal. Cresceu com a mãe e a irmã,
com quem dividia as brincadeiras
sem estereótipos de gênero. Tem
dificuldades para sobreviver em
um ambiente tão hostil e escasso
de possibilidades como a periferia
carioca. Por isso, criou um grupo no
Facebook chamado Cismitério, que
reúne milhares de pessoas trans,
principalmente jovens, que ainda
estão em período de descoberta e
querem trocar experiências sobre
corpo e identidade. “Ninguém con-
trata travesti, e às vezes nem sequer
estudo elas têm, mas precisam de
um emprego cada vez mais cedo pa-
ra ajudar ou sustentar a família, cus-
tear o mínimo que puder para fugir
do iminente futuro de prostituição”,
disse Liége a GALILEU. Segundo a
Associação Nacional das Travestis
(Antra), 90% das travestis e tran-
sexuais brasileiras se prostituem. Há
quem pense que essa é uma escolha
quando, na verdade, a comunidade
TT (Travestis e Transexuais) sofre
imensa discriminação no mercado
de trabalho — o que resta é a prosti-
tuição e empregos como atendentes
de telemarketing ou cabeleireiras.
Bernardo Mota foi designado
menina quando nasceu, mas desde
pequeno fugia dos papéis ditos femi-
ninos ao jogar bola e empinar pipa.
Quando se descobriu trans, contou
à família e foi massacrado: tenta-
ram reprimi-lo, foi alvo de piadas e
insultos verbais. Sentiu-se expulso
de casa mesmo sem ninguém tê-lo
mandado embora. Sofreu crises de-
pressivas por ser ridicularizado e, de-
samparado, tentou suicídio. Rompeu
relações com a família e mudou-se
de Brasília, onde seus pais moram
até hoje, para Uberlândia, uma das
poucas cidades do Brasil que dispo-
nibilizavam acompanhamento para
transição hormonal. Assim que che-
gou à cidade, esse ambulatório foi
desconstrução
Sexo, gênero, sexualidade e identidade são coisas diferentes e podem variar num espectro bastante amplo. Entenda:
iDentiDADe De gênerOAinda hoje persiste a ideia de que só podemos ser “homem” ou “mulher”. Mas essas são apenas duas categorias, e há uma variação enorme entre elas, que pode ser entendida como “queer”
exPressãOA forma como nos com-portamos é influenciada pelo que sempre foi considerado “feminino” e “masculino”, mas essas características são mais fluidas do que parecem
sexONem mesmo os órgãos sexuais do ser humano, extensivamente estu-dados pela biologia, são tão binários assim
OrientAçãO sexuAlNascer com determinado órgão sexual e identifi-car-se com certo gênero não define por quem nos sentimos atraídos
B i n á r i a
Ícone: LVIS / The Noun ProjectFonte: It’s Pronounced Metrosexual.com
Sexo genitaiS
expreSSãomovimentoS
identidadecérebro
orientação coração
queer
mu
lHer
HOmem
vAginAintersexO
Pên
is
femin
inO
AnDróginO
mAsCulinO
HeterOssexuAl
bissexuAl /
PAnsexuAl / etC
HOmOssexuAl
Rodrigo Zanini, 22 anos, não é modelo.
Trabalha com moda, é homossexual e se veste
de forma andrógina: seu visual é feminino,
mas ele procura mesclar com roupas masculinas
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1 Não abandone. Pode ser difícil de entender o que é transgênero no início,
mas acredite: a transição para a pessoa trans* é muito mais. Respeite-a incondicionalmente
2 Se você não entende as necessidades dela, bus-que informações a res-peito e, se possível, pro-
cure profissionais aliados à causa
3 Pergunte como a pessoa prefere ser chamada — ou seja, seu nome social — e quais
pronomes usar (por exemplo “seu” ou “sua”, “ele” ou “ela”). E passe a se referir a ela assim
4 Não faça suposições so-bre a orientação sexual da pessoa trans*. Gêne-ro diz respeito a identi-
dade; orientação sexual trata-se de por quem a pessoa se sente atraída
5 Jamais pergunte se ela fez cirurgia de mudança de sexo. É indelicado. Se a pessoa se sentir
confortável, falará a respeito. Entenda que terapia de hormônios e cirurgia não são algo necessá-rio para a transição de todos
6 Apoie iniciativas de inclusão, como banheiro neutro, escolha de nome em documentos
oficiais, escolha de tipo de unifor-me etc. E passe as informações que aprendeu adiante, quando o assunto for transexualidade
como lidamossuspenso, o que o fez se
hormonizar por conta
própria, com base
em informações
encontradas na
internet e com
medicamentos
clandestinos.
Ativista trans bis-
sexual e membro
do Instituto Brasi-
leiro de Transmasculi-
nidades (Ibrata), Mota tem
sofrido para conseguir uma
vaga no mercado de traba-
lho. “Desde que saí de
casa fiz entrevistas para
todo tipo de emprego,
levava meu currículo com
meu nome social e passava
em todas as fases, até mostrar
meus documentos, onde consta o nome de regis-
tro. A vaga desaparecia. Passei por no mínimo dez
entrevistas em que fui dispensado quando soube-
ram que sou transgênero”, conta.
O que aconteceu com Bernardo no mercado
de trabalho e na família é chamado de transfo-
bia — aversão à transexualidade e preconceito.
Infelizmente, no Brasil não há legislação que a
criminalize, o que significa que Bernardo não
pode tomar nenhuma medida judicial contra o
preconceito. Em geral, a situação de direitos de
indivíduos trans é precária no país. Não existe
legislação específica que reconheça a identidade
de gênero, apesar de haver um projeto de lei pa-
ra isso: a Lei João Nery, de autoria do deputado
federal Jean Willys (PSOL/RJ) em parceria com a
deputada Érika Kokay (PT/DF). O projeto reco-
nhece a identidade de gênero como um direito
e o tratamento de acordo com sua identidade
pessoal. Outro projeto de lei, o PL 8.032/2014,
da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), prevê
a aplicação da Lei Maria da Penha às pessoas
transexuais que se identifiquem como mulheres.
É possível citar também outros avanços, como
a alteração de nome conforme o gênero sem a
obrigação de cirurgia de transgenitalização, bu-
rocracia imposta anteriormente, e a publicação
da Resolução 12/2015 do Conselho Nacional de
Combate à Discriminação e Promoções dos
Não existe uma forma correta de ajudar pessoas trans* na família, no grupo de amigos ou na relação amorosa, mas algumas dicas podem ajudá-lo a ser mais empático:
Autora das fotos desta matéria, Julia Rodrigues criou o #mamilolivre, projeto que promove a discussão sobre igualdade de gênero
Direitos LGBT, que determinou o
reconhecimento do uso de nome
social em documentos, formulá-
rios e sistemas de informação de
escolas e universidades, além da
utilização de banheiros, vestiários e
uniformes, segundo a identidade de
gênero. Ainda assim, sem um de-
bate amplo sobre discriminação de
gênero, o tabu continua impedindo
que esses avanços saiam do papel
no Brasil. “O grande problema nes-
se processo é que as instituições
educacionais pouco investem na
educação e orientação sobre o real
objetivo do nome social. Tal afirma-
ção é corroborada com os diversos
casos em que
professores e
servidores de
instituições educacionais não estavam prepa-
rados para atender e orientar outros alunos
conforme a mudança, causando grande cons-
trangimento”, diz Wilker Cerqueira, cientista
jurídico especializado em direitos humanos.
No final do século 19, o biólogo Patrick
Geddes disse que “o que foi decidido entre
protozoários pré-históricos não pode ser anu-
lado por leis do Parlamento”. Será mesmo que
o ser humano, única espécie conhecida capaz
de criar o fogo e desenvolver tecnologias de
exploração espacial, é escravo de protozoá-
rios? Ou de definições biológicas e religiosas
de anos atrás, focadas na diferença e não na
semelhança? Se a espécie humana tem um
cérebro altamente desenvolvido, com capaci-
dades como raciocínio abstrato, linguagem e
introspecção, não faz muito sentido continuar
tentando decifrar o código dos comportamen-
tos sexuais com base em pesquisas de la-
boratório que tentam explicar como as
pessoas funcionam na média. Ou in-
sistir que só existe preto e branco,
e não nuances de tudo. Se é ape-
nas um gene a cada 100 mil
que diferencia homens de
mulheres, por que ainda
focamos as diferenças?
A natureza humana
pode ser muito mais
fluida e flexível do
que nos acos-
tumamos a
pensar.
Davi nasceu menina, mas aos 7 anos molhou
todas as suas roupas cor-de-rosa para não ter de usá-las. Hoje é bem andrógino e gosta de pessoas, não importa
se homens ou mulheres