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44 TRANS Tudo o que você sabe está errado TEXTO GABRIELA LOUREIRO E HELENA VIEIRA DESIGN FERNANDA DIDINI E RAFAEL QUICK FOTO JULIA RODRIGUES Mulher trans, pesquisadora em Teoria Queer na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira e transfeminista

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44

transTudo o que você sabe está errado

texto Gabriela loureiro e Helena Vieira

design fernanda didini e rafael quick

foto julia rodriGues

Mulher trans, pesquisadora

em Teoria Queer na Universidade

da Integração Internacional da Lusofonia

Afro-Brasileira e transfeminista

V46

Valentim* nasceu em Colorado, no interior do Paraná, há 16 anos. Des-

de pequeno, seu comportamento fugia do padrão

esperado para um menino: gostava de brincar de

bonecas, preferia andar com garotas e às vezes

vestia as roupas de suas tias. Não pegou muito

bem na família. Era comum Valentim ouvir coisas

como “vira homem” e “viadinho” durante a infân-

cia. O assédio machucava, mas, ao mesmo tempo,

deixava-o confuso. Como ele poderia ser gay se

também se sentia atraído por meninas? Como só

tinha referências de homo e heterossexualidade,

Valentim acabou se definindo como gay. Até que

a modelo transgênera Andreja Pejic veio ao Brasil

para um desfile e foi entrevistada por uma rede de

TV aberta. Na época, ela se apresentava como um

menino andrógino. A identificação foi imediata,

e Andreja tornou-se sua grande referência. Valen-

tim começou a pesquisar sobre a modelo na inter-

net e conheceu a página Travesti Reflexiva, no Fa-

cebook. Foi quando entendeu o que é gênero e a

diferença entre este e a orientação sexual. Entrou

em contato com outras pessoas trans nas redes

sociais e descobriu sua identidade: não binário e

bissexual. Assim como a cantora Miley Cyrus e

a atriz Kristen Stewart (que têm falado bastante

sobre o tema na imprensa),

Valentim não quer saber

de classificações homem x

mulher ou gay x hétero. E

ele não está sozinho: segun-

do pesquisa do instituto nor-

te-americano YouGov, 46%

dos jovens entre 18 e 24 anos

se definem heterossexuais, e

outros 6% se dizem homosse-

xuais. Isso significa que 48%

das pessoas estão fora desse es-

pectro. É que a identidade de gê-

nero é um pouco mais complexa

do que nos ensinaram: diz respeito

sobre quem somos, mas é regulada

por instituições sociais e por nossa

necessidade de categorizar indiví-

duos e suas atividades.

O conceito de transgênero ainda

é muito complexo para a maioria

das pessoas, que não entendem o

que isso tem a ver com identidade.

Muitos acreditam que transexuais

são apenas pessoas que nasceram

no corpo errado, um homem preso

no corpo de uma mulher ou vice-ver-

sa. Outros acham que para ser con-

siderado transgênero é preciso ter

feito cirurgia de mudança de sexo.

Quando se fala em transexualidade

há uma imensa confusão entre iden-

tidade de gênero e orientação se-

xual. É comum pensar que mulheres

trans e travestis são “tão gays que vi-

raram mulher” — o que, obviamen-

te, não é verdade. Sexo biológico é

diferente de gênero e orientação se-

xual. O primeiro é referente ao órgão

sexual do corpo humano. O gênero

é a identidade do que é considerado

feminino ou masculino, que não é

universal e pode variar ao longo do

tempo. Já a orientação sexual diz

de para o tema, por outro cresce a

polêmica: a palavra “gênero” virou

sinônimo de maldição para grupos

religiosos conservadores. No Brasil,

nunca se falou tanto no assunto co-

mo nos últimos meses, depois que

o Plano Nacional de Educação en-

trou em votação e o termo “gênero”

foi banido do texto após discussões

acaloradas no Congresso.

corpos bináriosDurante milhares de anos, as hijras

— o terceiro gênero, composto por

transgêneros, eunucos e interse-

xos — foram líderes espirituais e

políticos que celebravam casamen-

tos, abençoavam crianças e ocupa-

vam posições de prestígio na jus-

tiça indiana. Elas

estão presentes

em textos sagra-

dos do hinduísmo,

como o Maha-

bharata e o Kama

Sutra. Foi assim

até que a Grã-Bre-

tanha colonizou

a Índia e adotou

uma lei, em 1897,

que estabelecia

que ser hijra era

um crime. Desde

então elas foram

marginalizadas e

obrigadas a men-

digar ou se pros-

tituir para sobrevi-

ver — só voltaram

a conquistar seus

direitos no ano

passado, quando

o governo indiano

instituiu a catego-

ria terceiro gênero nos documen-

tos oficiais e as cotas de emprego

e de educação para o grupo. As hi-

jras são uma prova de que gênero

tem muito mais a ver com a socie-

dade na qual vivemos do que com

nossa identidade em si. E trazem à

tona o debate: só há uma forma de

ser homem ou mulher? Ou há uma

multiplicidade de masculinidades

e feminilidades possíveis?

“É menino ou menina?” costu-

ma ser a primeira pergunta depois

do anúncio de uma gravidez. Se a

criança não se adaptar ao que é es-

perado do comportamento de uma

menina ou menino, é provável que

passe o resto da sua vida ouvindo a

mesma pergunta — só que em for-

respeito ao tipo de atração, que pode

ser por pessoas do mesmo sexo, do

sexo oposto, os dois ou nenhum (ve-ja quadro na pág. XX). Ou seja, uma

pessoa transexual não é necessaria-

mente homossexual. Na verdade,

transgênero é um termo que abriga

todos que não se identificam com o

gênero atribuído a eles no nascimen-

to e também quem não se identifica

com gênero de forma alguma, que é

neutro, fluido. Como Valentim. “Não

nasci no corpo errado, a sociedade é

que tem uma leitura errada dele”, diz.

Bruce Jenner era um jogador

de futebol universitário quando

seu treinador o convenceu a tentar

o atletismo. Depois de muito trei-

namento, competiu pelos Estados

Unidos nos Jogos Olímpicos de

1976, quando ganhou a medalha de

ouro na prova de decatlo. O último

atleta a levar o título, quatro anos

antes, era um soviético. Em meio

à Guerra Fria, Jenner foi aclamado

como o grande herói norte-ameri-

cano. Foi convidado a dar palestras

motivacionais para inspirar seus

compatriotas durante o conflito.

Mas o maior símbolo vivo do sonho

norte-americano era só uma ence-

nação. Jenner, na verdade, sempre

foi uma mulher presa no corpo de

um homem — no caso, o de um

atleta famoso no mundo inteiro.

Apenas recentemente ele anunciou

que é transexual e, na capa da edi-

ção de julho da revista Vanity Fair, declarou: “Me chame de Caitlyn”.

Em várias partes do mundo, tran-

sexuais ganham espaço na mídia,

como a modelo brasileira Lea T e

a ex-BBB Ariadna. Se por um lado

isso ajuda a aumentar a visibilida-

As palavras usadas nas discussões sobre gênero podem ser incompreensíveis. Em caso de dúvida, recorra a este glossário:

abc do Gênero

AssexuADOPessoa que não sente atração sexual por ninguém nem vontade de fazer sexo

CisgênerOPessoa que se identifica com o gênero designado a ela no nascimento. Exemplo: nasceu com vagina, foi designada mulher e assim se identifica

CissexismOIdeias e discursos segundo os quais o gênero é definido pelo corpo, não pela identidade

CrOssDresserPessoa que usa roupas asso-ciadas ao gênero diferente

daquele designado a ela na hora do nascimento

DrAg queen e DrAg kingArtista performático(a) que se veste com roupas femininas (queen) ou masculinas (king) para apresentações, indepen-dentemente do gênero

HOmOfObiARepulsa e preconceito contra pessoas homossexuais

intersexuAlPessoa que nasceu com geni-tália ambígua, antigamente chamada de hermafrodita (essa palavra não se aplica à espécie humana)

nbNão binária, ou seja, neutra — não se identifica com o gênero masculino nem com o feminino

PAnsexuAlAquele que sente atração sexual por pessoas, indepen-dentemente do gênero

queerOriginalmente era uma ofensa, já que em inglês signi-fica “estranho”, mas passou a ser um termo de afirmação política de todos os “dissi-dentes” — isto é, aqueles que não se encaixam na categoria “heterossexual e cisgênero”

trAnsgênerO / trAnsexuAlPessoa que não se identifica com o gênero determinado no nascimento. Exemplo: foi designada como homem, mas se identifica como mulher

trAnsfObiAPreconceito e discriminação contra pessoas trans, aversão

trAvestiDefinição em disputa. É sinônimo de transexual, mas marginalizado. Ou um tercei-ro gênero. O termo é usado como afirmação política em razão do estigma enfrentado pelos travestis no país

ma de xingamentos e ataques. Não é por acaso

que essa é a primeira pergunta feita a respeito de

um ser humano, e também uma das mais impor-

tantes. Mesmo quando não se fala abertamente

sobre isso, é como se só existissem dois grupos

de pessoas: o dos homens e o das mulheres. Ao

nascer, você é automaticamente colocado num

dos dois, baseado nos seus órgãos genitais. Se

tiver um pênis é menino, se tiver uma vagina,

menina. Dali em diante, sentirá a pressão para

se conformar com as características designadas

a você. Meninos gostam de azul, jogam videoga-

me e são agressivos, enquanto meninas gostam

de rosa, brincam de boneca e são naturalmente

passivas e emotivas. Duas categorias para toda a

raça humana. Será o bastante? De acordo com os

estudos de gênero, um campo de pesquisa acadê-

mica que surgiu dos estudos feministas e pós-es-

truturalistas dos anos 1960, a resposta é não.

*Nome fictício para proteger a identidade do personagem

49

48

Ainda

l i g a m o s

gênero ao se-

xo biológico e

nos acostumamos

a pensar que isso é na-

tural. No âmbito da pato-

logia , os indivíduos que fu-

giam dessa naturalidade foram

chamados de “transexuais” — ou seja, desvian-

tes. Recentemente, com os estudos de gênero,

começaram a pensar que essa designação inicial

e tida como “natural” é também arbitrária. Não

há uma naturalidade exclusiva na relação gêne-

ro-genital. O que existe é uma identidade, uma

forma de se reconhecer. Ela pode ser um senti-

mento de pertencimento, no caso da pessoa cis-

gênero (aquela que se reconhece com o gênero

que lhe foi atribuído ao nascer), ou uma identi-

ficação diferente, no caso da trans, que pode se

reconhecer com o gênero oposto, com nenhum

gênero ou com uma experiência de si que esca-

pa ao sistema binário homem/mulher. Mas nem

toda pessoa que não se reconhece como cisgê-

nero é trans, já que existem nuances e variações

de pertencimento. É o caso da “queer”, classe de

pessoas que não se reconhecem

em nenhum extremo (veja o dicio-nário na página anterior).

Gênero e disciplinaAlex era um menino de 8 anos da

periferia do Rio de Janeiro que gos-

tava de dança do ventre e de lavar

louça. Seu pai, Alex André Moraes

Soeiro, de 34 anos, não aprovava o

jeito afeminado da criança e tentava

corrigi-lo. As surras eram recorren-

tes e tinham como objetivo ensi-

nar o filho a andar como homem.

Como o pequeno não chorava en-

quanto apanhava, o pai batia ainda

mais. Um dia, a criança se recusou

a cortar o cabelo para ir à escola e

o pai resolveu acabar com

aquela desobediência. De

tanto apanhar, o fígado de

Alex foi perfurado e ele so-

freu uma hemorragia in-

terna. Chegou ao hospital

morto, com hematomas

pelo corpo todo e sinais

de desnutrição. Alex pa-

gou com a vida o preço de

não se adequar às normas

de gênero impostas pe-

la sociedade e aplicadas

de forma implacável pelo

próprio pai. Ele não foi o único. Em

2014, 326 pessoas foram assassina-

das no Brasil por não se encaixarem

nessas regras, segundo relatório

do Grupo Gay da Bahia (GGB). É

um número 4% maior do que o re-

gistrado no ano anterior. Entre as

vítimas, 134 gays, 134 travestis, 14

lésbicas, 3 bissexuais, 7 amantes de

travestis e 7 heterossexuais confun-

didos com homossexuais. A men-

sagem que essas estatísticas sobre

violência contra a população LGBT

passa é clara: se você desobedecer

às regras de gênero vai sofrer uma

punição física e pode até morrer. É

o poder coercitivo de gênero como

forma de policiar as pessoas, de

proteção aos cidadãos — família,

hospitais, prisões e escolas — foram

consolidadas como mecanismos de controle.

Mas o filósofo não acreditava que o poder de

coerção tinha uma só origem, como o Estado,

e sim que surgia de diversas fontes: são os mi-

cropoderes que transformam as condutas das

pessoas. Uma das formas de exercer poder é por

meio de discursos. Assim, as piadas, o modo co-

mo nos referimos a alguém e até os xingamentos

contribuem para normalizar alguns comporta-

mentos e estigmatizar outros — exemplo: usar a

expressão “que gay!” quando alguém demonstra

seus sentimentos ou a palavra “viado” ou “traves-

ti” como xingamento. Judith utiliza essa premis-

sa do discurso para tentar dissolver a dicotomia

sexo versus gênero. Para ela, vivemos numa or-

dem compulsória que exige coerência total entre

sexo, gênero e desejo sexual, que são obrigatoria-

mente heterossexuais. A autora sugere, então, a

contestação das expressões de gênero, já que a

identidade é formada com base na repetição de

atos performativos, ou seja, atitudes e gestos que

constroem o que é feminino e masculino.

fora dos livrosPor mais que a diferenciação de gêneros pareça

natural, ela não é. Boa parte dessa explicação está

no papel da medicina na Europa no final do século

18. Com a Revolução Industrial, a população euro-

peia começou a se concentrar em áreas urbanas,

migrando do campo para as cidades. A concentra-

ção de pessoas de diferentes regiões num mesmo

lugar provocou surtos e doenças, que alavancaram

a importância e o desenvolvimento da medicina.

Áreas como psiquiatria, sexologia e psicanálise

viram nisso a oportunidade de categorizar doen-

ças para atrair mais pacientes aos consultórios.

Assim, os especialistas substituíram os padres

no papel de guardiões das práticas sexuais e de-

terminaram os comportamentos aceitáveis e os

patológicos. Tudo que não tinha fins reprodutivos

foi considerado degeneração: homossexualidade,

transexualidade, masturbação, prostituição. Ainda

hoje, a transexualidade é considerada um trans-

torno mental pela medicina, como era a homos-

sexualidade até os anos 1970. “Os critérios ditos

biológicos (anatomia, hormônios, cromossomos,

glândulas) são contraditórios, às vezes incoeren-

tes. É só ver como os endocrinologistas forçam

as desVantaGens de ser inVisíVel

surraVerGonHa nacional

Como é a discriminação de pessoas trans nos EUA, onde há pesquisa sobre o tema:

O Brasil é o país mais violento para pessoas trans, segundo a ONG TransGender Europe:

1.731pessoas trans

foram mortas entre

2008 e 2015

1.350dos assassinatos

aconteceram na América Latina

*As pesquisas foram feitas com dados de assassi-natos reportados à polícia. Não se sabe quantos assassina-tos aconteceram até agora no total

Brasil n o r e s t a n t e d aAmérica Latina,

60%dos assassinatos de pessoas trans*

689 foram no

acordo com Judith Butler, uma

das mais respeitadas filósofas

de gênero da atualidade.

Judith parte das premis-

sas do filósofo francês Michel

Foucault para explicar como

as regras de gênero são per-

formáticas e não passam de

fenômenos repetidos para

simular uma ideia de natura-

lidade. Foucault disse que a

disciplina é um instrumento

de dominação e controle

para domesticar comporta-

mentos divergentes. Com

o Iluminismo, várias ins-

tituições de assistência e

Fontes: Fundação Americana para Prevenção de Suicídio. Instituto Williams (Ucla)

entre 0,25%

e 1% da população

norte-americana se declara

transgênera

3 em cAdA 4transgêneros sofrem abuso

sexual na escola

57%foram rejeitados ou abandonados

pela família

45%69%já ficaram

desabrigados

Violênciafísica ou sexual da polícia

sofreram

70% 30%

das pessoas trans tentaram o suicídio antes de

completar 24 anos

Aos 8 anos, Alex morreu por não se adequar às normas de gêneros

50um antagonismo hormonal entre testosterona e

estrogênio que não existe. Essas explicações de

transexualidade estão impregnadas de hormô-

nios como os fetos estão grudados ao ventre de

suas mães. E não estamos preocupados com a

origem biológica da heterossexualidade”, disse a

GALILEU Marie-Hélène Bourcier, professora da

Universidade de Lille II e uma das principais teó-

ricas queer da França.

Mais ou menos no mesmo período, cientis-

tas começaram a definir as principais diferenças

entre homens e mulheres com base no conhe-

cimento da época, que era fortemente marcado

pelas políticas de gênero — ou seja, a dominação

do feminino pelo masculino. Não é por acaso

que a primeira figura de um esqueleto feminino

só apareceu em um livro em 1759, com o objeti-

vo de deixar evidente a diferença entre homens

(fortes e com o crânio maior que o feminino) e

mulheres (muito mais frágeis). Pouco mais de

um século mais tarde, o biólogo escocês Patrick

Geddes usou a fisiologia celular para explicar

que mulheres são mais passivas e conservado-

ras do que os homens, que seriam mais ativos

e passionais. Segundo Thomas Laqueur, conhe-

cido sexólogo norte-americano, não há dúvidas

de que a criação de teorias

sem embasamento so-

bre diferenças entre

os sexos influenciou

o progresso cientí-

fico, bem como as

interpretações dos

experimentos. Ainda

hoje transbordam

estudos suposta-

mente científicos

que garantem ex-

plicar por que ho-

mens e mulheres

se comportam de

determinada ma-

neira. Nem todos

são descartáveis,

claro, mas é interessante questionar

qual é o interesse por trás dessas

pesquisas e suas influências históri-

cas. A produção de categorias biná-

rias e estáveis consolida relações de

poder entre elas: homem sobre mu-

lher, heterossexual sobre homosse-

xual etc. O binário é uma projeção

arbitrária do “dimorfismo” corpo-

ral, ou seja, a ideia de que existem

dois organismos distintos na espé-

cie humana, um com pênis, outro

com vagina. Mas essa taxonomia

biológica é falha, pois ela é incapaz

de dar conta dos corpos intersexos,

aqueles que nascem com pênis e

vagina, ou com genitália ambígua/

indefinida. Enquadrar as pessoas

em gêneros, desejos e categorias

estáveis é também uma forma de

castração. Quando nos limitamos

a isso, reduzimos e aniquilamos as

possibilidades múltiplas de vivência

do prazer e do desejo. E, claro, mar-

ginalizamos os desviantes.

Vida de desvianteLiége Martins é uma jovem transe-

xual de 19 anos que mora em uma

favela no Rio de Janeiro e iniciou

em segredo um tratamento hormo-

nal. Cresceu com a mãe e a irmã,

com quem dividia as brincadeiras

sem estereótipos de gênero. Tem

dificuldades para sobreviver em

um ambiente tão hostil e escasso

de possibilidades como a periferia

carioca. Por isso, criou um grupo no

Facebook chamado Cismitério, que

reúne milhares de pessoas trans,

principalmente jovens, que ainda

estão em período de descoberta e

querem trocar experiências sobre

corpo e identidade. “Ninguém con-

trata travesti, e às vezes nem sequer

estudo elas têm, mas precisam de

um emprego cada vez mais cedo pa-

ra ajudar ou sustentar a família, cus-

tear o mínimo que puder para fugir

do iminente futuro de prostituição”,

disse Liége a GALILEU. Segundo a

Associação Nacional das Travestis

(Antra), 90% das travestis e tran-

sexuais brasileiras se prostituem. Há

quem pense que essa é uma escolha

quando, na verdade, a comunidade

TT (Travestis e Transexuais) sofre

imensa discriminação no mercado

de trabalho — o que resta é a prosti-

tuição e empregos como atendentes

de telemarketing ou cabeleireiras.

Bernardo Mota foi designado

menina quando nasceu, mas desde

pequeno fugia dos papéis ditos femi-

ninos ao jogar bola e empinar pipa.

Quando se descobriu trans, contou

à família e foi massacrado: tenta-

ram reprimi-lo, foi alvo de piadas e

insultos verbais. Sentiu-se expulso

de casa mesmo sem ninguém tê-lo

mandado embora. Sofreu crises de-

pressivas por ser ridicularizado e, de-

samparado, tentou suicídio. Rompeu

relações com a família e mudou-se

de Brasília, onde seus pais moram

até hoje, para Uberlândia, uma das

poucas cidades do Brasil que dispo-

nibilizavam acompanhamento para

transição hormonal. Assim que che-

gou à cidade, esse ambulatório foi

desconstrução

Sexo, gênero, sexualidade e identidade são coisas diferentes e podem variar num espectro bastante amplo. Entenda:

iDentiDADe De gênerOAinda hoje persiste a ideia de que só podemos ser “homem” ou “mulher”. Mas essas são apenas duas categorias, e há uma variação enorme entre elas, que pode ser entendida como “queer”

exPressãOA forma como nos com-portamos é influenciada pelo que sempre foi considerado “feminino” e “masculino”, mas essas características são mais fluidas do que parecem

sexONem mesmo os órgãos sexuais do ser humano, extensivamente estu-dados pela biologia, são tão binários assim

OrientAçãO sexuAlNascer com determinado órgão sexual e identifi-car-se com certo gênero não define por quem nos sentimos atraídos

B i n á r i a

Ícone: LVIS / The Noun ProjectFonte: It’s Pronounced Metrosexual.com

Sexo genitaiS

expreSSãomovimentoS

identidadecérebro

orientação coração

queer

mu

lHer

HOmem

vAginAintersexO

Pên

is

femin

inO

AnDróginO

mAsCulinO

HeterOssexuAl

bissexuAl /

PAnsexuAl / etC

HOmOssexuAl

Rodrigo Zanini, 22 anos, não é modelo.

Trabalha com moda, é homossexual e se veste

de forma andrógina: seu visual é feminino,

mas ele procura mesclar com roupas masculinas

52

1 Não abandone. Pode ser difícil de entender o que é transgênero no início,

mas acredite: a transição para a pessoa trans* é muito mais. Respeite-a incondicionalmente

2 Se você não entende as necessidades dela, bus-que informações a res-peito e, se possível, pro-

cure profissionais aliados à causa

3 Pergunte como a pessoa prefere ser chamada — ou seja, seu nome social — e quais

pronomes usar (por exemplo “seu” ou “sua”, “ele” ou “ela”). E passe a se referir a ela assim

4 Não faça suposições so-bre a orientação sexual da pessoa trans*. Gêne-ro diz respeito a identi-

dade; orientação sexual trata-se de por quem a pessoa se sente atraída

5 Jamais pergunte se ela fez cirurgia de mudança de sexo. É indelicado. Se a pessoa se sentir

confortável, falará a respeito. Entenda que terapia de hormônios e cirurgia não são algo necessá-rio para a transição de todos

6 Apoie iniciativas de inclusão, como banheiro neutro, escolha de nome em documentos

oficiais, escolha de tipo de unifor-me etc. E passe as informações que aprendeu adiante, quando o assunto for transexualidade

como lidamossuspenso, o que o fez se

hormonizar por conta

própria, com base

em informações

encontradas na

internet e com

medicamentos

clandestinos.

Ativista trans bis-

sexual e membro

do Instituto Brasi-

leiro de Transmasculi-

nidades (Ibrata), Mota tem

sofrido para conseguir uma

vaga no mercado de traba-

lho. “Desde que saí de

casa fiz entrevistas para

todo tipo de emprego,

levava meu currículo com

meu nome social e passava

em todas as fases, até mostrar

meus documentos, onde consta o nome de regis-

tro. A vaga desaparecia. Passei por no mínimo dez

entrevistas em que fui dispensado quando soube-

ram que sou transgênero”, conta.

O que aconteceu com Bernardo no mercado

de trabalho e na família é chamado de transfo-

bia — aversão à transexualidade e preconceito.

Infelizmente, no Brasil não há legislação que a

criminalize, o que significa que Bernardo não

pode tomar nenhuma medida judicial contra o

preconceito. Em geral, a situação de direitos de

indivíduos trans é precária no país. Não existe

legislação específica que reconheça a identidade

de gênero, apesar de haver um projeto de lei pa-

ra isso: a Lei João Nery, de autoria do deputado

federal Jean Willys (PSOL/RJ) em parceria com a

deputada Érika Kokay (PT/DF). O projeto reco-

nhece a identidade de gênero como um direito

e o tratamento de acordo com sua identidade

pessoal. Outro projeto de lei, o PL 8.032/2014,

da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), prevê

a aplicação da Lei Maria da Penha às pessoas

transexuais que se identifiquem como mulheres.

É possível citar também outros avanços, como

a alteração de nome conforme o gênero sem a

obrigação de cirurgia de transgenitalização, bu-

rocracia imposta anteriormente, e a publicação

da Resolução 12/2015 do Conselho Nacional de

Combate à Discriminação e Promoções dos

Não existe uma forma correta de ajudar pessoas trans* na família, no grupo de amigos ou na relação amorosa, mas algumas dicas podem ajudá-lo a ser mais empático:

Autora das fotos desta matéria, Julia Rodrigues criou o #mamilolivre, projeto que promove a discussão sobre igualdade de gênero

Direitos LGBT, que determinou o

reconhecimento do uso de nome

social em documentos, formulá-

rios e sistemas de informação de

escolas e universidades, além da

utilização de banheiros, vestiários e

uniformes, segundo a identidade de

gênero. Ainda assim, sem um de-

bate amplo sobre discriminação de

gênero, o tabu continua impedindo

que esses avanços saiam do papel

no Brasil. “O grande problema nes-

se processo é que as instituições

educacionais pouco investem na

educação e orientação sobre o real

objetivo do nome social. Tal afirma-

ção é corroborada com os diversos

casos em que

professores e

servidores de

instituições educacionais não estavam prepa-

rados para atender e orientar outros alunos

conforme a mudança, causando grande cons-

trangimento”, diz Wilker Cerqueira, cientista

jurídico especializado em direitos humanos.

No final do século 19, o biólogo Patrick

Geddes disse que “o que foi decidido entre

protozoários pré-históricos não pode ser anu-

lado por leis do Parlamento”. Será mesmo que

o ser humano, única espécie conhecida capaz

de criar o fogo e desenvolver tecnologias de

exploração espacial, é escravo de protozoá-

rios? Ou de definições biológicas e religiosas

de anos atrás, focadas na diferença e não na

semelhança? Se a espécie humana tem um

cérebro altamente desenvolvido, com capaci-

dades como raciocínio abstrato, linguagem e

introspecção, não faz muito sentido continuar

tentando decifrar o código dos comportamen-

tos sexuais com base em pesquisas de la-

boratório que tentam explicar como as

pessoas funcionam na média. Ou in-

sistir que só existe preto e branco,

e não nuances de tudo. Se é ape-

nas um gene a cada 100 mil

que diferencia homens de

mulheres, por que ainda

focamos as diferenças?

A natureza humana

pode ser muito mais

fluida e flexível do

que nos acos-

tumamos a

pensar.

Davi nasceu menina, mas aos 7 anos molhou

todas as suas roupas cor-de-rosa para não ter de usá-las. Hoje é bem andrógino e gosta de pessoas, não importa

se homens ou mulheres