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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CARMEN CINIRA SIQUEIRA LEITE TRAJETÓRIAS DE PROFESSORAS NEGRAS: VIDA ESCOLAR E PROFISSÃO CUIABÁ-MT 2006

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

    CARMEN CINIRA SIQUEIRA LEITE

    TRAJETÓRIAS DE PROFESSORAS NEGRAS: VIDA

    ESCOLAR E PROFISSÃO

    CUIABÁ-MT 2006

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

    INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EDUCAÇÃO, CULTURA E SOCIEDADE

    CARMEN CINIRA SIQUEIRA LEITE

    TRAJETÓRIAS DE PROFESSORAS NEGRAS: VIDA ESCOLAR E PROFISSÃO

    CUIABÁ-MT 2006

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    CARMEN CINIRA SIQUEIRA LEITE

    TRAJETÓRIAS DE PROFESSORAS NEGRAS: VIDA ESCOLAR E PROFISSÃO

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação, na Área de Contração: Educação Cultura e Sociedade, linha de pesquisa: Movimentos Sociais, Política e Educação Popular.

    Orientadora: Profª Drª Maria Lúcia Rodrigues Muller

    Cuiabá-MT 2006

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    Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

    Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

    Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

    L533t Leite, Carmen Cinira Siqueira. Trajetórias de professoras negras: vida escolar e profissão./ Carmen Cinira Siqueira Leite. Cuiabá: UFMT, 2006. Dissertação – Mestrado em Educação – UFMT Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Rodrigues Muller 1.Professoras Negras. 2.Identidade Racial. 3.Ascensão Social.. I.Título. CDU 37 : 316.483

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    À Emilie Carine, que, como eu, encontre bons conselheiros e ótimos amigos e amigas, brancos e negros.

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    À “Olorum” e o seu reino de liberdade, justiça e paz. Agradeço pela luz que me guiou

    nesta trajetória.

    Às minhas irmãs: Elinéia e Joanice e meus irmãos: Ésio e Claudio; quero que saibam que

    sem o apoio incondicional de vocês seria mais difícil concluir esta tarefa.

    A meu pai, por quem tenho profunda admiração. Agradeço pelos ensinamentos de vida.

    A meu companheiro Amilton por sua grandeza e força de viver. Cuja generosidade seria

    impossível de agradecer. Cuja presença foi fundamental no decorrer do mestrado.

    Às amigas: Ângela, Lori e Wanda pela amizade estruturada no decorrer do mestrado.

    Ao povo do NEPRE pelo apoio e incentivo.

    Às mulheres negras, que me ensinaram a enfrentar e celebrar a vida. E que gentilmente

    cederam parte de seu valioso tempo para que as entrevistasse e que se dispuseram a falar

    um pouco sobre suas vidas.

    Às companheiras, Telma Maria, Thelma e Elza pela colaboração na entrevista exploratória.

    Aos professores: Drº. Luiz Augusto Passos e Drª Moema De Poli Teixeira, pelas

    contribuições no exame de qualificação.

    E por fim, eu seria relapsa se não mencionasse uma mulher extraordinária que transformou

    a minha vida profundamente. “Minha mãe”. Companheira de ofício, exemplo de vida. Sou

    grata pelas preces em que rogastes por mim.

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    RESUMO

    Este estudo é sobre historias de vida de professoras negras. O objetivo foi investigar as trajetórias de vida escolar e profissional de professoras negras da Rede Municipal de Educação de Cuiabá. Buscou-se entender qual o processo vivenciado por elas desde o inicio da escolarização até assumir a docência. Suas trajetórias revelam o que é ser professora negra numa sociedade racista e sexista bem como a forma como construíram suas identidades racial, feminina e profissional e realizaram seus projetos de vida. Utilizou-se metodologia qualitativa e para a coleta de depoimentos adotou-se a técnica de historia de vida. Apesar de serem historias diferentes, em determinados momentos revelam persistência e autodeterminação para sobrepor as dificuldades na trajetória escolar até assumir a docência. As narrativas fornecem pistas sobre a existência da autonomia no local de trabalho. Por outro lado, veem-se as estratégias encontradas para driblar situações com a discriminação racial e de gênero. Para a concretização do projeto de vida tendo em vista a docência; a família aparece nos relatos como aquela que oferece apoio moral, afetivo, simbólico e financeiro. Portanto, dar voz às mulheres negras, implica em dar visibilidade a esse sujeito silenciado pela história. Constata-se que ainda é pouco o número de mulheres negras que tem obtido visibilidade e a ascensão social através da educação. Palavras-chaves: Professoras Negras; Identidade Racial; Ascensão Social.

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    ABSTRACT

    This study is about the life stories of black teacher women. The objective is concerned with school and family background of black teachers from Cuiabá Education Secretariat. It was necessary to understand what they have been living since they started their school life until they have become teachers. The challenges these teachers faced reveal what it is to be a black teacher in a racist, sexist society and the way they have constructed their racial, feminine, professional identity and achieved their goals. It was used qualitative methodology and to collect data, it was adopted the technique of life story. Although there are different stories, at a particular point, the stories reveal that the black teachers had persistence and self-determination to overcome the difficulties during school process until becoming teachers. The narratives provide clues about the existence of autonomy at workplace. On the other hand, it´s possible to notice the strategies found to avoid situations with racial and gender discrimination. To achieve the project of beeing a teacher; family appears in the reports as one that provides moral, emotional, symbolic and financial support. therefore, giving black women the opportunity to speak out, implies giving visibility to this people who were silent by history. The number of black women who have achieved visibility and social mobility through education is still very low. Key words: Black teachers, Identities Racial, Social Ascension.

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO..................................................................................................................12 I - AS CORES DAS DESIGUALDADES.........................................................................23 1.1 – Marcas das Desigualdades Raciais..........................................................................23 1.1.2 – Desigualdades raciais na educação...........................................................................24 1.1.3 – Distribuição de renda e mercado de trabalho...........................................................27

    II - DAS IDENTIDADES...................................................................................................30 2.1 – As Identidades na Pós-Modernidade.......................................................................30 2.1.2 – Identidade feminina..................................................................................................34 2.1.3 – Identidade profissional.............................................................................................39 2.1.4 – Identidade racial.......................................................................................................42 2.1.5 – A cor das entrevistadas.............................................................................................46 2.1.6 – Cabelo e corpo: nas relações sociais........................................................................52 2.2. – Cabelo Crespo: Na Mira dos Observadores.........................................................59 2.2.1 – Ser Mulher Negra no Brasil......................................................................................63 III - AS TRAJETÓRIAS...................................................................................................74 3.1 – Trajetórias que se Cruzam e se Distanciam............................................................75 3.1.2 – Preconceito racial, discriminação racial e racismo na trajetória de vida.................84 3.1.3 – Discriminação racial nas relações sociais................................................................87 3.1.4 – O papel da escola na desconstrução do racismo.......................................................95 3.1.5 – A escola: ação pedagógica e conflito.....................................................................102 3.1.6 – A temática racial: um compromisso das professoras negras..................................109 IV - A DOCÊNCIA.........................................................................................................115 4.1 – A Profissão Docente................................................................................................115 4.1.2 – Mulheres ocupam o magistério..............................................................................118 4.1.3 – A missão civilizadora.............................................................................................120 4.1.4 – Mulher negra no magistério...................................................................................124 4.1.5 – O magistério escolha ou vocação...........................................................................128 4.1.6 – Projeto de vida 4.2. – As Redes de Apoio ou Solidariedade....................................................................148 4.2.1 – Mobilidade social e ascensão social.......................................................................157 4.2.2 – A autonomia na atividade docente.........................................................................162

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    CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................164 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS...........................................................................170

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    INTRODUÇÃO

    A idéia de realizar uma investigação sobre trajetória de professoras negras que

    atuam no magistério cuiabano nasceu de um desejo pessoal ao participar do projeto

    denominado “Cultura e as minorias: ações educativas”, implementado pela Secretaria

    Municipal de Educação de Cuiabá.

    A hipótese inicial para a realização dessa proposta era que na sociedade

    brasileira, o racismo, embora silenciado e camuflado, fizesse parte da realidade da grande

    maioria de indivíduos que compõem a população negra, assim, resultando em

    desigualdades sociais, econômicas, educacionais, etc. E a escola como uma instituição

    dessa sociedade não estaria imune aos efeitos perversos do racismo, visto que adotam em

    suas práticas esse mesmo silêncio e caráter dissimulador.

    Assim, a SME, a partir do projeto, “Cultura e as minorias: ação educativa”

    levou essa discussão para dentro das escolas através de oficinas, concursos e reuniões

    pedagógicas com professores e coordenadores pedagógicos. Percebeu-se a necessidade de

    um debate mais profundo sobre essa questão tendo em vista o despreparo do corpo docente

    para lidar com a temática de raça, gênero enfim as minorias.

    No entanto, nas gestões administrativas seguintes ocorreu a interrupção do

    referido projeto, que ficou desse modo, sem uma avaliação, no sentido de conhecer os

    resultados alcançados no período de sua realização. Apesar de não ser este o objetivo desta

    pesquisa, mas, o que importa aqui e esclarecer que no resgate histórico das políticas

    educacionais implementadas pela rede de ensino de Cuiabá, as questões raciais já

    configuraram como ponto nevrálgico no cenário educacional.

    É no contexto desse cenário mais geral delimitado pelo magistério da cidade

    de Cuiabá, capital de Mato Grosso, que a experiência escolar e profissional de professoras

    negras que nele atuam torna-se o centro do que propõe este estudo.

    A pesquisa tem como objetivo entender como e qual foi o processo vivenciado

    pelas professoras negras desde o inicio de sua escolarização até assumirem a docência, a

    partir de suas trajetórias de vida escolar e profissional, reconstruídas por meio de memórias

    individuais.

    A memória individual é a expressão da subjetividade de cada individuo, ou

    seja, dos gostos, dos hábitos, dos desejos, das aspirações acerca das experiências vividas

    no contexto de uma coletividade. Logo, o individual e o coletivo se intercruzam. Como diz

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    Maria Izaura Pereira Queiroz (1998) existe um “ponto de intersecção das relações entre o

    que é exterior ao individuo e o que traz em seu intimo”. (p.40)

    Desse modo, tem-se que a memória individual das professoras negras é

    construída como parte de uma memória coletiva, que diz respeito a uma história do negro

    em contexto brasileiro e cuiabano e, ainda, a uma memória especifica da docência local.

    Neste trabalho, buscam-se apreender por meio de memórias e narrativas de

    professoras, a respeito de suas trajetórias de vida, as lembranças das experiências pessoais,

    vividas ou não com relação à questão racial, na tentativa de compreender a incidência ou

    não, dessas experiências em suas trajetórias escolares e profissionais, acerca da mesma

    questão.

    Lembrar, entretanto não significa reviver as experiências tais como elas

    aconteceram, mas, evocar do passado os fatos e as situações que, gravadas na memória

    adquiriram um significado particular para o momento atual da vida. Desse modo, “a

    lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda dos dados

    emprestados do presente” (HALBWACHS, 1990, p. 71).

    Ecléa Bossi (1990) também enfatiza que:

    A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. (BOSSI, 1990, p.17)

    O trabalho com a memória é indissociável da organização social da vida e, por

    isso, marca a construção da própria trajetória dos indivíduos, através de uma ordenação

    coerente e continua dos acontecimentos que determinam suas existências (POLLAK,

    1989). Sendo assim, há uma forte relação entre memória e trajetória.

    A trajetória, de acordo com Pierre Bourdieu (1988), nada mais é do que uma

    “serie de posições sucessivamente ocupadas por um agente (ou mesmo grupo), num espaço

    que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (p. 189). Essa

    noção de trajetória refere-se ao deslocamento dos sujeitos no espaço objetivo da vida

    social, permitindo considerar as inter-relações que necessariamente existem entre os dois

    aspectos da abordagem biográfica: um que informa sobre o social e outro que fala sobre o

    sujeito. Sendo assim, a narrativa biográfica, responsável por recuperar, através da

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    memória, a trajetória dos sujeitos, tem muito da reflexão que este sujeito faz sobre si

    mesmo e também sobre sua própria ação.

    Para a antropóloga Suely Kofes (2001), a noção de trajetória traçada por

    Bourdieu deve ser entendida a partir da perspectiva do sujeito e de sua narrativa, pois ao

    contarem suas vidas, recorrendo à memória, os indivíduos estabelecem uma seqüência

    lógica dos acontecimentos vividos e a ela atribuem sentidos e significados próprios. Dito

    de outra forma, os indivíduos se deslocam pelo espaço objetivo que constitui as relações

    sociais, imprimindo sobre ele suas marcas, suas interpretações, enfim, suas subjetividades.

    Com isso, memória e trajetória se intercruzam e é neste intercruzamento que se

    reconstrói aqui, a experiência vivida pelas professoras cuiabanas, principalmente no

    universo da escola, como alunas e como profissionais da educação.

    Neste sentido, rever o passado, representado pelas experiências vividas por elas

    ao longo de suas trajetórias de vida, consiste em modificar o presente e em compreender

    como isso ressignifica o futuro, tanto o delas como sujeitos portadores de uma condição

    especifica, quanto de suas posturas pedagógicas frente a questão racial.

    De acordo com Walter Benjamin (1985) ao falar sobre conceito de história,

    passado e presente se conectam, se entrecruzam e se transformam.

    O passado se transforma porque este assume uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; o presente se transforma porque se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se não a descobrirmos, inscrita nas linhas do atual. (BENAJAMIN, 1985, p. 16).

    Boaventura de Souza Santos (1997) também evoca o passado para “pensar a

    transformação e a emancipação sociais, reinventando-o e restituindo-lhe a capacidade de

    revelação” (p. 103), sobretudo no campo pedagógico. Exemplar, neste debate é ainda, seu

    texto para uma Pedagogia do Conflito (1996), no qual propõe que se estabeleça o conflito

    entre o passado e o presente, na tentativa de desestabilizar os modelos epistemológicos

    dominantes e de fazer emergir um novo tipo de relacionamento entre saberes, entre pessoas

    e grupos.

    É neste sentido que evocar do passado e do presente, por meio das narrativas,

    as lembranças das professoras de Cuiabá, tendo a memória como agente desencadeador

    desse processo, torna-se possível desestabilizar as idéias pré-concebidas sobre a questão

  • 16

    racial na escola e, ainda, que as professoras revejam seus conceitos, suas práticas

    pedagógicas para que possam construir novos relacionamentos no universo da escola.

    Alguns caminhos foram percorridos até chegar às dezesseis professoras que se

    constituem aqui, como referência para o mergulho em profundidade das questões

    propostas. Esses caminhos envolveram o trabalho de campo e a definição da metodologia

    utilizada.

    Em 2004, na tentativa de encontrar professoras negras atuantes na rede

    municipal de ensino de 1º, 2º e 3º Ciclos e de tornar visível sua trajetória no magistério

    cuiabano foi realizado um mapeamento do número de professoras negras, em cada uma das

    escolas que compõem o universo pesquisado, considerando o ponto de vista da equipe

    gestora (diretor, coordenador pedagógico e secretario escolar) sobre quanto, quais e

    quantas professoras seriam negras ou não.

    O mapeamento operou com a perspectiva pessoal dos informantes, sem a

    interferência do olhar da pesquisadora, sendo que nesse primeiro momento todos os

    informantes identificaram como negras as professoras que tinham a pele preta. Com isso, o

    termo: negra foi empregada pelos informantes como sinônimos do termo preto.

    Ainda em dezembro do mesmo ano, realizou-se pesquisa exploratória para

    testar o instrumento de coleta de dados (roteiro de entrevista). Para essa etapa vali-me da

    relação de amizade, contei com a participação e colaboração de três professoras de minha

    relação pessoal.

    Já em 2005, retomei o universo com o propósito de estabelecer o contato e

    identificar, por meio da atribuição feita por mim, e da autoatribuição pelas professoras,

    assim, o termo negra foi utilizado para referir-me a todas as professoras que possuíam o

    fenótipo, ou seja, traços físicos (cor de pele, formato de nariz, lábios, tipo de cabelo) que

    indicassem uma possível pertinência racial ao grupo negro, independente das nuanças da

    cor da pele.

    Com essa perspectiva em mente, fui em busca das professoras negras, sujeitos

    desta pesquisa. Num primeiro momento participei da assembléia do sindicato dos

    profissionais da educação e como observadora selecionava as professoras que de acordo

    com os critérios assumidos quanto ao fenótipo. (cor da pele, independente da tonalidade,

    ser mais clara ou mais escura, e outros traços físicos), foram identificadas e consideradas

    como negras, a partir da atribuição e dos critérios adotados.

  • 17

    No entanto, no final da reunião, com muita cautela conversava com tais

    professoras, explicando o tema da pesquisa e buscava indícios da autoatribuição que

    tinham de si mesmas. A autoatribuição efetivamente dependeu da atividade posterior com

    as professoras, mediante a coleta de depoimentos e entrevistas.

    Vale ressaltar que nesse momento o contato com as professoras também se deu

    via relação de amizade, estabelecida através de amigos pessoais que me apresentavam às

    suas amigas, assumindo a função de intermediários para se chegar às outras professoras.

    Outro momento também muito importante foi realizado através de visitas a

    algumas escolas que são administradas por diretoras, também minhas amigas pessoais, que

    conheço de longas datas. Essa visita teve como objetivo conhecer o quadro de professores

    das escolas tendo a clara intenção de selecionar as professoras que contemplassem os

    critérios adotados. Nesse momento algumas professoras, após concordar em participar da

    pesquisa, também indicavam outra colega, da mesma escola e, também de outras escolas.

    Assim, fui seguindo as informações daqueles que considero como colaboradores.

    A intenção inicial era selecionar somente dez sujeitos, número definidos por

    mim e minha orientadora como ideal, no entanto, com as indicações dos colaboradores

    chegou-se a dezesseis, privilegiando assim algumas indicações.

    No processo inicial para além dos termos de classificação, as conversas

    estabelecidas com as professoras permitiram, também, perceber o interesse ou a resistência

    em falar sobre um assunto tão controverso e difícil de ser discutido. No entanto como

    pesquisadora, mulher e professora, outros caminhos gradativamente se abriram para vencer

    tais resistências, possibilitando intensas trocas, principalmente no momento das entrevistas.

    As entrevistas, em sua maioria, foram realizadas no ambiente escolar, somente

    duas professoras optaram por realizá-las em sua casa. O dia e horário foram escolhidos por

    elas, demandando tempo e preparo no sentido de buscar maiores evidencias do até então

    percebido e obtido com os passos anteriores, e em caráter exploratório, como meio de

    aproximação do objeto e seleção mais precisa da realidade investigada.

    As informações coletadas sobre a auto atribuição das professoras, sobre suas

    impressões com relação à questão racial na vida escolar e profissional, consistem num

    mapeamento geral do tema aqui proposto.

    O conhecimento desse universo permitiu selecionar dezesseis professoras

    negras atuantes no magistério cuiabano, visando com elas reconstruir suas trajetórias de

    vida. São essas professoras cujas experiências foram várias vezes mencionadas nas

  • 18

    conversas estabelecidas com coordenadores, diretores de escolas e com outras professoras.

    São elas, portanto, por diferentes motivos, professoras importantes no cenário educacional

    de Cuiabá.

    Para a etapa de reconstrução das trajetórias de vida das professoras, a

    metodologia qualitativa da história oral se fez necessária, pois possibilita compreender os

    processos, os acontecimentos e as relações sociais, a partir da perspectiva dos agentes nelas

    envolvidos, e do debate teórico que a fundamenta.

    Para Marcelo Kunrath Silva (1999, p. 116) a história oral constitui um método

    que integra um campo das chamadas metodologias qualitativas, ou seja, integra um campo

    de construção nas Ciências Sociais, sobre como abordar o objeto de pesquisa teoricamente

    construído. Como núcleo deste campo, podemos localizar a preocupação em apreender os

    processos, acontecimentos e relações sociais, a partir da perspectiva dos dados, a história

    oral confere centralidade ao que os agentes sociais comunicam, compreendendo estes

    elementos, como fundamentais para a reconstrução, compreensão e explicação de processo

    sócio histórico.

    É neste sentido que a noção de experiência humana defendida por Thompson

    (1982, p.182) permitiu compreender a perspectiva dos agentes como sendo o ponto de vista

    de homens e mulheres que se assumem como sujeitos, “não como sujeitos autônomos

    indivíduos livres, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações

    produtivas determinadas como necessidades, interesses e como antagonismos; e em

    seguida tratam essa experiência em sua cultura (...) das mais complexas maneiras (...) e em

    seguida agem, por sua vez, sobre sua situação determinada”.

    Neste caso, partir da perspectiva dos agentes sociais, ou melhor, das dezesseis

    professoras, é partir de suas subjetividades, de suas representações acerca das experiências

    vividas e observadas, as quais refletem e podem explicar a realidade objetiva caracterizada

    pela discriminação, pelo preconceito e pelo racismo, fora e dentro do universo da escola.

    É ainda, “dar voz” às experiências daqueles que foram silenciados pela história

    oficial ou memória nacional, as mulheres e os negros, portanto as mulheres negras, fazendo

    emergir o que Pollak (1989, p.04) chamou de memória subterrânea. Para ele, “ao

    privilegiar a analise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a historia oral

    ressalta a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas

    minoritárias e dominadas, se opõe à memória oficial, no caso a memória nacional”.

  • 19

    A história oral, como metodologia estabelece e ordena procedimentos de

    trabalho, apresenta formas distintas de coleta das fontes orais. São elas: histórias de vida,

    depoimentos orais, dentre outras, utilizadas de acordo com o tipo de pesquisa que se quer

    realizar e com os dados que se pretende obter (QUEIROZ, 1988; LANG et al., 1998;

    SIMSON, 1996).

    Nesse sentido, de acordo com Maria Izaura Pereira Queiroz (1988), na técnica

    de história de vida o informante narra sobre sua existência no decorrer do tempo, buscando

    reconstruir todas (ou quase todas) as experiências por ele vividas. A narrativa ocorre

    através de constantes avanços e recuos e a interferência do pesquisador deve,

    preferencialmente, ser mínima. A história de vida é uma técnica que demanda tempo e, por

    isso, não se esgota em uma ou duas entrevistas. Embora o pesquisador dirija as entrevistas,

    quem decide o que vai relatar é o narrador, ele é que determina o que é relevante ou não

    narrar, por isso é difícil fazê-lo concluir, pois há sempre mais e mais a narrar. No entanto,

    cabe destacar que, apesar de intervir minimamente, foi o pesquisador quem escolheu o

    tema da pesquisa e propôs os problemas.

    Becker (1999, p.11) traz contribuições importantes ao afirmar que a “história

    de vida, mais do que qualquer outra técnica, exceto talvez a observação participante, pode

    dar sentido à superexplorada noção de processo”. O autor destaca ainda, que a própria

    historia de seus atores é uma mensagem viva e vibrante, que vem de lá, que nos conta o

    que significa ser um tipo de pessoa que nunca encontramos face a face.

    A técnica empregada nesta pesquisa foi de depoimentos orais. A utilização

    desta técnica exigiu estabelecer um recorte nas narrativas pessoais das dezesseis

    professoras, destacando dessas trajetórias, as experiências com a discriminação racial na

    infância e na fase adulta, particularmente no universo da escola: como alunas e como

    profissionais da educação. O destaque foi dado, portanto às trajetórias escolares e

    profissionais destas professoras e às suas experiências com relação à questão racial.

    A coleta das trajetórias de vida das professoras foi realizada mediante

    depoimentos gravados em varias sessões de no máximo uma hora e meia de duração; que

    foram posteriormente transcritas e seus resultados, sistematizados através dos temas:

    família, escolha pelo magistério, mulher negra, identidade, discriminação racial e projetos

    de vida.

    Para as entrevistas houve a aplicação de um roteiro previamente elaborado e

    utilizado apenas como guia para a fala das professoras. As intervenções durante os

  • 20

    depoimentos foram feitos à medida que outras perguntas se faziam necessárias e para

    elucidar questões não abordadas.

    As anotações no caderno de campo foram igualmente importantes na coleta de

    dados em todas as etapas, e particularmente na coleta dos depoimentos, posto que

    permitissem recompor os gestos, as emoções, as impressões da pesquisadora e,

    principalmente o não dito no contexto das narrativas, tão fundamentais no processo de

    análise.

    A metodologia oral mostrou-se imprescindível em todos os seus aspectos:

    naqueles que revelam suas potencialidades e possibilidades, como por exemplo, na relação

    entre a pesquisadora e as professoras, e naqueles que revelam seus limites. A necessidade

    de relativizar as falas dos sujeitos da pesquisa, de não vê-las como verdades absolutas,

    constitui-se num cuidado sempre presente, de modo a observar um dos limites dessa

    metodologia.

    Na busca por mulheres negras atuantes no magistério de Cuiabá, cidade em que

    nasci, cresci e onde vivo até hoje, e no encontro com as experiências vivenciadas por elas

    no decorrer de suas trajetórias de vida, especificamente em suas trajetórias: escolar e

    profissional; encontrei a mim mesma como mulher, professora e pesquisadora.

    Segundo Miriam Pilar Grossi (1992) “só se encontra o outro, encontrando a si

    mesmo”. (p.15), ou pode-se dizer de outro modo, “o encontro de si mesmo ocorre a partir

    do encontro com o outro” (p. 16). Ao (a) pesquisador (a) que investiga um objeto similar a

    si mesmo (a) é possível “mergulhar” em sua subjetividade e, conseqüentemente,

    redimensionar sua identidade pessoal e profissional.

    Ao trocarmos experiências estabelecemos o compromisso de refletir sobre

    quem somos sobre o que fazemos e sobre o que poderemos fazer como mulheres e

    professoras. Esta reflexão nos foi imposta pela metodologia da história oral, a partir da

    qual o entrevistador e os entrevistados não continuam os mesmos.

    De acordo com Le Ven, et al (1997) o pesquisador, ao investigar um

    determinado grupo ou comunidade, estimula o grupo a compreender-se como agente de

    transformação social e ao mesmo tempo também passa a:

    Refletir sobre sua própria vida, a partir do depoimento do outro. Os diferentes pontos de vista, concepções de mundo e modos de atuação proporcionados pelo entrevistado suscitam no entrevistador uma relação sobre si mesmo, e novos questionamentos sobre sua experiência e projeto

  • 21

    de vida. Assim sendo, podemos inferir que os indivíduos não continuam os mesmos. (LE VEN, et et al,1997, p. 221)

    Considera-se que a análise dos relatos obtidos envolveu um processo de

    reflexão e definição dos pontos a serem interpretados, a partir da relação vivenciada com

    os sujeitos da pesquisa, no decorrer do trabalho de campo. Há que se considerar, que este

    foi um processo complexo e demorado, que sofreu transformações; pois se considerou o

    momento e também a perspectiva em que os pontos foram abordados. Por outro lado, há a

    atuação das concepções teóricas, que torna alguns pontos mais relevantes que outros.

    Assim, a partir das leituras do material de campo, a tarefa seguinte foi definir

    qual a forma para organizá-los. Decidiu-se estruturar em tópicos, que aqui apresentados

    colocam em evidência os temas abordados frente a problemática anunciada ao investigar as

    trajetórias de vida escolar e profissional das professoras negras, sujeitos desta pesquisa.

    Convém lembrar que, o que se apresenta aqui em alguns momentos são idas e

    vindas a processos históricos, o que chamo de recuos históricos a determinados períodos

    que me parecem fundamentais para melhor elucidar a questão abordada.

    A relação de cumplicidade e de parceria entre a pesquisadora e as professoras

    negras possibilitou o estudo da problemática proposta pela investigação, resultando na

    estrutura da dissertação, que está dividida em quatro capítulos:

    Primeiro Capitulo: As Cores das Desigualdades - são apresentados os números

    que indicam a prática de discriminação por cor, que se operam abertamente na sociedade

    brasileira. Através dos Indicadores Sociais do IBGE e de pesquisas relacionadas a esta

    temática, apresenta-se a desigualdade racial nas diversas instâncias: no mercado de

    trabalho, distribuição de renda, educação, nível de pobreza, entre outros. Aprofunda-se

    neste capitulo, sobre as desigualdades raciais e de gênero por se tratar do objeto da

    pesquisa.

    Segundo Capitulo: Das Identidades - é abordado o processo complexo das

    identidades no contexto da globalização, que para Hall (2003) as identidades são plurais. E

    ainda a identidade a partir da visão dos movimentos sociais, as trajetórias de vida das

    professoras negras em relação ao processo de construção de identidades.

    Terceiro Capitulo: As Trajetórias - propõe uma reflexão sobre as trajetórias

    escolares e profissionais das professoras negras e a vivencia com a discriminação racial na

    escola e em outros espaços sociais, bem como as estratégias utilizadas como forma de

    enfrentamento a essa situação. Realiza-se ainda, uma reflexão sobre os conceitos de

  • 22

    racismo, discriminação racial, preconceito racial e democracia racial; e também o

    desdobramento desses termos na formação docente e na prática pedagógica das

    professoras.

    Por fim, o Quarto Capítulo: A Docência - traz uma abordagem sobre a

    ocupação da profissão docente por mulheres no contexto brasileiro a partir das mudanças

    ocorridas no final do século XIX, a posterior saída dos homens desse campo de trabalho,

    paralelamente à entrada maciça do gênero feminino nessa profissão; além, de apontar as

    barreiras enfrentadas pelas mulheres negras brasileiras para inserir-se nesse espaço

    profissional, discutindo também sobre os projetos de vida tendo em vista a docência.

    Ao concluir esta introdução a partir da informação que já é suficientemente

    conhecida a situação econômica-social do negro após a escravidão, no Brasil:

    Situação de vítima: “Como categoria social, isto é, o antigo agente do modo de produção escravagista que: quer como escravo quer como liberto, movimentara a engrenagem econômica da sociedade estamental e de castas. Para ele (a), o (a) negro (a) não houve ‘alternativa histórica’. Ficou como a poeira da estrada, submergindo na economia de subsistência, com as oportunidades medíocres de trabalho livre das regiões mais ou menos estagnadas economicamente e nas grandes cidades em crescimento tumultuoso, ou perdendo-se nos escombros de sua própria ruína, pois onde teve que competir com o trabalhador branco, especialmente o imigrante, viu-se refugiado ou repelido para os porões, os cortiços e a anomia social crônica. (FERNANDES, 1976).

    Transcreveu-se tão longa citação, pelo fato de refletir sinteticamente as

    contradições de todo o período pós-escravidão, no que se refere a situação do negro,

    contradições que ainda não foram superadas. Essa é uma análise visível em todos os

    estudos sobre o negro no Brasil, a qual recorreu também este estudo. Mesmo após tanto

    tempo, sabe-se que a integração do negro à sociedade ainda não se dá de forma tão

    simples, tranqüila. Porém, aos poucos ela tem ocorrido. Por isso é preciso dar voz àqueles,

    neste caso aquelas, professoras negras que conseguiram lutar por essa inserção, para que

    outros negros e outras mulheres negras possam espelhar-se nesses exemplos e acreditar que

    é possível mudar a face injusta e desigual da sociedade brasileira.

  • 23

    I - AS CORES DAS DESIGUALDADES

    A profissão docente, o gênero feminino e a origem racial pode-se dizer são

    características que as professoras deste estudo têm em comum. Desse modo, é necessário

    frisar que para assumirem a docência vivenciaram alguns obstáculos no decorrer de suas

    trajetórias. Tal situação ocorre devido à relação desigual entre raça, educação e renda que

    aqui serão apresentadas.

    Este capítulo tem a intenção de apresentar alguns dados considerados

    essenciais para melhor compreensão das históricas desigualdades sociorraciais brasileiras a

    partir dos indicadores sociais.

    1.1 - Marcas das Desigualdades Raciais

    O Brasil do inicio do século XXI é um pais que ainda carrega marcas de uma

    desigualdade histórica e cristalizada. Vários pesquisadores, como Nelson do Vale Silva,

    Paes e Mendonça, Henriques, Hasenbalg entre outros, já se dedicaram a demonstrar que a

    mobilidade social ascendente é uma possibilidade para poucos neste país e que uma série

    de fatores associados à trajetória de vida do individuo torna praticamente impossível essa

    ascensão para a maioria dos brasileiros. Em resumo: aqueles entre os brasileiros, que

    nascem pobres tendem fortemente a permanecer pobres; e aqueles que nascem ricos

    também mantêm a sua posição. Isso se dá com relativa constância ao longo do tempo,

    independentemente da estabilidade financeira do país, dos sucessos dos planos econômicos

    ou dos ciclos alternados de crescimento e retração.

    As desigualdades que se produziram ao longo do tempo, transformaram alguns

    historicamente discriminados em alvos mais fáceis dessa imobilidade social. O caso, mas

    evidente é o da população afro-descendente, que acumula ao longo de muitas décadas um

    conjunto de desvantagens que têm como conseqüência sua permanência entre os mais

    pobres da população brasileira. Os negros têm mais dificuldades para ascender socialmente

    no Brasil. Essa é mais uma expressão da desigualdade racial. Cujos marcos mais

  • 24

    significativo da demonstração de racismo contra o negro no Brasil, estão historicamente

    ligados à implantação do regime escravista e a pretensão de anular qualquer possibilidade

    dos africanos serem considerados seres humanos. Naquele momento, os africanos eram

    descritos como seres inferiores, desprovidos de alma e humanidade e, portanto destinados à

    escravidão.

    Somente a partir da divulgação dos princípios iluministas é que se estabeleceu

    teoricamente que: ameríndios, orientais e negros compunham o universo dos seres

    humanos organizados, porém em uma escala hierárquica, na qual os brancos encontravam-

    se no topo e os africanos na base. Como pensar a cidadania da população negra num país

    de longo regime escravista, em que a desigualdade era uma condição natural entre os

    humanos? Como explicar os indicadores sociais que apontam para desvantagem histórica

    dos negros em relação aos brancos?

    1.1.2 - Desigualdades Raciais na Educação

    A distribuição da população segundo a cor ou raça nas diversas regiões do

    Brasil no ano de 2000 aponta que dentre os 169.369.557 milhões de indivíduos que

    compõem a população brasileira, 53,4% se declaravam brancos, 40,4% pardos1, 5,6%

    pretos e 0,6 amarelos e indígenas. Portanto, os negros totalizam 46% da população,

    enquanto os brancos somam 53,4 %.

    Os negros representam 46% da população brasileira, mas são 64% da

    população pobre e 69% da população indigente. Os brancos, por sua vez, correspondem a

    54% da população total, mas somente 36% dos pobres e 31% dos indigentes. O que resulta

    é que 53 milhões de brasileiros pobres, 19 milhões são brancos, 30,1 milhões pardos e 3,6

    milhões pretos. Entre os 22 milhões de indigentes tem-se 6,8 brancos, 13, pardos e 1,5

    pretos.

    Esses dados mostram que a pobreza no Brasil tem cor. Ela é negra. Portanto,

    nascer negro no Brasil, está relacionado a uma maior probabilidade de crescer pobre. A

    1 Neste estudo utilizam-se os dados de classificação do IBGE agregando pretos e pardos na noção de afro-brasileiros, pois ambos os grupos possuem origem histórica comum e estão em condição de vulnerabilidade econômica.

  • 25

    população negra concentra-se no segmento de menor renda per capita da distribuição de

    renda do país.

    De acordo com os dados da Pesquisa de Padrões de Vida do IBGE, estima-se,

    por exemplo, que cerca de: 58% do diferencial salarial entre brancos e negros está

    associado à desigualdade educacional, sendo uma parte derivada da discriminação gerada

    no interior do sistema educacional e outra parte derivada da herança da discriminação

    educacional infligida às gerações dos pais dos estudantes.

    Nesse sentido, as diferenças nas oportunidades educacionais explicam

    praticamente 60% da diferença salarial observada entre brancos e negros. O mercado de

    trabalho, portanto, revela uma desigualdade racial anterior ao ingresso dos trabalhadores

    no mercado. Desigualdade racial expressa, em termos das diferenças de escolaridade entre

    trabalhadores brancos e trabalhadores negros. Diferenças que sintetizam o efeito agregado

    da discriminação produzida no interior do sistema escolar e dos impactos direto e indireto,

    da escolaridade do país.

    O acesso à educação é em geral apresentado pelos estudiosos como um dos

    principais fatores associados a melhores oportunidades no mercado de trabalho e,

    conseqüentemente, o melhor rendimento salarial. Para uma grande parcela da população, o

    aumento da escolaridade é visto como o principal fator de mobilidade social ascendente

    dos indivíduos. Nessa área, os negros apresentam indicadores sensivelmente piores do que

    os brancos; de acordo com a PNAD/IBGE, de 1999, a média de anos de estudos é inferior

    a média da população branca. Por outro lado, a taxa de analfabetismo dos negros em 1998

    era de 20,8%, ao passo que a dos brancos era de 8,45. Ou seja, a taxa de analfabetismo dos

    negros era em pontos percentuais 148% maior que a taxa de analfabetismo dos brancos.

    Isto significava que da população analfabeta no Brasil, 67% eram afro-descendentes.

    Com o aumento da escolaridade dos brasileiros as taxas de analfabetismo

    caíram para todos ao longo dos anos. O analfabetismo entre brancos e negros revela uma

    diferença de 10 pontos percentuais a mais para negros no ano de 2001. Esse índice

    comparativo era maior em 1992, com 11% para brancos e 26% para negros, ou seja, uma

    diferença de 15% que se manteve estável até chegar em 10%. Ainda assim, é uma

    diferença significativa que revela uma desvantagem entre os grupos pesquisados. A

    diferença entre os anos de estudo se mantém em torno de 2 anos, ao longo do tempo; essa

    estabilidade revela uma dificuldade de aproximação dos índices e confirma mais uma vez a

    desvantagem do grupo negro.

  • 26

    Quando se analisa o universo feminino sobre a lente das diferenças raciais,

    verifica-se que as taxas de alfabetização entre os grupos branco e negro diferem em 13

    quando totalizadas. Brancos somam 91% de alfabetizados, enquanto negros se encontram

    com 78% da taxa de alfabetização. Embora a taxa de escolaridade, mantenha uma distancia

    menor entre os grupos, com diferença superior de 11% para os brancos, revela que os

    níveis de escolaridade entre os homens e mulheres diferem, sobretudo para as mulheres

    negras que totalizam 76% da taxa de escolaridade, enquanto os homens negros estão com

    70%. Entre homens e mulheres brancos, não há diferença significativa.

    Ao considerar os indicadores educacionais, a diferença de escolaridade entre

    brancos e negros se mantém estável ao longo dos anos. Porém, reconhecendo a

    importância da educação na constituição do sujeito, como meio de mobilidade social,

    verifica-se que o sistema educacional brasileiro atua de forma excludente; ao promover

    apenas ações universalistas que não dão conta das especificidades e das diferenças que

    inclui: raça, classe, gênero, religião, etc.

    Embora os índices de escolarização do ensino fundamental apontem uma

    universalização do acesso para brancos e negros, o mesmo não se observa no Ensino

    Médio, tampouco no Ensino Superior. Como a educação tem papel preponderante no

    processo de mobilidade social, a perversidade desses indicadores se acentua, pois mantém

    os desiguais numa linearidade constante.

    Esses dados expõem com nitidez a escolaridade de brancos e negros, a inércia

    do padrão de discriminação racial. Apesar da melhoria nos níveis médios de escolaridade

    de brancos e negros ao longo do século, o padrão de discriminação, isto é, a diferença de

    escolaridade dos brancos em relação aos negros se mantém estável entre as gerações.

    Constata-se que as oportunidades desiguais tanto dificultam, como podem

    impedir que o negro alcance níveis mais elevados de ensino e, quando consegue ingressar

    nesse nível os esforços para permanecer terão que ser maiores em relação aos demais

    grupos. As evidências empíricas de desigualdades no campo educacional dão lugar de

    destaque para análise conjuntural, para o que tem sido considerado reforço dessas

    condições desfavoráveis para os não brancos do Brasil.

  • 27

    1.1.3 - Distribuição de renda e mercado de trabalho

    A síntese de Indicadores Sociais do IBGE divulgada em junho de 2004, mostra

    que negros e pardos têm renda média menor que a dos brancos, mesmo quando são

    comparados com o mesmo nível de escolaridade.

    Os números do IBGE mostram que, quanto mais tempo uma pessoa estuda,

    maior é seu rendimento médio. Esse acréscimo na renda, no entanto, acontece de maneira

    diferenciada para brancos e negros. Um negro com até quatro anos de estudos completos

    (chegou ao máximo a 4ª série) recebe em média, por cada hora de seu trabalho, R$1,50.

    Um trabalhador branco com essa mesma escolaridade tem rendimento melhor R$ 2,30 por

    hora trabalhada.

    A diferença a favor dos brancos aumenta em valores absolutos e permanece

    praticamente inalterada em termos relativos quando se compara a renda de trabalhadores

    com mais escolaridade. Com 9 a 11 anos de estudo, a média de rendimento do trabalhador

    negro é de R$ 3,10 para cada hora de trabalho. Entre os trabalhadores brancos, esse

    rendimento é de R$ 4,40. Entre os trabalhadores que conseguem, ao menos, estudar um

    ano no Ensino Superior (12 anos ou mais de estudo), os negros ganham em média, R$ 8,30

    por cada hora do seu trabalho, contra R$ 11, 80 dos brancos.

    Os dados publicados pelo IBGE, no PNAD de 1987, apontam que entre os

    homens negros, 12,09% trabalhavam sem rendimento e 26,17% receberiam até um salário

    mínimo e, entre as mulheres negras, 23,6% trabalhavam sem rendimento e 35,05%

    recebiam até um salário mínimo. Entre os brancos, naquele ano, 7,7% dos homens

    trabalhavam sem rendimento e 11,68% trabalhavam recebendo salário mínimo. Sendo

    assim, no ano de 1988, os negros, representando 45% da população brasileira perfaziam

    66,9% dos assalariados que recebiam menos de meio salário mínimo e 60,7% dos que

    recebiam ate um salário mínimo.

    Na Pesquisa Perfil Demográfico das Chefias Femininas no Brasil, a partir dos

    dados do Censo de 1991 e do PNAD de 1998, a demógrafa Elza Berquó conclui que nas

    famílias chefiadas por mulheres que não tem rendimento ou recebem menos que um salário

    mínimo, as chefiadas por negras são 60%, já entre as que recebem três ou mais salários

    mínimos, a participação das chefiadas por mulheres negras cai para 29%.

    O Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial – INSPIR, em

    trabalho publicado em outubro de 1999, intitulado Mapa da População Negra no Mercado

  • 28

    de Trabalho, conclui que os resultados da pesquisa trazem um conjunto de informações que

    demonstram uma situação de reiterada desigualdade para os negros, de ambos os sexos, no

    mercado de trabalho das seis regiões estudadas, independentemente da maior ou menor

    presença negra nestas regiões.

    A coerência dos resultados em nível nacional demonstra, sem qualquer sombra

    de duvida, que a discriminação racial é um fato presente no cotidiano, interferindo em

    todos os espaços do mercado de trabalho brasileiro. Nenhum outro fato, que não a

    utilização de critérios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos, pode explicar os

    indicadores sistematicamente desfavoráveis aos trabalhadores negros, seja qual for o

    aspecto considerado. Mais ainda, os resultados permitem concluir que a discriminação

    sobrepõe-se a discriminação por sexo, combinando-se a esta para construir o cenário de

    aguda dificuldade em que vivem as mulheres negras.

    Portanto, níveis de escolaridade e renda possuem vínculos relacionais

    expressos nos indicadores sociais. As expectativas potenciais do grupo branco se

    confrontam com as desvantagens socioeconômicas do grupo negro. Trata-se aqui, segundo

    Brandão (2003):

    ...de uma desvantagem competitiva que é produzida e mantida pela discriminação racial. Mais especificamente, os afro-descendentes em maior número proporcional que os brancos: nascem em áreas pouco desenvolvidas, se originam de famílias mais pobres, possuem dificuldades de realização escolar maiores em todos os níveis de ensino, se concentram nas perspectivas ocupacionais em atividades desqualificadas e de baixo rendimento. ( BRANDÃO, 2003,p. 27)

    De tal modo, negros sofrem um conjunto de desvantagens socioeconômicas

    cumulativas, que consubstanciam em bem-estar e qualidade de vida, em média inferior

    àquela dos brancos.

    Os indicadores sociais aqui apresentados confirmam que brancos e negros se

    equiparam apenas no quantitativo do conjunto da população brasileira. No entanto, as

    condições desiguais para os negros são visíveis na renda, na probabilidade maior de

    pobreza, no analfabetismo, no mercado de trabalho, na educação. Henriques (2001) ao

    analisar as diferenças salariais entre os grupos faz a seguinte ponderação:

    Estima-se que 55% do diferencial salarial entre brancos e negros está associado à desigualdade educacional, sendo uma parte derivada da discriminação gerada no interior do sistema educacional e outra parte da

  • 29

    herança da discriminação educacional infligida às gerações dos pais dos estudantes. (HENRIQUES, 2001).

    Ao concluir este capitulo, percebe-se que os dados no cenário brasileiro

    apontam que as condições de vida da população negra estão intimamente associadas às

    condições lastimáveis, e que historicamente esse fato tem se desenvolvido desde a

    escravidão; foi mantido após ela, com alguns poucos avanços. Os negros ainda situam-se

    na base da pirâmide econômica e social. Portanto, há uma clivagem por raça em vários

    elementos discutidos ao longo deste capitulo.

    Os mesmos dados evidenciam a existência da discriminação racial, e das

    profundas desigualdades sociais, devido ao tratamento desigual das pessoas baseado na

    cor, ou seja, a raça é um fator marcante para a exclusão social.

    Sobre essa questão Guimarães (2004, p.27) acredita que para reduzir as

    desigualdades econômicas e combater o racismo, precisamos antes de tudo, denunciar as

    distâncias sociais que as materializam, justificam e legitimam.

    A meu ver, esses dados parecem apontar para a inexistência da democracia

    racial. Portanto, a desconstrução desse mito é essencial para que se altere o quadro injusto

    e desigual brasileiro. É a partir desse mito, sobre o racismo e as práticas discriminatórias,

    que as narrativas das professoras, serão abordadas no próximo capítulo.

  • 30

    II - DAS IDENTIDADES

    “Seu Cristo é judeu, seu carro japonês. Sua pizza é italiana, sua democracia grega. Seu café brasileiro, seu feriado turco. Seu algarismo arábico, Suas letras latinas. Só seu vizinho é estrangeiro”. (Um cartaz em Berlin)

    Neste capitulo faz-se uma reflexão sobre a identidade no contexto da

    globalização e das questões de raça e gênero na dinâmica que opera a dominação em

    âmbito mundial. Acredita-se que é fundamental considerar essas questões com referencia

    aos movimentos sociais organizados cuja atuação dá inicio, impulsiona e também dá

    direção a transformações que operam a constituição de novos contornos na ordem mundial.

    Aborda-se aqui também um tema contemporâneo, controvertido e sempre

    presente no âmbito dos debates sobre as relações raciais brasileiras: a questão da

    identidade racial. As identidades da mulher negra e professora que interagem e por vezes

    se sobrepõe serão analisadas neste capitulo. Como ela se constrói? Como se percebe essa

    identidade? Como ela se relaciona com a modernidade? Que referências utiliza nessa

    trajetória, nesse vir a ser?

    2.1.1 - As Identidades na Pós-Modernidade

    A modernidade para Ianne (1996) diz respeito a um modo de ser, sentir e pensar e

    esses dilemas se apresentam cada vez mais, de maneira contraditória e fragmentada nos

    tempos de globalização. Ao considerar que esta se desenvolve nesse contexto, procura-se

    identificar como vivem as mulheres negras e professoras na modernidade tardia.

    Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promove aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideológica. (MARSHALL, apud Ianne, 1996, p. 90)

  • 31

    Nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana.

    Porém, como ressalta o autor é uma unidade paradoxal, uma unidade, desunidade, pois ela

    nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e

    contradição, de ambigüidade e angústia.

    O tempo e o espaço no mundo globalizado estão cada vez mais ilimitados. A

    informação circula cada vez mais veloz e sem fronteiras, os avanços tecnológicos

    possibilitaram novas formas de significar o mundo e de perceber o outro. E com isso a

    construção da identidade social do sujeito também se fragmenta para dar lugar à

    heterogeneidade que se contrapõe à perspectiva das sociedades capitalistas.

    Que processos provocaram essas mudanças? Quais as conseqüências para a

    identidade?

    O sociólogo Baumam (2005) afirma que a globalização, ou melhor, a

    modernidade líquida, não é um quebra cabeças que se possa resolver com base num

    modelo pré-estabelecido. Pelo contrario, ela deve ser vista como um processo, tal como sua

    compreensão e análise. Da mesma forma que a identidade que se afirma na crise do

    multiculturalismo, ou no fundamentalismo islâmico, ou quando a internet facilita a

    expressão de identidades prontas para serem usadas.

    Nesse sentido, os marcos divisórios são cancelados, as biografias se tornam

    quebra-cabeças difíceis e mutáveis. Entretanto o problema não são as peças individuais

    desse mosaico, mas como eles se encaixam umas nas outras.

    Conforme observa Castells (1999):

    No mundo globalizado, signos e símbolos são efêmeros, porém poderosos, movimentam nos fluxos globais que caracterizam a sociedade em rede da era da informática. (CASTELLS. 1999, p.31)

    Os movimentos sociais incumbem-se dessa busca articulando criticas a cultura

    hegemônica do poder e contrapondo aos seus signos e símbolos outros próprios, muitas

    vezes enraizado em matizes, tradições e processos de luta não-ocidentais, reprimidos desde

    o século das luzes no processo de imposição da hegemonia colonial ocidental.

    E ainda a pós-modernidade é marcada por uma visão do mundo humano como

    totalmente pluralista. Nesse contexto, a complexidade e o inacabamento do sujeito

    apontam a coexistência de múltiplas identidades que interagem e se apresentam segundo

    lugar e momento.

  • 32

    Portanto, não é possível falar de uma identidade singular, mas de múltiplas

    identidades que envolvem variadas dimensões do sujeito, entre elas: gênero, raça, classe,

    orientação sexual, nacionalidade e outras.

    Esses conceitos colaboram com a idéia corrente de construção da identidade

    num processo de mutabilidade. E esse movimento de construção e afirmação identitária é

    continuo e também mediado pelo contexto histórico social, numa mútua interação do

    sujeito com o mundo. Esse processo não linear permite fragmentações e contradições ao

    longo da vida nesse vir-a ser, permeado de atividade, emoções, experiências e tantos outros

    elementos subjetivos que caracterizam o sujeito e o humanizam.

    Hall, como ele próprio afirma, tem uma ascendência diversificada, mestiça,

    hibridizada e provavelmente por isso tenha chegado à conclusão de que “não existe um eu

    essencial, unitário – apenas o sujeito fragmentário e contraditório que me torno”. (HALL,

    2003, p. 188). Aqui ele contraria a impressão que a sociedade, às vezes tem, de que a

    identidade possui uma essência fixa e imutável ou uma substancia inerente ao sujeito.

    Assim, a substituição da identidade, vista como estabilidade e permanência,

    pela idéia de um processo movediço de identificações, fruto dessa evolução teórica, cabe

    perfeitamente aos novos contornos do mundo globalizado.

    Acredita-se que a atuação dos movimentos anticolonialistas, feministas e de

    minorias ou maiorias oprimidas dentro de sociedade plurais que no decorrer da evolução

    da questão da identidade, tenha sido de fundamental importância, embora a sua influência

    deixe, em geral de ser reconhecida pelos teóricos cuja tradicional formação acadêmica

    tende com freqüência a levá-los a contemplar o próprio umbigo.

    Desta forma, o patriarcalismo e o etnocentrismo ocidentais foram duramente

    criticados a partir da ação dos movimentos sociais que põe em cena, sob novas

    perspectivas o tema da volição na construção da identidade forjada nas condições

    socioculturais da classe média branca que constituía o padrão endossado e cultivado pela

    sociedade ocidental.

    Nesse sentido, Castells (1999) dá significativas contribuições, pois para ele, a

    modernidade tardia já cedeu lugar ao que ele determina de sociedade em rede, formada na

    revolução tecnológica informacional e na reestruturação do capitalismo, processo em que

    são deslegitimadas as instituições da sociedade civil como o sindicalismo, a organização

    política partidária e os movimentos políticos articulados em torno do tradicional eixo

    ideológico esquerda-direita.

  • 33

    Em sua análise, Castells (1999) considera três formas distintas de construção

    de identidades: a legitimadora, produzida pelas instituições civil no intuito de expandir e

    racionalizar sua dominação. Esse modelo tende a desaparecer dada a crise do estado-nação,

    principal fonte de legitimidade. A identidade de resistências que reúne grupos

    estigmatizados ou excluídos pela lógica da dominação, (essa resistência leva a formação de

    comunas ou comunidades que são verdadeiras redes de proteção contra a opressão e

    hostilidade externas). A identidade de projeto que busca a transformação da estrutura

    social e produz o sujeito. E que conforme Alain Touraine (1999):

    Chamo de sujeito o desejo de ser um individuo, de criar uma história pessoal, de atribuir significado a todo o conjunto de experiências da vida individual [...] A transformação de indivíduos em sujeitos resulta da contribuição necessária de duas afirmações: a dos indivíduos contra as comunidades e a dos indivíduos contra o mercado. ( TOURAINE, 1999, p. 26)

    A primazia da questão da identidade fundamenta-se, portanto, na função que

    desempenha para as populações excluídas, pois na maioria das vezes a razão dominante

    não reconhece a diferença ou não lhe atribui importância. Portanto, sendo autossuficiente,

    ela define à sua universalidade. É essa batalha travada pelos movimentos sociais ao lutar

    contra as novas formas de dominação em três campos principais. Contra lógica do espaço

    desmaterializado dos fluxos do poder, eles defendem seu espaço e seus locais. No caso do

    feminismo e dos movimentos de identidade sexual, trata-se de defender seus espaços mais

    imediatos, isto é, seus corpos. Configura-se uma batalha entre a concepção do corpo como

    identidade autônoma e objeto social. No caso da identidade afirmada pela adoção de estilos

    visuais ou de estéticas de apresentação pessoal como o uso de trançinhas, cabelo afro e

    outros, por exemplo, o corpo também passa a construir um campo de afirmação de

    identidades de resistência. Contra a tendência de dissolver-ser a história no tempo

    intemporal e contra a exaltação do efêmero na cultura da virtualidade real, esses

    movimentos afirmam sua memória histórica e a permanência de seus valores. Ao mesmo

    tempo em que dominam e utilizam a informática como meio de comunicação, refutam a

    idolatria da tecnologia e elevam os seus valores de origem, de cultura ou de ética acima da

    lógica da rede.

  • 34

    2.1.2 - Identidade feminina

    “Não se nasce mulher, torna-se mulher” Simone de Beauvoir (1952)

    Neste tópico torna-se necessário assinalar a interligação da questão racial com a

    de gênero. Ambas passam fundamentalmente pela questão da identidade. Ao afirmar que

    não se nasce mulher, mas vive-se um processo complexo e socialmente condicionado de

    torna-se mulher, Simone de Beauvoir traz a tona o processo complexo de construção da

    categoria “mulher” na sociedade patriarcal ocidental. Assim, o objetivo final do processo

    de tornar-se mulher para Beauvoir é assumir mulher como projeto. Entretanto, para

    formular esse projeto é preciso forjar uma consciência critica da identidade feminina

    construída socialmente no paternalismo. A desconstrução criteriosa desta falsa identidade

    caracteriza forçosamente o projeto de torna-se mulher.

    Pode-se afirmar que o centro da teoria feminista está na revelação da ideologia

    do patriarcalismo e em sua critica. De acordo com essa ideologia, as desigualdades sociais

    associadas à condição feminina seriam conseqüências da natureza de sua constituição

    biológica orgânica. Portanto, a diferença biológica entre macho e fêmea justificaria a

    distinção por sexo na atribuição de papeis sociais, direitos e deveres legais, expectativas de

    sucesso, e assim por diante. As desigualdades entre homens e mulheres nos âmbitos da

    educação, do trabalho, da renda e da remuneração seriam conseqüências naturais da

    diferença entre os sexos.

    Os efeitos psicológicos da inferiorização da mulher no imaginário coletivo

    mediante esse processo de naturalização de sua condição social chamou a atenção da

    autora Belotti (1987), que demonstrou, de que forma as representações sociais do

    feminino, reprodutoras de preceitos e estereótipos negativos internalizados desde a

    primeira infância por uma educação infantil e escolar imbuída da ideologia do

    patriarcalismo, são capazes de tolher o desenvolvimento da personalidade, de auto-estima e

    de autonomia como individuo.

    Essas representações evidenciam claramente o paralelo entre esse processo e a

    justificação das desigualdades raciais, tornando-as naturais. Essa justificação é

    acompanhada dos efeitos psicológicos que a partir de um ensino que reproduz preconceitos

  • 35

    e estereótipos derivados das teorias pseudocientíficas da inferioridade biológica congênita

    do africano (ou indígena) e de seus descendentes. Dito isso de outra forma, o racismo se

    constitui e opera essencialmente da mesma forma que o sexismo no campo da

    discriminação e resulta em desigualdades sociais estatisticamente mensuráveis no âmbito

    mais amplo, efetuando de diversas maneiras, ora direta, ora sutil, as possibilidades e

    perspectivas de vida das pessoas e dos grupos humanos envolvidos. Nesse contexto, no

    Brasil, um estudo de primeira referência sobre a questão racial na psicologia remete à frase

    de Simone Beauvoir: Tornar-se negro. É esse o enfoque da psicanalista Neusa Santos

    Souza (1983). Esse processo de tornar-se negro, o projeto identidade negra ou afro-

    descendente, passa pela desconstrução das representações negativas do negro construídas

    socialmente por meio da ideologia da supremacia branca.

    Nessa perspectiva, a análise sociológica postula que a redução do cultural ao

    biológico como essência do racismo, existiria sempre quando se explica uma posição de

    prestigio ou estigma social invocando uma característica natural.

    Conforme o postulado científico da hereditariedade dessas características

    desembocaria na teoria da eugenia. Desse modo institui-se como políticas públicas diversas

    técnicas aplicadas a otimização do estoque genético da população, não apenas nos países

    europeus como também nos EUA, na America Latina e no Brasil.

    Esses exemplos servem para ilustrar de que maneira o patriarcalismo se

    entrelaça com o racismo na qualidade de teorias e práticas de dominação, além de objetos

    de critica e resistência à dominação.

    Du Bois (1999) observa que a questão de gênero se coloca como parte

    integrante da critica ao universalismo ocidental hegemônico e da luta antirracista,

    entretanto, para ele, a perspectiva critica das mulheres negras seria articuladas por elas

    mesmas; ao analisarem as ideologias de dominação e as formas de opressão sexista e

    racista em diferentes contextos inclusive dentro dos movimentos sociais.

    O próprio movimento feminista nem sempre se caracterizou por uma

    consciência dos problemas específicos da mulher negra, e sim, por muito tempo apresentou

    a face branca e de classe média da época, diz Du Bois. Contudo, com o processo de

    descolonização e independência dos países africanos, acompanhado da ascensão social de

    intelectuais e do movimento de feministas em outras nações outrora colonizadas, mulheres

    do chamado Terceiro Mundo passaram a articular uma crítica ao discurso e a pratica do

    feminismo, à medida que refletiam a perspectiva do universalismo ocidental.

  • 36

    Diante dessas demandas, a insistência de algumas feministas em “trabalhar

    para avançar a causa de todas as mulheres, sem divisões entre nós”, igualava-se ao antigo

    discurso da supremacia da luta de classes que deslegitimavam o próprio feminismo,

    alegando que poderia conduzir a uma divisão da classe operária.

    No entanto, ao articularem suas questões dentro do movimento negro, as

    afrodescendentes esbarravam na insistência de um discurso generalizado sobre “o negro”

    ou “os interesses da comunidade”.

    Com a frase: “Todas as mulheres são brancas, todos os negros são homens,

    mas algumas de nós somos corajosas”, a feminista negra norte-americana Gillian (2000)

    relata um sentimento amplo entre as mulheres negras e do Terceiro Mundo quando diz que

    houve um tempo em que as mulheres negras, sobretudo nos E.U.A; receavam assumir-se

    como feminista em virtude da forte identificação desse movimento com o ocidentalismo

    eurocentrista. Assim articulado, o feminismo excluiria a maioria das mulheres negras no

    mundo, cuja experiência difere daquela vivida pela mulher branca nas sociedades

    ocidentais hegemônicas.

    A crítica rejeitava, em outras palavras, a universalização da categoria mulher

    socialmente construída no contexto daquelas sociedades. E ao desafiar essa classificação,

    questiona-se precisamente o pressuposto de que haja uma experiência-de-ser mulher

    generalizável, identificável e coletivamente consensual (CORNEL, 1987, p. 20), insistindo

    em que a especificidades da condição da mulher nas sociedades periféricas impõe a

    problematização dos modelos teóricos do feminismo unitário que reproduzem a anulação

    da heterogeneidade no Terceiro Mundo. Porém, à medida que se demonstrava capaz de

    absorver essa crítica no processo de luta social mundial, o feminismo foi sendo

    transformado e recuperado como perspectiva teórica. Assim, de forma figurativa, a questão

    retoma implícita e simbolicamente a postura de Du Bois ao realçar a necessidade, para os

    negros, de enfrentar a questão do patriarcado, como fenômeno interligado com a

    dominação racial, “não apenas porque a dominação patriarcal conforma relações de poder

    nas esferas pessoal, interpessoal e mesmo ideológicas semelhantes às que permitem a

    existência do racismo”. (BAIRROS, 1995, p. 462). E segundo apontava a critica das não

    ocidentais, as mulheres não partilhavam todas, a mesma opressão, elas têm em comum

    tanto o interesse em acabar com o sexismo quanto à condição da luta social por esse

    objetivo, abraçado também por setores mais amplos, entre eles a própria comunidade

    afrodescendente. O feminismo, nessa perspectiva constituiria:

  • 37

    O instrumento analítico e teórico que permite dar conta da construção de gênero como fonte de poder e hierarquia que impacta mais negativamente sobre a mulher. É a lente da qual as diferentes experiências das mulheres podem ser analisadas criticamente, com vistas à reivindicações de mulheres e de homens fora dos padrões que estabelecem a inferioridade e um em relação ao outro. (BAIRROS, 1995, p. 462)

    No entanto, para que pudesse cumprir essa função, fez-se necessário reformular

    os conceitos básicos de feminismo. O da condição universal feminina ou experiências de

    ser mulher à idéia de uma matriz multidimensional que fora tecida na inter-relação entre

    raça e gênero, em que essa experiência é determinada pelo contexto histórico, social e

    econômico.

    De acordo com Bairros (1995, p. 461), o balanço teórico se dá ao identificar o

    entrelaçamento dinâmico das duas dimensões: a experiência de ser negro como sendo

    vivida por meio do gênero e da de ser mulher ou homem vivido pela condição racial.

    Logicamente que o desenvolvimento do conceito de gênero constitui o

    principal marco na evolução recente, da teoria feminista. Ao enfocar o aspecto relacional

    do feminino, esse conceito ampliou o campo do pensamento feminista, em que antes se

    articulava uma perspectiva presumidamente unitária da mulher sobre a mulher.

    Porém, pode-se dizer que um aspecto menos conhecido é o fato de ele ocorrer

    no contexto desse processo de dialogo crítico. Ao historiar de forma breve e superficial a

    evolução da teoria feminista em sua interação com a crítica ao universalismo eurocentrista,

    entende-se a importância de mostrar aqui como a noção de gênero se forjou antes na

    dinâmica concreta da ação dos movimentos sociais do que no próprio domínio abstrato da

    teoria. Se a idéia de gênero é discutida teoricamente, a epistemologia pós-estruturalista e

    pós-moderna, também nasceu do mesmo viés: do dialogo e do confronto em torno das

    questões concretas da diferença e da desigualdade, da universalidade e da particularidade.

    Assim, Nascimento (2002) ressalta que:

    Se, o feminismo se assentava na proposta da igualdade e na denúncia da desigualdade e da discriminação, e se sua proposta e verdade se pretendiam universais, o pós-modernismo se pergunta sobre as diferenças e as relações não só entre homens, mas também entre mulheres, baseando-se especialmente nas diferenças entre culturas relativamente aos modelos de gênero e, portanto, na inexistência de um “modelo universal”. (NASCIMENTO, 2002)

  • 38

    No que se refere à identidade, o conceito de gênero, com seu enfoque

    relacional e sua desconstrução da noção do feminismo como condição natural ou biológica,

    implica a constituição de um campo de identidade feminina mais flexível que as noções

    elaboradas por algumas feministas com base na especificidade da função materna ou na

    resposta a emotividade ou subjetividade da mulher.

    A identidade emerge não como algo fixo ou essencial, mas como processo de

    identificações. Ademais como enfatiza Ferreira (2000) a teoria feminista nos remete à

    noção de um processo de identificações com um sentido de autoria.

    A clássica frase de Simone de Beauvoir (1952) “Nós não nascemos, mas nos

    tornamos mulher”, o tornar-se entendido como assumir ou encarar intencionalmente,

    pressupõe a escolha de um projeto de identidade a ser assumido e auto definido. Como

    observa Judith Butler (1987): “Não só somos nós, culturalmente construídas como, em

    certo sentido, construímos a nós mesmos”.

    O gênero passa a ser, então, simultaneamente uma questão de escolha e de

    construção cultural tornando-se um lugar de significados culturais tanto recebidos como

    inovados.

    A partir da frase de Beauvoir, pode-se concluir que de fato, entender a mulher

    como existindo na ordem metafísica do ser, não é compreendê-la como aquilo que já está

    feito, idêntica a si mesma, estática, mas concebê-la na ordem metafísica do tornar-se é

    inventar possibilidade em sua experiência, inclusive a possibilidade de jamais se tornar

    uma mulher substantiva, idêntica a si mesma. Assim, pode-se entender de forma figurativa

    como resposta ao desafio das mulheres do terceiro mundo a conclusão de Monique Wittig

    (1978 apud CORNELL & BENHABIB) no sentido de que mulheres resultam ser uma

    categoria útil para a constituição da ação política contra o domínio patriarcal. Poder-se-ia

    escolher, coletivamente, essa identidade no sentido do torna-se beauvoiriani. Ampliando

    essa análise ao focalizar o maior impacto social do movimento, talvez seja nesse sentido

    que o feminismo constitui-se, nos termos de Castells (1999) “uma identidade de projeto”.

    Sueli Carneiro (1993) revela que a identidade feminina é hoje um projeto em

    construção que depende do rompimento com os velhos modelos impostos à mulher e da

    construção plena da cidadania para a mulher como garantia de seus direitos fundamentais.

    Portanto, o rompimento com esses velhos modelos passa, também pela rejeição dos

    mecanismos de discriminação racial, como a “boa aparência”, que garantem o acesso

    privilegiado ao mercado de trabalho para as mulheres brancas.

  • 39

    Conforme adverte ela, passa pela exigência da coleta do quesito cor nos

    formulários e prontuários dos pacientes; para se ter o direito de saber do que adoecem ou

    morrem as mulheres negras, pela exigência de que nos censos se colete sistematicamente o

    quesito cor, para se ter o direito de sabe: quantas são e como vivem, pela luta da aplicação

    do principio constitucional que torna crime a pratica da discriminação racial.

    E passa, enfim, pela luta por uma sociedade multirracial e plurirracial, onde a

    diferença seja tida e vivida como equivalência e não mais como inferioridade.

    2.1.3 - Identidade Profissional

    Para compreender como as professoras construíram sua identidade profissional

    buscou-se por meio do relato de suas histórias de vida, conhecer suas trajetórias

    profissionais: como se desenvolveu o trabalho docente? Em que condições? Quais as redes

    de relações entre os profissionais da educação? Quais suas posturas em relação à

    profissão?

    A identidade docente é um processo complexo e ambíguo, que mistura

    momentos de continuidade e ruptura, igualdade e diversidade, singularidade e pluralidade,

    pois aqui se articulam a identidade do individuo e sua relação com a coletividade. A

    expectativa de que sua ação se traduza em um acréscimo de humanidade (atitudes, valores

    e conhecimentos) sobre os educando. Porém, a decadência da carreira, a proletarização, a

    alienação e a perda de prestigio profissional, frutos do sistema capitalista, contribuíram

    para desfigurar a identidade do professor.

    No capitalismo - o sistema sustenta as principais relações sociais de produção

    na sociedade brasileira-, o professor é constituído como mais um suporte do capital. O

    capital determina o professor negando-o como professor, já que este; tal qual outros

    profissionais, torna-se um trabalhador coisificado, torna-se, igualmente, um trabalhador-

    mercadoria, sem autonomia nem projeto de existência. (SILVA, 1995, p. 71).

    Nesse sentido, construir uma identidade docente positiva torna-se uma tarefa

    difícil e conflitante para o professor, sobretudo por esta profissão ter sido durante muito

    tempo associada às atividades femininas.

  • 40

    Muitos pesquisadores têm se dedicado ao estudo das histórias de vida de

    professores, ao cotidiano da escola, às experiências e práticas pedagógicas, conjugando

    múltiplos olhares sobre a atividade docente. Por isso, entendem que percorrer os caminhos,

    as experiências, as interações exercidas, são importantes para compreender o complexo

    processo de construção do sujeito e de sua identidade, porque implica também numa

    apropriação de sua história.

    Além da análise das questões político-pedagógica da atividade docente é

    oportuno considerar a identidade como um recurso importante nesse processo de constitui-

    se professor. Nóvoa (1991) destaca os principais elementos no processo identitário do

    professor: adesão, ação e autoconsciência. Adesão aos princípios e valores, ação que se

    traduz na prática, nas escolhas, na maneira de ser e autoconsciência porque tudo deriva de

    um processo continuo de reflexão sobre a ação. Compreender esse processo identitário, que

    se constrói numa dinâmica de lutas e conflitos é fundamental para perceber a dimensão da

    própria atividade docente.

    Para Moita Lopes (1995, p.17) a construção da identidade “é uma construção

    que tem a marca das experiências feitas, das opções tomadas, das práticas desenvolvidas”.

    Claude Dubar (1997, p.106) informa que: “identidade para si são os atos de

    pertença aqueles que exprimem ‘que tipo de homem ou mulher você quer ser’”.

    Para o autor (1997, p. 107) as transações objetivas são “transações externas

    entre o individuo e os outros significativos que visam acomodar a identidade para si à

    identidade para o outro” e as transações subjetivas ‘internas’ (identidades herdadas) “é o

    desejo de construir para si novas identidades no futuro (identidades visadas), procurando

    assimilar a identidade-para-outro à identidade-para-si”. Dubar (1997) reforça que: “de fato,

    a transação subjetiva depende, com efeito, de relações com o outro que são constitutivas da

    transação objetiva”. Ele destaca também, outros aspectos da construção das identidades:

    A construção das identidades faz-se, pois na articulação entre os sistemas de acção que propõem identidades virtuais e as trajetórias vividas no interior das quais se forjam as identidades ‘reais’ a que aderem os indivíduos. A construção da identidade pode, também, ser analisada tanto em termos de continuidade entre herdada e identidade visada, como em termos de ruptura que implica conversões subjetivas. Ela pode também traduzir-se tanto por acordos como por desacordos entre identidades virtuais, proposta ou imposta pelo outro, e identidade real interiorizada ou projetada pelo individuo. (DUBAR, 1997, p. 108)

  • 41

    Em relação ao processo de produção de identidades Dubar (1997) utiliza

    também as denominações: “processo biográfico (identidade para si) e o processo

    relacional, sistemático, comunicacional (identidade para o outro)”. Ao analisar o processo

    de produção de identidades, incluindo a identidade profissional, chama a atenção para:

    Se o processo biográfico pode ser definido como uma construção no tempo pelos indivíduos de identidades sociais e profissionais a partir das categorias oferecidas pelas instituições sucessivas (família, escola, mercado de trabalho, empresa.) e consideradas, simultaneamente, como acessíveis e valorizantes (transação, “subjetiva”), o processo relacional diz respeito ao reconhecimento, num dado momento e no seio de um espaço determinado da legitimação, das identidades associadas aos saberes, competências e imagens de si propostas e expressas pelos indivíduos nos sistemas de acção. A articulação destes dois processos representa a projeção do espaço-tempo identitário de uma geração conformada com as outras na sua caminhada biográfica e o seu desenvolvimento espacial. As formas sociais desta articulação constituem, simultaneamente, a matriz das categorias que estruturam o espaço das posições sociais (alto/baixo, mas também dentro/fora do emprego) e a temporalidade das trajectórias sociais (estabilidade/mobilidade, mas também continuidade/ruptura). (DUBAR, 1997,p. 118)

    Por isso, o autor argumenta que não é possível fazer a identidade das pessoas

    sem elas e que também não se podem dispensar os outros para construir a sua própria

    identidade.

    No interior da problemática da identidade situa-se a questão da identidade

    profissional. Derout (1988 apud Nóvoa, 1995) quando se refere à identidade profissional

    dos educadores e professoras chama-lhe uma “montagem compósita”. É uma construção

    que tem uma dimensão espácio-temporal, atravessa a vida profissional desde a fase da

    opção pela profissão à reforma, passando pelo tempo concreto da formação inicial e pelos

    diferentes espaços institucionais onde a profissão se desenrola. É ainda, segundo o autor,

    construída sobre saberes científicos e pedagógicos como experiências feitas, das opções

    tomadas, das práticas desenvolvidas, das continuidades e descontinuidades, que ao nível

    das representações que ao nível do trabalho concreto. (p.115).

    Assim, tem-se que o processo de construção de uma identidade profissional

    própria não é estranho à função social da profissão, ao estatuto da profissão e do

    profissional, à conduta do grupo de pertença profissional e ao contexto sociopolítico em

    que se desenrola.

  • 42

    A partir da análise dos relatos das professoras, acredita-se que essa

    identidade vai sendo desenhada não só a partir do enquadramento intraprofissional como

    ressalta Derouet, mas também com a contribuição das interações que se vão estabelecendo

    entre o universo profissional e os outros universos socioculturais.

    O processo identitário passa também pela capacidade de se exercer com

    autonomia a atividade profissional, pelo sentimento de que se controla o trabalho. A

    maneira como cada professor ensina, está também diretamente ligado aquilo que se é como

    pessoa quando exerce o ensino.

    Portanto, conclui-se que tornar-se professor é um desafio constante, um

    processo histórico inacabado. Os relatos de experiências, as biografias e as histórias de

    vida de professoras dão conta de uma construção singular, permeada pela representação

    que a sociedade faz do oficio de mestre. As leituras de mundo, as interações com o outro,

    são parte desse processo de diversas falas de professores um eterno aprender a ser.

    Aprende-se a ser professor com a prática. Atribui-se importância fundamental ao processo

    de interação soci