histÓrias de vida de professoras negras

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CLEONICE FERREIRA DO NASCIMENTO HISTÓRIAS DE VIDA DE PROFESSORAS NEGRAS: TRAJETÓRIAS DE SUCESSO CUIABÁ-MT 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CLEONICE FERREIRA DO NASCIMENTO

HISTÓRIAS DE VIDA DE PROFESSORAS NEGRAS:

TRAJETÓRIAS DE SUCESSO

CUIABÁ-MT

2012

ii

CLEONICE FERREIRA DO NASCIMENTO

HISTÓRIAS DE VIDA DE PROFESSORAS NEGRAS:

TRAJETÓRIAS DE SUCESSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Educação no Instituto de Educação da Universidade Federal de

Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Mestre

em Educação na Área de Concentração Educação, Cultura e

Sociedade, Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e

Educação Popular.

ORIENTADORA: PROFESSORA DRA. MARIA LÚCIA RODRIGUES MÜLLER

CUIABÁ-MT

2012

iii

iv

DEDICATÓRIA

Dedico esta conquista a minha família: Sebastiana

Ferreira do Nascimento (mãe), Domingos Ferreira do

Nascimento (pai) – in memorian), Luiz, João e Pedro

(irmãos), Maria e Sirleide (irmãs).

v

AGRADECIMENTOS

A Deus por iluminar a minha vida e caminho. Pelo êxito de concluir essa etapa

de estudo – especial e importante para mim.

Agradeço profundamente a minha mãe, Sebastiana Ferreira do Nascimento,

que me incentivou a estudar e a fazer uma faculdade para que eu não ficasse

trabalhando como doméstica. Primeira grande incentivadora e colaboradora do sucesso

em toda minha trajetória de estudo. Eu a agradeço por todas as vezes que me encorajou

e por todos os esforços feitos para que eu pudesse concluir o ensino superior e continuar

a minha formação profissional. Sou grata pelo apoio emocional e psicológico

expressado na frase: “você vai conseguir!” Lembrei dessa frase e a carreguei comigo

em vários momentos do curso do mestrado, especialmente quando passava pelos meus

pensamentos que eu não iria conseguir. Obrigada mãe.

Aos meus irmãos, mais de modo muito particular ao João, Pedro e Sirleide, que

moralmente incentivaram-me a continuar estudando e financeiramente contribuíram

para minha permanência no estudo. Muito obrigada pelo suporte dado a mim.

A professora mestre Tereza Josefa Cruz dos Santos (in memorian) e a

professora doutora Marlene Gonçalves pela solidariedade e ajuda dispensada a mim

para que durante a graduação em Pedagogia fosse contemplada com uma bolsa de

estudos no NEPRE. A solidariedade dessas professoras me possibilitou integrar o grupo

de pesquisa NEPRE e, nesse espaço de estudo, pesquisa e trabalho foi possível adquirir

e construir muitos conhecimentos. Na minha vida pessoal e profissional houve um

crescimento significativo em termos de aprendizagem, visão de mundo e idealizações.

As Professoras Dra. Léa Pinheiro Paixão e Dra. Marlene Gonçalves, que

prontamente aceitaram o convite de participação na Banca Examinadora e ofereceram

valiosas contribuições para o aperfeiçoamento desta dissertação. De igual modo

agradeço a Profa. Dra. Moema De Poli Teixeira, que participou da minha Banca de

Defesa em substituição a Profa. Dra. Léa Pinheiro Paixão, e fez apontamentos

pertinentes que também contribuíram para o enriquecimento deste trabalho.

vi

Aos colegas do NEPRE que sempre me incentivam a continuar minha formação

profissional, Gleice M. de Meira Jesus, Vanda Lucia Sá Gonçalves, Edenar Souza

Monteiro, e especialmente a professora doutora Candida Soares da Costa. As

palavras de vocês me ajudaram muito, principalmente, a acreditar mais em mim e em

minha capacidade.

Às colegas de turma do mestrado: Malsete Santana e Zilma Marques.

Agradeço-as pelo encorajamento dado nos momentos difíceis. Sou muito grata também

a Lori Hack de Jesus pelas palavras de coragem, pelas contribuições dadas para a

elaboração dessa dissertação, por meio de livros que me foram dados e emprestados e,

pelas sugestões de melhora na escrita dessa dissertação. Obrigada Lori.

A todos as professoras negras que se disponibilizaram participar desta

pesquisa. Agradeço pela atenção com a qual fui recebida e tratada durante o

agendamento e realização das entrevistas. Agradeço por terem ficado algumas horas

após o expediente na escola para me contar suas histórias de vida. Tiveram aquelas que

me recepcionaram em suas casas, também a elas a minha sincera gratidão.

vii

AGRADECIMENTO ESPECIAL

À professora doutora Maria Lúcia Rodrigues Müller, pela competência

profissional com que me orientou no processo de elaboração desta dissertação. Pelo

incentivo e apoio ao longo dessa trajetória e também pelas muitas oportunidades a mim

concedidas, as quais possibilitaram o meu crescimento pessoal e profissional. Serei

sempre grata por ter me proporcionado oportunidades de estudo e aprendizagem nos

seminários e congressos de educação em Caxambu – MG, São Paulo, Rio de Janeiro e

Bahia. E também pelas oportunidades de trabalho em Campo Grande, Cuiabá e Nossa

Senhora do Livramento, na assistência à pesquisa na perspectiva da lei 10.639/03. Por

essas e outras oportunidades de estudo e trabalho - muito obrigada professora. Admiro

muito sua generosidade e atitude de promover o próximo. Sinto-me privilegiada por tê-

la como professora e orientadora.

viii

RESUMO

NASCIMENTO, Cleonice Ferreira do. Histórias de vida de professoras negras:

trajetórias de sucesso. 2011. 85 páginas. Dissertação (Mestrado em Educação)

Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá.

Este trabalho analisa as trajetórias de vida de professoras negras da Educação Básica,

especificamente aquelas que lecionam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, no

município de Várzea Grande/MT. O presente estudo teve como objetivo principal

compreender a possível influência da cor/raça nas trajetórias docentes e como objetivos

específicos conhecer as trajetórias de vida - escolar e profissional - das professoras

negras; verificar o que motivou a escolha pelo magistério; as contribuições dos

familiares para a escolha da profissão docente e saber qual a rede de relações

estabelecidas pelas professoras e que lhe ajudaram no estudo e na profissão. A pesquisa

foi realizada a partir de uma abordagem metodológica qualitativa. Para a coleta de

dados, empregou-se a metodologia da história oral, tendo como técnica a história de

vida. Nesse sentido, utilizou-se a entrevista por considerá-la a mais adequada para

apreender as experiências de vida das professoras negras, sujeitos sociais deste estudo.

Quase todas as docentes entrevistadas são oriundas de famílias das camadas populares.

Na trajetória de estudos obtiveram sucesso escolar, concluindo a educação básica e o

ensino superior devido ao importante apoio emocional, moral, psicológico e econômico

da família. No que se refere à vida profissional das entrevistadas, percebe-se a

influência da cor/raça em algumas carreiras docentes. Constatou-se que existe uma ideia

ou crença de que as professoras negras não têm competência e capacidade intelectual

para assumir cargos de chefia no ambiente escolar. Para permanecer no espaço de poder

conquistado e contornar esses obstáculos raciais, as professoras utilizaram a estratégia

de demonstrar e provar que tinham domínio do conhecimento profissional. As

desigualdades entre brancos e negros, no Brasil, baseiam-se no fenótipo da população.

Quanto mais clara for a pigmentação da pele de uma pessoa, maiores são as

oportunidades de assumir cargos de status e salários elevados, e, quanto mais escura a

tonalidade da pele, menores são as chances de tomar posse de postos de trabalhos de

prestígio social. Em outros termos, a cor/raça pode determinar a posição, status e lugar

das pessoas na sociedade. Isso, porque o racismo é um dos pilares que estrutura as

relações sociais neste País, inclusive na área da educação.

Palavras-chave: Professoras negras; Histórias de vida; Trajetórias escolar e

profissional.

ix

ABSTRACT

NASCIMENTO, Cleonice Ferreira do. Life history of black teachers: paths of success.

2011. 85 pages. Dissertation (Master of Education), Federal University of Mato Grosso.

Cuiabá.

This paper analyzes the life trajectories of black teachers of basic education, specifically

those who teach in the early years of elementary school in the town of Várzea Grande /

MT. The present study aimed to understand the possible influence of race / color in the

trajectories and how teachers meet specific goals the paths of life - academic and

vocational - from black teachers, verifying what motivated the choice of teaching;

'contributions to family choosing the teaching profession and know the network of

relationships established by the teachers and who have helped in the study and

profession. The survey was conducted from a qualitative approach. For data collection,

we used the methodology of oral history, with the technical history of life. Accordingly,

we used the interview to consider it more appropriate to capture the life experiences of

black teachers, social subjects in this study. Almost all teachers interviewed are from

working class families. In the course of study to a successful school, completing the

basic education and higher education because of the important emotional support,

moral, psychological and economic family. As regards the life of the interviewees, one

sees the influence of race / color in some teaching careers. It was found that there is an

idea or belief that black teachers have no power and intellectual capacity to assume

leadership positions in the school environment. To stay in the power conquered and

overcome these hurdles race, the teachers used the strategy to demonstrate and prove

that they had the field of professional knowledge. The inequalities between whites and

blacks in Brazil, based on the phenotype of the population. The lighter pigmentation of

the skin of a person, the more opportunities to assume positions of high status and

wages, and the darker the skin tone, the less likely to take ownership of jobs for social

prestige. In other words, the color / race can determine the position, status and place of

people in society. This is because racism is one of the pillars that structure social

relations in this country, including in education.

Keywords: black teachers, Life Stories, school and professional trajectories.

x

ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1 - População residente, por situação do domicílio e cor ou raça, Estado de Mato Grosso e Município de Várzea Grande – 2010

21

Tabela 2 – Nível de escolaridade e ocupação profissional dos pais das professoras.

36

xi

LISTA DE ABREVIATURAS (SIGLAS)

ADI Auxiliar de Desenvolvimento Infantil

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos

EMEB Escola Municipal de Educação Básica

FAPEMAT Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IVE Instituto Várzea-grandense de Ensino

MT Mato Grosso

NEPRE Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Relações Raciais e Educação

PCERP Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População

PED Pesquisa de Emprego e Desemprego

PME Pesquisa Mensal de Emprego

PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar

UNIC Universidade de Cuiabá

UFMT Universidade Federal de Mato Grosso

UNIVAG Centro Universitário de Várzea Grande

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…….................................…………………………………………13

CAPÍTULO I

HISTÓRIA DO MUNICÍPIO DE VÁRZEA GRANDE/MT....................................18

CAPÍTULO II

METODOLOGIA: PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS DE

PESQUISA.....................................................................................................................24

O acesso aos sujeitos da pesquisa.................................................................................27

Critérios de escolha das professoras entrevistadas....................................................29

Perfil das professoras....................................................................................................33

CAPÍTULO III

DESIGUALDADES RACIAIS NO TOCANTE À MULHER NEGRA...................37

CAPÍTULO IV

PROFESSORAS NEGRAS: AS TRAJETÓRIAS......................................................44

Contribuições da família das professoras negras.......................................................44

Redes de apoio................................................................................................................50

Imaginário social sobre as professoras negras............................................................56

Motivos da escolha pela profissão de professora........................................................61

Influências da cor na trajetória profissional de professoras negras.........................67

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................77

REFERÊNCIAS........................................................................................................79

SITES CONSULTADOS.......................................................................................83

13

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo principal compreender a possível influência da

cor/raça nas trajetórias de trabalho de professoras negras1 da Educação Básica,

especificamente aquelas que lecionam nos primeiros anos do Ensino Fundamental, no

município de Várzea Grande/MT. A partir do depoimento oral de doze professoras

negras, busquei conhecer suas trajetórias de vida escolar e profissional; verificar o que

motivou a escolha pelo magistério; as contribuições dos familiares para a escolha da

profissão de professora e saber qual a rede de relações estabelecidas por elas que lhe

ajudaram no estudo e na profissão.

O interesse em pesquisar trajetórias de vida de professoras negras ocorreu a

partir da experiência de ouvir relatos de história de vida de docentes brancas e negras,

mato-grossenses e migrantes, que atuam na rede municipal e estadual de educação na

cidade de Cuiabá-MT. Tal experiência foi possível devido à minha participação como

bolsista PIBIC2 do Projeto de Pesquisa “Construindo novas identidades culturais:

educação e mulheres em Mato Grosso”, coordenado pela professora Maria Lúcia

Rodrigues Müller. Tê-la acompanhado no processo de entrevista das professoras serviu-

me, inclusive, de aprendizagem para realização das entrevistas deste estudo.

A escolha do tema se deve também ao fato de eu ser mulher, negra e professora.

Desse modo, por experiência, sei que o caminho percorrido pela mulher negra até a

universidade não é fácil. No percurso de formação escolar e profissional, ela enfrenta

fortes situações de preconceito e de discriminação racial. Isso, porque o racismo é um

dos pilares que estrutura a sociedade. Assim, as relações da mulher negra nos diversos

setores da vida social são permeadas de manifestações de caráter racista, inclusive na

área da educação.

1 Neste estudo, o termo negro é empregado para definir a população brasileira formada pelos grupos

raciais pretos e pardos.

2Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC, em parceria com a

UFMT/CNPq/FAPEMAT. O significado das siglas destas últimas instâncias é: UFMT – Universidade

Federal de Mato Grosso; CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico;

FAPEMAT – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso.

14

A pesquisa foi realizada a partir de uma abordagem metodológica qualitativa. A

coleta de dados teve como metodologia a história oral. Entre as técnicas que compõem a

história oral, optei pela história de vida. Considero pertinente explicar o significado de

história de vida e trajetórias, neste estudo, pois essas expressões são utilizadas com

frequência nesta dissertação. Dessa forma, o artigo “A ilusão biográfica”, de Pierre

Bourdieu, serviu-me de aporte teórico para compreensão e escrita desses conceitos.

O sociólogo Pierre Bourdieu (1986) adverte o pesquisador que trabalha com

história de vida para não confundi-la com uma noção de senso comum. A noção de

história de vida não se limita a uma sucessão de acontecimentos ordenados cronológico

e logicamente. Também não se restringe ao relato coerente desencadeado numa

sequência “de acontecimentos com significados e direção” (1986, p.185). Para o

referido autor, tratar a história de vida assim talvez fosse “conformar-se com uma ilusão

retórica, uma representação comum da existência [...]” (1986, p. 185). Sabe-se que, a

pessoa ao narrar os acontecimentos de sua história de vida, o faz com a preocupação e

interesse de organizá-lo numa sequência lógica, ordenada e compreensível.

Segundo Bourdieu (1986, p. 190), para compreender uma trajetória, há que se

[...] construir os estados sucessivos do campo no qual ela se

desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o

agente considerado – pelo menos em certo número de estados

pertinentes - ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo

campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.

A noção de trajetória refere-se a uma “série de posições ocupadas

sucessivamente por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele

próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (1986, p. 189). Nessa

perspectiva, compreendo a trajetória como o deslocamento contínuo de uma pessoa ou

grupo no espaço social ocupado, na qual o agente está sempre sujeito a mudanças. E

essa trajetória de vida precisa ser considerada, compreendida dentro do campo no qual

ela se desenrolou.

O termo raça também é empregado com constância neste estudo, assim acredito

ser importante explicar que a utilização desse termo se refere à sua construção social.

Não têm nenhuma ligação com o conceito “biológico” ou “genético” de raça cunhada

no século XVIII, que pregava a existência de hierarquia entre a espécie humana,

dividindo-a em diferentes “raças”: os brancos eram considerados superiores aos outros

15

grupos, principalmente em relação aos negros, vistos como os mais inferiores em

termos intelectuais, morais e físicos.

Nesse contexto, convêm dizer que o preconceito e a discriminação racial são

frutos de uma ideologia, socialmente construída, de que existe uma hierarquização entre

grupos humanos; a qual se denomina de racismo. De acordo com Jaccoud e Beghin

(2002, p.39), o racismo é considerado uma “ideologia que apregoa a existência de

hierarquia entre grupos raciais”. Isto é, acredita-se que os brancos sejam superiores aos

negros em razão de suas diferenças fenotípicas, culturais e sociais, pois racismo é “[...]

uma maneira de justificar a dominação de um determinado grupo sobre outro, inspirada

nas diferenças fenotípicas da nossa espécie” (SANTOS, 1990, p.12).

É importante salientar que o racismo em relação aos grupos negros, no seu

contexto histórico, surgiu “de um longo processo de amadurecimento, objetivando usar

mão-de-obra barata através da exploração dos povos colonizados. Exploração que

gerava riqueza e poder, sem nenhum custo-extra para o branco colonizador e opressor”

(SANT’ANA, 2005, p.42). O racismo entre a humanidade foi surgindo e se

consolidando gradativamente “[...] através dos preconceitos, discriminações e

estereótipos” (2005, p. 43). Transmitido pelas gerações, o racismo tem sobrevivido e foi

se fortalecendo através das épocas. Entranhou-se em nossa sociedade e reflete em

nossas relações sociais.

O preconceito racial, por sua vez, “[...] limita-se à construção de uma idéia

negativa sobre alguém produzida a partir de uma comparação realizada com o padrão

que é próprio àquele que julga” (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p.38). Ou seja, é a

predisposição aversiva de um grupo em relação ao outro em circunstância da cor de sua

pele. Ainda conforme Jaccoud e Beghin (2002), a discriminação racial é uma ação, uma

manifestação ou um comportamento que prejudica certa pessoa ou grupo de pessoas em

decorrência de sua raça ou cor. Impedir uma pessoa negra de ocupar uma posição de

destaque no mercado de trabalho por motivos injustificáveis é um exemplo de

discriminação racial.

Esta dissertação estrutura-se em quatro capítulos. No primeiro, denominado

História do município de Várzea Grande/MT, apresentarei o processo histórico sobre

a fundação desse município, que teve seu território desmembrado do município de

Cuiabá pela Lei Estadual nº. 126, de 23 de setembro de 1948. Nesse capítulo, tratarei

16

também, sobre os primeiros moradores e educadores dessa cidade e a respeito de seu

desenvolvimento econômico e industrial.

No segundo capítulo, Metodologia: procedimentos e instrumentos de

pesquisa, revelarei os procedimentos metodológicos empregados para realização da

pesquisa de campo deste trabalho. Nessa parte da dissertação, explicitarei: o modo como

tive acesso aos sujeitos da pesquisa; os critérios de escolha das professoras para a

entrevista; e o perfil pessoal e profissional das docentes, as quais, a fim de terem suas

identidades preservadas, serão identificadas por nome fictício. Também estará em

anonimato o nome de escolas e pessoas citado pelas professoras durante as entrevistas.

No terceiro, Desigualdades raciais no tocante à mulher negra, discutirei as

desigualdades sob o viés racial que acometem às mulheres negras em nossa sociedade.

Sabe-se que, embora o Brasil tenha tido um desenvolvimento socioeconômico acelerado

e um enriquecimento expressivo ao longo dos anos, os negros – em especial as mulheres

negras – permanecem em situação de extrema desigualdade.

Designarei o quarto capítulo, Professoras negras: as trajetórias, à análise dos

resultados da pesquisa de campo. O presente capítulo abordará os seguintes tópicos:

contribuições da família das professoras negras; redes de apoio; imaginário social sobre

as professoras negras; motivos da escolha pela profissão de professora; influências da

cor na trajetória profissional de professoras negras.

Neste capítulo, elaborei uma discussão sobre as contribuições das famílias de

algumas professoras porque percebi, por meio das histórias de vida de algumas

professoras negras, que a família exerceu um papel de muita importância para que elas,

quando crianças, incorporassem valores positivos em relação a sua cor/raça; não se

deixassem afetar diante das situações de caráter racista em suas relações sociais e

soubessem se defender e não desistir de seus projetos de vida ao sofrer algum tipo de

preconceito e/ou discriminação racial. Esse empenho da família foi responsável pelo

grande sucesso dessas professoras.

Quero esclarecer que nesta dissertação, o termo sucesso tem como significado o

caminho mesmo de uma trajetória que se inicia com poucos recursos e, que através do

esforço pessoal e do apoio das redes de relações alcança a um patamar muito melhor.

No caso das depoentes de vida muito modesta, o termo sucesso se refere às conquistas

17

que elas tiveram em sua vida: concluíram o ensino superior; ocupam um espaço

profissional que se insere no campo intelectual; a maioria é professora concursada,

desse modo, possuem autonomia financeira e são independentes. Essas são conquistas

significativas na vida de qualquer pessoa, em especial quando se trata de mulheres e

negras. Infelizmente, a maior parte das mulheres negras no Brasil exerce atividades

ligadas ao serviço doméstico, ocupação de pouco ou nenhum prestígio social e de baixa

remuneração salarial.

Sabe-se que as desigualdades raciais no Brasil são significativas. Fenômeno

semelhante ocorre no mercado de trabalho, inclusive na educação. A participação de

negros em postos de trabalho de maior prestígio ainda é muito restrita. As mulheres

negras, quando conseguem romper com algumas barreiras do racismo e passam a

ocupar posições mais distanciadas da subalternidade (como a profissão de professora,

por exemplo), acabam tendo de enfrentar uma série de obstáculos marcados por todos os

complicadores de não ser branco no Brasil. Diante disso, ressalto que o importante é

passar pelas dificuldades, não parar, mas sim avançar.

18

CAPÍTULO I

HISTÓRIA DO MUNICÍPIO DE VÁRZEA GRANDE/MT

Este capítulo apresenta a “história oficial” sobre a fundação do município de

Várzea Grande e mostra seus primeiros moradores e educadores. Além disso, aborda

seu desenvolvimento econômico e industrial. Com base nos dados do censo

demográfico de 2010, apresento, quantitativamente, a composição racial da população

mato-grossense e várzea-grandense.

Fiz uma breve contextualização sobre o espaço geográfico onde se realizou a

pesquisa para conhecimento dos leitores. Dessa forma, considero importante dizer que

existem poucos trabalhos produzidos sobre a história desse município, e em geral a

abordagem é feita de maneira sintética. A elaboração deste capítulo foi feita com base,

principalmente, no estudo de Tavares (2011) e IBGE (2010). Também utilizei como

referência teórica textos disponíveis no site da Prefeitura e da Câmara Municipal de

Várzea Grande.

Separada de Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso, pelo Rio Cuiabá, Várzea

Grande possui um território de 949,53 Km². Localiza-se na microrregião de Cuiabá,

Centro Oeste brasileiro, Estado de Mato Grosso. Faz limites com os municípios de

Cuiabá, Santo Antônio de Leverger, Nossa Senhora do Livramento, Acorizal e Jangada

(IBGE, 2010). O primeiro mapa demonstra a localização dos municípios de Cuiabá e

Várzea Grande no Estado de MT. O segundo mostra a localização de Várzea Grande e

seus limites.

Mapa 1 – localização dos municípios de Cuiabá e Várzea Grande

Fonte: http://mochileiro.tur.br/varzea-grande.htm

Mapa 1 – localização dos municípios de Cuiabá e Várzea Grande

Fonte: http://mochileiro.tur.br/varzea-grande.htm

19

Mapa 2 – localização de Várzea Grande e seus limites. Fonte: www.mteseusmunicipios.com.br

Foto atual de Várzea Grande – vista aérea – fonte: www.varzeagrande.mt.gov.br

Conforme os dados do IBGE, censo demográfico de 2010, o município possui

uma população de 252.596 mil habitantes. O número de mulheres é superior ao de

homens (127. 329 mil, 125.267 mil), respectivamente. Em dez anos (2000-2010), sua

população cresceu 17,37% ao ano, um crescimento absoluto de 37.411 pessoas nesse

período.

A composição racial da população residente no Estado de Mato Grosso e no

município de Várzea Grande é predominantemente negra. A quantidade de negros em

Mato Grosso corresponde a 60%3, enquanto a de brancos equivale a 37%. Nesse Estado,

3 Percentual correspondente à adição relativa ao número de pretos e pardos: 1.820.597.

20

3% representam as categorias: indígena, amarela e sem declaração. Em Várzea Grande,

o contingente de negros também é mais elevado do que o de brancos, sendo 70%4 para

29% dos brancos. A quantidade de indígenas é menor que a de negros e brancos, mas é

maior que a de amarelos em Mato Grosso. A Tabela 1 demonstra o exposto aqui.

Tabela 1 - População residente, por situação do domicílio e cor ou raça, Estado de Mato Grosso e Município de Várzea Grande - 2010

População por cor/raça

Estado de Mato Grosso

(%) Município de Várzea Grande

(%)

Branca 1.137.150 37,46 72.904 29 Preta 229.890 7,58 24.904 10 Parda 1.590.707 52,40 151.722 60 Amarela 34.642 1,14 3.161 1,25

Indígena 42.538 1,40 290 0,11 Sem Declaração 195 0, 006 05 0, 001 Total 3.035.122 100 252.596 100 Fonte: Tabela elaborada pela pesquisadora com base nos dados do censo demográfico de 2010/IBGE.

Registra-se oficialmente a fundação do município de Várzea Grande na data de

15 de maio de 1867. Hoje com 144 anos de existência. A sua denominação deve-se à

extensa planície na qual o núcleo teve origem e se desenvolveu, abrangendo enormes

várzeas (TAVARES, 2011).

As origens de sua fundação estão ligadas à Guerra do Paraguai (1864-1870) −

conflito estabelecido entre a Tríplice Aliança (Brasil, Uruguai e Argentina) em uma

guerra deflagrada contra o Paraguai. “A extensa linha que dividia Brasil e Paraguai

obrigava o II Império a tomar providências para impedir os avanços das tropas

adversárias” 5. O Paraguai fazia fronteira com a Província de Mato Grosso. Os mato-

grossenses participaram efetivamente dessa guerra, expulsando os paraguaios da

fronteira brasileira. Esse conflito marcou profundamente a memória histórica do Brasil.

A história sobre a sua fundação aparece também atrelada às ações empreendidas

pelo Presidente da Província de Mato Grosso José Vieira Couto de Magalhães6, em

função da Guerra do Paraguai. O referido Presidente da Província foi responsável pela

4 Percentual correspondente à adição relativa ao número de pretos e pardos: 276.626.

5 Disponível em: www.camaravarzeagrande.mt.gov.br/historia.php. Acesso: 10 jul. 2011 às 11h11min.

6José Vieira Couto de Magalhães era advogado e mineiro da cidade de Diamantina, homem de confiança

do Imperador D. Pedro II. Em homenagem a ele, uma das principais avenidas de Várzea Grande chama-se

Couto Magalhães. Fonte: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/matogrosso/varzeagrande.pdf

Acesso: 10 jul. 2011 às 11h15min.

21

criação de um acampamento militar, conhecido também como campo de prisioneiros,

para proteger os paraguaios que eram civis (os paraguaios detidos não vinham dos

campos de batalha, eram cidadãos comuns) e moravam em Cuiabá e arredores. O

acampamento militar foi construído com o objetivo de manter os prisioneiros

paraguaios afastados da população cuiabana, que estava indignada pelas torturas

sofridas por seus soldados durante o período da guerra. O presidente da Província de

Mato Grosso “temia pela vida destas pessoas, numa possível revolta popular em

represália às atrocidades cometidas (pelo menos era a informação vinda ao povo

cuiabano) pelo exército paraguaio em época de guerra” (IBGE, 2011). “Firmou-se então

um povoado, que girava em torno da Igreja de Nossa Senhora da Guia e dos muitos

caminhos que permitiam o acesso a este centro convergente. Por muito tempo a

comunidade sujeitou-se ao incômodo campo de prisioneiros paraguaios” (IBGE, 2011).

O acampamento estendia-se de onde hoje está a Praça Aquidabã até o local onde

atualmente se encontra a Igreja Nossa Senhora da Guia.

Após a guerra, surgiu uma nova população. Alguns paraguaios começaram a

cultivar as áreas próximas e o processo de ocupação do povoado várzea-grandense

ocorreu gradativamente, constituída por “pelo menos três castas-sociais: soldados

brasileiros, presos paraguaios e vaqueiros – alicerçada numa pequena povoação, ainda

formada por lavradores e vaqueiros” (IBGE, 2011). Daí em diante, pessoas de vários

lugares fixaram-se no pequeno povoado em crescimento. Assim, apareceram os

primeiros comerciantes, aumentando ainda mais o pequeno núcleo populacional.

É de suma importância dizer que os primeiros habitantes do referido povoado

foram os índios da etnia Guanás ou Guanus. Essa etnia era formada por diversos

grupos, sua população contava com um número em torno de cinco a seis mil membros.

Os povos guanás ocupavam “as proximidades de onde hoje se localiza Corumbá

(antigo: Albuquerque), na margem direita do rio Cuiabá, em áreas da atual Várzea

Grande, sul de Nossa Senhora do Livramento, cercania de Santo Antonio do Leverger”

(TAVARES, 2011, p. 15).

Os Guanás eram especialistas em navegação e foram canoeiros muito hábeis.

Essa etnia foi a precursora da indústria manual de Várzea Grande, pois fabricava redes e

cerâmica. As atividades econômicas desses povos estavam ligadas ao cultivo da terra e

do comércio de troca. Os guanás mantiveram contatos comerciais com os brancos até

22

meados do século XIX. Segundo Tavares (2011), com o processo de ocupação e da

busca de ouro pela região de Cuiabá, os guanás foram deslocados para as regiões

pantaneiras. Esse autor diz que não há mais nenhum descendente puro dessa etnia nesta

região.

Ainda com relação aos habitantes, que fizeram parte do território várzea-

grandense, Tavares (2011, p.55) diz que “restos antigos de muros (taipas de saibro

socado) e a quantidade notável de negros constituem indícios indiscutíveis de que o

povoado possuiu escravos e senhores”. Conforme o mesmo autor, os vestígios mais

acentuados foram encontrados nas terras da antiga chácara São João, propriedade de

João Vieira de Azevedo. Trata-se de uma residência grande, de estilo antigo, que

possuiu destaque até 1960. Essa residência tinha uma enorme varanda lateral, aberta,

semelhante a uma pequena senzala. Os moradores do porto, que foram entrevistados

pelo professor Tavares, afirmam tratar-se evidentemente do lugar em que se alojavam

escravos dessa chácara. “Consta que a extinção da escravatura em 1888 não foi

reconhecida pelos senhores, que não libertaram seus escravos, pois estes ‘chefes’

viviam distanciados da força do poder público, indevidamente amparados pelo

coronelato da política da época” (TAVARES, 2011, p.55).

O processo de seu desenvolvimento e industrialização está relacionado à grande

migração, à cessão pela prefeitura de áreas para a instalação de indústrias e ao povo que

continua construindo a história do município com seu trabalho cotidiano. Nas primeiras

décadas, a partir de 1870, o povoado várzea-grandense cresceu lentamente. A população

sobrevivia da lavoura, abate de reses, fabricação de lenha e de uma indústria manual,

que proporcionava a comercialização com Cuiabá por meio de barcos, construídos em

04 de julho de 1874.

Não se registrou, durante uma década, qualquer fato interessante e

tudo dependia de Cuiabá, onde a venda do exíguo produto era feita,

completando-se, ato contínuo, a operação de compra e venda, com a

aquisição das utilidades que então levavam para o povoado.

(TAVARES, 2011, p.53)

No que se refere ao aspecto econômico, registra-se, na região, a existência de

plantações de cana-de-açúcar e criação de gado, muito antes da criação do

acampamento militar dos prisioneiros paraguaios. Na atividade referente à plantação da

cana de açúcar foi utilizada a mão de obra escrava, com a finalidade de abastecer as

usinas existentes na região, como o Itaici, a qual tem suas ruínas às margens do Rio

23

Cuiabá, a pouco mais de 10 km de distância do distrito de Bonsucesso (TAVARES,

2011).

O município de Várzea Grande iniciou um expressivo crescimento a partir do

ano de 1957. Atualmente, ela é considerada uma cidade industrial, porque, com relação

à sua economia, destaca-se a indústria e o comércio. Além disso, abriga grandes

empresas industriais do ramo frigorífico, e no setor comercial, possui grandes redes de

lojas e supermercados. Destaca-se também o significativo número de revendedoras de

veículos, e o aeroporto Marechal Rondon, que atende a capital Cuiabá e todo o Estado

de Mato Grosso.

A renda mensal per capita média de Várzea Grande é inferior a de Cuiabá –

sendo R$ 571, e, R$ 930, respectivamente. Com relação à incidência de pobreza, Várzea

Grande apresenta um percentual de 38,24%, e a capital mato-grossense 27,63% (IBGE,

2010).

No que diz respeito à educação, registra-se que o primeiro professor foi o mestre

Bilão, como era popularmente conhecido. Ele foi responsável pela criação de uma

pequena escola, que se limitava ao ensino do abecedário e da tabuada. As aulas eram

ministradas para dez ou vinte crianças. Mestre Bilão iniciou na carreira de professor em

1870, entretanto, não há registro sobre quando foi o fim de sua carreira. Sabe-se que,

após a proclamação da República, a primeira professora foi a senhora Mariana Serra,

conhecida como Dona Filinha, que exerceu a profissão numa pequena casa ao lado da

Igreja Nossa Senhora da Guia. Dona Mariana Serra exerceu o magistério durante muitos

anos, até ser jubilada no primeiro governo do Dr. Mário Corrêa (TAVARES, 2011).

Atualmente, Várzea Grande conta com uma rede municipal de ensino, que

possui 60 escolas de Educação Básica, sendo 42 escolas na área urbana e 18 escolas na

área rural. Possui também 44 escolas estaduais; 47 escolas particulares e 03 instituições

privadas que ofertam cursos de ensino superior. Em Cuiabá existem 10 instituições de

ensino de nível superior, sendo 08 particulares e 02 públicas (Universidade Federal de

Mato Grosso – UFMT e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato

Grosso - IFMT) 7.

O município de Várzea Grande teve seu território desmembrado do município de

Cuiabá pela Lei Estadual nº. 126, de 23 de setembro de 1948.

7 Disponível em: www.camaravarzeagrande.mt.gov.br/historia.php. Acesso: 12 jul. 2011 às 10h15min.

24

CAPÍTULO II

METODOLOGIA: PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS DE

PESQUISA

A pesquisa desenvolvida neste trabalho foi realizada a partir de uma abordagem

metodológica qualitativa. Segundo Minayo (2007), a pesquisa qualitativa, nas ciências

sociais, ocupa-se com uma dimensão da realidade que não pode ser quantificada, pois

seu universo de trabalho envolve “significados, motivos, aspirações, crenças, valores e

atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e

dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (2007,

p.21). Nessa perspectiva, optei pela pesquisa qualitativa porque ela é um instrumento

que oferece indícios da subjetividade do entrevistado.

Para a coleta de dados, empreguei a metodologia da história oral. A referida

metodologia foi utilizada como instrumento de estudo por historiadores e, recentemente,

o seu uso reapareceu entre os pesquisadores das ciências sociais no Brasil. A

transmissão do conhecimento por meio da oralidade surgiu antes de a escrita ser

inventada. Nesse sentido, o relato, atualmente denominado de história oral, “se

constituiu a maior fonte humana de conservação e difusão do saber” (QUEIROZ, 1991,

p. 2). Essa autora ainda afirma que o relato oral serve de registro da memória de um

indivíduo ou comunidade. Para ela, “a narrativa oral uma vez transcrita, se transforma

num documento semelhante a qualquer outro texto” (1991, p.5).

Segundo Thompson (1992, p. 41-44), a história oral “trata de vidas individuais -

e todas as vidas são interessantes”. Ela é uma “história construída em torno de pessoas.

Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do

povo”. A história oral é um tipo de pesquisa que possibilita a apreensão, por meio do

relato oral, de experiências de um determinado indivíduo ou grupo de pessoas. Por ser

de natureza abrangente, é composta, entre outras, pela técnica de história de vida que,

“por sua vez, se define como o relato de um narrador sobre sua existência através do

tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência

que adquiriu” (QUEIROZ, 1991, p. 6).

25

Nessa perspectiva, o uso dessa metodologia me permitiu conhecer vestígios da

história de vida de professoras da Educação Básica e “registrar o que ainda não se

cristalizara em documentação escrita, o não-conservado, o que desapareceria se não

fosse anotado [...] o não-explícito, quem sabe mesmo o indizível” (QUEIROZ, 1991, p.

1-2). Por meio da técnica de história de vida, foi possível apreender e compreender parte

da realidade social da vida pessoal e profissional das docentes. Ou seja, suas trajetórias

de vida, as experiências vivenciadas, tanto as positivas como as negativas. Foi possível

também conhecer os preconceitos e as práticas discriminatórias ligadas à vida de

trabalho das professoras, assim como as estratégias utilizadas que lhes possibilitaram

vencer na vida.

“Certamente, nenhuma forma de entrevista pode apreender a totalidade de uma

experiência, nem mesmo a entrevista que se prolonga por várias seções, como no caso,

às vezes, das histórias de vida [...]” (POUPART, 2008, p. 225), entretanto, utilizei a

entrevista por considerá-la a mais adequada para apreender as histórias de vida das

professoras. Utilizei entrevista semiestruturada, “que combina perguntas fechadas e

abertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão

sem se prender à indagação formulada” (MINAYO, 2007, p.64).

Para Minayo (2007), a entrevista é uma técnica privilegiada de comunicação.

Entrevista é acima de tudo uma conversa a dois, ou entre vários

interlocutores, realizada por uma iniciativa do entrevistador. É por

meio de entrevistas também, que realizamos pesquisas baseadas em

narrativas de vida, igualmente denominadas “histórias de vida”,

“histórias biográficas”, “etnobiografias” ou “etno-histórias”. (p.64-

65).

A entrevista é a “forma mais antiga e mais difundida de coleta de dados orais,

nas ciências sociais” (QUEIROZ, 1991, p. 6). Ela é um instrumento de pesquisa

importante porque permite o acesso à experiência de vida das pessoas. Além disso, abre

“a possibilidade de compreender e conhecer internamente os dilemas e questões

enfrentados pelos atores sociais” (POUPART, 2008, p. 216), pois é capaz de elucidar as

realidades sociais. No caso desta pesquisa, obter os depoimentos de professoras negras

sobre suas trajetórias de vida e trabalho trouxe elementos significativos para a

compreensão da possível influência da cor/raça nas trajetórias docentes.

26

O texto Compreender de Pierre Bourdieu (1997), além de servir de aporte

teórico para fundamentação deste capítulo da dissertação, foi de suma importância para

a minha compreensão de como realizar e conduzir de modo apropriado as entrevistas

com as professoras – atrizes sociais deste trabalho. Além disso, procurei seguir as

orientações de Minayo (2007). Isto é, apresentei-me, fiz menção ao interesse da

pesquisa, justifiquei a escolha do entrevistado, garanti anonimato e sigilo, e conversei

inicialmente com cada professora a fim de “criar um clima o mais possível descontraído

de conversa” (MINAYO, 2007, p.64).

No que se refere à técnica de entrevista, Bourdieu (1997) explicita quais as

condições para se compreender o processo de entrevista e assim realizá-la de maneira

adequada. Conforme esse autor, existe uma relação desigual entre pesquisador e

pesquisado, ou seja, normalmente o pesquisador está numa posição superior e mais

poderosa que o pesquisado. Desse modo, cabe ao entrevistador procurar aproximar-se o

máximo possível do entrevistado para reduzir essa distância social. Essa redução se dá

por meio de como o pesquisador se manifesta para realizar a entrevista. Nessa

perspectiva, uma das condições que possibilita a diminuição da distância social está

ligada à comunicação que o pesquisador estabelece com a pessoa que será entrevistada

– uma comunicação “não violenta”, como sugere Bourdieu. Ainda conforme o autor, na

relação de entrevista, é fundamental que o pesquisador saiba apresentar o assunto de sua

pesquisa, a finalidade e a relação dela com o indivíduo que será entrevistado. A

comunicação deve estimular a colaboração do pesquisado, para tanto, é de suma

importância o uso de um nível de linguagem adequado ao do entrevistado.

Para Bourdieu, é importante uma proximidade social do pesquisador com o

depoente no processo de entrevista, entretanto, esse envolvimento deve ter limites, pois

a proximidade muito profunda entre ambos pode comprometer o resultado da pesquisa –

algumas informações importantes podem ficar ocultas na relação de entrevista. Esse

sociólogo diz que, “a proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas

das condições principais de uma comunicação “não violenta” (1997, p.697). O

envolvimento entre pesquisador e pesquisado dá garantia ao entrevistado de que suas

razões subjetivas não serão “reduzidas a causas objetivas; [...]”, reduzidas aos

determinismos objetivos revelados pela análise” (BOURDIEU, 1997, p.697).

27

Cecília Minayo (2007), considera importante o envolvimento do entrevistado

com o entrevistador. Para essa pesquisadora:

Em lugar dessa atitude se constituir numa falha ou num risco

comprometedor da objetividade, ela é condição de aprofundamento da

investigação e da própria objetividade. Em geral, os melhores

trabalhadores de campo são os mais simpáticos e que melhor se

relacionam com os entrevistados (2007, p. 67 - 68).

Eu não conhecia a maioria das professoras entrevistadas. Assim, procurei

estabelecer o máximo possível uma proximidade social com as participantes da

pesquisa. Nesse sentido, tomei por base umas das condições que o sociólogo Pierre

Bourdieu diz corroborar para reduzir a distância social entre pesquisador e pesquisado,

isto é, procurei ser atenciosa e atenta. Numa relação de entrevista, é importante que o

pesquisador esteja atento, seja atencioso e saiba “administrar” as perguntas para que a

conversa ocorra de maneira natural. Nesse processo, o tom de voz, bem como o

conteúdo de suas palavras, colabora para que o pesquisado se sinta legitimado a ser o

que ele é. Estar atento contribui para perceber elementos importantes ditos pelo

entrevistado e, assim, poder explorá-los; ser atencioso pode estimular uma melhor

participação do depoente.

O processo da comunicação verbal e não verbal de concordância com o depoente

assegura a boa continuação da relação de entrevista, porque as expressões faciais,

gestos, olhares, sorrisos, os “sim, “ok”, “certo”, demonstrados pelo pesquisador são

sinais de feedback que, usados em concordância com as falas do pesquisado, estimulam

sua participação na entrevista. Compreender esses princípios de entrevista, possibilitou-

me ter subsídios teóricos para conduzir as entrevistas de modo que os objetivos da

pesquisa fossem alcançados.

O acesso aos sujeitos da pesquisa

No final do primeiro semestre de 2010, fui à Secretaria Municipal de Educação

de Várzea Grande para fazer um levantamento exploratório do cadastro de professoras,

que, para ser utilizado, deveria ter a fotografia delas, pois, por meio das fotografias, eu

28

realizaria uma classificação inicial, que seria corroborada, ou não, nas entrevistas. A

intenção era selecionar o cadastro de docentes negras, para posteriormente solicitar a

participação delas na pesquisa. Entretanto, a escolha das professoras não ocorreu do

modo como se pretendia. No contato feito com a coordenadora da Secretaria Municipal

de Educação de Várzea Grande, fui informada que a Secretaria dispunha do cadastro de

professoras, contudo sem fotos das docentes.

Diante disso, o processo de seleção das professoras aconteceu de diferentes

modos. Duas professoras, amigas da pesquisadora, intermediaram o contato com as seis

docentes que foram entrevistadas. Entrevistei-as nas escolas em que trabalham - quatro

numa escola central e duas numa escola periférica8. Tomei o cuidado de explicar do que

se tratava a pesquisa, antes de iniciar o processo de entrevista, assim como o cuidado de

entrevistar as professoras separadamente, deixando-as totalmente à vontade no sentido

de relatar suas histórias de vida.

Para conseguir a participação de mais professoras, quase no final do segundo

semestre de 2010 (mês de novembro), fui até uma Escola Municipal de Várzea Grande

e, após me apresentar à diretora, expliquei a ela que estava desenvolvendo uma pesquisa

de mestrado sobre histórias de vida de professoras e precisava entrevistar as docentes

que se dispusessem a participar de meu trabalho. Na hora do intervalo, a diretora me

levou à sala dos professores e ali conversei com as professoras. Nessa escola, entrevistei

uma professora negra.

Todas as professoras que participaram da pesquisa não demonstraram resistência

em narrar suas histórias de vida. Pelo contrário, foram atenciosas e se colocaram à

disposição, caso fosse necessário voltar a campo para obter mais informações sobre suas

histórias. Além da atenção com a qual fui recebida, notei que duas professoras negras

expressaram muita alegria no momento da entrevista, demonstrando assim grande

satisfação de terem sido convidadas a participar de uma pesquisa de mestrado.

Outro procedimento adotado para finalizar o processo de seleção das professoras

negras ocorreu por meio de um levantamento de ficha de matrícula, com foto de

8 Nesta pesquisa não se pretendeu selecionar, para o processo de entrevistas, professoras de escolas

periféricas e/ou centrais, porque o foco principal deste estudo se baseia na história de vida de professoras,

independente de elas trabalharem em escolas localizadas em bairro periférico ou central.

29

docentes que participaram como alunas de dois cursos promovidos pelo NEPRE9: Curso

de Especialização Relações Raciais e Educação na Sociedade Brasileira (2009-2011) e

Curso de Aperfeiçoamento Relações Raciais e Educação na Sociedade Brasileira (2010-

2011). Foram entrevistadas cinco docentes negras da rede municipal de educação de

Várzea Grande, sendo três do curso de especialização e duas do curso de

aperfeiçoamento.

As entrevistas foram realizadas nos meses de novembro e dezembro de 2010 e

nos três primeiros meses de 2011 (janeiro, fevereiro e março). Foram entrevistadas doze

professoras negras da Educação Básica. Registrei as informações coletadas por meio de

aparelho de gravação de voz digital – MP3. As entrevistas foram transcritas respeitando

a fala das professoras. No “corpo” de algumas falas, faço algumas explicações, quando

necessário, entre parênteses. Ao longo do texto desta dissertação cito algumas falas

curtas (frases) das professoras; quando citadas, as falas estão em itálico e entre aspas.

Todas as depoentes assinaram um termo de consentimento de entrevista.

Critérios de escolha das professoras entrevistadas

Os critérios de escolha das professoras ocorreram segundo o sexo, a cor/raça, o

nível de ensino, de atuação e a cidade onde moram. Tive a intenção de entrevistar

mulheres negras, do ensino primário, e que residem em Várzea Grande. Optei por

mulheres professoras negras das séries iniciais em decorrência de o exercício do

magistério ser eminentemente feminino, e o Ensino Fundamental ocupado

majoritariamente por mulheres negras (TEIXEIRA, 2006). Além disso, esse perfil

profissional se relaciona favoravelmente com o objetivo geral da pesquisa: conhecer a

possível influência da cor/raça na carreira profissional das professoras negras do Ensino

Fundamental.

Para a classificação racial das professoras negras, baseei-me no fenótipo das

entrevistadas, ou seja, em suas características físicas como o tipo de cabelo, formato do

nariz e dos lábios, e, principalmente, na cor da pele. Tomei por critério de classificação

9 Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação.

30

racial a aparência, porque, na sociedade brasileira, o preconceito racial contra a

população negra é de marca. Ou seja, ele se manifesta com base na aparência, tomando

“por pretexto para as suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a fisionomia,

os gestos, o sotaque [...]” (NOGUEIRA, 1985, p.79).

O IBGE publicou recentemente os resultados da Pesquisa das Características

Étnico-raciais da População – Pcerp, realizado em 2008, “com o propósito de

compreender melhor o atual sistema de classificação da cor ou raça nas pesquisas

domiciliares realizadas pela Instituição e contribuir para seu aprimoramento” (IBGE,

2011, p11). Nesse estudo, o IBGE apresenta os resultados sobre as categorias de

classificação racial da população brasileira por cor ou raça.

No que se refere à autoidentificação de cor/raça, a cor da pele é o elemento mais

citado para definir cor ou raça. Entre os itens de identificação apresentados aos

entrevistados, “a cor da pele” foi citada por 74% dos entrevistados. Posterior ao item “a

cor da pele”, seguem: “origem familiar” (62%) e “traços físicos” (54%). Com relação à

identificação das “pessoas em geral”, a dimensão mais citada também foi a “cor da

pele” (82,3% dos entrevistados); “traços físicos (cabelo, boca, nariz, etc.)” (57,7%); e

“origem familiar, antepassados” (47,6%) (IBGE, 2011).

Nesse contexto, percebe-se que

O padrão contemporâneo de classificação de raça no Brasil tem sido

preferencialmente fenotípico, e este padrão parece ter mantido uma

certa constância no plano das relações interpessoais, como podem

confirmar estudos estrangeiros e brasileiros sobre a terminologia

utilizada na auto-autribuição de cor, a qual se baseia em um sistema

combinando de cor de pele, traços corporais (formato do nariz, lábios,

tipo e cor de cabelo) e origem regional (PIZA e ROSEMBERG, 2009,

p.92).

Sabe-se que a classificação racial no Brasil é um tema complexo. A classificação

racial da população brasileira é um ato histórico e uma construção social. O IBGE

utiliza o quesito cor ou raça nos recenseamentos do País desde 1872. Ao longo dos

anos, esse quesito (cor/raça) passou por um processo de transformação (eliminação,

substituição e inclusão) de categorias de cor. A autodeclaração feita com base nas

categorias de cor: preta, parda, branca, indígena e amarela – vem sendo utilizada desde

1980 pelo IBGE (PETRUCCELLI, 2007).

31

O estudo de Petruccelli (2007) sobre a classificação racial no tocante à sociedade

brasileira mostra que a classificação é arbitrária. Há uma variação de termos

empregados para se denominar a cor da pele conforme as regiões do País. Ainda

segundo esse autor, o ato de classificar não é neutro. A operação classificatória “está

imbuída de uma relação de dominação simbólica entre um “sujeito” que categoriza, ou

classifica e um “objeto” que é categorizado, ou classificado” (2007, p.118). Os diversos

estudos feitos sobre o tema de classificação racial demonstram de maneira unânime que

“pode diferir a forma como cada um se vê e como é percebido em termos raciais, ou

seja, o processo de classificação racial é relacional” (TEIXEIRA e BELTRÃO, 2008,

p.7).

Para efetuar a classificação racial das professoras, como já foi dito, utilizei como

critérios suas características fenotípicas, principalmente, a cor da pele. Em minha

classificação todas as docentes são negras, sendo dez pretas e duas pardas. A opção por

identificar as professoras a partir das categorias de cor preta e parda, ocorreu com base

na nomenclatura de classificação racial utilizada pelo IBGE desde 1980 nos

recenseamentos da população brasileira. Além da heteroatribuição (cor/raça atribuída

pelo entrevistador), também utilizei a autoclassificação (cor/raça declarada pelo

entrevistado). Para tanto, utilizei pergunta aberta na qual a resposta fica à escolha livre

do informante. Usei também pergunta fechada. Com relação a esse último quesito, listei

as opções tradicionais das pesquisas do IBGE: preta, parda, branca, amarela e indígena.

Na pergunta aberta, as professoras se autoclassificaram como negras. Apenas

uma professora, parda, ficou em dúvida sobre que cor se autoclassificar. Ela olhava para

o braço e dizia que nunca tinha parado para pensar em sua cor, que seu esposo é quem

sempre respondia aos censos demograficos do IBGE. Após pensar alguns minutos, ela

disse: “eu acho que sou amarela”. Em seguida, perguntou-me como eu a classificava.

Respondi-lhe: parda. Em seguida, ela indagou: o que é amarelo? Disse a ela: pessoas de

ascendência asiática. Ela sorriu e disse: “não, então eu não sou amarela, eu sou parda”.

Mantive a sua resposta inicial com relação à pergunta aberta e na fechada coloquei

parda, já que assim ela se declarou.

Com relação à autoclassificação racial das docentes – pergunta fechada – elas se

denominaram como: preta (10 professoras), parda (01 professora) e indígena (01

professora). Uma professsora, na pergunta aberta, disse que se considerava negra, e na

32

pergunta fechada escolheu a categoria indígena. Ao final da resposta dela, perguntei

porque ela se autoclassificou como indígena. Ela disse: “porque eu tenho descendente

também na família. Por traços familiares, porque eu tenho descendente de indígena”. A

sua opção pela categoria indígena se pautou na questão de origem familiar, embora ela

não apresentasse traços indígenas.

Não há muita diferença ou divergência quantitativamente na classificação racial

realizada pela pesquisadora e pelas professoras. Elas se autoclassificaram de imediato

como negras. Apenas uma, no momento de se autodenominar no quesito pergunta

aberta, oscilava sua resposta, dizendo que era morena, mulata, negra. Quando indagada

sobre como se classificava a partir das categorias de cor utilizada pelo IBGE, ela

respondeu: “preta, porque para mim é o ideal”. De modo geral, notei que a maioria das

professoras, ao se autoclassificarem, diziam com ênfase, alegria e orgulho: eu sou negra.

“Eu sou negra, é claro. Linda!” (Professora Angélica)

“Preta. Negra. Eu nunca tive esse negócio de que era branca”. (Professora Elisa)

“Eu sou negra. Com muito orgulho e muito prazer!” (Professora Claudia)

Os relatos acima demonstram que as docentes deste estudo se vêem, sentem-se e

falam de si como negras. Isso foi observado durante todo o percurso da entrevista, não

apenas no momento da autoclassificação racial. Ademais, os meus achados de pesquisa

apontam também que essas afirmações da cor/raça por parte das professoras tem

historicidades diferentes, isto é, são questões de contextos distintos. Teve a importante

contribuição de algumas famílias, que ensinaram valores positivos em relação ao

pertencimento racial de suas filhas, como revela esse depoimento: “Eu venho de uma

família que trabalha com a consciência negra. Então na minha cultura familiar a gente

sempre teve essa questão da valorização da nossa cor de pele” (Professora Isaura).

Percebe-se, por meio da fala dessa professora, que a influência de sua família,

que faz (ou fez) parte do Movimento Negro e trabalha (ou trabalhou) com a consciência

negra, foi um fator fundamental que beneficiou a construção de uma identidade racial

positiva pela docente. Ao contrário da professora Lilian que se reconhece como negra e

assim se declara em razão de sua participação no curso de Especialização Relações

Raciais e Educação na Sociedade Brasileira, ofertado pelo NEPRE, pois, a partir das

discussões feitas nesse Curso, essa professora construíu novos valores no que tange à

33

sua cor/raça. Ao responder a pergunta sobre como se autoclassificava em relação a sua

cor/raça, ela afirmou: Preta. Com muito orgulho hoje, depois do Curso de

Especialização Relações Raciais, que me elevou a autoestima. Ele me deu a direção de

que eu sou bonita, eu sou gente e tenho capacidade [...] (Professora Lílian). Foram

realidades diferentes vivenciadas por essas professoras que lhes possiblitaram se

assumirem como negras. Uma construiu isso em casa, com a família e a outra adquiriu

com a formação no curso de especialização do Nepre.

Perfil das professoras

Apresento nessa parte do texto algumas informações sobre o perfil pessoal e

profissional das docentes, como: a faixa etária; a naturalidade; a formação escolar na

educação básica e no ensino superior; o tempo de magistério; situação funcional; a

escolaridade e profissão dos pais das entrevistadas.

No que se refere à idade das entrevistadas, a faixa etária das docentes varia de

30 até 60 anos. Sendo que quatro depoentes encontram-se na faixa de 30 a 40 anos; seis

estão na faixa de 41 a 50 anos; e duas entre 51 a 60 anos de idade.

Com relação à naturalidade das professoras, a maioria é mato-grossense, sendo

onze professoras do próprio estado e apenas uma migrante. Dentre as docentes oriundas

de Mato Grosso, grande parte são naturais de Cuiabá e Várzea Grande; as outras são

procedentes de cidades do interior, como: Nortelândia, Santo Antônio do Leverger e

Nossa Senhora do Livramento.

Sobre a trajetória escolar das depoentes, todas concluíram a Educação Básica em

escola pública. Três professoras narraram que iniciaram a trajetória escolar em idade

não regular porque moravam na zona rural (em sítios) e nessa região faltavam

professores para lecionar. Diante dessa realidade algumas professoras mudaram para

Várzea Grande para que tivessem a oportunidade e condições de iniciar os estudos e

concluí-lo. Elas vieram pequenas, na idade de quase dez anos, assim duas vieram

acompanhadas dos pais e uma, das irmãs mais velhas. Algumas professoras tiveram

reprovações durante o ensino fundamental, contudo, os depoimentos demonstram que

elas eram muito dedicadas aos estudos: gostavam de ler e estudar.

34

Quanto à formação acadêmica, verificou-se que as professoras,

majoritariamente, são graduadas em Pedagogia. Uma professora se formou em

Pedagogia e História. Nota-se também que quase todas possuem pós-graduação em

nível de especialização. Algumas professoras cursaram em torno de duas/três

especializações. Na época em que realizei as entrevistas, três professoras disseram que

estavam na fase final (elaboração de monografia) de um curso de especialização

presencial na temática de Relações raciais e educação na sociedade brasileira, ofertado

pelo NEPRE/UFMT.

O tempo de atuação profissional das professoras na área da educação varia de 1

a 35 anos. Sendo que sete entrevistadas possuem entre 11 a 20 anos de exercício de

profissão, quatro têm entre 21 a 30 anos e uma tem 34 anos de carreira. Em suma, as

depoentes têm bastante tempo de experiência no desempenho da profissão de

professora. No tocante à situação funcional, nove professoras são efetivas e três são

interinas.

No que se refere ao nível de escolaridade e ocupação profissional do pai e da

mãe das professoras, a parir da tabela 2, é possível notar que a maioria dos pais

(pai/mãe) possui pouca formação escolar, alguns são analfabetos; outros cursaram até a

quarta série do Ensino Fundamental (antigo primário), em suma, uma parcela

significativa não concluiu a Educação Básica, apenas um possui curso de nível superior

(Teologia). O pai da professora Isaura não chegou a concluir o ensino médio. Fez um

curso técnico na área de esportes ligado a fisioterapia, assim ele atendia os esportistas.

A profissão exercida pelos pais (pai) das professoras era em sua maior parte

serviço braçal (lavradores, ajudantes de pedreiro, garimpeiro, etc.). Quanto à ocupação

das mães, cinco eram professoras primárias e outras cinco donas de casa. Uma mãe (da

professora Karina) trabalhava fora de casa como doméstica. A mãe da professora

Helena exercia a função de secretária escolar. A mãe da professora Isaura após trabalhar

como professora fez um curso técnico e passou a atuar como técnica em enfermagem.

35

Quase todas as entrevistadas são oriundas de famílias de camadas populares.

Considero provenientes dessas camadas aqueles profissionais que exercem atividades

manuais. É importante observar que, embora majoritariamente, as docentes sejam

TABELA 2 – NÍVEL DE ESCOLARIDADE E OCUPAÇÃO PROFISSIONAL

DOS PAIS DAS PROFESSORAS

PROFA. NÍVEL DE ESCOLARIDADE OCUPAÇÃO PROFISSIONAL

Angélica

Pai: 3ª série do Ensino

Fundamental

Mãe: 4ª série do Ensino

Fundamental

Pai: Trabalhador braçal (máquina

de arroz); funcionário público

(guarda de escola)

Mãe: Não declarado

Beatriz

Pai: 4ª série do Ensino

Fundamental

Mãe: Ensino Médio completo

Pai: garimpeiro

Mãe: dona de casa

Claudia

Pai: analfabeto

Mãe: 4ª série do Ensino

Fundamental

Pai: motorista

Mãe: dona de casa

Daniela

Pai: 4ª série do Ensino

Fundamental

Mãe: Analfabeta

Pai: lavrador

Mãe: dona de casa

Elisa

Pai: 2ª série do Ensino

Fundamental

Mãe: 8ª série incompleta

Pai: ajudante de pedreiro;

comerciante (vendedor de verduras)

Mãe: professora primária

Flávia

Pai: 2ª série do Ensino

Fundamental

Mãe: 8ª série incompleta

Pai: ajudante de pedreiro;

comerciante (verduras e legumes)

Mãe: professora primária

Gisele

Pai: nível superior – (Teólogo)

Mãe: magistério

Pai: professor e marceneiro

Mãe: professora

Helena

Pai: 4ª série do Ensino

Fundamental

Mãe: 4ª série do Ensino

Fundamental

Pai: lavrador

Mãe: professora; secretária escolar

Isaura

Pai: ensino fundamental

incompleto

Mãe: Ensino Médio completo

Pai: Técnico em Fisioterapia

Mãe: Professora primária; Técnica

em Enfermagem

Janete

Pai: Ensino Médio

Mãe: 4ª série do Ensino

Fundamental

Pai: militar

Mãe: dona de casa

Karina

Pai: 1º ano Ensino Médio

Mãe: 4ª série do Ensino

Fundamental

Pai: comerciante

Mãe: doméstica

Lílian

Pai: 4ª série do Ensino

Fundamental

Mãe: analfabeta

Pai: lavrador

Mãe: dona de casa

36

provenientes de famílias pobres, elas, em relação aos pais alcançaram mobilidade social.

Hoje, exercem atividades ligadas a uma profissão que se insere no campo intelectual.

Neste estudo, entende-se mobilidade social conforme Pastore (1979), que define

a mobilidade social como a “mudanças de status social” (p. 4) de um indivíduo ou

grupo de pessoas. Para esse autor, essa mobilidade pode ser ascendente ou descendente.

Isso significa que, os indivíduos de uma sociedade poderão ter mobilidade no sentido de

mudar de classe, de um nível social para outro, esse tipo de mudança é entendido por

Pastore como mobilidade vertical. A mobilidade pode acontecer também, na forma

horizontal: conquista de um estrato melhor na classe a que já pertence.

37

CAPÍTULO III

DESIGUALDADES RACIAIS NO TOCANTE À MULHER NEGRA

Este capítulo tem por objetivo apresentar uma análise sobre as desigualdades

raciais no tocante às mulheres negras na sociedade brasileira. É de suma importância

empreender neste capítulo uma discussão referente às desigualdades raciais que

acometem as mulheres negras no Brasil, porque a “raça” é um elemento determinante da

condição social do indivíduo (MULLER, 2006). O pertencimento racial tem uma

relevância significativa na estruturação das desigualdades sociais e econômicas no País,

porque as desvantagens que os negros sofrem se encontram ligadas à sua condição

racial.

A análise, neste capítulo, é feita no contexto da inserção profissional das

mulheres negras em algumas dimensões do mercado de trabalho e se baseia na pesquisa

de Hasenbalg (1997), Teixeira e Beltrão (2005) e Beghin e Jaccoud (2002). Pauta-se

também em estudos desenvolvidos pelo Departamento Intersindical de Estatística e

Estudos Socioeconômicos (DIEESE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA), a partir dos dados censitários e indicadores sociais do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatísticas (IBGE) – Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), Pesquisa

Mensal de Emprego (PME), Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD).

As desigualdades raciais no Brasil são expressivas, principalmente na educação.

Fenômeno semelhante ocorre no mercado de trabalho. A participação de negros em

postos de trabalho de maior prestígio ainda é muito restrita. Essa realidade se torna mais

grave quando se trata das mulheres negras, pois elas se encontram numa maior situação

de desvantagem em relação aos homens brancos, às mulheres brancas e aos homens

negros em várias esferas da vida social, e mais diretamente em relação ao acesso a

postos de trabalho de prestígio social, cujos rendimentos são elevados.

As condições desfavoráveis em que está submetida a população negra no Brasil,

em especial as mulheres, são históricas. É impressionante como esse grupo da

população é extremamente discriminado e excluído das oportunidades sociais de status

no País. Conforme Hasenbalg (1997, p.167), “um complexo de circunstâncias históricas

atuou no sentido de limitar as oportunidades sócio-econômicas da população de cor

38

durante as quatro décadas seguintes à escravidão”. Para esse autor, as desigualdades

sociais entre a população branca e negra não são apenas resultado da herança do regime

escravista, mas refletem principalmente as oportunidades desiguais de ascensão social

após a abolição. Em outras palavras, as disparidades sociais entre brancos e negros, é,

sobretudo, fruto da “operação contínua de princípios racistas de seleção social” (1997,

p.198).

Hasenbalg considera que a política de imigração européia, ocorrida no Brasil de

1890 a 1930, foi a circunstância de maior importância relativa à causa das desigualdades

sociais entre brancos e negros pós-abolição da escravidão. Isso porque essa política

reforçou o padrão de distribuição regional de brancos e negros que se desenvolveu

durante o regime escravista. “Como conseqüência, uma maioria da população não-

branca permaneceu fora do Sudeste, na região economicamente mais atrasada do País,

onde as oportunidades educacionais e ocupacionais eram limitadas” (1997, p.167).

É relevante salientar que grande parte dos imigrantes europeus não tinha,

segundo Hasenbalg (1997, p. 165-166), “habilidade ou qualificações especiais, nem

dispunha de quaisquer recursos econômicos ou educacionais particulares”, contudo,

apesar dessa posição inicial dos imigrantes foi possível monopolizar “as oportunidades

de mobilidade social criadas pela abertura de posições no sistema econômico”.

Enquanto a população negra livre10

, que vinha crescendo paralelamente à economia

escravista dominante, não obteve as mesmas oportunidades oferecidas aos imigrantes da

Europa.

[...] as ocupações cuja expansão está diretamente associada à

industrialização – os requisitos para o cargo não só incluem um nível

educacional elevado como também exigem contato pessoal direto com

consumidores ou clientes. Esses dois requisitos, por sua vez, são

obstáculos à contratação de não-brancos (HASENBALG, 1997,

p.172).

Após 1930, quando ocorreu a migração do resto do País para a região Sudeste,

os negros deixaram rapidamente a agricultura para aproveitar as novas e crescentes

oportunidades de trabalho que surgiam nas cidades da referida região. Apesar da

10

Anterior a data 13 de maio de 1888, 95 % da população negra (homens e mulheres) que vivia no Brasil

eram livres (MÜLLER, 2009). Entretanto, no imaginário social brasileiro, os negros que aqui viviam

antes dessa data eram formados majoritariamente por escravos. Desse modo, de maneira constante

associavam a presença do negro à escravidão.

39

industrialização e do desenvolvimento econômico acelerados do Brasil, os mecanismos

de cunho racistas de seleção não desapareceram. A cor/raça, como critério para a

seleção de pessoas para trabalhar, perdeu sua pertinência apenas com relação a algumas

posições sociais (HASENBALG, 1997).

Enquanto nas ocupações industriais manuais, por exemplo, as

qualificações parecem ser mais importantes que a cor como critério de

admissão ao emprego, em ocupações que exigem contato direto com o

público ou consumidores, os negros e mulatos foram excluídos, não

apenas por sua falta de qualificações, mas porque eram vistos como

esteticamente indesejáveis (HASENBALG, 1997, p. 174, grifos

meus).

Ainda segundo esse pesquisador, após a abolição no Brasil, grande parte da

população negra continuou “concentrada em situação de dependência no setor agrícola

de regiões economicamente atrasadas” (1997, p.193). Os membros desse grupo racial

“foram inicialmente excluídos das posições polares do sistema capitalista emergente,

como resultado da competição desvantajosa com os imigrantes europeus” (1997, p.193).

Somente algumas décadas posteriores à abolição é que os negros na região Sudeste

“começaram a ser incorporados à classe trabalhadora, e em muito menor extensão, aos

setores intermediários da estrutura de classe” (1997, p.193).

Nesse contexto, nota-se que as desigualdades sociais entre brancos e negros no

Brasil se baseiam, além de outros fatores, essencialmente na questão racial da

população. Quanto mais clara for a pigmentação da pele, maiores são as oportunidades

de assumir cargos de status e salários elevados e, quanto mais escura a tonalidade da

pele, menos chances de tomar posse de postos de trabalhos de prestígio social. Em

outros termos, a cor/raça pode determinar a posição, status e lugar das pessoas na

sociedade brasileira.

As desigualdades raciais no Brasil que atingem a população negra são históricas.

Retomo essa discussão, iniciada anteriormente neste capítulo, para evidenciar que,

embora o Brasil tenha tido um desenvolvimento socioeconômico acelerado e um

enriquecimento expressivo, os negros, principalmente as mulheres negra, permanecem

em situação de extrema desigualdade nos grupamentos de atividades do mercado de

trabalho. De acordo com a pesquisa de Hasenbalg (1997), em 1950, 89% das mulheres

negras trabalhavam como empregadas domésticas. Atualmente, conforme dados

40

IBGE/PME/2009, as mulheres negras são quase maioria absoluta nos serviços

domésticos.

Doméstica negra é o que mais há. Segundo o IBGE/PME, uma em

cada cinco trabalhadoras pretas e pardas ainda é empregada doméstica

(o percentual exato é 20,1%). Entre as brancas com alguma ocupação,

esta proporção é de uma em cada dez (9,9%) (IBGE/PME/2009).

Conclui-se, a partir da pesquisa de Hasenbalg (1997) e do IBGE/PME/2009, que

é no trabalho doméstico que ocorre a principal forma de inserção profissional das

mulheres negras no mercado de trabalho. Para as mulheres brancas, as taxas de

participação na referida ocupação são menos elevadas. Segundo a Organização

Internacional do Trabalho (OIT), no Brasil, “as discriminações de gênero e raça têm

atuado como eixos estruturantes dos padrões de desigualdade e exclusão social. Esta

lógica se reflete no mercado de trabalho, no qual as mulheres, especialmente as

mulheres negras vivenciam as situações mais desfavoráveis” (p.3).

O IPEA divulgou recentemente uma análise que evidencia o retrato das

desigualdades de gênero e raça nos diferentes setores da sociedade. A partir do referido

estudo, nota-se que as desigualdades são mais acentuadas quando se trata do sexo

feminino e da cor preta. No mercado de trabalho, com relação aos indicadores de

desemprego, de rendimentos salariais, ocupação profissional, carteira de trabalho

assinada etc., as mulheres negras são as que se encontram em pior situação. Em 2006,

enquanto as mulheres brancas representavam 12,6% das trabalhadoras domésticas

remuneradas, as negras representavam 21,7%. Além disso, o percentual de

trabalhadoras domésticas com carteira de trabalho assinada é maior para as mulheres

brancas (30,2%) do que para as negras (23,9%) (IPEA, 2008).

O modo como o emprego é estruturado na sociedade brasileira tem efeito direto

na questão racial. Aos negros são reservados os empregos de menor qualificação e

remuneração. A discriminação racial da população afrodescendente preserva para os

brancos as profissões de maior prestígio social, com rendimentos mais elevados

(SANTOS, 2007).

O racismo é um dos pilares que estrutura as relações sociais, no Brasil, inclusive

no campo da educação. Conforme Teixeira (2006, p.15), “importantes desigualdades

por sexo e raça na análise da categoria professor podem ser verificadas a partir dos

41

dados do Censo Demográfico”. Tendo por base os dados censitários de 2000, é possível

afirmar que a ocupação da categoria professor é expressivamente feminina e branca em

todas as regiões e unidades da Federação do Brasil.

No que se refere à inserção profissional das mulheres na área da educação,

Teixeira (2006) revela que, no Brasil, a ocupação da profissão docente, no magistério,

por sexo, é predominantemente feminina (81,2%) contra 18,8% de participação

masculina. No estado de Mato Grosso (MT), a composição por sexo na categoria de

professores é de 77,7% feminino e 22,3% corresponde à participação dos homens11

. A

tabela 1, extraída do livro Cor e Magistério (2006; p. 11-12), permite visualizar o

percentual de professores por sexo na educação. Adaptei a referida tabela, excluindo as

informações referentes às outras regiões do Brasil. Idem para a Tabela 2.

A educação no magistério brasileiro, por cor/raça, é majoritariamente branca

(64,2%). A presença de professores negros – incluindo pretos e pardos – é menor

(34,3%) que a de brancos. No Estado mato-grossense, a participação de professores

brancos também é superior à de negros. A presença de brancos nessa categoria é de

54,4%, ao passo que os negros representam 43,5% (5,0% são pretos; 38,5% são pardos).

11

Dados do Censo Demográfico 2000 - utilizados na pesquisa de Teixeira (2006).

42

Segundo Teixeira (2006), ao se analisar a categoria professor, acrescentando o

elemento cor, percebe-se que a participação de brancos aumenta ainda mais nos níveis

de ensino mais elevado, enquanto pretos e pardos se encontram mais ocupados no

sistema de ensino como professores detentores do nível médio, na educação infantil, no

ensino fundamental e profissionalizante.

Ao se observar as variáveis sexo e cor das diferentes categorias de professor, é

possível levantar algumas questões interessantes referentes às questões de gênero e raça

(TEIXEIRA, 2006). Primeira, o Ensino Fundamental é expressivamente feminino. Nele,

as professoras negras estão em proporção maior do que as professoras brancas. À

medida que aumenta o nível de ensino, diminui o número de mulheres, em especial as

mulheres negras. Os dados do Censo Demográfico 2000, utilizados na pesquisa de

Teixeira (2006), referentes a professores por sexo e cor – Brasil, revelam que, do total

de mulheres professoras negras, 70,2% concentram-se no Ensino Fundamental e do

universo de mulheres professoras brancas, 53,3% ocupam esse nível de ensino.

Segunda questão, a ocupação de professores negros no Ensino Fundamental

também está numa proporção mais elevada que de professores brancos (da ordem de

duas vezes mais). No Ensino Médio, a atuação de homens brancos e negros ocorre de

forma semelhante. A disparidade se dá com relação à participação das mulheres negras

e brancas, pois estas últimas se encontram num contingente bem mais elevado do que as

negras (TEIXEIRA, 2006).

43

Com relação ao ensino superior, este é predominantemente masculino e branco.

Homens e mulheres de cor branca nesse nível de ensino “encontram-se numa condição

em torno de três vezes mais que os seus parceiros do mesmo sexo negros” (2006, p.29).

Entretanto, a proporção de homens pretos e pardos é superior (8,0%) à das mulheres

brancas (5,1%), esses dados revelam “um peso maior de gênero que de cor nessa

categoria” (2006, p. 29). Quanto mais elevado é o nível de ensino, maior a quantidade

de professores do sexo masculino e de cor branca (TEIXEIRA, 2006).

A tabela, abaixo, representa essa inserção de professores por sexo e cor – Brasil.

44

CAPÍTULO IV

PROFESSORAS NEGRAS: AS TRAJETÓRIAS

Neste capítulo, analisarei os resultados coletados sobre as histórias de vida das

professoras negras entrevistadas. A discussão empreendida aqui trata de questões que já

faziam parte do objetivo geral e dos específicos do projeto de pesquisa. Mas discutirei

também outros elementos que julgo pertinentes para compor este estudo. É o caso, por

exemplo, da análise que abre este capítulo, sobre as contribuições da família na vida das

professoras. Discutirei ainda, o imaginário social construído em relação às mulheres

negras, especialmente no que diz respeito à professora negra.

Contribuições da família das professoras negras

Nesta parte, o objetivo é apresentar a contribuição de algumas famílias, na

perspectiva de transmitir às filhas (professoras negras entrevistadas) valores positivos

em relação a seu pertencimento racial. Nesta pesquisa, verifiquei que a família exerceu

um papel de extrema importância para que as professoras, quando crianças,

incorporassem valores positivos em relação a sua cor/raça; não se deixassem afetar

diante das situações de caráter racista em suas relações sociais; soubessem se defender e

não desistir de seus projetos de vida ao sofrer algum tipo de preconceito e/ou

discriminação racial.

Com base nos relatos de algumas docentes, notei que este trabalho, realizado

pelas famílias, desdobrou-se no sucesso escolar das professoras. Explico as trajetórias

bem-sucedidas das professoras tendo por fundamento a pesquisa de Bernard Lahire

(2004) sobre sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável, que

evidenciou que é mito a questão de que as famílias se omitem em relação aos estudos

dos filhos.

Esse autor constatou em seu trabalho que, qualquer que seja a situação escolar

da criança, existe por parte da família, o sentimento de que a escola é algo importante.

45

Os pais manifestavam a esperança de ver os filhos se sair melhor do que eles;

exprimiam seus desejos quanto ao futuro profissional dos filhos: “almejavam um

trabalho menos cansativo, menos sujo, menos mal-remunerado, mais valorizador que o

deles” (2004, p.334).

O estudo do referido autor buscou compreender os fenômenos de dissonância e

consonância entre as figurações familiares e o universo escolar nos meios populares.

Nessa perspectiva, Lahire (2004, p.338) diz que “[...] com capital cultural equivalente,

dois contextos familiares podem produzir situações escolares muito diferentes na

medida em que o rendimento escolar desses capitais culturais depende muito das

configurações familiares de conjunto”. Na visão desse autor, não é suficiente para a

criança estar cercada de objetos culturais ou de pessoas com disposições culturais

determinadas para chegar a construir competências culturais. É importante que as

pessoas que detém disposições culturais participem, de forma contínua, na vida escolar

da criança para que ela construa suas próprias disposições culturais.

A meu ver, a construção positiva do pertencimento racial das professoras negras;

o sucesso na trajetória de estudos; a conquista de ser professora, seus modos de pensar,

suas ações e reações frente às situações de racismo, não poderiam ser compreendidas

externamente das relações sociais tecidas, primeiramente, entre elas e outros membros

familiares, em especial no que diz respeito à figura paterna e materna. Isso porque,

dentro de um aspecto sociológico, os traços comportamentais dos indivíduos são

resultados da sua interação social, com as pessoas nas quais se relaciona, com o meio

social em que está inserido (LAHIRE, 2004).

Os dados empíricos desta pesquisa revelam que, apesar da pouca instrução

escolar das famílias das professoras, elas souberam conduzir as filhas a uma trajetória

de sucesso escolar, pois elas concluíram a educação básica e o ensino superior. Nesse

sentido, compreendo que o nível de “sucesso” escolar dos filhos não depende

necessariamente do grau de escolarização dos pais ou de seu capital escolar. Há

famílias, cujo pai ou mãe possui pouco ou nenhuma instrução escolar (caso de pais

analfabetos), mas que de alguma forma podem, por exemplo, por meio do dialogo,

“atribuir um lugar simbólico (nos intercâmbios familiares) ou um lugar efetivo ao

“escolar” ou à “criança letrada” no seio da configuração familiar” (LAHIRE, 2004,

p.343).

46

Os depoimentos das professoras Elisa, Isaura e Claudia evidenciam que, por

meio do dialogo materno ou paterno, elas eram incentivadas a dar continuidade aos

estudos quando sentiam vontade de abandoná-lo por causa dos processos intraescolares

de discriminação racial que sofriam na escola. Esse fato nos mostra que os pais

demonstravam se importar com a vida escolar e com o futuro dessas professoras.

Na escola, eu era chamada de Anastácia, porque, além de ser

negra, eu era gorda. Eu sofria e não queria ir mais à escola. Eu

falava pra minha mãe que eu não queria ir. Mas a minha mãe

conversava muito com a gente sobre isso. Ela não desanimava a

gente não. Então ela sempre falava isso pra gente, não é porque

nós éramos negros, que a gente não tinha o direito de sonhar e

de ser aquilo que sonhou. Sofri sim como qualquer criança

negra sofreu na escola. Aliás, isso dava até mais força pra eu

continuar os estudos (Professora Elisa).

Eu venho de uma família que trabalha com a consciência negra.

Eu participo do grupo Instituto de Mulheres Negras. Então na

minha cultura familiar a gente sempre teve essa questão da

valorização da nossa cor de pele. Não somos diferentes de

ninguém. [...]. Essa questão da autoestima, da cultura de

embranquecimento sempre foi trabalhada na nossa família.

Essa questão nós costumávamos discutir, porque enquanto

criança a gente sofre. Sobre essa questão quando as pessoas

chamavam: “seu cabelo é de Bombril”, a gente volta para casa

com a autoestima lá embaixo. Se deixar você nunca vai para

frente. Graças a Deus eu tive a oportunidade de ter pais que me

conduziram na construção de valores positivos (Professora

Isaura).

Eles (os pais) sempre nos defenderam - sempre nos deu

cobertura. Eles não frequentaram uma escola, mas eles tinham

noção do que podia acontecer lá. Eles nos deram suporte

emocional. Eu não me lembro de chegar em casa reclamando de

uma coisa que não fosse resolvido. E olha que meu pai

trabalhava fora, ele era caminhoneiro. Mas quando ele estava

aqui ele ia lá resolver. Então eu procuro hoje, educar o meu

filho dessa forma. Assim, quando eu digo para você que eles nos

preparavam era uma defesa... Eu não sei como se diz... Não era

uma super proteção. Ele nos ensinava a aprender a nos

defender. [...] eu lembro sim de caso de colega, eles usavam

aqueles termos: “picolé de asfalto”, outra hora era “pinche” -

esses ditados que eles usavam bastante. Mas eu sempre fui uma

pessoa bem resolvida, eu sempre tive uma autoestima boa. Eu

nunca me importei muito com isso. Não chorava, eu me

defendia. E defendia como? Às vezes usava um verbete também,

47

outra hora atacava. Mas não é algo que me deixou ficar

retraída: ah, não posso entrar naquele lugar porque não me

cabe, não. Eu sempre tive a personalidade forte, fazia com que

as pessoas me vissem diferente, me respeitassem (Professora

Claudia).

Com base na fala dessas professoras, percebe-se que suas famílias não

silenciaram quando elas reclamavam da discriminação que sofriam na escola. Pelo

contrário, a mãe da professora Elisa, por exemplo, incentivou-a a não abandonar os

estudos e nem desistir de seus sonhos. A esse respeito, Hagrayzs Rosa Garcia (2010) 12

entende que a família é o primeiro espaço social de convívio do indivíduo. Ela

considera que a família tem grande influência sobre a formação identitária de seus

membros. Para essa autora, “os primeiros passos da criança, o incentivo a sonhar e a ter

perspectivas para o futuro é decorrente do incentivo familiar. Os pais são o espelho que

a criança reflete na escola (seu segundo meio de convivência natural)” (GARCIA, 2010,

p. 66).

Os depoimentos acima demonstram também que as famílias procuraram

desenvolver nas filhas a construção de imagens positivas sobre características como cor

da pele, cabelo, etc., além disso, preparavam-nas para enfrentar situações de caráter

racista na escola e se defender delas. Nessa perspectiva, Oliveira (2006, p.18) afirma

que: “é importante que a criança desenvolva concepções de defesa diante desses fatos,

para que ela sofra menos e consiga prosseguir na vida e desenvolver uma imagem

positiva de seu grupo étnico”.

Henrique Cunha Junior, no texto: Família e Educação: um dos aspectos das

relações raciais brasileiras13

faz alguns apontamentos sobre como as famílias vêem a

escola. Para esse autor, o sucesso escolar “está relacionado também com a compreensão

que as famílias têm do papel da escola e da relação escola - relações raciais” (1992,

12

Esta autora, em sua dissertação de mestrado, buscou analisar as memórias da trajetória escolar e a

identidade de professores universitários afrobrasileiros. No terceiro capítulo, ela fala sobre as memórias

escolares dos professores afrobrasileiros e faz a relação família e educação, uma vez que seus dados

empíricos apontaram para importância da família no processo de construção de identidade do sujeito.

13 Trata-se de um texto preparado por Cunha Jr. como suporte para sua fala no seminário: “O negro

brasileiro, educação e cultura”, promovido pelo programa de pós-graduação em Educação da

Universidade Católica de Porto Alegre, realizado de 20 a 22 de junho de 1998. O artigo compõe seu livro:

Texto para o movimento negro.

48

p.112). A partir deste artigo de Cunha Júnior (1992), percebe-se também que, entre as

famílias negras das camadas populares, é forte o ideal de educar os filhos a resistir aos

ataques racistas da escola. A família “vê a escolarização como a única forma de

melhoria das condições de vida e também acredita que a instrução traz uma diminuição

das agressões discriminatórias, os membros deste grupo são instruídos a permanecer na

escola a qualquer preço” (1992, p.112-113). Ainda segundo esse autor, as famílias

preparavam seus membros para lidar com as diversas dificuldades encontradas no

relacionamento escolar.

A partir dos relatos dessas professoras, compreendo que a intervenção positiva

de seus pais significa que eles prezavam pela boa formação educacional das filhas e

talvez, sobretudo, prezassem pela construção de uma identidade racial não negativa por

parte das filhas. Pois o educar da família para as questões das relações raciais

corroboraram fortemente para que as professoras negras - enquanto eram crianças e

agora adultas - driblassem os efeitos negativos do racismo escolar, como por exemplo, o

sentimento de inferioridade, pouco autoestima, etc..

A fala da professora Elisa: “a cor de pele pra mim, nunca foi um problema para

eu desistir do que eu queria” evidencia o que foi dito no parágrafo anterior, porque este

relato demonstra que esta professora, assim como outras que entrevistei não acreditaram

e não se sentiram inferiores, mesmo quando em suas relações sociais cotidianas, lhes

eram transmitidos e atribuídos a idéia de serem incapazes intelectualmente. A não

interiorização de sentimentos de inferioridade fez uma grande diferença na vida das

docentes entrevistadas, porque as levaram ao enfrentamento dos desafios em suas

trajetórias. Elas não deixaram de lutar pelos seus ideais.

Fui discriminada dentro da Universidade, por uma professora

que deu um Curso de Filosofia. A gente tinha que fazer aquelas

matérias, as fases optativas. Eu trabalhava na escola, então o

único horário que eu tinha para fazer era à noite. E enfim, essa

professora fez um Curso de Filosofia à noite. Éramos três

negros: eu, Mariana e Francisco, os únicos negros da sala que

foram participar, de uma turma de quarenta. Essa turma que

ela (professora de Filosofia) escolheu, eram uns alunos que ela

escolheu a dedo para fazer esse Curso. [...] nós entramos para

fazer o Curso porque nós precisávamos para terminar. E como

a gente não tinha livro, então a gente exigia mais dela, para ela

explicar. E ela tinha raiva disso. [...] numa noite eu faltei e,

nessa noite ela pegou os dois (Mariana e Francisco) falou pra

49

eles que era bom a gente sair da disciplina optativa, que a gente

não tinha capacidade para acompanhar os outros. Aí a minha

colega já saiu chorando, o outro não abria a boca, era daqueles

caras que a pessoa fala e está tudo bem. E no outro dia eu

cheguei lá e eles contaram para mim, eu não aceitei, na outra

noite que teve a aula eu falei para ela que eu não ia desistir. Ela

falou: vocês que sabem, vocês não vão passar. Eu falei: eu vou

passar. Sabe por quê? Porque se eu não passar eu vou entrar

com um processo contra a senhora de discriminação. E não

deixei o meu colega sair. Ficamos nós dois no curso, até o final.

Ficamos só eu e ele de prova final. A outra colega saiu e foi

fazer outro curso no outro semestre. E aí nós fizemos a prova e

ela deu a nota mínima. Nós passamos com a nota mínima. Mas

eu não me deixei levar por ela. Aí o Francisco falou assim: puxa

vida, então nós conseguimos! Eu falei: pois é, a gente é gente

como qualquer outro aqui. E não é porque uma pessoa chega e

fala que você não é capaz, que você vai desistir. [...] se você

pensar assim, outras pessoas acabam te convencendo que você

não é capaz. Então a cor de pele pra mim, nunca foi um

problema para eu desistir do que eu queria. Essa foi a pior

coisa que enfrentei na universidade. [...] Eu senti mesmo a

discriminação por parte da professora (Professora Elisa, grifos

meus).

O enfrentamento dessa situação pela professora Elisa, o seu modo de agir

certamente é reflexo de suas interações no contexto familiar. Essa professora não

necessariamente reproduziu o modo de agir de sua família, mas encontrou sua própria

forma de comportamento em decorrência da configuração das relações de

interdependência no ambiente em que está inserida (LAHIRE, 2004). Houve uma

influência familiar para que ela não abaixasse a cabeça e se sentisse inferior. Assim, ela

soube contornar essa situação e alcançar a vitória: tornou-se professora e exerce uma

atividade intelectual desempenhada por uma parcela minoritária da população negra na

sociedade brasileira.

Os relatos das professoras que entrevistei me levam a compreender que seus pais

(pai/mãe), em termos psicológicos, não possuíam complexos de inferioridade no que se

refere à questão racial. As configurações familiares nas quais estavam inseridas

corroboraram para que ainda na fase de vida infantil incorporassem elementos positivos

em relação a seu pertencimento racial e também galgassem sucesso em suas trajetórias.

50

Redes de Apoio

Objetivo, nesta parte do trabalho, é fazer uma discussão sobre a rede de relações

estabelecidas pelas professoras, a qual lhes ajudou no estudo e na profissão. É pertinente

conhecer a forma como as mulheres negras, entrevistadas nesta pesquisa, contornou as

dificuldades e obstáculos surgidos em suas trajetórias de formação acadêmica e carreira

profissional.

O emprego do conceito de rede é feito aqui com base em Teixeira (2003). Para

essa autora, “tanto indivíduos quanto grupos - entre eles podem estar a família – podem

ser consideradas como unidades de formação de ‘redes’”. As redes familiares e as redes

pessoais “conduzem determinados indivíduos a contornar obstáculos, tanto de origem

socioeconômica quanto racial, e realizar trajetórias de ascensão” (2003, p.198).

O presente estudo revela a contribuição de membros da família de algumas

professoras negras em seus percursos de escolarização e atuação profissional. Os pais as

ajudavam estimulando-as a continuar os estudos e a não desistir. Os obstáculos de

origem socioeconômica e racial que surgiram ao longo das trajetórias de estudos dessas

professoras foram driblados por elas com a colaboração das redes de apoio - familiares e

professores/as – os principais elos de solidariedade. Nesse estudo, a solidariedade é

entendida como “uma realidade histórica, uma prática social e de conversação com

quem compartilhamos nossas supostas necessidades, dúvidas, projetos e ilusões”

(LISBOA, 2003, p. 89).

O depoimento abaixo demonstra o apoio moral e material dos pais da professora

Beatriz, enquanto ela cursava Pedagogia numa instituição particular.

Foi um tempo muito difícil. Eu costumo falar que o tempo da

faculdade não me deixa saudades, porque eu chegava à

faculdade meio dia e saia dez e meia da noite. Dinheiro curto,

então às vezes eu não tinha como me alimentar. Por isso que eu

falo que é um tempo que não me deixou saudade (Professora

Beatriz).

51

Essa professora relatou que a dificuldade financeira vivida durante sua formação

acadêmica foi suprida com a solidariedade e ajuda dos pais. “Contei para o meu pai e a

minha mãe e eles disseram: - “faz a faculdade, nós vamos te ajudar”. Além disso, eles

contribuíram cuidando da neta para que a filha pudesse estudar. O apoio desses pais

possibilitou a permanência e conclusão da filha no curso superior. Nesse sentido, é

possível perceber que as famílias desempenharam um papel fundamental na vida dessas

mulheres negras para que elas se tornassem professoras. Os pais incentivaram e

investiram materialmente para garantir a oportunidade de ela alcançar melhores

condições de vida, exercer uma profissão de prestígio social e com salário melhor, uma

vez que essa professora ainda não tinha condição socioeconômica satisfatória. Ela

trabalhava no turno matutino junto com o pai, ajudando-o a fazer e vender salgados; no

período vespertino, trabalhava numa instituição particular14

, na turma do maternal como

Auxiliar de Desenvolvimento Infantil (ADI) e a noite cursava Pedagogia.

A professora Daniela também enfrentou a árdua rotina de trabalhar e estudar

durante a trajetória de formação no Ensino Superior. Quando pensava em desistir do

Curso de História porque não tinha condições de pagar uma pessoa para cuidar dos

filhos, era estimulada por uma professora da universidade a continuar estudando. Ela

persistiu, enfrentou e superou as dificuldades e, desse modo, conseguiu concluir a

graduação em História.

Eu trabalhava e estudava. O curso era modular. Era meio

pesadão. Nós ficávamos o dia e a noite, até umas dez horas. Eu

devo o meu Ensino Superior a uma professora que me deu muito

estímulo quando eu estava desanimada. O meu marido

trabalhava o dia inteiro, ele era motorista. Os meus filhos

ficavam praticamente sozinhos, não tinha condições de pagar. A

gente ficava ligando, perguntava para o meu menino se estava

tudo bem, ficava controlando. Saia de casa seis horas da

manhã, cinco e pouco para pegar o ônibus de Várzea Grande

para ir para Cuiabá. Na universidade ficava o dia inteiro às

vezes até dez horas da noite. Chegava em casa os dois (filhos) já

estavam dormindo. Levantava quatro e pouco, cinco horas da

manhã para deixar a comida pronta para eles. Naquela época a

gente era pobre mesmo. Não foi fácil não. Mais a gente está

vencendo. Coragem a gente tem bastante. É uma luta (risos)

(Professora Daniela).

14

Instituição que atende desde a educação infantil até o ensino superior.

52

A professora Lílian também contou com o apoio de sua professora, mas numa

outra etapa de escolarização – durante a educação básica. Seus pais moravam na zona

rural. A possibilidade das filhas estudarem apenas se concretizou com a mudança delas

para a cidade de Cuiabá. Mediante as dificuldades na vida financeira, uma professora

foi solidária e a ajudou. “Ela [...] deu emprego pra minha irmã de empregada

doméstica. Ela sabia das nossas condições. Então de certa forma ela começou a nos

ajudar”. Essa professora foi uma rede de apoio também para o irmão da professora

Lílian, que, se não fosse alfabetizado, teria de voltar para o sítio de seus pais e

possivelmente ficar sem estudar, uma vez que lá não tinha escola:

Ele era muito peralta, e por ser negro também, as professoras

não gostavam dele, tinham horror. Eu ficava com dó, chorava

quando eu via as professoras o maltratando. E quando ele

reprovou no 1º, quando ele entrou no 2º ano a escola queria

expulsá-lo. A minha professora, Marília, decidiu que ela iria

alfabetizá-lo. [...]. Foi um alívio porque ele teria que voltar, se

ela não o tivesse alfabetizado (Professora Lílian).

A professora Karina também enfrentou dificuldades financeiras para concluir o

curso superior. Sua permanência nesse nível de ensino foi possível devido à

contribuição do esposo que a incentivava a continuar estudando, ajudava-a no

pagamento das mensalidades do curso e provia as despesas da casa.

Senti algumas dificuldades, mas foram mais financeiras, porque

era uma instituição privada. Eu trabalhava o dia todo para

poder pagar a faculdade e meu esposo trabalhava para ajudar

financeiramente em casa com as despesas. Mas na faculdade o

que pesou mesmo foi a mensalidade. Teve um tempo que tive

que estar renegociando. Muitas vezes pensei em desistir e

nessas várias vezes eu tive o meu esposo do meu lado. Ele dizia:

você não vai desistir. Você vai continuar. Vamos parcelar

novamente e... Foi assim (Professora Karina).

Teixeira (2003) constatou em sua pesquisa, Negros na universidade: identidades

e trajetórias de ascensão social no Rio de Janeiro, que a família se constitui em

importantes “redes” de solidariedade e apoio na trajetória ascensional dos/as filhos/as.

Os alunos/as e professores/as negros/as durante suas trajetórias de estudos receberam

incentivo moral e ajuda financeira por parte da família para conquistarem mobilidade

social. Mas, além das redes familiares, os sujeitos de seu estudo estabeleceram uma

53

nova rede de relações - redes pessoais: amigos, diretores de escolas, universidades (por

meio de programas de bolsas de estudos), que os ajudaram a galgar a ascensão social em

suas trajetórias.

As dificuldades e obstáculos para a execução de um projeto de

ascensão social de negros, advindos das camadas mais baixas da

população, via obtenção de um grau superior de instrução são

tamanhos que, muitas vezes, essa rede de relações não pode ficar

circunscrita a um determinado tipo de relações sociais que,

frequentemente, extrapolam as relações de família e parentesco

(TEIXEIRA, 2003, p. 215).

A professora Isaura, quando ingressou no Ensino Superior, já era viúva e tinha

filhos para sustentar. Ela trabalhava como secretária dos diretores de uma empresa

pública. Ocorreu de a empresa ser privatizada e muitos funcionários serem demitidos.

Nesse momento, a professora ficou preocupada porque estava cursando Pedagogia

numa instituição particular e, por outro lado, já estava na faixa etária dos trinta anos.

Tomou a decisão de pedir demissão da empresa e usar o dinheiro para pagar todas as

mensalidades da faculdade e do curso de especialização que tinha interesse em fazer.

Desse modo, ela terminou a formação profissional (graduação e pós-graduação) de

maneira mais tranquila.

Naquele processo de privatização da empresa, foram chegando

novas pessoas para trabalhar lá e começaram a mandar na

gente, eu tinha que sair entre às 19h30min e 20h. Comecei a

perder aula e não achei isso certo. Tomei uma decisão. Pedi

para me demitirem. Com o dinheiro que eu recebi dessa

empresa, eu paguei todas as mensalidades do curso de

Pedagogia e paguei também o curso de especialização. Eu fiz

um acordo com a Instituição e eles me deram um documento de

que eu já tinha pagado o curso e eu comecei a estudar com

tranquilidade. E eu tinha filhos para sustentar. Eu sou viúva. Eu

sabia que o dinheiro um dia ia acabar. Então resolvi aplicar na

minha formação para terminar os estudos (Professora Isaura).

A professora Angélica durante uma trajetória de três anos, tempo de sua

formação no Ensino Superior, viajava de Mato Grosso para a cidade de Jales/SP, onde

estudava Pedagogia. Isso se tornou possível porque ela era concursada. Podia, assim,

custear todas as necessidades com relação a sua formação acadêmica. Algumas vezes,

quando o salário atrasava, recebia o auxilio financeiro de pessoas de sua família.

54

Para fazer curso de Pedagogia você tinha que ir para fora. [...]

saia muitos ônibus daqui. A gente tinha que pagar, lá era

universidade particular. Depois que foram surgindo as

universidades - a UNIC, UNIVAG... (Professora Angélica).

Eu que arquei com todas as despesas. Eu já era professora

concursada, já tinha o meu salário. Quando atrasava o salário

eu tinha que emprestar o dinheiro de alguém. Ai tinha que ter

ajuda da família ou do marido. Eu consegui pagar em dia, mas

tinha gente que ficava devendo e depois desistia por causa da

questão salarial, porque era muito gasto, apesar de ser uma vez

ao mês. O salário de professor com Magistério era pouco,

apenas compensava se fosse professor com nível superior, ai

melhorava. Então tinha que enfrentar, já que estava na área,

tinha que enfrentar. Eu terminei a minha Pedagogia (Professora

Angélica).

No início do Curso, a professora ficava três dias em Jales, posteriormente

aumentaram a carga horária para uma semana. Durante esse tempo, a professora pagava

substituta na escola. Os gastos financeiros eram altos - ela pagava a passagem de

ônibus; alimentação no percurso de viagem e estada em Jales; pagava hospedagem e o

material (textos) utilizado nas aulas.

O depoimento da professora Lílian também demonstra parte de seu esforço

pessoal para conseguir concluir o curso de Pedagogia, ela narra emocionada, a conquista

de ter conseguido chegar à reta final da faculdade, sendo assistida pela sua família, em

especial por seu pai, que algumas vezes duvidou que a filha fosse conseguir terminar o

curso superior.

Quando eu me formei, eu convidei papai e entrei naquele

Teatro, (começou a chorar), a melhor coisa foi quando chamou

o meu nome – Lílian – eu falei: eu sou alguém, eu consegui

(chorando) eu sou o que sou hoje pelo meu esforço e não

pretendo desistir, ainda tem mestrado, doutorado... As despesas

com a faculdade, passagem de ônibus era tudo por minha conta

(Professora Lílian).

Nesse estudo, quase todas as entrevistadas são oriundas de famílias de camadas

populares. A baixa situação socioeconômica foi uma dificuldade comum na trajetória de

formação profissional de muitas delas. A questão da rotina de trabalho, a falta de apoio

de alguns esposos são outros fatores que dificultaram, mas não impediram as docentes

55

de concluir o Ensino Superior. Nível este alcançado por uma pequena parcela da

população negra brasileira, pois as desigualdades entre brancos e negros se ampliam

conforme o nível de ensino se eleva. No Ensino Fundamental, a proporção de negros é

maior (94,2%) do que no Ensino Médio (37,4%) (IPEA, 2008).

No que se refere às dificuldades financeiras constatadas no percurso de formação

profissional das entrevistas, é importante dizer que, no Brasil, as desigualdades entre

brancos e negros, no tocante à situação de renda e pobreza, é maior para a população

negra do que para a branca (JACCOUD e BEGHIN, 2002). Segundo essas autoras, a

renda mensal, média, per capita de uma pessoa branca é mais que o dobro de uma

pessoa negra e essa disparidade cresce acompanhando o enriquecimento dos indivíduos

no País. De acordo com o aumento da renda, há também um “embranquecimento” da

população. “Enquanto nos centésimos mais pobres a proporção de negros se situa

próxima de 80%, no centésimo mais rico a proporção de afrodescendentes cai para

menos de 10% [...]” (2002, p.28). Com base nos dados do IBGE15

, Jaccoud e Beghin

afirmam que a probabilidade de um branco ser pobre é de 22% enquanto a de um negro

é 48%, mais que o dobro.

Além do obstáculo de cunho socioeconômico que dificultou a trajetória de

estudo dessas mulheres, uma professora em sua trajetória profissional enfrentou uma

dificuldade de origem racial. Após ser eleita diretora de uma escola, começou a passar

por um processo de discriminação racial. Alguns professores não queriam aceitá-la

como diretora, assim, no dia seguinte à eleição, fizeram a tentativa de forjar alguns

documentos para dizer que houve fraude. A professora Angélica, quando tomou

conhecimento do fato, diz que:

Naquele dia eu passei mal [...] saí e fui embora para a casa da

minha irmã, da minha família. Chegando lá ela me

esculhambou, brigou comigo e disse que eu tinha que enfrentar.

De lá nós fomos ao advogado, consultar o advogado para

garantir a minha legitimidade no cargo (Professora Angélica).

Por meio do apoio da irmã, a professora conseguiu contornar o obstáculo de

origem racial em sua carreira profissional. A mobilidade social da mulher negra na

sociedade não é algo fácil de alcançar, contudo é possível, pois “são as redes de relações

15

IBGE, PNAD, 1999.

56

o fator social determinante nas trajetórias de ascensão” (TEIXEIRA, 2003, p.217) que

ajudam determinados indivíduos a contornar problemas de origem socioeconômica e

também racial. Neste estudo, as redes de relações estabelecidas pelas professoras negras

contribuíram para a superação das dificuldades encontradas na trajetória de estudos e

atuação profissional.

Imaginário Social sobre as professoras negras

O imaginário social, negativo, existente na sociedade brasileira sobre a

população negra é reflexo das teorias racistas, advindas dos Estados Unidos e da

Europa, que foram amplamente difundidas no País, no século XIX. Segundo Skidmore

(1976), em torno de 1860, as teorias racistas tinham obtido a aprovação da ciência e

plena aceitação de lideres políticos e culturais dos Estados Unidos e da Europa. Entre

os anos de 1870 e 1930, essas teorias já eram aceitas pelas elites brasileiras. Desse

modo, “nos primeiros anos do século XX, já estavam assentadas as bases no Brasil para

o desenvolvimento de um imaginário social que privilegiaria a aparência européia à

nossa herança africana” (MÜLLER, 2010, p.6).

No Brasil, em meados do século XIX, uma grande parte das camadas

dominantes começou a se preocupar com a heterogeneidade cultural e racial da

população do País. Essas preocupações deviam-se, sobretudo, a dois motivos: primeiro

pela propagação das teorias racistas, que afirmavam a existência de raças distintas entre

a espécie humana (MÜLLER, 2009). Alguns estudiosos como Henry Thomas Buckle,

Gobineau, Louis Couty, Oliveira Vianna, entre outros, defendiam que havia uma

hierarquia racial entre os seres humanos - os brancos eram considerados os mais

desenvolvidos da espécie, em termos intelectuais e morais, depois os amarelos e no

patamar mais inferior desta hierarquia, estariam os negros.

Os indivíduos da raça “branca” foram decretados coletivamente

superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas

características físicas hereditárias, tais como a cor da pele, o formato

do crânio, a forma dos lábios, [...] que segundo pensavam, os tornam

mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e

57

consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças,

principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente

considerada como a mais estúpida, [...] menos honesta, menos

inteligente e, portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas

de dominação (MUNANGA, 2003, p.05).

Biologicamente, raças não existem. Já está provada pelas pesquisas genéticas a

inexistência de raças humanas sob o ponto de vista biológico. Portanto, não há um

grupo superior e outros inferiores em termos intelectuais, morais e estéticos.

O segundo motivo pelo qual as elites brasileiras ficaram aflitas com o futuro do

Brasil devia-se ao processo de desenvolvimento do País. A partir de 1880, a maioria da

população negra que aqui vivia era livre e estava presente em todas as camadas da

sociedade. Homens e mulheres libertos se articulavam de diferentes modos para obter

maior participação política no País. E, além disso, aumentava a mobilização pela

abolição da escravidão, que foi o maior movimento de desobediência civil ocorrido no

Brasil, conforme alguns historiadores (MÜLLER, 2009).

Com as supostas teorias científicas, que inferiorizavam todos aqueles que não

eram fenotipicamente brancos e a iminência da chegada de um novo cidadão, com todos

os direitos legais, os ex-escravos eram os dois motivos que deixavam grande parte das

elites brasileiras preocupadas com o seu futuro e o desenvolvimento do Brasil

(MÜLLER, 2009). Nesse contexto, a solução seria “branquear” a população. Nessa

perspectiva, os maiores interessados na teoria do “branqueamento” eram intelectuais

ligados aos fazendeiros de café, a elite econômica e política vigente na época. A

intenção era trazer para o Brasil trabalhadores da Europa, a fim de desvalorizar a força

de trabalho, colocando em competição: brancos e negros. Essa teoria, no início do

século XX, foi bem aceita pelas elites da sociedade brasileira.

Embora a lei de 13 de maio de 1888 estabelecesse direitos formais de cidadania

aos ex-escravos e aos que nasceram livres, as difundidas teorias racistas certamente

prejudicaram e impediram grande parte da população negra de construir uma vida social

em condições satisfatórias. “Assim, no dia-a-dia, e não na legislação, a cor da pele ou o

fenótipo poderia impedir os afro-descendentes de alcançar ou permanecer na escola ou

em trabalhos de maior prestígio social [...]” (MÜLLER, 2009, p. 23).

58

Na sociedade brasileira, o ideário do “branqueamento”, bem como a

supervalorização dos brancos e a inferiorização dos negros, foi transmitido de diversas

formas: pela escola que, mediante os livros didáticos e/ou discursos de alguns

professores, apresentam aos alunos uma visão positiva e otimista relativo à qualidade

geográfica e climática da Nação, mas quase não mostra as contribuições dos negros na

formação da sociedade brasileira, sendo que, quando o negro aparece, é de maneira

estereotipada.

De acordo com Müller (2006), na sociedade brasileira as características físicas

como a cor da pele, o tipo de cabelo, etc. “são tidos como indicadores de diferenças e

desigualdades. Muitas vezes quem tem a pele escura é tratado como se fosse inferior:

inferior na inteligência, inferior nos valores morais (2006, p.50)”. É, nesse sentido, que

analiso o imaginário social construído sobre a mulher professora negra na vida pessoal e

profissional, pois, no que se refere à trajetória de trabalho das professoras negras,

geralmente, acredita-se que elas não têm competência e capacidade intelectual para

assumir cargos de chefia. No Brasil, a construção do imaginário social, negativo, em

relação à população negra subsiste até hoje e reflete nas relações sociais, inclusive no

ambiente escolar.

Nesta pesquisa, por meio do relato de algumas professoras negras, ficou evidente

que, no seu ambiente de trabalho, acredita-se na “incapacidade intelectual” das pessoas

negras; e de que o “lugar” de mulheres negras é nas ocupações subalternas. Isso fica

evidente a partir do relato da professora Isaura:

Eu cheguei até ouvir o seguinte: você negra, eu tenho mais

experiência, você está nova na profissão como você vai ter mais

conhecimento do que eu? Isso eu ouvi por parte de colegas

professores. Eu sentia embates (expressou-se com ênfase).

Existe muito isso em nossa prática, na vivência de nosso dia-a-

dia (Professora Isaura).

A carreira profissional dessa professora é marcada por percalços. Em sua

trajetória como coordenadora escolar, foi vítima de preconceito racial por parte de

professores pelo fato de ser negra. Além do estereótipo de que o negro é incapaz

intelectualmente, nota-se por meio da fala dessa professora, um pensamento por parte

dos pais dos alunos de que “lugar” de mulheres negras é em ocupações subalternas. Os

pais, ao chegar à escola para falar com a coordenadora, dirigiam-se sempre a uma

59

agente administrativa branca pensando que esta fosse a coordenadora. “Eles jamais

enxergariam uma negra, de imediato, nessa posição” (Professora Isaura). Nesse

sentido, Müller (2010, p17) diz:

A memória coletiva é resultado de processos sociais, um trabalho de

grupos e pessoas, o que implica nas atividades de produção, circulação

e consumo de sentidos e valores. Houve um processo de construção

social do imaginário social que desembocou na escola e em outras

agencias sociais, onde, ainda hoje, podemos ver seus resultados

nefastos (MULLER, 2010, p.17).

A figura da mulher negra brasileira como doméstica, lavadeira, cozinheira, entre

outros, que legitimam o conceito de inferioridade e a desqualificam está entranhada no

pensamento do povo brasileiro. Assim, geralmente, quando se vê a mulher negra numa

posição de poder e status, exercendo uma atividade intelectual, a tendência é relacionar

sua imagem ou representá-la como uma funcionária de limpeza ou cozinheira da escola.

É dessa maneira que analiso o procedimento dos pais dos alunos quando chegam à

escola e estranham uma professora negra ocupando um espaço que socialmente, no

imaginário brasileiro, não é de negro.

Outra professora também passou por essa situação quando atuava na escola

como coordenadora pedagógica.

Na coordenação, eu percebo que quando eu estou lá na minha

sala e tem pessoas brancas na minha sala, quando alguém entra

procurando o coordenador ele não se dirige a mim. Sempre vai

à pessoa branca que está lá. Isso daí ainda está muito presente

na sociedade, que o negro não pode ocupar esse cargo. As

pessoas da comunidade, os pais dos alunos, até alguns alunos

que começam a estudar, geralmente eles estranham (Professora

Elisa).

As professoras negras são estigmatizadas de não possuir competência intelectual

suficiente para atuarem como professoras, por parte dos seus colegas de profissão,

alunos e até mesmo dos pais dos estudantes que atribuem as docentes à responsabilidade

do mau desempenho escolar dos filhos. “A baixa expectativa diante da capacidade

intelectual do negro, tão marcante no pensamento brasileiro e destacado na obra de Nina

Rodrigues, ainda se faz presente na escola” (GOMES, 1995, p.165).

60

Já ouvi alunos falando: ah eu não quero estudar com aquela

professora. De querer trocar o filho de sala, porque eu era

negra. Teve um caso bem recente o ano passado, de uma mãe,

mas eu percebia que não era a filha, era a mãe. Ela dizia: a

minha filha disse que não quer estudar com essa professora,

porque ela é muito brava. Mas eu sabia que não era isso,

porque ela nem me conhecia, ainda estava no início do ano. Na

verdade as pessoas não aceitam a competência de um negro.

Eles têm aquela cultura de que negro é incompetente. Aí eles

percebem que você conseguiu superar aquela ideia que eles

têm, aí eles frustram. Acabam te aceitando, vem pro seu lado e

pronto. Eu acredito que a resposta você tem que dar no

trabalho (Professora Claudia).

Na escola onde eu trabalhei ouvia que tinha pais que não

queriam que seus filhos estudassem comigo, diziam que não

queriam os filhos estudando com uma negra (Professora Janete).

O relato, a seguir, demonstra que a professora Angélica teve mobilidade social

em sua trajetória de vida. Ela é proprietária de uma casa de boa estrutura, situada no

centro de Várzea Grande. Essa conquista é resultado do esforço pessoal dessa docente,

que lutou para ter uma profissão que pudesse lhe possibilitar galgar mobilidade. E, “a

profissão de professora representa uma forma de ascensão social se comparada à

situação do negro brasileiro no mercado de trabalho” (SANTANA, 2004, p.53).

E até nessa casa, às vezes, por exemplo, chega gente na minha

casa e batem palmas eu saio e digo: “pois não!”, eles falam: eu

quero falar com a dona da casa, eu digo: “pois não!” e eles

repetem: eu quero falar com a dona da casa (risos da

professora). Teve uma que queixou comigo porque achou que eu

era a empregada e eu falava para ela pode falar e ela dizia: eu

quero falar com a dona da casa, ai eu falei: mais eu sou a dona

da casa. [...]. “O branco que pode ter casa assim, o negro não,

não assim” (apontou para a estrutura de sua casa) (Professora

Angélica).

Percebe-se também por meio da fala dessa professora, que apesar de ser a

proprietária da casa ela não é reconhecida de imediato como dona e sim empregada da

residência. Esse depoimento demonstra a permanência da mentalidade do período

colonial, em que as funções ligadas aos serviços domésticos (cozinheira, arrumadeira,

etc.) eram atribuídas às mulheres negras. O lugar da mulher negra no imaginário social é

o da subalternização e da realização de atividades manuais (ALMEIDA, 2010).

61

Provavelmente, seja por esse ideário coletivo construído sobre a mulher negra na

sociedade, que ainda hoje, mesmo quando estão numa posição de prestígio social, elas

sejam vistas como funcionárias de limpeza.

Motivos da escolha pela profissão de professora

Nesta parte da dissertação, tenho por objetivo: entender por que as professoras

negras optaram pela carreira de magistério. Procuro compreender como se coloca para a

mulher negra a preferência pelo magistério; qual o grau de liberdade dessa escolha, ou

seja, se teve influências/contribuições de seus familiares para sua opção profissional.

Constatei nesta pesquisa, motivos comuns e também diferentes que levaram as

professoras a optarem pela carreira do magistério. De modo geral, a escolha se deu por

influência de membros da família e conforme o campo de possibilidades das docentes

em conseguir ingressar e concluir um curso de nível superior.

O conceito de campo de possibilidades foi trabalhado por Gilberto Velho (2003),

para o estudo das sociedades complexas moderno-contemporâneas. A noção de campo

de possibilidades refere-se a uma “dimensão sociocultural, espaço para formulação e

implementação de projetos” (2003, p. 40). Neste estudo, emprego esse conceito para

analisar as razões da escolha pelas mulheres negras em se tornarem professoras.

Algumas depoentes disseram que aspiravam em se tornar advogada, contadora,

assistente social. Entretanto, esse projeto de vida, dadas as circunstâncias a que estavam

inseridas, não foi possível de se realizar. O projeto do indivíduo “é resultado de uma

deliberação consciente a partir das circunstâncias, do campo de possibilidades em que

está inserido o sujeito” (VELHO, 2003, p.103). A opção de algumas mulheres desta

pesquisa em se tornarem professora ocorreu conforme o campo de possibilidades no

qual se encontravam.

Eu fiz Magistério e Pedagogia por necessidade. Porque eu tinha

que ter uma profissão e naquela época a profissão que estava

mais fácil para mulher, era a profissão de professora, porque

ela era a mais aceita no mercado de trabalho. Mulher negra,

estou falando da mulher negra. Eu pensava assim: para fazer

outro curso – o de advogado – eu vou ter muito mais

62

dificuldade. Eu não queria ser doméstica. Eu vi que a

Pedagogia estava abrindo alas, então eu fui para Pedagogia.

Eu não tinha aquela história de que queria eternamente ser

doméstica. [...] quando cresci eu não trabalhei de doméstica. Eu

queria uma coisa melhor. [...] eu queria ocupar outro espaço e

para eu conquistar outro espaço como mulher e ainda negra, eu

preferi a Pedagogia [...]. Eu não fiz Pedagogia por opção.

Porque se eu pudesse, na época, eu ia fazer Direito. Eu queria

ser advogada. Mas eu não pude porque eu sabia que não ia

chegar lá. A gente tem que ter visão de contexto. Eu sei onde

piso e onde há possibilidade para eu chegar (Professora

Angélica).

[...] eu fiz pedagogia por falta de opção, era o que estava mais

próximo da minha realidade. Eu sonhava assim com algo mais...

que lidava com o público também, mas que não fosse na área de

educação (Professora Claudia).

A professora Cláudia durante a entrevista disse que gostaria de ter cursado

Serviço Social. Ao ser inquirida do por que não havia feito esse Curso, respondeu:

Porque, foi mais difícil. Só tinha na Universidade Federal. Daí

eu prestei vestibular e não passei. E o tempo foi passando, aí eu

preferi fazer o que estava mais perto da realidade, porque o

curso era mais barato e também porque conseguia o emprego

mais rápido. O professor é muito difícil ficar sem emprego.

Então era a visão do emprego mesmo. Não é nada assim só

para ter um curso superior, ou ser apresentável (Professora

Claudia).

Minha mãe pensava numa outra formação para mim. Mas como

que eu teria outra formação? Eu não teria estrutura. Meu pai

no garimpo - tinha semana que tinha dinheiro, tinha semana

que não tinha. A minha mãe em casa, fazia salgados e

vendíamos na escola, na rua, no bairro. Ela pensava uma coisa

melhor para mim mais infelizmente era longe da nossa

realidade. Ela achou que seria vantagem fazer teste em

contabilidade. Eu fiquei dois anos parada. Falta de

oportunidade mesmo (Professora Beatriz).

A professora Angélica compreendia que, na condição de mulher, negra e pobre,

no contexto histórico e social em que vivia (décadas de 1960/1970), a sua real

possibilidade de ter mobilidade social poderia se concretizar por meio da carreira do

magistério. Para essa professora, era por meio da profissão de professora, que ela

63

poderia se inserir no mercado de trabalho, numa ocupação que não fosse a de doméstica.

“O titulo de professora retirava muito da subalternidade a que as mulheres eram

submetidas. Esta profissão dava a professora prestigio social” (MÜLLER, 1999).

Silva (2001), mostra na percepção das mulheres professoras negras o significado

da profissão de professora em suas vidas. Nas narrativas da maioria das entrevistadas,

ser professora representa a oportunidade de ter melhores condições de vida; de se

ocupar um lugar social diferente daquele expressivamente atribuído às mulheres negras:

o de doméstica. Essa mesma autora, a partir do depoimento das docentes, percebeu que,

o ser professora para não ser doméstica se fez bastante presente também no “universo

consensual” da família dessas depoentes, pois os pais se esforçavam para manterem a

filha na escola para que assim elas pudessem se tornar professora e ter uma vida melhor.

Essa representação da profissão de professora como possibilidade de mobilidade social

e não ser empregada doméstica esteve presente no discurso da professora Angélica.

No que se refere ao contexto sócio-histórico ao qual essa professora (Angélica)

se referiu, pode-se dizer que a reversão da desigualdade de gênero no acesso à educação

é uma conquista das mulheres recente na história da sociedade. No período colonial, as

mulheres não tinham a oportunidade de acesso à educação formal. Foi a partir do século

XIX que começaram a surgir as primeiras instituições destinadas à educação feminina.

O acesso se dava, ainda que com dificuldades, apenas ao ensino elementar, aos menores

graus (primário e secundário) de instrução. O ensino superior era eminentemente

masculino. Dessa forma, as mulheres ficaram excluídas dos primeiros cursos de

Medicina (1808), Engenharia (1810) e Direito surgidos no País (TEIXEIRA e

BELTRÃO, 2005, grifo meu) 16

.

Com base no censo de 1960, Teixeira e Beltrão (2005), no que se refere à

participação por sexo nas diferentes carreiras universitárias, afirmam que os cursos do

ensino superior tinham, de modo geral, uma predominância de homens. Os cursos mais

masculinos eram: Militar, Engenharia, Agronomia e Teologia. Os cursos com uma

16

Teixeira e Beltrão (2005) na obra: O vermelho e o negro: viés de cor e gênero nas carreiras

universitárias - realizou um trabalho que “acompanha” a população de nível superior no País desde o

censo de 1960 até o censo de 2000, a partir das variáveis de sexo e cor. Esses pesquisadores procuraram

identificar as tendências de crescimento na participação de mulheres e de negros nas diferentes carreiras

universitárias.

64

maior participação das mulheres eram: Artes Domésticas, Geografia e História, História

Natural, Belas Artes, Educação Física e Letras.

“Em 1970 as carreiras são desagregadas de uma outra forma e a oferta de cursos

se amplia [...], aumentando a lista de cursos com predominância feminina [...], como por

exemplo: Enfermagem, Serviço Social, Pedagogia, Ciências Sociais, Psicologia e

Filosofia” (TEIXEIRA e BELTÃO, 2005, p.42, grifo meu). Contudo, ainda há uma

presença maior dos homens em grande parte dos cursos. A oferta de cursos praticamente

se manteve inalterada entre 1980 e 1991. No censo de 2000, constata-se um aumento de

46% da feminização dos cursos universitários. Isso porque “parte das carreiras que em

1991 estavam perto da fronteira passam para o lado feminino – Arquitetura e

Urbanismo e Odontologia” (2005, p. 46-47).

Ao analisar a relação entre representatividade de sexo e cor, Teixeira e Beltrão

(2005) dizem que, no que se refere às carreiras, tanto as mulheres quanto os negros

estão presentes na universidade de forma desigual aos homens brancos. Estes ocupam as

carreiras de maior prestigio e status social. São nas profissões mais femininas que existe

a maior proporção de negros, desse modo, as carreiras mais masculinas têm uma menor

participação desses grupos. Entre as carreiras mais femininas, a maior inserção de

negros ocorre em enfermagem, geografia e história. Entre as mais masculinas, esta

maior inserção se dá nas carreiras de teologia e na carreira militar.

A escolha das professoras Angélica, Beatriz e Claudia pelo curso de Pedagogia

ocorreu também por falta de condições financeira. “Eu preferi fazer o que estava mais

perto da realidade, porque o curso era mais barato e também porque conseguia o

emprego mais rápido” (Professora Claudia). Esse é um dos relatos das depoentes que

demonstram que, suas escolhas profissionais foram condicionadas pela sua situação

econômico-social. Assim, Queiroz (2001) 17

, afirma que a população negra de menor

poder aquisitivo tende a “escolher” carreiras possíveis para sua condição. Portanto,

mesmo que ainda seja pequena a presença de negros na carreira do magistério, talvez

seja uma das principais carreiras escolhidas pelas mulheres negras.

A opção de uma pessoa por um curso é feita, muitas vezes, a partir de suas

condições socioeconômicas e é justamente nesse aspecto que a população negra, em sua

17

Citado por Santana (2004, p.111).

65

maioria, fica em desvantagens, pois, entre os pobres, os negros se encontram em

situação de maior pobreza e desigualdade. Ela é discriminada duas vezes: em razão da

sua condição socioeconômica e racial (MUNANGA, 2003).

Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico

da brancura, o que não é pouca coisa. Assim, tentar diluir o debate

sobre raça analisando apenas a classe social é uma saída de

emergência permanentemente utilizada, embora todos os mapas que

comparem a situação de trabalhadores negros e brancos, nos últimos

vinte anos, explicitem que entre os explorados, entre pobres, os negros

encontram um déficit muito maior em todas as dimensões da vida, na

saúde, na educação, no trabalho. A pobreza tem cor, qualquer

brasileiro minimamente informado foi exposto a essa afirmação, mas

não é conveniente considerá-la. Assim o jargão repetitivo é que o

problema limita-se à classe social. Com certeza este dado é

importante, mas não é só isso (BENTO, 2004, p. 27).

Nesta pesquisa, os depoimentos demonstram que o interesse das professoras em

cursar Pedagogia surgiu também por iniciativa própria e incentivo familiar (pai, mãe,

irmã, cunhada, esposo). Os relatos, abaixo, demonstram a influência de alguns

membros da família das professoras para a escolha de que carreira profissional seguir.

Eu estava na dúvida se fazia curso de administração ou na área

da educação. Eu preocupava com a concorrência existente na

educação, porque eu teria de concorrer com gente que já estava

há muito tempo trabalhando nessa área. Foi a minha irmã que

suscitou em mim o desejo de fazer o curso de Pedagogia, na

área da educação. Hoje eu amo a minha profissão (Professora

Isaura).

[...] depois que casei entrei para uma família que só tinha

universitários. A minha cunhada era diretora de uma escola

Pestalozzi. Ela dizia que eu tinha que fazer um curso de ensino

superior (Professora Daniela).

A professora Isaura estava indecisa se seguia carreira na área de administração

ou da educação. Ela já tinha toda uma trajetória de trabalho como secretária de uma

empresa. Por incentivo da irmã, ela resolveu fazer uma faculdade, quando foi fazer a

opção de curso, sua irmã, que já era formada em Pedagogia, aconselhou-a a também

fazer esse Curso, com o argumento de que tinha perfil para ser professora, porque era

estudiosa e comunicativa. Conforme o relato da professora Isaura, sua família já vinha

de uma geração de professores: “a minha irmã foi professora, a minha mãe foi

66

professora do antigo primário e tenho parentes que são professores”. Notei isso

também na história de vida de outras professoras em que a mãe, o avô, e outros parentes

já tinham trabalhado como professores primários.

A professora Daniela fez a opção por se tornar professora por incentivo da

cunhada, que era professora e diretora de uma escola de educação especial. O fato de

entrar para uma família em que todos tinham uma formação de nível superior também

pode ter contribuído para despertar nela o interesse de fazer uma faculdade. Essa

professora cursou História e depois Pedagogia por incentivo de sua cunhada.

A conquista das mulheres negras por um espaço profissional na área da

educação como professora, significa o rompimento com um “círculo vicioso”, como diz

Gomes (1995). Rompe-se com a posição social de doméstica, faxineira, etc. profissão

exercida por grande parte dessas mulheres no Brasil. Tornar-se professora para as

mulheres negras pode ser um caminho para se conquistar mobilidade social na vida

profissional e, consequentemente, um futuro melhor. Assim, a partir do relato da

professora Angélica e da história de vida das outras professoras, pode-se dizer que

“Elas, saíram do seu lugar”, isto é, do lugar predestinado por um

pensamento racista e pelas condições sócio-econômicas da maioria da

população negra brasileira – o lugar da doméstica, da lavadeira, da

passadeira, daquela que realiza serviços gerais −, para ocuparem uma

posição que, por mais questionada que seja, ainda é vista como

possuidora de status social e está relacionada a um importante

instrumento: o saber formal (GOMES,1995, p.28-29).

Ser mulher negra e professora, na sociedade brasileira, representa, além de uma

inserção profissional, a conquista de um espaço público antes ocupado por homens e

mulheres brancas da classe média. Representa também o rompimento com o estereótipo

de incapacidade intelectual criado sobre o negro que ainda hoje opera de maneira muito

forte nas relações sociais do País (GOMES, 1995). Ainda conforme essa autora,

chegar ao magistério, para a jovem negra, é a culminância de múltiplas rupturas e

afirmações: a luta pela continuidade dos estudos e a busca de uma profissão que lhes

garanta um espaço no mercado de trabalho.

67

Influências da cor na trajetória profissional de professoras negras

Nesta parte da dissertação, discutirei a influência da cor/raça nas trajetórias de

trabalho das professoras. Isto é, se o pertencimento racial delas em algum momento

consistiu em uma forma de dificuldade e/ou impedimento de progressão funcional.

Um fator que demonstra, nitidamente, a condição mais desfavorável vivenciada

pelas mulheres negras no mercado de trabalho diz respeito às suas possibilidades de

crescimento profissional. Isto é, a presença de mulheres negras em cargos de direção e

planejamento é quase três vezes menor que a das não-negras nas diversas regiões do

Brasil, ou seja, as disparidades entre este grupo são expressivas e estão associadas às

suas condições sociais, principalmente a educação, que é uma das formas de se

promover a mobilidade social das pessoas (DIEESE/2001-2002). Na tabela a seguir,

percebe-se que a participação das mulheres brancas em ocupações de direção e

planejamento é pelo menos duas vezes maior que a das negras, sendo que em São Paulo

e Porto Alegre chega a ser quatro vezes maior.

Essa realidade referente às possibilidades de crescimento profissional se faz

presente também nas trajetórias docentes de mulheres negras. Embora exista um

número significativo de docentes negros “militando nas redes de ensino público,

percebe-se que os melhores cargos, aqueles que propiciam a gerência, a assessoria, e a

decisão, raramente são ocupados por pessoas da pele mais escura” (MÜLLER, 2006,

p.70).

68

Nesta pesquisa, das doze professoras negras entrevistadas, seis nunca ocuparam

funções de chefia no ambiente escolar. As outras seis ocuparam e tiveram essa fase da

trajetória de suas carreiras marcadas por preconceitos raciais. Convém lembrar que

entre as professoras, nove são concursadas, apenas três são interinas. Isso significa que

a maioria cumpria com o requisito de ser efetiva para concorrer à vaga de coordenadora

ou diretora escolar.

No que se refere à carreira profissional da professora Isaura, no ambiente

escolar, nota-se uma mobilidade. Em 2001, assim que concluiu o curso de Pedagogia,

foi aprovada em um concurso municipal de Várzea Grande/MT. Desse modo, em

agosto de 2002, assumiu a função de professora numa Escola Municipal de Educação

Básica, com uma turma de 4ª série. No ano seguinte, em 2003, começou a trabalhar

com uma turma de alfabetização e, logo, foi eleita coordenadora pedagógica da escola.

Os professores viram que eu tinha um perfil de liderança,

atrelando o meu conhecimento com a prática. Embora eu

estivesse iniciando no processo, (na carreira docente), eu fui

eleita coordenadora pedagógica. Estou nessa função até hoje.

Esse ano é o meu último mandato. Já estou com dois mandatos

de coordenação pedagógica e agora eu pretendo retornar à sala

de aula (Professora Isaura).

A professora Angélica também alcançou mobilidade em sua carreira

profissional. É professora concursada, atuou como coordenadora e diretora em uma

escola municipal, aposentou-se pela rede estadual de ensino e atualmente trabalha como

professora numa escola no município de Várzea Grande. Na função de coordenadora

pedagógica, era bem aceita pelos docentes da escola e entre eles existia um

relacionamento de respeito. Porém, quando foi eleita diretora e passou a ocupar um

espaço de poder, o relacionamento dos professores com ela mudou. Ela afirmou que

passou “por um processo de discriminação ferrenha”, após a eleição.

Talvez essa indisposição tenha ocorrido porque essa professora ocupou um posto

de trabalho que remete a uma penetração mais abrangente na sociedade. Enquanto

diretora, ela exerce um papel, que a transporta para além dos muros da escola, pois o/a

diretor/a é a “ponte” entre a escola e a comunidade. Dessa maneira, percebemos que,

enquanto essa entrevistada estava confinada na escola, desempenhando a função de

professora, não houve estranhamento por parte de seus colegas de profissão, mas

69

quando ela atingiu uma dimensão maior profissionalmente, experimentou o desconforto

do branco ao ver uma pessoa negra em posição de prestígio social.

Em 88, primeira eleição, eu fui eleita. Passei por um processo

de discriminação ferrenha, depois da eleição. [...] quando eu

cheguei à escola era aquele reboliço, porque não queriam

aceitar a eleição. Eles começaram a pegar documentos,

aquelas pastas que os pais assinam no dia da votação e eles

queriam assinar aquele negócio para dizer que houve fraude,

que teve gente que assinou além. [...] antes de eu ser diretora

eu fui coordenadora deles. Você vê a diferença. Eu era

coordenadora deles e eles me aceitavam e tinham um bom

relacionamento comigo. Eu não tinha problemas, porque eu os

orientava pedagogicamente e eu não sentia essa distância.

Então eu achei que sendo diretora eu não ia ter essa

dificuldade, porque até então eu já tinha essa experiência antes

com eles - já era coordenadora - tinha um bom relacionamento,

orientava e eles gostavam da minha orientação pedagógica.

Mas ai na direção, essa é a história, eu ia ter outra visão de

chefia. Eu ia ficar num comando maior. Como coordenadora eu

não estava num comando maior. A relação de poder ficou mais

forte. Antes como coordenadora, apesar de ser coordenadora e

estar trabalhando com eles eu não tinha o poder de comandar.

Isso eu percebi, mas às vezes eu não entendia: “porque na

coordenação eu não enfrentei essa relação? Porque foi só na

direção?” Porque era a questão da cor da pele (Professora

Angélica).

Às vezes a discriminação por causa da cor não é explicita. Mais

em certas falas do professor, do diretor [...]. Eu cheguei até

ouvir o seguinte: você negra, eu tenho mais experiência, você

está nova na profissão como você vai ter mais conhecimento do

que eu? Isso eu ouvi por parte de colegas professores. Eu sentia

embates (expressou-se com ênfase). Existe muito isso em nossa

prática, na vivência de nosso dia-a-dia (Professora Isaura).

No que se refere à trajetória profissional dessas professoras negras, constatei que

geralmente se acredita que elas não têm competência e capacidade intelectual para

ocupar cargos de chefia. A carreira dessas docentes foi marcada por situações de

preconceito e de discriminação racial. Independente da posição social que ocupam, as

pessoas negras sofrem discriminação racial. Constantemente sua competência de estar

exercendo cargos de prestígio “é colocada em xeque por aqueles que não acreditam que

o negro não pode estar em todos os espaços sociais” (SANTANA, 2004, p.112).

70

Esse estereótipo referente à capacidade intelectual das professoras negras é

reflexo do imaginário social, negativo, construído no século XIX, a partir das teorias

racistas. “Em decorrência disto, no cotidiano das relações pessoais e não na legislação, a

cor da pele ou o fenótipo até hoje, muitas vezes, é um obstáculo a impedir os não-

brancos de obter sucesso na escola ou alcançar postos de trabalho de maior prestígio

social” (MÜLLER, 2006, p.73).

Os relatos que seguem demonstram a influência da cor/raça na trajetória de duas

professoras concursadas, quando participavam do processo de atribuição de sala de aula

para professores efetivos. Uma delas foi enviada pela Assessoria Pedagógica para

trabalhar na escola mais próxima a sua casa. Mas, ao chegar à escola, a vaga existente

lhe foi negada pelo diretor. A outra teve sua preferência de escolher a turma (ano/série)

para qual lecionar desrespeitada. Os professores concursados na rede municipal de

ensino de Várzea Grande têm prioridade no processo de atribuição de sala de aula.

Somente depois que lhes são atribuídas às salas de aula é que os professores interinos

(contratados) podem escolher as suas. A opção destes últimos ocorre segundo a ordem

de classificação de cada professor na contagem de pontos, que é realizada todos os anos,

no final do ano letivo.

Quando eu saí do Luis Gama eu fiquei remanescente. Aí fui lá à

assessoria pegar aula. A Maria que era a professora falou: o

diretor ligou aqui e falou pra mim da sua situação, eu arrumei

uma escola perto da sua casa. Vai lá ao João de Arruda, já

conversei com o diretor, ele vai arrumar uma vaga para você.

Eu saí toda feliz e fui lá na escola. Cheguei lá me apresentei

para o diretor e falei que fui indicada pela professora Maria

para que ele arrumasse uma vaga para mim de história. Eu

perdi minha vaga lá no Luis Gama. O diretor falou: aqui na

minha escola nós somos uma família. Aqui na minha escola a

gente trabalha assim... e foi falando. Eu falei: tudo bem

professor, mas e a vaga? Como vai ser? Ele falou: eu tenho uma

vaga aqui, mas é a noite. E começou aquele negócio. Eu já

comecei a ler nas entrelinhas: Não tem lugar para você aqui. O

diretor falou que ia ver como ia ficar as aulas e me disse para

passar na segunda-feira. E eu tinha que conseguir a vaga

naquela sexta, porque não tinha mais tempo, na segunda-feira

seria atribuição de sala de aula dos interinos. Voltei à

Assessoria e falei para a Maria: naquela escola não dá porque

o diretor não quis me dá a vaga. Ela disse: mas ele garantiu

para mim. Eu falei: mas porque ele não me conhecia, né? E ai

eu descobri que ele foi perguntar de mim para uma conhecida

minha que trabalhava ao lado escola, nunca barraca de lanches

71

– que tipo de professora eu era, se eu faltava, se era

irresponsável. Ela contou tudo para mim depois. E ai nesse

mesmo dia a professora Maria disse: você não se importa de

trabalhar numa escola mais longe da sua casa? Disse a ela que

não, porque eu queria era trabalhar. Eu fui trabalhar numa

escola que estava sendo aberta; o diretor da escola não me

conhecia, mas me recebeu bem e ainda me deu o cargo de

coordenação (Professora Elisa).

[...], por exemplo, a experiência que eu tive quando fui pegar

sala de aula. Uma pessoa falou assim: ah, logo ela, essa negra,

ela quer aparecer. Eram várias colegas querendo pegar a

mesma sala de aula. Eu fui tratada assim: não tem vaga

(expressou-se com ênfase). Entre professores é assim: um

puxando o tapete do outro, isso também entre diretor,

coordenador (Professora Janete).

A professora Beatriz ainda não teve mobilidade na carreira profissional. Ela não

é concursada e está no início da carreira. Conforme seu relato, após concluir o curso

superior, encontrou dificuldades para conseguir exercer sua profissão, alegou o fato de

ser recém-formada. “Cobram experiência, mas não te dão credibilidade” (Professora

Beatriz). A falta de oportunidade, de credibilidade, a que essa professora se referiu

pode estar ligada ao seu pertencimento racial ou a falta de rede de relações nesse campo

de trabalho, porque na realidade experiência profissional essa professora tem. Ela, antes

de ingressar no curso de Pedagogia, já atuava como professora em uma escola

particular situada num bairro periférico de Várzea Grande. Além disso, durante sua

trajetória acadêmica na faculdade particular exerceu a função de ADI por três anos.

Desse modo, pode-se dizer que, pelos menos a pontuação em relação à prática em sala

de aula e a outras atividades relacionadas à experiência profissional na escola, essa

professora provavelmente tinha, para poder cumprir com os requisitos de contagem de

ponto.

A partir dos relatos dessas professoras (Beatriz, Elisa e Janete), pode-se

perceber que, às vezes, as vagas na função de professoras em escolas centrais são

negadas por diretores às professoras negras, as quais acabam sendo encaminhadas para

trabalhar em escolas periféricas. Leite (2006) constatou em sua pesquisa que uma

diretora negou existir vaga na escola à professora negra, mas, quando chegou uma

professora branca, a diretora imediatamente a contratou. Para a professora negra, a

72

diretora arrumou uma vaga numa escola cuja estrutura física era precária e cuja

localização era em uma área periférica.

O trabalho é a situação mais influenciada pela cor ou raça da pessoa. Este ano, o

IBGE divulgou resultados de estudo18

sobre cor ou raça que revela o reconhecimento,

por 63,7% dos entrevistados, de que a cor/raça influencia a vida das pessoas no Brasil.

33,5% declararam que não há influência da cor/raça na vida das pessoas no País, e,

2,8% disseram que não sabe (IBGE/PCERP, 2011).

Entre as unidades da federação pesquisadas, o maior percentual de resposta

afirmativa foi registrado no Distrito Federal (77,0%) e o menor no Amazonas (54,8%).

Em Mato Grosso, 59% das pessoas afirmaram que a cor/raça influencia na vida,

enquanto 36,8% responderam que não. O percentual dos entrevistados que disseram que

não sabem corresponde a 3,5% (IBGE/PCERP, 2011).

Entre as situações nas quais a cor ou raça tem maior influência, o trabalho

aparece em primeiro lugar (71%), seguido pela relação com a polícia/justiça (68,3%), o

convívio social (65%), a escola (59,3%) e repartições públicas (51,3%). O Distrito

Federal possui os maiores percentuais de percepção da influência da cor ou raça em

18

O estudo “Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População: um Estudo das Categorias de

Classificação de Cor ou Raça” (PCERP) coletou informações em 2008, em uma amostra de cerca de 15

mil domicílios, no Amazonas, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal

(IBGE, 2011).

73

quase todas as situações: “trabalho” (86,2%), “justiça/polícia” (74,1%), “convívio

social” (78,1%), “escola” (71,4%) e “repartições públicas” (68,3%). Apenas em

“casamento”, a Paraíba ficou com 49,5% contra 48,1% do DF (IBGE/PCERP, 2011).

No que se refere à percepção da influência da cor/raça, por sexo, as mulheres

apresentam percentual maior do que os homens: 66,8% delas disseram que a cor ou raça

influenciava, contra 60,2% deles. Em Mato Grosso, a percepção das mulheres sobre a

influência da cor/raça para as situações de casamento, trabalho, escola, atendimento de

saúde, repartições públicas, convívio social, relação com justiça/policia, também foi

maior do que a dos homens (IBGE/PCERP, 2011). A tabela abaixo demonstra o exposto

nesse parágrafo.

74

A partir dos relatos das participantes desta pesquisa, considero que “a

resistência” e “a falta de credibilidade”, são formas implícitas que fazem referência à

cor da pele das professoras. Essas formas implícitas influenciaram de modo a impedir o

progresso profissional dessas professoras negras. A “negação de vaga” é um modo

explícito de que a cor/raça influenciou as trajetórias de vida de algumas docentes, no

que se refere à situação de trabalho. Os dados desta pesquisa remetem, de certa forma,

aos resultados da pesquisa de Müller (2008). Essa autora, num estudo pioneiro, revela

que o magistério, nos primeiros anos do século XX, passou por um processo de

branqueamento.

Na obra A cor da escola, Muller (2008) prova, por meio de fotografias, a

existência de professores (as) negros (as) na ocupação do magistério primário nos

estados de Mato Grosso, Rio de Janeiro e Minas Gerais, no período da Primeira

República (1889/1930). Essa obra revela, também, que havia professores negros em

funções de maior destaque social, ocupando cargos de diretoria das escolas, por

exemplo. Mas, segundo essa autora, ocorreu um processo de branqueamento do

magistério.

No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, existiu uma política estatal de

retirar as professoras e professores negros dos cargos de diretores das escolas primárias.

A partir de 1903, a presença de professores negros no ensino primário e fundamental

75

começou a diminuir. Em 1930, as netas de ex-escravas haviam sido expulsas da

profissão de normalistas. “A escola pública projetada para formar o espírito da nação se

havia tornado praticamente branca através de políticas adotadas pelo Instituto de

Educação do Distrito Federal na era Vargas” (CARVALHO, 2006, p.8).

Existe influência da cor/raça na vida das professoras negras. A manifestação do

preconceito racial nas trajetórias de trabalho das docentes assumiu formas veladas e

abertas, como por exemplo, desconfiança de sua capacidade profissional e intelectual

por parte de professores e pais de alunos; e estranhamento ou espanto de pais de alunos

ao se depararem como uma professora negra na função de coordenadora ou diretora

escolar. Nesse sentido, a pergunta que se faz é esta: como as professoras negras

driblaram os preconceitos sofridos em suas trajetórias de trabalho? O que elas fizeram

para provar a sua competência profissional e a sua capacidade intelectual?

Eu acredito que a resposta você tem que dar é no trabalho

(Professora Claudia).

Eu sempre procurei dá o meu retorno com conhecimento.

Sempre quando alguém me questionava em alguma coisa,

principalmente quando eu dirigia a sala de professor, o meu

direcionamento era baseado em autor. [...] eu sentia que havia

questionamentos para me colocar contra a parede, do tipo

assim: vamos ver se ela sabe mesmo! (riso). [...] tinha uma

professora que ela dizia assim: ah! Ela até gosta de incorporar

autor. Ela achava que eu decorava livros. Quer dizer que, “o

negro não tem capacidade de conhecimento”. “O negro não

pode gostar de ler”, você entendeu? (Professora Isaura).

Nada chega de graça. Você tem que aprender a conquistar o

espaço e batalhar. Principalmente, os de cor. [...] Eu consegui.

Por exemplo, eu trabalho, mais trabalho dominando a minha

área. [...] eu tive que por uma armadura, uma roupagem para

sobreviver. Do lado do conhecimento, da área pedagógica, da

legislação da educação, ninguém me derrubava. Ninguém. Eu

tive que fazer isso porque senão bye, bye (Professora Angélica).

Ser pobre e ser preto não são defeitos. Eu não acomodava. A

competência tem que prevalecer. A gente tem que ir a luta. Eu

poderia ficar em casa, meu marido sustentava a casa, tínhamos

fartura, fartura mesmo, mas ninguém sabe do dia de amanhã.

Chegou uma época que ele saiu do serviço dele e se tornou

funcionário público, ai o dinheiro já era mais pouco e eu

76

pensei: e se eu não tivesse ido à luta. A gente não pode ficar

dependente dos outros, esperando, temos de ser independente.

Eu não fiquei esperando pelo marido – fui à luta, fui buscar

(Professora Helena).

Domínio do conhecimento profissional. Essa foi a estratégia comum utilizada

por elas. As professoras dominavam muito o conteúdo para provar sua competência e

capacidade na função que exerciam. A população negra, historicamente, sempre buscou

estratégias para contornar os obstáculos que surgiam no caminho de suas trajetórias de

vida. Foi o que aconteceu, por exemplo, na história do regime escravocrata. Os negros

empreenderam várias formas de resistência à escravidão. Assim, em decorrência

também de suas lutas, a escravidão foi abolida. É possível perceber isso também nas

trajetórias das professoras negras, que sempre buscam meios de ultrapassar os

obstáculos em suas carreiras. Não desistiram, pelo contrário, lutaram e alcançaram o

sucesso na vida de trabalho.

77

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno da feminização do magistério é realidade em todo o Brasil.

Todavia, a presença das mulheres na educação se dá, sobretudo nos primeiros níveis de

ensino. Quanto menor for o nível da série, maior é o número de professoras. No Ensino

Fundamental, é significativamente maior a presença das mulheres, especialmente as

negras. Nesse sentido, este trabalho procurou conhecer as trajetórias de vida de

professoras que atuam nos primeiros anos do Ensino Fundamental, no município de

Várzea Grande/MT, a fim de compreender a possível influência da cor/raça nas

trajetórias dessas docentes.

Nesta pesquisa, verifiquei que a família exerceu um papel de extrema

importância para que as professoras, quando crianças, incorporassem valores positivos

em relação a sua cor/raça; não se deixassem afetar pelas situações de caráter racista em

suas relações sociais; soubessem se defender e não desistir de seus projetos de vida ao

sofrer algum tipo de preconceito e/ou discriminação racial.

O presente estudo revela a contribuição de membros da família de algumas

depoentes em seus percursos de escolarização e atuação profissional. Os pais as

ajudavam, estimulando-as a continuar os estudos e a não desistir. Os obstáculos de

origem socioeconômica e racial que surgiram ao longo das trajetórias de estudos dessas

professoras foram driblados por elas com a colaboração das redes de apoio – familiares

e professores/as – os principais elos de solidariedade.

Por meio do relato de algumas entrevistadas, ficou evidente que, no ambiente de

trabalho delas, acredita-se na “incapacidade intelectual” das pessoas negras; e de que

“lugar” de mulheres não-brancas é nas ocupações subalternas. Nota-se, entre os pais dos

alunos, esse mesmo pensamento. A figura da mulher negra brasileira como doméstica,

lavadeira, cozinheira, entre outros, que legitimam o conceito de inferioridade e a

desqualificam, está entranhada em muitos setores da sociedade. Assim, geralmente

quando se vê uma professora negra numa posição de poder e status, exercendo uma

atividade intelectual, a tendência é relacionar sua imagem ou representá-la como uma

funcionária de limpeza ou cozinheira da escola.

78

Constatei, nesta pesquisa, que a escolha das entrevistadas pela profissão de

professora ocorreu por influência de membros da família e conforme o seu campo de

possibilidades em conseguir ingressar e concluir um curso de nível superior. A

conquista desse espaço significa o rompimento com um “círculo vicioso”, como diz

Gomes (1995). Rompe-se com a posição social de doméstica, faxineira, etc. profissão

esta exercida por grande parte das mulheres negras do Brasil. Tornar-se professora para

as mulheres negras pode ser um caminho para se conquistar mobilidade social na vida

profissional e, consequentemente, um futuro melhor.

A partir dos relatos das participantes desta pesquisa, considero que as atitudes de

resistência, de falta de credibilidade são formas implícitas que fazem referência à cor da

pele das professoras e essas formas implícitas é uma forma de tentar impedir o

progresso profissional das mesmas. A negação de vaga é um modo explícito de que a

cor/raça influenciou as trajetórias de vida de algumas docentes, no que se refere à

situação de trabalho. A mobilidade da mulher não-branca na sociedade brasileira não é

algo fácil de alcançar, contudo é possível, pois elas, além do esforço pessoal,

estabelecem redes de solidariedade e apoio que contribuem para a superação das

dificuldades encontradas nas trajetórias de estudo e trabalho.

79

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protagonismo de intelectuais/ativistas negras, a experiência das organizações

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