cristinapatriota as trajetÓrias

23
AS TRAJETÓRIAS DA FORMALIZAÇÃO: CONDOMÍNIOS HORIZONTAIS EM BRASÍLIA AUTORA: CRISTINA PATRIOTA DE MOURA 32º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 01: A CIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: TEORIA, PESQUISA E CONTEXTO

Upload: livia-vitenti

Post on 01-Oct-2015

221 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Cristina Patriota - antropologia urbana

TRANSCRIPT

  • AS TRAJETRIAS DA FORMALIZAO: CONDOMNIOS HORIZONTAIS EM BRASLIA

    AUTORA: CRISTINA PATRIOTA DE MOURA

    32 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

    GT 01: A CIDADE NAS CINCIAS SOCIAIS: TEORIA, PESQUISA E CONTEXTO

  • 2

    AS TRAJETRIAS DA FORMALIZAO: CONDOMNIOS HORIZONTAIS EM BRASLIA1

    Cristina Patriota de Moura

    Entre mortos e feridos, eu acho que no foi um bom negcio. Ter

    trocado o apartamento pela casa. Viemos para uma situao de instabilidade que ningum quer para sua prpria casa. Porque

    projeto de vida que est a. a casa da famlia que est a, a nossa casa. E l, na 416 era nossa casa tambm. como eu falei, trocamos um patrimnio tombado pela UNESCO por uma terra instvel, que a gente no sabe quando vai ter escritura 2

    Quando voltei a morar em Braslia em 2006, aps dez anos vivendo em outras cidades, muito havia mudado. O Plano Piloto continuava basicamente o mesmo, sendo as transformaes do tempo percebidas nos detalhes das rvores crescidas, nos parquinhos das quadras muitas vezes deteriorados e desertos, no enorme nmero de carros nas ruas e nos manobristas em frente s lojas nas comerciais das superquadras. Mas o Plano Piloto, tombado pela Unesco, j no abrigava sequer um quinto da populao do Distrito Federal, que se transformara profundamente. Essa transformao j vinha acontecendo de forma intensa desde a construo de Braslia, com a proliferao de invases e a incessante construo de cidades satlites e novos setores por parte de sucessivos governos.

    Saindo com uma amiga dos tempos de escola, perguntei por uma conhecida em comum e onde estava morando, obtendo como resposta que esta vivia agora no Grand Vale3. No conhecia o lugar. Minha amiga ento explicou,

    uma favela de luxo que tem l perto do Lago Sul. Voc vai conhecer. Agora tem um monte de gente morando nessas favelas que eles chamam de condomnios.

    A resposta me intrigou. O que seria uma favela de luxo? E por qu questionar o termo condomnio? Tal relao entre luxo, favela e condomnio seria impossvel no

    1 O presente trabalho fruto de pesquisa preliminar no mbito do projeto intitulado Os Condomnios

    Horizontais no DF e a Proliferao Global de reas Residenciais Muradas, financiado pela Fundao de Apoio Pesquisa do Distrito Federal. Algumas das entrevistas aqui citadas foram realizadas por alunos de graduao da disciplina Antropologia Urbana, ministrada pela autora na Universidade de Braslia durante o segundo semestre de 2008. As entrevistas que no possuem referncia aos alunos foram realizadas pela prpria autora. 2 Morador de condomnio entrevistado por Hermano Lopes Ges e Silva, aluno da disciplina

    Antropologia Urbana, UnB, 2008. 3 Todos os nomes de condomnios so fictcios.

  • 3

    contexto em que realizei minha pesquisa de doutorado, em Goinia, onde os condomnios horizontais apareciam como espaos extremamente organizados, purificados e modernos. Tambm no era essa a imagem dos condomnios fechados ou gated communities de que tratava a bibliografia nacional e internacional4. Mas o caso de Braslia era diferente. Os condomnios haviam se alastrado pelas terras adjacentes capital federal em meio a sries de conflitos de sonhos e interesses, controvrsias jurdico-polticas e gestes de (i)legalidades que se combinavam de maneiras ao mesmo tempo muito parecidas e muito diferentes de outros processos de expanso urbana no Brasil e em outros pases.

    A dinmica envolvendo a expanso dos condomnios horizontais no Distrito Federal coloca em foco uma srie de questes a respeito dos processos de ocupao do solo nas cidades, com suas mltiplas dimenses simblicas, fsicas, morais, econmicas e jurdico-polticas. Se, por um lado, a proliferao de reas residenciais muradas de baixa densidade nas franjas e interstcios urbanos de ocupao recente um fenmeno de generalidade global, processos especficos apresentam importantes dimenses que esto muito alm da mera atualizao local de fenmenos globais. Nesse sentido, a noo de assemblage, aqui traduzida como composio ou composto, interessante para pensar como diferentes escalas e dimenses se combinam nos processos de urbanizao. A inteno deste trabalho refletir sobre os condomnios horizontais ocupados por camadas mdias no DF como composies boas para pensar processos urbanos diversos. Para tal, articulo questes tericas com agenciamentos de diversos atores, tendo a noo de trajetria (Bourdieu, 1996; Velho, 1994) como importante referncia.

    1. A Perspectiva dos compostos A noo de assemblage vem sendo explorada na literatura antropolgica recente

    para pensar principamente fenmenos globais contemporneos que escapam a domnios previamente pensados como tendo fronteiras claras, como questes de biopoderes, por exemplo, que combinam elementos da cincia, poltica, religio, etc. Autores como Aihwa Ong e Stephen Collier, por exemplo, propem a noo de assemblage como uma forma de pensar fenmenos globais contemporneos sob novas perspectivas:

    4 Ver Patriota de Moura, 2007b.

  • 4

    Accordingly, it remains important today to reflectively cultivate more partial and cautious positions of observation that nonetheless grapple with big questions. It may be helpful, in this light, to ask how the tools and examples presented in this volume can be relevant to understanding contemporary shifts, and what new sites of research may be opened by an approach such as the one we have outlined. ()

    These shifts trace little lines of mutation that disarticulate and rearticulate elements, forming new assemblages that will be the sites, objects and tools of future reflection.5 (Ong & Collier, 2005: 17-18) Os autores citam Latour (1993) e Deleuze (1987) como fontes de inspirao

    terica. Os autores acima citados se inspiraram, por sua vez, na monadologia de Gabriel Tarde, cuja concepo se baseia na idia da multiplicidade dos agentes que se combinam:

    O carter bizarro e disparatado da realidade, visivelmente dilacerada por guerras internas seguidas de transaes capengas, supe a multiplicidade dos agentes do mundo. Sua multiplicidade confirma sua diversidade e somente ela pode lhe conferir uma razo de ser. Nascidos diversos, eles tendem a se diversificar; sua natureza que o exige. Por outro lado, sua diversidade se deve quilo que so: no unidades, mas totalidades especiais (Tarde, 2003:94) E por totalidades especiais Tarde entende as prprias mnadas que, longe de

    serem unidades indivisas, so sempre combinaes provisrias, apesar de dotadas de agncia. essa idia da diversidade dos agentes que se compem em totalidades especiais que est por trs da idia de assemblage. Nos termos de Tarde, em francs:

    ces lements derniers auxquels aboutit toute science, lndividu social, la cellule vivante, latome chimique, ne sont derniers quau regard de leur science particulire. Eux mmes sont composs 6 (Tarde, 1999 : 36)

    5 De acordo, continua importante atualmente cultivar reflexivamente posies de observao mais

    cautelosas e parciais que, no entanto, lidam com grandes questes. Pode ser til, sob essa perspectiva, perguntar como as ferramentas e exemplos apresentados neste volume podem ser relevantes para compreender mudanas contemporneas e quais lugares de pesquisa podem ser abertos por uma abordagem como a que delineamos. (...)

    Essas mudanas traam pequenas linhas de mutao que desarticulam e rearticulam elementos, formando novos compostos que sero os lugares, objetos e ferramentas para futuras reflexes (traduo minha)

    6 Esses elementos ltimos em que culmina toda cincia, o indivduo social, a clula viva, o tomo

    qumico, s so ltimos em relao sua cincia particular. Eles mesmos so compostos. (traduo minha)

  • 5

    Os composs de Tarde, assim como os assemblages de Ong e Collier ou mesmo as redes, hbridos e coletivos de Latour (1993, 2005), so agentes formados por elementos heterogneos.

    We can already conclude that the social, as usually defined, is but a moment in the long history of assemblages, suspended between the search for the body politic and the exploration of the collective7 (Latour, 2005: 247) No , no entanto, a teoria-ator-rede que me interessa particularmente, mas a

    possibilidade de pensar fenmenos espaciais a partir de uma perspectiva da composio ou dos compostos. E aqui escolhi os termos que se aproximam mais do original francs, que poderia ser equivalente ao assemblage ingls, mas que considero mais em consonncia com minha perspectiva terica do que a outra traduo possvel, a montagem por esta ltima remeter a imaginao idia de artificialidade e de uma mo montadora.8

    Sob outra perspectiva, Saskia Sassen, em livro recente, tambm se apropria da idia de assemblage:

    Across time and space, territory, authority and rights have been assembled into distinct formations within which they have had variable levels of performance. Further, the types of instruments through which each gets

    constituted vary, as do the sites where each is in turn embedded private or public, law or custom, metropolitan or colonial, national or supranational and so on. () Rather than starting with these two complex wholes - the national and the global I disaggregate each into these three foundational components. () This also produces an analytics that can be used by others to examine different countries in the context of globalization or different types of assemsblages across time and space9 (Sassen, 2006: 5)

    7 Podemos desde j concluir que o social, como usualmente definido, no mais que um momento numa

    nonga histria de composies, suspensas entre a procura pelo corpo poltico e a explorao do coletivo (traduo minha) 8 Em primeira anlise parece que Latour diferencia entre collectives e assemblages. As composies

    de que trato aqui estariam mais prximas da idia de coletivos em Latour. A idia de montagem interessante principalmente para pensar a ao das cincias sociais que, na viso de Latour, teriam a tarefa de montar o que ele chama de assemblages.. 9 Atravs do tempo e do espao, territrio, autoridade e direitos tm se combinado em formaes distintas

    dentro das quais eles tm tido nveis de ao variados. Ademais, os tipos de instrumentos atravs dos quais cada um constitudo variam, assim como os stios nos quais cada um por sua vez est embebido privado ou pblico, lei ou costume, metropolitano ou colonial, nacional ou supranacional e assim por diante. (...) Mais do que comear com essas duas totalidades complexas o nacional e o global eu desagrego cada um deles nesses trs componentes fundadores. (...) Isso tambm produz uma analtica que

  • 6

    Os trs componentes de que Sassen fala - territrios, autoridade e direitos podem ser todos elementos interessantes para tambm abordar o caso dos condomnios horizontais em futuras anlises. Pensar os condomnios como compostos tem a vantagem de tirar o foco dos contextos - como as totalidades complexas de Sassen ou o inatingvel corpo poltico de Latour - e permitir pensar processos de combinaes de fatores transversais. Esses fatores no se resumem nem ao mundo dos condomnios (Patriota de Moura, 2003) nem a Braslia, o Brasil, ou mesmo a globalizao neoliberal que modula processos de apropriao do solo urbano em diversas partes do mundo. Tambm permite pensar fenmenos urbanos de uma tica que vai alm de uma oposio entre espaos de fluxos e espaos de lugar e de processos de acirramento da segregao urbana (Castells, 2006; Caldeira, 2000). No se trata de negar a existncia desses processos, mas de pensar as originalidades e diversidades de combinaes possveis.

    Trata-se, portanto, de pensar os condomnios horizontais como composies abertas, apesar do fechamento espacial ser uma caracterstica muito comumente associada s espacialidades designadas por tal nome. O caso dos condomnios no DF10 aparece como um contraponto bom para pensar essas questes mais amplas justamente por que ele apresenta tanta clareza em sua obscuridade. Essa afirmao propositadamente paradoxal visa chamar ateno para a grande visibilidade da confuso quando se fala nos condomnios de Braslia. H diversos pontos de vista e de ao quando se fala em condomnios no DF, mas todas as narrativas parecem concordar que o termo condomnios designa um campo onde o dissenso e o conflito tm forte presena. Nas palavras de uma gegrafa:

    (...) os conflitos desencadeados esto vinculados a um conjunto de relaes que os diversos grupos de interesses passam a estabelecer em relao expanso dos limites da terra urbana: o GDF detm a propriedade e o poder poltico para elaborar as normas para a ocupao, os grileiros e os proprietrios detm a organizao do mercado, e os moradores detm o uso efetivo desses lugares, construindo suas moradias ou cercando seus lotes. (Penna, 2003: 55) A confuso em torno de processos de expanso urbana, envolvendo grileiros,

    auto-construo e conflitos legais no novidade na literatura. No obstante, esses

    pode ser usada por outros para examinar pises diferentes no contexto da globalizao de diferentes tipos de composies atravs do tempo e do espao. (traduo minha) 10

    E aqui o DF mais uma localizao que um contexto englobante, apesar de ser tambm um componente na composio.

  • 7

    processos so geralmente relacionados a populaes de baixa renda nas periferias ou favelas, como bem demonstram autores diversos11. No caso de Braslia, os grileiros so muitas vezes tambm moradores e membros de diferentes rgos governamentais, fazendo com que os atores envolvidos sejam muitas vezes eles prprios interessantes compostos que embaam as fronteiras entre governo, grileiros e moradores.

    2. Componentes e trajetrias Apesar das diversas exploraes sofridas por moradores por parte de grileiros ou

    do poder pblico, parte da literatura vem tratando trajetrias de estabelecimento de populaes de baixa renda nas cidades brasileiras como formadoras de processos emancipatrios.. a perspectiva de James Holston, por exemplo, ao falar de uma cidadania insurgente que teria a apropriao do espao urbano e o aprendizado da manipulao das potencialidades de processos legais como passos importantes no sentido de ganho de poder por parte dos moradores da periferia12 de So Paulo.

    Thus, people invoke the laws complications not only for fraudulent purposes but also to bring conflict into the legal arena as a way to keep it unresolved but contained (...). In perpetuating conflict, therefore, juro-bureaucratic irresolution may be politically functional, but not in any functionalist sense.13 (Holston, 2008: 220) O conflito legal teria, portanto, o potencial de, adiando decises que so sempre

    mais polticas do que estritamente legais, permitir a permanncia de populaes em terras cuja titularidade, parcelamento e ocupao so alvos de disputas histricas, envolvendo diversos agentes pblicos e privados (ou ambos ao mesmo tempo), muitas vezes portadores de documentos contraditrios14. Mas o adiamento de decises que outrora se resolveriam atravs de atos violentos (por parte tanto de moradores quanto de agncias do estado ou mesmo grileiros) no o nico ganho.

    11 Como, por exemplo, Valadares, 1983; Borges, 2003; Holston, 2005 e 2008; Ribeiro, 2007.

    12 Holston parece trabalhar com uma concepo bastante genrica de periferia. Trabalhos como os de

    Magnani (1996) e Frugoli (2004)colocam em perspectiva a generalidade desse termo, demonstrando a existncia de outros possveis recortes para pensar espacialidades urbanas e para a policentralidade de metrpoles contemporneas. 13

    Portanto, as pessoas invocam as complicaes da lei no somente com propsitos fraudulentos mas tambm para trazer o conflito para a arena legal como um meio de mant-lo sem resoluo, porm contido (...) Ao perpetuar o conflito, portanto, a irresoluo juro-burocrtica pode ser potencialmente funcional, mas em um sentido nada funcionalista (traduo minha) 14

    Nas palavras da presidente da nica-DF: Tem muito documento falso.

  • 8

    A crucial change occurred in the urban social movements and organizations when residents began to understand their social needs as rights of citizenship and to generate rights-based arguments to justify their demands.15 (op.cit: 240) Esses argumentos tinham apelos no somente porque constituam formas de

    lutar contra as enormes desigualdades sociais existentes nas cidades, mas tambm porque permitiam s populaes de baixa renda demonstrar competncias e participar de uma esfera pblica reservada aos que tm direitos e, portanto, dignidade. Assim, contrariavam-se imagens de ilegalidade e marginalizao relacionadas aos moradores de periferias.

    A tese de Holston que essa nova participao numa esfera pblica pautada por disputas legais efetuou uma mudana de subjetividade, contida na prpria concepo de cidadania. Essa passou a ser uma noo igualitria baseada no direito a ter direitos, em oposio a uma concepo, tradicionalmente em vigor no Brasil, onde a cidadania seria entendida como uma forma de distribuio de privilgios a categorias diferenciadas de cidados16.

    Os processos de legalizao e/ou formalizao atravs da consolidao dos espaos urbanos ocupados pelas classes populares tm tido um importante papel no sentido de um aprendizado jurdico-legal por parte de setores da populao nacional que h poucas dcadas eram mais vtimas da lei do que agentes. As aes de associaes de moradores e comunidades eclesisticas de bairro, por exemplo, incitaram importantes transformaes por parte de agentes governamentais no sentido da formulao de polticas para regularizar reas que antes eram consideradas simplesmente ilegais e portanto passveis de remoo. Tem-se ressaltado a importncia da noo de consolidao nos processos de descriminalizao de moradores de reas de baixa renda.

    Em trabalho a respeito de processos de transformao dos espaos das favelas no Rio de Janeiro, por exemplo, Mariana Cavalcanti aponta para a importncia e ao mesmo tempo a pouca clareza do termo:

    15 Uma mudana crucial ocorreu nos movimentos e organizaes sociais urbanos quando moradores

    comearam a entender suas necessidades sociais como direitos de cidadania e a gerar argumentos com base em direitos para justificar suas reivindicaes (traduo minha) 16

    In this performance, they produced a transformation in the understanding of Brazilian citizenship itself of great social consequence, from a distribution of privilege to particular categories of citizens to a distribution of the right to rights for all citizens.16 (op cit: 241)

  • 9

    Termo de uso pervasivo na literatura especializada (tanto tcnica quanto acadmica), a favela consolidada raramente definida. A prpria naturalizao do termo (...) aponta para o fato de que, em seu uso corrente, no chega a constituir conceito, mas deve-se necessidade prtica de distinguir, do ponto de vista do planejamento e governana urbanas, favelas j estabelecidas e bem equipadas em termos de infra-estrutura de favelas mais recentes e outros modos de produo de moradia de baixa-renda (Cavalcanti, 2007: 2) O fato que, como bem demonstra Cavalcanti, a consolidao do territrio das

    favelas no exclui a existncia de uma multiplicidade de elementos que fogem legalidade dos direitos de cidados perante o estado. Inclusive o que parece primeira vista uma contradio transmuta-se em uma interconexo: do ponto de vista da consolidao das favelas, a territorializao do trfico figura como elemento potencializador de novas melhorias urbansticas, reproduzindo assim tambm a crescente desigualdade entre os pobres, isso porque h um consenso no sentido de que o aumento de investimentos contribui para a conteno da violncia urbana (idem: 4).

    De forma anloga, mas com foco no mundo do trabalho e no trnsito de pessoas pelas tramas da cidade, as reflexes de Telles e seus colaboradores (Telles e Cabanes, 2008; Telles e Hirata, 2007) enfatizam a coexistncia de diversas dimenses aparentemente contraditrias nas vidas de habitantes de reas de baixa renda em So Paulo. A gesto das ilegalidades aparece como importante componente das vidas de pessoas que transitam entre o lcito e o ilcito, o legal e o ilegal, o formal e o informal.

    Na verdade, menos do que separaes entre esses domnios e passagens de um a outro, h complexos jogos de trnsito onde as fronteiras esto longe de serem evidentes.

    Todas essas reflexes, no entanto, dizem respeito a reas habitadas por populaes de baixa renda. Porm, ao pensar a respeito dos condomnios de Brasia, impressionante como emergem no somente processos sociologicamente anlogos mas inclusive os mesmos termos. No se trata somente do fato do termo condomnio ser utilizado para falar de parcelamentos irregulares em geral, como j demonstrei em outro trabalho (Patriota de Moura, 2007). A questo que o processo de ocupao do solo no DF, pelas suas especificidades histricas, permitiu que membros das camadas mdias produzissem suas moradias de forma parecida s camadas populares de outras cidades. Assim, por exemplo, medida que no Rio de Janeiro se fala de favelas consolidadas, a consolidao um fator importantssimo no processo de regularizao dos condomnios

  • 10

    horizontais de classe mdia em Braslia. Nas palavras da presidente da Associao dos Condomnios Horizontais e Associaes de Moradores do DF (nica-DF):

    * E o que um condomnio consolidado? - Consolidado um condomnio que j tem toda a estrutura pronta, os moradores j esto habitando h muitos anos, j est praticamente todo ocupado, ocupado praticamente que a maioria desses condomnios j esto assim com sua capacidade mxima, so condomnios mais antigos, diferente da situao de outros condomnios que existem nos Distrito Federal: uns em processo de incio, comeando o condomnio e outros que iniciaram e pararam, exatamente pela complexidade do processo de regularizao, esto estacionados. Ento, ns temos essa rea uma rea de condomnios consolidados: no so condomnios que esto iniciando, so condomnios antigos. O mais novo daqui tem 10 anos, que o condomnio (...), que vocs vo l conhecer tambm. Tambm em Sobradinho e Planaltina, um dado importante: existem 180 parcelamentos com o nome de condomnio ou ento bairros mesmo abertos (de renda) baixa, mdia e mdia alta, ns temos todas as situaes em Sobradinho: condomnios implantados em reas particulares, reas pblicas do GDF, reas pblicas da Unio e reas que no so nem pblicas nem privadas, so apropriadas em comum, ou seja, tem uma parte de um e uma parte de outro, no se sabe qual a parte de quem. Em Sobradinho, o nico condomnio que tem licenciamento ambiental aprovado e o projeto urbanstico aprovado, esses que costumam falar quando o condomnio est regularizado, mas no bem isso, ele est com o licenciamento aprovado, o projeto urbanstico aprovado, o condomnio (...), quase na divisa com o Parano. o nico que tem.

    Porque ns temos que fazer uma diferena: (...) para o Governo do Distrito Federal, condomnio regularizado aquele condomnio que tem licenciamento ambiental e tem projeto urbanstico do condomnio aprovado sem decreto de regularizao. No nosso caso, ns moradores entendemos regularizado aquele condomnio que tem a capacidade de entregar pra cada um dos seus moradores uma escritura pra que ela possa ser registrada, isso pra ns condomnio regularizado. Ento s existem quatro condomnios nessa situao no Distrito Federal todo (...). O resto so condomnios que esto em regularizao, mas no chegou na escritura ainda, ou ento aqueles que esto no

  • 11

    processo e no chegou nem no licenciamento e nem na aprovao do projeto urbanstico. A fala acima contm uma variedade de agentes, categorias, ttulos e

    interpretaes, todos se combinando em estaes17 nas trajetrias de regularizao dos condomnios. A fala da presidente da NICA aponta, mais uma vez, para o dissenso e a multiplicidade de atores. possvel tambm perceber a tentativa de homogeneizar opinies e interpretaes, uma ao condizente com o papel de liderana e representao da agente da fala, sendo esta tambm uma advogada. Relata uma oposio entre GDF e moradores com relao ao significado da regularizao. A escritura com registro em cartrio aparece como o ponto final de um processo dentro do qual todos podem ser inseridos. Interessante que, ao pensar as trajetrias de atores especficos, sejam eles pessoas fsicas, condomnios ou associaes de moradores - para utilizar termos nativos do mundo do direito legal - nos deparamos com uma multiplicidade de outras questes, a comear pelo fato de que muitos moradores de condomnios nos quais no possvel realizar registro de imveis alegam morar em condomnios regularizados.

    3. Moradores Uma das propostas iniciais ao pensar os condomnios horizontais no DF era

    trabalhar com relatos de moradores a respeito de suas trajetrias de moradia e os percursos no sentido de regularizar suas casas. Os objetivos da pesquisa tinham como pressuposto que havia alguma unanimidade no que diz respeito vontade de regularizar moradias e que seria possvel perceber interessantes dramas pessoais ao indagar a respeito das trajetrias daqueles que compraram lotes e construram casas em condomnios irregulares. As primeiras incurses ao campo j indicam que, ao passo que a regularizao importante e h trajetrias particulares repletas de tenses, conflitos e inseguranas, h demandas, objetivos e expectativas diferenciadas.

    O sndico de um condomnio que renda mdia localizado em uma das regies de ocupao mais antiga de Braslia diz que os moradores j esto descrentes com isso

    17 Utilizo aqui o termo estao pensando na noo de trajetria em Bourdieu:

    Tentar compreender uma vida como uma srie nica e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vnculo que no a associao a um "sujeito" cuja constncia certamente no seno aquela de um nome prprio, quase to absurdo quanto tentar explicar a razo de um trajeto no metro sem levar em conta a estrutura da rede, isto , a matriz das relaes objetivas entre as diferentes estaes. (Bourdieu, 1996 :190-191)

  • 12

    tudo, no tm expectativa de nada. Seu condomnio alvo de acusaes de invaso de terras pertencentes ao Parque Nacional de Braslia, mas ele diz poder provar que o condomnio fica em terras particulares:

    Nosso condomnio aqui, o Ministrio Pblico enxerga como invasores do parque e um grande engano. Ns no estamos invadindo. Nosso pedao aqui particular desde... tenho aqui cem anos de escritura, ainda com os ph e y das letras.

    O sndico um sargento do exrcito aposentado que comprou seu terreno em 1996:

    Eu lembro que paguei quatro mil e novecentos reais em doze parcelas de trezentos e cinqenta. Uma entrada de mil, mais setecentos e o restante em doze vezes. Foi duro pagar. Hoje no se acha por menos de cinqenta mil o lote

    Ele insiste que o condomnio fica em terras particulares e que, pelo tempo do processo que corre no IBAMA desde 1998 e j tem sete volumes desse tamanho, ocupando espao na sala do procurador, teria direito a licena ambiental porque j existe plano de recuperao de rea degradada. No obstante, ele admite que o dono dessa chcara aqui resolveu lotear revelia da lei. Na verdade ns somos irregulares nesse aspecto, por ter sido loteado sem autorizao.

    H vrias camadas de (ir)regularidades possveis, cada uma delas passvel de interpretaes e contestaes por diferentes instncias do poder pblico. interessante como as falas de moradores de condomnio incluem conhecimentos de rgos pblicos e terminologias legais. H tambm uma alternncia ttica de termos para falar da situao de sua moradia. Um casal de analistas do Tribunal de Contas da Unio, por exemplo, que vive em um condomnio com lotes de mais de mil metros quadrados, esclarece:

    A primeira vez que eu ouvi falar em condomnio... No era claro, naquela poca no era claro. O que me falaram? No, no legal... legal...no que ilegal, irregular. Falavam isso pra gente. A gente no sabia. Tanto que a gente pagou pro grileiro achando que a terra era dele, tanto que ele passou l uma escritura e falou, , isso aqui uma fazenda, tanto que eu to parcelando. No ilegal porque minha. Ningum sabe de quem . Agora parece que o governo t conseguindo provar que do governo. Ento ns que pagamos para o grileiro vamos ter que pagar pro governo. Essa que a briga da regularizao.

  • 13

    Aqui, a ilegalidade aparece como uma contraveno ligada situao de propriedade fundiria, ao passo que e irregularidade se deve ao ato de parcelamento do solo, visto como passvel de regularizao e por isso menos grave que a ilegaliade. Essa oposio entre ilegal e irregular, por sua vez, contrasta com a afirmao de um tcnico do ministrio das cidades, segundo o qual se uma propriedade rural privada transformada em condomnio sem as devidas licenas, projetos aprovados e adequao s diretrizes dos PDLs ou PDOT18, A situao da terra pode estar regular, mas o parcelamento ilegal19.

    De fato, h diversas disputas e uma gradao de irregularidades onde a propriedade, ou ao menos a posse das terras a base. Assim como na fala da presidente da nica e do sndico, a moradora acima citada mostra a existncia de elementos diferenciados quanto situao legal dos condomnios. Ademais, se a consolidao um argumento importante em todos os processos de regularizao, h indcios de que os moradores de classe mdia lidam com questes de forma diferente dos moradores de regies de baixa renda, consideradas de interesse social. interessante, nesse sentido, perceber que as aquisies de direitos pelas populaes de baixa renda, principalmente a partir de mecanismos previstos no estatuto das cidades, podem provocar ressentimentos por parte dos segmentos mdios que, em sua heterogeneidade, veiculam discursos onde o sacrifcio e o investimento so temas centrais.

    A vem o governo e j criou uma situao. Vamos resolver principalmente esses de baixa renda e esses de mdia renda que for pblico a gente vai resolver pela venda direta e o particular eles negociam entre eles at resolver o caso n? Muito bom, a comunidade de baixa renda precisa ser amparada pelo governo sim, uma obrigao do governo trat-la, mas em alguns pontos ns tambm achamos que um pouco discriminatrio porque o qu que acontece? Para eles tem que oferecer toda uma condio de criar a infra-estrutura, de fazer

    18 PDL Plano de Desenvolvimento Local. PDOT- Plano Diretor de Ordenamento Territorial.

    19 J a Subsecretaria de Anlise de Parcelamentos Urbanos SUPAR/SEDUH, trabalhou com as seguintes

    definies ao fazer um levantamento dos parcelamentos irregulares: B. Quanto regularidade dos parcelamentos:

    Informais aqueles parcelamentos urbanos promovidos por particulares em terras pblicas ou privadas, implantados (com ou sem processo de regularizao), ou no implantados mas que possuem processos de regularizao abertos antes da aprovao do PDOT/97 Formais parcelamentos urbanos promovidos por particulares em terras privadas e que contam com processo de aprovao em andamento no GDF Registrados parcelamentos urbanos que cumpriram todo o processo de regularizao ou de aprovao estabelecido pelo poder pblico e que j foram registrados em cartrio.

    (GDF, 2006: 22)

  • 14

    concesso de lotes e tudo mais, ou seja, resolve-se, ampara-se. A classe mdia tem que pagar cada vez mais caro e no consegue ver regularizado tambm no, porque alm de custear tanta burocracia que no conseguem ver a coisa avanar (...) O nosso condomnio, por exemplo, foi cadastrado como alta renda. Quando foi feito o cadastramento oficial ele foi apontado pela secretaria de desenvolvimento urbano como alta renda e quando foi feito o levantamento oficial do condomnio pela Unio, descobriu-se que aqui tinha pessoas at que se equiparavam na condio de baixa renda, assim dentro dos condomnios. Todo mundo voc tem condio de pessoas que ganham mais e o que ganham menos, ento voc no pode tirar pelo que ganha mais e achar que todo mundo pode, voc pensa bem se numa rea como a nossa um lote for, mais ou menos que comprar o lote do governo a cento e vinte mil tem pessoas que no aqui que no tem condio de pagar, ento a realidade muito diferenciada

    Enquanto os condomnios de baixa renda muitas vezes tm seus lotes doados pelo governo, os de camadas mdias tm que pagar novamente20, mesmo com o sacrifcio de terem feito praticamente todas as obras de urbanizao. Assim, por exemplo, alguns condomnios viram o incio da cobrana de IPTU como um grande avano no sentido da regularizao, enquanto outros perceberam essa cobrana como ofensiva j que todos os investimentos em infra-estrutura haviam sido feitos sem participao alguma do poder pblico.

    4. As Fronteiras

    Ao contrrio dos moradores do relato de Cavalcanti, que construram um barraco de estuque que se transformou em casa de alvenaria e depois em fortaleza para se defender da territorializao do trfico de drogas, grande parte dos moradores dos condomnios de renda mdia e alta de Braslia j comeou com investimentos considerveis, muitas vezes construindo casas com grande quantidade de vidros, em disposies espaciais que esto muito distante de serem fortalezas.

    Grande parte da literatura sobre reas residenciais muradas, sejam essas denominadas de gated communities, condomnios horizontais ou outros termos, tem a

    20 importante levar em conta que os preos inicialmente pagos na compra dos terrenos eram muitas

    vezes irrisrios se comparados ao atual preo de mercado dos mesmos ou mesmo aos preos atualmente negociados para o venda direta pela Terracap de terrenos situados em reas ocupadas de sua propriedade.

  • 15

    dimenso do medo como fator central21. Em outro texto, j apontei para o fato de que o medo nem sempre consequncia direta do aumento da violncia urbana ou mesmo de experincias vivenciadas diretamente pelos que sentem medo. No caso de Goinia, um fator que me impressiona a sofisticao dos aparatos de segurana, com utilizao de armas de fogo e sistemas de vigilncia com tecnologia de ltima gerao por empresas especializadas que efetuam discursos que retratam a fortificao como estratgia de preveno em relao violncia que est por vir. Diz-se, inclusive, que a grande onda de perigo vir do entorno de Braslia (Patriota de Moura, 2007a).

    interessante que nenhum dos condomnios com os quais tive contato em Braslia possui guardas ostensivamente armados. Quando perguntados a respeito da necessidade de guardas armados, os moradores contactados tampouco respondem afirmativamente. Muitos condomnios possuem guaritas sem guardas e mesmo os que possuem guardas uniformizados anotando o nmero da carteira de identidade do visitante raramente pedem para ver documentos. Moradores narram casos de pessoas que se mudaram para o condomnio por causa da segurana, mas a maioria aponta a segurana do condomnio como um ganho a mais, quando o que importava mesmo era ter uma casa para morar:

    * Ento um condomnio regularizado? - No, ainda no regularizado, s que tem a vantagem de no ser em terra pblica(...) Est em processo de regularizao, s que assim que sair a regularizao voc no tem que pagar o lote novamente, porque terra

    particular.

    * Tem alguma coisa a ver com medo da cidade, da violncia, ou vontade de morar em casa?

    - Olha, no muito pelo medo no, mais pelo gosto de morar em casa. (...) Eu gosto de casa, espao, tem criana, o condomnio onde estou morando agora o meu filho adora, tem espao para correr, brincar. No tanto pelo medo no. * L tem esse risco de derrubada de casas, j que no em terra pblica?

    21 Caldeira (2000), Glasze et alli (2006), Low (2000 e 2003), Atkinson e Blandy (2006), Blakely e Snider

    (1997), Roberts (2002).

  • 16

    - De qualquer forma tem sim, j que qualquer construo que vai fazer, a permisso para fazer o alvar de construo, mesmo no sendo em terra pblica tem esse risco sim22 Apesar de haver certo consenso entre moradores de condomnios acerca da

    existncia de riscos no tocante integridade fsica de suas habitaes, grande parte desses riscos no traduzida em medos. A prpria existncia de muros e guaritas s vezes uma proteo contra fiscalizaes governamentais e o nmero de moradias aparece como garantia de permanncia.

    Porm, alguns moradores narram experincias dramticas com derrubadas de casas vizinhas pelo governo:

    Foi perto da minha casa. A gente ficou assustado. Eita ferro, a gente vai ter que sair de mala e cuia. A gente ficou com medo de acontecer isso com a gente. Mas parece que o governo parou com isso23

    Outros relatam estratgias para construir suas casas mesmo com embargos e vigilncia area por parte do governo do Distrito Federal:

    Na poca tava tudo muito arriscado com o Arruda perseguindo essa questo de lotes irregulares, era helicptero sobrevoando reas suspeitas, uma loucura! Quase terrorismo, sabe? Conversamos com todo mundo no condomnio, estvamos com medo e tinha aquele negcio, eles tambm estavam correndo risco. Se eles nos acobertassem, segundo o Arruda, eles iriam para o final da lista de regularizao dos lotes. Da foi difcil porque quem nos denunciasse teria vantagens tambm. Da deu tudo certo, ficou tudo bem. Contatamos uma construtora n. Da ela disse que em vinte dias a casa estaria na laje e que depois eles fariam o acabamento por dentro e que a obra finalizaria de uma forma mais discreta.24 Em outra entrevista:

    * Voc sente que o medo maior quanto ao governo ou eventuais bandidos? - Bom, aqui onde eu moro no, o medo maior do governo, pois tem um posto policial aqui perto.

    E ainda:

    22 Entrevista realizada por Vernica Kaezer da Silva, aluna da disciplina Antropologia Urbana, UnB,

    2008.

    23 Entrevista realizada por Heliza Cristina, aluna da disciplina Antropologia Urbana, UnB, 2008.

    24 Entrevista realizada por Izabela Amaral Caixeta, aluna da disciplina Antropologia Urbana, UnB, 2008.

  • 17

    Esse medo tem por muitas vezes tirado o nosso sono e a nossa paz. Por muitas vezes no viajamos ou no samos de casa por medo do que possam fazer se no nos encontrarem aqui25.

    Essas narrativas que falam de medos e terrorismos partem, principalmente, de moradores de condomnios no consolidados, mas a noo de risco compartilhada por todos, ainda que os moradores de condomnios de renda mais alta e consolidados acreditem na quase impossibilidade de terem suas casas demolidas. importante notar que a grande maioria dos moradores de condomnios de renda mdia e alta composta por funcionrios pblicos, alguns lotados nos mesmos rgos encarregados de fiscalizar, autorizar, proibir ou conceder licenas urbansticas, ambientais e de construo. Os muros, guardas e guaritas, ademais, muitas vezes tm como principal funo servir de filtro s inspees governamentais.

    5. As Cidades Pensar em habitao para camadas mdias em Braslia exige que levemos em

    conta a histria da cidade em diversas de suas dimenses. Muito j foi dito a respeito do carter utpico da construo da cidade e das motivaes dos migrantes que vieram habitar a capital federal com elementos messinicos em seu simbolismo.26 Inicialmente, havia uma clara diviso entre aqueles para quem a cidade fora projetada os funcionrios pblicos e aqueles que tornaram a cidade possvel mas no deveriam permanecer no Plano Piloto principalmente pequenos comerciantes e trabalhadores da construo civil. O desenvolvimento das cidades satlites a partir de sucessivas invases faz parte da histria de Braslia, apesar de nem todas as cidades terem sido respostas diretas a processos de ocupao espontnea.

    O status de cidade tornou-se importante elemento de reivindicao por parte de moradores de reas de baixa renda, tendo as mesmas surgido como formas de assentar populaes com suficiente tempo de Braslia (Borges, 2000), muitas vezes sob forma de doaes de lotes ou financiamentos populares. Se as cidades satlites so hoje chamadas simplesmente de cidades isso se deve a sucessivos processos de emancipao simblica desses territrios. No obstante, a categoria Braslia simbolicamente englobante e refere-se ora ao Plano Piloto e reas adjacentes, sendo uma regio administrativa entre outras, ora ao Distrito Federal como um todo. Mais do

    25 Entrevista realizada por Caio Barreto, aluno da disciplina Antropologia Urbana, UnB, 2008.

    26 Ribeiro, 2007; Borges, 2000; Holston, 2005, Nunes, 2004.

  • 18

    que designar uma rea geogrfica, Braslia aparece como categoria simbolicamente relevante para os que habitam diferentes cidades do DF. Os processos de ocupao do solo, construo de casas e reivindicaes de regularizao fundiria vivenciados por habitantes dos condomnios de renda mdia e alta guardam importantes semelhanas com os processos vividos por moradores de antigas invases que passaram a ser cidades, como o caso da estrutural, analisado por Nunes (2007). No obstante, moradores dos condomnios mais abastados no pretendem que as reas onde moram sejam denominadas cidades, mesmo porque o fato de viverem em condomnios uma interessante alternativa para no serem identificados como moradores de cidade satlite por outros membros das camadas mdias. Por outro lado, os condomnios de baixa renda tambm demonstram a utilizao de terminologias originrias nos segmentos mdios e altos para designar estratgias de ocupao coletiva de regies perifricas de Braslia anteriormente denominadas pelo termo estigmatizante de invaso. Nesse sentido, nota-se uma operao interessante. Se, por um lado, o termo condomnio horizontal remete primeiramente idia de condomnio fechado para segmentos de elite, a utilizao do termo e de uma srie de formas de ao coletiva associados permitem que membros das camadas de baixa renda se identifiquem simblica e legalmente com membros das camadas mdias. Temos, portanto, importantes pontos de contato proporcionados pela proliferao de condomnios em Braslia que pem em perspectiva noes estticas como as de excluso e segregao. Assim como uma invaso pode agora ser um condomnio, um condomnio onde vivem funcionrios de primeiro escalo do governo federal, muitos com rendas superiores a vinte salrios mnimos, pode tambm ser considerado uma favela de luxo. importante destacar que as semelhanas e pontos de encontro percebidos a partir desta abordagem dos condomnios horizontais como composies no implicam na noo de homogeneidade, especialmente no que diz respeito aos estilos de vida adotados e s condies sociais em termos de qualidade de vida e acesso a bens e servios prprios vida urbana. Esses so outros componentes das composies, eles mesmos compostos de diversos outros componentes. No obstante, se na pesquisa que realizei em Goinia a qualidade de vida era o fator que mais se destacava nos debates pblicos veiculados pela mdia, em Braslia a regularizao vem sendo o tema pblico central.

  • 19

    Finalizando Certamente resta um grande nmero de agentes/componentes a serem

    considerados nas composies aqui trabalhadas, sendo o presente texto ainda um trabalho preliminar no sentido de compreender os condomnios horizontais em Braslia.

    Os componentes aqui apresentados - a consolidao, a regularizao, o medo e o status de cidade - se combinam de formas bastante fecundas, apresentando cada um deles importantes pontos de congruncia com processos de diversas ordens, em escalas globais, nacionais e locais, em dimenses mltiplas como os fatos sociais totais de Mauss (Mauss, 2003). Mas se as composies que se materializam como condomnios horizontais podem ser apreendidas como totais, essas so totalidades especiais, no sentido dado por Tarde. So totalidades especiais porque so combinaes em constante processo de estabelecimento, sendo termos como processo, consolidao e regularizao importantes veculos para pensarmos as dinmicas urbanas e seus possveis movimentos.

    Retorno, ento, epgrafe deste texto, onde um morador de condomnio diz que trocou um patrimnio tombado pela UNESCO por uma terra instvel. Mais do que retratar uma trajetria que sintetize outras trajetrias de compradores de lotes em condomnios, esta fala permite entrever uma srie de temas que se entrelaam nos processos urbanos em geral. A maior parte dos moradores de condomnios no era proprietria de imveis no Plano Piloto, mas muitos alegam ter optado por condomnios pela impossibilidade financeira de morar nas reas identificadas com a regio tombada de Braslia, onde as transformaes do tempo so mais sutis e menos agressivas: Plano Piloto, Lago Sul e Lago Norte.

    O tombamento (simbolizando a fixao do tempo no espao) e a instabilidade (imagem diametralmente oposta) so importantes elementos para pensar os condomnios onde hoje se diz habitar em torno de 25% da populao do DF. Essa oposio j evidenciada quando se compara o Plano Piloto s cidades satlites:

    Por um lado, o tombamento freia as foras de mercado que poderiam descaracterizar o desenho original, dando a impresso de que se engessou o espao transformando-o em um museu dos anos 50. Por outro, as satlites gozando de uma liberdade relativa e povoada por grupos de mltiplas caractersticas, produz espaos urbanos e culturais com enorme dinamismo (Nunes, 2008)

  • 20

    As disputas em torno dos condomnios horizontais, que no so nem rea tombada nem cidades satlites trazem tona uma srie de processos tambm presentes nesses outros compostos scio-espaciais, combinando velhos elementos e incluindo novos componentes, como os muros e guaritas das gated communities em outras partes do globo.

  • 21

    Bibliografia

    Atkinson, Rowland e Blandy, Sarah (2006) Gated Communities. London: Routledge. Blakely, Edward J. & Mary Gail Snyder (1997) Fortress America: Gated Communities in the

    United States. Washington D.C./Cambridge Mass.: Brookings Institutions Press/Lincoln Institute of Land Policy.

    Borges, Antondia (2003) Tempo de Braslia: etnografando lugares-eventos da poltica Rio de Janeiro: Relume-Dumar.

    Bourdieu, Pierre (1996) A Iluso Biogrfica in Ferreira, Marieta de Morais e Amado, Janana (orgs.) Usos e Abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV.

    Castells, Manuel (2006) [1999] O Espao de Fluxos in A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp.467-522

    Caldeira, Teresa Pires do Rio (2000) Cidade de Muros. Crime, segregao e cidadania em So Paulo. So Paulo: Editora 34/Edusp.

    Cavalcanti, Mariana (2007) Do Barraco Casa: tempo, espao e valor(es) em uma favela consolidada. Trabalho apresentado no 31 Encontro Anual da ANPOCS, no ST 5 - Cidades: Persperctivas e interlocues nas Cincias Sociais.

    Deleuze, Gilles e Guattari (1987) A Thousand Plateaus. Minneapolis: University of Minnesota Press.

    Frugoli, Heitor (2004) Centralidade em So Paulo. Trajetrias, Conflitos e Negociaes na Metrpole. So Paulo, Edusp.

    Garcia, Pedro Jos e Vill, Marc (2001) De la Sociabilidad Vigilante a la Urbanidad Privativa in Perfiles Latinoamericanos 19: La Nueva Segregacin Urbana. Revista de la Sede Acadmica de Mxico de la Faculdad Latinoamericana de Cincias Sociales. Ano 10 nm 19. Diciembre de 2001.

    GDF (2006) Diagnstico Preliminar dos Parcelamentos Urbanos Informais do Distrito Federal. Governo do Distrito Federa. Subsecretaria de Anlise de Parcelamentos Urbanos SUPAR/SEDUH. http://www.seduma.df.gov.br/

    Glasze, Georg et alli (2006) Private Cities. Global and Local Perspectives. London, Routledge.

    Holston, James (2005) [1993] A cidade modernista. Uma crtica de Braslia e sua utopia. So Paulo: Companhia das Letras.

    ____________ (2008) Insurgent Citizenship. Disjunctions of Democracy and Modernity in Brazil. Princeton University Press.

    Latour, Bruno (1993) We Have Never Been Modern. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

    ___________ (2005) Reassembling the Social. An introduction to actor-network theory. Oxford: oxfor University Press.

    Leite Lopes, Jos Sergio et alli (orgs) (2004) A Ambientalizao dos Conflitos Sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumar.

  • 22

    Low, Setha M. [2000] (2003) The Edge and the Center: Gated communities and the discourse of Urban Fear. In LOW, Setha e LAWRENCE-ZNIGA, Denise (orgs) (2003) The Anthropology of Space and Place. Blackwell Publishing Company. 17

    ______________ (2003) Behind the Gates. Life, security and the pursuit of happiness in fortress America. New York: Routledge.

    Magnani, Jos Guilherme Cantor e Torres, Llian de Lucca (orgs.) (1996). Na metrpole: textos de antropologia urbana. So Paulo: Edusp/Fapesp.

    Mauss, Marcel (2005) Ensaio sobre a ddiva in Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac & Naify.

    Nunes, Brasilmar Ferreira (2003) A lgica Social do Espao in Paviani, Aldo e Gouveia, Luiz A. de C. (orgs) Braslia: controvrsias ambientais. Braslia: Editora UnB.

    ______________________ (2004) Brasilia: A Fantasia Corporificada. Brasilia: Paralelo 15.

    ______________________ (2006) O sentido urbano de ocupaes espontneas do territrio in Nunes, Brasilmar Ferreira (org.) Sociologia das Capitais Brasileiras: participao e planejamento urbano. Braslia: Lber Livro Editora.

    ______________________ (2008) Braslia- quase meio sculo Laboratrio Braslia: A Questo Urbana. Domingo, 27 de abril de 2008. http://laboratoriobrasilia.blogspot.com/

    Ong, Aihwa e Collier, Stephen J. (2005) Global Assemblages, Anthropological Problems in Ong, Aihwa e Collier, Stephen J (orgs) Global Assemblages. Technology, politics, and ehics as anthropological problems. Oxford and Maiden: Blackwell Publishing.

    Patriota de Moura, Cristina (2003) Ilhas Urbanas. Novas Vises do Paraso. Tese de Doutorado. PPGAS, Museu Nacional/UFRJ.

    _______________________ (2007a) A Fortificao Preventiva e a Urbanidade como Perigo Braslia: Srie Antropolgica.

    _______________________ (2007b) Condomnios Fechados e Gated Communities: uma discusso conceitual Trabalho apresentado no 31 Encontro Anual da ANPOCS, no ST 5 - Cidades: Persperctivas e interlocues nas Cincias Sociais.

    Penna, Nelba Azevedo (2003) Fragmentao do Ambiente Urbano: crises e contradies in Paviani, Aldo e Gouveia, Luiz A. de C. (orgs) Braslia: controvrsias ambientais. Braslia: Editora UnB.

    Ribeiro, Gustavo Lins (2007) O Capital da Esperana. A experincia dos trabalhadores na construo de Braslia. Braslia:Editora UnB.

    Roberts, Ana Mrcia Silva (2002) Cidadania Interditada: um Estudo de Condomnios Horizontais Fechados.(So Carlos SP) Campinas: Unicamp. Tese de Doutorado.

    Sassen, Saskia (2006) Territory, Authority, Rights. Form Medieval to Global Assemblages Princeton and Oxford: Princeton University Press.

    Tarde, Gabriel (1999) Monadologie et Sociologie.Oeuvres de Gabriel Tarde. Paris : Institut Synthlabo.

    ____________ (2003) Monadologia e Sociologia. Petrpolis: Editora Vozes.

  • 23

    Telles, Vera da Silva e Cabanes, Robert (orgs) (2006) Nas tramas da cidade. Paris/ So Paulo: IRD/Associao Editorial Humanitas.

    Telles, Vera da Silva e Hirata, Daniel (2007) Cidade e prticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilcito Trabalho apresentado no 31 Encontro Anual da ANPOCS, no ST 5 - Cidades: Persperctivas e interlocues nas Cincias Sociais.

    Valadares, Licia (1983) Repensando a Habitao no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. Velho, Gilberto (1994) Trajetria Individual e Campo de Possibilidades in Projeto e

    Metamorfose. Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Zahar. Velho, Gilberto (org) (2008) Metrpole, Cultura e Conflito in Rio de Janeiro: cultura,

    poltica e conflito. Rio de Janeiro: Zahar.