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108 HADDAD, J. A. Confissões de um Tradutor de Poesia francês (às vezes notáveis, Eduardo Guimaraens). As revis- tas literárias do tempo abundam em material deste tipo. Po- de-se chegar no caso a uma antologia de primeira ordem. E em França publiquei o meu "Avis aux Navigateurs", 'flao estava deste ponto de vista, trazendo nenhuma inovação. Trad. & Comun. , São Paulo, n2 - 97-108 , mar, 1983, A Tradução de Poesia em língua Inglesa: Problemas e Sugestões Paulo VlllOLl De acordo com Robert Frost, "poesia é o que se perde na tradução". 1 Essa afirmativa tem sido interpretada como declaração da impossibilidade de se traduzir poesia. A meu ver, entretanto, ela nada mais é que um reconhecimento das enormes dificuldades inerentes à tarefa do tradutor. É evi - dente que o foco de atenção de Frost, ao emitir tal conceito, era a própria poesia, cuja linguagem é tão complexa e tão Intensa, que transcende às simples denotações dos vocábu- lo s. Por conseguinte, a tradução, que tinha em mente, era a as sim chamada "tradução literal" , que, negligenciando a car- ga emotiva das conotações, dos ritmos e das sonoridades, cuida apenas do aspecto superficial, denotativo, insuficiente pa ra preservar as qualidades artísticas do texto original. Neste sentido, poesia é, de fato, o que se perde na tradução . E existem versões sem conta, circulando por aí. que atestam plenamente essa verdade. Mas também é verdade que, às vezes, nos deparamos co m traduções que, com justiça (dependendo, é claro, dos critérios adotadosJ. são tidas pelos cr íticos como superiores ao s próprios originais. E isso nos leva a concluir, numa con- trapartida para a definição de Frost, que " poesia é também o que se ganha na tradução". Podemos dizer até que, de ce rta maneira, é esse o conceito que muitos tradutores, - m geral, poetas eles mesmos, - parecem fazer do trabalho do versão. Para eles, o texto de partida é somente um estí- mulo para a própria inspiração; agem sobre ele com grande liberdade, atualizam-no, ajustam-no a seu mundo, amoldam-no l /"II d, & Comun ., São Paulo. n.· 2 - 109-128 , mar. 1983.

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108 HADDAD, J. A. Confissões de um Tradutor de Poesia

francês (às vezes notáveis, Eduardo Guimaraens). As revis­tas literárias do tempo abundam em material deste tipo. Po­de-se chegar no caso a uma antologia de primeira ordem. E q~ando em França publiquei o meu "Avis aux Navigateurs", 'flao estava deste ponto de vista, trazendo nenhuma inovação .

Trad. & Comun. , São Paulo, n.· 2 - 97-108, mar, 1983,

A Tradução de Poesia em língua Inglesa:

Problemas e Sugestões

Paulo VlllOLl

De acordo com Robert Frost, "poesia é o que se perde na tradução". 1 Essa afirmativa tem sido interpretada como declaração da impossibilidade de se traduzir poesia. A meu ver, entretanto, ela nada mais é que um reconhecimento das enormes dificuldades inerentes à tarefa do tradutor. É evi ­dente que o foco de atenção de Frost, ao emitir tal conceito , era a própria poesia, cuja linguagem é tão complexa e tão Intensa, que transcende às simples denotações dos vocábu­los. Por conseguinte , a tradução, que tinha em mente , era a assim chamada " tradução literal" , que, negligenciando a car­ga emotiva das conotações, dos ritmos e das sonoridades , cuida apenas do aspecto superficial, denotativo, insuficiente para preservar as qualidades artísticas do texto original. Neste sentido, poesia é, de fato, o que se perde na tradução . E existem versões sem conta , circulando por aí. que atestam plenamente essa verdade.

Mas também é verdade que, às vezes, nos deparamos com traduções que, com justiça (dependendo, é claro, dos critérios adotadosJ. são tidas pelos crít icos como superiores aos próprios originais. E isso nos leva a concluir, numa con­trapartida para a definição de Frost, que " poesia é também o que se ganha na tradução". Podemos dizer até que, de certa maneira, é esse o conceito que muitos tradutores, -

m geral, poetas eles mesmos, - parecem fazer do trabalho do versão. Para eles, o texto de partida é somente um estí­mulo para a própria inspiração; agem sobre ele com grande liberdade, atualizam-no, ajustam-no a seu mundo, amoldam-no

l /"IId, & Comun ., São Paulo. n.· 2 - 109-128, mar. 1983.

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110 v/zrou, P. A Tradução de Poesia em Línguas /nglesa ...

à sua sensibil.id.ade. O r~sultado, mais que uma tradução, é um poema ongl~a~. Assim podemos considerar, por exem­plo, as transposlçoes que Salvatore Quasimodo fez dos líri­"Cos gregos, as famosas "adaptações" de Ezra Pound e talvez ~m nos~o J>~fs, algumas das mais recentes tentativas d~ transcnaçao de Haroldo de Campos.

Entre esses dois extremos, - o da fidelidade literal (que sacrifica a "p~?sia") "e o da ~daptação livre (que nem s?!'l'pre cons;rva o poeta l, - eXiste um caminho interme­dlano, que e o da "recriação literária". Busca-se, através dele, a maior equivalência possível entre o poema na língua de pa.rtida e o poef"!l~ na língua de chegada, sem a subtração d.as riquezas do. originai, E} se,;, qualquer acréscimo aos mé­ntos que pOSSUI. Na pratica, e um caminho difícil, um cami­nho de perdas e ganhos em precário equilíbrio, visto que raramente o que se lucra e o que se desperdiça podem ser controlados. Algumas vezes, os tons se acendem demais' outras vezes, mais freqüentes, eles surgem desbotados, lem~ brando a imagem de Cervantes que compara a tradução ao avesso de um tapete: o desenho transparece, a opulência da textura pode ser adivinhada, mas falta a vivacidade .das co­res. ·2 Malgrado a consciência dos imponderáveis e das limi­tações, o certo é que a tradução de poesia, nos termos acima propostos, é a única que realmente merece tal nome - e é bastante exeqüível. '

, M~s apenas ~ssa preliminar não basta. Sabendo-se que e posslvel tradUZir poesia (e de que modoL a questão que se coloca a seguir é esta: vale a pena fazê-lo?

Se considerarmos o problema exclusivamente do ponto de vis~a financeiro, a resposta, sem dúvida, será negativa. TradUZir, entre nós, jamais foi atividade rendosa, - mesmo no caso de textos técnicos, que têm compradores certos . ?orta~to, muito menos o será traduzir poesia, que tão baixa cotaçao tem no mercado . Já vão longe os tempos em que um Alexander Pope podia ficar rico com as suas traduções de H~mero , que lhe permitiram adquirir uma mansão em T~ickenham, às margens do Tâmisa, e viver o resto de seus dias sem m~iores pr~ocupaçõeS' materiais. Hoje em dia, so­bretudo aqUi no Brasil, o que os tradutores de poesia devem esperar, depois do árduo trabalho, é a relutância dos edito­res, a barreira dos di,reitos autorais e a indiferença do públi­co. As vezes, tambem a fúria dos críticos. Trata-se, pois,

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V/l/OLl, P. A Tradução de Poesía em Llngua Inglesa . .. 111

de exemplo típico daquilo que os economistas chamam de "I nvestimento a fundo perdido", com custos elevadíssimos e nenhum retorno.

Acontece, porém, que traduzir poesia é, acima de tudo, um trabalho de amor. Quem se arrisca nessa aventura do espírito o faz em obediência à própria vocação; e a satisfa­ção que almeja é, fundamentalmente, de natureza estética. Reconh~cer essa verdade não significa, entretanto, vetar a entrada do templo aos que não pertençam ao pequeno círcu­lo de eleitos. E isso porque trabalhar com poesia constitui exercício indispensável para todos os que, - não importa o gênero, - pretendem dedicar-se à tradução. Dada a com­plexidade da linguagem do verso, somente lidando com ela pode o tradutor aprender a aferir com justeza o valor dos sons do idioma, a conhecer os diferentes níveis do discurso, a julgar o peso das conotações, - em suma, a sentir verda­deiramente as potencialidades e as limitações da língua co­mo instrumento de comunicação. Por isso, mesmo sem outro propósito que o de aprimorar-se, convém a ele que enfrente de vez em quando os desafios do texto poético .

Naturalmente, o sucesso pressupõe algumas condições básicas, - além daquela, óbvia, que todo tradutor deve pos­suir, e que é um excelente domínio das línguas de partida e de chegada . A primeira condição seria o gosto pelo verso. O tradutor não precisa ser poeta; mas não pode incluir-se entre aqueles que, mesmo se rotulando estudiosos da língua, sentem estranho orgulho em declarar aversão inata pela poe­sia. É suficiente que tenha um pouco de sensibilidade, isto é, que seja capaz de sentir as palavras e as estruturas do Idioma e perceber o que valem (e como pode alguém preten­der ser tradutor, de qualquer tipo, sem essa capacidade?). Outra condição é conhecer o poeta a ser vertido. É preciso saber algo a respeito de sua vida, seu meio ambiente e suas Intenções para recriá-lo com eficácia. Sem esse cuidado, o tradutor poderá falhar na reprodução das técnicas que carac­terizam o autor (perdendo símbolos através do uso livre dos slnônimos, criando rimas perfeitas onde no original há "dis­sonâncias", etc .) e, o que é mais grave, poderá deixar de captar o seu espírito. Finalmente, o tradutor tem necessida­de de familiarii;ar-se com as principais dificuldades que de­rivam das diferenças entre as línguas, adquirindo assim 0S

recursos, - ou, se quiserem, os "macetes", - que hão de permitir-lhe contorná-Ias. É claro que cada idioma suscita

Trpd. & Comun., São Paulo, n." 2 - 109·128, mar. 1983.

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112 VllIOLl, P. A Tradução de Poesia em Linguas Inglesa . ..

problemas especiais e exige soluções diversas, quando tra­duzidos para o português. Minha intenção aqui é discutir apenas as dificuldades que acompanham a tradução de textos poéticos em língua inglesa. E pretendo fazê-lo de maneira bastante informal e direta, sem em postar a matéria em arca­bouços teóricos complexos ou esotéricos, e procurando guiar-me quase sempre pela experlência pessoal adquirida. O resultado deverá ser uma abordagem despretensiosa e de caráter eminentemente prático.

) II

Segundo Ezra Pound, 3 a criação poética consiste de três atividades principais, que são a "melopéia " , a "fanopéia" e a "Iogopéia". A primeira diz respeito à musicalidade do ver­~o, isto é~ ao número dos sons, à sua intensidade (ou quan­tidade) e a sua natureza; em outras palavras, abrange o ritmo e as qualidades sonoras. A segunda compreende os elemen­tos visuais ou pictóricos da poesia, estando, pois, relacio­nada com a imagética e também, de certa forma, com a atmosfera. A "Iogopéia", enfim, não possuindo, como as anteriores, elos íntimos com os sentidos da audição ou da visão, é a mais cerebral das três, dependendo essencialmen­te do jogo das denotações e das conotações dos vocábulos . Pound a definiu como "a dança do intelecto por trás das pa­lavras" . No fundo, identifica-se com aquilo que alguns críti ­cos, como Cleanth Brooks e- Robert Penn Warren, 4 denomi­naram tom, O elemento que , no texto , reflete a atitude do autor.

Os problemas , que cada uma dessas áreas interpõe no caminho do tradutor , são os mais variados possíveis. Procu­rare i, a partir deste momento, apresentar os que julgo mais sérios, juntamente com as soluções que me parecem mais adequadas (o que não quer dizer que são necessariamente as melhores). Ao fazê-lo, seguirei a ordem das atividades criativas enunciadas por Pound, ... começando, portanto, com algumas considerações sobre os dois aspectos fundamentais da "melopéia", que são o ritmo e as qualidades sonoras .

Trad. & Comun ., São Paulo, n: 2 - 109·128, mar. 1983.

VllIOLl. P. A Tradução de Poesia em Língua Inglesa . .. 113

1

Vejamos, em primeiro lugar, o RITMO. Duas grandes di­fi culdades devem ser abordadas aqui. A primeira delas de­corre da "discrepância silábica" que existe entre o inglês e o português; a segunda, provém das constantes "variações rl tmlcas" do verso inglês, muito mais flexível que o nosso.

O fenômeno da "discrepância silábica" é óbvio para to­dos os que conhecem os dois idiomas, pois é mais que con­Babido que as palavras inglesas (principalmente as de origem toutônica) são menos longas que as da nossa língua. Conse­qüentemente, o texto traduzido para o vernáculo, via de re­gra, necessita de um número muito maior de sílabas que o texto original. Esse fato quase nunca acarreta problemas para o tradutor de prosa. Para o tradutor de poesia, entre­tanto, ele se erige em verdadeiro dilema, uma vez que pode determinar profundas alterações rítmicas. Como se sabe, versos longos, de preferência jâmbicos, adaptam-se melhor a poemas meditativos ou melancólicos, enquanto versos cur­tos, sobretudo trocaiCos e dactílicos, exprimem, com mais oficiência, a leveza e a alegria . O ritmo, na poesia, faz parte Intrínseca de sua linguagem. Não deve ser destruído. Por Isso, o tradutor não pode aumentar arbitrariamente o número de sílabas dos versos, pois, se o fizer, com certeza arruinará v efeito almejado pelo poeta. Entretanto, para' manter o mes­mo número de sílabas, ele é freqüentemente obrigado, em vista da aludida discrepância, a eliminar palavras e até mes­mo imagens, tornando vago e inócuo o que, antes, possuía vigor e precisão. E isso também é condenável. O que fazer ontão? Como preservar o ritmo sem estropiar o sentido? Ou como conservar este sem prejudicar aquele?

Infelizmente, para esse problema não há solução plena­mente satisfatória. Tomemos , por exemplo, os oito primeiros versos do "Soneto CXVI" de William Shakespeare:

"let me not to the marriage of true minds Admit impediments. lave is not lave Which alters when it alteration finds, Or bends with the remover to remove: O, no! it is an ever-fixed mark, That looks on tempests and is never shaken; It Is the star to every wand'ring bark, Whose worth's unknown, although his height be taken " .

I ruel . & Comun .. São Paulo, n" 2 . 109-128. mar. 1983.

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114 VIZIOLl, P. A Tradução de Poesia em Llnguas Inglesa .. .

Péricles Eugênio da Silva Ramos, em Poetas de Inglaterra, oferece-nos a seguinte versão: .

, "Impedimentos não admito para a união

de corações fiéis; amor não é amor

quando se altera se percebe alteração

ou cede em desertar quando o outro é desertor.

Oh! não, ele é um farol imóvel tempo em fora,

que as tempestades olha e nem sequer trepida;

é a estrela para as naus, cujo valor se ignora,

malgrado seja a s ~ a altura conhecida". 5

Notamos aí que o tradutor teve o máximo cuidado em manter­se fiel ao sentido do texto inglês, preservando as suas suti­lezas e a precisão de suas imagens, - mesmo no caso da algo redundante imagem da estrela "whose worth's unknown although his height be taken". Entretanto, para obter ess~ resultado, ele foi compelido a alterar a métrica do original e.: em IU9!lr d.o decassílabo (que melhor corresponde ao pen~ tametro Jamblco do soneto shakespeariano), empregou o ale­xandrino, que, com suas doze sílabas, determina um ritmo um pouco mais lento.

Tra~al~~ndo com o. me~mo texto, Guilherme Figueiredo, na secçao Shakespeariana de seu volume Ração de Aban­dono e Outros Poemas, optou pela solução oposta:

"Ao enlace das almas verdadeiras

Nunca eu me oponha: amor não é amor

Que mude com mudanças passageiras

Ou se deixe varrer ao varredor.

Oh, não! !: luz eternamente acesa

A enfrentar nas tormentas os tormentos,

Astro-guia do barco ao léu dos ventos

Embora não lhe saibam da grandeza", G

O ritmo ágil, mais adequado ao tom coloquial do poema de Shak_espeare, foi conservado, nesta versão, graças à manu­tençao das mesmas dez sílabas do verso original. Em com-

Trad. & Comun., São Paulo, n." 2 - 109-128, mar. 1983.

VIZIOLl, P. A Tradução de Poesia em Llngua Inglesa... 115

n açlio, O sentido teve que ser algumas vezes sacrificado, t 01110 nas expressões "and is never shaken" e "whose worth's unknown", - que foram suprimidas, - ou "bends with the r mover to remove", - que recebeu interpretação mais ou m nos Inesperada.

m ambos os casos, alguma coisa se perdeu. E, em am­ho , os tradutores buscaram compensar as perdas, introdu­lindo no texto ligeiras modificações: Péricles Eugênio da

IIvo Ramos expandiu e fraccionou o oitavo verso do original, Imprimindo assim ao ritmo do último alexandrino uma fluên­cll que alivia o efeito geral da métrica mais pesada; e Gui­Ih rme Figueiredo acentuou o caráter "eufuístico" do estilo do soneto, devolvendo-nos em parte, através do tom, o que

uhtralu do sentido . Em ambos os exemplos, portanto, -Ipl ar de a sensibilidade poética de cada tradutor ter vindo III seu auxílio, - vemos a permanência do dilema gerado

1" III "discrepância si lábica".

Nessa permanente necessidade de se escolher entre prl servar o sentido em detrimento parcial do ritmo, ou man­tI r o ritmo, prejudicando um pouco o sentido, inclino-me, PI ssoalmente, a favor da primeira opção. A segunda, aqui Ilustrada pela versão de Guilherme Figueiredo, me parece mais próxima do conceito de "adaptação", ou mesmo de "transcriação", do que propriamente do de "recriação" lite­r ria, que é o que propus no início deste artigo. Por isso, -como se pode constatar nas antologias que produzi ou nas quais colaborei, 7 - em quase todos os meus trabalhos de trlldução aumentei propositalmente, de pelo menos duas síla­h IS, os versos dos poemas.

O segundo problema relacionado com o ritmo, ou seja, () problema das constantes "variações rítmicas" da poesia « til Inglês, não é tão evidente quanto o da "discrepância silá­hlco", e, por isso, passa despercebido por muitos tradutores. M I também merece um pouco de atenção, pois pode ocasio· lIur pequenas catástrofes. Como se sabe, os poetas de língua Inglesa, - a não ser quando visam a efeitos especiais, -ruromente se prendem à regularidade métrica, invertendo os p dos versos, suprimindo aqui ou ali a acentuação, ou colo­c: \Ildo duas ou mais sílabas fortes em posições contíguas ("hoverlng accents"). Dessa forma, criam pausas internas, ri nlçam as palavras-chave e evitam a monotonia. A métrica portuguesa, entretanto, não permite a mesma liberdade ao

r, d. & Comun., São Paulo, n." 2 - 109-128, mar. 1983.

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116 VIlIOLl. p, A Tradução de Poesia em L1ngu8s Ingles8 ...

poeta. Ela é ~m pouco mais rígida, e as variações possíveis, - no decassllabo, por exemplo, ou no alexandrino, - são pré-determinadas. Qualquer fuga aos esquemas estabeleci­dos tende a desagradar aos ouvidos, e passa não como "va­riação", mas como prova da incompetência técnica do autor. Por isso, também esse problema é de solução difícil, posto que tanto a fidelidade extrema aos nossos padrões métricos quanto a sua quebra sistemática podem levar o tradutor a falsear o estilo do texto original, quer conferindo-lhe uma re­gularidade inexistente, quer lhe imprimindo caráter rude e prosaico. Diante disso, tudo o que se pode fazer, - se não para recriar na íntegra as variações do texto que se traduz, mas, pelo menos, para insinuá-Ias, - é jogar habilmente com os recursos limitados de que a métrica portuguesa dispõe, alternando, por exemplo,)decassílabos com acentos na 6." e na 10.· sílabas com outros cujos acentos recaiem na 4,· , na 8." e na 10.8 ; ou combinando alexandrinos acentuados na 6,· e na 12.· com outros acentuados na 4.·, na 8." e na 12 ... Tam­bém o emprego do "enjambement", desde que não se dege­nere em abuso, pode contribuir para a fluidez e a ruptura da monotonia.

A solução que acabei de propor diz respeito, evidente­mente, apen~s . à poesia tradicional. O "verso livre" exige tratamento distinto. Como lembrou William Carlos Williams (repetindo o que antes já dissera T. S. Eliot), esse tipo de verso a rigor não existe, pois ele só é livre em relação às normas métricas estabelecidas; 8 isso, porém, não significa liberdade absoluta. uma vez que sempre algum esquema deve existir, ainda que inventado pelo próprio poeta, Cabe ao tra­dutor descobrir quais são esses padrões, e procurar segui-los ou adaptá-los . Apenas para exemplificar, foi o que tentei fazer ao traduzir o famoso poema imagista do mesmo William Carlos Williams, há pouco citado, "The Red Wheelbarrow" :

"so much depends upon

a red wheel barrow

glazed with rain water

beside the white chickens".

Trad. & Comun., São Paulo, n.O 2 - 109-128, milr. 1963.

VIIIOLl. p, A Tradução de Poesia em Llngua Inglesa... 117

quema aqui é relativamente simples, pois o poema con­I t de quatro estrofes de dois versos; em cada uma, o

prlm Iro verso contém sempre três palavras e dois acentos ti rt 8, e o segundo, uma palavra e um acento. O número de

II b8S não importa muito. Em português, os versos ficaram 1m:

"e tanto depende daquele

carrinho demão vermelho

na chuva luzindo lustroso

Junto dos frangos brancos", 8

Nem sempre, contudo, esses padrões diferentes são 10-r. IIzados ou reproduzidos com facilidade. Às vezes, como 1111 poesia de Walt Whitmann e de alguns de seus seguidores, n modelo é supostamente o próprio ritmo do linguajar norte-

merlcano, o que requer do tradutor brasileiro a descoberta d um ritmo que, mais ou menos, corresponda ao do linguajar d nosso povo, Muitos não têm sequer consciência desse problema. E o resultado é que as traduções de Whitman para () português ou são de um prosaismo . insuportável, ou se

marram em cadências que são quase as da métrica tradi­(Ional. Devo confessar que eu mesmo, em meus esforços II ra reproduzir o grande poeta nacional dos Estados Unidos, hu:orrl freqüememente neste último pecado. Aqui, mais do quo nunca, o tradutor de poesia deve estar atento,

Vejamos, a seguir, os principais empecilhos gerados pelo gundo aspecto importante da "melopéia", - o aspecto re­

pr entado pelas QUALIDADES SONORAS. Destas, a primei­r que nos vem à mente, por ser a mais óbvia, é a rima. ~

lu , sem dúvida, a que mais preocupa a maioria dos traduto­r. , E a que provoca as mais agudas divergências. Para Iluuns, o sucesso de uma tradução depende quase unicamen­t do uso de rimas ricas e perfeitas, não importa a que preço; p r outros, a rima nada mais é que adorno dispensável, um

rr d. & Comun .. São Paulo, n.· 2 • 109·128, mar. 1983,

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"

118 VIZIOU, P. A Tradução de PoesIa em Línguas Inglesa ..•

obstáculo que deve ser removido para não comprometer a reprodução dos valores verdadeiramente poéticos do texto. A verdade, contudo, é que a rima também faz parte da lin­guagem da poesia. Toda vez que sua presença é esquecida, ou o seu número é cortado, alguma coisa se perde na tradu­ção. Por isso, quem realmente procura recriar o poema, deve, dentro de certos limites, esforçar-se por conservá-Ia, - mes­mo que, para isso, tenha, às vezes, que distorcer ligeiramente o significado de um ou de outro verso. Quando, por insufi­ciência de recursos ou simples falta de inspiração, esse pro­cedimento for inevitável, deve o tradutor cuidar para que as "mutilações" ocorram em versos menos importantes ou den­sos, que são quase sempre os do início da estrofe, preser­vando no final, - onde o leitor costuma esperar o maior Impacto, - a integridatle do sentido e a r,aturalidade da rima. Foi o que, Infelizmente, me vi obrigado a fazer algumas vezes, como nesta estrofe, a última do poema "Richard Cory", de Edwin Arlington Robinson:

"So on we worked, and walted for the IIght,

And went without the meat, and cursed the bread;

And Richard Cory, one caim summer night,

Went home and put a bullet through his head".

Por imposição do esquema de rimas, os dois versos iniciais foram invertidos, e o primeiro deles (o segundo na tradução) sofreu mudanças de sentido na última parte; em compensa­ção, a não ser por leve alteração de tom na linha derradeira, o terceiro e o quarto versos foram mantidos, para que o efei­to final não ficasse prejudicado:

"E nós, sem carne, maldizendo o pão,

Seguíamos na faina contra a sorte avessa;

E Richard Col'y, em calma noite de verão,

Foi para casa, e deu um tiro na cabeça". 10

E esse efeito final, sem dúvida, não seria o mesmo se faltas­sem as rimas. t: por esse' motivo que, num reconhecimento

Trad. & Comun., São Paulo, n.· 2 - 109-128, mar. 1983.

VIZ/OU, P. A Tradução de Poesia em LlngulI fngl83I1... 119

d sua Importância, o tradutor toma, de vez em quando, algu-m liberdades com o texto, a fim de preservá-Ias.

O tradutor, porém, não deve apenas preservá-Ias em seu numero e, se possível, em seu esquema originais, mas tam­h m em sua natureza. Como já foi dito antes, elas fazem p rte da linguagem da poesia. Isso significa que elas, além li embelezarem os versos, podem igualmente reforçar uma III la ou exprimir um sentimento. t: o que ocorre, sobretudo. no caso das rimas imperfeitas. Assim, Wilfred Owen, ao r trotar os horrores da Primeira Guerra Mundial, empregava I tematicamente rimas em que a coincidência dos sons era

Incompleta, como que a sugerir um mundo onde as coisas n o pareciam encaixar-se. A mesma técnica, embora prova­v Imente sem a mesma intencionalidade, pode ser observada m poemas de Emily Dickinson. Em T. S. Eliot, por outro lado,

18 rimas criam muitas vezes efeitos irónicos (como nos co­nh cldos versos "ln the room the women come and go I Tolklng of Michelangelo", de "The Love Song of J . Alfred Prufrock"), enquanto em Marianne Moore elas completam a Itmosfera estranha ou exótica dos poemas. Por isso, come­I grave erro o tradutor que, no afã de "melhorar" os textos quo traduz, corrige as rimas imperfeitas. As rimas devem conservar a sua natureza, mesmo quando desagradáveis ao uuvldo, sempre que forem particularmente relevantes. t: esse () princípio que procurei seguir nos dois exemplos abaixo. O primeiro se encontra nos versos finais de "I heard a fly buzz when I died", de Emily Dickinson:

"I willed my keepsakes, signed away

What portion of me be

,Asslgnable - and then it was

There Interposed a fly,

Wlth blue, uncertain, stumbllng buzz,

Between the light and me.

And then the windows failed, and then

I could not see to see".

rr.d . & Comun., São Paulo, n,· 2 - 109-128, mar. 1983.

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120 VlllOU, P. A Tradução de Poesls em Llnguss Ingles8 . ..

Nas .rimas da penúltima estrofe, foi observada a coincidência parcl~1 dos sons (supus, interpôs), para sugerir as rimas im­perfeitas convencionais do texto inglês (be, f/y);

" Leguei os meus pertences; consignei

Cada porção que em mim supus

Consignável; e foi nesse momento

Que aquela mosca se interpôs,

Com seu zumbido azul, incerto e trôpego,

No espaço zumBido a luz e meu ser;

E as janelas faltaram; e depois

Não pude mais ver para ver" . 11

o exemplo seguinte é constituído pelas linhas iniciais de "The Fish", de Marianne Moore:

"The Fish

wade

through black jade.

Of the crow-blue mussel shells , one keeps

adjustlng the ash heaps;

opening and shutting itself like

an

Injured fan".

A rima "quebrada" de "an / injured fan" sugere ela própria o objeto descrito pelas palavras. Em português 'ficou ; ,

Trad. & Comun., São Paulo, n.' 2 - 109-128, mar. 1983,

V/l/O LI, P. A Tradução de Poesia em LlnguB Inglesa .. . 121

" Os Peixes

se vão

no jade de carvão.

Dentre as conchas de azul-corvo, existe uma

que os móntículos de cinza arruma;

abre-se e fecha-se, parecendo

até que é um quebrado leque", l ~

Se as rimas costumam chamar a atenção dos tradutores , /l6m sempre acontece o mesmo com as outras "qualidades onoras", como a repetição (de vocábulos ou frases), a asso­

IIlInc la (que é a presença dos mesmos sons vocálicos em pa­lavras diferentes), a consonância (que é a recorrência de sons consonantais), e a a/iteração (quando os sons repetidos se loca lizam no início das diferentes palavras). No entanto, elas tnmbém são significativas, e também devem merecer cuida­do. Os problemas mais sérios, que apresentam, provêm novamente das diferenças entre os dois idiomas ; o inglês, " ,6m de possuir um número maior de palavras curtas, serve-

e mais das consoantes do que o português, cuja sonoridade mais de natureza vocálica . Com isso, as "qualidades sono­

ros" na poesia inglesa, com as aliterações e as consonâncias hem marcadas em monossílabos acentuados, aparecem com mais naturalidade e força. - ainda mais que pertencem a lima t radição que remonta aos tempos anglo-saxônicos. A lIossa poesia também as conhece, mas, pelas razões aponta­dos, sempre as utilizou com mais parcimônia. Essas diferen­ças, contudo, não impedem que o tradutor recrie, total ou parcialmente, as "qualidades sonoras" do texto original. Para I 50, basta que observe alguns princípios, como; 1.°) a busca da correspondência dos valores expressivos das sonorida­dos; e 2.°) o reconhecimento. para o seu devido realce. da Importância da sílaba tônica.

Quanto ao primeiro. convém lembrar de início que os valores expressivos das assonâncias, das consonâncias e, principalmente, das aliterações, não se limitam apenas à pro­dução de efeitos onomatopéicos ou à criação de elos psico­lóg icos entre palavras opostas ou semelhantes (como em

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"safe and sound": "são e salvo"); eles também abrangem vasta gama de sugestões e estímulos emotivos, relacionados com as diferentes naturezas dos sons. Assim, a dor e a me­lancolia casam-se bem com as vogais longas, posteriores ou fechadas, e com as consonantes nasais; as fricativas se pres­tam mais para a meiguice e a doçura ("soft flutes"), enquan­to o vigor e a violência se sobressaem quando na companhia das oclusivas ("break, blow, burn"); as sibilantes insinuam muitas vezes o silêncio e o mistério ("the silence of the seas"), quando não a traição e a ameaça ("sneaking ser­pents"); e assim por diante. Por essas razões, o tradutor, uma vez constatada a presença de "qualidades sonoras" no texto, deve, ao transcrevê-Ias, manter a sua carga de suges­tõ~s, sem tro~ar , o~ sons ~ speros pelos _suaves, e vice-versa. FOI esse o prinCipiO obsehado na versao do seguinte verso de "The Preface to Gods Determinations", de Edward Taylor :

"Root up the rocks and rock the hills by the roots"

"Desraiga a rocha e até à raiz derroca o monte". 1 3

Como o leitor pode notar, a consoante /r/, que no texto de Taylor aparece exclusivamente no início das palavras (ali­teraçãoJ, foi às vezes, na tradução, deslocada para o interior das mesmas ("desraiga", "derroca") . Esse procedimento se liga ao segundo princípio acima enunciado, ou seja, à veri ­ficação de que a sílaba tônica da palavra é fundamental para o devido realce das "qualidades sonoras". A incidência des­sas qualidades nas sílabas iniciais átonas da língua portu­guesa tem quase unicamente valor visual, posto que, para os ouvidos, elas perdem grande parte de sua força. Por tal motivo, acho aconselhável, sempre que houver possibilidade, fazê-Ias recair sobre a tônica, como no exemplo acima.

2

Discutidos os problemas principais que o tradutor deve enfrentar quando lida com o aspecto da "melopéia", passe­mos agora à atividade poética seguinte, que é a "fanopéia", Felizmente, esse item, que compreende a imagética e a at­mosfera, não oferece dificuldades especiais. Além do mais, são dificuldades que não dizem respeito exclusivamente à língua inglesa, mas a todas as línguas. Por isso, posso per­mitir-me ser breve. Minha única recomendação, quanto às IMAGENS, é que se procure preservar, ao máximo, a sua

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pr cisão, que o tradutor, premido pelas exigências concomi­\Untes da métrica e da rima, muitas vezes não hesita em sa­erlflcar. Quando isso ocorre, as conseqüências, em geral,

o graves, menos no caso dos poetas românticos que no de lU tores barrocos ou modernos. Também não queira o tradu­tor transformar ~m preciosidades os eventuais "clichés" do originaI.

No concernente à ATMOSFERA. meu ponto de vista não diverge muito do que acabei de emitir a respeito das ima­lIons: ela também convém ser mantida. Muitos se vêem tontados, freqüentemente, a explanar, ou mesmo a trocar por I mentos nossos, os aspectos da paisagem descrita pelo

poeta e certos pormenores culturais, - ligados a jogos, ceri­mÔnias, costumes, etc., - que podem perturbar a compreen­

o com um excesso de "cor local". Às vezes, nem é esse o motivo, e esses toques de nossa cultura são introduzidos penas para que tornem supostamente mais assimiláveis de­

I rmlnadas situações. ~ o que podemos ver neste exemplo de Guilherme Figueiredo, que traduziu o verso de Shakespeare

"And purest faith unhappily forsworn" por

"E ver a fé perjura em plena missa". 16

Naturalmente, o sucesso dessas modificações depende, an­t s de tudo, da sensibilidade e do equilíbrio do tradutor. Mas, mesmo sem chegarmos ao exagero de um Ezra Pound, -qlle leva, em Homage to Sextus Propertius, o poeta latino Propércio a falar em geladeiras "Frigidaire Patent", - ou aos d satinos de alguns tradutores atuais , - que, ainda na cân­dida Ilusão de chocar, pensam que podem criar uma atmosfe­ro erótica se multiplicarem por vinte os palavrões do original,

sou de opinião que essas alterações são aceitáveis, den· Iro de certos parâmetros, apenas no caso da tradução poéti­(AI enquanto "adaptação", jamais enquanto processo de "re­criação".

3

Mais complexos e, portanto, mais difíceis para os tradu­toros são os problemas relacionados com a "Iogopéia", a IIltlma das três atividades criadoras, ~egundo a claSSificação poundlana. A questão básica aqui (e isso é válido não só pmo o Inglês, mas para todas as línguas) é a necessidade

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~e se captar fielmente o TOM do texto original. seja ele sen­tl'!1ental ou contido, cômico ou sério, ingênuo ou irônico, Nao se pode, por exemplo, traduzir de maneira idêntica ex­pressões como "he bought a car" e "he purchased an auto­mob!le", porque, embora o sentido denotativo seja o mesmo, a atitude de quem as fala ou escreve é consideravelmente diversa. Em outras palavras, não se pode traduzir em lingua­gelT! elevada o que um autor ex~rime em linguagem trivial, ~ ylce-vers~. E o" tr~dutor precisa estar alerta, porque o mvel do discurso nao depende apenas do vocabulário em­

pregado, mas também da morfologia (formas de tratamento, - como "vós", "tu" ou "você", - presença ou não do arti­go, etc.), da sintaxe (com a predominância das inversões ou da ordem direta), e de vá(ios outros fatores. Esses cuidados, todavia, valem a pena, potque é através deles que os textos traduzidos adquirem, em grande parte, o sabor de uma época ou as características de um estilo individual. Assim, ao ver­ter, digamos, um autor clássico, o tradutor deve buscar a expressão sublime, decorosa, sem medo dos vocábulos "lite­rários" e das inversões sintáticas. Foi o que tentei fazer na tradução do "Lycidas", de John Milton, onde aparecem tre­chos como o seguinte:

"Trazei a primavera, que definha a sós, As moitas de jacinto e o pálido jasmim, O cravo branco, o maculado amor-perfeito. A fúlgida violeta, A rosa almiscarada e a rica madressilva. A frágil prímula a dobrar-se pensativa, E toda flor de tristes ornamentos; Venha ostentar as suas galas o amaranto, E o narciso encha o cálice de lágrimas Para esparzi-Ias sobre o esquife laureado. Por uma trégua que mitigue a nossa dor Cortejem à quimera os débeis pensamentos". 15

Já a tradução de certos poemas modernos requer estilo des­pojádo, Simples e direto. quase prosaico, como na versão desta estrofe de "Anecdote of the Jar", de Wallace Stevens:

"Eu coloquei no Tennessee um cântaro, De forma circular, numa colina. Fez logo o matagal desalinhado Rodear essa colina". 16

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, às vezes, é preciso descer à linguagem vulgar ou incorreta, como nesta tentativa de sugerir o "cockney" de T. S. Eliot, na segunda 'secção de "The Waste Land":

"O Alberto vai .voltar, vê se fica mais bonita. Vai perguntar o que você fez com o dinheiro que lhe deu Pra pôr os dentes. Deu. eu 'tava lá. Arranque tudo, Lil, ponha uma boa dentadura, Juro que disse, já não posso olhar você". 11

Outra questão, relacionada com a "Iogopéia" e, indireta­mente, também com o problema da captação do tom, é a das palavras com conotações múltiplas. O tradutor não deve, às v zes, satisfazer-se apenas com as denotações dos vocábu­los; deve ir mais fundo, a fim de apanhar também os signi­ficados secundários concomitantes, que criam a "ambigüi­dade poética" tão bem analisada por William Empson. 18 A tftulo de ilustração. vejamos o caso do adjetivo waste. que figura no nome da mais famosa obra de T. S. Eliot, "The Waste Land". t: palavra de múltiplo sentido, podendo signi­ficar "inútil", "supérfluo", "inculto", "estéril", "deserto", "desolado". "perdido", "sombrio". etc. Como todas essas (.uracterísticas são aplicáveiS ao mundo descrito pelo poeta,

om que uma necessariamente elimine as outras, é tarefa do tradutor descobrir, em nossa língua, algum adjetivo que contenha o maior número possível de tais conotações. A I colha de um vocábulo com sentido claro e delimitado, -(;omo a que fez Ivan Junqueira ao optar por "A Terra Deso­Indo",19 - suprime todos os demais atributos, e reduz con-Idoravelmente o poder de sugestão do título. Por isso,

profiro a versão "A Terra Gasta", - também adotada por Idolma Ribeiro de Faria, 20 - uma vez que o adjetivo "gasto". II m de ser da mesma raiz etimológica que "waste", sugere,

IIU mesmo tempo, uma terra "velha", "cansada", "improduti­VII", "desolada", "assolada", "inútil" e "estéril".

Igualmente ligados, e de modo íntimo, à questão das conotações estão os trocadilhos, que se mostram mais desa­flndores por serem mais óbvios e, às vezes, fundamentais. Pouco há o que se dizer a respeito deles, visto que a única IIumelra de enfrentá-los é a recriação completa das situações 'I" 08 geram. E isso depende, exclusivamente, da cultura , da argúcia do tradutor, quando não da sorte. Mas temos 'lu reconhecer que alguns trocadilhos, - como "AEIOU"

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(AE - pseudônimo do escritor George Russell ~ I owe you = AE, eu lhe devo) e "Anne Hathaway" (Anne hath a way >=<

Ana tem um jeito). que aparecem no U/ysses de James Joyce, - são praticamente intraduzíveis. Nesses casos, o único recurso é a velha muleta das notas de rodapé .

Finalmente, gostaria de referir-me, de passagem, ao pro­blema, também de certa forma relaCionado com o tom, dos textos poéticos escritos em alguma variante lingüística ou em dia/eto. Uma que outra vez, é possível contornar a difi­culdade, que eles representam, através da adoção de varian· tes mais ou menos correspondentes em nossa língua. Assim , o linguajar do "hill-billy" norte-americano pode, conforme as circunstâncias, ser reproduzida pelo linguajar de nosso cai ­pira. Mas querer retratar ~ anglo-irlandês , ou o idioma teu­tônico da Escócia (que é o "Scots" ou "Lallans"). por meio do linguajar gaúcho, ou nordestino, é "cortejar o desastre ". O resultado será simplesmente ridículo, pois não há qualquer paralelismo geográfico, histórico ou cultural que justifique a aproximação. Nesses casos, temos que nos conformar corr. as nossas limitações , reconhecendo que certos poemas não podem ser verdadeiramente traduzidos. Um exemplo é esta criação lírica , em "escocês sintético" , de Hugh MacDiarmid :

The Eemis Stane

I' the how-dumb-deid o' the cauld hairst nicht

lhe warl' like an eemis stane

Wags j' the lift;

An' my eerie memories fa '

Like a yowdendrift.

Like a yowdendrift so's I couldna read

lhe words cut oot i' the stane

Had the fug o' fame

An' history's hazelraw

No' yirdit thaim.

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,( ntei traduzir esse belo poema, e o melhor resultado que pudo obter foi este :

A Pedra Pendente

No mudo-oco·morto da noite fria de ceifa O mundo como pedra pendente Oscila no céu; E caem-me espectros da memória Como neve ao léu .

Como neve ao léu impedindo-me de ler As palavras gravadas na pedra, Mesmo sem a trama Dos líqüenes da história E dos musgos da fama.

' olvez alguma coisa ainda tenha se salvado; mas não o sufi­ciente. Os versos de MacDiarmid derivam o seu vigor, em urande parte, do contraste entre o "Scots" e o inglês, que lhe serve de referencial. Na tradução, esse pano de fundo dosaparece, de modo que não mais podemos perceber o froscor e a força expressiva do idioma do poeta. O poema, conseqüentemente , se enfraquece. A única maneira de ver­I -lo seria, como já se disse, através de uma variante equi­valente do português. Mas que variante seria essa?

III

Como pudemos ver, no decurso deste artigo, a tradução de poesia constitui atividade eivada de dificuldades, algumas uas quais insuperáveis. Mas, apesar de tudo, salvo raras

xceções, ela pode ser empreendida e levada a cabo com rnzoável margem de sucesso. Mesmo porque todo desafio ( estimulante. Se os problemas existem, eles não devem repelir o tradutor consciencioso , mas atrai-lo. E a recom­ponsa será, além da satisfação de uma experiência estética Intensificada, a aprendizagem e o desenvolvimento da autó· confiança. No pior dos casos, portanto, podemos afirmar, -purodiando o que se costuma dizer da importância do soneto poro os poetas iniciantes , - que a versão de poesia é o lo erviço militar" do tradutor. Depois de praticá-Ia com algum xito, é provável que pouquíssimos textos venham a assustá­

lo. Afinal gostam de dizer os juristas, "quem pode o mais, pode o menos".

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