traduÇÃo e interpretaÇÃo de libras...unidade 1: tradução cultural 03 1.1 contando história 05...

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1 Universidade Federal de Santa Catarina Licenciatura e Bacharelado em Letras-Libras na Modalidade a Distância MARA LÚCIA MASUTTI UÉSLEI PATERNO TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE LIBRAS Florianópolis 2011

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    Universidade Federal de Santa Catarina Licenciatura e Bacharelado em LetrasLibras na Modalidade a Distância 

     MARA LÚCIA MASUTTI 

     

    UÉSLEI PATERNO  

     

     

    TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE

    LIBRAS  

     

                   

     

    Florianópolis 

    2011 

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    INDICE

    Unidade 1: Tradução Cultural 03

    1.1 Contando História 05

    1.2 Expandindo nossas idéias 06

    Unidade 2: O intérprete pedagógico na educação de surdos 11

    2.1 Intérprete, local de trabalho e formação 12

    2.2 A constituição lingüística da comunidade surda brasileira 15

    2.3 Perspectivas culturais 20

    2.4 Atuação de tradutores e intérpretes 25

    2.5 O intérprete especialista para atuar na área da educação 27

    Referências bibliográficas 35

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    UNID A D E I

    T R A DU Ç Ã O C U L T UR A L

    Em contato com os surdos em salas de aula, em espaços religiosos, em locais de

    lazer, em associações o que se percebe como uma marca cultural dessa comunidade é a

    contação de histórias. E por meio dessa via lúdica há uma manifestação de várias práticas

    sociais que traduzem uma forma de organizar a vida visualmente. Também muitas dessas

    narrativas trazem o choque dos encontros e desencontros culturais entre surdos e ouvintes,

    dos seus desafios e estratégias de enfrentamento em um universo fonocêntrico (centrado

    no som).

    Muitas dessas narrativas mostram o quanto os ouvintes precisam aprender a olhar

    a língua de sinais em movimento e a cultura surda. Várias delas nos contam os dissabores

    e desventuras de projetos de inclusão construídos exclusivamente a partir da perspectiva

    de ouvintes. O desejo expresso nas narrativas por muitos desses surdos que estamos em

    contato é que se articule uma rede de novos códigos culturais que abram espaço para que

    relações menos assimétricas sejam estabelecidas, e que lógicas de realidades diferentes

    possam conviver lado a lado sem imposições e colonialismos. O texto que segue é um

    reconto por Masutti (2007,p.122) de uma performance produzida em sinais, em 2006, por

    um grupo de alunos surdos da turma Bilíngüe do Instituto Federal de Ciência e

    Tecnologia (antigo CEFET-SC):

    Olhares em Zonas de contato

    Os atores formaram um círculo fechado com personagens que moviam incessantemente os seus lábios, sem emitir qualquer som. No interior desse círculo, ao centro, apenas um personagem angustiado e solitário procurava, em vão, sinalizar para aqueles ao seu redor. Tentativa frustrada. Irredutíveis, os lábios arredondados e aterrorizadores prosseguiam em seu movimento uniforme. Em meio a desilusão e descrença de romper as barreiras do isolamento, o

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    personagem enclausurado lançou um olhar para fora do círculo. Seus olhos com outros olhos era alguém que também sinalizava e tentava estabelecer contato com ele. A partir daí, o seu semblante amargurado foi se desfazendo, lentamente, até desvanecer, completamente, e esboçar um discreto sorriso. O seu corpo passou a executar uma coreografia em língua de sinais, com movimentos ritmados, sinalizando o desejo de liberdade. Ao mesmo tempo, o personagem que estava do lado de fora do círculo fazia movimentos com as mãos como se estivesse lançando uma magia sobre os corpos inertes que formavam a cadeia. As pessoas do círculo, então, passaram a olhar para seus corpos e, lentamente, a movê-los como se tivessem sido libertados de amarras. O círculo se desfez e se refez, poeticamente, com a língua de sinais encenada por todos.

    A tradução cultural implica também uma construção de referências não apenas de línguas, mas de formas singulares de produzir conhecimento de determinadas

    comunidades que sofreram processos discriminatórios e que foram esquecidas ou

    subestimadas por outras culturas. São práticas sociais que ocorrem em zonas de contato,

    termo que Pratt (1999) utiliza para se referir aos espaços de encontros coloniais, onde há a

    desigualdade de grupos sociais e de alguma forma de coerção. A recriação de

    performance acima expressou esse tipo de constituição de relação entre surdos e

    ouvintes.

    Há vários ângulos que poderiam ainda ser enfocados a respeito de tradução cultural

    e que são muito importantes para a formação de intérpretes de Língua de Sinais.

    Queremos, no entanto, destacar também a percepção dos educandos surdos de que a

    maioria das histórias só contempla personagens ouvintes. Onde estão os surdos? Essa

    ausência ressentida pelos educandos no momento de releitura de textos clássicos e na hora

    de realizar suas performances em sala de aula resultava em uma produção textual com

    personagens surdos ou algum outro elemento da narrativa que os contemplasse.

    Por considerarmos a aproximação cultural entre surdos e ouvintes, e

    conseqüentemente o processo de tradução, uma via que se dá na produção de narrativas,

    literárias ou não, resolvemos iniciar nossa discussão teórica sobre tradução criando uma

    história para vocês com a versão em Português e em Libras.

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    1.1 – Contando H istória

    Vamos contar uma história que lembra as brincadeiras de muitas crianças em seu

    cotidiano. Uma infância marcada pela magia do lúdico, do jogo como uma parte

    fundamental do seu universo simbólico, e que desde cedo, de uma certa maneira, as

    coloca com o desafio da tradução e interpretação:

    Telefone sem fio

    Cinco horas da tarde, no jardim das orquídeas, brincavam sete crianças surdas de sete,

    oito e nove anos de idade. Pedro, Manoel, Carolina , Maria, João, Ana e Bia ; viviam

    no mesmo bairro e tinham todos em comum a língua de sinais, que estabelecia uma

    estreita cumplicidade entre eles. Naquele final do dia, todos estavam alegres, com

    olhares que pareciam espelhar um horizonte de inocência e descontração. As quatro

    meninas corriam de um lado ao outro com seus vestidos esvoaçantes e coloridos,

    pareciam borboletas à deriva sem os pesos das responsabilidades cotidianas a fustigar

    suas mentes infantis. Já os três meninos, em absoluta minoria, procuravam pedrinhas

    que melhor serviriam para a tirania que iriam fazer aos pássaros com seus estilingues

    sangrentos. Todos vestiam calções quadriculados que era o uniforme usado na escola

    pública em que estudavam a poucos metros dali. Quando já juntavam pedras suficientes

    para abater uma revoada de pássaros, a menina mais nova, Carolina, lançou um olhar a

    João, o menino mais velho, com um ar de reprovação incontestável... Como poderiam

    brincar com uma coisa tão séria?! Afinal seres alados pertencem ao ar e não à terra!

    Com uma imaginação fértil prevendo que algo terrível iria acontecer após as coletas das

    pedrinhas que se tornariam verdadeiras balas de canhão, ou projéteis mortíferos, propôs

    uma brincadeira: - Gente, vamos brincar de outra coisa. Vocês conhecem o jogo de

    telefone sem fio? Todos responderam que sim, balançando a cabeça, menos Bia, a

    menina mais velha, que respondeu com timidez: - Eu não sei não, é que tenho cinco

    irmãos ouvintes mais novos e fico cuidando deles enquanto minha mãe sai para

    trabalhar, eu não tenho tempo para brincar. Hoje, achei bom o professor estar com gripe

    e ficar em casa. Não teve aula, que bom, daí posso brincar também.

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    Carolina explicou como seria a brincadeira e passou a organizar o grupo: Primeiro

    vamos sentar em forma de círculo, eu, Pedro, Ana,Manoel,Bia, João, Maria. Em

    seguida, vou sinalizar uma frase em segredo para Pedro. Depois Pedro vai sinalizar a

    mesma frase para Ana que sinalizará para Manoel, que por sua vez sinalizará para Bia,

    que sinalizará para João, que sinalizará para Maria, e que contará para todo o grupo qual

    foi a frase que resultou no final.

    As crianças acharam divertida a idéia e aceitaram participar da brincadeira. Carolina, já

    com  segundas  intenções,  decidiu  iniciar  o  jogo  com  a  frase:  “O  céu está lindo e os

    passarinhos  devem  ficar  livres  para  voar  e  as  crianças  para  brincar”.  A  frase  correu 

    rapidamente de mãozinhas em mãozinhas, e com elas muitos sinaizinhos foram

    perdidos no trajeto. A frase que saiu no final ficou assim: “Os passarinhos brincam e as

    crianças  voam”.  Carolina  começou  a  rir  muito  com  a  mudança  da  frase  e  perda  de 

    algumas palavras. E tentou mais uma vez aproveitando a troca anterior de sinais e

    recomeçou a brincadeira  com a  seguinte    frase:  “Os passarinhos brincam no céu e  as 

    crianças brincam na  terra com liberdade”. O que saiu no final? “Passarinhos  livres no 

    céu,  crianças  livres  na  terra”.  Carolina  sorriu  novamente,  está  melhor  sinalizou  ela: 

    “Aos  poucos  aprenderemos”.  Anoitecia  e  era  hora  de  voltar  para  casa,  a  tarefas 

    familiares ainda estavam à espera das crianças e do esquecimento de suas invenções

    infantis soltas ao relento no jardim das orquídeas.

    Mara Lúcia Masutti (versão em Língua Portuguesa) Uéslei Paterno (versão em Língua de Sinais)

    1.2 – Expandindo nossas idéias

    Vamos agora expandir nossa idéias sobre tradução e interpretação a partir dessa

    história.

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    A - A condição de toda língua é a tradução

    O que tem a ver essa história com o ato de traduzir e interpretar? Para algumas

    pessoas ela não teria nenhuma relação com o ato de tradução, mas se analisada sob o

    ponto de vista do que ocorre com o pensamento e como todos os sentidos são atos de

    interpretação, ela pode nos servir de exemplo para colocar alguns elementos

    importantes que envolvem a área da tradução e interpretação. Mas, antes disso vejamos

    o que afirmam alguns autores.

    De acordo com Larossa (2004), é bastante comum ao pensamento

    contemporâneo entender o fenômeno comunicativo como um ato de traduzir. O autor

    acrescenta:

    “(...)  a  reflexão  sobre  a  experiência  da  tradução,  ou  sobre a possibilidade/impossibilidade da tradução, não tem somente a ver com o que acontece na mediação entre línguas, mas se amplia a qualquer processo de transmissão ou de transporte de sentidos”. (2004, p.63)

    Ainda Larossa (2004, p. 64) faz uma citação de Steiner, cuja obra é intitulada Depois de babel: aspectos de linguagem e tradução (1981), na qual afirma que os

    problemas epistemológicos e lingüísticos fundamentais relacionados na tradução de

    uma língua a outra já estão contidos dentro de uma única língua. O fundamental é

    compreender como interpretamos os sentidos do mundo. Ou ainda, é preciso perceber

    que dentro de nossa mesma língua estamos traduzindo o tempo inteiro. Nessa

    perspectiva, ainda é interessante o destaque de um texto de Octávio Paz:

    Aprender a falar é aprender a traduzir; quando a criança pergunta a sua mãe pelo significado desta ou daquela palavra o que realmente pede é que traduza a sua linguagem o termo desconhecido. A tradução dentro de uma língua não é, neste sentido, essencialmente distinta à tradução entre duas línguas. (1971, p.9 e 10 apud Larossa, 2004, p.67 e 68).

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    B- A história do telefone sem fio: uma experiência de tradução

    Reflita sobre as perguntas abaixo:

    1- As sete crianças surdas, personagens da história, tiveram uma experiência de tradução? Por quê?

    2- As crianças assumiram um papel de intérprete uma para a outra? 3- Por que houve trocas de palavras e significados? O que aconteceu com a cadeia

    de enunciados (a frase sinalizada por Carolina) durante a sua transmissão para

    os colegas? Por que e como o sentido principal se perdeu?

    4- Poderíamos pensar um intérprete de língua de sinais nessa mesma condição das crianças em seu ato de interpretação?

    Vocês poderão discutir essas questões com os colegas e chegar a conclusões

    interessantes a respeito. Nosso objetivo é que vocês percebam que cotidianamente nós

    passamos por esse tipo de impasse que gera problemas de compreensão, distorções de

    informações, mas também muitos acertos de partilhas de idéias. Vamos, então, a

    algumas reflexões sobre as perguntas acima.

    1- Podemos pensar a brincadeira do telefone sem fio como uma brincadeira que

    lembra, em certo sentido, os processos de tradução porque nela está contida a situação

    da passagem de mensagens e informações e o conjunto de desafios que despertam. A

    brincadeira trata de um transporte de sentidos que começa com um emissor, e que vai

    encontrar receptores dessa mensagem que irão interpretar, processar e reproduzir novas

    mensagens. E, durante todo esse percurso, sentidos são produzidos, acrescentados,

    subtraídos, alterados.

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    2- Essa condição de receber a informação e reproduzir o que recebeu traz para as

    crianças a posição de um intérprete para cada uma delas. Ao verem a frase sinalizada “O 

    céu está lindo e os passarinhos devem ficar livres para voar e as crianças para brincar”, 

    as crianças precisaram perceber, processar, memorizar e reproduzir a mensagem. Entrou

    em cena a habilidade de leitura e produção de sentidos que cada criança desenvolveu

    previamente; entraram esquemas lingüísticos, corporais, perceptivos, afetivos e

    culturais. Enfim, foi um conjunto de elementos singulares, próprios de cada uma das

    crianças que interferiu para que a frase pudesse ser mais ou menos aproximada ao seu

    ponto de partida, quando Carolina a enunciou.

    3- A retenção das informações depende de muitos aspectos e um deles a destacar é o

    subjetivo, que afeta a representação das idéias, coisas, fatos e emoções. Se todas as

    crianças, por exemplo, tivessem sido de alguma forma marcadas com alguma

    experiência relacionada ao céu, pássaros e liberdade, essa informação retornaria como

    lembranças ou como traços de memórias inconscientes e participaria do novo contexto

    da brincadeira. Lembrar, esquecer, trocar uma palavra, aproximar outra, nada disso

    ocorre sem uma motivação que não esteja ligada à subjetividade em um contexto de

    relações discursivas.

    4-Assim acontece também com os intérpretes, as suas experiências afetam a forma

    como vão produzir as suas interpretações. Não existe neutralidade nas experiências. Há

    fatos que tocam, sensibilizam, ou passam indiferentes, ou aterrorizam e isso tudo entra

    na rede de sentidos e que em alguma medida produzem esquecimentos de palavras,

    alterações, inversões, trocas de palavras. Os aspectos inconscientes afetam a linguagem

    e o tradutor. Vamos agora imaginar um intérprete de língua de sinais que está

    participando da brincadeira do telefone sem fio. Vamos imaginar que nesse mesmo

    grupo Carolina fosse ouvinte na história e não soubesse sinais e falasse a frase em

    português para um intérprete ouvinte que seria responsável para traduzi-la em língua de

    sinais. O que ocorreria com a intérprete? Ela estaria sujeita a uma recepção em uma

    língua de modalidade oral e uma produção na modalidade viso-cinésico gestual.

    Entraria a tensão das vozes, a do emissor que apresenta uma modalidade de língua, a do

    próprio intérprete que precisa apagar a sua própria voz para reproduzir a do outro e

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    mergulhar no universo de uma língua cuja modalidade é visual. Nesse sentido da tensão

    das vozes é importante observar que as próprias experiências em ambas as modalidades

    lingüísticas afetam a subjetividade do intérprete e trazem interferências na produção de

    sentidos:

    Há uma tensão na busca de uma equivalência entre o que se organiza como material visual e o que se organiza como material fonético. O intérprete nessa instabilidade de relação se equilibra, de um lado, entre a ordem de um discurso que se estrutura em torno de corpos que se movimentam em um espaço, e de outro, de discursos que se propagam através do som no espaço. Mais que uma relação de diferença de sentidos sensoriais, trata-se de uma différance de produção de sentidos a partir das relações com as linguagens dos corpos e os corpos das línguas. Discursos que não podem ser reduzidos um ao outro em nome de uma pretensa equivalência. (Masutti, 2007)

    É importante compreender que essas modalidades de línguas radicalmente diferentes

    acentuam a condição das traduções despontarem como retas que se tocam em busca de

    sentidos equivalentes, mas mantém trajetórias próprias e cada qual com a sua

    originalidade.

    Tudo isso também traz o debate sobre a questão da co-autoria do tradutor que é

    compreendida de diferentes maneiras dependendo da perspectiva e concepção de texto

    que se adota. Algumas correntes entendem o texto como uma codificação e que para

    compreendê-lo basta uma decodificação sem a interferência do indivíduo que interpreta.

    Dentro desse modelo estão os que acreditam em traduções literais com a recuperação

    de significados estáveis do suposto texto original. Já a perspectiva que coloca a figura

    do tradutor como um produtor de sentidos compartilha da visão de que os significados

    podem mudar dependendo da subjetividade, das experiências, dos sentimentos de quem

    interpreta. É importante termos claro essas perspectivas para compreender que há

    muitas perspectivas adotadas em relação à tradução e que os modelos teóricos

    representam políticas de tradução com consequências na produção de todo trabalho.

  • 11

    UNIDADE II

    O INTÉRPRETE PEDAGÓGICO NA EDUCAÇÃO DE SURDOS

    Muitos intérpretes de língua de sinais atualmente trabalham na educação. Sobre

    essa atuação Quadros (2004) tece o seguinte comentário:

    O intérprete especialista para atuar na área da educação deverá ter um perfil para intermediar as relações entre os professores e os alunos, bem como, entre os colegas surdos e os colegas ouvintes. No entanto, as competências e responsabilidades destes profissionais não são tão fáceis de serem determinadas. Há vários problemas de ordem ética que acabam surgindo em função do tipo de intermediação que acaba acontecendo em sala de aula. Muitas vezes, o papel do intérprete em sala de aula acaba sendo confundido com o papel do professor. Os alunos dirigem questões diretamente ao intérprete, comentam e travam discussões em relação aos tópicos abordados com o intérprete e não com o professor. O próprio professor delega ao intérprete a responsabilidade de assumir o ensino dos conteúdos desenvolvidos em aula ao intérprete. Muitas vezes, o professor consulta o intérprete a respeito do desenvolvimento do aluno surdo, como sendo ele a pessoa mais indicada a dar um parecer a respeito. O intérprete, por sua vez, se assumir todos os papéis delegados por parte dos professores e alunos, acaba sendo sobrecarregado e, também, acaba por confundir o seu papel dentro do processo educacional, um papel que está sendo constituído. Vale ressaltar que se o intérprete está atuando na educação infantil ou fundamental, mais difícil torna-se a sua tarefa. As crianças mais novas têm mais dificuldades em entender que aquele que está passando a informação é apenas um intérprete, é apenas aquele que está intermediando a relação entre o professor e ela. (QUADROS, 2004, p. 60)

    Os comentários trazidos por Quadros (2004) dão alguns elementos para discutir,

    principalmente porque,  como  é  dito  acima,  o  papel  do  intérprete  “está  sendo 

    constituído”,  não  está  definido  e  as  discussões  sobre  esse  profissional  estão  em 

    diferentes níveis nos diferentes locais do nosso país.

    Antes de retomar a fala de Quadros, é relevante analisar algumas das diferentes

    realidades que os intérpretes vivenciam. Há diferenças no que se refere ao local de

    trabalho, se há ou não outros profissionais que sabem discutir a educação de surdos, ao

    tamanho da cidade e conseqüentemente da comunidade surda ali existente e também do

  • 12

    status lingüístico que a libras apresenta em relação ao português. Abaixo segue uma

    discussão sobre esses temas, depois se retorna à fala de Quadros (2004) para discutir

    sobre o interprete educacional.

    2.1 – Intérprete, local de trabalho e formação

    Um dos elementos importantes para a constituição de um intérprete pedagógico

    é a sua prática enquanto intérprete, a oportunidade de discutir sobre sua atuação, o de

    desenvolvimento lingüístico e a compreensão do processo de ensino e aprendizagem.

    Para um bom desenvolvimento lingüístico há a necessidade de contato com

    pessoas fluentes em língua de sinais, principalmente com surdos. Pois mesmo que haja

    um outro ouvinte que saiba muito bem Libras, a maioria das suas conversas será em

    português, pois é a língua materna deles e essa é a que eles selecionarão como principal

    língua de interação. Então se o intérprete estiver atuando onde há uma grande

    comunidade de surdos atuantes e fluentes em Libras seu desenvolvimento será melhor.

    Mas esta não é a situação de todos os intérpretes, abaixo está descrito algumas dessas

    possibilidades:

    1. Intérpretes que atuam em grandes núcleos urbanos com surdos adultos atuantes na

    comunidade e na educação e em escolas com professores com experiência em

    educação de surdos;

    2. Intérpretes que atuam em grandes núcleos urbanos em escolas com professores sem

    experiência em educação de surdos;

    3. Intérpretes que atuam em cidades pequenas com uma pequena população de surdos,

    mas com atendimento organizado pela rede educacional;

    4. Intérpretes que atuam em pequenos povoados que tem apenas um ou dois surdos na

    comunidade.

    Na primeira situação, os intérpretes têm a oportunidade de trocarem experiência

    com os professores que já conhecem a educação de alunos surdos. Também têm contato

    com alunos surdos imersos em uma comunidade surda estruturada e atuante. Nessa

  • 13

    situação as oportunidades de formação do intérprete são privilegiadas, pois eles têm

    maiores condições de adquirirem um domínio maior da língua de sinais.

    Essa condição é totalmente diferente daqueles profissionais que atuam como

    intérpretes para crianças surdas que estão isoladas ou que mantêm pouco contato com

    uma comunidade surda, pois moram em pequenos povoados do interior e que, por

    vezes, há uma única criança surda, ou que o número de surdos é muito reduzido. Nessas

    condições o intérprete é a pessoa que lhe ensinará sinais. Também nessas condições o

    intérprete, muitas vezes, não conta com uma comunidade usuária da Libras para

    desenvolver um bom domínio lingüístico dessa, como também não possui outras

    pessoas com quem pode dialogar. Nessa situação não se pode ter o mesmo olhar sobre o

    intérprete que se teria daqueles que atuam em grandes núcleos urbanos.

    São raras as pessoas que moram em grandes cidades e que optam por mudar

    para as pequenas cidades do interior. Quanto aos bons intérpretes, também se percebe a

    preferência por permanecerem nessas, pois há demanda para seu trabalho, devido ao

    grande número de surdos que estão estudando e outra devido a estarem habituados com

    as condições dessas cidades que nas cidades do interior não apresentam. Enfim,

    intérpretes são pessoas como as outras que possuem seus desejos e suas preferências.

    Dessa forma, é comum que pessoas que já residam nas cidades pequenas que

    acabem se tornando intérpretes. As condições objetivas de aprendizado da Libras são

    diferentes, bem como as oportunidades de interação que a criança surda tem são

    diferentes das que vivem nas grandes cidades.

    Quando visualizamos essas situações vemos que as condições de trabalho a que

    estão submetidos são diferentes, daí a necessidade de se ponderar ao se aplicar uma

    regra, ou ao se definir o que é um intérprete pedagógico e qual é o papel desse

    profissional. Cada situação exigirá uma determinada postura e uma atuação diferenciada

    dos intérpretes. A expectativa em relação à atuação desse profissional é que ele

    contribua para o efetivo aprendizado do aluno surdo. Alcançar isso não é algo trivial e

    tem proporcionado muitas discussões.

    Nesse sentido, para compreendermos as questões que estão envolvidas na

    atuação dos intérpretes educacionais, é preciso a compreensão dos contextos

    interacionais, o que ocorre em cada lócus de enunciação, que tipo de práticas são

  • 14

    veiculadas pelos sujeitos implicados no processo educacional e quais as demandas

    específicas apontadas. Também as condições de formação do intérprete são dependentes

    dos tipos de situações e de interações. A figura 1 procura sintetizar esses pontos:

    Figura 1: espaço de encontro entre a Libras e o Português

    Na figura 1 temos representado os locais onde as línguas circulam. O círculo

    azul representa a comunidade usuária do português brasileiro, o círculo vermelho

    representa a comunidade usuária da língua brasileira de sinais. No verde temos os

    espaços onde usuários dessas duas línguas se encontram e interagem, é nesses espaços

    de negociação de sentidos e de intercâmbios lingüísticos que há oportunidades de

    formação dos intérpretes. Esses espaços de encontros culturais são polos importantes de

    difusão da Libras e da cultura surda e contribuem para a formação de muitos intérpretes

    que atuam não só nas escolas, mas na sociedade em geral. Salienta-se que esses espaços

    de encontros ainda são escassos e é recente o processo de institucionalização da

    formação de tradutores e intérpretes de língua de sinais dentro das universidades, apenas

    impulsionado pelo decreto 5626 de dezembro de 2005.

    O local de aprendizado de Libras pelo intérprete exerce também uma influência

    sobre a sua atuação em sala de aula. Com que interlocutores se deu a aquisição da

    Libras? Qual o local de origem desse intérprete? Que oportunidade de formação formal

    Asd

    Comunidade Surda Comunidade de Português

    Espaços de encontro culturais: família, escola, universidade, igreja, outros

  • 15

    e de troca de experiência com outros profissionais que ele teve? Também, com que

    concepção sobre os surdos e a língua de sinais ele dialogou?

    Todos esses pontos são relevantes para compreender a complexidade que

    envolve a atuação do intérprete de língua de sinais no espaço escolar e também para

    entender a diferença existente em relação à proficiência lingüística e ao estilo de

    linguagem adotado. Para compreender melhor essas interações a seguir serão

    analisados outros pontos para ver as possibilidades e influências existentes na formação

    dos intérpretes. Adentrando mais na comunidade de surdos, pode-se fazer uma análise

    sobre a sua constituição lingüística.

    2.2 A constituição lingüística da comunidade surda brasilei ra

    Os surdos são levados a trilhar diferentes caminhos para a aquisição de uma

    língua. Paterno (2007) sintetiza essas opções:

    Uma sistematização dos caminhos lingüísticos que um surdo pode ser levado a tomar, dependendo da orientação que os pais tiveram está sintetizado no quadro 5.0. Nesse diagrama, encontramos os resultados das reflexões aqui apresentadas, dos capítulos anteriores e dos depoimentos do documentário “Travessia  do  Silêncio”  de Harazim  (2005). Nesse  diagrama  pode-se notar que as crianças surdas de pais surdos ou de ouvintes que sabem a libras adquirirão a libras desde a tenra infância e indo para a escola com uma língua adquirida. Já os filhos surdos de pais ouvintes que não sabem a libras se encontram numa situação de aglossia e estes podem seguir diversos caminhos, dependendo de como os pais são orientados. Por experiência vi que independente dos muitos caminhos que essas crianças surdas são orientadas algum tempo depois elas acabam entrando em contato com a libras, aprendendo-a e se filiando ao grupo de surdos. Esses caminhos são, também, determinados por situações sociais, que nesse trabalho não estou abordando, mas uma ressalva para um pensamento é, se os surdos, em sua maioria acabam aprendendo a libras, gostando dela e a preferindo, por que não proporcioná-la as criancinhas surdas desde cedo? Muito das falas dos surdos que estudam para serem professores é de que não querem que as crianças, os pequenos surdos, sofram o que eles passaram até descobrirem a libras, ou se libertarem dos grilhões de adultos ouvintes que insistem em lhes impor algo que não querem. (PATERNO, 2007, p. 66, 67).

  • 16

    Figura 2: Baseado no quadro 5.0 de Paterno (2007, p. 68): Possíveis caminhos

    linguísticos que os surdos podem tomar dependendo da orientação dos pais e das

    instituições a que são encaminhados.

  • 17

    Na figura 2 acima, Paterno (2007), esboça vários caminhos que os surdos podem

    percorrer para aquisição tanto de Libras quanto do Português. Em decorrência desse

    percurso, os ouvintes também no seu processo de aquisição da Libras podem entrar em

    contato com surdos com histórias lingüísticas diferentes. Quanto menor for o local e a

    quantidade de surdos adultos presentes na comunidade, menor será a diversidade de

    contextos aos quais estarão expostos o intérprete, e a sua possibilidade de exercício

    efetivo.

    Além de compreender a complexidade que é o processo de aquisição de uma

    língua pelos surdos, e a influencia que este terá sobre a formação do intérprete, também

    há um fator relevante a ser considerado que é o status lingüístico entre a Libras e o

    Português. Paterno (2007, p.77) também faz algumas considerações sobre esse tema:

    Além da opção de analisarmos o fenômeno do bilingüismo entre os surdos, enfocando o indivíduo como o único a tomar a decisão, também podemos fazer uma análise do ambiente social para vermos os locais onde a Libras tem a possibilidade de circulação. Essa possibilidade está mais ligada a termos pessoas que conheçam a libras, a legitimação da libras como língua a qual os surdos têm o direito de usar. Com essas informações pode-se ver qual é o status da libras. Desde o indicativo de não uso das línguas de sinais na educação dos surdos feito no Congresso de Milão, com a conseqüente implantação de uma proposta oralista na educação dos surdos e proibição do uso da libras na escola e sua estigmatização social, a libras ficou reduzida ao circulo de amizade e socialização dos surdos, apenas os filhos de pais surdos a tinham como língua familiar, uma pequena minoria. Como está esquematizado no quadro 5.3

    Quadro 5.3 Antigos locais de circulação da libras.

    Formal Instituições Português Trabalho Português Educação Superior Português Educação básica Português Vida cultural (associação) Libras Amigos Libras

    Íntima Família Português1 (libras nas famílias de surdos)

    1 Quando os surdos são crianças não há uma língua compartilhada entre os pais ouvintes e a criança surda. Geralmente os pais e as crianças desenvolvem um sistema caseiro gestual, que possivelmente a criança a processa como sendo uma língua. Se estas línguas de sinais tivessem oportunidade de se desenvolverem e serem disseminadas, dariam origem a uma nova língua de sinais. Isto não ocorre porque ou a família e o surdo adota uma perspectiva oralista, com educação apenas em português e estes sinais caseiros são deixados de lado, ou a criança aprende a libras, uma língua de sinais já desenvolvida e de ampla circulação se comparada com sua emergente língua caseira.

  • 18

    Essa situação permaneceu por muitos anos no Brasil, houve iniciativas isoladas de ensino em libras, mas não a implantação de um sistema educativo bilíngüe. Um dos primeiros estados que iniciou uma implantação de educação com a libras foi o Rio Grande do Sul. Essa situação é muito variável entre os estados brasileiros. Aqui em Santa Catarina, no Sistema Estadual de Educação, a partir de 2004, iniciou a implantação de escolas pólos em educação de surdos, inicialmente sete com posterior ampliação para outras localidades.

    Com a Lei de Libras e uma Lei Estadual, alguns estabelecimentos particulares de educação superior começaram a disponibilizar um intérprete para seus alunos surdos. Isso modificou os locais onde a libras circula, ela tem agora uma maior abrangência. Veja o quadro 5.4.

    Quadro 5.4 Possível circulação atual da libras em Santa Catarina Formal Instituições Português e libras com

    intérprete Outros trabalhos Português e libras com

    intérprete Trabalho na educação Libras Educação Superior Português escrito, Libras e

    libras com intérprete 5ª série ao ensino médio Português escrito, Libras com

    intérprete Educação infantil à 4ª série Português escrito e Libras Vida cultural (associação) Libras Amigos Libras

    Íntima Família Português17 (algumas poucas famílias estão freqüentando cursos de

    libras)

    Com a implantação de novas políticas lingüísticas na educação de surdos e em outras áreas que promovam a libras estão fazendo com que ela tenha um maior destaque e a ampliação da sua circulação. Essas conquistas são resultado direto da luta da comunidade surda em querer valer os seus direitos. O decreto 5626/05 tem um papel fundamental para a disseminação da libras não só no espaço educacional, mas também em outros locais de atendimentos público.

    Outro fator que têm contribuído para o aumento da procura por cursos de libras é a lei que obriga as empresas de grande porte terem de 3 a 5% de “portadores de necessidades especiais” como membro de seu quadro de funcionários. Isso possibilitou que mais surdos tivessem oportunidade de trabalho. Com o egresso de surdos numa empresa põe-se a necessidade de comunicação com os mesmos e também causa curiosidade nos outros funcionários. Como resultado várias pessoas procuram cursos de libras para poderem se comunicar com os surdos no seu local de trabalho. Esses fatores poderão influenciar no aumento dos locais onde a libras poderá circular. Conforme a previsão mostrada no quadro 5.5

  • 19

    Quadro 5.5 Possibilidade futura dos locais de circulação da libras como resultado de políticas públicas e lingüísticas.

    Formal Instituições Português e libras com intérprete Outros trabalhos Português e Libras Trabalho na educação Libras Educação Superior Português escrito, Libras e libras

    com intérprete 5ª série ao ensino médio Português escrito, Libras ou libras

    com intérprete Educação infantil à 4ª série Português escrito e Libras Vida cultural (associação) Libras Amigos Libras

    Íntima Família Libras e Português

    Conforme os surdos se qualificam estes terão outra postura perante a sociedade e esta perante estes. Surdos reconhecidos implica em ter-se mais professores qualificados para ensino das crianças surdas, maior abertura por parte dos pais para o aprendizado da libras e a sua utilização em casa. Possibilidade de crianças surdas terem professores surdos e de circularem nos mais diversos lugares e encontrarem pessoas que saibam libras.

    Assim vê-se que há uma grande possibilidade de mudança do status lingüístico da libras, passando de uma língua excluída com uso quase que apenas entre os surdos e nas associações de surdos para uma língua de ampla veicularidade nos diversos espaços de nossa sociedade. (PATERNO, 2007, p. 79)

    Apenas com esse enfoque lingüístico sobre a comunidade surda, já é possível

    perceber a diversidade existente entre esse grupo. Quando se abstrai essas situações para

    os diferentes tamanho das cidades, produz-se um grande número de possibilidades de

    caminhadas dos surdos e de status lingüístico. São esses surdos, e nessas comunidades,

    é que os ouvintes terão contato com a Libras e a aprenderão. É com esses surdos que

    eles se formarão como intérpretes. E é em condições similares ao seu aprendizado que

    eles possivelmente atuarão como intérpretes em sala de aula.

    Além desses pontos, como fator complicador, temos diferentes formas de

    composição de turma, pois podemos ter turmas mistas com alunos ouvintes e grupo de

    surdos, ou apenas um ou dois surdos em uma grande turma de alunos ouvintes. Ter

    turmas compostas de apenas surdos. Também há diversos níveis de ensino, educação

    infantil, fundamental, média, técnica, superior ou pós-graduação, e diferentes

    modalidades, cursos presenciais e a distância. Todos são fatores complicadores na hora

    de se discutir o tema.

  • 20

    Outra variante é quando na instituição há um professor surdo e o intérprete atua

    com ele, seja traduzindo as suas aulas, seja em reuniões. A forma de atuação, a

    exigência e a postura profissional são diferentes em todos esses contextos. Portanto,

    definir o papel do intérprete e suas atribuições não é algo simples e tentar definir um

    único modelo é simplificar uma grande complexidade de situações e possibilidades.

    2.3 Perspectivas culturais

    Além dos elementos lingüísticos há aspectos culturais envolvidos, tanto da

    comunidade surda, quanto da comunidade de língua portuguesa. Vejamos alguns

    elementos históricos sobre a língua de sinais:

    Na história mais recente, a partir do século XVI, no ocidente, começou-se a utilizar os sinais na educação dos surdos2. Em 1779, Desloges, professor surdo do Instituto para Jovens surdos Mudos de Paris, fez o seguinte comentário sobre a sua língua de sinais francesa:

    “A linguagem que usamos entre nós, sendo a imagem fiel do objeto expressado, é singularmente apropriada para fazer nossas idéias acuradas e, por extensão, nossa compreensão, por nos levar a formar o hábito de constante observação e análise. Essa linguagem é viva; carrega sentimentos e desenvolve a imaginação. Nenhuma outra língua é mais apropriada para expressar grandes e fortes emoções.” (DESLOGES, 1984: 37, apud SOUZA 2003, p. 336).

    Nessas palavras o professor Desloges celebra a sua língua e testemunha que através dela consegue se expressar. Os surdos usuários de uma língua de sinais têm uma atitude positiva em relação a sua língua assim como Desloges. Os surdos buscam mostrar que conseguem se intelectualizar utilizando a língua de sinais de seu país, que formam uma cultura e que apresentam uma discursividade sobre uma identidade surda. (PATERNO, 2007, p. 45, o texto em itálico é para diferenciar a fala de Paterno da fala de Desloges apud Souza).

    Desde a época de Desloges até os dias atuais, os surdos continuam a celebrar a

    sua língua de sinais, a evidenciá-la como sua língua legítima e a escola se tornou um

    local que proporciona o encontro surdo-surdo:

    2 Para uma descrição mais detalhada sobre a história das línguas de sinais da França, dos Estados Unidos da América e do Brasil, consultar Moura (2000).

  • 21

    As escolas para surdos, tanto naquela época quanto atualmente, não era apenas um local onde se ia para aprender conteúdos e disciplinas, era, para a maioria dos surdos filhos de pais ouvintes, o local que lhes dava a oportunidade de aprender a língua de sinais e de se socializarem, é nesse ambiente onde a maioria dos surdos entra em contato com essa língua no encontro com seus pares surdos e principalmente com os surdos mais velhos que servem como modelos lingüísticos.

    Era nesse espaço que eles podiam se encontrar, discutir e se organizar politicamente. Posteriormente, quando os alunos se formavam eles começaram a criar associações de surdos, freqüentemente vinculadas às escolas e/ou próximas dessas. Por vezes os alunos formados retornavam a ela para visitar, para ter contato com as crianças. É a escola que proporcionava esse primeiro contato entre os surdos.

    Queremos ter a escola... Mas não como a escola do ouvinte, mas como a escola do adulto surdo (...). E se a escola oferecer tudo isso, nem precisa ter férias no mês de fevereiro, porque ficar em casa sem os amigos surdos é mesmo muito chato... (Recorte dos relatos dos estudantes surdos, KARNOPP, 2004 p. 110). (PATERNO, 2007, p. 45, 46, o texto em itálico é para diferenciar a fala de Paterno das citações de seu texto).

    Os surdos, em sua grande maioria, levam como “bandeira” de luta o seu direito à 

    aquisição da língua de sinais. Isto não se dá apenas aqui no Brasil, é uma luta dos surdos

    em todo o mundo. Laborit (1994), uma surda francesa, em sua biografia mostra a

    emoção ao se referir à língua de sinais:

    Foi um novo nascimento, a vida começou mais uma vez. O primeiro muro caiu. Havia ainda outros em torno de mim, mas foi aberta a primeira brecha em minha prisão, iria compreender o mundo com os olhos e com as mãos. Sonhava. Estava tão impaciente! (Quando começou a aprender a língua de sinais numa escola para surdos).

    ...E foi meu pai que me deu esse presente magnífico.

    Vincennes é um outro mundo, o da realidade dos surdos, sem indulgência inútil, mas também o da esperança dos surdos. Certamente, o surdo chega a falar [oralmente]3, bem ou mal, mas trata-se apenas de uma técnica incompleta para muitos deles, os surdos profundos. Com a língua de sinais, mais a oralização e a vontade voraz de comunicação que sentia em mim, iria fazer progressos espantosos.

    Em 1986, já militava! Manifestação de surdos em Paris, para o reconhecimento da língua de sinais francesa [nota da foto]. (LABORIT, 1994 p. 51-53, 99)

    3 Os colchetes são para completar o sentido da fala dentro do contexto do texto.

  • 22

    Outros surdos também relatam suas experiências relacionadas à utilização da

    língua de sinais dizendo que ficaram maravilhados quando a aprenderam. Além das

    experiências pessoais há um documentário produzido por Harazim (2005), intitulado

    Travessia do Silêncio, que também mostra esses relatos.

    Os surdos que usam sinais já tem sua cultura e identidade algo que o outro grupo carece. É sim a Libras que me ajuda a desenvolver e não a fala oral. Através dos sinais eu posso expressar e poetizar. (Nelson Pimenta).

    “Eu conheci o mundo dos surdos e me encantei, fiz vários amigos”. A angustia da mãe Helena acabou porque viu seu filho feliz como nunca foi. Alexandre fala que com a Libras ele se sente mais leve, mais solto, menos  sacrifício.  “Para  oralizar  é  necessário  se  sacrificar precisa estar consciente da ação de falar é mais pesada do que os sinais”. (Alexandre ), (HARAZIM, 2005).

    Como visto acima, para os surdos que se aculturaram na comunidade surda, que

    são usuários de uma língua de sinais, a sua língua, o seu grupo, são muito importantes.

    É o local onde há o conforto lingüístico.

    Entretanto essa perspectiva não é tão clara para a população ouvinte. São dois

    grupos que convivem intimamente, a maioria dos surdos são filhos de pais ouvintes.

    Esses procuram aculturar seus filhos num mundo baseado no som. É comum que a

    população usuária de uma língua sonora e logo fonocêntrica entre em conflito com os

    surdos em diversas instâncias. Como Perlin (1998) diz “A História escrita pelo ouvinte

    compreende o surdo do ponto de vista do ouvinte, jamais do ponto de vista da

    identidade do surdo”. 

    Paterno (2007) traz algumas das perspectivas que a população ouvinte usuária de

    uma língua sonora tem sobre os surdos:

    Há várias falas de diversos profissionais que buscam justificar a necessidade de normalização das pessoas surdas nos moldes do padrão ouvinte, muitas delas pautadas numa filosofia aristotélica e no discurso clínico. No ambiente familiar, os pais ouvintes de crianças surdas freqüentemente falam da dor que é em ter um filho surdo, alguns dos textos que procuram analisar essa questão são de cunho psicanalítico.

    No discurso filosófico de A ristóteles está a idéia de que o pensamento não podia se desenvolver sem linguagem e que esta não se desenvolvia sem a fala, capacidade que distingue os humanos dos animais. Os surdos por não falarem oralmente eram considerados incapazes de pensar, um dos atributos considerado mais característico do ser humano.

  • 23

    Possivelmente, hoje não se encontre quem pense que o surdo que não fale oralmente não é humano, mas se tem muita dúvida de que ele possa desenvolver as capacidades cognitivas superiores como a abstração. Há muita confusão, pois se associa a língua de sinais ao sistema gestual usado pelos ouvintes na fala, ou, por ser visual, seria essencialmente icônica e destituída de abstração. Sacks confirma que as pessoas em geral têm esse tipo de pensamento, ele diz:

    “...  ouvintes  e  falantes,  pessoas  que,  por  mais  bem-intencionadas que possam ser, consideram a língua de sinais como algo rudimentar, primitivo, pantomímico, confrangedor”. (SACKS, 1998 p. 33)

    (PATERNO, 2007, p. 29)

    ...

    Um outro discurso muito forte que influencia em muito a vida dos surdos é o discurso médico. Conforme Sacks os surdos objetam quanto à opinião de alguns médicos:

    “[os  médicos]  tendem  a  encarar  os  surdos  meramente  como possuidores de ouvidos doentes e não como todo um povo adaptado a outro modo sensorial” (SACKS, 1998, p.164). (PATERNO, 2007, p. 30)

    ...

    Muitos sujeitos surdos foram triados, avaliados e encaminhados a classes especiais em escolas públicas em cidades do interior, e, nas capitais, foi estimulada a criação de instituições de reabilitação particulares. Desta fase, até uns vinte anos atrás, a educação de surdos caracterizou-se pelo predomínio de modelos clínicos, nos quais, em detrimento dos objetivos educacionais, estavam em prioridade os objetivos de reabilitação.

    Persistiu a aplicação de inúmeros métodos oralistas, geralmente estrangeiros, buscando estratégias de ensino que poderiam transformar em realidade o desejo de ver os sujeitos surdos falando e ouvindo, fazendo com que os órgãos governamentais dessem enormes verbas para a aquisição de equipamentos que pudessem potencializar os restos auditivos. Do mesmo modo, houve projetos de formação de professores leigos que muitas vezes faziam o papel de fonoaudiólogos, ficando assim a proposta educacional direcionada somente para a reabilitação de fala aos sujeitos surdos. (STROBEL, 2006, p.248).

    (PATERNO, 2007, p. 31)

    ...

    Contexto familiar

    Ao referir-se a família da pessoa surda, deve-se ter em mente que a maioria dos surdos são filhos de pais ouvintes e poucos são os que têm pais surdos ou outro familiar surdo, como um irmão, um tio ou primo.

    Quando os pais são surdos, a criança surda desde a tenra idade já entra em contato com uma língua de sinais o que permite o seu desenvolvimento lingüístico normal e uma troca simbólica entre a criança e a mãe. O sujeito interpretado pela mãe na criança, logo que ela aprenda a responder será vista continuamente como um sujeito produtora de sentidos. Entretanto, quando os pais são ouvintes e a criança é surda se depara com uma situação onde a criança não tem como ter acesso a língua dos pais, consequentemente não entra em contato com uma língua a qual possa adquirir. O sujeito interpretado pela mãe e pela família ouvinte some quando essa descobre que não conseguirá ter um retorno da criança surda, quando essa não se tornar produtora  de  sentidos.  A  criança  continua  sendo  um  “infante”,  incapaz de falar.

  • 24

    Martins, falando sobre o sujeito, numa visão psicanalítica, tece os seguintes comentários:

    Antes mesmo do fato biológico do nascimento, o sujeito já é contado, entre os familiares, como existente. O desejo destes e a carência do infante vão, em condições normais, dar as condições de um enlace entre um e outro. O outro, na teoria lacaniana, pode ser expresso de duas  formas:  o  outro  (“a”),  no  sentido  especular  (semelhante)  ou  o Outro (“A”) enquanto depósito ou tesouro dos significantes (cultura, sociedade, valores sociais, etc.), são as fontes do material significante suscetível de representação e de identificação. Esse outro, através da sua linguagem, ao negar o natural lança o filhote humano numa dimensão simbólica, sem a qual não haveria propriamente o humano.

    Assim, o Outro, lugar e fonte dos significantes que os sujeitos tomarão para se fazerem representar, não é transmitido e incorporado sem maiores implicações. Através da apropriação dos significantes é que se dá entrada do sujeito na cultura. Existe aí, na apropriação da língua, uma série de articulações entre a demanda e o desejo nos quais a criança é confrontada. No início. Este Outro é encarnado pela mãe, embora não corresponda exatamente a ela. É através da suposição da mãe de que existe ali, no rebento, um sujeito e utilizando-se de uma linguagem muito particular, o que chamamos de língua materna, que ela vai interpretar os sinais produzidos pela criança e introduzir a mesma no mundo da fala.

    Então, nessa perspectiva, o sujeito é dependente da língua e da linguagem, mas não se confunde com ela. Uma que é a expressão do sujeito. Outra é o sujeito que é suposto por traz do dito. Ao emergir, num ato falho ou numa formação do inconsciente, o sujeito desaparece, ou melhor, ele não permanece na sua produção. Por isso se diz que ele se encontra no intervalo, entre os significantes. (MARTINS, 2004, p. 194-195 – o grifo é meu).

    (PATERNO, 2007, p. 37, 38)

    As relações que se estabelecem entre os grupos sempre é um jogo de forças. Os

    surdos estão dentro de um contexto com duas visões bem diferentes entre si, a da defesa

    da língua de sinais e de sua cultura visual, e de um outro a aculturação ao mundo

    ouvinte.

    Para os intérpretes que irão trabalhar na educação, muda

    significativamente o fato de trabalhar com um grupo de surdos fluentes em Libras e

    com professores que conhecem a educação de surdos ou trabalhar com um surdo que

    desconhece a libras, em uma cidade pequena do interior e com professores que não têm

    uma perspectiva cultural e lingüística dos surdos. A oportunidade de aperfeiçoar a sua

    proficiência lingüística junto a usuários de língua de sinais fluentes é bem maior.

  • 25

    2.4 Atuação de tradutores e intérpretes

    Antes de se aprofundar na discussão da atuação do intérprete em um contexto

    pedagógico, é necessário clareza sobre as possibilidades de atuação de interpretação e

    tradução como um todo, para depois analisar as especificidades da atuação em sala de

    aula.

    Historicamente os tradutores e intérpretes atuavam para mediar contratos

    comerciais e outros acordos entre povos de línguas diferentes. Eram pessoas que

    ajudavam a compreender o que o outro falava. Nem sempre essas pessoas atuavam

    exclusivamente como intérpretes e tradutores, essa era uma tarefa a ser realizada entre

    as outras que ele fazia.

    Atualmente temos pessoas especializadas apenas em tradução, que são

    remuneradas por essa atividade exclusiva. Mas nem todas as pessoas que atuam como

    intérpretes e tradutores vivem apenas desse trabalho. Muitos que atuam como

    intérpretes o fazem como complemento de renda com atuações eventuais e possuem um

    outro trabalho que lhe dá uma renda fixa.

    Por exemplo, um professor universitário, que domina uma língua estrangeira,

    pode atuar como tradutor de um livro de sua área para a sua língua materna. Uma

    pessoa que trabalha como guia local, se dominar outra língua, pode servir como

    intérprete para um grupo de turistas. São muitos os exemplos de atuações eventuais

    como tradutor e intérprete. Outra situação é de um profissional, como uma secretária,

    que pode ter sido contratada por ter domínio do inglês ou outra língua. Se houver uma

    reunião com um grupo estrangeiro ela atuará como intérprete.

    Como se percebe, há duas possibilidades profissionais de atuação de um tradutor

    e intérprete. Uma é trabalhar exclusivamente como intérprete e tradutor, e aprofundar

    competências técnicas e questões teóricas que envolvem a profissão. A outra é realizar

    essa atuação eventualmente. Isso é verídico tanto para intérpretes de línguas orais

    quanto para intérpretes de línguas de sinais.

    Sobre os intérpretes de língua se sinais, pode-se detalhar algumas situações mais

    específicas. Em uma pesquisa com 28 surdos usuários de língua de sinais são

    evidenciadas as situações da presença dos intérpretes em vários contextos.

  • 26

    Quadro 5.1: Situação e a língua que é empregada. Questionário aplicado em 28 alunos do curso de letras libras do pólo da UFSC.

    LIBRAS Com

    intérprete Português

    escrito Português

    oral

    NÃO RESPONDE

    U Educação infantil 6 10 20 1 1ª - 4ª série 6 1 19 22 1 5ª - 8ª série 8 4 19 20 Ensino Médio 6 4 19 18 UFSC 25 13 11 1 Outra universidade 6 10 12 12 5 Em casa com os pais 8 3 25 1 Em casa com esposo(a)/namorado(o) 17 1 1 10 8 Em casa com os filhos 5 2 8 18 Quando vai numa loja de roupa 5 3 18 22 1 Quando vai ao cinema 7 2 12 16 3 Quando está com seus amigos surdos 28 2 2 Com seus amigos ouvintes 9 6 12 25 Quando vai à igreja 11 17 4 8 3 Quando vai ao advogado/juiz 2 12 10 13 5 Quando vai ao médico 2 8 15 21 1 Curso carteira de motorista 2 12 10 13 3 Quando você vai dar um curso/aula 18 14 7 10 1 Quando vai à Associação de surdos 28 4 1 1 No seu local de trabalho 16 6 9 18 1 Entrevista para uma vaga de trabalho 4 16 10 14

    Observação: os entrevistados poderiam optar por mais de uma língua para a mesma situação. Fonte: PATERNO, 2007, p. 70.

    Como se observa no quadro acima, os surdos se valem do trabalho de um

    intérprete em várias situações que não são as educacionais, como ir ao médico, no

    banco, entrevista de emprego, perante um juiz, na igreja entre outros. O comum desses

    espaços é que são locais onde o surdo vai obter informação ou vai negociar. O surdo

    não deseja que o intérprete interfira na conversa, que acrescente ou retire informações.

    É esperado do intérprete uma postura profissional, com a maior neutralidade possível,

    que evite fazer julgamentos da situação ocorrida e que, além disso, depois mantenha

    sigilo sobre o assunto tratado e não se aproveite dessas informações para proveito

    pessoal. Essas situações que envolvem princípios éticos trazem bastantes conflitos nas

    relações profissionais.

    Outra situação muito relevante é aquela em que o surdo é o palestrante de uma

    conferência, ou é o chefe de uma equipe ou, ainda, o professor. Em tais posições ele

    mantém uma relação com o intérprete bastante diferente em relação à condição de

    aluno. Ele apresenta exigências rigorosas para uma boa interpretação de seu discurso.

    Exige, em geral, um intérprete bem capacitado, pois tem a consciência dos efeitos de

  • 27

    linguagem na construção da sua própria imagem para o interlocutor a partir do que e de

    como está sendo enunciado no ato da interpretação.

    Há o entendimento do surdo de que ele possa ser prejudicado em decorrência de

    um vocabulário mal empregado pelo intérprete, ou um tom discursivo inapropriado, o

    que realmente tem fundamento. Acrescenta-se ainda que esses profissionais são bastante

    críticos em relação à postura do intérprete que chama a atenção indevida para si ou que

    queira tomar a posição que o próprio surdo está ocupando. Percebe-se, no entanto, que

    vários professores surdos têm uma preocupação sincera e real com os intérpretes que os

    vão traduzir em sala de aula, em reuniões e em conferências, e fazem pertinentes

    intervenções junto a esse profissional, o que muito contribui para sua formação.

    Discute-se bastante o aspecto da postura e da ética profissional do intérprete, que aos

    poucos passa a incorporar os anseios e as expectativas da comunidade surda.

    Em palestras, onde os intérpretes passam do português para a língua de sinais, as

    possibilidades de interação são mínimas, o público é diversificado e se encontra naquele

    curto intervalo de tempo apenas para assistir ao discurso do conferencista. Esses

    intérpretes são conhecidos como intérpretes de conferência. A expectativa é de

    neutralidade e de apagamento da voz dos intérpretes, e que os mesmos não se valham

    do acesso a informações confidenciais do palestrante para benefício próprio e que nem

    as divulguem. É exigido desses profissionais um elevado desempenho lingüístico e que

    seja proporcionado o máximo de aproximação do texto de origem tanto em forma

    quanto e em estilo.

    Todavia quando se discute o ato de interpretação na educação têm-se alguns

    fatores complicadores que alteram as expectativas sobre a atuação do intérprete.

    2.5 O intérprete especialista para atuar na área da educação

    A atuação do intérprete na educação é algo complexo, pois há vários fatores

    envolvidos e que precisam ser discutidos. Entre esses, destacamos:

    A mediação do conhecimento; A idade do aluno surdo;

  • 28

    O nível de escolarização do surdo; A modalidade de ensino; A política educacional empregada na educação de surdos; A composição da turma de alunos; As possibilidades de formação que o intérprete teve.

    Vamos discutir um pouco sobre a mediação do conhecimento, pois é um aspecto fundamental no contexto escolar. No processo de mediação pedagógica, Teixeira (2009) distingue o ensinar do educar e os seus modelos de educação. Veja o fragmento abaixo:

    É de fundamental importância diferenciar com clareza um modelo pedagógico, cujo sentido é educar, de um modelo temático, cujo propósito é ensinar. Este último dá ênfase aos conteúdos como chave de todo processo; trata-se de passar informação, de verificar assimilação da mesma e de avaliar a retenção por parte do estudante. Há sistemas educativos organizados desta maneira e uma enorme quantidade de docentes que apenas concebem a educação como transmissão de conhecimentos. Essa mesma lógica está na base da pretensão de fazer ciência, de seguir um discurso rigoroso que só avança por acumulação de informação. Não descartamos o valor do discurso científico. Porém, entre este e a educação pode haver um verdadeiro abismo, já que nesta entram em jogo vários outros processos. Não insistiremos aqui na denúncia dos esquemas tradicionais, mas vale a pena assinalar que os mesmos não combinam com a auto-aprendizagem. Por isso tudo, a mediação pedagógica ocupa um lugar privilegiado em qualquer sistema de ensino-aprendizagem. No caso da relação de presença é o docente quem deveria atuar como mediador pedagógico entre a informação a oferecer e a aprendizagem por parte dos estudantes. A mediação pedagógica parte de uma concepção radicalmente oposta aos sistemas de instrução baseados na primazia do ensino como mera transferência de informação. A expressão “mediação pedagógica”, significa o tratamento dos conteúdos e das formas de expressão dos diferentes assuntos (disciplinas), a fim de tornar possível o ato educativo dentro do horizonte de uma educação concebida como participação, criatividade, expressividade e relacionalidade. (TEIXEIRA, acessado em 11/06/2009)

    Dessa forma, pode-se considerar que a mediação pedagógica não é simplesmente

    um ato de passar informação, estão envolvidos a participação, a criatividade, a

    expressividade e o relacionamento entre os sujeitos do processo educativo. O professor

    é o que orienta toda essa ação. Como foi destacado por Teixeira (2009), em um modelo

    pedagógico de ensino, o professor não é apenas um repassador de informações ele é um

    educador. Ele cria estratégias de ensino que possibilita a aprendizagem por parte dos

    alunos.

    Muitos professores em sua prática de sala de aula acabam optando pelo modelo –

    chamado por alguns de conteudista e que Teixeira denominou acima de temático. Eles

    permanecem centrados naquilo que devem ensinar e esquecem olhar como os alunos

  • 29

    efetivamente aprendem. Isso nos leva a pensar: Será que nossas escolas, hoje em dia,

    estão mais preocupadas em ensinar do que educar? O que é educar? Os professores

    estão mais preocupados em dar conta da assimilação de determinadas informações e

    conteúdos, ou há um equilíbrio entre esses conteúdos e o que se com os mesmos na

    vida? Esses professores por sua vez também foram moldados por um sistema de ensino

    que privilegia as informações e que subtraem a análise da subjetividade do aprendiz

    envolvida no processo.

    Ou seja, muitas vezes, o professor nem lembra que está diante de um jovem que

    emocionalmente precisa de um incentivo que trabalhe com a sua autoestima, ou de

    exemplos que tornem o conteúdo mais aproximado com a sua realidade, e que coloque

    os educandos em posturas ativas frente a contextos sociais. E o que acontece com o

    intérprete mediante esses modelos de atuação que os professores apresentam? Muitas

    vezes, quando o intérprete de língua de sinais está junto com o professor em turmas

    mistas acaba, por vezes, fazendo o papel pedagógico de transformar as informações ou

    conteúdos do professor porque não vê outra solução a não ser suprir essa lacuna deixada

    em sua aula.

    O intérprete geralmente percebe quando o aluno surdo não está compreendendo e

    procura adaptar estratégias pedagógicas em sua interpretação para que se dê essa

    aprendizagem. Há, sim, nessas situações, confusões de papéis e que entristecem por

    vezes o intérprete que se sente responsabilizado pela aprendizagem daquele aluno,

    mesmo sendo essa um compromisso do próprio professor.

    Mas, como na maioria das escolas inclusivas os professores não estão preparados

    com metodologias visuais adequadas para a educação de surdos, e as organizações

    didáticas dificilmente levam em consideração as perspectivas da cultura surda, o

    intérprete acaba assumindo algumas incumbências indevidas. Nesse momento é

    fundamental também a intervenção do intérprete junto ao professor ouvinte para que

    perceba o seu aluno surdo e a necessidade de mudança de seu enfoque. O intérprete

    pode auxiliar o professor com elementos culturais que contribuam para sua percepção

    do educando surdo em relação à sua estruturação visual, a sua afetividade, etc. Além

    disso o intérprete deve trabalhar mais efetivamente junto aos professores surdos para

    pensarem organizações políticas institucionais e redefinições de papéis no âmbito

    escolar em seus distintos níveis.

    Claro que se percebe que o processo de ensino e aprendizagem não é algo simples,

    mas a forma de agir do professor faz total diferença nos resultados obtidos. Os

  • 30

    intérpretes de língua de sinais que atuam na educação parece figurarem como elementos

    estranhos ao meio. O intérprete é um terceiro elemento na relação que se estabelece

    entre os professores e os alunos, e precisa, necessariamente, também preparar-se com

    uma formação didática para lidar com esse contexto. Muitas vezes o intérprete teme a

    relação de poder estabelecida com o professor, que o acusa de estar facilitando o

    trabalho para os alunos surdos, explicando mais do que deveria, etc. Outras vezes,

    entrega os alunos totalmente ao encargo do intérprete, que deve se responsabilizar pelos

    alunos, pois afirma desconhecer a realidade da aprendizagem dos mesmos.

    Para que o intérprete tenha sucesso em sua atuação no ambiente escolar ele tem que

    compreender como se processa o aprendizado e compreender as estratégias pedagógicas

    utilizadas. Isso é totalmente relevante no espaço escolar, pois o simples repassar

    informações não garante o aprendizado por parte dos alunos surdos.

    Fatores complicadores dessa atuação é a possibilidade de composição entre:

    professor repassador de informação, objetiva ensinar;

    professor pedagógico, objetiva educar;

    intérprete repassador de informação, similar a atuação em palestras;

    intérprete educacional, que compreende o processo de ensino e

    aprendizagem.

    Quando tanto o professor quanto o intérprete tem apenas a perspectiva de

    repassar a informação, a interpretação em si, a princípio, parece ocorrer com sucesso,

    todavia o aspecto formativo, a compreensão do conteúdo por parte de todos os alunos é

    prejudicada.

    Quando um intérprete educacional atua junto a um professor que não é apenas

    um  “repassador  de  informação”,  em  geral,  os  alunos  apresentam um aproveitamento

    melhor do conteúdo, pois o intérprete fica propenso a fazer inserções e a interpretar de

    uma forma mais clara também. Essas inserções podem ser consideradas como notas de

    tradução, pois são informações complementares necessárias para que o

    leitor/interlocutor compreenda a mensagem do texto original produzido pelo professor.

    Quando o intérprete educacional atua junto a um professor pedagógico os

    resultados são muito bons para todos os alunos e mais efetivo, pois são otimizados todos

    os esforços educacionais. Pode ocorrer, no entanto, também a presença de um intérprete

  • 31

    que  tenha  incorporado  a  filosofia  de  “repassador  de  informação”  por  um conjunto  de 

    experiências profissionais e acadêmicas pelas quais passou. Nesse caso, por mais que o

    professor se empenhe em sua forma de mediação pedagógica, pode não obter bons

    resultados com os alunos porque o intérprete subtraiu algumas etapas da mediação e

    tentou sintetizar a informação. Embora esses casos sejam mais difíceis, podem ocorrer.

    - Faixa etária dos alunos

    Além dessas variantes em relação à abordagem do professor e as conseqüências

    para a interpretação, há outros fatores a serem considerados como é o caso da idade do

    aluno surdo. Quanto menor for idade do aluno, menos autonomia ele terá. Será mais

    difícil para ele diferenciar quem é o intérprete e quem é o professor. Além disso, essa

    criança ainda está em processo de desenvolvimento do seu bilingüismo, com pouca

    autonomia de leitura do Português e precisam de uma experiência afetiva e lúdica na

    mediação. Esses são fatores que o tornam mais dependente do intérprete e mais distante

    do professor.

    Já os jovens e adultos surdos apresentam uma autonomia maior, a compreensão

    do processo de leitura e escrita geralmente é maior uma vez que esses educandos

    realizam o que Paulo Freire denomina de “A leitura de mundo”, que é a compreensão e 

    interação cotidiana com a vida, com o mundo do trabalho, etc. A maturidade para

    diferenciar o papel do professor e o papel do intérprete é muito diferente.

    Tantos os alunos surdos quanto os intérpretes apresentam situações diferentes

    nas diversas cidades do Brasil. Em pequenas cidades do interior é comum ver apenas

    um ou dois surdos na escola inteira. Essas crianças geralmente não tem outro

    interlocutor que não seja o intérprete. Situação muito diferente das crianças surdas de

    grandes cidades que é comum ter turmas com mais de um aluno surdo ou mesmo turmas

    apenas com surdos. Nessa situação a interação entre os pares surdos é muito rica, além

    de haver surdos adultos atuantes na comunidade surda. O próprio contato que o

    intérprete tem com os surdos e a perspectiva que desenvolve sobre eles é muito

    diferente.

    Como se pode notar há inúmeros fatores que complexificam a atuação do

    intérprete no espaço educacional. Nesse espaço, o intérprete precisa estar atento a como

    irá desenvolver competências tradutórias em relação às mediações pedagógicas e

  • 32

    desenvolver habilidades também relacionadas à tarefa de educar. O intérprete não pode

    se comportar como se estivesse transmitindo uma informação independente da platéia.

    Política educacional

    O  livro  do  professor  Paulo  Machado  (2008)  “A  política  educacional  de 

    integração/inclusão”   aprofunda a problemática  das políticas adotadas na educação de

    surdos apresenta a posição de vários teóricos da área a respeito, e sugerimos a vocês a

    leitura e o aprofundamento. Vamos apenas destacar aqui que a política educacional

    empregada na rede em que o aluno surdo está matriculado tem sérias conseqüências

    para esses educandos e afeta diretamente o trabalho do intérprete.

    Na estrutura educacional que temos no Brasil, tanto a educação infantil quanto a

    educação básica, são as que apresentam melhores condições para a constituição de

    turmas de alunos surdos com professores, preferencialmente, surdos e fluentes em

    libras. Entretanto, a política educacional de inclusão prevê que os alunos surdos estejam

    dispersos nas salas de ensino regular junto a ouvintes e com a presença de intérpretes.

    Acrescenta-se que a conquista de intérpretes em sala também é recente, e ainda não há

    uma política clara de formação de intérpretes para atuar nesses níveis.

    O papel do intérprete no ensino técnico e superior é mais facilmente

    estabelecido, pois, quando os alunos surdos alcançam esses níveis de educação, já

    apresentam outro grau de autonomia e conseguem diferenciar o papel do intérprete do

    papel do professor. Mas, frente à política educacional adotada na educação infantil e

    educação básica o intérprete é forçado a ter que construir uma postura profissional

    condizente com as instituições e demandas sociais, afetivas, cognitivas dos educandos,

    e descobrindo formas para isso sem um aparato ou suporte institucional para tanto. Na

    maioria das vezes assuma por conta e risco os desafios de enfrentar corajosamente os

    erros e acertos da profissão sem poder compartilhar e nem mesmo ser reconhecido

    institucionalmente em todos esses seus esforços.

    Agora, com toda essa gama de possibilidades existentes explicitadas e as que

    ainda podem ocorrer para você, vamos retomar a Quadros (2004, p. 60) e fazer algumas

    ponderações.

    O intérprete especialista para atuar na área da educação deverá ter um perfil para intermediar as relações entre os professores e os alunos, bem como, entre os colegas surdos e os colegas ouvintes. (QUADROS, 2004, p. 60)

  • 33

    Esse perfil é diferente do perfil do intérprete que atua em palestras ou outras

    situações de repasse de informação ou negociação. Mas ele também será diferente nos

    diferentes níveis de educação e modalidades. Quanto menor for o aluno surdo, ou menor

    sua escolarização mais apropriado seria que ele tivesse um professor proficiente em

    libras e estivesse em uma turma de surdos. Porém tanto a política educacional

    empregada, quanto o pequeno número de alunos surdos em uma determinada localidade

    podem inviabilizar essa condição.

    Vejamos mais umas observações de Quadros sobre os intérpretes de língua de

    sinais (2004):

    No entanto, as competências e responsabilidades destes profissionais não são tão fáceis de serem determinadas. Há vários problemas de ordem ética que acabam surgindo em função do tipo de intermediação que acaba acontecendo em sala de aula. Muitas vezes, o papel do intérprete em sala de aula acaba sendo confundido com o papel do professor. Os alunos dirigem questões diretamente ao intérprete, comentam e travam discussões em relação aos tópicos abordados com o intérprete e não com o professor. O próprio professor delega ao intérprete a responsabilidade de assumir o ensino dos conteúdos desenvolvidos em aula ao intérprete. Muitas vezes, o professor consulta o intérprete a respeito do desenvolvimento do aluno surdo, como sendo ele a pessoa mais indicada a dar um parecer a respeito. (QUADROS, 2004, p. 60)

    Há muitas controvérsias sobre qual o papel do intérprete na educação. Sua

    responsabilidade principal é interpretar a aula e preparar-se em relação a esse processo,

    e participar do contexto do cotidiano escolar. Todo intérprete precisa construir uma

    ética profissional que envolve o respeito ao outro e a si próprio.

    Quadros alerta para algumas armadilhas que podem surgir:

    O intérprete, por sua vez, se assumir todos os papéis delegados por parte dos professores e alunos, acaba sendo sobrecarregado e, também, acaba por confundir o seu papel dentro do processo educacional, um papel que está sendo constituído. Vale ressaltar que se o intérprete está atuando na educação infantil ou fundamental, mais difícil torna-se a sua tarefa. As crianças mais novas têm mais dificuldades em entender que aquele que está passando a informação é apenas um intérprete, é apenas aquele que está intermediando a relação entre o professor e ela. (QUADROS, 2004, p. 60)

  • 34

    A partir de diretrizes políticas estabelecidas na área de tradução e interpretação

    em língua de sinais com a adoção de um conjunto de medidas institucionais relativas ao

    acompanhamento pedagógico sistematizado, o intérprete também passa a ser valorizado.

    A sobrecarga e desvalorização do intérprete afeta também a qualidade de seu trabalho.

    Enfim, chamamos a sua atenção para as políticas institucionais relacionadas à formação

    de intérpretes que necessitam:

    - Considerar as peculiaridades regionais da educação no Brasil.

    - Observar o tamanho das comunidades surdas locais e as implicações

    educacionais.

    - Mapear os diferentes graus e níveis de escolarização dos surdos e dos

    intérpretes.

    - Revisar os códigos de ética a serem aperfeiçoados na relação profissional.

    - Dialogar e indagar as políticas educacionais vigentes e as formas dos processos

    inclusivos.

    - Conhecer as perspectivas apresentadas pelas comunidades surdas sobre esse

    profissional.

    Enfim, esperamos que com essa disciplina, você tenha conseguido refletir sobre

    tradução e interpretação dentro de um contexto educacional e tenha se motivado para

    continuar contribuindo com a construção desse processo em todo país!

  • 35

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 36

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