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4325 TRADIÇÃO AUTOCRÁTICA, RAZÃO DUALISTA E A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL TRADITION AUTOCRAT, REASON AND CONSTRUCTION DUALISTIC RHETORIC OF DEMOCRACY AND FUNDAMENTAL RIGHTS IN BRAZIL Newton de Menezes Albuquerque RESUMO O trabalho examina os impasses estruturais, históricos da plena efetivação da democracia e dos direitos fundamentais no Brasil, dada as suas condições sociais, políticas, culturais e jurídicas particularistas. Detém-se principalmente nas diferenças discrepantes entre a realidade vigente nos países capitalistas centrais , marcados pela criação de instituições minimamente inclusivas da sociedade, e a estabelecida na periferia da ordem, como o Brasil, onde a natureza autocrática da formação sócio- cultural requer a estruturação de processos heterônomos, prevalecentemente coercitivos sobre as maiorias. Para tanto se vale do diálogo com autores clássicos que estabeleceram reflexão sobre a formação histórica do Estado burocrático-autoritário como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Oliveira Viana e Florestan Fernandes, problematizando os vínculos particularistas das relações entre sociedade e Estado no Brasil e suas reverberações negativas na construção da democracia e dos direitos fundamentais, onde estes são reconhecidos retoricamente, mas inassimilados na prática das instituições. PALAVRAS-CHAVES: AUTOCRACIA, RAZÃO, DEMOCRACIA, DIREITOS FUNDAMENTAIS, ESTADO ABSTRACT The work examines the structural impasses, center of the full realization of democracy and fundamental rights in Brazil, given its social conditions, political, cultural and legal particularist. Holds mainly in the differences existing discrepancy between the reality in central capitalist countries, marked by the creation of institutions minimally inclusive society, and on the periphery of the established order, such as Brazil, where the autocratic nature of the socio-cultural training requires the structuring of heteronomy processes, prevailing on the coercive majorities. For this is worth of dialogue with classical authors that have discussions about the historical formation of the bureaucratic-authoritarian as Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes and Oliveira Viana, problematized the particularist ties of relations between society and state in Brazil and its negative reverberations in the construction of democracy and fundamental rights which are recognized rhetorically, but in practice no assimiled institutions.

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Page 1: TRADIÇÃO AUTOCRÁTICA, RAZÃO DUALISTA E … e políticos, mas também, os direitos culturais, sociais, difusos, etc. ... direitos a todos os homens perante um meio sócio-político

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TRADIÇÃO AUTOCRÁTICA, RAZÃO DUALISTA E A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO

BRASIL

TRADITION AUTOCRAT, REASON AND CONSTRUCTION DUALISTIC RHETORIC OF DEMOCRACY AND FUNDAMENTAL RIGHTS IN BRAZIL

Newton de Menezes Albuquerque

RESUMO

O trabalho examina os impasses estruturais, históricos da plena efetivação da democracia e dos direitos fundamentais no Brasil, dada as suas condições sociais, políticas, culturais e jurídicas particularistas. Detém-se principalmente nas diferenças discrepantes entre a realidade vigente nos países capitalistas centrais , marcados pela criação de instituições minimamente inclusivas da sociedade, e a estabelecida na periferia da ordem, como o Brasil, onde a natureza autocrática da formação sócio-cultural requer a estruturação de processos heterônomos, prevalecentemente coercitivos sobre as maiorias. Para tanto se vale do diálogo com autores clássicos que estabeleceram reflexão sobre a formação histórica do Estado burocrático-autoritário como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Oliveira Viana e Florestan Fernandes, problematizando os vínculos particularistas das relações entre sociedade e Estado no Brasil e suas reverberações negativas na construção da democracia e dos direitos fundamentais, onde estes são reconhecidos retoricamente, mas inassimilados na prática das instituições.

PALAVRAS-CHAVES: AUTOCRACIA, RAZÃO, DEMOCRACIA, DIREITOS FUNDAMENTAIS, ESTADO

ABSTRACT

The work examines the structural impasses, center of the full realization of democracy and fundamental rights in Brazil, given its social conditions, political, cultural and legal particularist. Holds mainly in the differences existing discrepancy between the reality in central capitalist countries, marked by the creation of institutions minimally inclusive society, and on the periphery of the established order, such as Brazil, where the autocratic nature of the socio-cultural training requires the structuring of heteronomy processes, prevailing on the coercive majorities. For this is worth of dialogue with classical authors that have discussions about the historical formation of the bureaucratic-authoritarian as Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes and Oliveira Viana, problematized the particularist ties of relations between society and state in Brazil and its negative reverberations in the construction of democracy and fundamental rights which are recognized rhetorically, but in practice no assimiled institutions.

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KEYWORDS: AUTOCRACY, REASON, DEMOCRACY,FUNDAMENTAL RIGHTS, STATE

1. Introdução. Direitos Fundamentais e a permanência dos desafios a sua plena efetivação na contemporaneidade periférica capitalista.

As efemérides pela passagem de mais um ano de proclamação da Declaração dos Direitos Humanos propicia um momento oportuno para a reflexão sobre o sentido mandamental, imperativo de seus enunciados, de seus princípios e valores fundamentais, consagradores da dignidade da pessoa humana, mas também, uma ocasião para se analisar as causas, condicionamentos e realidades responsáveis por boa parte da inefetividade daqueles na realidade contemporânea. Declaração esta que consigna em seus artigos um repertório positivado de lutas pelos direitos fundamentais na história, albergando não somente os direitos individuais em seu plexo de direitos civis e políticos, mas também, os direitos culturais, sociais, difusos, etc.

Pois se é correto reconhecermos os avanços conquistados pela modernidade no sentido de uma ampliação da legitimidade retórica dos direitos fundamentais, banindo os estorvos doutrinários produzidos pelas teorias medievalistas da soberania monárquica, com toda sua corte de argumentos ‘naturalizadores” das distâncias hierárquicas entre os homens, distribuídas entre as respectivas classes e estamentos sociais; porém, deve-se enfatizar os retrocessos existentes na aplicabilidade dos mesmos no âmbito das relações sociais do modo de produção capitalista. Óbices materiais que se postam como elementos desfiguradores do discurso dos direitos fundamentais, haja vista, a interpretação da pouca ou nenhuma eficácia de seus postulados frente a crueza dos interesses dominantes da ordem capitalista. Afinal como reconhecer a centralidade dos direitos a todos os homens perante um meio sócio-político alheio ao homem e suas demandas? Como compatibilizar a universalização prática dos direitos com a voracidade irrefreável do processo de acumulação de riquezas estabelecida no capitalismo que fomenta concentração crescente de riqueza e pobreza nos pólos opostos da sociedade? Enfim, como pensar a universalidade rousseau-kantiana da dignidade humano-existencial do indivíduo diante do particularismo brutal, excludente do globalitarismo neoliberal que expande as diferenças econômicas, sociais e stantartiza, homogeneíza os padrões culturais entre os povos? E mais, como articular a plena generalização dos direitos fundamentais e de suas premissas democráticas em uma ordem social, política e cultural historicamente desigual, autocrática, patrimonialista e permeada por elementos pré-modernos no âmbito das relações sociais ?

Mencione-se ainda, a re-emergência de referenciais anti-civilizatórios de cunho proto-fascista que buscam justificar o apelo a práticas insidiosas de censura, de acatamento a tortura como forma de obtenção de prova, de aniquilamento de religiões e valores considerados ameaçadores da “unidade ocidental-cristã”, entre tantas exemplos

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explicitadores do antagonismo visível entre universalismo axiológico das teorias dos direitos humanos, fundamentais, e a realidade particularista do Capital com sua fúria onívora destruidora. Como atualizar o valor liberal da tolerância ao diferente, com suas distintas expressões identitárias, se as condições de reprodutibilidade do capitalismo exigem cada vez mais, subsunção da humanidade as mesmas formas e racionalidades forjadas pelo seu complexo tecnológico-produtivo? Afora as tentativas de conferir ares de aceitabilidade ao etnocentrismo imperial como intentam os Samuel Huttington e outros intelectuais engajados do apartheid neoliberal. Essas são apenas algumas das inúmeras questões que podem ser suscitadas em razão dos desafios colocados por todos aqueles que lutam pela efetivação dos direitos fundamentais em nosso meio, e que se vêem obrigados a revisitar as bases universalistas das diversas teorias comprometidas com a afirmação da cidadania. O desmascaramento evidente das limitações sócio-históricas e políticas da ordem liberal-capitalista na efetivação dos direitos fundamentais é tão flagrante, que sequer os defensores da atual forma de organização da sociedade procuram ocultar o conflito inevitável entre as pretensões universalistas nelas presentes, e as condições bloqueadoras de sua viabilização na atualidade, próprias a dinâmica anti-humanista do capitalismo. Não obstante perseguirem o intuito de apresentar como “universais” determinados valores que na verdade nada mais são do que expressões dos interesses da classe dominante. Pois como muito flagra Marx[1]:

“Cada nova classe que passa a ocupar o posto daquela que dominou antes dela se vê obrigada, para poder encaminhar os fins que persegue, a apresentar seu próprio interesse como o interesse geral de todos os membros da sociedade – quer dizer, expressando o mesmo em termos ideais -, a imprimir a suas idéias a forma da universalidade, a apresentar essas idéias como as únicas racionais e válidas universalmente.”

O que não obstou que o legado da tradição iluminista em favor do reconhecimento da centralidade do humano, de sua racionalidade como dimensão constitutiva e crítica do sentido da realidade, se inscrevesse na história como tentativa de refundação das justificativas do poder do Estado e das teorias jurídicas, visando transformá-las em poderosos instrumentos de emancipação do indivíduo, mormente do indivíduo-proprietário. Tradição iluminista de exaltação do homem e da razão que, infelizmente, viu-se posteriormente manietado, quando não expressamente eclipsado pela dominância do instrumentalismo mercantil vigente no capitalismo. Dualidade ínsita a racionalidade iluminista, que abre espaço para interpretações variegadas sobre o legado iluminista, o que mereceu de Adorno e Horkheimer[2] uma minudente investigação crítica em sua Dialética do Esclarecimento, onde se analisa a barbárie da razão instrumental como a outra face da desrazão manifestada dramaticamente no holocausto nazista. Preponderância da razão instrumental que está diretamente relacionado a assepsia técnico-burocrático de uma época marcada pela mensurabilidade contábil do mundo em consonância com a auto-realização do valor nas sociedades de produção de mercadorias. O conteúdo ético, político da razão, produzida da sociabilidade contraditória e mundana dos homens, cede lugar as fórmulas lógico-matemáticas, subsumidas a gramática técnica da dominação desprovida de fins.Ou como diz mais apropriadamente Adorno/Horkheimer[3]:

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“A lógica formal era a grande escola da unificação. Ela oferecia aos esclarecedores o esquema da calculabilidade do mundo. O equacionamento mitologizante das Idéias com os números nos últimos escritos de Platão exprime o anseio de toda desmitologização: o número tornou-se o cânon do esclarecimento. As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil. “Não é a regra; ‘se adicionares o desigual ao igual obterás algo de desigual’ ( Si inaequalibus aequalia addas, omnia erunt inaequalia) um princípio tanto da justiça quanto da matemática? E não existe uma verdadeira coincidência entre a justiça cumulativa e distributiva por um lado e as proporções geométricas e aritméticas por outro lado? A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura. “Unidade” continua a ser a divisa, de Parmênides a Russel. O que se continua a exigir insistentemente é a destruição dos deuses e das qualidades.”

Entretanto não podemos fazer um inventário unilateral do legado do Iluminismo, da modernidade e das possibilidades imaginativas, criativas e criadoras da razão. Melhor exemplo encontra-se na legitimação erga omnes dos direitos humanos entre todos os homens, opostamente ao que acontecia em períodos pregressos, onde o discurso dos direitos possuía como destinatária uma minoria ínfima de pessoas. Direitos Humanos que encontraram na Declaração dos Direitos Humanos de 1948 um importante marco de afirmação, responsável no plano normativo pela universalização dos direitos individuais, difundindo-os pelos mais variados rincões da terra[4].

A transfiguração do sabor eminentemente europeu dos direitos fundamentais, já havia sido sentido com sua transposição ao Novo Mundo a partir da independência americana, notavelmente com base na recepção fértil lá operada entre as tradições inglesa, fundamentalmente empírica que molda a presença do direito consuetudinário no solo dos EUA, e a tradição francesa, predominantemente historicista e racional, pautada na valorização dos aspectos laicos da cultura. O que nos leva concluir que a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 funcionou como o primeiro degrau do processo “evolutivo” de desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais na modernidade tardia, que foi sendo alterada/ acrescentada de novos conteúdos geracionais de direitos na medida em que houveram expansões civilizatórias das lutas “dos de baixo”, provenientes das demandas dos trabalhadores, e de protagonismo inaudito dos povos, momento histórico este que Milton Santos denominou de tempo “demográfico”. O grande problema, repto perene, horizonte insuperável e insuperado pelo modo de produção de mercadorias no tempo e no espaço presente do capitalismo, é o de tentar compatibilizar as lutas imanentes brotadas do solo histórico da afirmação soberana das maiorias políticas que forjam o direito-fato, decisionalmente fixado pelo povo; com a abstratividade, inodora adquirido pelo direito-normatividade, moldura vazia destituída de vontade, aprisionado pelos tecnocratas do judiciário[5].Dificuldade que se faz mais nítida quando buscamos compreender as razões que levam a sua inefetividade junto aos Estados periféricos, ainda marcados pela sobrevivência de códigos sociais pré-

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modernos, onde o discurso dos direitos e de sua universalidade são retoricamente proclamados, mas praticamente refutados.

No entanto, se o fosso entre universalidade dos preceitos filosóficos e jurídicos entabulados no paradigma do Estado Democrático de Direito e sua aplicabilidade faz-se sentir nos países centrais do capitalismo na fase financeira do capitalismo globalizado, tal realidade torna-se mais preocupante nos Estados periféricos, dada a prevalência do particularismo das condições políticas, sociais, culturais em que suas estruturas institucionais se formaram e adquiriram funcionalidade. Daí o teor de negatividade que a prática em favor da efetivação dos direitos humanos e da democracia assume por estas plagas, soando como reivindicações revolucionárias, dado os fundamentos perversamente autocráticos e anti-populares com que o Estado se plasmou. Afinal se buscarmos apreender o sentido material da constitucionalidade no Brasil, perceberemos a preponderância dos valores e imposições fáticas dos estamentos burgueses sobre os vínculos normativo-formais solenemente contidos na Constituição e em seus princípios lógicos. Empecilhos estes para a devida generalização dos direitos humanos presentes na declaração dos direitos humanos que de forma direta ou indireta já foi tematizado classicamente por pensadores brasileiros de escol á exemplo de Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e outros, sempre a mencionar o peso dos aspectos personalistas, cultorológicos na formação histórica singular de nossas instituições. No caso dos três primeiros cabe destacar o papel que atribuem aos resquícios ibérico-patrimonialistas que cinzelaram intensamente os caracteres do Estado periférico brasileiro, sendo que os dois últimos sublinharam a natureza subordinada do capitalismo brasileiro aos fluxos internacionais do sistema e as profundas interdições que isso implicou na constituição de uma dominação fundada na restrição da cidadania às maiorias.

Portanto, apesar da brevidade do espaço tentaremos problematizar as dificuldades históricas de incorporarmos os direitos humanos como paradigma universal a regular as relações sociais no Brasil, não obstante os avanços e inúmeras conquistas obtidas pela estruturação de uma democracia política em nosso país.O que contribui decisivamente para configuração de uma razão dualista no interior de nossa tradição jurídica, onde se busca harmonizar a partir da estruturação de uma racionalidade profundamente antinômica e paradoxal, o reconhecimento formal dos direitos humanos democráticos com a manutenção da contingência dos padrões assimétricos de poder entre as classes sociais. Contradição profunda entre formas jurídicas e realidade que nos desafiam, pois se de um lado somos conscientes das inúmeras dificuldades para desbloquear o acesso das instituições, de seus processos decisórios plenos as maiorias, também sabemos que tais conquistas formais são importantes ,vitais para a expansão da luta pela democracia e dos direitos humanos entre nós. Até mesmo porquê a apreensão dos problemas, limitações e carências de nosso processo civilizatório não deve ser entendido como a manifestação de uma eventual impossibilidade de aplicarmos os direitos humanos e\ou a democracia , mas sim, das resistências que precisamos arrostar para conquistá-las efetivamente.

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2. Universalismo ético-jurídico e a história modernizadora dos Direitos Fundamentais.

Porém se a abordagem dos direitos humanos geralmente se circunscreve ao estudo do nascimento e constituição da modernidade liberal, faz-se necessário retificar tais postulados narcísicos e auto-referentes, próprios da crença novidadeira do mito fundador da modernidade capitalista. Pois um olhar perfunctório sobre a longa história nos revelará um relevo mais acidentado, cheio de nuances, declives e aclives, em que de relance poderemos aferir o arcabouço rico fornecido pela Antiguidade e Idade Média para o repertório dos direitos humanos[6]. Retórica de defesa do homem, de sua liberdade política na agóra grega, ou dos valores cívicos nos autores renascentistas medievais em que já se vislumbrava o reconhecimento da “dignidade humana” como propugnava Pico Della Mirandola.

A diferença essencial entre os fundamentos apresentados na Antiguidade e Idade Média, e de outro lado a modernidade reside na aposta feita por esta do papel maior da razão institucional do Estado e de suas macroestruturas na justicialidade dos direitos. Na verdade, a história da transição para a modernidade foi um itinerário quase constante de ascese das formas jurídicas e políticas valorizadoras do indivíduo, de sua racionalidade e de seus desejos, naturalizados como manifestações óbvias, diria mesmo ontológicas do homem. O próprio Estado em sua compleição corporal – de acordo com o pensador protótipo da modernidade Thomas Hobbes – deve mimetizar a corporalidade do indivíduo. Não é a toa que Hobbes, sem nenhum exagero, pode ser classificado como o teórico mais bem acabado da modernidade emergente[7], pois traz em si os dois influxos contraditórios do capitalismo, o sentido de ordem incrustado no Estado e a justificação da autonomia individual, da lógica monopolizadora dos direitos individuais desenvolvido pelo liberalismo.

O que nos leva constatar que a introdução dos princípios e categorias dos direitos fundamentais pelo mundo, coincide com a expansão civilizatória das formas tecnológicas, jurídicas e políticas da racionalidade liberal, pautada na idéia de organização sistemática do poder, da economia e na apologia do “universo” do indivíduo-burguês. Indivíduo-burguês que se compreende como senhor vigoroso de sua razão como instância interna ordenadora do corpo e de seus desejos voluptuosos, potencialmente irracionais e não-assimilavéis a maquinaria capitalista. Divisão entre corpo - composto de fluidos, animismo e desejo – e razão, onde assoma a disciplina dos fins e a métrica do fazer produtivo buscando o mercado. O Iluminismo enquanto movimento filosófico-político e cultural enuncia uma nova era na história - apesar do brilho das produções do racionalismo grego na Antiguidade – um período onde o indivíduo se emancipa, torna-se soberano, alheio as determinações heterônomas do destino e do misticismo, crendo como nunca na sua capacidade de reinstituir, renomear o mundo com base na apreensão de suas leis inevitáveis.

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O veio teórico e axiológico - afirmativo dos direitos universais dos homens – firmado na tradição iluminista sintetizada por Kant em sua obra Metafísica dos Costumes[8] com seus valores fundamentais em contraponto ao utilitarismo do poder e do desejo de alguns de tornarem o indivíduo mero instrumento serviente a fins que lhe são alheios, definem o paradigma, a moldura em que entretecem os ideais da modernização esclarecida, imbuída dos propósitos civilizadores voltados para disseminação dos direitos, prerrogativas e cidadania entre os homens, assim como seu contraste face a realidade instituída pelo Capital e seus agentes dominada por apetites privatistas. A crença nas virtudes da razão, nos critérios universalistas centrados na pregação da generalização de critérios éticos e jurídicos passivéis de terem publicidade e acatamento a todos os homens indistintamente, assinala os marcos conceituais em que se plasma a teoria dos direitos humanos na modernidade.

Modernidade temperada nos valores e na esperança emancipatória, aonde o desvelar das explicações místicas, encoberta pelos véus postos pela religião fundamentalista, figura como a preocupação maior da ordem liberal em suas primícias históricas. A burguesia como sujeito histórico na transição do medievo para modernidade, ainda vê-se livre das injunções fiscais atrabiliárias do poder feudal sem encontrar-se enredada nas pressões do movimento operário, o que lhe confere ampla liberdade no exercício descortinado da crítica ao real, realizando aquilo que Immanuel Kant denominaria de submeter o mundo estabelecido, instituído ao “tribunal da razão”. Concepção emancipatória do saber presente em Kant e outros iluministas que sofre posteriormente um significativo arrefecimento até sua completa capitulação em forma de ideologia enquanto “falseamento do real” segundo Marx. Com a positivação do poder capitalista, agora acossado pelas reivindicações do “mundo do trabalho”, a busca abnegada pela verdade, pela compreensão das coisas cede lugar a mistificação, a ardilosa manipulação das versões, teorias e hipóteses com o fito da eternização do Capital e de suas instituições.

Universalismo que nos albores do liberalismo civil ousara enfrentar o espectro senil das formas sociais pré-modernas, assuntando sobre o sentido profundo da realidade para além de suas expressões fenomênicas, não se dissociando do ideal de verdade, de crítica sem contemplação das manipulações ideológicas, dos falseamentos do mundo, da denúncia do mero desejo apoiado na força que costumeiramente se vale do relativismo axiológico para justificar em nome da singularidade a refutação da plena acessibilidade a todos dos direitos humanos.

Entretanto, a publicidade e a generalização de conceitos e valores como premisssas estruturantes do discurso do direito, notadamente dos direitos fundamentais enquanto núcleo essencial, irredutível da civilização liberal, parece encontrar-se carcomida pelos eflúvios do auto-interesse egoísta, liberado pela pós-modernidade, fragmentadora do real e inimiga figadal do racionalismo, e por conseguinte, da universalidade, inclusive dos direitos. Sublinhe-se ainda, o corte feito entre o alinhavo universalista dos conceitos

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produzido pelo liberalismo ético-alemão manifestado em Kant, Hegel, Scheling e outros, e a dimensão pragmática, relativista dos postulados liberais anglo-saxões.

Neste sentido, pode-se perceber que apesar da contribuição relevante do jusnaturalismo de Thomas Hobbes, John Locke, Milton e suas reverberações positivas na edificação do Constitucionalismo e da teoria dos direitos fundamentais nos EUA o papel representado por essa matriz histórico-concreta dos direitos fundamentais submete-se aos estreitos lindes do individualismo metodológico, enfatizando fundamentalmente a tutela do direito à propriedade e da esfera privada em detrimento da universalidade ética do discurso presente no idealismo alemão.

Daí a crítica que Marx fará a retórica dos direitos universais patrocinados pela burguesia, mormente daquele impregnado de uma lógica proprietarista, onde a sociedade, o direito e realidade social são apreendidos como resultados das “robinsonadas” liberais. O enaltecimento abstrato dos direitos em desconformidade com as condições materiais, histórico-sociais, em que eles se gestam e ganham efetividade, transforma por sua vez, o discurso dos direitos humanos em ideologia. Ou seja, os contornos metafísicos assumidos pela teoria dos direitos humanos na tradição liberal, notadamente a partir do vezo do individualismo metodológico, inviabilizam a captação do real e de suas determinações contraditórias. Afinal o indivíduo solto no espaço e no tempo não existe, pois o homem exsurge dentro de um contexto específico, onde o enlace de solidariedades é tecido por sua inserção no espaço social da produção e reprodução social, conformando sua consciência na interação com outros indivíduos com quem estabelece processos intersubjetivos,comunicativos, relacionais.

Pois como bem elucidou Carl Schmitt em sua análise sobre o direito, não é possível dissociar o sentido do direito fixado em sua normatividade da variabilidade de interesses contidos in nuce no processo decisional de aplicação do mesmo. Nas dobras da legalidade oculta-se a política com seu vórtice de interesses, vontades, potencialmente reconfiguradoras do mundo, reinstituintes do sentido presumidamente amortecido, petrificado na norma e\ ou no ordenamento jurídico.

3. Estado brasileiro periférico e as interdições históricas a efetivação da democracia e aos direitos humanos.

O conceito de sistema político periférico desenvolve-se da percepção teórica da ampla distinção entre países capitalistas centrais que seguiram um curso de desenvolvimento baseado em processos clássicos de acumulação de capital, fundados no estabelecimento

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de sistemas políticos e jurídicos autônomos; e os demais países, estruturados sob o guante da dependência externa e da restrição ao exercício da soberania política e jurídica em relação aos seus Estados, bem como na “colonização do mundo da vida” pela economia reificada de produção de mercadorias capitalista sem deixar margem para o exercício de um controle social sobre as decisões tomadas pelo Capital. Dimensão periférica da estruturação do capitalismo que produz efeitos restritivos na construção de uma civilização democrática no Brasil, em razão da prevalência de uma razão particularista em nosso processo de formação enquanto nacionalidade - resultante da edificação de um Estado Capitalista politicamente orientado[9] por uma burguesia estamental, e que se estabelece distintamente do seu homólogo europeu, como uma realidade divorciada dos influxos da universalização dos valores do liberalismo político em nosso meio.

Processo desigual na esfera internacional que decorre da multiplicidade de tempos históricos diversos que se inscrevem na estrutura de formação do capitalismo, com suas variegadas formas de ordenação político-institucional e cultural, resultantes em grande medida da interação entre a pressão das relações econômicas mercantis provenientes de fora do espaço nacional e àquelas derivadas das influências subsistentes a sua formação social prévia à recepção das relações econômicas capitalistas.

A crença ingênua de alguns analistas de que os processos de desenvolvimento econômicos, sociais e políticos e até mesmo jurídicos obedecem a uma lógica linear histórica implacável, mostra-se, para quem observa a concretude da evolução das sociedades periféricas, questionável. Particularmente em países onde as sobrevivências de formações econômicas e sociais pré-modernas funcionam como fortes impedimentos à introdução de um adequado processo de modernização capitalista clássico em suas estruturas de poder, com a preservação de lealdades estamentais que trabalham no sentido de forjar uma estratificação social avessa aos valores da liberdade e da igualdade em seu invólucro liberal, bem como na configuração jurídica concreta de Estados de Direito e das demais categorias do pensamento liberal e democrático.

A centralização de forças material e política que propiciou a constituição do Estado Nacional na transição para modernidade, calcado na secularização de suas instituições e na completa juridicização da política[10], encontra forte resistência para se adensar nos países da periferia da ordem capitalista. Principalmente após a configuração imperialista do capitalismo no século XX, baseada em uma divisão internacional do trabalho mais rígida e hierárquica, onde os Estados Capitalistas Periféricos se cingiam à mera produção de produtos complementares às economias dos países centrais, constrangendo ainda mais os espaços políticos, culturais e jurídicos para a afirmação de uma identidade nacional própria. Particularmente no que se refere a constituição de um Estado calcado em um dinamismo político e social manifestadamente autônomo/soberano do ponto de vista nacional em face da ordem internacional, e democrático sob o ângulo da resolução dos litígios de interesse inerentes a uma sociedade repartida entre classes opostas, pois,

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infelizmente, o que vemos em relação ao Estado brasileiro é o contrário, conforme enfatiza Florestan Fernandes:

“De acordo com a descrição apresentada, a versão final dessa forma de Estado, a que se está constituindo e consolidando com a irradiação do capitalismo monopolista pelas áreas da periferia do mundo capitalista que comportam semelhante desenvolvimento, é a de um Estado nacional sincrético. Sob certos aspectos, ele lembra o modelo ideal nuclear, como se fosse um Estado representativo, democrático e pluralista; sob outros aspectos , ele constitui a expressão acabada de uma oligarquia perfeita, que se objetiva tanto em termos paternalistas-tradicionais quanto em termos autoritários e modernos; por fim, vários aspectos traem a existência de formas de coação, de repressão e de opressão ou de institucionalização da violência e do terror, que são indisfarçavelmente fascistas[11].”

As três fases do desenvolvimento capitalista no Brasil tematizado por Florestan Fernandes: constituição de um mercado interno, maior competitividade e por fim, transição para a fase de concentração de capitais em torno de monopólios e oligopólios, apesar de suas especificidades - são perpassadas por um problema comum - o da ausência de um padrão soberano de ordenação do espaço institucional do Estado face aos centros externos de poder internacional. O que confere à construção do Estado-Nação brasileiro uma debilidade ingênita, particularmente no que se refere à dificuldade na articulação de um processo de instauração de um dinamismo social calcado na supremacia da vontade popular, bem como na estruturação de procedimentos decisórios institucionais abertos, dialógicos que valorizem a representação política, os conflitos, o poder legislativo, e que fizesse valer em sua dinâmica concreta a generalização dos direitos humanos como expressão mais lídima no âmbito do Estado da razão democrática. Pois aqui, como dizia Werneck Vianna :

“(...) o Estado-nação, inspirado no liberalismo, nascia sem uma economia que se apresentasse em homologia ele. Se, na sociedade civil, o liberalismo atuava como “fermento revolucionário”, induzindo rupturas moleculares na ordem senhorial-escravocrata, ele não poderia se comportar como princípio de sua organização, sem acarretar com isso o desmonte da estrutura econômica, fundada no trabalho escravo e no exclusivo agrário e que assegurava ao Estado uma forma de inscrição no mercado mundial e presença internacional. Ademais, o patriciado rural se comportava como um coadjuvante insubstituível, da perspectiva das elites políticas, para o controle de variáveis-chave como território e população. O liberalismo devia consistir em uma teoria confinada nas elites políticas, que saberiam administrá-lo como conta-gotas, sob o registro de um tempo de longa duração, a uma sociedade que ainda não estaria preparada para ele, sob pena da balcanização do território, a exposição ao caudilhismo e a barbárie.”[12]

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Daí o sentido profundamente heteronômico dos fluxos decisórios nos Estados Dependentes, pois apesar de serem dotados de uma relativa autonomia política, com ordenamentos jurídicos e políticos próprios, entretanto, padecem de constrangimentos irrefutáveis no exercício do poder político e na universalização ética de relações de cidadania entre os seus membros. Tanto no que refere a possibilidade de encetar iniciativas autócnes de desenvolvimento, lastreado em nossas próprias possibilidades econômicas, quanto no que atine aos limites quase intangíveis de nossas estruturas democráticas, geralmente vistas pelo Grande Capital como antifuncionais a estabilização da lógica do mercado. Dado que nossa profunda dependência estrutural às determinações do capital mundializado, sempre nos legaram uma condição de evidente subalternidade política, econômica, cultural e por via de conseqüência de cidadania, em que pese às intensas resistências a este processo manifestadas por setores populares. Até porque como capta magnificamente Atílio Bóron:

“A democracia não convive pacificamente com os extremos: a generalização da extrema pobreza e sua contrapartida, o fortalecimento da plutocracia, são incompatíveis com seu efetivo funcionamento, Quando os pobres se transformam em indigentes e os ricos em magnatas, sucumbem à liberdade e a democracia. A primeira não pode sobreviver ali onde uns estejam dispostos a vendê-la ”por um prato de lentilhas” e outros disponham de riqueza suficiente para comprá-la a seu bel-prazer; a segunda se converte em um rito farsesco privado de todo conteúdo, abrindo caminho à reconciliação entre economia, sociedade e política pela via da restauração plebiscitária da ditadura.[13]”

Florestan Fernandes em várias passagens de sua reflexão teórica faz menção às deficiências do processo de modernização estabelecido no Brasil e em outros países da América Latina, devido à falta de incorporação plena da maioria da sociedade civil aos frutos do progresso capitalista, assim como a ausência de uma Revolução Democrática que azeitasse os dínamos de nosso Estado Nacional, assimilando a ampla maioria da sociedade civil brasileira ás suas estruturas políticas, sociais e jurídicas. Basta que se detenha na natureza bastante restritiva da formação de nosso mercado consumidor, voltado quase exclusivamente para o atendimento de uma pequena elite em detrimento da constituição de um mercado de massas como ocorreu nos países capitalistas centrais.Se constituindo nos países periféricos uma modernização incompleta, insatisfatória diante dos desafios da implantação de uma ordem social competitiva nos moldes do instituído nos países capitalistas centrais, onde a difusão da força de trabalho livre, do individualismo burguês lastreado na valorização da meritocracia, na afirmação da autonomia e supremacia do poder do Estado Nacional perante centros externos e heterônomos de determinação da “vontade nacional” e na articulação dos fundamentos políticos de uma cultura liberal deitaram raízes profundas; enquanto por aqui se encontram asfixiadas, como lembra Florestan Fernandes sobre o processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil[14]:

“A influência modernizadora externa se ampliara e se aprofundara; mas ela morria dentro das fronteiras da difusão de valores, técnicas e instituições instrumentais para a

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criação de uma economia capitalista competitiva satélite. Ir além representaria um risco: o de acordar o homem nativo para sonhos de independência e de revolução nacional, que entrariam em choque com a dominação externa. O impulso modernizador, que vinha de fora e era inegavelmente considerável, anulava-se, assim, antes de tornar-se um fermento verdadeiramente revolucionário, capaz de converter a modernização econômica na base de um salto histórico de maior vulto. A convergência de interesses burgueses internos e externos fazia da dominação burguesa uma fonte de estabilidade econômica e política, sendo esta vista como um componente essencial para o tipo de crescimento econômico, que ambos pretendiam , e para o estilo de vida política posto em prática pelas elites ( e que servia de suporte ao padrão vigente de estabilidade econômica e política). Portanto, a dominação burguesa se associava a procedimentos autocráticos, herdados do passado ou improvisados no presente, e era quase neutra para formação e difusão de procedimentos democráticos alternativos, que deveriam ser instituídos (na verdade, eles tinham existência legal ou formal, mas eram socialmente inoperantes) “.

Diferenciação interna entre os “cidadãos” que engendraram o caráter assimétrico e dualista das sociedades periféricas, moldando-as à margem dos valores emancipatórios do Iluminismo clássico, e por sua vez, do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos, como mencionou Francisco Oliveira ao tratar das bases sociológicas da gestação da sociedade e do Estado brasileiros. Minando até a consolidação de uma efetiva constitucionalização do poder do Estado no Brasil á exemplo do praticado nos países que ingressaram na via moderna de desenvolvimento de suas instituições políticas e jurídicas.O que, aliás, foi tematizado por um pensador autoritário da estirpe de Oliveira Viana que atribui caracteres pouco universalistas a nossa tradição civilizatória, dado a conformação oligárquica do Estado e das instituições nacionais.

Descrição dos processos de estruturação do particularismo clânico que segundo Oliveira Viana, impediriam a generalização social dos postulados liberal-representativos da democracia procedimental, das bases filosóficas do racionalismo, e por conseguinte dos fundamentos doutrinários do constitucionalismo clássico. Para Oliveira Viana a única forma de superar os anacronismos históricos do Estado nativo, superando as interdições sócio-culturais a estruturação de uma legalidade é através do recrutamento de uma elite esclarecida, dotada de conhecimentos concretos sobre a realidade nacional que governe o país, instrumentalmente, até viabilizarem-se os pressupostos universalistas da democracia liberal..

Carência de premissas modernas que emana da influência das raízes ibéricas na formação da sociedade e do Estado no Brasil, onde o predomínio do personalismo, dos vínculos de afeto e\ou ódio sobrepujariam a impessoalidade normativa sobre o qual se apóiam o Estado de Direito de matiz liberal. O que foi problematizado por Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil, ao apreender a feição singularmente cordial da razão que procede a mediação das relações sociais entre os interesses diversos, em contraste com o padrão weberiano de compreensão normativo-sistêmica e

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auto-referenciada do poder burocrático do Estado. Pois Sérgio Buarque de Holanda compreendida a insustentabilidade dos aprioris liberais na explicação dos mecanismos sociais, jurídicos e culturais históricos, sociológicos de produção do poder junto a sociedade brasileira. O descompasso entre a dimensão formalista, “desencantada”, demasiadamente racionalizada dos fundamentos político-jurídicos do Estado proposto por Max Weber e Hans Kelsen como expressões da modernidade técnica do capitalismo contemporâneo, e a realidade heteróclita, compósita nascida do amálgama de relações sociais arcaicas e modernas de nossa formação sócio-cultural, nos revela as razões das dificuldades e carecimentos teóricos dos padrões iluministas clássicos usualmente sublinhados quando da interpretação do Brasil. Daí a exterioridade social, muitas vezes assumidamente simbólico do discurso constitucionalista e dos direitos fundamentais entre nós, onde o reconhecimento abstrato dos valores da igualdade e da liberdade combina-se com práticas simetricamente adversas, pautadas em profundas e perversas relações de assimetria entre os indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais.

No máximo a idéia de Constituição foi utilizada como ícone de legitimação retórica do poder constituído como enfoca Marcelo Neves[15] ao também constatar, em nosso país, a inexistência dos pressupostos políticos e jurídicos da formação de uma sociedade moderna, calcado na “autopoéisis” dos diferentes sistemas normativos de regulação da vida social moderna. Ademais, o bacharel em Direito no Brasil sempre cumpriu a função burocrática par excelence no interior da administração do Estado brasileiro, sem maiores vínculos com as classes e setores subalternos que compreendiam a ampla maioria da população de nosso país.

A combinação das relações econômicas avançadas em alguns nichos do processo produtivo com a preservação de formas de dominação político-jurídico arcaicos, reprodutores de vínculos extremos de subordinação/alienação entre os homens, agudiza as contradições sociais no interior do Estado e dificulta consideravelmente a formação da cidadania. E no Brasil encontra entraves ainda mais profundos devido às enormes resistências impostas pelos estamentos dirigentes a um efetivo processo de extirpação dos fundamentos anti-igualitários e anti-republicanos de nossa formação econômica, política e institucional remanescente dos elementos escravistas e senhoriais inscritos em nossa mentalidade cultural. O que é perfeitamente sintetizado por Florestan Fernandes quando menciona que:

“Aqui, pois, é evidente que o consenso burguês concilia a ”tradição brasileira”, de democracia restrita – a democracia entre iguais. Isto é, entre os poderosos, que dominam a representam a sociedade civil – com a “orientação modernizadora”, de Governo forte. A ordem legal e política se mantém “aberta”, “democrática” e “universal”, preservando os valores que consagram o Estado de Direito; e este Estado se concretiza, historicamente, por sua vez, na medida em que tudo isso é necessário à monopolização do poder real, da autoridade e do controle das fontes de legitimidade pelas classes burguesas e suas elites. No entanto, a validade formal ou positiva e a fruição ou participação da ordem legal e política são coisas distintas: a eficácia dos

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direitos civis e das garantias políticas se regula, na prática, através de critérios extrajudiciários e extrapolíticos”[16].

Arcaísmo institucional e ausência de parâmetros jurídicos modernos do Estado brasileiro periférico que se projeta na exteriorização de formas políticas marcadas pela tibieza dos procedimentos legitimatórios do poder do Estado, predominantemente ancoradas no recurso à coerção contra as classes trabalhadoras e não pela instituição do consenso ativo. Exterioridade do Estado que se origina da implantação das instituições políticas e jurídicas a partir da empresa colonizatória lusa, e não com base nas determinações interiores da sociedade civil brasileira, ainda pouco desenvolvida - no que atine as classes sociais que a formam – na gestação de uma dinâmica nacional identidária.

Natureza alienada do Estado perante à sociedade civil que permanece inabalável após a proclamação da República em virtude do declínio econômico das oligarquias da cana-de-açúcar e da ascensão de um regime de trabalho assentado sobre o emigrante, mas incapaz de instaurar uma efetiva assimilação das maiorias aos processos estatais decisórios. Pois como bem menciona Marilena Chauí[17]:

“(.....) O Estado, tenderá por isso a ser percebido com a mesma exterioridade e anterioridade que os outros dois, percepção que, aliás, não e descabida quando se leva em conta que essa imagem do Estado foi construída no período colonial e que a colônia teve sua existência legal determinada por ordenações do estado metropolitano, exterior e anterior a ela. É surpreendente, porém, que essa imagem do Estado se tenha conservado mesmo depois de proclamada a República”

Mencionando, um pouco mais à frente, que:

“Em outras palavras, seria de esperar que, com a república, a interioridade do estado à nação se tornasse evidente, pois teria sido a nação o sujeito que proclamou a república e instituiu o Estado brasileiro. Paradoxalmente, porém, a imagem do lugar do Estado não se alterou”.

Neste sentido, nem sequer a idéia positivista enquanto expressão de uma igualdade essencialmente formalista - mesmo que avessos a argumentos éticos substantivos - deitaram raízes nos estados periféricos, mormente no Brasil, pois aqui a legalidade nunca conseguiu se autonomizar minimamente perante o controle definido pelo sistema econômico. Pressuposto sobre o qual se estrutura toda a idéia de legitimidade do Estado

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Liberal Moderno na medida em que figuraria como instrumento de conciliação dos interesses particulares no intuito de dar prevalência ao bem-comum ou a “vontade geral” do povo. Como menciona Florestan Fernandes ao referir-se à dominação exercida pela burguesia brasileira sobre as maiorias:

“As representações ideais da burguesia valiam para ela própria e definiam um modo de ser que se esgotava dentro de um circuito fechado. Mais do que uma compensação e que uma consciência falsa, eram um adorno, um objeto de ostentação, um símbolo de modernidade de civilização. Quando outros grupos se puseram em condições de cobrar essa identificação simbólica, ela se desvaneceu. A burguesia mostrou as verdadeiras entranhas, reagindo de maneira predominantemente reacionária e ultraconservadora, dentro da melhor tradição do mandonismo oligárquico[18]”

Contudo, no Estado brasileiro o liberalismo não conseguiu florescer de maneira a moldar uma realidade político-institucional temperada pelo culto às liberdades privadas e públicas na qual a hegemonia dos valores da competição nos mercados econômico e político ganhassem vigor, pois em nossa realidade o liberalismo sempre se apresentou como a outra face do conservadorismo excludente que priva as maiorias do acesso à cidadania ou que funciona como mecanismo retórico, comprobatório da sintonia de nossas elites com os padrões civilizatórios de alhures. O que é confirmado por Marilena Chauí quando aborda a formação de uma consciência nacional pela burguesia brasileira detendo-se sobre as evidentes debilidades de sua estruturação em face das insuficiências do processo de industrialização brasileira e seus descompassos sobre a idéia de nacionalidade, tardiamente erigida:

“Essa permanência não é casual nem espontânea, visto que a industrialização jamais se tornou o carro-chefe da economia brasileira como economia capitalista desenvolvida e independente. Na divisão internacional do trabalho, a industrialização se deu por transferência de setores industriais internacionais para o Brasil, em decorrência do baixo custo da mão-de-obra, e o setor agrário exportador jamais perdeu força social e política. Se antes o verde-amarelismo correspondia á auto-imagem celebrativa dos dominantes, agora ele opera como compensação imaginária para a condição periférica e subordinada do país[19]”.

Daí as indeléveis marcas de uma cultura dualista impressa sobre a vida social brasileira. Uma cultura que permite a compatibilização entre a defesa abstratamente retórica da igualdade formal e o problema de sua eficácia, já que esta não pode, sob nenhuma hipótese, ultrapassar os lindes estreitos dos papéis definidos pela ordem senhorial que media as relações entre as classes dominantes e as subalternas.

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Apesar de toda uma leitura sociológica que busca refutar o sentido estratificante das relações de classe no Brasil, especialmente Gilberto Freyre, que, de um lado reconhece a violência extrema que marca os vínculos sociais na sociedade escravista colonial, de outro, constrói uma interpretação que destaca o ambiente de afetividade que prevalece nas relações sociais em nosso país, conformando assim, uma idiossincrática sociedade de classes, pretensamente avessa aos tradicionais “modelos de luta de classe” vigentes em outros ordenamentos sociais e políticos, pois estes acentuariam os antagonismos e as oposições inconciliáveis de interesse. Freyre reforça que aqui prevaleceria o enlace afetivo das diferenças, inclusive as de classe, azeitadas pela cordialidade tropical de nossa prática sincrética da religião, contraposta aos sangrentos conflitos confessionais existentes na velha Europa. Pois, segundo o autor, no Brasil:

“Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas; puxando para o individualismo e para o privatismo, os da casa-grandes. Confraternização que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético, mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce, doméstica, de relações quase de família entre os santos e os homens, que das capelas patriarcais, das casas-grandes, das igrejas sempre em festas – batizados, casamentos,”festas de bandeira” de santos, crismas, novenas – presidiu o desenvolvimento brasileiro.[20]”

Especificidade da formação da “Civilização Brasileira” que de alguma maneira explicita um processo concreto de amalgamento de etnias e classes diferentes, mas que não deve encobrir a contribuição dos conflitos na sua efetiva realização, forçando os limites estreitos da ordem política, econômica e jurídica vigentes.

Intentando assim, construir um republicanismo às avessas, ocultador das enormes disparidades sociais entre as classes, no intuito de definir miticamente uma ordem social una, inquebrantável, infensa a conflitos.Afinal, mesmo a igualdade formal, insuficiente diante das contradições materiais insanáveis presentes no universo da sociabilidade capitalista, sobretudo nos países de desenvolvimento periférico como o Brasil, pressupõe uma determinada socialização política no interior das sociedades, o que não é suscetível de ocorrer em formações sócio-políticas acerbamente desiguais, voltadas predominantemente para servir a tutela dos privilégios de uma seleta minoria de oligarcas.

Daí os empecilhos para se instituir um acatamento do princípio da legalidade, fundado no apego aos valores weberianos da impessoalidade e da razão procedimentalista, peculiares ao Estado burocrático-liberal capitalista, e que compreende a existência de subsistemas sociais, entre os quais o jurídico, relativamente autônomos perante as determinações da economia.

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4. Conclusão: Reconstrução política da democracia e da efetividade dos direitos fundamentais no Estado brasileiro.

Tais empecilhos estruturais de nossa formação sócio-política e cultural se agravavam no que se refere ao desenvolvimento de uma consciência democrática, posto que a conformação de uma “segunda natureza do homem”, uma espécie de “corpo moral e político” de ressonância rousseauniana, torna-se quase impossível diante dos enormes travejamentos à fixação de relações horizontais entre os indivíduos no interior do Estado brasileiro.

Realidade que já havia sido tratada por Sérgio Buarque de Holanda[21] uando faz referência à existência de uma “razão cordial” no Brasil, permeada por uma “ética privada”, fundada no culto ibérico ao personalismo do indivíduo, que por sua vez, encontra-se envolta por uma compreensão afetiva do mundo social e de suas determinações, que se sobrepõem a quaisquer tentativas de instauração de um espaço público efetivamente regido por valores democrático-republicanos.

Privatismo que torna o Estado praticamente impermeável à consecução de mudanças sociais e de uma compreensão do Estado assentado sobre a virtù pública – tratada classicamente por Maquiavel e pelos republicanos cívicos italianos - do Estado Democrático de Direito e a supremacia da soberania popular que resulta historicamente da constituição de uma identidade coletiva ativa da cidadania emanada do livre embate dos conflitos sociais.

Daí as formas de ordenação do poder na sociedade brasileira estarem tão antenadas a valorizações dos mecanismos de poder geradas nos diversos níveis em que se concretiza a esfera privada da sociabilidade, o que é fácil de ser detectado na observação do fenômeno do coronelismo, da relação entre senhor de engenho e escravo e pelas outras formas de relacionamento político cingidas pelos códigos privados de conduta. O que explica o papel secundário que é reservado ao espaço público, cingindo a função de duplicador simbólico dos valores privatistas, espargindo-o como padrão organizativo “universal” de toda sociedade civil brasileira. Sem isso, as elites estamentais brasileiras temem a instalação da “desordem e da anarquia” que podem vir a ser potencialmente ocasionados por qualquer tentativa de reconhecimento do protagonismo ou da autonomia política das maiorias populares.

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Daí a ênfase que os estudos políticos e sociológicos brasileiros dão à problematização dos aspectos microsociais de nosso cotidiano na procura de um estudo pormenorizado da formação de nossa mentalidade política, social e cultural patrimonialista, movida por uma “razão cordial”, apesar de circunscrita a observância dos ritos e liturgias burocráticos, e indevassável aos valores republicano-democráticos da igualdade e da liberdade. Características que se projetam na criação de uma ordem jurídica casuística, socialmente autista, e exacerbadamente procedimentalista e elitista no reconhecimento da titularidade do poder de interpretação/aplicação do ordenamento jurídico e da estrutura formal do Estado de Direito no Brasil.

A constituição de um Estado Patrimonialista que desfaz os lindes entre esfera pública e privada no Brasil, define um padrão de produção do Direito contraposto ao processo de igualação/formalização do poder no âmbito do Estado Liberal de Direito. A prevalência de formas cesaristas de exercício do poder, reveste o Estado de um profundo estranhamento com a sociedade civil, até no que tange às classes dominantes, pouco afeitas a uma legalidade aberta e dialógica na qual a titularidade do exercício do poder deve ser de todos, indistintamente.

Antes de darmos consecução a uma sociedade civil autônoma, forte, fundamos o Estado burocrático, precocemente centralizado ao nível de suas estruturas administrativo-decisórias, que busca constantemente acentuar a dimensão vertical das relações políticas e jurídicas em uma evidente manifestação da natureza antidemocrática do Estado Capitalista periférico brasileiro. Pois como havia dito Gramsci, ao referir-se às “sociedades orientais” em contraposição às “sociedades ocidentais”, “o Estado era tudo e a sociedade civil era gelatinosa”.

O que explica em grande parte as fragilidades de um processo de socialização da política no Brasil, dado o apego à via prussiana em nossa formação político-institucional, em que o poder em suas mais variadas formas de expressão seja cultural, política ou econômica sempre engendrou relações autoritárias entre governantes e povo. Favorecendo uma certa tendência ao conservantismo político-jurídico e ao conseqüente desprezo pela criação de processos políticos democráticos, mesmo sob uma feição minimalista-liberal a exemplo do ocorrido em países como a França, que desenvolveu um conceito de nação inclusivo, produzido antinomicamente pela disputa entre as diversas classes que a formavam.

No Estado brasileiro, contudo, as intercorrências autocráticas constantes presentes nas formas de exercício do poder político, transforma o debate doutrinário sobre as diferentes compreensões da teoria democrática da soberania, em meros devaneios retóricos, historicamente descompromissados com a estruturação de uma verdadeira Revolução Democrática no Brasil; já que esta requer a fratura dos mecanismos de construção de poder, minando as formas antidemocráticas de ordenação do poder que

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historicamente tem favorecido os mecanismos de subordinação internas e externas do povo, bem como processos heterônomos de decisão presentes no Estado. As brutais assimetrias sociais reverberam sobre o tecido do funcionamento das instituições representativas formais, tolhendo-as, impedindo-as de terem uma efetividade minimamente compatível com um fundamento democrático-liberal, haja visto, que o poder estratifica-se na polaridade sobrecidadãos e subcidadãos, onde o salienta-se o aspecto predominantemente autocrático, perverso de nossas relações sociais.

No máximo nossas elites estamentais admitem formas de legitimação políticas alicerçadas no apelo ao populismo, que durante muitos anos se constituiu em instrumento de concertação política entre os interesses antagônicos da classe dominante brasileira com as massas excluídas[22], apesar de todas as dificuldades de aceitação, por parte de nossas elites, de acatamento da reivindicação “dos de baixo”, sempre vistos como potencialmente subversivos e ameaçadores da ordem social, política e jurídica estabelecida. Somente com a superação do estrutural dualismo político, jurídico e institucional do Estado brasileiro, - que se opõe ao processo de modernização e secularização do Estado Nacional Capitalista percorrido em sua via clássica -, é que poderemos configurar, de fato, uma democracia no Brasil, acabando com a polarização arcaica e socialmente perversa, entre classes sociais sobreintegradas à ordem política, cultural e econômica, e classes sociais subintegradas, à margem do acesso aos requisitos mínimos da Cidadania, mesmo sob a ótica daquela ordem jurídico-política minimalista em relação a direitos propugnados pelo Estado Liberal de Direito. Como se refere Florestan Fernandes à natureza histórica do Estado no Brasil:

“Preserva estruturas e funções democráticas, mas para os que monopolizam, simultaneamente o poder econômico, o poder social e o poder político, e usam o Estado exatamente para criar e manter uma dualidade intrínseca da ordem legal e política, graças à qual o que é oligarquia e opressão para maioria submetida, é automaticamente democracia e liberdade para a minoria dominante”[23].

Processo de construção dos fundamentos de uma democracia que não deve se restringir aos lindes da representação política, especialmente quando esta se vê obliterada pela interferência abusiva do poderio econômico, particularmente, intensa e nefasta nas ordens sociais periféricas. Institutos da democracia representativa e parlamentar que se vêem asfixiados, quando não inviabilizados em sua legitimidade política em decorrência dos imensos obstáculos que se interpõem entre as mesmas e a plena absorção das demandas por direitos apresentadas pelos setores populares às instituições do Estado.

O que demonstra de maneira inequívoca o caráter notadamente procedente das previsões de Rousseau sobre a conspurcação da vontade do representado pelo representado nas democracias liberais representativas, que se tornam ainda mais verazes nos países periféricos, especialmente em relação aos mais pobres de sua população que

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se vêem excluídos de qualquer participação no processo competitivo de formação da “vontade geral” da nação contida nas sociedades capitalistas, pois como observa Florestan Fernandes:[24]

“Sem contar com um sistema de produção capitalista autônomo e universalizado tanto em bases nacionais quanto de classes, a ordem social competitiva só é eficiente e aberta para os ‘mais iguais’ (os quais oscilam, nos povos de capitalismo dependente, entre um e cinco por cento, raramente atingindo um quarto da população total). Esse pequeno setor realmente constitui toda a sociedade competitiva da Nação. Não obstante, seria incorreto dizer-se que a ordem social competitiva não exista, em tais casos, ou que ela opere como ‘um sistema fechado’. As influências sócio-dinâmicas que ela desencadeia são consideráveis, comandando todo o fluxo da reorganização da economia, da sociedade e da cultura. Além disso, ela se abre ‘para baixo’: há forte mobilidade social vertical, ascendente e descendente, com alguma “circulação das elites” e intensa absorção dos elementos em ascensão social ( nacionais ou estrangeiros) . Contudo, tudo se passa como um processo típico de socialização pelo tope,o qual promove uma constante redefinição das lealdades dos grupos em mobilidade ascendente e uma permanente acefalização das classes “baixas” e destituídas.”

Daí a necessidade da articulação dos processos indiretos e semidiretos da representação política, com o aprofundamento dos processos de participação popular direta, tornados concretos pelas diversas e variadas experiências de organização popular. Sem este horizonte político, se dará a continuidade de nosso processo político-institucional que transforma a democracia em mais um ícone de legitimação social, a partir do qual subjaz a dominação sempiterna das mesmas elites estamentais que nos governam secularmente.

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[1] MARX, Karl. A ideologia alemã. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2007, p.72.

[2] ADORNO/HORKHEIMER. Dialética doEsclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, 254 p.

[3] ADORNO/HORHHEIMER. Op. cit.,22-23.

[4] Sobre o assunto, a universalização dos direitos humanos após a Declaração ver: CANÇADO TRINDADE, Antonio. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, volume I, Porto Alegre: Sergio Fabris, 1997, 640 p.

[5] A respeito do judiciário, principalmente a estruturação antidemocrática e, por conseguinte burocratizada do poder judiciário é imprescindível a leitura da obra crítica de José de Albuquerque Rocha: Estudos sobre o Poder judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, 176 p.

[6] Um livro interessante sobre a evolução do pensamento ético e seus vínculos com o direito, a moral e a religião pode ser encontrado no livro Ética. COMPARATO, Fábio. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, 716 p.

[7] Ver: OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Edições Loyola, 1993, 290p. OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993, 94p.

[8] KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gubelkian, 2005, 507 p.

[9] Termo utilizado por Raymundo Faoro em seu clássico Os Donos do Poder, São Paulo: Globo: 2001.

[10] Neste sentido, a concepção lógico-normativista de Kelsen do Direito, ao buscar construir um fundamento auto-referente para este, deve ser compreendida como a realização plena dos pressupostos weberianos da modernidade burguesa decorrentes do “Desencantamento do Mundo”, onde os conteúdos metafísicos, éticos e utópicos da pré-modernidade, cedem lugar ao espaço reificado do mercado como espaço natural da sociabilidade.

[11] FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil, p.350.

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[12] VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e Descaminhos da Revolução Passiva à Brasileira, In: AGGIO, Alberto. Gramsci: A Vitalidade de um Pensamento.São Paulo: Unesp, 1998. pp.187-188.

[13] BORON, Atílio. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina, p. 13.

[14] FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil, p. 206. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

[15] Neves, Marcelo. A Constituição Simbólica, São Paulo: 1994 191 p.

[16] FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil, p.347.

[17] CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária, p.42.

[18] FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

[19] CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária, p. 36.

[20]FREYRE, Gilberto. Casa-Grande &Senzala, p. 355.

[21] HOLLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 22 p.

[22] WEFFORT, Francisco. O Que é Populismo? São Paulo: Paz e Terra, 1982.

[23] FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil, p.350.

[24] FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil, p.31.