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O debate em torno do fim do mundo, ou das narrativas que o criavam, tornar-se-ia uma constante que com o advento da crítica pós-moderna habita as mais diversas escolas intelectuais bem como uma multiplicidade de saberes. A filosofia, sociologia ou antropologia parecem continuamente apontar um término de um período e de maneira casuística deliberar os seus processos para a transição a um novo mundo por vir – quem sabe talvez a tão sonhada modernidade para citarmos o projeto e sonho ideológico do humanismo de Bruno Latour. É de suma importância apreendermos como esse diagnóstico social engendra as diversas práxis humanas como, no nosso caso, a prática literária, na medida em que ela também pode propor novos mundos possíveis. Assim, o trabalho literário longe de ser apenas fruto histórico de uma realidade empírica, se desprende exatamente desta para propor alternativas possíveis. De acordo com Slavoj Zizek, estamos num período de luto do fim dos tempos na qual as soluções ideológias sociais fantasmaticamente constituídas não mais estruturam os processos de individuação, sendo, portanto, necessário a reinvenção de nossos processos de subjetivação. Duas respostas para isso podem ser retomadas: fingir que nada acontece para continuarmos o mesmo, isto é, uma resposta puramente melancólica ou reconfiguramos nossa ordem simbólica, reesignificando o discurso, como propõe Judith Butler (2006). Dentro desse panorama, a literatura nos oferecerá justamente essas alternativas, a da narrativa melancólica na qual a sua estrutura é reificada e nenhum ato real é passível de

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O debate em torno do fim do mundo, ou das narrativas que o criavam, tornar-se-

ia uma constante que com o advento da crítica pós-moderna habita as mais diversas

escolas intelectuais bem como uma multiplicidade de saberes. A filosofia, sociologia ou

antropologia parecem continuamente apontar um término de um período e de maneira

casuística deliberar os seus processos para a transição a um novo mundo por vir – quem

sabe talvez a tão sonhada modernidade para citarmos o projeto e sonho ideológico do

humanismo de Bruno Latour. É de suma importância apreendermos como esse

diagnóstico social engendra as diversas práxis humanas como, no nosso caso, a prática

literária, na medida em que ela também pode propor novos mundos possíveis. Assim, o

trabalho literário longe de ser apenas fruto histórico de uma realidade empírica, se

desprende exatamente desta para propor alternativas possíveis. De acordo com Slavoj

Zizek, estamos num período de luto do fim dos tempos na qual as soluções ideológias

sociais fantasmaticamente constituídas não mais estruturam os processos de

individuação, sendo, portanto, necessário a reinvenção de nossos processos de

subjetivação. Duas respostas para isso podem ser retomadas: fingir que nada acontece

para continuarmos o mesmo, isto é, uma resposta puramente melancólica ou

reconfiguramos nossa ordem simbólica, reesignificando o discurso, como propõe Judith

Butler (2006). Dentro desse panorama, a literatura nos oferecerá justamente essas

alternativas, a da narrativa melancólica na qual a sua estrutura é reificada e nenhum ato

real é passível de transformação da mesma (bastando a resignação em torno do fim da

comunidade, da família ou do “mundo interior” de determinado personagem) ou

antiteticamente nas propostas de saídas – estruturais e conteudísticas – inventivas (seja

por confronto com a alteridade ou na própria perda da referência de si).

É exatamente esta perspectiva que apreendemos a leitura das obras Por

enquanto... Outra estação (2014), Obsceno: amor e perda (2002) e Dez (quase) amores

(2009). Consideramos esses projetos literários inequivocamente endereçados aos

mesmos problemas, nos ensinando sobre o espírito de nosso tempo, tal seja: a conexão

entre a narrativa e leitor a partir de uma espécie de afeto melancólico. Aqui, a referência

a feições estruturalistas e pós-estruturalistas bem como da teoria Queer seriam em certa

medida elucidadoras. Esses panoramas teóricos-metodológicos podem muito bem

elucidar os aspectos estéticos e narrativos dos romances objetivando demarcar os

aspectos diferenciais, os distintos dialogismos que perpassam os textos, delimitando

seus lugares, suas interfaces e em que aspectos nos ensinam sobre as diversas

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propriedades entre estrutura e contexto que subjazem os discursos que constroem seus

objetos narrativos. Nossa hipótese é que existe uma relação assimétrica, isto é, de

inversão entre as composições e posições ocupadas pelas personagens que podem ser

apreendidas através da aplicação do sistema de referência apresentada e desenvolvida

por Lévi-Strauss em o Cru e o Cozido (2012), consistindo num conjunto de relações,

esquemas e regras que são em seu começo tomadas como incompreensíveis, ou até

mesmo antitéticas, mas que no decorrer do conjunto da narrativa que compõem os

termos (personagens) e suas relações (as funções que lhe são atribuídas no contexto da

trama) sua significância é estabelecida numa temporalidade, logo é notório que as

mesmas estão enlaçadas e, por conseguinte, seus respectivos personagens, numa

constante dialética permutativa entre amor, desejo, ódio e gozo. Nossa referência a esses

termos deve ser advertida quanto aos seus distintos usos significantes, na medida em

que, suas significações devem ser buscadas nas diferentes redes signícas em que cada

texto remete. Nesse sentido, optaremos por considerar Obsceno: amor e perda (2002)

como condensador de uma tradição Melancólica da vida subjetiva, Dez (quase) amores

(2009) como seu inverso cínico e Por enquanto... Outra estação (2014) a saída

desconstrucionista aos impasses narrativos, estruturais e subjetivos encontrados em seus

parceiros, tal seja a dimensão depressiva entre um passado não superado ou a do

otimismo metonímico desinteressado. Queremos afirmar que para Pádua o verdadeiro

impasse se mostra na própria linguagem enquanto falta de sentido e na temporalidade

vazia que aponta. Entretanto, nesse cenário que em um primeiro momento parece

desencantador, diversas passagens sejam elas verossímeis ou inverossímeis que rodeiam

os demais personagens protagonizam mudanças reais na narrativa. Seja pela descoberta

de segredos passados, a uma tensão erótica subsequente ou a morte repentina. Ao

contrário de Obsceno: amor e perda (2002) não existe um traço de depressão que

perpassa esse texto. Aqui, na narrativa Marilene Felinto, não estamos de forma alguma

diante de simples um romance que discorre sobre o sentimento da perda do objeto

amoroso, mas em presença de uma metanarrativa psicanalítica prosificada, ou seja, a

transformação em prosa do texto freudiano Luto e Melancolia (1915). Observem como

o título do romance está no mesmo paradigma linguístico ou metonimicamente

articulados com o de Freud. As relações são tão estruturais que por mais que a autora

partilhe a sua obra em dois capítulos, Abandono e posteriormente Obsceno, contada

em primeira pessoa pela protagonista Eu (definirmos a tática narrativa de monólogo

interior), não se consegue delimitar aonde começa um e termina outro, qual deles é

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causa e qual deles é efeito, compartilhando as próprias dificuldades teóricas em

definirmos o que é luto e melancolia em psicanálise (problema teórico ou problema

humano, eis a questão!?). Eu chega mesmo a retumbar seu amor não pelo objeto em si,

mas pela própria perda e sua impossibilidade de superá-la.

Já em Dez (quase) amores (2009) temos não a subversão, mas uma inversão

homeopática de Obsceno: amor e perda (2002). A demonstração pode ser explicada ao

leitor aplicando o quadrado semiótico de Greimas:

Amor (S1) --------------------------- Perda (S2)

[obsceno] [abandono]

Quase Amor (-S1) -------------------- Quase perda (-S2)

Eu e Maria Ana são personagens simetricamente opostas e as narrativas

obedecem a essa racionalidade de inversão. Não mais dois capítulos distintamente

nomeados, mas uma serialização (quase amor 1, 2, 3 e assim por diante) que se

coordena com a série de narrativas no qual a repetição de desencontros amorosos é

encenada num tom descontraído, sem grandes conflitos ou querelas existenciais. Tal

como Eu que se encontra em estado suspensivo e vegetativo, desconsolada diante da

perda, Maria Ana, de forma paralela, parece sofrer do mesmo estado de anomia, mas

sem sabe-lo, os constantes relacionamentos não trazem mudança alguma a personagem.

Fernando Pessoa em Livro do Desassossego (1993) demonstra perfeitamente a inversão

estrutural que as duas ocupam em suas respectivas narrativas: “sofri sempre mais com a

consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência”.

Poderíamos ainda recorrer a autores já ultrapassados no campo da filosofia e sociologia,

mas que nos ajudariam a tecer algumas considerações sobre as relações entre forma e

conteúdo. Primeiramente Lyotard em A condição pós-moderna (1970) ilustra a

decadência das narrativas de cunho universalistas, assim, as amplas epopeias que

contariam as grandes histórias de amor, os encontros arrebatadores que transformariam

vidas e civilizações seriam substituídas por micronarrativas com seus pequenos

encontros, alguns marcados por uma estrutura erotomaníaca, sem promessa de final

feliz ou irradiante, sem sinalizar para longas e sinuosas fábulas e seus percalços,

enfatizando rápidas relações que não formam uma conclusão necessária e edificante,

destarte, é assim que termina os dois romances supracitados. O correlato desse

diagnóstico para a comédia é Bauman no qual a vida amorosa adquire uma

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temporalidade demarcada por momentos fugazes, um encurtamento da narrativa e sua

conseguinte fragmentação.

Voltemos à Por enquanto... Outra estação (2014) e façamos a seguinte

pergunta: o que destoa quando em comparação com os demais? Reside exatamente na

estratégia no qual transformações na forma narrativa (do narrador onipresente ao tom

intimista confessional) no enredo estão articuladas as rupturas pelos quais os

personagens sofrem, concomitantemente proporcionadas por trocas metafóricas

posicionais e não na tática reificadas e imutáveis. Tempo e narrativa permanecem

descentrados na qual a exploração vertical dos personagens em seus pensamentos e

desejos são radiografados. Não há um personagem principal, estamos convidados nesse

espaço vazio a tomar parte, a recortar um ponto de vista, uma perspectiva, aquilo que o

crítico de arte Hal Foster (2014) chama de paralaxe, isto é, o objeto muda de acordo

com a posição do observador, no nosso caso do leitor, o que por si só já elenca a

diferença abismal entre a forma narrativa de Obsceno: amor e perda (2002) e Dez

(quase) amores (2009) que partilham a centralidade determinista da realidade

compartilhada por personagens protagonistas. Dalton, o “herói” de Por enquanto...

Outra estação (2014), é um personagem que possui uma arquiestrutura que a cada vez

que o encontramos nos deparamos com a sua culpa e solidão inerentes, mas que a cada

trecho narrativo é passível de uma mutação. Encarregado de tomar conta de seu velho

pai já em estado de saúde deplorável, remetendo-nos ao que Giorgio Agamben em O

que resta de Auschwitz (2008) chamou de Muçulmano, ou seja, aqueles sujeitos que são

incapazes de provocar uma identificação por parte da alteridade justamente por estar

despojado das características que teologicamente (e historicamente) definem um

humano: autonomia, autenticidade e identidade, colocando-o numa vida cotidiana e

rotineira nos quais os únicos rituais são os cuidados prestados a sua família e assistir

filmes que lhe agradam, ele não possui grandes amigos ou grandes romances, o que fica

evidenciado quando Pádua descreve a limpeza das fezes produzidas pelo pai. Aqui

devemos ponderar sobre o bom uso dos excrementos no romance quando comparados

com Ulysses de James Joyce: no último a elevação da escatologia a dimensão do

sublime, no primeiro, a degradação da vida em atos compulsivos.

Diante mão justifica-se o limite que a interpretação do texto colide e exige, na

medida em que tomaremos a posição de Dalton e o seu laço com o velho. Temos o

conflituoso laço entre filho e pai que desenrola-se em segredos esquecidos e denegados.

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Um mosaico surrealista de anagramas significantes compõe seu início trazendo uma

espécie de não lugar no qual o leitor deverá construir para significar sua experiência. É

na sutileza do desvelamento da verdade condensada nos desejos (dimensão praticamente

escandida nos outros romances) da figura paterna que circulam as descontinuidades

estruturais do texto que marcam a transformação por que passa Dalton, de uma reclusão

a experiência de indeterminação no qual sua própria identidade é transmutada (refiro-

me aqui ao encontro com o sexo – sou homem ou mulher, com a finitude – estou vivo

ou morto, com a vivência em outra cultura). Dentre os três romances esse é o único no

qual circula o erotismo, pois é aqui que a construção fantasmática se articula e se

atualiza com a sexualidade, é no processo de morte/perda/luto do pai que Dalton

finalmente reage, assumindo sua posição na dialética e no uso dos prazeres. Os

Personagens de Padua retratam um desenraizamento (tanto faz Paris ou Campina

Grande), desabrigados da humanidade. Sem casa, perdidos em um vazio sem sentido.

Cada jogo e prosa reforçam e aprofundam esse diagnóstico sombrio da condição do ser

humano. Haveria ainda vários pontos a serem comentados como a profunda influência

joyceana do catolicismo como ética transgressora por excelência, a inspiração do

fantasma do pai de Hamlet na sombra que acompanha Dalton, a redução becketiana do

personagem a uma parte...

Por fim, resta-nos pontuar como os diversos romances exploram os processos

melancólicos que envolvem a perda (seria um sintoma condescendente da literatura

brasileira?), oferecendo diversas formas de solução narrativa, seja reafirmando o

posicionamento centralizador da cena ou apostando em sua decomposição e

transformação. Se adotamos a postura de Fredric Jameson (1981) no qual a literatura é

o articulador de contradições sociais fruto de seu período histórico ela também esboça

possíveis respostas. Se a melancolia é o tema universal que cortam as obras, Por

enquanto... Outra estação (2014) é a única que apresenta uma saída, basta o leitor

acreditar ou não.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2007.

FELINTO, Marilene. Obsceno e Abandono: Amor e perda. Rio de Janeiro: Record, 2002.

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FREUD, Sigmund. Luto e melancolia, 1917 [1915]. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

JAMESON, Fredric. “A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico”. In: O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Editora Ática, 1992.

JOYCE, James. Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

LÈVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo: CosacNaify, 2004.

LYOTARD, Jean Françoise. A condição pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

PADUA, Antonio de. Por enquanto... Outra estação. São Paulo: Scortecci, 2014.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Lisboa: Ática: 1982.

TAJES, Claudia. Dez (quase) amores. Rio de Janeiro: LPM, 2009.