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Seminário: “Francisco de Oliveira: a tarefa da crítica” Mesa: os territórios, a cidade e as formas de habitação Universidade de São Paulo, 12/06/2003 Trabalho, cidade e os elos perdidos da política Vera da Silva Telles 2003 Publicado in: Cibele Saliba Rizek e Wagner Romão (orgs.). Francisco de Oliveira, a tarefa a crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006 A re-leitura dos escritos de Chico de Oliveira, é preciso desde logo dizer e reconhecer, provoca um forte impacto, na verdade um fortíssimo impacto sobretudo quando vistos à luz das nossas complicações atuais. De partida, o reencontro com as questões estruturantes que conformaram a história desse país, exatamente essa dimensão que nos tempos que correm parecem ter se esvanecido, para não dizer que se volatilizaram, sumiram, em grande parte dos debates(?) que correm em nossas searas. E junto com isso, o sentido da crítica – e a tarefa da crítica – como experiência de pensamento que busca, em diálogo com os dilemas contemporâneos, perscrutar as linhas de força contidas no real e, a partir daí, a natureza dos bloqueios e impedimentos históricos que armam o enigma a ser decifrado pela inteligência crítica e desatado pela política. Mas é isso que nos dá uma medida, uma medida em tudo inquietante, do esfacelamento do pensamento critico nesses últimos tempos. Não se trata apenas de constatar a indigência dos debates recentes. Isso seria trivial, além de correr o risco de injustiça ou julgamento excessivo com uns e outros. O problema é mais de fundo. Na voragem das transformações que se superpõem em velocidade cada vez maior, o passado parece se esvanecer como

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Seminário: “Francisco de Oliveira: a tarefa da crítica” Mesa: os territórios, a cidade e as formas de habitação Universidade de São Paulo, 12/06/2003

Trabalho, cidade e os elos perdidos da política

Vera da Silva Telles 2003

Publicado in: Cibele Saliba Rizek e Wagner Romão (orgs.). Francisco de Oliveira, a tarefa

a crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006

A re-leitura dos escritos de Chico de Oliveira, é preciso desde logo dizer e reconhecer,

provoca um forte impacto, na verdade um fortíssimo impacto sobretudo quando vistos à luz

das nossas complicações atuais. De partida, o reencontro com as questões estruturantes que

conformaram a história desse país, exatamente essa dimensão que nos tempos que correm

parecem ter se esvanecido, para não dizer que se volatilizaram, sumiram, em grande parte

dos debates(?) que correm em nossas searas. E junto com isso, o sentido da crítica – e a

tarefa da crítica – como experiência de pensamento que busca, em diálogo com os dilemas

contemporâneos, perscrutar as linhas de força contidas no real e, a partir daí, a natureza dos

bloqueios e impedimentos históricos que armam o enigma a ser decifrado pela inteligência

crítica e desatado pela política.

Mas é isso que nos dá uma medida, uma medida em tudo inquietante, do esfacelamento do

pensamento critico nesses últimos tempos. Não se trata apenas de constatar a indigência dos

debates recentes. Isso seria trivial, além de correr o risco de injustiça ou julgamento

excessivo com uns e outros. O problema é mais de fundo. Na voragem das transformações

que se superpõem em velocidade cada vez maior, o passado parece se esvanecer como

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referência trabalhada na experiência social, ao mesmo tempo em que o futuro torna-se

indiscernível e o horizonte dos possíveis devorado pela imprevisibilidade e aleatoriedade de

eventos e circunstâncias que parecem operar o tempo real do mercado e seus imperativos

(ou idiossincrasias). É como se vivêssemos um presente inteiramente capturado pelas

urgências do momento, e não nos restasse muito mais do que a sua gestão cotidiana, sem

conseguir figurar as linhas de fuga de futuros possíveis. O debate sobre a cidade e o urbano,

tema proposto para esta mesa, é de uma gritante evidência. Durante décadas, a questão do

urbano se apresentou como um prisma pelo qual se discutia o país e seus descaminhos, em

torno dele organizava-se um jogo de referências que dava sentido às polêmicas, embates e

debates sobre a história, os percursos e destinações da modernização brasileira. Hoje,

parece que se perdeu de vez as conexões que articulam o econômico, o político, o urbano e

o social. A economia é coisa que parece transitar definitivamente em outra galáxia de

referências, a política passa a se reduzir ao problema da gestão das urgências de um

presente imediato e o cidade – ou a “questão urbana” para lembrar uma noção que fez sua

época nos “tempos de antigamente”, parece se confinar em um “social” desconectado do

político e do econômico. Quanto ao mais, face à erosão de referências futuras e em nome

das urgências do presente, o campo fica aberto para um pragmatismo “bem fundado” que se

apóia na pesquisa acadêmica para propor programas sociais aos excluídos do mercado de

trabalho e fica inteiramente cativo do diagrama liberal nas formas possíveis de gestão da

pobreza.

Daí a importância da voz dissonante de Chico nos debates recentes. Introduz uma cunha

que rompe essa espécie de círculo de giz do presente imediato, tratando de decifrar os

sentidos da atualidade e buscar as conexões (os elos perdidos, para jogar aqui com o título

de um de seus livros) que permitem atualizar a tarefa da crítica e recolocar o enigma da

política. Se suas proposições, hoje, aliás como sempre, operam como um petardo critico

que provoca, que incomoda a uns e outros, que suscita, abre e reabre a polêmica, é porque

jogam ao debate a formulação de problemas dos quais não se pode furtar. Chico desenvolve

e desdobra no limite as suas próprias questões e é nisso que, sem complacência e sem

desconto, todos os descompassos, irracionalidades, violências e iniqüidades que

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acompanham nossa história são figurados em uma inscrição polêmica que termina por

pautar o debate.

Mas é na trama rigorosa dos argumentos que encontramos o sentido da crítica, numa

elaboração da experiência social que busca a construção dos conceitos que traçam o plano

em que os problemas se colocam. A recente reedição de O Elo Perdido – classes e

identidade de classe no Brasil, publicado originalmente em 1987, pode ser tomado aqui

como ponto de partida, até porque o prefácio do autor a esta segunda edição permite, aliás

como ele próprio se adianta em dizer, “uma avaliação da continuidade da pertinência da

abordagem realizada, na metade dos anos 80”. O que está aí em jogo não é tão

simplesmente uma revisão de algo que foi escrito em outro momento histórico. É na

diferença dos tempos que toda a questão ganha sentido (e um novo sentido) e nos dá a

medida das complicações e desafios atuais. E o fio que articula, em negativo, os dois

momentos é precisamente a questão que está no centro do livro de 1987, a questão da

constituição das classes e dos sujeitos políticos. Não é suficiente, diz Chico, “reconhecer na

produção material a produção das classes. Faz-se necessário, além disso, um processo de

medições que, fundado sobre o primeiro, constrói o discurso simbólico da re-presentação

das classes em suas relações e serve de pressuposto à reprodução” (p.19). É nisso em que

se aloja o problema da política: o movimento de representação, de reconhecimento, de

“consciências recíprocas de classe”, é o que constitui propriamente o espaço da política.

Mas para isso é necessária a constituição de um equivalente geral que é colocado em

operação pelo contrato mercantil, que aciona a ficção da igualdade na trama das relações,

permite a construção do discurso identificador de classe e a definição, em disputa, da

medida dessa mesma relação. N’O Elo Perdido, Chico discutia as circunstâncias da

economia regional, tomando como foco a formação das classes sociais urbanas na Bahia

moderna. O “elo perdido” dizia então respeito às mediações da política que não chegavam a

se completar. Questão central na “Bahia de todos os pobres”, mas sobretudo questão central

das modernas realidades urbanas do país. No “elo perdido” estava então cifrada toda uma

história, longa história, de recusa da alteridade de classe e privação da palavra dos “de

baixo”, a chave das desigualdades abissais da sociedade brasileira e de toda a violência que

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acompanha nossa história. Uma história que já havia e continua sendo repassada de ponta a

ponta nas muitas linhas escritas sobre os dispositivos de tutela, controle e repressão

contidos nas formas de regulação das relações trabalho-capital (aqui, todas as mazelas da

legislação trabalhista e da estrutura sindical brasileira), para não dizer a reiteração da

violência aberta, direta e sem disfarces. Mas aqui, no Elo Perdido, a novidade vinha de um

outro lugar. Chico tematizava o que sempre figurou como a sombra da modernização

brasileira, fazia girar o caleidoscópio das peças aparentemente desconjuntadas da realidade

nacional e projetava o assim chamado mercado informal no centro mesmo do enigma

político a ser deslindado. Chico dava um outro lance no fundo deslocamento de referências

que já havia provocado quinze anos antes, na Crítica à razão dualista. Em 1972, anos de

chumbo da ditadura militar, a inteligência crítica do país estava investida da exigência de se

rever e revisitar explicações e interpretações sobre as inflexões ou rupturas da história

recente, o ponto de clivagem representado pelo golpe militar de 1964 e elucidar os

percursos e destinações da economia e sociedade brasileiras. A inscrição polêmica de Chico

nesse debate foi tão radical quanto decisiva para os rumos que o debate tomou nos anos

seguintes. Ao fazer a “crítica à razão dualista”, ao mostrar a simbiose do “arcaico” e

“moderno”, do formal e do informal e modo como essas relações eram tecidas, postas e

repostas na lógica mesma da acumulação capitalista, Chico definia um outro plano de

referência que projetava as figuras do “atraso” – a urbanização caótica, o terciário inchado,

a economia de subsistência e o cada vez mais amplificado universo do trabalho informal, a

pobreza que se espalhava por todos os lados - no centro mesmo da moderna economia

urbana. E no centro de um conflito que classe cuja radicalidade o levava a dizer, nas

últimas linhas do ensaio, que o futuro “está marcado pelos signos opostos do apartheid ou

da revolução social”. Em 1987 a questão política embutida na tragédia social brasileira será

desdobrada e aí vai-se perfilando um outro feixe de referências. Em sintonia fina com os

acontecimentos que atravessavam o país, estava em foco a construção democrática dos anos

80. E no seu centro, o problema ou o enigma – o elo perdido – da representação de classe e

do próprio jogo, ou melhor: a possibilidade da política.

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É sob esse prisma que o problema do trabalho informal era então colocado. No caso dos

trabalhadores mergulhado do mercado informal, o contrato mercantil não opera, suas vidas

parecem regidas pelo azar e aleatoriedade das circunstâncias, o trabalho abstrato – a

expressão da igualdade formal do contrato mercantil – não se realiza. Não se trata de atraso

e a questão tampouco se reduz ao problema social da pobreza urbana. É um mundo de

mediações que não chega a se estabelecer. Classes inacabadas, disse Chico em outro texto,

um texto curto mais igualmente luminoso sob o sugestivo título Anos 70: as hostes

errantes (1981). Pela convergência de processos e circunstâncias históricas que Chico

trata de deslindar, opera-se o bloqueio das mediações que permitiriam sua constituição

como classe e representação. A questão será retomada em outros textos e não é o caso aqui

de reconstituir todo este percurso. Por ora, importa tão somente chamar a atenção para as

conexões que vão se estabelecendo entre trabalho, classe, representação e os espaços da

política. Conexões que não se completam. Daí um espaço político que não chega a se

constituir - “um modo de representação que não identifica os interesses convergentes

postos pelo movimento da economia e da sociedade”. E daí os riscos de um descolamento

da institucionalidade que apenas repõe e reforça a violência da dominação (p.99). Nas

últimas linhas do livro, Chico então dizia: “todo o problema da política contemporânea

reside em ultrapassar as paredes da representação”(p.101). E esta era a urgência que os

tempos então colocavam. Urgência política e exigência teórica, a que Chico responde ao

desdobrar a questão, ao desenvolver suas implicações nas teses que irá apresentar no O

surgimento do antivalor (1988). Uma tese que era também uma aposta política que, na

virada da década, se alimentava das formas que o conflito social ganhava na cena política

do país, algo como uma experimentação histórica que abria a possibilidade de uma nova

sociabilidade construída em arenas públicas de representação e negociação, capazes de

publicizar conflitos privados, universalizar reivindicações, forçar o reconhecimento

institucional das alteridades e constituir atores coletivos que não poderiam mais deixar de

ser levados em conta na cena política. É essa a aposta lançada no texto em que Chico

discute o Acordo das Montadoras (1993) no ABC paulista.

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Bem sabemos que a aposta não vingou, foi vencida. A revolução social de que falava Chico

em 1972 não chegou, sua figuração atualizada na constituição de uma esfera pública

democrática capaz de trazer para o campo de uma negociação - pública e publicizada - o

centro nevrálgico em que se cristaliza a luta de classe, o fundo público no qual se arbitra os

usos e destinações da riqueza social, essa então foi transfigurada no seu avesso e a

possibilidade mesma de constituição de sujeitos políticos foi erodida em suas bases. Esse o

abalo sísmico provocado pela devastação neoliberal em tempos de globalização,

financeirização da economia e revolução tecnológica.

No artigo A política em uma era de indeterminação (2001), Chico é contundente ao tirar

as conseqüências da situação: “a sociabilidade plasmada à época do trabalho como

categoria central, do trabalho fixo, previsível e a longo prazo, base para a produção

fordista e do consenso welfarista, dançou”. [...] “a relação entre classe, interesse e

representação foi para o espaço; a possibilidade da formação de consensos tornou-se uma

quimera mas num sentido inteiramente dramático, isto é não é o anúncio do dissenso, e

não gera política”. As conseqüências para a política não poderiam ser mais devastadoras.

Desaparece a alteridade, o movimento dos atores perde qualquer previsibilidade, tudo

transita para além de qualquer medida – esta aliás é o que deixou de existir – e a política se

esvanece na mais radical indeterminação. É verdade, reconhece Chico, que tudo isso

acontece ao mesmo tempo em que se dá um notável aumento do assim chamado

associativismo civil. Porém, o atual “deslocamento do trabalho e das relações de classe

esvazia essa ‘sociedade civil’ de um campo de conflito capaz de estruturar o jogo dos

atores. As relações são difusas e indeterminadas, as conexões de sentido são erráticas e o

conflito social perde sua potência política, ao mesmo tempo em que essa mesma

indeterminação e volatilização dos espaços da política, vão abrindo espaço para

intolerâncias, violências e a barbárie de todos os dias. O fato é que mesmo aí - ou sobretudo

aí talvez poderíamos dizer - é que se mostra uma das facetas (uma delas) as mais perversas

do cenário atual, no mínimo porque sugere as derivas do que já foi, em décadas anteriores,

movimentos e experiências portadores de dimensões universalizantes. Agora, tudo isso

parece encapsulado nos arranjos locais e localizados, quando não capturados nas novas

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formas de gestão da pobreza, transformando-se, nesse passo, mesmo que ao revés das boas

intenções, em agentes e operadores ativos do outro lado do desmanche atual pelas vias do

esfacelamento da política social, agora pulverizada em “microcentros de organização

social”,“onguização da política social”, levando ainda mais longe a refilantropização da

pobreza.

É “a administração da exceção” diz Chico n’O Estado e a Exceção: Ou o Estado de

Exceção? (2003). Juntando pontos e linhas, o que vai se enunciando no cenário desenhado

por Chico, é o estilhaçamento disso que vem sendo celebrado como “sociedade civil

organizada”, sob o impacto desse duplo desmanche, por cima e por baixo, a rigor

modulações de um mesmo movimento pelo qual a autonomização dos mercados em tempos

de financeirização da economia e “revolução molecular-digital” desfaz as relações

mercantis do contrato ao mesmo tempo em que retira autonomia do Estado – “o Estado se

funcionaliza como máquina de arrecadação para tornar o excedente disponível para o

capital”. Quanto às políticas sociais, desconectadas (e impotentes para tanto) de um projeto

de mudar a distribuição de renda, “transformam-se em anti-políticas de funcionalização da

pobreza”. O que antes era percebido como exceção, singularidade de um movimento

histórico que, esperava-se, haveria de alcançar algum patamar de normalidade, transforma-

se em regra – as desigualdades abissais, a pobreza urbana, o desemprego, o “trabalho sem

forma” das multidões de ambulantes que ocupam os espaços da cidade, bem tudo isso está

aí para ficar. E “as cidades são os lugares por excelência dessas exceções, e o conjunto

delas é a administração da exceção”.

Esse texto, uma prévia do que viria a ser o Ornitorrinco (esse bicho esquisito e

desconjuntado já comparece aí como figura do estado atual do país), apresentado na

conferência de abertura de um fórum acadêmico de pesquisa urbana, está em diálogo tenso

com um outro, publicado vinte anos antes e que também marcou, pautou, grande parte dos

debates que corriam na época e em particular por entre os estudos urbanos que então

vinham se multiplicando. Em 1983, n’ O Estado e o Urbano, Chico traçava as linhas de

uma diagrama de relações que faziam da cidade o cenário de um conflito cujo epicentro era

o próprio Estado, ou, para lembrar o título de outro artigo publicado alguns anos antes, um

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diagrama de relações que articulava “acumulação monopolista, Estado e urbanização”

(1977) e definia a “nova qualidade do conflito de classes”. A cidade era o seu cenário. E o

urbano, o solo tecido no ponto de inflexão de uma intervenção estatal que redefinia as

relações entre campo e cidade, que regulamentava as relações entre capital e trabalho e

articulava produção industrial e a acumulação ampliada do capital. Nesse agenciamento das

relações entre economia, cidade e espaço nacional, afirmava-se o lugar do Estado na

articulação geral da economia - o Estado “definia-se como potência de acumulação do

capital privado”, “lugar onde se arbitra a distribuição do excedente social”(p.53). A face

política disso foi o desmantelamento do poder politico das classes trabalhadoras no pós-64

e a reiterada anulação das vozes das classes populares. Nas cidades, todo esse processo

ganhava forma, estava corporificado nos seus espaços, pulsava na nova estrutura de classes

que aí se materializava e explodia na pobreza urbana, na massa crescente de trabalhadores

pobres que se viraram por sua própria conta e risco nas periferias da cidade e nas “mil

faces” do “problema urbano”. Agora, vinte anos depois, o que temos é a desmontagem do

diagrama de referências que conferia sentido, dava ressonância e qualificava a potência

política das “mil faces” do conflito urbano. Nesses anos muita coisa aconteceu e muita

coisa mudou nesse país. Temos a democracia, as instituições democráticas se consolidaram

e o jogo politico segue, mal ou bem, com tropeços e complicações, as regras da

normalidade democrática. Mas a exceção está comendo tudo isso por baixo e por cima. As

conexões que articulavam o “Estado e o urbano”, estas foram cortadas ou viradas no seu

avesso, e a política deslizou para práticas de gestão do que está aí para ficar. É a “exceção

do Estado ou o Estado como exceção”, diz Chico: as chamadas políticas de emprego e

renda “são a exceção do desemprego; elas aprofundam o desemprego ou o mantém com o

propósito de combatê-lo”; as políticas de mutirões são “a cidade como exceção, é a

desmercantilização da força de trabalho que prepara o enorme exército de

‘informal’...para as portas dos estádios de futebol, ou os arredores dos formosos teatros,

ou as bancárias e banqueiras ruas dos centros de nossas cidades”. E por aí vai ...

O exercício da crítica não poderia aí ser mais contundente e impiedoso (eis o petardo). Mas

pulsação polêmica e o movimento da crítica ganham todo o sentido quando se refaz o seu

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percurso, não para atestar a coerência (o que nem seria necessário, por suposto), mas para

fazer a marcação dos tempos e da diferença dos tempos. Vale então, aqui, reatar o ponto

deixando solto linhas atrás – o “elo perdido” das mediações políticas e as barreiras da não-

representação. Era o problema que Chico colocava em 1987. Mas o elo perdido talvez não

exista mais, diz Chico no prefácio da segunda edição do livro, agora, quinze anos depois.

Não se trata mais das incompletudes do contrato mercantil que não se generaliza como

regra da sociabilidade de classe. Trata-se agora de sua implosão e, ao que parece definitiva:

o extraordinário aumento da produtividade do trabalho, potenciada nos circuitos

globalizados dos capitais, “está na origem da banalização da utilização do capital” – “o

capital já não necessita dos antigos constrangimentos que foram a forma técnica do

processo de trabalho e que ao mesmo tempo, apropriados pelos trabalhadores, se

constituíram em suas identidades e, pois, em suas armas para reivindicar, nos termos de

Rancière, a parte dos que não tem – ou que não tinham – parte” (p.12). Não se trata tão

somente da reposição e ampliação do mercado informal. É pelo outro lado que a questão se

determina, pois o que hoje é chamado de flexibilização do contrato de trabalho pode ser

entendido como uma informalização que penetra todas as ocupações e redefine, desloca,

por inteiro as relações de classe. É o trabalho sem forma que se expande no núcleo mesmo

do que antes era chamado “mercado organizado”. O resultado é que as fronteiras do formal

e do informal foram detonadas. Duplo deslocamento cujas conseqüências trata-se de

aquilatar. De um lado, é um deslocamento que representa uma inflexão de fundo em uma

discussão e um modo de colocar em debate e em perspectiva as destinações da sociedade

brasileira que, desde os anos 70 e prolongando-se nos 80, tinha exatamente na clivagem

formal-informal um de seus eixos. Como diz o autor, “a hipótese da clivagem entre o

formal e o informal foi central nas discussões dos anos 1970 e ainda informava as

démarches na década de 1980. Alto desemprego e perda da capacidade de representar,

que problemas criam para a formação da classe e para a política?”(p.12).

Porém, de outro lado, é o próprio problema do informal - o “elo perdido” das mediações

políticas, a representação e a constituição do campo da política - que dá o parâmetro para

aquilatar o sentido da atual mutação do trabalho. Diferente da repressão de outros tempos e

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para além da privação da fala que sempre marcou a história brasileira, agora essa espécie de

não-lugar do trabalho e um valor para além da medida, significam a impossibilidade da

própria constituição das classes como identidade e representação. A questão, apenas

enunciada neste prefácio, foi desenvolvida em outros textos e tem a sua formulação a mais

acabada no Ornitorrinco (2003) que acompanha a reedição da Crítica à Razão Dualista.

Na marcação dos tempos e da diferença dos tempos, os 30 anos que separam os dois textos,

a questão é aí colocada em outro patamar: o que se desfaz e desaparece do horizonte

histórico da sociedade brasileira, é a própria noção (e a aposta na sua possibilidade) de

superação, noção fundante dos debates que percorreram parte considerável desses anos. É

esse o sentido polêmico da questão que Chico apresenta ao usar a imagem do Ornitorrinco

para descrever o país: um monstrengo feito de pedaços desconjuntados, que dão a cifra de

diferenças, defasagens, descompassos, desigualdades que, não sendo mais atravessados por

uma virtualidade de futuro, não mais articulados internamente por uma “dialética dos

contrários”, ficam onde estão, um neo-atraso como diz Roberto Schwarz no Prefácio, fatos

irrevogáveis de nossa realidade, sem solução e sem superação possível no cenário do

capitalismo globalizado e de uma revolução tecnológica que não só aprofunda o abismo

entre os países mas corta as pontes possíveis de sua superação.

**

Mas então com ficamos? O petardo critico agora nos interpela a todos. A noção de

superação sempre foi operante no exercício da crítica e também no pensamento e prática

políticas, no esforço em discernir a potência histórica contida no estado de coisas e a

possibilidade de trazer as maiorias, desde sempre relegadas às fímbrias da modernização

capitalista, ao universo de uma cidadania ampliada, em grande parte associada ao trabalho

assalariado e aos direitos a eles associados. Já não é de agora que sabemos de todas as

ambivalências que existem quando esse patamar esperado de modernidade é projetado, num

perverso jogo de espelhamentos, da “norma civilizada” associada ao Primeiro Mundo. E

não é de agora que sabemos que o espelho foi quebrado, e esse é um dos lados do

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desmanche que Roberto Schwarz lançou ao debate em um artigo de 19931: como pensar o

país quando a norma civilizada na qual, desde sempre, o país se espelhou, apenas nos

promete, nesses tempos de capitalismo globalizado, uma modernização que não cria o

emprego e a cidadania prometidos, mas que engendra o seu avesso na lógica devastadora de

um mercado que desqualifica – e descarta – povos e populações que não têm como se

adaptar à velocidade das mudanças e às atuais exigências da competitividade econômica.

Como pensar o país se “o aspecto da modernização que nos coube, assim como a outros,

for o desmanche ora em curso, fora e dentro de nós?”.

Mas Chico, agora, dá um novo lance na questão proposta por Schwarz. Que se diga, desde

logo, que tal como formulada, a questão nos coloca em compasso com os tempos e é de

uma radical contemporaneidade. Não se trata, longe disso, aliás muito longe disso, de dizer

que a pobreza de lá e de cá finalmente se encontram pelos circuitos excludentes do capital

globalizado – essa espécie de “constatação das evidências” que corre solta por aí, repondo

em outros sentidos o jogo dos espelhamentos de que trata Schwarz, com o peculiar efeito de

desativar, neutralizar, o foco de inquietação, o “mal-estar” face à distância que nos separava

do “moderno” – já que as coisas são assim, já que mesmo eles descobrem a desgraça da

pobreza, a tal brasiliniazição do Primeiro Mundo, e já que essa é a cota comum que nos

cabe, a eles e a nós, já que essa é também e finalmente a cifra de nossa “modernidade”,

bem, então podemos agora aproveitar com gosto e proveito, sem má-consciência, de todos

os brilhos que o mundo globalizado nos oferece, ao mesmo tempo em que a pobreza, agora

desvinculada do campo conflitivo do trabalho e dos direitos (aí o desmonte ou

esvaziamento da “questão social”), vai alimentando o hoje proliferante discurso edificante

da solidariedade moral e os igualmente expansivos programas de “combate à exclusão”,

aliás tudo isso também devidamente plugado nas vias globais pelos circuitos do assim

chamado Terceiro Setor, financiados (monitorados?) pelos “generosos” recursos das

agências multilaterais, quando não capturados por essa espécie de nova frente de expansão

1 SCHWARZ, Roberto. Ainda o livro de Kurz. Novos Estudos, CEBRAP, n.37, novembro, 1993

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do capital e que vem com a “griffe” da “responsabilidade social” das empresas. De fato,

tudo por aqui ficou mesmo globalizado...

Pois o petardo lançado por Chico não permite o sossego das boas consciências pacificadas

com o estado de coisas. Se não há mais superação possível, isso na verdade coloca a

exigência crítica em outro patamar. Como diz Schwarz, hoje “o naufrágio da hipótese

superadora” aparece como “o destino da maior parte da humanidade, não sendo, nesse

sentido, uma experiência secundária”2. Em seus últimos escritos, em especial no

Ornitorrinco, Chico deslinda, ponto a ponto, esse desmanche. E o exercício da crítica não

fica no meio do caminho. Não segue o caminho fácil da denúncia sem mais e muito menos

faz o lamento desse mundo que já se foi, não é um verbo conjugado no futuro do pretérito

– o que poderia ter sido mais não foi: esses dois modos de lidar com as coisas que

paralisam o trabalho da crítica, na aceitação resignada, ou cínica, do que aí está. Ao

desenvolver no limite as suas próprias questões, procede a um agudo deciframento das

forças operantes nesse desmanche e traça as implicações nele contidas. E com isso, o

andamento da crítica, em correspondência com o próprio movimento da história, nos

impulsiona para frente e nos leva a um limiar (e não o ponto final) em que essas mesmas

questões abrem-se a novas indagações.

Afinal, que mundo social é este que vem se configurando nas dobras desse desmanche? Se

a equação que se estabelecia entre trabalho, direitos e cidadania foi quebrada, se o

movimento histórico que lhe dava plausibilidade foi interrompido, se a “hipótese

superadora” (ou essa hipótese superadora), para usar os termos de Schwarz, foi erodida,

então com quais parâmetros ou a partir de quais parâmetros discernir, no atual estado de

coisas, as linhas de força que vem aí sendo traçadas? Ainda: como decifrar a pulsação de

fissuras possíveis que reabram, ao menos virtualmente, essa potência de confrontar o

presente e ampliar o horizonte dos possíveis, essa mesma potência (e essa aposta) que de

alguma forma esta(va) contida na idéia de superação, mesmo que agora esteja

2 . SCHWARZ, Roberto. Sequências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.58.

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desvencilhada do telos no qual foi formulada e figurada no século XX (e na verdade, desde

antes)?

A questão está longe de ser simples. A rigor, é o próprio problema que ainda precisa ser

formulado e bem posto. E isso, claro está, não é coisa que se resolva assim de uma penada e

certamente não vai ser qualquer contorcionismo teórico que haverá de abrir caminhos. Mas

é o próprio Chico que dá pistas para pensar além da catástrofe que se arma em nossa

atualidade. É verdade que estamos caminhando em meio à neblina, diz ele em texto que

leva, aliás, o mais do que sugestivo título Passagens na neblina (2000). E as respostas, é

isso que ele aí sugere, estas ninguém tem, e será preciso, não propriamente esperar, mas ao

contrário, prospectar essa espécie de experimentação histórica que vem se processando

nessa “era de indeterminação”. Mas já que estamos falando de passagens, então lembremos

que passagens são feitas de trilhas que se entrelaçam e se bifurcam, e são estas que será

preciso seguir, mesmo sem saber ao certo para onde nos levam, ou mesmo sabendo que a

catástrofe também vai sendo desenhada por esses mesmos traçados.

E Chico nos dá o ponto de partida, que é justamente o ponto nevrálgico do desmanche. E

então, retomando: nesse salto nas alturas da produtividade do trabalho propiciada pela

“revolução molecular-digital” em combinação com o movimento de mundialização do

capital, o processo de valorização se descola dos dispositivos do trabalho concreto, já não

depende da quantidade e dos tempos do trabalho da produção fordista (está para além da

medida) e termina por implodir todas as distinções conhecidas: tempo do trabalho e tempo

do não-trabalho, trabalho e consumo; as diferenças das ocupações perdem relevância do

ponto de vista desse movimento virtual da valorização do capital, ao mesmo tempo em que

vai para os ares a divisão entre trabalhadores ativos e o que antes então era chamado de

exército industrial de reserva. É o trabalho abstrato levado a extremos, “trabalho abstrato

virtual”, que captura, mobiliza e transforma processos sociais e as atividades as mais

disparatadas em sobrevalor. Quebra-se o vínculo entre trabalho, empresa e produção da

riqueza e são outros agenciamentos e diagramas de relações que se constituem: para seguir

as situações comentadas por Chico em seus últimos escritos, a maquinaria abstrata de

produção de valor é acionada a cada vez que se utiliza os caixas eletrônicos dos bancos ou

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quando, no recinto privado da vida doméstica, se acessa serviços e produtos pela internet;

são as formas de entretenimento, lazer, gostos e estilos de vida que movimentam um

capital que faz do “nome da marca”3 o principal esteio de sua valorização, ao mesmo

tempo em que joga na mais radical irrelevância social miríades de trabalhadores espalhados

pelas redes de subcontratação no mundo inteiro, submetidos ao trabalho precário, incerto,

mal pago e degradado, gente sujeita aos espaços físico-sociais do trabalho concreto, mas

que desaparece sob a pirotecnia do marketing e do espetáculo cultural. Zarafian fala de uma

“economia de serviços” que não tem nada ver com as divisões conhecidas de setores de

produção, que a rigor transborda por todos os lados e torna irrelevantes essas mesmas

divisões, pois tem a ver a trama de relações materiais e imateriais entre produção e

consumo – publicidade, efeitos de marca, ações de marketing, cartões de fidelidade e tudo o

mais que acompanha o produto ou o serviço vendido/consumido, de tal forma que os

consumidores, transformados em clientela cativa, terminam por participar da formação do

valor apesar de não entrarem em nenhuma contabilidade e em nenhum instrumento de

gestão4.

São mutações de fundo. Mas, então, é preciso reconhecer que isso muda tudo nas formas de

lidar e fazer a experiência do trabalho, da cidade, seus espaços e territórios. É uma situação

que está a exigir um giro em nossas categorias, de modo a construir um plano de referência

e um espaço conceitual que permitam colocar em perspectiva e figurar esses processos, re-

situar os problemas, colocar outros tantos e perceber nas dobras desse desmanche, nas

dobras das redefinições e desagregações do “mundo fordista” (as aspas aqui apenas para

indicar uma ordem de questões, bem sabemos que essa noção é incerta), outros diagramas

de relações, campos de força que também circunscrevem os pontos de tensão, resistências

ou linhas de fuga pelas quais perceber a pulsação do mundo social.

3 . FONTENELLE, Isleide Arruda Fontenelle. O nome da marca. MacDonnald’s, fetichismo e cultura descartável. São Paulo: Boitempo, 2002 4 . ZARAFIAN, Philippe. La disparition du marché. In : ZARAFIAN, F. A quoi sert le travail ? Paris : La dispute, 2003, pp. 135-147

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No Passagens na neblina, Chico já sugere que “em conjunto essas modificações pedem

uma nova abordagem sobre o trabalho e as categorias de trabalhadores que o exercem, ou

dos que trabalham mas não são trabalhadores” (p. 17). E para tomar a coisa pelo lado das

questões urbanas hoje em pauta (e na pauta da mesa para a qual esse texto foi preparado), é

caso de se interrogar até em que ponto a noção de exclusão social não está fora de foco.

Claro, tem correspondências fortes com as realidades sociais e urbanas que bem

conhecemos, mas como não desconfiar que deixa escapar talvez o mais importante,

justamente por ser uma noção centrada nas binaridades dos dispositivos físico-sociais do

trabalho (trabalho-não trabalho. Ainda mais problemáticas são as visões que hoje

prevalecem de uma cidade fragmentada entre enclaves fortificados e globalizados, de um

lado e, de outro, o mundo da pobreza confinado nos bairros pobres espalhados pelas

periferias da cidade. As evidências imediatas sustentam ou podem sustentar essa visão das

coisas, mas também aí podemos nos perguntar se essa não é uma medida estreita demais,

que se fixa em certos pontos de cristalização dos fluxos da riqueza e fluxos da pobreza que,

a ver sob um outro parâmetro, transbordam por todos os lados essas definições

socioespaciais.

Apenas para jogar ao debate, sem nenhuma certeza e sem a menor pretensão de responder

às questões colocadas: nesse salto nas alturas de uma “mais valia virtual” que ultrapassa

todos os limites e segue os movimentos acelerados de desterritorialização do capital, a

riqueza social, o sobrevalor, vai também se corporificando (e circulando por entre os) nos

espaços da cidade, pedaços globalizados que vão cortando e recortando o mundo urbano: as

fortalezas globais concentradas no côté pós-moderno da cidade e as formas predatórias e

excludentes de apropriação privada do solo urbano5; os grandes equipamentos de consumo

e lazer que se concentram nesses mesmos espaços, mas também se espalham num grande

arco que chega até mesmo nas periferias da cidade, também cortando e recortando o mundo

da pobreza; da cultura transformada em mercadoria às chamadas intervenções urbanas

5 . FIX, Mariana. Os parceiros da exclusão. São Paulo: Boitempo, 2001

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pelas quais a cidade passa a ser ela própria a ser gerida e consumida com mercadoria6; tudo

isso e mais alguma coisa, ao mesmo tempo em que segue, numa extensão sem limite, a

mercantilização de tudo e todos. Como aliás Chico nota e comenta, isso também compõe os

pedaços do Ornitorrinco: “com a revolução molecular-digital como forma técnica

principal da acumulação de capital, ...o fatiamento digital é capaz de descer aos infernos

da má distribuição de renda”. Como tem sido amplamente noticiado, os celulares

chegaram lá (façanhas da privatização, como se sabe), nos confins do mundo da pobreza:

ao mesmo tempo em que as redes de telefonia móvel se estendem, no mesmo passo vai se

ampliando a inadimplência generalizada. E qualquer um que circule pelos bairros das

periferias mais pobres haverá de encontrar a parafernália do consumo moderno e pós-

moderno, e haverá de encontrar o morador pobre desses lugares mais-do-que-pobres

exibindo, junto com a fatura de uma dívida sempre adiada, as versões populares (ou nem

tanto) de cartões de crédito ou os cartões de compra dos grandes equipamentos de consumo

que chegaram por lá: é a financeirização do popular fiado, na feliz expressão de Stela

Ferreira, parceira em nossas andanças pelas periferias da cidade. Eis aí os “sujeitos

monetários sem mercado”, para usar a expressão cunhada por Kurtz7. Ou o “homem

endividado”, essa figura das “sociedade do controle”, como diz Deleuze, que vem

substituindo o “homem confinado” da sociedade da disciplina descrita por Foucault. É bem

verdade, diz ainda Deleuze, que o capitalismo mantém em escalas sempre crescentes a

extrema miséria das maiorias, povos e populações “pobres demais para a dívida,

numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação

das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas”8. Mas, para usar a linguagem

do filósofo em outros textos, os “fluxos urbanos” ou os “fluxos selvagens” liberados pela

subtração dos dispositivos do trabalho, circulam e vão encontrando outros agenciamentos e

pontos de cristalização, de que é evidência esse promissor e expansivo mercado que é o

6 . ARANTES, Otilia. Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, Otilia et alii. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000. 7 . KURZ, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 8. DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992, pp 219-226:224

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tráfico de drogas e as redes do crime organizado, aliás também eles globalizados e

conectados nos circuitos desterritorializados do capital financeiro. Nada mais eloqüente do

que o retrato desenhado por Alba Zaluar de um garoto metido no tráfico de drogas no Rio

de Janeiro: o menino favelado com uma AR-15 ou metralhadora UZI, considerados

símbolos de sua virilidade e a fonte de grande poder local, com um boné inspirado no

movimento negro da América do Norte, ouvindo música funk, cheirando cocaína produzida

na Colômbia, ansiando por um tênis Nike do último tipo e um carro do ano9 . Isso não se

explica, diz Zaluar e com razão, pelos níveis de salário mínimo ou pelo desemprego, e

muito menos pelo peso das camadas geológicas da tradição ou resquícios da violência

costumeira do sertão, como muitas vezes se diz: entender como o ilícito e o ilegal se

enraizaram no setor informal para comandar um exército de desempregados e sócios

menores é fundamental (p.55), até porque tudo isso põe em movimento bens materiais e

monetários que entram na circulação de mercadorias do mundo capitalista (pp. 58-59).

Entre a brutalidade da destituição dos miseráveis e os brilhos faiscantes desse capitalismo

pós-moderno, entre a privação extrema, o futuro sempre adiado (como a dívida, deixada

para o dia seguinte, para o mês seguinte, para um dia qualquer...) e o também muito pós-

moderno presente imediato do garoto do tráfico em que tudo isso se conjuga no verso-e-

reverso do capitalismo contemporâneo, há todo um entramado de linhas que se cruzam e

entrelaçam, que atravessam e transbordam os “domínios” estritos da pobreza e da riqueza

(esses que dão fundamento às noções de uma cidade fragmentada ou dualizada, apartada), e

vão montando um socius que ainda será preciso conhecer melhor. Pelo lado do trabalho,

são também esses e outros traçados que vão redesenhando o mundo social e a paisagem

urbana. É o que acontece nos circuitos descontínuos do trabalho precário, temporário ou

subcontratado que, passando por pólos descentrados no tecido urbano, vão serpenteando os

pontos em que a riqueza se cristaliza nos espaços da cidade, que mobilizam as conhecidas

“atividades de sobrevivência” do dito “mercado informal”ou reativam o velho conhecido

9. ZALUAR, Alba. A globalização do crime e os limites da explicação local. In: VELHO, Gilberto e ALVITO, Marcos (orgs.). cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editoria FGV/Editora UFRJ, 1996; pp. 48-68: 55

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trabalho a domicílio de antanho, que passam, alimentam e se alimentam das mil formas de

práticas ilícitas que se espalham por todos os lados, ao mesmo tempo em que crescem as

legiões de desempregados e sobrantes do mercado de trabalho que se viram como podem

ou então ganham a identidade de “público alvo” dos programas de combate à exclusão nos

bairros pauperizados da cidade. Por outro lado, junto com tudo isso, a experiência social

também vai se fazendo em um outro diagrama de relações e referências que também

redefinem fronteiras e territórios. O desemprego intermitente e prolongado, o emprego(?)

incerto e descontínuo, esse constante entre-e-sai do mercado por entre os velhos e novos

expedientes de trabalho precário, tudo isso vai alterando e desestabilizando as referências

que pautavam e ritmavam a vida social – os tempos do trabalho e os “tempos da vida”

(individuais e familiares) perdem as sincronias que os dispositivos disciplinares do mundo

fordista impunham, ao mesmo tempo em que se esfacelam as fronteiras dos espaços/tempos

públicos de trabalho e os espaços/tempos privados do não-trabalho.

Tudo isso foi aqui colocado de um jeito apressado, um tanto vago e mesmo canhestro, é

preciso que se diga. Mas serve como indicação, não mais do que isso, de que talvez

tenhamos que mudar o foco das atenções. Não mais as verticalidades que construíram o

trabalho nas suas formas conhecidas (suas regulações centralizadas), mas os vetores

horizontalizados de relações que articulam trabalho, a cidade e seus espaços, outros

agenciamentos e também outros eixos em torno dos quais desigualdades, controles e

dominação se processam, afetam formas de vida e o sentido da vida.

Se há processos estruturantes que ainda precisam ser melhor compreendidos, também será

preciso averiguar os campos de experiências que se armam nos pontos de cruzamento das

linhas de força que vem reconfigurando o mundo social. Se é verdade que a desconexão

entre trabalho e empresa já faz parte da paisagem social, se é verdade que a empresa perdeu

seu poder de gravitação como lócus de investimento subjetivo, isso significa que os tempos

da vida e os tempos do trabalho tendem se articular sob novas formas não mais contidas nas

relações que antes articulavam centro-periferia, emprego-moradia, trabalho-família,

trabalho-não trabalho. Eram binaridades que pautavam os ritmos da vida social, tendo por

referência o trabalho, com suas regularidades e os disciplinamentos impostos pelas formas

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de emprego10. Mas, então, talvez seja necessário se desvencilhar dessas binaridades, talvez

melhor dizendo, suspendê-las, assim como a do formal-informal, para apreender a nervura

própria do campo social. Talvez seja por aí que possamos decifrar o modo como as

reconfigurações do trabalho também redesenham mundos sociais e seus circuitos, os

campos de práticas e relações de força que fazem a tessitura da cidade e seus espaços.

Não se trata, longe disso, de buscar virtudes nesse mundo social, e muito menos cair nas

trampas de um discurso edificante que sempre clama por encontrar o-lado-positivo-das-

coisas. O que importa, isso sim, é a exigência de um trabalho fino de deciframento do

social capaz de flagrar campos de força que vem se desenhando no traçado das atuais

reconfigurações do mundo social e, quem sabe, pólos de gravitação por onde experiências

diversas e talvez disparatadas se articulem ou pelo menos convirjam e se entrecruzem em

torno de outras referências e novas constelações de sentido.

Em um momento em que, junto com a desmontagem das formas reguladas de emprego,

também se esvanecem os parâmetros coletivos de classe e a perspectiva de universalização

de direitos através da “cidadania salarial”, é o caso de se indagar pelas relações que podem

estar sendo traçadas entre territorialidades, identidades coletivas e direitos. Essa é uma

hipótese forte formulada no corpo de um projeto em desenvolvimento pelo Cenedic sobre a

experiência recente do Orçamento Participativo em São Paulo. Aqui, as questões de Chico

são reatualizadas, seguindo, como sempre, a contemporaneidade dos tempos, ao se abrir à

interrogação sobre “uma nova possibilidade de universalização, não a partir do

pressuposto liberal da igualdade , mas a partir do compartilhamento das mesmas

necessidades, pautada pela igualdade de acessar os recursos do Estado. Pode bem ser a

construção de uma nova universalidade”11. Como diz Cibele Rizek, “o OP pode se

10 . A propósito ver SUPIOT, Alain. Critique du droit du travail. Paris, PUF, 1994 e Au-delà de l'emploi. Transformations du travail et devenir du droit du travail en Europe. Paris, Flamarion, 1999. Também BESSIN, Marc. Les temps, une question de pouvoir. Mouvements, no. 2, janvier-février 1999, pp.47-54

11 . OLIVEIRA, Francisco; PAOLI, Maria Celia e RIZEK, Cibele. Atas da Revolução: O Orçamento Participativo em São Paulo . www.ibase.br; janeiro de 2003

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constituir em contexto que concretiza a cidade como espaço e território comum,

transformando os bens sociais em bens públicos para além dos interesses particulares”12.

Pode ser que essas experiências não consigam escapar das estreitezas dos jogos políticos

locais, pode ser que não consigam ultrapassar o confinamento de referências

“comunitárias”, pode ser também que tudo seja risível perto do tamanho da tragédia social

estampada nas cidades, e pode ser ainda e mais fundamentalmente que, como bem nota

Rizek, face à radical desterritorialização do capital, “o território, transformado em quase

resíduo para as novas formas de acumulação cada vez mais autonomizadas, elemento cuja

importância encolhe face à potência das tecnologias de informação ... já pode ser

parcialmente devolvido às disputas da população, sem danos às novas formas de gestão e

controle compatíveis com as formas mais recentes de acumulação”13. Pode ser. Mas se

assim for, essas limitações (e outras) não são irrelevantes para a compreensão das novas

realidades que vem se configurando. Essas experiências operam como um prisma pelo qual

apreender campos de força e os diagramas de relações que aí vão sendo tecidas. Mas

também podem ser entendidas como acontecimentos que (re)configuram esse jogo de

forças e que, ao colocar a cidade como perspectiva e em perspectiva, permitem, ao menos

virtualmente, como diz ainda Rizek, reabrir “a possibilidade frágil de novos combates pela

distribuição da riqueza”, restituir “o território à uma elaboração cidadã”, e com isso,

talvez, ampliar horizontes de possíveis.

Seja como for, se nos tempos que correm não há nenhuma razão, muito pelo contrário, para

alimentar otimismos ingênuos, o trabalho do pensamento – a tarefa da crítica – sempre tem

nele embutido, nem que seja de forma hesitante, quase como uma experimentação (e, pelo

menos hoje em dia, não dá para ser de outra forma), uma aposta em outros possíveis. Mas

é nisso que também aprendemos com a tarefa crítica exercida por Chico: tendo sempre em

mira os pontos de clivagem que compõem a atualidade, suscita e incita a reabrir, sempre, a

interrogação pelos campos de força e virtualidades contidas no presente, mesmo quando ou

12 . RIZEK, Cibele Saliba. Relatório de Pesquisa (Projeto Fapesp), Cenedic, 2003 13 . Idem

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sobretudo quando é difícil, quase impossível, discernir os seus sinais. Mas então isso

também significa dizer que o trabalho da crítica também tem, junto com a confrontação

com o presente, o sentido de uma resistência a esse desapossamento do mundo de que fala

Deleuze em uma bela passagem que, a título de não-conclusao, sem ponto final, vale aqui

citar:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar

no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao

controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. ... É ao nível de cada

tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao

mesmo tempo de criação e de povo14

14 . DELEUZE, Gilles. Conversacoes. São Paulo: Editora 34, 1992, p.218