“tornar-se cisne?”: a … menegaz... · comum de mim mesmo enquanto ego, e por dar ao meu...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE PSICOLOGIA
DAFNE MENEGAZ TOMAZ DE AQUINO
“TORNAR-SE CISNE?”: A PSEUDOTRANSFORMAÇÃO DO
SENTIMENTO DE INFERIORIDADE
Trabalho de conclusão de curso como exigência
parcial para graduação no curso de Psicologia,
sob orientação da Profª Drª Flávia Arantes Hime
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São Paulo
2007
Área de conhecimento: Código 7.07.00.00-1 - Psicologia
“Tornar-se cisne?”: a pseudotransformação do sentimento de inferioridade.
Dafne Menegaz Tomaz de Aquino, 2007.
Orientadora: Flávia Arantes Hime
Palavras-chave: Sentimento de inferioridade, complexo materno negativo, Maria
Callas.
Resumo
Este estudo teve como finalidade uma articulação teórica de alguns dos
conceitos da psicologia analítica com dados biográficos da cantora Maria Callas.
Para tanto, foi realizada uma leitura da biografia “Maria Callas – A mulher por trás
do mito”, de onde foram selecionados trechos que contivessem informações
relevantes sobre a vida da artista e pelos quais fosse possível a apreensão de
material psíquico. A seleção dos excertos teve como critério o problema colocado
de início, qual seja, a importância do relacionamento estabelecido entre a criança
e seus pais, bem como a influência do ambiente na constituição de uma
auto-imagem e no desenvolvimento da personalidade, de forma mais ampla.
A partir dos dados biográficos e dos depoimentos pessoais da cantora,
levantou-se a hipótese de que Maria Callas, tendo sido rejeitada desde o
nascimento pela mãe, desenvolveu um acentuado sentimento de inferioridade e
um complexo materno negativo que a acompanharam por toda a vida,
trazendo-lhe inúmeras implicações, tais como: falta de confiança básica no
mundo, supercompensação da inferioridade através da inflação egóica,
identificação com a persona, perseveração na figura materna, entre outras.
A cantora nos fornece um exemplo de como a dificuldade do ego em
realizar a integração dos conteúdos inconscientes e conscientes pode afetar
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negativamente o processo de individuação, fazendo com que o indivíduo fique à
mercê de seu próprio sofrimento psíquico.
AGRADECIMENTOS
À orientadora Flávia Hime, pela confiança, disponibilidade e respeito ao ritmo
individual de trabalho.
Às professoras Maria Georgina, por seu incentivo e generosidade no momento de
dúvida, e Noely Montes, por suas considerações precisas.
Aos meus pais, pelo exemplo de dedicação e valorização do conhecimento.
Aos amigos todos que me apoiaram durante este percurso, em especial à Michele
Tognini, que constantemente me inspirou com seu envolvimento e dedicação, e à
Paula Vianna, por sua presença sempre vivificante.
A Yedda, pela “retaguarda” fundamental a me escoltar ao longo do caminho do
crescimento individual.
À música, sem a qual a vida perderia um quantum de seu sentido.
4
SUMÁRIO
Introdução...............................................................................................................0
1
Metodologia............................................................................................................04
Capítulo 1: Pressupostos
Teóricos.........................................................................06
1.1. Ego e
Consciência................................................................................07
1.2. Inconsciente coletivo e
Arquétipo..........................................................09
1.3. Inconsciente pessoal e
Complexo.........................................................11
1.4. Persona e Sombra................................................................................16
1.5. Anima e Animus....................................................................................18
1.6. Si-mesmo e Processo de
individuação.................................................20
Capítulo 2: Pressupostos Específicos................................................................... 24
2.1. A infância e os complexos parentais....................................................
24
5
2.2. Complexo materno...............................................................................
27
2.3. Adler e o complexo de inferioridade.....................................................
32
2.4. Auto-estima e sentimento de inferioridade...........................................
34
2.5. Narcisismo............................................................................................
38
Capítulo 3: Arte e Psicologia: interfaces................................................................
43
3.1. O artista e a
criação..............................................................................45
3.2. James Hillman e as noções de criatividade.........................................
48
Capítulo 4: Maria Callas.........................................................................................
53
Análise e Discussão...............................................................................................
57
1. As experiências da primeira
infância........................................................57
2. O canto: oásis e
grilhões..........................................................................63
3. O caminho do Pai....................................................................................
70
4. A dualidade Maria/ Callas: identificação com a persona.........................
80
5. A perseveração na figura materna..........................................................
95
6
Considerações Finais..........................................................................................
105
Referências Bibliográficas...................................................................................
108
7
Quando estou prostrado pela aflição das depressões, dos sintomas
e das ansiedades profundas, deparo-me com a irrefutável
evidência
da independência das forças psíquicas. Algo vive em mim e não
é
obra minha. O demônio que fala nos sonhos, nas paixões e nos
sofrimentos não me deixa prosseguir e sou forçado a
reconhecer seu valor porque me aprofunda além da noção
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comum de mim mesmo enquanto ego, e por dar ao meu espírito
uma noção de alma e de morte.
James Hillman
INTRODUÇÃO
Muitos foram os temas cogitados para este trabalho de conclusão, dentre
os quais alguns chegaram a ser desenvolvidos: a dança indiana e seus símbolos,
a poesia de Hilda Hilst, a criatividade no relacionamento conjugal... No entanto,
por razões que nos são conhecidas e outras não, todos eles foram perdendo seu
sentido no decorrer do tempo. Saltando de um tema a outro, a única convicção
que permanecia era a de que o trabalho deveria, direta ou indiretamente, estar
relacionado com a questão da criatividade.
“Um belo dia”, estávamos lendo uma dissertação de mestrado intitulada “O
limite como potência: um estudo das relações entre a vergonha e a criatividade”,
de Alexandre Schmitt (2006), quando nos deparamos, surpresas, com Maria
Callas. O autor havia ilustrado suas hipóteses com uma breve discussão acerca
da biografia da cantora, e aquelas poucas, mas interessantes páginas nos
instigaram a conhecer um pouco mais sobre sua vida em “Maria Callas – A mulher
por trás do mito”, de Arianna Stassinopoulus Hutchinson, uma de suas mais
importantes biógrafas. Logo percebemos que tínhamos em mãos um material
bastante rico, repleto de nuances psicológicas que não haviam sido exploradas
por Schmitt, visto não ser a proposta do autor aprofundar-se no exemplo.
Convencemo-nos de que tais relatos biográficos realmente mereciam uma
análise mais ampla, por ilustrarem de forma tão emblemática situações típicas e
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fundamentais da experiência humana, no que diz respeito ao desenvolvimento do
indivíduo a partir de suas experiências iniciáticas com outros seres humanos, aos
cuidados dos quais ele está entregue.
A fim de obtermos uma compreensão teórica sobre a questão, recorremos
a Jung (1988), que dedicou uma série de estudos à psicologia infantil, abarcando
também a psicologia dos pais e educadores, que ele considerava como normativa
no processo de crescimento e maturação da criança. Nesses estudos, ele chama
a atenção para a importância do relacionamento psicológico insatisfatório entre
pais e filhos como causa das perturbações psicogênicas na infância e, muitas
vezes, na vida adulta.
Segundo o autor, nos primeiros anos de vida, o indivíduo se encontra
quase que inteiramente fundido com as condições do meio ambiente. A psique,
na infância, é até certo ponto apenas parte da psique materna e, logo depois, da
psique paterna, em conseqüência da atuação comum dos pais. Daí proviria, de
acordo com Jung (1988), o fato de que as perturbações nervosas e psíquicas
infantis se devem exclusivamente a perturbações na esfera psíquica dos pais. A
partir do momento em que a criança começa a desenvolver a consciência do
próprio “eu”, então, já existe uma psique individual, que, no entanto, só costuma
atingir uma relativa independência apenas após a puberdade. Até este período,
continua sendo em grau elevado joguete dos impulsos e das condições
ambientais (Jung, 1988).
Na visão do autor, “[...] deveríamos sempre examinar o ambiente doméstico
e o relacionamento psíquico dos pais, e, nestes, quase sem exceção, haveríamos
de encontrar as únicas e verdadeiras razões que explicassem as dificuldades dos
filhos” (Jung, 1988, § 107). Neste sentido, o modo de ser perturbador de uma
criança é muito menos expressão do interior delas mesmas do que reflexo das
influências perturbadoras dos pais. Sobre estes, interessa saber seus problemas,
a maneira como vivem ou deixam de viver, as suas aspirações que foram
realizadas ou descuidadas, a atmosfera reinante na família e os métodos
educacionais empregados, pois todo esse condicionamento psíquico tem
influência extremamente profunda na criança (Jung, 1988).
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Alguns autores pós-junguianos como Neumann, Kast e Whitmont, entre
outros, também nos serviram de base, com suas inestimáveis contribuições para
a elucidação dos fundamentos da formação e do desenvolvimento da
personalidade, que, idealmente, deveria levar ao estabelecimento de um ego bem
estruturado e suficientemente adaptado às realidades interior e exterior.
A escolha pelo arcabouço teórico da psicologia analítica deu-se a partir da
consideração de que esta é capaz de fornecer os substratos teóricos adequadas
à explicação e reflexão sobre os fenômenos que serão abordados no presente
estudo. Através das intersecções entre os conceitos junguianos e o caso em
questão, pretendemos demonstrar a extensão dessa teoria e propiciar uma
ampliação de sua compreensão.
A psicologia analítica concebe o ser humano como uma totalidade que
contém tanto aspectos herdados e inatos como adquiridos pela experiência
vivenciada na relação com o mundo. Nesse sentido, faz uma distinção entre o
aspecto coletivo da psique humana de seu aspecto pessoal, o qual é responsável
pela individualidade. Esta, segundo Penna (2003), se alicerça na noção de um
ser único, indivisível e complexo: “uma totalidade eco-bio-psíquico-social,
resultante de um potencial arquetípico que se atualiza num corpo biológico e num
contexto histórico e social; um microcosmo dentro do macrocosmo” (Penna, 2003,
p. 128).
É a este aspecto - o âmbito da individualidade - que daremos maior ênfase
no presente estudo, procurando compreender de que forma as experiências
vividas pelo indivíduo nas inter-relações com o mundo podem favorecer ou
prejudicar o seu desenvolvimento. Evidentemente, atentamos para não perder de
vista a dimensão arquetípica que também o constitui, e que não se pode atribuir a
um ser humano individual.
De forma concisa, portanto, o objetivo desse trabalho é promover uma
articulação entre alguns dos conceitos da psicologia analítica e a biografia de
Maria Callas, focando a questão do relacionamento com os pais, principalmente,
com a mãe, e seus desdobramentos posteriores. Gostaríamos de frisar que este
não se propõe a ser um estudo de caso ou um psicodiagnóstico, visto que, para
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isso, seria imprescindível o acesso direto ao ser humano em questão, com seu
sistema psíquico total, e aos símbolos do qual emergem. Como nosso objeto de
estudo consiste em uma obra biográfica, invariavelmente estará “contaminada”
pela perspectiva de quem a escreveu, deixando entrever sua avaliação pessoal
sobre os dados objetivos. Trata-se, portanto, de um exercício de articulação entre
teoria e prática que não assume um compromisso com a verossimilhança dos
fatos, mas se baseia exclusivamente nos dados apresentados pelo biógrafo.
É importante assinalar que vem ocorrendo, nos últimos tempos, uma
significativa retomada do uso de biografias como fontes de conhecimento em
trabalhos acadêmicos na área da psicologia. Este é um material que representa
mais uma possibilidade para o desenvolvimento da psicologia enquanto
instrumento de análise e compreensão do ser humano.
Para explicitação adequada do tema, dividimos o trabalho nos seguintes
capítulos:
- O primeiro capítulo tratará dos principais conceitos da psicologia analítica que
estarão presentes no transcorrer do trabalho, quais sejam: ego e consciência,
inconsciente coletivo e arquétipo, inconsciente pessoal e complexo, persona e
sombra, anima e animus, self e processo de individuação;
- O segundo capítulo está voltado para alguns conceitos mais específicos, que
constituirão a base para a compreensão dos fenômenos psíquicos quando da
análise. Faremos uma exposição sobre os seguintes temas: a infância e os
complexos parentais, complexo materno, Adler e o complexo de inferioridade,
auto-estima e sentimento de inferioridade e narcisismo;
- No terceiro capítulo, procuramos esclarecer a maneira como a psicologia
analítica se posiciona em relação às possíveis interfaces entre arte e psicologia e
a questão da criatividade. Será dividido em: arte e psicologia, o artista e a criação
e noções sobre criatividade.
- O quarto capítulo é dedicado à cantora lírica Maria Callas, através de uma breve
exposição de alguns dados biográficos, com a finalidade de tornar mais clara a
análise e discussão.
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Na análise e discussão, é realizada uma articulação da teoria apreendida
com os dados biográficos da cantora.
METODOLOGIA
Para atingir o objetivo deste trabalho, foi realizada uma leitura da biografia
“Maria Callas – A mulher por trás do mito”, de onde foram selecionados trechos
que contivessem informações relevantes sobre a vida da artista e pelos quais
fosse possível a apreensão de material psíquico. A seleção dos excertos teve
como critério o problema colocado de início, qual seja, a importância do
relacionamento da criança com seus pais, especialmente com a mãe, bem como
as influências do ambiente, para o estabelecimento de sua auto-imagem e o
desenvolvimento da personalidade, de forma mais ampla.
Com base nos pressupostos teóricos da psicologia analítica, procuramos
fazer um recorte que demonstrasse em que medida as interações da cantora com
a figura materna e com o ambiente determinaram sua maneira de ver e de se
relacionar com o mundo e consigo própria. Ao traduzirmos os fatos apresentados
na biografia em termos psicológicos, visávamos compreendê-los de tal forma que
o material desconhecido pudesse se tornar conhecido.
Devemos levar em consideração o fato de que a consciência, como
instrumento de observação dos fenômenos psíquicos, tem seus limites e
tendências unilaterais naturais, e que, portanto, a interpretação dos dados
biográficos no presente estudo obedecerá às referidas limitações do observador
(Penna, 2003).
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CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
A Psicologia Analítica concebe a psique como um sistema dinâmico cujo
fluxo energético é constante e movido pela lei da compensação dos opostos.
Consciente e inconsciente funcionam compensatoriamente, a partir de um
dinamismo auto-regulador próprio do sistema como um todo. Esta auto-regulação
é regida pela tensão energética que constantemente se produz entre as
polaridades, das quais as principais são consciente e inconsciente (Penna, 2003).
A energia que move a psique foi denominada por Jung libido. A
canalização desta energia no sistema psíquico como um todo é realizada através
de sua progressão e da regressão, isto é, dos movimentos da energia em direção
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ao ambiente externo e ao ambiente interno. De acordo com Silveira (1997), a
partir da regressão ou “marcha retrógrada” da libido, há a reativação de conteúdo
interior, possibilitando o desenvolvimento da personalidade.
A oscilação entre tensão e auto-regulação da energia circulante no sistema
psíquico foi denominada por Jung função compensatória. Nas palavras do autor:
[...] considero a atividade do inconsciente como equilibração da unilateralidade da
atitude geral, causada pela função da consciência. [...] A atividade da consciência
é seletiva. A seleção exige direção. E direção exige exclusão de todo o
irrelevante. Disso resulta obviamente certa unilateralidade da orientação da
consciência (Jung, 1991b, § 774).
Quanto mais a unilateralidade da consciência se acentua, aumenta também
a oposição dos conteúdos inconscientes em relação à consciência, e mais forte
se torna a tensão entre estes opostos. A função compensatória da psique, então,
tenta equilibrar a força opositora das polaridades em questão (Penna, 2003).
O produto resultante desta tensão energética entre as polaridades
consciente e inconsciente é o símbolo, que representa a síntese de ambas. Ele
consiste, segundo Silveira (1997), em uma forma complexa na qual se reúnem
opostos numa síntese que ultrapassa a capacidade de compreensão presente,
não podendo, portanto, ser formulada dentro de conceitos. Ele é a melhor
descrição ou fórmula de um fato relativamente desconhecido, porém, reconhecido
ou postulado como existente. O símbolo, portanto, tem função de mediação, pois,
através dele, inconsciente e consciente aproximam-se. A função da psique que
cria símbolos foi chamada por Jung função transcendente (Penna, 2003).
Como a psique é um padrão de totalidade que só pode ser descrito
simbolicamente, a produção imagética espontânea, os sonhos, as fantasias e as
expressões artísticas são valiosas fontes de informação e orientação do
psiquismo (Whitmont, 2006).
A complementação ou compensação inconsciente às deficiências ou
tendências unilaterais do ponto de vista consciente sugere, de acordo com
Whitmont (2006), uma direção ou um objetivo. Ela pressupõe uma configuração
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de totalidade que tem uma finalidade ou padrão de inteireza. Sobre este ponto de
vista finalista da psique, Penna (2003) assinala:
De acordo com a concepção da psique como um sistema dinâmico em que a
energia flui em busca de um equilíbrio, e as tensões entre polaridades acionam,
naturalmente, o mecanismo de auto-regulação, todo evento psíquico é forjado
numa relação de causa e finalidade. O símbolo é simultaneamente causado por
uma situação de tensão energética e tem por finalidade alcançar a homeostase
do sistema em busca de um nível de desenvolvimento da personalidade mais
íntegro (Penna, 2003, p. 186).
Se funcionalmente o psiquismo opera regido pelo mecanismo
compensatório, estruturalmente a dimensão psíquica compreende dois níveis: um
coletivo e outro individual. A psique coletiva se refere ao inconsciente coletivo e
aos arquétipos, enquanto a psique pessoal abarca o inconsciente pessoal, a
consciência e os complexos (Penna, 2003).
1.1. Ego e Consciência
Embora Jung tenha demonstrado possuir maior interesse pela investigação
das regiões mais profundas da psique, ele também assumiu a tarefa de descrever
e explicar a consciência humana, reconhecendo esta como a condição prévia
para qualquer investigação psicológica.
Jung (2003b) define o ego como um dado complexo com o qual todos os
conteúdos conscientes se relacionam, formado primeiramente por uma percepção
geral de nosso corpo e existência e, a seguir, pelos registros de nossa memória.
Este fator complexo se assenta, portanto, em duas bases: uma somática
(corpórea) e outra psíquica.
No que concerne à sua origem e desenvolvimento, Jung (1986) escreve:
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Embora as suas bases sejam relativamente desconhecidas e inconscientes,
psíquicas e somáticas, o ego é um fator consciente por excelência. É mesmo
adquirido, empiricamente falando, ao longo da vida do indivíduo. Parece surgir,
em primeiro lugar, da colisão entre o fator somático e o meio ambiente, e, uma
vez estabelecido como um sujeito, continua a desenvolver-se em conseqüência
de sucessivas colisões com os mundos exterior e interior.
O ego, como o complexo mais próximo e valorizado que conhecemos, é
sempre o centro de nossas atenções e desejos, e o cerne indispensável da
consciência. É ele quem toma as decisões, mobilizando a energia física e
emocional necessária para cumprir as tarefas. Como assinala Stein (2004), o ego
é um ponto de partida e o portal para ingressar no espaço interior a que
chamamos psique. Ele é dotado de poderosa força de atração, atraindo os
conteúdos do inconsciente e chamando a si impressões do exterior que se tornam
conscientes ao seu contato. Segundo o autor, o grau em que um conteúdo
psíquico é tomado e refletido pelo ego é o grau em que se pode afirmar que ele
pertence ao domínio da consciência (Stein, 2004).
A este respeito, Jung (2003b) é bastante enfático:
Uma consideração importante sobre a consciência é que não pode haver
elemento consciente que não tenha o ego como ponto de referência. Assim, o
que não se relacionar com o ego não atingirá a consciência. A partir desse dado,
podemos definir a consciência como a relação dos fatos psíquicos com o ego
(Jung, 2003b, § 18).
Assim, a consciência pode ser compreendida como um campo e o ego
como sujeito de todos os atos pessoais de consciência que ocupa o centro deste
campo. A consciência humana é uma aquisição recente da natureza, e, portanto,
ainda vulnerável e suscetível à fragmentação. Como salienta Jung (2003b),
O mundo da consciência caracteriza-se sobremaneira por uma certa estreiteza;
ele pode apreender poucos dados simultaneamente num dado momento.
Enquanto isso tudo o mais é inconsciente – apenas alcançamos uma espécie de
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continuidade, de visão geral ou de relacionamento com o mundo consciente
através da sucessão de momentos conscientes. A nossa possibilidade se
restringe à percepção de instantes de existência (Jung, 2003b, § 13).
Neste sentido, a consciência é um fenômeno intermitente, um campo
restrito de visão momentânea. Ela é, sobretudo, o produto da percepção e
orientação no mundo externo (Jung, 2003b).
Como qualquer complexo, o complexo do eu fundamenta-se sobre um
núcleo arquetípico, o Si-mesmo, ou a totalidade da personalidade presente e
futura, sendo este fator apriorístico que governa a construção do ego, em seu
desenvolvimento. A infância é a fase na qual a identidade ego-Self gradualmente
se separa e elementos do meio ambiente interagem com potenciais arquetípicos
para produzir uma primeira personalidade (Kast, 1997a).
1.2. Inconsciente Coletivo e Arquétipo
O conceito de inconsciente limitava-se, a princípio, a designar o estado dos
conteúdos esquecidos ou reprimidos. Apesar de já encontrarmos em Freud a
noção de inconsciente como sujeito atuante, ele se restringe a um receptáculo
geral daquilo que o ego deve reprimir por ser cultural ou pessoalmente
inaceitável, adquirindo um significado prático graças a estes conteúdos
recalcados ou esquecidos. Para Freud, portanto, o inconsciente é de natureza
exclusivamente pessoal. Já na concepção de Jung, este inconsciente
corresponde ao inconsciente pessoal, uma pequena parte do todo, distinta do que
pode ser considerado como um inconsciente coletivo. Este corresponde a uma
dimensão da psique inconsciente que é de um caráter humano geral, a priori, ao
invés de consistir simplesmente no precipitado do material pessoal reprimido
(Withmont, 2006).
Jung (2003a) afirma:
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Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente
pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este, porém, repousa sobre
uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou
aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que
chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato de o
inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente
à psique pessoal, ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são
‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras
palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um
substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada
indivíduo (Jung, 2003a, § 3).
Os conteúdos do inconsciente coletivo foram denominados por Jung
(2003a) arquétipos. Estes consistem em imagens primordiais e universais,
oriundas das camadas mais profundas da psique. Os arquétipos constituem o
fator apriorístico em todas as atividades humanas, são a estrutura individual inata
da psique, pré-consciente e inconsciente. De acordo com o autor, eles não se
difundem através da simples tradição, linguagem e migração, mas ressurgem
espontaneamente em qualquer tempo e lugar, sem a influência de uma
transmissão externa. Neste sentido, são determinados apenas quanto à forma e
não quanto ao conteúdo, pois o arquétipo é um elemento vazio e formal em si,
não passando de uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação
(Jung, 2003a).
Segundo Silveira (1997), os arquétipos resultariam do depósito das
impressões superpostas deixadas por determinadas vivências fundamentais,
comuns a todos os seres humanos. Estas vivências são típicas, tais como
emoções e fantasias suscitadas por fenômenos da natureza, pelas experiências
com a mãe, pelos encontros entre homem e mulher, vivências de situações
conturbadas, que exigem do ego uma postura heróica, etc. No arquétipo se
encerram motivos mitológicos, que surgem em forma pura nos contos de fadas,
nos mitos, nas lendas e no folclore, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes,
na filosofia, nas produções inconscientes de um modo geral (Silveira, 1997).
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Quando a energia psíquica que está concentrada no arquétipo se atualiza,
dá origem a uma imagem arquetípica, que é a forma como o arquétipo se
manifesta. Esta imagem não corresponde ao arquétipo em si, pois o arquétipo é
uma virtualidade, não podendo ser apreendido em sua forma pura.
1.3. Inconsciente Pessoal e Complexo
O inconsciente pessoal consiste nas camadas mais superficiais do
inconsciente, cujas fronteiras com o consciente são bastante imprecisas (Silveira,
1997). Sobre esta parte da psique, Jung (2006) afirma o seguinte:
O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente
esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não
ultrapassam o limiar da consciência (subliminares), isto é, percepções dos
sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos
que não amadureceram para a consciência. Corresponde à figura da sombra
(Jung, 2006, § 103).
Além de todos estes elementos que integram o inconsciente pessoal -
percepções e impressões subliminares dotadas de carga energética insuficiente
para atingir a consciência, combinações de idéias ainda fracas e indiferenciadas,
recordações perdidas ou reprimidas – nele residem ainda certos grupos de
representações carregados de forte potencial afetivo, incompatíveis com a atitude
consciente, chamados por Jung de complexos (Silveira, 1997). Como este
conceito será um dos eixos norteadores do presente trabalho, iremos dedicar-lhe
uma atenção especial.
A teoria dos complexos foi, possivelmente, a mais importante das primeiras
contribuições de Jung para o entendimento do inconsciente e sua estrutura. A
partir de uma série de experimentos com sujeitos humanos que mais tarde
culminariam no método de associação de palavras, ele chegou à descoberta e
mapeamento destes conteúdos da vida inconsciente. Os experimentos consistiam
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na exposição dos sujeitos a uma série de estímulos verbais comuns, cotidianos e
aparentemente neutros, dentre os quais encontravam-se disseminadas palavras
de maior teor afetivo. Eles tinham de responder a estas palavras-estímulo com a
primeira palavra que lhes viesse à mente, o que suscitou uma grande variedade
de reações emotivas e sinais de ansiedade, com seus respectivos efeitos sobre a
consciência. Jung considerou que as respostas idiossincráticas, como rimas,
palavras sem nexo ou associações incomuns eram indicadores da existência de
complexos, evidenciando as reações defensivas contra conflitos psicológicos
inconscientes (Stein, 2004).
Assim, os resultados de seus experimentos o levaram a postular a
existência de entidades psíquicas fora da consciência, como objetos que gravitam
ao redor da consciência do ego, capazes de lhe causar perturbações. Jung deu o
nome de “complexos” a estes conteúdos inconscientes, responsáveis pelas
perturbações da consciência (Stein, 2004).
“Um complexo é um aglomerado de associações – espécie de quadro de
natureza psicológica mais ou menos complicada – às vezes de caráter traumático,
outras, apenas doloroso e altamente acentuado” (Jung, 2003b, § 148). Por ser
dotado de tensão ou energia própria, o complexo apresenta a tendência a formar
uma espécie de ego, comportando-se como uma personalidade parcial ou
fragmentária na psique (Jung, 2003b).
Devido a estas características, tais conteúdos se tornam de difícil
abordagem. Eles sempre trazem consigo recordações, desejos, temores, deveres,
necessidades ou introspecções com os quais o indivíduo se vê às voltas, sem
saber bem o que fazer, e interferem em sua vida consciente sempre de maneira
perturbadora. “As características do conflito, do choque, da consternação, do
escrúpulo e da incompatibilidade são próprias dos complexos” (Jung, 1991b, §
989).
Cabe ressaltar, contudo, que Jung não se deteve apenas nos aspectos
negativos dos complexos. Ele considerava que, mesmo provocando perturbações
e reações emocionais, as colisões que inevitavelmente ocorrem entre o indivíduo
e o ambiente externo têm uma função positiva, pois tendem a estimular o
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desenvolvimento do ego, ao exigirem dele maior capacidade de concentração,
levando-o, assim, a desenvolver uma melhor competência para resolver
problemas e a conquistar maior autonomia individual. Através das vigorosas
interações com o mundo, das contrariedades, ameaças e frustrações resultantes
das mesmas, o ego é forçado a efetuar escolhas e a assumir posições e, desta
forma, se vê impelido a crescer (Stein, 2004).
Como os complexos são grupos autônomos de associações, com tendência
de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção
consciente, eles geram uma sensação de impotência e inferioridade, adquirindo
uma conotação negativa perante o ego. Contudo, a despeito dos efeitos
desconcertantes que os complexos imprimem no indivíduo, diante dos quais este
se sente ameaçado e sem controle, Jung (1991b) ressalta que eles também
possuem uma função importante no sentido de impulsionar o ego rumo ao seu
desenvolvimento, servindo, assim, ao processo de individuação. Visto desta
forma, o complexo passa a ser um sintoma valioso para diagnosticar uma
disposição individual que não nos seria acessível de outra maneira.
Sem dúvida, os complexos são uma espécie de inferioridade no sentido mais
amplo; mas quero sublinhar de saída que um complexo ou ter um complexo não
significa logo uma inferioridade. Quer dizer apenas que existe algo discordante,
não-assimilado e conflitivo, um obstáculo talvez, mas também um incentivo para
maiores esforços e, com isso, talvez nova possibilidade de sucesso. Neste
sentido, os complexos são precisamente focos ou entroncamentos da vida
psíquica que não gostaríamos de dispensar, que não deveriam faltar, caso
contrário a atividade psíquica entraria em estado de paralisação fatal. Eles
mostram ao indivíduo os problemas não resolvidos, o lugar onde sofrem, ao
menos provisoriamente, uma derrota, onde existe algo que ele não pode
esquecer ou superar, enfim o ponto fraco, no mais amplo sentido da palavra
(Jung, 1991b, § 990).
Kast (1997a) também aponta os aspectos positivos dos complexos,
afirmando que nestes se encontram os germes de novas possibilidades de vida
22
que se revelam de forma criativa quando o indivíduo os aceita, ao invés de lutar
contra eles, e permite que se desdobrem em símbolos. Segundo a autora, “se o
eu consegue estabelecer um contato com o complexo, experienciar e configurar
as imagens e fantasias que surgem, a energia presa num complexo pode
tornar-se uma energia que vivifica a pessoa inteira” (Kast, 1997a, p. 43). No
entanto, enquanto o indivíduo se mantiver inconsciente de seus complexos, estes
permanecerão atuando de forma compulsiva e sendo projetados no mundo que o
cerca (Whitmont, 2006).
Para Jung (1991b), o complexo surge do choque entre uma necessidade
de adaptação e a constituição especial e inadequada do indivíduo para suprir
esta necessidade. Kast (1997b) enriquece esta explicação, ao afirmar que a
instalação dos complexos se dá a partir de uma interação difícil ou portadora de
significado entre duas pessoas, em que há mobilização de considerável carga
afetiva, e que todo evento semelhante passa a ser interpretado de acordo com
esse complexo, além de reforçá-lo. Ressalta, contudo, que os complexos
raramente surgem de uma única situação traumática; eles representam algo como
uma expectativa generalizada, a qual revela que daí resultam uma experiência e
um comportamento complexados, e que sempre ocorreram repetidas vezes
interações semelhantes entre a criança e as pessoas de seu relacionamento
(Kast, 1997b).
Complexos são núcleos afetivos da personalidade, provocados por um embate
doloroso ou significativo do indivíduo com uma demanda ou um acontecimento no
meio ambiente, acontecimento para o qual ele não está preparado. Torna-se
claro, com essa descrição, que os complexos surgem da interação do bebê, da
criança com as pessoas de seu relacionamento. E a primeira infância é
naturalmente uma situação marcante especialmente sensível para o surgimento
dos complexos; contudo, os complexos podem surgir a qualquer momento,
enquanto vivemos (Kast, 1997b, p. 31).
Podemos, portanto, compreender os complexos como sendo produtos de
experiência - traumas, interações e padrões familiares, condicionamento cultural -
23
que se combinam com elementos inatos, denominados por Jung imagens
arquetípicas, e formam o conjunto do complexo em seu todo. “Os complexos são
o que permanece na psique depois que ela digeriu a experiência e a reconstituiu
em objetos internos” (Stein, 2004, p. 52).
Todo complexo tem dois aspectos: a casca e o núcleo. Whitmont (2006)
descreve a primeira da seguinte forma:
A casca é aquela superfície que imediatamente se apresenta como o padrão
peculiar de reação, dependente de uma rede de associações agrupadas em torno
de uma emoção central e adquirido individualmente, logo de natureza pessoal.
[...] (Whitmont, 2006, p. 59-60)
Ela sempre aponta para experiências pessoais, constituindo uma rede de
associações emocionalmente carregadas, agrupadas em torno de certas
situações geradoras de afeto, a partir da história e do condicionamento pessoais.
É formada, em grande parte, por acontecimentos e traumas da infância,
dificuldades e repressões, podendo, neste sentido, ser redutivamente explicada
em termos de causa e efeito (Whitmont, 2006). Evidentemente, esse
condicionamento da infância não explica tudo, pois, segundo o autor, existem
também na predisposição básica individual diferenças que determinam quais os
tipos de complexos que se desenvolvem ou não em resposta ao ambiente.
Já o núcleo do complexo consiste em um padrão humano universal, o
arquétipo do inconsciente coletivo. Este, no entanto, só pode ser abordado em
termos pessoais, como forma de alcançar seu poder impulsionador e seu
significado.
Portanto, o trauma que dá origem ao complexo cria uma imagem mnêmica
emocionalmente carregada que se associa a uma imagem arquetípica, e ambas
congelam numa estrutura mais ou menos permanente que contém uma certa
quantidade de energia, podendo, através desta, ligar-se a outras imagens
associadas para criar uma rede. Estas imagens são atadas pela mesma emoção e
pelo mesmo núcleo comum de significado (arquétipo). Quando o indivíduo se
24
depara com um estímulo disparador, o conjunto dessas conexões inconscientes é
ativado (constelado), juntamente com a emoção a ele pertencente (Kast, 1997a).
Como assinala Stein (2004), o complexo pertence essencialmente ao
mundo subjetivo, embora represente também uma pessoa, experiência ou
situação real. Ele nunca deve confundir-se com realidade objetiva, visto que é um
objeto psíquico, que possui em seu núcleo uma imagem. Um complexo que tenha
em seu núcleo uma imago da mãe, por exemplo, será um complexo materno,
distinto da mãe real.
Kast (1997b) reforça esta idéia, ao afirmar que, no caso dos complexos
parentais, não existe apenas a experiência com a mãe ou o pai pessoais, mas
que cada pessoa apresenta uma expectativa quanto ao materno e ao paterno
arquetípicos. Ela afirma que “em nossos complexos não se retratam simplesmente
pai ou mãe com seu comportamento ou irmãos exatamente como eles eram; os
complexos parecem ser, antes, uma complicada fusão de algo factualmente
experienciado e algo fantasiado, de expectativas frustradas, etc” (Kast, 1997b, p.
32).
1.4. Persona e Sombra
A sombra e a persona são estruturas complementares e divergentes,
existentes em toda psique humana. O termo persona é utilizado por Jung para
caracterizar as expressões do impulso arquetípico para uma adaptação à
realidade exterior e à coletividade (Whitmont, 2006). Ela é a máscara que usamos
no encontro com o mundo social que nos cerca, e que geralmente não
corresponde ao nosso modo de ser autêntico. Apresenta-se mais como os outros
esperam que sejamos, ou como desejamos ser do que como somos realmente
(Silveira, 1997).
Todos precisamos de outras pessoas para sobreviver física e
psicologicamente. O movimento do ego no sentido da relação e da adaptação ao
mundo dos objetos, buscando assegurar a sobrevivência, oferece à persona a
25
oportunidade de adquirir influência e predomínio. Ela passa, então, a ser a
auto-representação de uma pessoa ao mundo (Stein, 2004).
No entanto, como assinala Whitmont (2006), temos que aprender a nos
adaptar às exigências culturais e coletivas em conformidade com nosso papel na
sociedade – com nossa ocupação ou profissão e posição social – e ainda sermos
nós mesmos. Se a diferenciação ego-persona fracassar, teremos o surgimento do
que o autor denomina “pseudo-ego”, isto é, uma imitação estereotipada dos
padrões coletivos. O pseudo-ego vive num equilíbrio precário, sujeito a pressões
internas constantes, sendo desprovido de consistência.
Como coletividade e individualidade constituem um par de opostos,
trava-se um relacionamento de oposição e de compensação entre a persona e a
sombra. O termo sombra designa a parte da personalidade que foi reprimida em
benefício do ego ideal, por não estar em harmonia com os valores estabelecidos
por uma sociedade. Como tudo o que é inconsciente, ela é projetada em outras
pessoas, que passam, então, a ser combatidas pelo indivíduo.
De acordo com Whitmont (2006), a reação afetiva que marca a projeção
denuncia nosso complexo tonalizado pelo afeto, que interfere em nossa
capacidade de ver objetivamente e nos relacionar humanamente. Quando ocorre
uma projeção da sombra, nos tornamos incapazes de diferenciar a realidade da
outra pessoa dos nossos próprios complexos; ficamos impossibilitados de
distinguir fatos de fantasias e de enxergarmos tanto o outro quanto nós mesmos
(Whitmont, 2006).
Isso porque as características da sombra, em geral, estão em evidente
contraste com os ideais da persona e com os esforços da vontade. Segundo
Whitmont (2006), o desenvolvimento do ego ocorre como resultado do encontro
entre a individualidade potencial interior (o Si-mesmo) e a coletividade exterior, na
qual são projetadas as bases da consciência, no primeiro nível da experiência
entre o certo e o errado. A harmonia com o Si-mesmo depende da aceitação
externa, isto é, dos valores coletivos e da persona, e os elementos da
individualidade que sejam muito discrepantes dos valores aceitos da persona não
podem ser conscientemente incorporados à imagem que o ego tem de si mesmo.
26
Estes elementos se tornam, portanto, sujeitos à repressão, embora nunca
desapareçam; permanecem funcionando como um alter-ego inconsciente que
parece estar localizado fora da pessoa (Whitmont, 2006).
A sombra consiste, portanto, nos complexos, nas características pessoais
que repousam em impulsos e padrões de comportamento relegados da estrutura
da personalidade. Muitas vezes são facilmente observáveis pelos outros, mas não
pelo próprio indivíduo (Whitmont, 2006).
Contudo, ela não se constitui apenas de aspectos tidos como negativos, de
acordo com Silveira (1997):
A sombra é uma espessa massa de componentes diversos, aglomerando desde
pequenas fraquezas, aspectos imaturos ou inferiores, complexos reprimidos, até
forças verdadeiramente maléficas, negrumes assustadores. Mas também na
sombra poderão ser discernidos traços positivos: qualidades valiosas que não se
desenvolveram devido a condições externas desfavoráveis ou porque o indivíduo
não dispôs de energia suficiente para levá-las adiante, quando isso exigisse
ultrapassar convenções vulgares (Silveira, 1997, p. 81).
Quando o indivíduo tem a possibilidade de reconhecer a própria sombra,
esta se torna fonte de renovação. Ela representa o primeiro estágio para o
encontro do Self, servindo como uma importante via de acesso ao inconsciente e
à própria realidade.
No entanto, confrontar a sombra significa mais do que simplesmente
conhecê-la. Para tanto, é preciso sofrer o choque de ver a nós mesmos como
realmente somos, e não como desejamos ou esperançosamente supomos ser. O
primeiro passo rumo à realidade individual só poderá ser dado quando formos
capazes de nos defrontar com a totalidade do ser, que engloba também os
aspectos desviantes dos padrões coletivamente e pessoalmente aceitos.
Deste modo, nenhum progresso ou crescimento é possível sem uma
adequada confrontação da sombra. Quando nos recusamos a encará-la ou
tentamos combatê-la, estamos apenas relegando-a para o inconsciente, de onde
passa a exercer seu poder negativamente, de forma compulsiva e projetada. O
27
mundo, então, é transformado por nossas projeções em um ambiente que espelha
nossas faces, as quais não reconhecemos como nossas (Whitmont, 2006).
1.5. Animus e Anima
Embora considerasse a influência das expectativas culturais e sociais e
dos papéis atribuídos a cada um dos sexos nas maneiras como homens e
mulheres vivem suas vidas, Jung postulou a existência de padrões psicológicos
arquetípicos na consciência, que denominou anima e animus.
Convencionalmente, a anima é a imagem arquetípica feminina no homem, e o
animus é a imagem arquetípica masculina na mulher (Sanford, 2002).
Segundo Stein (2004), anima e animus são personalidades subjetivas que
representam um nível mais profundo do que a sombra. Enquanto esta representa
características pessoais inconscientes e reprimidas, anima e animus personificam
os padrões humanos gerais instintivos, inconscientes e a priori, e tendem a operar
como personalidades parciais, constituídas por diferentes padrões compostos
(Whitmont, 2006).
Sobre a estrutura interna anima/ animus, ele afirma:
Ela é, tal como a sombra, uma personalidade dentro da psique que não combina
a representação de si mesmo e a identidade de si mesmo refletida pela persona.
É diferente porém, da sombra, na medida em que não pertence do mesmo modo
ao ego: é mais “outro” do que a sombra é (Stein, 2004, p. 116).
É uma estrutura psíquica complementar à persona, que vincula o ego à
camada mais profunda da psique, isto é, à imagem e experiência do Si-mesmo.
Neste sentido, funciona como um complexo funcional cujo interesse se concentra
na adaptação ao mundo interior. Da mesma forma como a persona está voltada
para o mundo social e colabora com as necessárias adaptações externas, o
animus e a anima estão voltados para o mundo interior da psique, levando uma
pessoa às imagens do inconsciente coletivo, auxiliando-a a adaptar-se às
28
exigências e necessidades dos pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e
emoções com que o ego se defronta (Stein, 2004).
Como padrão de comportamento, o arquétipo da anima representa os
elementos impulsivos relacionados à vida da emotividade, espontaneidade e dos
instintos. Na medida em que a individualidade separada do homem é
personificada como elemento masculino, a conexão é vivenciada e personificada
como uma entidade feminina (Whitmont, 2006).
De acordo com Whitmont (2006),
Como padrão de emoção, a anima consiste nos anseios inconscientes do
homem, seus estados de espírito, aspirações emocionais, ansiedades, medos,
inflações e depressões, assim como seu potencial de emoção e relacionamento
(Whitmont, 2006, p. 168).
Nas situações que exigem respostas emocionais e instintivas, podem
ocorrer invasões da anima, já que a resposta instintiva e emocional-intuitiva é
aquela que o homem, em geral, é menos capaz de fornecer de maneira
consciente. E, quando determinada situação evoca emoções e a resposta
emocional não é canalizada conscientemente, então, a resposta inevitavelmente
surgirá do inconsciente. Assim, o homem dominado pela anima poderá tornar-se
melancólico, inseguro e retraído (Whitmont, 2006).
Já no caso das mulheres, o animus representa o ímpeto de ação, a
capacidade de julgamento e discriminação. Ele descreve os aspectos de uma
mulher que são os meios pelos quais os julgamentos são formados. Segundo
Whitmont (2006), a mulher conduzida pelo animus é governada por preconceitos,
noções e expectativas preconcebidas, e é dogmática argumentadora e
hipergeneralizadora. Isso porque os julgamentos e convicções emocionais não
foram formados pela consciência, mas desenvolveram-se a partir do inconsciente.
Na primeira metade da vida, anima e animus tendem a projetar-se no
mundo exterior, sobre seres reais, desempenhando um importante papel nos
relacionamentos interpessoais. Contudo, a partir segunda metade da vida,
29
quando tais projeções vão se esgotando, espera-se que sejam integrados à
consciência.
Assim como o enfrentamento da sombra é fundamental para o processo de
desenvolvimento da personalidade, também a confrontação da anima ou do
animus é primordial para este processo. Segundo Sanford (2002), para perceber
a realidade destes fatores arquetípicos, é necessário um considerável esforço da
consciência, e o encontro com estes constitui a obra-prima da individuação. O
processo de conscientização de anima/ animus, ainda que parcial, constitui um
meio indispensável de abordagem da dimensão não-pessoal da psique
(Whitmont, 2006).
Como assinala Whitmont (2006), o confronto com anima/ animus requer
consciência da natureza de suas expectativas autônomas e padrões de respostas
pessoais. É preciso reconhecer seus anseios e necessidades e se adaptar a eles,
canalizar os impulsos para expressões compatíveis com a realidade exterior e os
preceitos éticos da consciência do indivíduo.
1.6. Si-mesmo e Processo de Individuação
Jung (1986) denomina Si-mesmo a personalidade global que existe
realmente, mas que não pode ser captada em sua totalidade. Ele afirma que o eu
está subordinado ao Si-mesmo e está para ele assim como qualquer parte está
para o todo. Portanto, realiza uma discriminação entre ego e Si-mesmo: enquanto
o ego é apenas o sujeito da consciência, o Si-mesmo atua como o sujeito da
totalidade e, por isso, ele também inclui a psique inconsciente. Nesse sentido, o
Si-mesmo seria um fator (ideal) que engloba e inclui o ego (Jung, 1991b).
O Si-mesmo, como conceito psicológico, serve para exprimir uma essência
incognoscível que não se pode entender como tal, afinal, ela transcende o poder
de compreensão da consciência. A este respeito, Jung (1991b) afirma:
30
O si-mesmo, como conceito empírico, designa o âmbito total de todos os
fenômenos psíquicos no homem. Expressa a unidade e totalidade da
personalidade global. Mas na medida em que esta, devido à sua participação
inconsciente, só pode ser consciente em parte, o conceito de si-mesmo é, na
verdade, potencialmente empírico em parte e, por isso, um postulado, na mesma
proporção (Jung, 1991b, § 902).
De acordo com Whitmont (2006), o Si-mesmo é a raiz da qual a
experiência e consciência do ser individual surgem como fenômeno secundário.
Este arquétipo se exprime como um sistema de orientação central dirigido para a
realização e a experiência consciente, embora não esteja no centro da
consciência. Pode ser visto como uma autoridade central, um campo unitário, que
governa tanto o mecanismo consciente quanto o inconsciente, tanto a realidade
interior quanto a exterior (Whitmont, 2006).
Para Stein (2004), a função que o Si-mesmo desempenha na psique pode
ser equiparada à função do ego no campo da consciência:
A influência do si-mesmo sobre a psique como um todo é refletida pela influência
do ego sobre a consciência. À semelhança do si-mesmo, o ego também exerce
uma função centralizadora, ordenadora e unificadora, e o seu objetivo é, tanto
quanto possível, equilibrar e integrar funções, dada a existência dos complexos e
das defesas (Stein, 2004, p. 144).
Assim, o Si-mesmo é o fator que ordena todo o sistema psíquico e o
mantém unido e coeso, criando os equilíbrios entre os vários outros fatores e os
atando numa unidade funcional. Ele atua sobre o sistema psíquico de forma a
produzir símbolos de integridade, imagens que apontam para a totalidade ou
inteireza, como as mandalas ou os quatérnios, por exemplo. Sua tarefa parece ser
a de manter o sistema psíquico unido e em equilíbrio, tendo como meta a unidade
dinâmica (Stein, 2004).
A experiência total de integridade no decorrer de uma vida inteira – o
surgimento do Si-mesmo na estrutura psicológica e na consciência – é o que Jung
31
denominou individuação. Esta consiste na tendência instintiva a realizar
plenamente potencialidades inatas, no processo de tornar-se um indivíduo
psicológico, ou seja, uma unidade consciente separada e indivisa, um todo
indistinto (Stein, 2004).
Segundo Stein (2004), a plena expressão e manifestação da personalidade
leva toda uma vida para se desenrolar; o Si-mesmo emerge pouco a pouco,
através dos numerosos estágios do desenvolvimento humano. O desenvolvimento
psicológico, que acompanha a trajetória do desenvolvimento físico até certo
ponto, pode ser dividido em duas partes: a primeira metade da vida e a segunda.
Na primeira metade, dá-se o processo de diferenciação do ego em relação
ao inconsciente, e seu crescimento, expansão e crescente complexidade e poder
coincidem com o crescimento e desenvolvimento de seu corpo físico. O principal
projeto deste período consiste em desenvolver o ego e a persona até que seja
viável a individualidade, a adaptação cultural e a responsabilidade pela criação
dos filhos (Stein, 2004).
A partir da segunda metade da vida, uma outra tarefa começa a surgir.
Segundo Stein (2004), o desenvolvimento ideal de ego e persona deixou uma
considerável soma de material psicológico fora da consciência: a sombra não foi
integrada, a anima e o animus permanecem inconsciente, e o Si-mesmo
raramente pôde ser visto de uma forma mais direta. Assim, a meta passa a ser a
unificação da personalidade total, abarcando ego e inconsciente, o qual contém a
vida não vivida da pessoa e o seu potencial não realizado (Stein, 2004).
Portanto, o processo de individuação consiste na realização da unidade
psicológica, no sentido mais amplo do termo, o que pressupõe a união de
aspectos conscientes e inconscientes da personalidade. Como assinala Silveira
(1997), é precisamente no confronto entre consciente e inconsciente, no conflito
como na colaboração entre ambos que os diversos componentes da
personalidade amadurecem e se unificam numa síntese, na realização de um
indivíduo específico e inteiro.
A autora descreve resumidamente o processo de individuação e suas
implicações:
32
O reconhecimento da própria sombra, a dissolução de complexos, a liquidação de
projeções, a assimilação de aspectos parciais do psiquismo, a descida ao fundo
dos abismos – em suma, o confronto entre consciente e inconsciente – produzem
um alargamento do mundo interior do qual resulta que o centro da nova
personalidade, construída durante todo esse longo labor, não mais coincida com
o ego. O centro da personalidade estabelece-se agora no self, e a força
energética que este irradia englobará todo o sistema psíquico. A conseqüência
será a totalização do ser, sua esferificação (abrundung). O indivíduo já não estará
fragmentado interiormente. [...] O homem torna-se ele mesmo, um ser completo,
composto de consciente e inconsciente, incluindo aspectos claros e escuros,
masculinos e femininos [...] (Silveira, 1997, p. 88).
CAPÍTULO II - PRESSUPOSTOS ESPECÍFICOS
33
Ocupar-nos-emos, no presente estudo, dos complexos que causam
dificuldades ao indivíduo, isto é, aqueles complexos nos quais estão retratadas as
interações de relacionamento problemáticas e marcantes, bem como as histórias
de relacionamento da infância e da vida posterior, juntamente com as emoções
correspondentes, as formas de defesa que tais emoções assumem e as posturas
e expectativas daí provenientes, diante das inúmeras circunstâncias vivenciais.
Trataremos, mais especificamente, do complexo materno negativo e do
complexo de inferioridade e suas implicações para a auto-estima do indivíduo,
demonstrando em que medida a atuação destes complexos na psique é capaz de
interferir em seu desenvolvimento e nas relações que ele estabelecerá consigo
mesmo e com o ambiente que o cerca.
Para tanto, julgamos necessária uma exposição sobre alguns temas que
estão intimamente relacionados e interligados ao campo de atuação dos
complexos, a começar pela relação com os pais e o estabelecimento de
complexos parentais que é daquela resultante.
2.1. A infância e os complexos parentais
Segundo Jung (1988), nos primeiros anos de vida, o indivíduo se encontra
quase que inteiramente fundido com as condições do meio ambiente. A psique,
na infância, é até certo ponto apenas parte da psique materna e, logo depois, da
psique paterna, em conseqüência da atuação comum dos pais. Daí proviria, de
acordo com o autor, o fato de que as perturbações nervosas e psíquicas infantis
estejam intimamente relacionadas a perturbações na esfera psíquica dos pais. A
partir do momento em que a criança começa a desenvolver a consciência do
próprio “eu”, então, já existe uma psique individual, que, no entanto, só costuma
atingir uma relativa independência após a puberdade. Até este período, continua
sendo em grau elevado joguete dos impulsos e das condições ambientais (Jung,
1988).
34
Jung ressalta a importância do ambiente doméstico e do relacionamento
psíquico dos pais, alegando que nestes quase sempre se encontram as
verdadeiras razões que expliquem as dificuldades dos filhos. Em sua visão, a
perturbação psíquica de uma criança costuma ser muito menos expressão do
interior dela mesma do que reflexo das influências perturbadoras dos pais. Nestes
casos, considera fundamental o acesso aos problemas destes, à maneira como
vivem ou deixam de viver, às suas aspirações que foram realizadas ou
descuidadas, à atmosfera reinante na família e aos métodos educacionais
empregados, pois todo esse condicionamento psíquico exerce uma influência
extremamente profunda na criança (Jung, 1988).
Como nos primeiros anos de vida a criança vive em um estado de
“participação mística” com os pais, ela reage prontamente a quaisquer
desenvolvimentos importantes que ocorram na psique destes. De acordo com
Jung, tanto os pais quanto a criança permanecem inconscientes destes
processos.
Como são contagiantes os complexos dos pais, deduz-se dos efeitos que suas
singularidades produzem nos filhos. Mesmo que os pais façam esforços
constantes e eficientes para se dominarem, de modo que um adulto nem sequer
perceba o mínimo vestígio de um complexo adulto, contudo os filhos de qualquer
maneira serão afetados por ele (Jung, 1988, § 107).
Kast (1997b), no estudo intitulado “Pais e filhas, mães e filhos”, presta uma
valiosa contribuição para o entendimento da atuação dos complexos parentais na
psique do indivíduo. Com base na constatação de que é possível observar,
repetidamente, certos aspectos em todos os complexos maternos ou paternos a
partir de suas marcas encontradas em filhos, mães e pais – por mais diferentes
que estes sejam entre si - ela conclui que existem aspectos típicos destes
complexos, o que também está relacionado aos padrões arquetípicos atuando na
experiência de ser pai, mãe e filho.
Em sua exposição, a autora parte do pressuposto de que os complexos
maternos se formam primariamente na relação com a mãe pessoal e os
35
complexos paternos na relação com o pessoal. Ressalta, no entanto, que esses
pais e mães pessoais também possuem aspectos coletivos, pois há uma imagem
materna e paterna em vigor à qual se deve corresponder e também outras
pessoas com as quais se pode experienciar um sentimento parental ou maternal
(Kast, 1997b).
A depender da experiência que a pessoa teve no seio familiar desde sua
tenra infância, podem se formar complexos parentais que Kast (1997b) classifica
como “originalmente positivos” ou “originalmente negativos”. Os complexos
originalmente positivos têm uma influência favorável sobre o sentimento de vida
e, assim, sobre o desenvolvimento da identidade do indivíduo, ao passo que os
complexos originalmente negativos não propiciam o estabelecimento de um
sentimento de confiança básica no mundo, nem favorecem o desenvolvimento de
um senso de identidade adequado.
Os complexos parentais exercem uma influência tão extensa que, a
despeito de a exposição posterior do indivíduo à cultura mais vasta reduzir a
influência psicológica de culturas étnicas e familiares, os antigos complexos
induzidos pela família não desaparecem jamais da psique. Os complexos materno
e paterno continuam a prevalecer no inconsciente pessoal. Portanto, não
devemos menosprezar a importância do âmbito familiar e, principalmente, dos
pais, no estabelecimento de padrões comportamentais que, na pior das hipóteses,
acompanharão o indivíduo por toda a vida.
Todas as formas de complexos – que são relativamente poucas, diga-se de
passagem – se fundamentam nas primeiras vivências da infância, quando a
disposição individual já se manifesta, uma vez que é inata e não adquirida no
decurso da vida (Jung, 1991b).
O complexo parental nada mais é, portanto, do que o primeiro choque entre a
realidade e a constituição inadequada do indivíduo neste aspecto. A primeira
forma de complexo tinha que ser, portanto, um complexo parental, pois os pais
são a primeira realidade com a qual a criança pode entrar em conflito (Jung,
1991b, § 992).
36
Tendo em vista que um dos focos deste trabalho consiste no complexo
materno, faremos uma exposição mais detalhada sobre o tema.
2.2. Complexo materno
Em sua conferência “Aspectos psicológicos do arquétipo materno”, Jung
(2003a) afirma que a base do chamado complexo materno é o arquétipo materno.
Ele ressalta que é ainda uma questão em aberto saber se este complexo pode
formar-se sem que haja uma participação causal da mãe passível de
comprovação. No entanto, salienta que, a partir de sua experiência, lhe parece
que a mãe sempre está ativamente presente na origem da perturbação,
especialmente nas neuroses infantis ou naquelas cuja etiologia se assenta na
primeira infância.
Ao discorrer sobre o arquétipo materno, cuja variedade de aspectos é
incalculável, Jung (2003a) menciona algumas de suas formas mais
características, apontando que todas elas comportam um sentido positivo,
favorável, ou negativo e nefasto sobre a psique do indivíduo. No que concerne
aos traços essenciais do arquétipo materno, ele escreve:
Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica autoridade do feminino;
a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que
sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento;
o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso
favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o
devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal (Jung, 2003a, § 158).
No que diz respeito ao significado da mãe pessoal, Jung (2003a)
estabelece uma diferenciação entre sua concepção e a teoria psicanalítica, a qual
considera uma psicologia personalista em que a figura materna se sobressai de
tal maneira que não se é capaz de ir além da mãe pessoal. Diferentemente da
visão psicanalítica, sua concepção atribui à mãe pessoal um significado mais
37
limitado, ao acatar a noção de que não é apenas desta que provêm as influências
sobre a psique infantil, mas que, em larga medida, o arquétipo projetado na mãe
outorga à mesma um caráter mitológico, conferindo-lhe autoridade e
numinosidade.
Tal consideração, no entanto, não descarta a importância da mãe pessoal,
que é quem primeiramente fornece as condições necessárias à sobrevivência da
criança, não apenas em termos fisiológicos como também psíquicos.
A portadora do arquétipo é, em primeiro lugar, a mãe pessoal porque a criança
vive inicialmente num estado de participação exclusiva, isto é, numa identificação
inconsciente com ela. A mãe não é apenas a condição prévia física, mas também
psíquica da criança. Com o despertar da consciência do eu, a participação é
progressivamente desfeita, e a conciência começa a tornar-se sua própria
condição prévia, entrando em oposição ao inconsciente. A partir disto o eu
começa a diferenciar-se da mãe e sua particularidade pessoal vai-se tornando
cada vez mais distinta (Jung, 2003a, § 188).
Deste modo, é inegável a possibilidade de que um desenvolvimento
peculiar da fantasia infantil, como raiz da etiologia das neuroses, seja atribuído às
influências perturbadoras da mãe, e que na maioria dos casos de crianças que se
desenvolvem neuroticamente é possível rastrear as causas definitivas de
distúrbios nos pais e, sobretudo, na mãe.
É sabido, contudo, que os conteúdos das fantasias anormais apenas se
referem parcialmente à mãe pessoal, uma vez que eles freqüentemente aludem a
aspectos que sobrepujam o que se poderia atribuir a uma mãe real, tais como
imagens mitológicas, fantasias originadas de contos de fada e de observações
casuais, etc. Jung (2003a) afirma que, em todo caso, “é a esfera instintiva da
criança que se encontra perturbada, constelando assim arquétipos que se
interpõem entre a criança e a mãe como um elemento estranho, muitas vezes
causando angústia” (Jung, 2003a, § 161).
O autor divide, então, os efeitos traumáticos da mãe em dois grupos: os
que correspondem à qualidade característica ou atitudes realmente existentes na
38
mãe pessoal, e os que só aparentemente possuem tais características, já que se
trata de projeções de tipo fantasioso, isto é, arquetípico, da própria criança.
Com relação aos efeitos do complexo materno na filha, ele aponta que este
pode ou estimular efetivamente o instinto feminino ou inibi-lo na mesma
proporção. Expõe as seguintes possibilidades de aspectos negativos do complexo
materno na mulher: hipertrofia do aspecto maternal, exacerbação do eros,
identificação com a mãe e defesa contra a mãe.
No presente estudo, nos ateremos ao último tipo, lembrando sempre que
“tipos” são construções ideais, meios-termos tirados da experiência, com os quais
um caso individual jamais se identifica plenamente (Jung, 2003a).
A defesa contra a mãe é o exemplo típico de complexo materno negativo,
que se trata “menos de uma exacerbação ou bloqueio dos instintos femininos do
que de uma defesa contra a supremacia da mãe que prevalece sobre todo o
resto” (Jung, 2003a, § 170). Aqui há, por um lado, um fascínio da filha pela mãe
que, no entanto, nunca se torna uma identificação e, por outro, uma exacerbação
de eros que se resume, porém, a uma resistência ciumenta contra a mãe. Nestes
casos, a filha procura distanciar-se ao máximo do modelo materno, no qual seus
instintos se concentram sob a forma de uma defesa persistente contra o poder
materno.
A partir da defesa contra a mãe, pode-se verificar um desenvolvimento
espontâneo da inteligência, como forma de criar uma esfera da qual a mãe esteja
excluída. Esse desenvolvimento, segundo Jung (2003a) resulta das próprias
necessidades da filha, com o propósito de quebrar o poder materno através da
crítica intelectual e cultura superior, e freqüentemente, é acompanhado de uma
emergência de traços masculinos em geral. A este respeito, ele afirma:
Graças a sua lucidez, objetividade e masculinidade, este tipo de mulher é
encontrado freqüentemente ocupando cargos importantes, em que sua
feminilidade materna, tardiamente descoberta, conduzida por uma inteligência
fria, desenvolve uma eficiência propícia. Não é apenas exteriormente que se
constata essa rara combinação de feminilidade e inteligência masculina, mas
também no âmbito da intimidade anímica (Jung, 2003a, § 186).
39
Ao negar a mãe, esta mulher também repudia tudo o que é obscuro,
instintivo, ambíguo, inconsciente de seu próprio ser, preferindo colocar em
primeiro plano o que é seguro, nítido e razoável (Jung, 2003a).
A principal marca do complexo materno originalmente positivo é, segundo
Kast (1997), o sentimento de um incontestável direito à existência, de ser
interessante e de integrar um mundo que oferece tudo de que alguém necessita.
Este sentimento é fundamental, na medida em que permite que o eu também
possa entrar em contato, de modo confiante, com um “outro”. Ela considera que
Quem durante a infância experienciou muita dedicação, atenção, interesse em
todas as manifestações, envolvimento do amor maternal, será marcado por um
“complexo materno originalmente positivo”. Este marcará as expectativas em
relação às outras pessoas, à vida, ao mundo, mas também determinará
consideravelmente os interesses (Kast, 1997b, p. 39).
Tendo-se em vista a consideração de Neumann (1995) de que, para o ego
da criança, sua experiência do mundo é a experiência da própria mãe, cuja
realidade emocional determina a existência do filho, então, podemos dizer que a
experiência de uma mãe “suficientemente boa”, provedora de alimento,
sustentação, segurança e amor permite o surgimento de um complexo materno
originalmente positivo, transmitindo ao indivíduo uma confiança primordial e o
sentimento vital do direito natural à existência.
Em contrapartida, uma mãe pouco dedicada à criança, incapaz de nutrir
por esta um verdadeiro interesse, propicia o surgimento de um complexo materno
originalmente negativo, que provoca no indivíduo desconfiança primordial e, em
conexão com isso, um medo existencial e o imperioso sentimento de não ter
nenhum direito à existência (Kast, 1997b).
Aquele cujo maior problema na infância foi o conflito com uma mãe que - por
qualquer razão que seja – tinha dificuldades em se adaptar às necessidades
dessa criança, e quem também não pôde experienciar por meio de outras
40
pessoas uma dedicação maternal sustentadora serão marcados por um
“complexo materno originalmente negativo” (Kast, 1997b, p. 39).
A autora afirma que, para este complexo, é típico o sentimento de que o
indivíduo deve lutar por tudo que seja absolutamente imprescindível. No lugar do
amor não exigente, da segurança, nutrição, proteção, interesse e atenção
experienciados no complexo materno originalmente positivo, encontra-se o
sentimento vital da solidão, do estar à mercê de alguém, “o sentimento de não
receber o suficiente para a vida, mas em demasia para morrer” (Kast, 1997b, p.
155).
É comum às pessoas portadoras de um complexo materno originalmente
negativo o fato de acharem que são um si-mesmo ruim em um mundo igualmente
ruim, que são desprovidas do direito inquestionável à existência,
considerando-se, elas mesmas, culpadas por isso. Como assinala Kast (1997b), o
anseio por um sentimento vital oceânico, que se vincula nitidamente ao
sentimento da participação, é grande. E, em conformidade com a marca deixada
pelo complexo fundamental, esses indivíduos pensam que se deve lutar para
alcançar tal estado.
Embora façam um grande investimento e se esforcem bastante para se
tornar indispensáveis, persiste a sensação de não pertencerem realmente a
outras pessoas, e o sentimento da incontestável participação, tão almejado,
acaba sendo frustrado. Com isso, intensifica-se a expectativa, oriunda do
complexo, de que serão novamente rejeitadas e repelidas pelos outros, mal vistas
e maltratadas. A partir deste fato, juntamente com a convicção de serem um eu
isolado, surgem enormes dificuldades de relacionamento, pois toda expressão
emocional, toda ínfima mudança afetiva de outros indivíduos chamam a atenção
dessas pessoas e são interpretadas pelo viés do complexo dominante,
geralmente no sentido da repulsa, consideradas como rejeição, ofensa.
Costumam reagir a isso com grande fúria (Kast, 1997b).
A necessidade de controle surge, então, como uma tentativa de prevenir o
surgimento do sofrimento. Como não há confiança primordial e um bom
41
sentimento vital ligado a ela, mas sim o predomínio da desconfiança primordial e
do medo, o resultado disso é o entendimento de que tudo o que é passível de
controle deve ser controlado. Kast (1997b) salienta que esta postura de
compensação costuma ser exteriormente interpretada e experienciada como
“complexo de poder”, mas que, na realidade, trata-se de uma tentativa extrema da
pessoa livrar-se de seu sentimento de impotência. Mais adiante, veremos com
maior detalhe os mecanismos de supercompensação para os sentimentos de
inferioridade que acometem essas pessoas.
Paralelamente à necessidade de controle, o rivalizar é fortemente
desenvolvido, bem como a valorização de atributos masculinos, tais como o
desempenho e o destaque profissional, na tentativa de validar-se perante a
sociedade. As exigências que um indivíduo marcado por um complexo materno
originalmente negativo impõe a si mesmo, a fim de ser finalmente digno de amor,
são extremamente altas, e dificilmente costumam ser atingidas. Como afirma Kast
(1997b),
[...] muito freqüentemente se procura o caminho por meio do complexo paterno:
tenta-se conquistar a auto-estima e o sentimento de ser digno de amor por meio
do desempenho, do trabalho. Por meio do desempenho no mais amplo sentido,
estas pessoas procuram ganhar um direito à existência no âmbito social (Kast,
1997b, p. 174).
Outra característica recorrente é a perseveração na figura materna: o
indivíduo permanece fixado à mãe, sempre esperando inconscientemente a sua
“bênção”, esperando que ela reconheça “seu erro na desvalorização”. Um meio
de fazê-lo é através dos êxitos posteriormente alcançados na vida adulta,
freqüentemente revestidos de um significado de respostas à mãe, como forma de
provar seu valor não reconhecido por ela. Mulheres com esse tipo de complexo
materno originalmente negativo freqüentemente permanecem muito ligadas à
mãe, deixam-se tiranizar, jogam jogos recíprocos de poder – sempre na
esperança de um dia finalmente conseguirem a vitória sobre a mãe, mesmo que
42
seja uma vitória tardia. Elas guardam uma grande distância de sua mãe concreta
(Kast, 1997b).
O que também chama a atenção no complexo materno originalmente
negativo, além do nítido problema de auto-estima, ligado a diversas formas da
problemática do medo, é quão freqüentemente se revelam no corpo os problemas
de vida originados disso, e distúrbios psicossomáticos no mais amplo sentido.
(Kast, 1997b).
2.3. Adler e o complexo de inferioridade
A origem do termo “complexo de inferioridade”, que se tornou bastante
popular e acabou sendo utilizado por psicólogos de diversas escolas
psicológicas, está na obra de Alfred Adler, fundador da psicologia individual. Sua
investigação partiu da observação de pessoas portadoras de algum tipo de
comprometimento orgânico, que ele denominou “inferioridade orgânica” (Adler,
1967, p. 72). Estas pessoas, segundo o autor, se empenham desde cedo em uma
árdua luta pela existência, permanecendo continuamente preocupadas consigo
mesmas e com a impressão que os outros possam ter ao seu respeito,
acarretando, assim, um prejuízo ao seu senso de sociabilidade.
Posteriormente, Adler (1967) percebeu que não apenas os indivíduos
gravemente enfermos sofrem do sentimento psicológico da inferioridade, mas
constatou que este é comum a todas as crianças, as quais, crescendo em meio
aos adultos, ficam predispostas a considerar-se fracas, pequenas, incapazes de
viver só:
Compreende-se, ao notar-se quão fraca e inerme é uma criança, que todo o
começo de vida é marcado por um maior ou menor senso de inferioridade. Mais
cedo ou mais tarde a criança adquire consciência de sua inaptidão para lutar,
sem a ajuda de outrem, com as dificuldades da existência. Este sentimento de
inferioridade é a força geradora, o ponto de partida dos impulsos combativos das
crianças (Adler, 1967, p. 72).
43
De acordo com o autor, os sentimentos de inferioridade, de inaptidão e de
insegurança trazem em seu encalço os primeiros desejos do indivíduo de obter
consideração e apreço, de atingir uma posição em que seja aparentemente
superior ao seu ambiente. Conseguir isso representa a possibilidade do advento
de um sentimento de superioridade, de elevação da personalidade a tal ponto que
a vida se torne digna de ser vivida.
Comprimido pelo torturante sentimento de inferioridade, o indivíduo tenta
com todas suas forças neutralizar, sobrepujar este complexo de inferioridade. A
depender da sua intensidade, contudo, tal mecanismo de compensação pode
tornar-se uma supercompensação, que consiste em um exagero na luta pelo
poder e dominação. Nestas circunstâncias, o indivíduo adota uma atitude
incômoda perante o mundo e as outras pessoas, desdenhando-as, desejando
dominá-las a qualquer preço e guardando em relação às mesmas uma distância
que julgue segura (Adler, 1967).
Como demonstra Adler,
Quando se nos deparam casos de impulso patológico para a dominação,
presenciamos indivíduos a procurarem assegurar a sua posição na vida com
esforços extraordinários, com precipitação e impaciência inconcebíveis e com
uma violência de ímpetos que despreza todas as considerações e conveniências
(Adler, 1967, p. 78).
Ao referir-se à teoria adleriana, Jung (2004) considera que esta contém
uma verdade acerca da necessidade de auto-afirmação do indivíduo, baseada na
inferioridade, e julga que é um erro a atitude de menosprezá-la. Ao seu ver, a
concepção de Adler corresponde a uma realidade psíquica e, portanto, pode
explicar bem determinados casos. “A psicologia individual de Adler é uma
contribuição que não deve ser menosprezada, e representa, por conseguinte,
uma ampliação do ponto de vista psicológico” (Jung, 2004, § 39).
Ele procura, na medida do possível, aplicar a hipótese adleriana, sem
perder de vista sua relatividade. Deste modo, não vemos nenhum tipo de
44
inadequação em tomarmos emprestado de Adler o termo “complexo de
inferioridade” e seus desdobramentos específicos, anteriormente explicitados,
para uma melhor compreensão do caso que será analisado neste estudo.
2.4. Auto estima e sentimento de inferioridade
Em sua obra, Jung não costuma empregar o termo “complexo de
inferioridade” para referir-se ao sentimento de invalidez, de insegurança, de
fraqueza que toma conta do indivíduo. Utiliza, em seu lugar, o termo “sentimento
de inferioridade”.
No que concerne à inevitabilidade do estabelecimento de um sentimento
de inferioridade durante a infância, encontramos em Whitmont (2006) uma noção
bastante parecida com a de Adler, visto que o primeiro também concebe o
equilíbrio da inferioridade como algo inerente à formação do ego. Afirma que, de
uma forma ou de outra, o ego em crescimento sempre apresenta a tendência de
vivenciar a si mesmo como relativamente inadequado e inferior, e que este é um
elemento básico do complexo do ego (ou complexo de identidade).
Como já ficou postulado, o sentido de existência da criança como ser
unificado, sua auto-imagem e senso de identidade são condicionados pelas
emoções particulares de seus pais - especialmente da mãe -, e sua relação com
os mesmos. A estrutura do ego saudável se baseia em uma atitude amorosa dos
pais em relação à criança, de aceitação desta como um indivíduo separado da
auto-imagem dos pais, capaz de formar suas próprias respostas e de lutar por
seus objetivos (Whitmont, 2006).
Whitmont (2006) ressalta que esta situação ideal raramente é encontrada,
visto que as reações dos pais são condicionadas por seus próprios complexos e
projeções. Assim, uma das conseqüências da impossibilidade de um equilíbrio
“correto” dos pais é a escassez de aceitação amorosa na infância, que pode
conduzir a uma confiança exagerada do ego, auto-rejeição (pois o ego não aceita
45
a realidade da sombra), culpa, dificuldade para confiar nos outros e para
relacionar-se, bem como uma ênfase acentuada no egoísmo e no egotismo.
Um relacionamento no qual a criança tem muito pouca aceitação amorosa leva a
um agravamento da tensão da inferioridade, a sentimentos de inadequação,
culpa e deficiência; as outras pessoas parecem ser melhores, mais capazes, mais
desejáveis, portanto, essa criança torna-se ressentida, invejosa, superagressiva,
cheia de ódio e sem autoconfiança. Sua auto-rejeição procurará compensação na
rebelião, superindependência, superambição e agressividade (Whitmont, 2006, p.
212).
Encontramos aqui o “complexo de inferioridade” de Adler - um eu dominado
pelo sentimento de autopiedade, julgando-se privado de seu “legítimo” lugar ao
sol – e o conseqüente impulso de poder como forma de compensar essa
inferioridade.
Em um de seus trabalhos sobre a psicologia infantil, Jung (1998) trata da
problemática da inferioridade, que sempre traz em seu bojo uma superioridade,
como forma de compensação. A este respeito, ele considera:
(...) as crianças procuram de certo modo tornar real a sua inferioridade e
começam a compensá-la por meio da falsa superioridade; esta superioridade, por
sua vez, não passa de inferioridade, mas é de natureza moral e por isso nunca
satisfaz, e aqui começa um círculo vicioso. Quanto mais se procura compensar
uma inferioridade real por meio de uma falsa superioridade tanto menos se
consegue eliminar a inferioridade, mas se lhe acrescenta ainda uma inferioridade
moral, cujo efeito é aumentar o sentimento de inferioridade. Isto conduz
necessariamente a uma falsa superioridade ainda mais acentuada; e tudo se
repete de modo crescente (Jung, 1988, § 226).
Por mais que a falsa superioridade não elimine o sentimento de
inferioridade, mas, pelo contrário, acabe até mesmo por engrandecê-lo, parece
inevitável que uma sempre venha acompanhada da outra. Na visão de Jung
(2003a), “apesar de serem contraditórias, ambas as formas são idênticas, porque
46
à megalomania consciente corresponde uma inferioridade compensatória e a uma
inferioridade consciente, uma megalomania inconsciente” (Jung, 2003a, § 304).
Portanto, nunca encontramos uma sem a outra, pois funcionam em uma dinâmica
compensatória.
O sentimento de inferioridade desempenha um papel importante nos
problemas de auto-estima. Kast (1997a) afirma que os complexos mais
perturbadores são os do âmbito da auto-estima, a qual ela define como “a emoção
que constitui o complexo do eu” (Kast, 1997a, p. 43). Por sinal, a autora parece
utilizar este termo, “complexo do eu”, para referir-se ao complexo de inferioridade.
É o que podemos inferir do trecho abaixo:
O complexo do eu constela-se quando não conseguimos realizar um trabalho do
eu para o qual nos julgávamos capazes, e envergonhamo-nos por causa disso.
Ou quando alguém se refere a um lado nosso que, na verdade, gostaríamos de
manter oculto aos nossos olhos e aos dos outros; somos revelados, expostos em
um existir deficitário e novamente nos envergonhamos por isso e nos sentimos
ofendidos, porque talvez alguém tenha reduzido nossa auto-estima de maneira
bastante proposital. Ofensas que levam a uma constelação do complexo do eu
também se relacionam com nossa necessidade de aceitação. Se essa
necessidade não é satisfeita, se somos muito pouco vistos, pouco percebidos,
infimamente avaliados, se nosso complexo do eu recebe muito pouca afirmação
e atenção do exterior, ele poderá “pôr-se em movimento”. Quando
experienciamos uma ofensa, quando nos sentimos envergonhados e restringidos
em nossa atividade do eu, precisamente no ponto em que queríamos
alegremente arriscar, aparece esse sentimento de não valer nada – na linguagem
popular teríamos aqui um complexo de inferioridade (Kast, 1997a, p. 87).
Nesta afirmação, há uma ênfase na ampla influência que as pressões do
mundo externo e a atitude das pessoas para conosco exercem em nossa
auto-estima. Elas têm o poder de nos fazer sentir envergonhados, rebaixados,
desvalorizados, ofendidos, e toda essa espécie de sentimentos negativos incide
diretamente sobre a avaliação que o ego faz de si próprio. Isso porque o
47
complexo do eu tem de lidar com instâncias exigentes, que reclamam a realização
dos valores coletivos e individuais depositados na auto-imagem ideal. Essas
instâncias são elementos derivados das exigências éticas das pessoas de nossos
relacionamentos, pais, professores, sistemas religiosos coletivos (Kast, 1997a).
Neste sentido, portanto, a auto-estima encontra-se intimamente
relacionada com a sombra, na qual residem aspectos nossos que repugnamos
profundamente e que, no entanto, não podemos ocultar, pois são visíveis em
nossas ações. A aceitação deste lado da personalidade implica em conflitos e
ofensas à nossa auto-estima. “A ofensa à auto-estima ocorre porque insistimos
em nos identificar apenas com as boas representações de nós mesmos” (Kast,
1997a, p. 70). Quando conseguimos aceitar e integrar os conteúdos da sombra,
experienciamos o alívio, pois já não precisamos constantemente reprimi-los, e o
senso de auto-estima conseqüentemente se torna menos suscetível às avaliações
externas e às cobranças internas.
O valor ou dignidade que alguém atribui a si mesmo é como Jacoby (apud
Schmitt, 2006) define a auto-estima. Ele assinala que
Auto-estima é o valor básico que eu atribuo à minha personalidade. Essa
avaliação está profundamente assentada no inconsciente e somente é alterável
dentro de limites. Com elevada auto-estima, eu tenho um sentimento bom,
satisfatório, sobre a minha auto-imagem – a fantasia que eu tenho de mim
mesmo. A autodepreciação e sentimentos de inferioridade derivam de uma
avaliação negativa. Esses autojulgamentos estão bastante relacionados com as
avaliações e julgamentos que outros significativos fizeram no começo de nossas
vidas (Jacoby, apud Schmitt, 2006, p. 58).
Já Schmitt (2006) considera a baixa auto-estima como sendo uma situação
em que o ego não se encontra em sintonia com o Self. Ele afirma que no indivíduo
com baixa auto-estima, normalmente, o ego tenta assumir uma posição em que
age como se tomasse o lugar do Self. Ao contrário, uma alta auto-estima
corresponderia a uma situação em que o ego se encontra em profunda conexão
com o Self, ouvindo a “voz” que dele emana. Segundo o autor, “ao seguir valores
48
que não estejam em sintonia com o Self, o indivíduo encontra-se em uma situação
de baixa auto-estima, do ponto de vista junguiano, mesmo que, aparentemente,
ele se mostre confiante e seguro de si” (Schmitt, 2006, p. 64).
A auto-estima e o complexo de inferioridade que atua em seu âmbito são
um ponto central nos chamados distúrbios de caráter narcisista, que veremos a
seguir.
2.5. Narcisismo
Os chamados transtornos de caráter narcisista são quadros psicológicos
de extrema complexidade. Uma discussão ideal sobre o tema demandaria um
aprofundamento que fugiria ao propósito deste trabalho; portanto, procuraremos
nos ater aos seus aspectos mais básicos.
Em seu estudo “A Criança”, Neumann (1995) discorre sobre a relação
primal mãe-filho, demonstrando que esta é decisiva nos primeiros meses de vida
de uma criança, quando seu ego começa e se desenvolver e adquirir unidade.
Para o autor, o desenvolvimento normal nesta fase da vida, caracterizado por
uma confiança permanente no amor da mãe, leva ao automorfismo, à formação de
um ego integral positivo, capaz de assimilar e integrar as qualidades dos mundos
interno e externo, ao estabelecimento de um eixo ego-Self estável, à sociabilidade
e à adaptação ao meio ambiente (Neumann, 1995).
Dentre as possíveis conseqüências de um distúrbio na relação primal, que
torna anormal o desenvolvimento do ego, Neumann (1995) cita o narcisismo.
Segundo o autor, “se uma relação primal negativa produziu um ego negativizado,
as agressões resultantes não podem mais ser integradas e, nesse caso, teremos
os fenômenos aos quais o termo narcisismo poderá ser aplicado com
propriedade” (Neumann, 1995, p. 64). Nestas circunstâncias, o ego se torna
prematuramente supervalorizado, como forma de compensação para uma
situação de desamparo e desamor. É devolvido precocemente a si mesmo e
49
levado à independência pela situação de ansiedade e desconfiança (Neumann,
1995).
É apenas o ego ferido, privado da experiência de segurança – o fundamento de
toda fé e confiança – que, por causa de sua ansiedade e desconfiança, se vê
forçado a desenvolver um narcisismo que é a expressão de um ego reduzido a
seus próprios recursos. (Neumann, 1995, p. 65).
Existe uma necessidade humana básica e vital pelo que Heinz Kohut,
baseado em sua experiência clínica com distúrbios da personalidade narcisista,
denominou “ressonância empática”. Esta consiste no reconhecimento que o outro
demonstra para conosco e que valida nossa experiência, nos faz sentir seres
reais, aceitos e, conseqüentemente, importantes para outras pessoas e para nós
mesmos (Jacoby, 2004). Afinal, “ser refletido é ser compreendido, é sentir que
alguém segue empaticamente nossos pensamentos, sentimentos, experiências,
etc” (Schwartz, 1988, p. 60).
A ressonância e o reflexo da própria existência propiciados pelo meio
circundante é uma necessidade vital de todo ser humano, necessidade esta que
denota um equilíbrio narcisista saudável e uma busca pela sensação realista de
amor-próprio. Conforme assinala Jacoby (2004), a reflexão é especialmente
crucial na primeira infância, quando deve existir uma relação simbólica entre a
mãe e a criança:
[...] o desenvolvimento de um sentimento de amor-próprio realista e relativamente
estável mais tarde, durante a vida, depende, num alto grau, da ressonância
empática e do reflexo sensível que uma mãe é capaz de dar a seu filho ou sua
filha (Jacoby, 2004, p. 49).
A pessoa que toma conta da criança após seu nascimento é o primeiro e
mais decisivo espelho da existência de qualquer ser humano. Caso o indivíduo
não constate a presença de um outro que lhe forneça o reflexo e a ressonância
empática, então, podemos estar diante de um distúrbio da personalidade
50
narcisista extremada, cujo sofrimento sintomático decorre da sensação básica de
isolamento e falta de confiança no mundo (Jacoby, 2004).
Nestas condições, o indivíduo apresenta dificuldades em saber quem ele é
realmente, em sentir-se bem-vindo e acolhido onde quer que esteja. Jacoby
(2004) revela que essas pessoas se tornam hipersensíveis, captando o mais sutil
sinal de uma possível rejeição, com um efeito traumatizante no senso do eu.
Como forma de se defender contra esta constante ameaça, desenvolvem uma
convicção supercompensatória, segundo a qual não necessitam de
absolutamente ninguém e se julgam capazes de uma total auto-suficiência. Para o
autor, isto consiste, na realidade, em uma identificação inconsciente com
sentimentos infantis de onipotência, ou com o chamado “eu grandioso” de Kohut
(Jacoby, 2004, p. 49).
Schwartz (1998), em seu estudo “Narcisismo e Transformação do Caráter”,
combina os pontos de vista junguiano e psicanalítico acerca das questões
subjacentes ao narcisismo e ao problema da identidade, considerando que ambos
os pontos de vista são necessários nestes casos.
O conceito de narcisismo, popularmente conhecido pela auto-adoração
extrema, acompanhada de uma indiferença que nega as necessidades do outro,
surgiu cedo na teoria psicanalítica. Conforme assinala Schwartz (1988), o termo
indicou, inicialmente, o amor-próprio num grau patológico e uma
impenetrabilidade associada, características estas que levavam um prognóstico
terapêutico pessimista. Acreditava-se que as assim chamadas desordens de
caráter narcisista eram intratáveis, pela consideração de que as defesas
narcisistas postas em ação pelo indivíduo constituíam uma barreira impenetrável,
impedindo o estabelecimento de qualquer tipo de vínculo transferencial com o
analista. Posteriormente, à medida que experiências clínicas foram sendo
realizadas, descobriu-se que, na realidade, são estabelecidas transferências
muitos intensas.
A principal queixa das pessoas narcisistas é, segundo Schwartz (1988),
uma falta de identidade e de auto-estima. Algumas das características dominantes
nestes casos são: auto-referência levada ao extremo, ausência de
51
penetrabilidade, evitamento de contato, intolerância a críticas, desconhecimento
da realidade simbólica, baixa capacidade empática, orgulho de não ter
necessidades, entre outras. Sua fenomenologia consiste em auto-ódio,
necessidade de onipotência acentuada, sentimentos de raiva e inveja. De forma
resumida, portanto, a atitude defensiva especial da desordem de caráter
narcisista constitui uma defesa contra danos a um sentimento de identidade muito
pobre e frágil (Schwartz, 1988).
Um aspecto que o autor levanta é que a estrutura do caráter narcisista
consiste em um padrão que se configura como um vínculo entre os domínios
pessoal e arquetípico e que, portanto, é uma estrutura existente em todo padrão
arquetípico e em toda personalidade, um paradigma de uma estruturação geral da
psique que se manifesta em várias condições psicológicas (Schwartz, 1988, p.
34).
A estrutura do caráter narcisista é encontrada em personalidades que exibem as
mais variadas qualidades. Essa estrutura pode ser dominante ou constituir um
aspecto em todo padrão psicológico. Ela pode ser o padrão dominante, caso no
qual falamos de uma desordem do caráter narcisista. Ela também pode ser um
padrão auxiliar, secundário com relação a um outro, capaz de ajudar ou destruir o
desenvolvimento desse outro padrão. Trata-se de um forte aspecto do padrão
conhecido como puer aeternus e de sua contraparte, o senex. É sempre uma
qualidade da personalidade criativa, que se torna particularmente evidente
quando a pessoa luta para trazer sua criatividade ao mundo. É também a
qualidade dominante da personalidade infantil, que tem um forte complexo
materno. Essa relação pode ser estendida, pois a desordem do caráter narcisista
não corresponde a nenhum padrão arquetípico singular (Schwartz, 1998, p. 33).
A causa do que denomina de desordem do caráter narcisista residiria na
rejeição ao Si-mesmo, a incapacidade de viver o verdadeiro padrão pessoal.
Apenas o Si-mesmo é capaz de dar à pessoa um sentido de direção e, em última
análise, uma percepção da identidade pessoal. Assim, o caráter narcisista
fracassa em viver a realidade do Si-mesmo e sente a falta de uma relação vívida
52
entre o ego e este arquétipo, cuja numinosidade excede em muito o conteúdo de
energia do ego (Schwartz, 1988).
O autor faz uma distinção entre o conceito psicanalítico de “si-mesmo
inflado grandioso-exibicionista”, que domina o caráter narcisista, e o Si-mesmo
como imagem do “ser humano maior” que procura ser realizado, impulsionando
sempre o ego para além de sua realidade conhecida. O primeiro exibe uma
acentuada qualidade defensiva, orientada para o poder, e não possui a
numinosidade do Si-mesmo, na terminologia junguiana. “Em oposição ao
si-mesmo grandioso-exibicionista, o Si-mesmo conduz o ego de uma maneira
capaz de levar à descoberta do sentido e à sensação de viver o próprio destino,
em lugar de levar às contínuas ilusões e ao inevitável beco sem saída do poder
pelo poder” (Schwartz, 1988, p. 24).
O Si-mesmo, devido a sua grandiosidade e por ser dotado de sua própria
vontade autônoma, ameaça levar o ego a profundezas que ele preferiria evitar.
Daí advém o que Schwartz (1988) denomina “temor ao Si-mesmo”, uma pedra
angular do narcisismo.
De fato, o caráter narcisista está numa atitude defensiva com relação à
numinosidade do Si-mesmo, pois o poder dessa numinosidade é muito superior
ao seu e poderia derrotar com facilidade seu si-mesmo grandioso. É essencial
compreender que o caráter narcisista está na defensiva, não apenas com relação
às relações externas com o objeto, mas igualmente com relação ao mundo
interno da realidade arquetípica. Esses dois planos são para ele uma grande
ameaça. O caráter narcisista teme o Si-mesmo, pois o Si-mesmo sempre é uma
derrota para o ego, especialmente quando há uma fusão grandiosa entre o ego e
o Si-mesmo (Schwartz, 1998, p. 24).
O indivíduo que encontrou um equilíbrio saudável de suas necessidades
narcisistas mantém uma postura despretensiosa diante do Si-mesmo,
reconhecendo sua pequenez e suas limitações egóicas. Disso resulta a
possibilidade de um contato com sua realidade mais profunda, como explicita
Stein (2004):
53
Quando o ego está bem ligado ao Si-mesmo, uma pessoa mantém-se em relação
com um centro transcendente e não está narcisisticamente investida em objetivos
míopes e ganhos a curto prazo. Em tais pessoas, existe uma qualidade sem ego,
como se estivessem consultando uma realidade mais profunda e mais ampla do
que as meras considerações práticas, racionais e pessoais típicas da consciência
do ego (Stein, 2004, p. 138).
CAPÍTULO III - ARTE E PSICOLOGIA: INTERFACES
Em seu ensaio “Psicologia e poesia”, Jung (1991a) estabelece uma
diferenciação clara entre o estudo da estrutura psicológica de uma obra de arte e
a análise das circunstâncias psicológicas do homem criador. No primeiro caso, o
objeto da análise e interpretação psicológicas é a obra de arte concreta, enquanto
que, no segundo, é o próprio aparelho psíquico do ser humano criador, como
personalidade única e singular. Ele enfatiza que, por mais que a obra de arte e o
homem criador estejam profundamente ligados entre si, numa interação recíproca,
eles não se explicam mutuamente.
Certamente é possível tirar de um deduções válidas no que concerne ao outro,
mas tais deduções nunca são concludentes. [...] A psicologia pessoal do criador
revela certos traços em sua obra, mas não a explica. E mesmo supondo que a
explicasse, e com sucesso, seria necessário admitir que aquilo que a obra
contém de pretensamente criador não passaria de um mero sintoma e isto não
seria vantajoso nem glorioso para a obra (Jung, 1991a, § 134).
Com a colocação acima, ele faz uma crítica à tentativa de Freud de explicar
a obra de arte a partir da esfera das vivências pessoais do artista, derivando-a de
suas neuroses e recalques. Esta redução da obra de arte à anamnese pessoal,
na visão de Jung, a transforma em um mero “substitutivo”, uma simples expressão
54
de um complexo pessoal, degenerando-a a ponto de esta não passar de uma
perturbação psíquica. Diante disso, ele preconiza: “É evidente que o artista deve
ser explicado a partir de sua arte, e não através das insuficiências de sua
natureza e de seus conflitos pessoais” (Jung, 1991a, § 158).
O segredo do mistério criador é, para este autor, um problema
transcendente, ao qual não compete à psicologia responder. Isso porque o
impulso criativo é visto como originário de uma área onde a verdadeira vida
psíquica tem sua origem - o inconsciente coletivo. Sendo assim, ao psicólogo
cabe apenas descrever os processos como possibilidades, sem nada poder
afirmar sobre a obrigatoriedade ou necessidade dos mesmos:
A totalidade dos processos psíquicos que se dão no quadro do consciente pode
ser explicada de maneira causal; no entanto, o momento criador, cujas raízes
mergulham na imensidão do inconsciente, permanecerá para sempre fechado ao
conhecimento humano (Jung, 1991a, § 135).
Sobre o ato criativo, é possível traçar hipóteses, mas nunca alcançar um
entendimento completo ao seu respeito. Jung (1991a) assinala que os elementos
criadores irracionais que se expressam nitidamente na arte desafiarão todas as
tentativas racionalizantes e, portanto, a psicologia deve renunciar à pretensão de
impor causalidades indubitáveis à criação artística.
Em vista destas considerações, cabe aqui ressaltarmos que o presente
estudo não tem como finalidade estabelecer relações meramente causais entre
fatos da vida pessoal de Maria Callas e seus feitos artísticos, o que representaria
uma atribuição por demais reducionista e incoerente com os preceitos de Jung
acerca dos possíveis diálogos entre arte e psicologia. Tampouco temos como
objetivo analisar a realização artística per se de Callas.
Não obstante, tais ressalvas não descartam a possibilidade de que sejam
levantadas algumas hipóteses a respeito da relação de Maria Callas com sua
arte, mais especificamente, e, de maneira mais ampla, com o mundo e as pessoas
a sua volta.
55
A opção por este tipo de abordagem do problema encontra acolhida na
consideração de Jung (1991a) de que o princípio da psicologia de mostrar o
material psíquico como algo decorrente de premissas causais também é válido,
apesar de sua relatividade. Ele afirma também que a solução para o enigma do
homem criador pode ser proposta de várias maneiras, e que sua psicologia
pessoal pode e deve ser explicada de um modo pessoal, por ser fato inegável que
o mundo pessoal do artista influencia sob muitos aspectos a escolha e a forma de
sua temática. “Não se pode negar que a psicologia pessoal do poeta
eventualmente se encontra nas raízes e mesmo nas ramificações mais tênues de
sua obra” (Jung, 1991a, § 155).
É evidente que passaremos ao largo da pretensiosa intenção de desvendar
o mistério da criação artística tratando-a como algo de derivado, secundário, ou
mesmo como um sintoma, mas tendo sempre em vista que ela é um símbolo real,
a expressão de uma essencialidade desconhecida.
Se nos ativermos apenas a esse modo de considerar a questão, ressaltando
explicitamente os condicionamentos pessoais que nunca deixam de comparecer,
não haveria qualquer objeção a fazer. Mas se pretendermos, mediante essa
análise, esclarecer a essência mesma da obra de arte, então é preciso rejeitar
categoricamente tal pretensão (Jung, 1991a, § 156).
Vejamos, então, o que Jung tem a dizer sobre o processo de criação e o
indivíduo criador que lhe serve de veículo.
3.1. O artista e a criação
Embora Jung não tenha em nenhum ponto de sua obra propriamente
elaborado uma definição para criatividade, ele aborda o fenômeno no ensaio
intitulado “Determinantes Psicológicas do Comportamento Humano”, onde procura
estabelecer uma relação entre fatores biológicos e fatores psicológicos na
determinação do comportamento humano.
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Ele afirma que “os fatores psíquicos que determinam o comportamento
humano são, sobretudo, instintos enquanto forças motivadoras do processo
psíquico” (Jung, 1984, § 233). Por instinto ele entende o fator não só mais antigo,
como também anterior e exterior à psique (extrapsíquico), que se caracteriza
principalmente pela compulsividade. No entanto, o instinto está sujeito a um
processo denominado por Jung psiquização, que consiste na “assimilação do
estímulo a uma estrutura psíquica complexa” (Jung, 1984, § 234). Pode ser
modificado através e por meio de várias estruturas psíquicas, e é a este instinto já
experienciado, sentido e observado no comportamento que Jung se refere.
Em seguida, ele descreve cinco grupos de fatores instintivos básicos do ser
humano, quais sejam: fome, sexualidade, impulso para a atividade, reflexão e, por
último, instinto criativo. Jung chega a colocar em dúvida a utilização do termo
“instinto” para designar o fenômeno da criatividade, mas justifica-a alegando que
este fator se comporta dinamicamente, à semelhança de um instinto:
É compulsivo, como o instinto, mas não é universalmente difundido nem é uma
organização fixa e herdada invariavelmente. Prefiro designar a força criativa
como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto. Na
realidade, há íntima e profunda relação com os outros instintos, mas não é
idêntico a nenhum deles. Suas relações com a sexualidade são um problema
muito discutido, e sem muita coisa em comum com o impulso a agir e com o
instinto de reflexão. Mas pode também reprimir todos estes instintos e colocá-los
a seu serviço até à autodestruição do indivíduo. A criação é ao mesmo tempo
destruição e construção (Jung, 1984, § 245).
Como assinala Hillman (1984), o impulso criativo é capaz de produzir
imagens de seus objetivos e de orientar o comportamento para sua satisfação.
Segundo esta visão, ele constitui uma necessidade da vida, e a satisfação desta
necessidade se torna uma tarefa inadiável. A criatividade, no ser humano, requer
consumação, sendo um componente tão básico para o homem quanto a fome e a
sexualidade, por exemplo.
57
Jung (1991a) chega a equiparar o impulso criativo a um complexo
autônomo, tamanha a força com que irrompe na consciência do indivíduo criador:
O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do
qual extrai seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o
processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem. A
psicologia analítica denomina isto complexo autônomo. Este, como parte
separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva vida psíquica
independente e, de acordo com seu valor energético e sua força, aparece, ou
como simples distúrbio de arbitrários processos do consciente, ou como instância
superior que pode tomar a seu serviço o próprio Eu. (Jung, 1991a, § 115).
A natureza autônoma, caprichosa e arbitrária do complexo é sentida, ela
mesma, como um “imperativo” do inconsciente que leva o indivíduo a realizar algo
de diferenciado. Trata-se de um acontecimento de natureza inconsciente que se
impõe sem a participação da consciência humana, e algumas vezes até mesmo
contra ela. Como assinala Jung (1991a), “a obra inédita na alma do artista é uma
força da natureza que se impõe, [...] sem se incomodar com o bem-estar pessoal
do ser humano que é o veículo da criatividade” (Jung, 1991a, § 115).
Ele ressalta que o artista é tanto uma personalidade humana quanto um
processo criador impessoal. É bem freqüente que isso resulte em uma vida cheia
de conflitos, na medida em que dois poderes passam a digladiar-se internamente:
de um lado, a personalidade comum, cujas demandas básicas e legítimas são a
felicidade, a satisfação e a segurança vital, e, de outro, a paixão criadora e
intransigente, que acaba suplantando todos os desejos pessoais.
Devido ao que ele denomina “inferioridade” ou “faculdade deficiente de
adaptação” da personalidade humana, Jung (1991a) constata que o destino
pessoal de muitos artistas é deveras insatisfatório, quando não trágico:
O lado humano é tantas vezes de tal modo sangrado, em benefício do lado
criador, que ao primeiro não cabe senão vegetar num nível primitivo e
insuficiente. Tal fenômeno se exprime freqüentemente como puerilidade e
58
negligência, ou como um egoísmo ingênuo e intransigente (o assim chamado
“auto-erotismo”), como vaidade e outras fraquezas. Essas inferioridades são
significativas, pois devido a elas poderá ser encaminhada para o eu uma
quantidade suficiente de energia vital. O eu necessita dessas formas vitais
inferiores, porque senão sucumbiria a uma privação total. O auto-erotismo
pessoal de certos artistas pode ser comparado ao de certos filhos ilegítimos ou
negligenciados, que precisaram defender-se precocemente contra o efeito
destruidor de um ambiente desprovido de afeição, desenvolvendo em si mesmos
traços negativos. Tais crianças, com efeito, tornam-se muitas vezes
abusivamente egocêntricas, quer passivamente, permanecendo infantis e frágeis
durante toda a vida, quer ativamente, revoltando-se contra a moral vigente e as
leis (Jung, 1991a, § 158).
Também encontramos em Neumann (apud Schmitt, 2006) uma distinção
entre o que ele considera o “homem normal” e o “homem criativo”. Na visão do
autor, o que os diferencia é a “tensão psíquica intensiva que está presente no
homem criativo desde o começo; nele, uma animação especial do inconsciente e
uma ênfase igualmente forte sobre o ego e o seu desenvolvimento são passíveis
de demonstração desde os mais remotos estágios” (Neumann, apud Schmitt,
2006, p. 129). Portanto, a concepção de Neumann parece um pouco menos
pessimista no que diz respeito à possibilidade de estruturação egóica nos
indivíduos criativos.
Mesmo assim, ele não deixa de ressaltar que a natureza do homem criativo
faz com que ele não cumpra o desenvolvimento nomal do homem mediano, com a
sua correspondente adaptação à realidade. Afirma que, embora no homem
criativo também haja uma ligação entre os complexos pessoais e as imagens
arquetípicas, nele, esse processo não ocorre como no homem normal, por meio
da adaptação ao princípio da realidade; seus conflitos com o ambiente
geralmente se dão já nos estágios mais precoces, com grande intensidade. “Em
oposição às demandas do cânone cultural, o homem criativo se agarra
rapidamente ao mundo arquetípico, à sua bissexualidade original e à totalidade
ou, em outras palavras, ao seu Self” (Neumann, apud Schmitt, 2006, p. 130).
59
3.2. James Hillman e as noções de criatividade
Hillman (1984), em “O Mito da Análise”, dedica um capítulo ao fenômeno
da criatividade, procurando fornecer uma base arquetípica para suas noções. Ele
enumera seis idéias principais acerca da criatividade.
A primeira delas relaciona a criatividade ao arquétipo paterno, expressa na
imagem de um Deus criador, que introduz a ordem onde antes só havia o Caos,
conferindo-lhe perfeição e harmonia. O mito do Gênesis, segundo coloca o autor,
apresenta a criação como um artefato do poder paterno, que separa, diferencia,
forma e declara a excelência de sua obra. O indivíduo identifica o processo
criativo com a diferenciação e tenta, com seu trabalho, produzir algo definitivo,
inquestionável, clássico e permanente mediante a coerência sistemática e a lei
axiomática:
A criatividade, aqui, é definida como um processo ordenador, de integração à
unidade, com a mandala como objetivo. E, mais ainda, as ordens moral e estética
são associadas: justiça, proporção, adequação, sistema; cada coisa em seu
lugar. O nous do ego se torna um pleroma sem partes móveis ou irracionais e, à
medida que a criatividade passa a corresponder à noção arquetípica,
configurando-se numa perfeição estável, ela converte-se na esterilidade do
senex. (Hillman, 1984, p. 47).
Portanto, a noção de criatividade filtrada através do arquétipo do pai
implica método e hierarquia, ordem e estrutura, qualidade e produtividade.
A segunda noção traz a criação como novidade, como possibilidade para o
surgimento de alguma coisa inteiramente nova. Esta idéia relaciona a criatividade
com a imagem do puer aeternus e do arquétipo da criança divina. A pessoa
criativa está sempre em movimento, e o movimento procede do conhecido rumo
ao desconhecido, do velho ao novo. Ela rompe os limites do tempo para alcançar
a eternidade; projeta-se sempre no futuro, revelando uma aura de futuridade. O
60
autor assinala que esta noção é recoberta de esperança e otimismo, crescimento
e prazer, e que a ênfase é colocada no singular e no único.
A criatividade será definida principalmente pela palavra originalidade, enquanto
sua expressão negativa será a irresponsabilidade narcisista. Como nada
permanece, e não se pode preservar nada sem matar a centelha que não se
destina a durar, deve haver um contínuo fluxo e flexibilidade, avanço,
espontaneidade, inspiração divina – incondicionada, sem causa e sem
precedentes. Consolidação e maturidade impedem as erupções lampejantes de
novidade mercurial; por isso, o método é jogo, sorte, artimanhas, justaposições
caprichosas – e não o trabalho (Hillman, 1984, p. 48).
Já a terceira idéia relaciona o criativo com a sombra, abarcando tanto seus
aspectos construtivos quanto destrutivos. Sua influência parece ter como
verdadeiro objetivo a “contaminação” pela atividade (níveis primitivos de
agressão), pela fome e pela sexualidade, de forma a reforçar o instinto criativo
através da apropriação de outras energias instintivas. Esta noção concebe uma
certa obscuridade do impulso criativo, que é mantido na sombra a fim de não ser
inibido em seu poder primordial. A criatividade se torna, assim, poder primordial,
refletida no anormal, no extraordinário e na capacidade para extremos de
intensidade. O criativo é identificado com o rebelde, o iconoclasta, o
revolucionário, o insensato.
Em lugar de intelecto e razão, criatividade aqui significa primitivo, desnudo,
ignorante, negro, despojado e depravado. O poder bruto torna-se criatividade,
mas também o seu reverso: o desmembramento brutal, lacerado e lacerante no
drama criativo da sombra. [...] Como a fonte desta vitalidade dinâmica está na
obscuridade, ela é uma invocação do oculto e exige uma descida ao abismo da
desordem [...] (Hillman, 1984, p. 49).
61
A quarta noção associa a criatividade ao complexo do ego, sendo a mais
comum em nossa cultura atual, com sua ênfase na psicologia do ego. Ela se
apresenta na mitologia através do roubo prometéico, em que o eu rouba a luz dos
deuses e se expande, às custas da divina luz da imaginação e da mente natural,
simbólica. Revela a capacidade humana de resolver problemas, de inventar e
descobrir, de converter o mistério da natureza num problema a ser desvendado,
ampliando, assim, o campo sob controle consciente:
O criativo, percebido pelo ego, é uma inventiva resolução de problemas, tudo
aquilo que pode servir para a expansão ou intensificação da consciência. [...]
Esta noção diz que as atividades criativas são “nove décimos transpiração”
(Hillman, 1984, p. 49).
A quinta idéia relaciona o criativo com o arquétipo da persona, como parte
da consciência coletiva que identifica criatividade com eminência, sumidade,
sucesso e fama. O criativo é percebido através da persona, e a pessoa se
transforma em sua própria imagem. A própria máscara se torna a portadora
psíquica do instinto criativo, que é expresso por meio dos gestos, da etiqueta, dos
rituais, da imagem, da performance:
O indivíduo não pode abdicar de seu papel, em parte por motivos de poder, mas
sobretudo porque o papel contém a sua eficácia criativa. Sua máscara representa
uma força coletiva, transpessoal, arquetípica, de modo que é obrigado a usá-la a
fim de se relacionar com os Deuses. Aqui, persona não significa apenas
aparência exterior, uma performance encenada que esconde o verdadeiro
si-mesmo; aqui ela é o verdadeiro si-mesmo em sua encenação arquetípica
(Hillman, 1984, p. 50).
O autor salienta que, neste contexto, a persona recupera seu sentido
original, necessário à realidade do teatro e da tragédia.
62
A sexta noção relaciona a criatividade ao arquétipo da Grande Mãe, a fonte
primordial que carrega consigo o eterno movimento de recriação da natureza, de
nascimento, morte e renascimento:
À criatividade foi dado o significado de renovação e o caminho para ela seria a
regressão cíclica. O criativo é apresentado como o intemporal e indestrutível
terreno da natureza [...]. Somos seus servos, aguardando, passivos. O criativo é
uma fonte externa, uma inconsciência que é a mãe, nutrindo e regenerando
(Hillman, 1984, p. 51).
Haveria também uma sétima noção de criatividade, relacionada ao
arquétipo da anima, o padrão feminino não materno. Ele remete à sensualidade, à
sensibilidade, ao interesse estético, à feminilidade, à imaginação e à fantasia.
Este aspecto da atividade criativa é denominado incubação, até mesmo gravidez
e nascimento; e este aspecto do produto criativo é denominado sua imaginação e
beleza. Encontramos então: passividade, receptividade ao que surge, ingestão, o
eu que segue as imagens da fantasia em seu fluir emotivo ou paira sobre elas, a
susceptível sensibilidade que absorve o mundo através dos poros na própria
corrente sanguínea, enfado e amuo segundo o capricho da fantasia, os humores,
os amores, as excentricidades (Hillman, 1984, p. 53).
No entanto, segundo Hillman (1984), todas as referidas concepções de
criatividade dependem de um princípio criativo que se expressa sob a forma de
Eros:
O criativo é um resultado do amor. É marcado pela imaginação e beleza e pela
conexão com a tradição como força vivente e com a natureza como corpo
vivente. Esta percepção do instinto insistirá na importância do amor; para ela,
nada pode ser criado sem amor e o amor se revela como origem e princípio de
todas as coisas [...] (Hillman, 1984, p. 58).
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Para o autor, o mito de Eros e Psiquê constitui o “mito fundamental da
criatividade psicológica” (Hillman, 1984, p. 58). O despertar da alma através do
amor é um tema bastante recorrente no mito, nos contos populares, nas artes,
bem como nas experiências subjetivas, podendo, assim, ser considerado
arquetípico.
64
CAPÍTULO IV - MARIA CALLAS
Considerada a maior cantora lírica soprano do período do pós-guerra e
uma das mais importantes de todo o século XX, Maria Callas imprimiu uma
revolução sem precedentes no mundo da ópera. Embora sua voz não se
destacasse pela beleza convencional de timbre, possuía uma extensa amplitude
que permitia à cantora interpretar papéis desde o alcance do mezzo-soprano até
o do soprano coloratura. Com domínio perfeito das técnicas do canto lírico, tinha
um repertório versátil, que incluía obras do bel canto, de Verdi, do verismo italiano
e até mesmo de Wagner. Ao longo de sua carreira, ela interpretou dezenas de
óperas de diversos estilos, perpetuando-se em papéis como Medea, Norma,
Tosca, Violetta, Lucia, Gioconda, Amina, entre outros.
Callas entrou para a história da ópera por suas inigualáveis habilidades
cênicas. Levando à perfeição a habilidade de alterar a "cor" da voz com o objetivo
de expressar emoções, e explorando cada oportunidade de representar no palco
as minúcias psicológicas de suas personagens, mostrou que era possível imprimir
dramaticidade mesmo em papéis que exigiam grande virtuosismo vocal por parte
do intérprete - o que usualmente significava, entre as grandes divas da época,
privilegiar o canto em detrimento da cena.
Praticamente sozinha, revitalizou e ampliou o repertório do bel canto.
Como considera Hutchinson (1996),
No século de Pasta e Malibran e do romantismo desenfreado, a voz se
tornara um instrumento a serviço do drama emocional; e era a essa tradição
esquecida que Maria pertencia. Desde o início ela reconheceu a totalidade de voz
e emoção. Sabia expressar furor e também transmitir uma melancolia capaz de
partir o coração. E, sem prejudicar o drama, devolveu à música o “acabamento”,
pesando meticulosamente cada frase, cada palavra; usando as palavras como
parte da escultura musical a que dava vida; e jamais fazendo do canto uma
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pirotecnia inexpressiva. Sempre subordinou a técnica à expressão e a beleza
vocal à verdade dramática (Hutchinson, 1996, p. 68).
Para Callas, a expressão vocal era primordial, em detrimento dos exageros
vocais injustificados. O divisor de águas que ela representa na história do canto e
da ópera é que, a partir dela, o trabalho de interpretação dramática passou a ser
tão importante quanto a música em si, e isto em uma época na qual a
verossimilhança nas encenações operísticas era praticamente inexistente. Assim,
reconduziu o cantor ao centro do universo operístico, reabilitando-o como o
principal veículo das intenções dramáticas do compositor.
Certa vez, revelou:
Não basta ter uma bela voz [...] O que isso significa? Quando interpreta um papel
você precisa ter mil nuanças para transmitir felicidade, alegria, tristeza, medo.
Como poderia fazer isso só com uma bela voz? Às vezes a expressão exige
estridência. [...] Pois seja estridente, ainda que as pessoas não compreendam.
(Hutchinson, 1996, p. 68).
Descendente de imigrantes gregos com poucos recursos financeiros, Ánna
María Cecilía Sofía Kalogerópulu nasceu em Nova York, em dezembro de 1923.
Aos sete anos de idade, iniciou sua educação musical e passou a ganhar prêmios
de canto e a destacar-se nas peças e concertos realizados no colégio. A partir
dos onze anos, teve início um longo circuito de espetáculos infantis, programas
de rádio e competições.
Em 1937, ela e a mãe embarcaram para a Grécia, onde estudou no
Conservatório Nacional de Atenas com Elvira de Hidalgo, a quem é atribuído o
mérito de seu real treinamento vocal. Adquiriu com facilidade a precisão e a
disciplina que a técnica do bel canto exige, e esse aprendizado constituiu a base
do profissionalismo e do perfeccionismo que distinguiram sua carreira.
Apesar do relativo sucesso que Callas conheceu na terra natal de sua
família, em 1944 ela decidiu voltar para os EUA, onde se envolveu em produções
malfadadas. Em 1947 as coisas começam a mudar em sua vida, quando foi então
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convidada para protagonizar a ópera “La Gioconda”, de Ponchielli, no festival de
ópera da lendária arena de Verona.
Apenas em 1949, quando Callas substitui a soprano Margherita Carosio no
papel de Elvira em “I Puritani” no teatro La Fenice, em Veneza, é que parece ter
iniciado a história da diva que mudaria a cena lírica. Foi neste ano também que se
casou com o industrial italiano Giovanni Battista Meneghini, que se tornaria seu
empresário artístico e grande responsável pela projeção de sua imagem.
Não raro ela cancelava de última hora suas apresentações, alegando
motivo de saúde ou porque simplesmente não se achava em condições de fazer
tudo o que queria fazer. Em mais de uma ocasião, subiu aos palcos contra a
recomendação de seus médicos. Com um forte resfriado, escapou em 2 de janeiro
de 1958 da Ópera de Roma pela porta dos fundos após um primeiro ato sofrível
de Norma, de Bellini, em uma récita prestigiada pelo então presidente da Itália,
Giovanni Gronchi. Em 29 de maio de 1965, ao concluir a primeira cena do
segundo ato de Norma, Callas desfaleceu e a apresentação foi interrompida.
É bem provável que muito do sentido pejorativo do termo “diva” em Callas
tenha surgido destes cancelamentos de última hora, além de sua conturbada vida
pessoal, que contribuiu para a lenda que se formou em torno da cantora.
Tornou-se famosa por indispor-se com maestros e colegas em nome de suas
crenças estéticas.
No final de 1953, ela finalmente realiza uma verdadeira metamorfose
corporal. Na versão de alguns, para melhor se adaptar aos papéis das frágeis
heroínas que representava, segundo outros, para melhor adaptar-se a um ideal
de diva que ela já havia vislumbrado para si, Maria perde mais de 40 quilos,
obtendo o “physique de rôle” para praticamente qualquer papel e adquirindo
ainda mais visibilidade na mídia.
Muito foi dito sobre a associação entre a perda de sua voz e seu
emagrecimento, a partir do qual algumas dificuldades vocais começaram a se
tornar evidentes. No entanto, a hipótese mais verossímil parece ser a de que o
desgaste vocal tenha sido decorrente do fato de ela cantar personagens muito
diferentes entre si, obrigando-a a constantes mudanças de tessitura que
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acabaram por desestabilizar sua voz, além, é claro, do excesso de trabalho no
início da carreira e do excesso de “farra” em seu final.
Neste momento, sua carreira, que já vinha sofrendo um crescente declínio
– fora banida dos dois maiores teatros de ópera do mundo, o Scala e o
Metropolitan -, arrefeceu-se ainda mais a partir de 1959, quando ela rompeu seu
casamento de dez anos com Meneghini para viver um romance que jamais se
concretizou em matrimônio com o milionário grego Aristóteles Onassis. Após este
tê-la preterido por Jacqueline Kennedy, seu mundo desaba. Apesar disso,
continua amando-o e recebendo suas constantes visitas.
Em 1971, tenta um retorno frustrado ao mundo da ópera com suas Master
Classes na Julliard, em Nova York. Em 1973 e 1973, faz uma série de concertos
de despedida ao lado de Giuseppe di Stefano, nos quais sua voz encontrava-se
em frangalhos. Após a morte de Onassis, em 1975, Callas passa a evitar cada
vez mais a vida social, vivendo confinada em seu apartamento em Paris, onde
veio a falecer em 1977, de ataque cardíaco.
ANÁLISE E DISCUSSÃO
1. As experiências da primeira infância
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Seus pais, George e Evangelia Kalogeropoulos, emigraram da Grécia após
a perda traumática de um filho, morto em uma epidemia de febre tifóide. Eles
tinham uma verdadeira adoração pelo menino, cuja morte abalou profundamente
o casal. George secretamente tomou a decisão de partir para os Estados Unidos,
a contragosto da esposa, que já se encontrava grávida de Maria. Anos mais tarde,
Evangelia escreveu: “Foi como se meu coração tivesse morrido junto, e pensei
que nunca voltaria a viver” (Hutchinson, 1996, p. 19).
Segundo nos relata Hutchinson (1996), os Kalogeropoulos sonhavam ter
um novo filho homem, acreditando que um menino viria tomar o lugar do filho
morto. Todas as roupas tricotadas por Evangelia eram azuis, tudo o que
compravam para o bebê era destinado a um menino. “Desde que Vasily morreu”,
disse a mãe, “rezei para ter outro filho que preenchesse o vazio de meu coração”
(Hutchinson, 1996, p. 20).
Nunca lhes passou pela cabeça a possibilidade de Evangelia estar grávida
de um bebê do sexo feminino. Quando ela finalmente deu à luz uma menina, em
lugar do filho tão esperado, as expectativas do casal foram frustradas. Maria foi
rejeitada desde o nascimento, que, para os pais, representou uma decepção:
As primeiras palavras que Maria ouviu de sua mãe foram: “Leve-a daqui”. E a
primeira coisa que sua mãe fez foi desviar os olhos do bebê para fixá-los na
nevasca que caía lá fora. Seus pensamentos cheios de amor e de tristeza se
voltaram para Vasily. Quando a enfermeira lhe perguntou que nome deveria
colocar no bracelete de identificação, não obteve resposta. [...] Evangelia
demorou quatro dias para olhar novamente para a filha (Hutchinson, 1996, p.
20-21).
Temos neste relato do início da vida de Maria uma boa dica sobre o tipo de
ambiente familiar que serviu de base ao seu desenvolvimento, e os futuros
desdobramentos da recepção negativa da criança por parte dos pais, como o
estabelecimento de um complexo de inferioridade que a acompanharia por longos
anos.
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Evidentemente, não devemos perder de vista que o complexo surge da
combinação de fatores externos e internos, isto é, das interações com o ambiente
e dos elementos inatos, arquetípicos. Mas, como assinala Whitmont (2006), o
complexo deveria sempre ser interpretado primeiramente sob a luz dos
acontecimentos e traumas da infância que constituem suas “cascas”, pois são as
manifestações concretas do complexo no aqui e agora. Apenas quando o pessoal
(o ontogênico) foi completamente explorado, na visão do autor, é que se deve
buscar compreender o núcleo arquetípico do complexo. Deste modo, nos
focaremos naquilo que nos é dado conhecer - as pessoas concretas e as
interações de Maria com o ambiente -, cientes de que este é apenas um dos
componentes de formação do complexo, sem dúvida, também essencial.
Desde pequena, Maria fugia ao padrão estético da época: vivia acima do
peso considerado apropriado para uma criança e usava óculos “fundo de garrafa”
para corrigir uma miopia avantajada. Ela tinha uma irmã mais velha, Jackie, com a
qual rivalizava pelo amor e a atenção da mãe. Como vimos nos capítulos teóricos,
é bastante comum que as pessoas dotadas de um complexo materno
originalmente negativo desenvolvam um senso de competitividade aguçado, e a
convicção de terem que lutar para garantir seu lugar no mundo.
Os cinco anos e meio que separavam Maria de Jackie contribuíram para
que ela idealizasse a primogênita:
As coisas não eram nada fáceis para Maria: mais nova, mais gorda, mais sem
graça, deve ter logo percebido que era também a menos amada. Na competição
pelo amor da mãe, Jackie vencera, e durante toda a sua infância, Maria a invejou.
No entanto, ao mesmo tempo, a adorava, ansiava por sua companhia, queria seu
afeto total (Hutchinson, 1996, p. 22).
Assim, não só a rejeição e a indiferença sofridas por parte da mãe, mas
toda a atenção e o afeto que eram destinados à irmã contribuíram decisivamente
para o estabelecimento de um sentimento de inferioridade e de uma auto-imagem
negativa. Como demonstra Hutchinson (1996), era inevitável que surgissem
comparações perniciosas entre as duas filhas:
70
Todos os demais comparavam suas duas filhas e os cinco anos e meio que as
separavam determinavam a conclusão. Jackie era alta, esbelta, linda, com seus
cabelos e olhos castanhos. Maria era gorda, tinha o rosto salpicado de espinhas
e os imensos olhos negros escondidos através de grossas lentes. Era a sombra
da irmã: menos bonita, menos promissora, menos “dotada”. Era evidente, pelo
menos à primeira vista, que a menina mais velha não encontraria nenhuma
dificuldade em realizar um bom casamento, constituir uma bela família e ter o
sustento garantido pelo resto da vida. Já a caçula bem provavelmente acabaria
ficando para titia e seria obrigada a se arranjar sozinha (Hutchinson, 1996, p. 25).
Maria convenceu-se de tal modo de sua feiúra que desenvolveu o hábito
de desviar os olhos ou até fechá-los para não ter de encarar-se em um espelho.
Anos mais tarde, afirmou que se sentia “detestada e detestável”, e achava justo
que a rejeitassem, pois não tinha nenhuma dúvida de que era “um patinho feio,
gordo, desengonçado e malquisto” (Hutchinson, 1996, p. 26). Pode-se dizer que o
complexo de inferioridade encontrou em seu corpo, em sua aparência, um lugar
propício para se desenvolver.
Sabemos que a pessoa que tem um complexo materno originalmente
negativo está certa de não ser um si-mesmo bom e de viver em um mundo ruim,
desprovida do direito inquestionável à existência. O mundo é tal como é, e o
indivíduo sente que é ele mesmo o culpado de sua própria infelicidade (Kast,
1997b). Isso fica claro na passagem acima, quando Maria revela achar justo que
a rejeitassem. Na realidade, sentia-se ela mesma culpada pela situação,
julgando-se, portanto, merecedora de tal ônus e do sofrimento inerente ao
mesmo.
De acordo com Hutchinson (1996), a menina desenvolveu cedo o hábito de
empanzinar-se, decerto para compensar a carência e a fome de amor que sentia.
A mãe oferecia à filha quantidades praticamente ilimitadas de comida, o que pode
ser compreendido como uma forma que Evangelia encontrou para aplacar a
própria culpa pela impossibilidade de demonstrar-lhe afeto de outras maneiras.
71
Kast (1997b) assinala que mulheres que possuem, elas mesmas, um
complexo materno originalmente negativo e não se emancipam dele têm, em
geral, dificuldade de realmente oferecer à criança um interesse genuíno. Não
temos acesso à história de Evangelia, mas tudo leva a crer que estamos diante de
um destes casos, em que a mãe exige muito, em que vê a si mesma, mas não o
filho, apresentando dificuldades para deixar que a criança se desenvolva de
acordo com sua própria natureza.
Os hábitos alimentares infantis de Maria se mantiveram por anos – a
menina vulnerável e infeliz continuava bem viva, porém, se encontrava sob o
controle de “La Callas”. Temos aqui um dado importante – a compulsão alimentar
- que, embora não seja o foco da análise, não deve ser ignorado, por manter
relações estreitas com o complexo materno negativo.
Woodman (2006), em seu estudo sobre as causas psíquicas e somáticas
da obesidade, detectou alguns fatores comuns, cuja presença podemos
identificar, em maior ou menor grau, em Maria Callas. Dentre as características
recorrentes no discurso das mulheres obesas que entrevistou, destacamos as
seguintes:
- crianças pouco amadas pela sua individualidade;
- rígido controle no lar;
- emoções reprimidas, desejo exagerado de viver a vida não-vivida dos pais;
- acossadas por projeções dos pais. Desejo de perfeição contrabalançado por
sentimento de falta de valor interior;
- sentido esmagador de isolamento;
- consideração de que se é feia, uma covarde fracassada aos olhos dos pais;
- desenvolvimento de um sentimento de inferioridade moral.
Deixaremos o detalhamento destas questões, principalmente das que
dizem respeito às expectativas desmesuradas dos pais em relação a seus filhos,
para o próximo tópico da análise. Por ora, o que nos interessa salientar é que o
complexo materno é crucial quando uma mulher está sob o domínio de uma
desordem alimentar (Woodman, 2006). Uma mãe que não dispõe de recursos
internos para dar respostas diferenciadas às necessidades de seu filho, ou não
72
tem o amor para atender a essas necessidades, responde a todo “choro” (não só
no sentido literal da palavra, como também metafórico) com comida. Ela o
alimenta, mas, em contrapartida, ele também deve alimentá-la. É assim que o
complexo da mãe negativa é sentido pelo filho: como se engolisse de um só trago
sua capacidade de viver como indivíduo (Jackson, 1999).
Conseqüentemente, “o anseio pela boa mãe pode se transformar em uma
ânsia por toda espécie de substitutos” (Jackson, 1999, p. 26). Neste sentido,
comer em excesso e ser obesa podem ser uma defesa contra uma ruptura
psicológica. Jackson (1999) ressalta que problemas com a figura materna são
propensos a se refletir no corpo e na imagem corporal, e freqüentemente se
concretizam em problemas relativos à alimentação.
Como considera Kast (1997b), as nossas necessidades corporais podem
se manifestar tanto de forma saudável e natural como também patológica e
defensiva, a depender do tipo de complexo materno que se configurou. Segundo
a autora,
O corpo é a base do complexo do eu. Sobre a base de um complexo materno
positivo, as necessidades corporais são vivenciadas como algo “normal”, e
também podem ser normalmente satisfeitas. Há uma alegria natural com o corpo,
a vitalidade, a comida, a sexualidade. [...] Os outros contribuem para nosso
próprio bem-estar psíquico – e podemos contribuir para o bem-estar dos outros.
Uma pessoa que pode contar com interesse e compreensão e experiencia uma
certa plenitude de amor, cuidado, compreensão e segurança desenvolverá uma
saudável atividade do eu (Kast, 1997b, p. 13).
Esta é uma situação ideal, que não se aplica ao caso de Maria. Através
dos relatos da cantora que Hutchinson cita ao longo da biografia, torna-se
evidente que ela não pôde experienciar uma “ressonância empática”, o interesse
e compreensão a que Kast (1997b) se refere, ficando privada da plenitude do
amor, cuidado e segurança que são a condição primária para o desenvolvimento
de uma atitude saudável do eu. Isso fez com que, prematuramente, ela já tivesse
73
estabelecido a base de sua visão de mundo e sua filosofia de vida um tanto
amarga:
Viver é sofrer, e quem diz o contrário para as crianças é desonesto, cruel [...]. Se
você está vivo, está lutando. Isso acontece com todos nós. A diferença está nas
armas que você usa e nas armas que são usadas contra você. Trata-se da
combinação de personalidade e circunstância. De destino (Hutchinson, 1996, p.
28).
Este relato nos remete a um comentário de Von Franz (2005), a respeito
das pessoas que têm dificuldade em aproximar-se de seu centro e só se sentem
em contato com seus sentimentos quando sofrem, quando vivenciam seu Self
verdadeiro. Ela salienta que, no período da infância, o indivíduo está muito mais
suscetível ao sofrimento:
[...] eu diria que a criança que existe na pessoa adulta é a fonte de sofrimento; é
a parte que realmente sofre, pois a parte adulta pode aceitar a vida como ela é, e
não sofre tanto. Os sofrimentos da infância são os piores – este é o verdadeiro
sofrimento – embora eles possam ser causados por coisas de pouca importância
[...]. Isso porque a criança é uma totalidade e uma totalidade em todas as suas
reações; portanto, mesmo se é apenas um brinquedo que lhe é tomado, é como
se o mundo estivesse vindo abaixo. [...] na infância há tragédias terríveis, o que
mostra que o núcleo infantil é a parte autêntica da pessoa e que é essa parte que
sofre, que não consegue aceitar a realidade e que reage dentro do adulto como
uma criança que diz “Quero tudo, e se eu não conseguir o mundo vai acabar”.
Tudo estará perdido. É assim que a parte autêntica da personalidade permanece
e que constitui sua fonte de sofrimento (Von Franz, 2005, p. 86).
A despeito do que vimos em Adler (1967) e Whitmont (2006), de que o ego
em crescimento sempre apresenta a tendência de vivenciar a si mesmo como
relativamente inadequado e inferior, este é um caso em que houve realmente um
desequilíbrio da inferioridade na formação egóica, em virtude de um
relacionamento no qual a criança teve muito pouca aceitação amorosa. Esta
74
situação leva a um agravamento da tensão da inferioridade, a sentimentos de
inadequação, culpa e deficiência. As outras pessoas parecem ser sempre
melhores, mais capazes, mais desejáveis (vide sua irmã, Jackie); portanto, a
criança torna-se ressentida, invejosa, cheia de ódio e sem autoconfiança.
A auto-rejeição de Maria procurou compensação na superambição e na
agressividade competitiva; logo desenvolveu a noção de que tinha que ser boa o
suficiente para superar todos os seus adversários. Esta supercompensação foi
fundamental inicialmente, pois lhe serviu como um importante alicerce de
sustentação em meio à adversidade que emanava do ambiente. É sobre este
alicerce que cedo a auxiliou - a música - que faremos algumas considerações no
próximo tópico.
2. O canto: oásis e grilhões
Evangelia era uma mãe notoriamente preocupada com a formação de sua
prole, e passou, desde cedo, a tomar providências para estimular as inclinações
musicais das filhas. Com a Quebra da Bolsa de Nova York, George Callas se viu
obrigado a vender sua farmácia e a trabalhar como caixeiro-viajante de produtos
farmacêuticos, a fim de suprir as necessidades básicas da família. Apesar das
dificuldades financeiras, Evangelia fazia questão de que as filhas tivessem aulas
de piano quatro vezes por semana, e, para isso, obrigava o marido a desembolsar
uma parte considerável de seu limitado salário. Ele considerava isso uma
frivolidade, um luxo desnecessário, apenas uma forma de a esposa realizar suas
ambições frustradas.
Pode-se dizer que George não estava de todo enganado em sua
consideração. Com suas pretensões, no tocante à posição social, Evangelia não
se conformava com a idéia de ter uma vida pacata e prosaica. Fora obrigada a
abandonar seus sonhos de fazer carreira no teatro, e não tinha outra escolha
senão admitir que nunca se destacaria por seus próprios méritos nem
transformaria seu marido em um homem notável. Assim, transferia
75
obsessivamente suas ambições frustradas para as filhas, como forma de
realizá-las.
Trata-se aqui de um daqueles casamentos típicos, em que o pai vive quase
que inteiramente absorvido pelos negócios, e a mãe se serve da filha para nela
encarnar sua ambição social. Jung (1988) revela que, neste contexto, a criança
deve ter êxito para que se realizem os desejos e as esperanças da mãe e para
que a vaidade desta última fique satisfeita. Um dos grandes inconvenientes desta
atitude materna está descrito na citação abaixo:
As mães desse tipo normalmente não enxergam o verdadeiro caráter da criança,
nem seu modo individual de ser, nem mesmo suas necessidades reais. Ela se
projeta na criança e a governa com seu poder de domínio, sem nenhuma
consideração (Jung, 1988, § 222).
Além do mais, o autor afirma que a mulher, quando é dotada de tal
masculinidade, torna-se quase incapaz de ter uma verdadeira compreensão
relativamente aos sentimentos de seu marido. Exige dele dinheiro, e ele, por sua
vez, paga para que ela se mantenha numa disposição de espírito relativamente
suportável. Como Jung (1988) salienta, é uma mulher cujo amor transforma em
ambição e desejo de poder. “Na realidade, não se dá à criança o menor vestígio
de verdadeiro amor” (Jung, 1988, § 222).
O autor constata ser bastante freqüente que os pais imponham ao filho as
próprias ilusões e ambições não realizadas. Quando os pais, por qualquer motivo
que seja, não podem viver sua vida consciente como gostariam, são os filhos as
principais pessoas afetadas pela carga dos desejos parentais não realizados, o
que ocorre principalmente via inconsciente. “Em regra, a vida que os pais podiam
ter vivido, mas foi impedida por motivos artificiais, é herdada pelos filhos, sob uma
forma oposta” (Jung, 1988, § 328). Isto significa que os filhos são forçados
inconscientemente a tomar um rumo na vida que compense o que os pais não
realizaram na própria vida, pois, via de regra, “o fator que atua psiquicamente de
um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais ou antepassados não
viveram” (Jung, 1988, § 87).
76
Esta atitude dos pais é verdadeiramente devastadora, quando esperam
que seus filhos consigam fazer melhor o que eles próprios não estão fazendo
bem. Impossibilitados de serem eles mesmos, de atualizarem suas
potencialidades genuínas, os filhos carregam a sensação de serem seres
inapropriados, estranhos a si mesmos, pois sua verdadeira natureza permanece
acuada diante dos anseios parentais devoradores.
Nas palavras do autor:
Nada é mais poderoso para fazer uma criança tornar-se estranha a si mesma, do
que os esforços feitos pela mãe para encarnar-se e realizar-se na criança, sem
tomar em consideração uma única vez que o filho não é simplesmente o
prolongamento da mãe, e ocasionalmente sendo até portador de uma
estarrecedora diversidade (Jung, 1998, § 222).
Conforme Maria se dedicava ao estudo da música e começava a se
destacar por seus dotes vocais, era inevitável que seu talento saltasse aos olhos
argutos da mãe e fizessem com que esta passasse, então, a nutrir a convicção de
que a filha seria uma cantora de prestígio, e de que um futuro grandioso a
aguardava.
Evangelia sempre sonhara ver as filhas em posição de destaque. “O que
eu queria para minha filha era a fama. O dinheiro vinha em segundo lugar”
(Hutchinson, 1996, p. 47), revelou em uma entrevista, quase trinta anos mais
tarde. Em sua imaginação, Maria despontava para o mundo envolta numa glória
cada vez maior, e ela estava no centro dos triunfos da filha. A voz era a chave
que abriria a porta de tais triunfos.
Como aponta Hutchinson (1996),
Assim, enquanto a filha ainda falava e sonhava em ser dentista, a mãe já havia
decidido que ela seria não só cantora, como uma grande cantora, e não só uma
grande cantora, como uma grande cantora de fama internacional. Em sua
cabeça, amor, felicidade, fama e dinheiro eram valores intercambiáveis. Na época
77
essa perigosa confusão lhe deu uma convicção inabalável que se tornou a força
propulsora da vida da filha (Hutchinson, 1996, p. 24).
Com relação às delegações das mães às filhas de muitas das coisas que
elas mesmas não viveram, Kast (1997b) ressalta que estas constituem privações
da liberdade e, além disso, atrapalham sensivelmente a relação entre mãe e filha.
Um apontamento interessante que a autora faz é de que, a despeito de haver
delegações também entre pais e filhos, entre pais e filhas, entre mães e filhos,
elas parecem ser especialmente freqüentes entre mães e filhas (Kast, 1997b).
Nos anos que se seguiram, Maria participou de longos e exaustivos
circuitos de espetáculos infantis, programas de rádio, competições, sempre sob a
“batuta” da mãe. O vigor com que Evangelia impulsionava a carreira da filha só
era comparável à cegueira que a impedia de enxergar suas necessidades
emocionais. Sobre este período, Maria declarou anos mais tarde: “Devia haver
uma lei contra esse tipo de coisa. Com esse tratamento uma criança se torna
adulta antes da hora. Não se deve privá-la de sua infância!” (Hutchinson, 1996, p.
25). Evidentemente, foi do amor incondicional que constitui a base de um forte
sentimento de auto-estima que privaram Maria.
A menina logo percebeu que todo o amor e toda a aprovação que recebia
eram estritamente condicionais. Em uma das raras ocasiões em que se referiu ao
período da infância, ela revelou: “Só quando estava cantando eu me sentia
amada” (Hutchinson, 1996, p. 26).
Em suas memórias, publicadas na revista Oggi, em 1957, ela declara:
Minha mãe [...] não apenas se deu conta dos meus dotes canoros, mas decidiu
fazer de mim, o mais cedo possível, uma garota prodígio. E as crianças prodígios
não têm uma infância autêntica. Eu não me lembro de um brinquedo querido –
uma boneca ou um jogo preferido – mas as canções que eu devia ensaiar e
reensaiar até a exaustão, para a apresentação final, ao término de cada ano
escolar; e, sobretudo, a penosa sensação de pânico que tomava conta de mim
quando, bem no meio de uma passagem difícil, parecia que eu de súbito iria me
sufocar e eu pensava, aterrorizada, que nenhum som sairia da minha garganta
78
que já estava árida e seca. Ninguém percebia essa minha angústia porque, na
aparência, eu permanecia calmíssima e continuava a cantar.
Depois do primário, todos os meus amigos se inscreveram no ginásio ou
em outra escola secundária e eu gostaria muito de ter seguido o exemplo deles e
me tornar uma estudante de escolas superiores. Mas eu não podia: eu – havia
estabelecido a minha mãe – não devia desperdiçar nem um minuto do dia em
outras atividades que não o estudo do canto e do piano. Assim, aos onze anos,
deixei de lado os livros e comecei a conhecer as ânsias e esperas extenuantes
dos concursos para crianças prodígios, aos quais eu regularmente era inscrita,
para participar de transmissões radiofônicas ou ganhar alguma bolsa de estudo.
Eu sempre estudei graças às bolsas de estudo. Um pouco porque depois de 29,
éramos qualquer coisa menos ricos; e, também, porque sempre fui amplamente
pessimista quanto às minhas possibilidades. Ainda agora, muito embora me
culpem de ser uma presunçosa, não me sinto ainda segura de mim mesma e me
torturo nas dúvidas e nos temores. Desde garota eu não gostava da vida
mediana: minha mãe queria que eu me tornasse uma cantora e eu era bem feliz
em obedecê-la; mas só se fosse para ser um dia uma grande cantora. Ou tudo ou
nada: nisto não mudei em nada, com o passar dos anos. O fato de ganhar bolsas
de estudo representava para mim uma certeza de que os meus pais não se
iludiam acreditando na minha voz (Tosi, apud Schmitt, 2006, p. 167).
No relato acima, constata-se que Maria de fato “vestiu a camisa” que a mãe
lhe impusera, tomando para si as ambições maternas como se fossem
originalmente suas. E o fez talvez até com maior obstinação, na medida em que,
paralelamente às demandas maternas, uma supercompensação ao seu complexo
de inferioridade também exigia internamente que ela se destacasse. Esta
convicção lhe rendeu, anos mais tarde - quando era de fato a mais celebrada de
todas as cantoras de ópera – um grande desgaste emocional, visto que sua busca
pela perfeição e, conseqüentemente, pelo reconhecimento incondicional das
pessoas, não encontrava limites. O fundamento desta neurose, como veremos
adiante em maior detalhe, é um sentimento pronunciado de inferioridade. É um
caso em que a psicologia de Adler se demonstra claramente, pois o complexo de
poder surgiu a partir da inferioridade.
79
Abrimos aqui um parêntese, para ressaltar que esta é tão-somente uma
hipótese que levantamos a fim de chegarmos a uma possível compreensão sobre
o surgimento da força criadora de Maria Callas. Parece-nos um erro deixá-la de
fora, embora sua relatividade e seu limitado alcance frente ao mistério da criação
sejam evidentes. Afinal, como pondera Jung (1991), este é um mistério que
permanecerá para sempre oculto, superior à capacidade de compreensão
humana. Não pretendemos, com esta hipótese, reduzir a genialidade artística de
Callas a uma mera ação de complexos.
O sentimento de inferioridade evocado nas situações domésticas se repetia
também na escola, que tampouco lhe proporcionava prazer e a fundamental
sensação de ser aceita e desejada. Hutchinson (1996) conta que Maria
Também aprendeu na escola que ser fraco e ignorado equivale a ser infeliz.
Como tantas crianças que em função da experiência escolar passam a se
precaver contra todo contato humano, Maria igualmente reforçou sua atitude de
desalento em relação ao mundo. Entretanto, pelo menos encontrou um jeito de
se defrontar com qualquer pessoa: usaria a voz para pôr fim à humilhação e à
aparente superioridade dos que a rodeavam. “Eu odiava a escola; odiava o
mundo” – assim resumiu essa época trinta anos depois (Hutchinson, 1996, p. 28).
Como pensa Kast (1997b), mesmo nas piores situações de vida existem
oásis, situações nas quais também se pode viver bem. Com uma mãe
normalmente inacessível, incapaz de dar-lhe o afeto necessário, uma irmã pela
qual todos demonstravam predileção, um pai ausente e pouco interessado na vida
familiar, uma experiência escolar aversiva e uma auto-imagem extremamente
negativa, a descoberta da música lhe serviu como um importante oásis, um lugar
onde ela podia ser, onde devia ser, onde era importante.
Aos doze anos ainda falava em ser dentista, porém já descobrira que em sua voz
estava a forma de conquistar a aprovação da mãe. Descobrira também que só
com a voz poderia destacar-se na escola e talvez até mesmo receber algum afeto
(Hutchinson, 1996, p. 28).
80
Através do canto, Maria teve, pela primeira vez, o sentimento vital de fazer
parte de algo, do direito à existência, e também a sensação de ser, ela mesma,
objeto de atenção. Naturalmente, essa situação estava ligada a uma grande
valorização narcisista. Havia um temor de que sem o canto ela não seria nada,
não teria identidade alguma. Por isso, precisou, através dele, provar que estava à
altura da existência, que tinha garantido um lugar no mundo. Esta dinâmica se
deu obsessivamente no decorrer de sua vida, até um ponto em que era esperado
que ela conseguisse abandonar suas estratégias de supercompensação e, assim,
adquirir uma nova compreensão de si mesma – tarefa que, aparentemente, ela
não pôde realizar com sucesso.
Cada vez mais, a jovem Maria se convencia de que o destino, além de
ter-lhe agraciado com uma voz como arma contra a hostilidade do mundo, ainda a
nomeara guardiã de tudo o que dissesse respeito à música:
A família percebeu isso pela primeira vez numa tarde de sábado, quando em
companhia de um amigo ouvia no rádio uma transmissão de Lucia di
Lammermoor apresentada no New York’s Metropolitan Opera. Lily Pons era Lucia
e estava no meio da cena da loucura quando Maria, fazendo gestos
ameaçadores para o rádio, gritou, furiosa, que a cantora havia desafinado. O
amigo reagiu dizendo que Pons era uma grande estrela do Met e que uma
criança como Maria devia mostrar mais respeito. “Não me interessa se ela é uma
estrela”, a menina explodiu. “Ela canta fora do tom. Pode esperar. Pois um dia eu
vou ser uma estrela, uma estrela maior que ela” (Hutchinson, 1996, p. 28).
A citação acima ilustra a consideração de Jung (1988) de que o talento é
quase sempre compensado por certa inferioridade em outra parte. De acordo com
o autor,
O talento apresenta o inconveniente moral de fazer a pessoa sentir-se superior e
torná-la de certo modo cheia de si, e isto deveria ser compensado pela humildade
correspondente. Crianças talentosas costumam ser mal-acostumadas e gostam
81
de ser tratadas de modo diferente. [...] os presentes dos deuses têm sempre dois
lados, um claro e outro escuro (Jung, 1988, § 246).
É o que se pode perceber na descrição da reação de Maria ao constatar
que a cantora havia desafinado. Com seu comentário, ela deixa entrever uma
pretensão exagerada, acompanhada de uma agressividade desproporcional à
situação. Para Jung (2003a), nestes casos de supercompensação, a pretensão
exagerada torna-se convicção de que se é algo especial, e a impossibilidade de
satisfazer a pretensão passa a ser prova da própria inferioridade, o que favorece
o papel do herói sofredor, em uma inflação negativa.
Maria Callas sempre se viu às voltas com as polaridades “ser especial” e
“ser inferior” (correspondentes à inflação positiva e à inflação negativa,
respectivamente), oscilando entre uma e outra, de acordo com os sinais advindos
do ambiente.
Sobre a inflação egóica, Whitmont (2006) escreve:
A inflação descreve [...] um sentimento de poder no qual somos inflacionados por
uma força desconhecida que não é nossa, nem do nosso julgamento e escolha.
Entretanto, é como se fosse, e nós a reivindicamos como sendo nossa. Ela nos
faz sentir infalíveis e autoconfiantes (Whitmont, 2006, p. 54).
Deste modo, podemos inferir que a vivência no âmbito da arte possuía,
para Maria, um caráter ambivalente. Por um lado, a música funcionava como
mediadora entre os mundos interno e externo, que, em geral, encontravam-se
dissociados. Ser capaz de mergulhar na dimensão psicológica de suas
personagens, de exprimir seus sentimentos de alguma maneira concreta, por
meio do canto e da interpretação dramática, provavelmente deve tê-la ajudado a
entrar em contato com seu próprio espírito vital interior, com emoções e afetos
tantas vezes reprimidos, bem como se perceber valorizada e reconhecida pelas
outras pessoas. Através de sua arte, ela pôde vislumbrar uma realidade mais
benfazeja, a qual descreve da seguinte maneira:
82
Um mundo onde eu gostaria de viver para sempre. É um... não, eu não diria que
é um mundo superior, mas é lindo e bom. Sem inveja, sem maledicência, sem
estupidez. Tudo ali é puro e sereno. E, entretanto, também há nele uma grande
paixão, um grande amor (Hutchinson, 1996, p. 234).
Por outro lado, contudo, ela acabou se tornando refém do próprio mito que
este mundo havia criado em torno de sua pessoa, em nome do qual era preciso,
muitas vezes, esconder seu verdadeiro ser e todas as suas fragilidades inerentes.
Durante muitos anos, submeteu-se a um intenso e árduo treinamento, a fim de
fazer jus à fama que se criara e também à própria convicção individual,
independente de avaliação externa, de que era seu dever servir à arte com uma
dedicação que se tornou lendária. “Trabalho, trabalho, trabalho, isso é tudo. Para
mim, o que importa é trabalhar. Claro, há também o amor. Mas, se acredito no
amor, acredito também em minha arte, e arte exige disciplina” (Hutchinson, 1996,
p. 313).
É sobre esta questão que faremos algumas considerações a seguir.
3. O caminho do Pai
A carreira de Maria Callas distinguiu-se pelo profissionalismo e
perfeccionismo com que a artista se dedicava ao trabalho. Ela levou a cabo a
precisão, a disciplina e o senso de autoridade que o bel canto exige, o qual
definia como “um treino específico, o desenvolvimento de uma técnica que nos
habilita a fazer pleno uso da voz, tal qual o violinista ou o flautista aprende a fazer
pleno uso de seu instrumento” (Hutchinson, 1996, p. 39). A busca pela perfeição
desta técnica se tornou uma verdadeira obsessão em sua vida.
Naturalmente, seu rigoroso senso crítico nunca lhe permitia estar
plenamente satisfeita com suas realizações, por mais favoráveis que fossem a
crítica e a resposta do público. Certa vez, declarou: “Nunca estou satisfeita. Não
consigo exultar com o que fiz bem, pois vejo muito ampliadas as coisas que
poderia ter feito melhor” (Hutchinson, 1996, p. 40). Era comum que quando
83
atenuasse a pressão exercida sobre si mesma, exercitando-se menos do que
achava que devia, experimentasse um sentimento de culpa muitas vezes
avassalador e, em função disso, invariavelmente se esforçasse o dobro no dia
seguinte.
Às vezes, falava de sua voz como se esta fosse uma entidade que nela
existia de forma independente, um apêndice físico dotado de vida própria, e, com
freqüência, tratava-a como se fosse uma força meio hostil e insubmissa exterior a
ela. “Hoje a voz obedeceu”, dizia; ou “Hoje a voz não obedeceu” (Hutchinson,
1996, p.39). Era uma luta constante.
Kast (1997b) assinala que essa característica da constante insatisfação
consigo próprio é bem freqüente no complexo materno originalmente negativo,
pois as exigências que um indivíduo marcado por ele impõe a si mesmo, a fim de
ser finalmente digno de amor, são monstruosamente altas, e, portanto,
dificilmente são atingidas.
No relato abaixo, Maria fala sobre essa dificuldade:
Raríssimas vezes me dou por satisfeita com meu desempenho. Essa é uma das
coisas que me enlouquecem. Nunca sei quando fiz uma grande apresentação. E
aí está o paradoxo. O que o público considera um excelente desempenho nem
sempre é a mesma coisa para mim. Às vezes penso que não estou à altura de
determinado papel. E, no entanto, ao término do espetáculo as pessoas se
apinham para me cumprimentar, e eu fico constrangida com os elogios. Outras
vezes, quando acho que realmente dei o melhor de mim, o público tem a reação
contrária. Assim, o mistério permanece. E me persegue (Hutchinson, 1996,
p.148).
Não possuir a chave para tal mistério implicava em ter que entrar em
contato com a própria impotência e falibilidade, em reconhecer que, diante da
impossibilidade de controlar as reações do público, estava sujeita à
desaprovação, e esta condição lhe era extremamente desagradável. A dimensão
do desconhecido e do não-controlável assume, assim, um tom ameaçador, quase
persecutório, como ela mesma coloca. Como vimos nos capítulos teóricos,
84
também o não se sentir à altura de determinado papel, ou o constrangimento
diante dos elogios, advém da auto-imagem negativa, que não permite que o
indivíduo se sinta merecedor de suas façanhas, por mais notáveis que elas sejam.
Rossi-Lemeni, um amigo próximo de Maria, revela sua percepção sobre a
vulnerabilidade que a cantora deixava entrever:
Apesar de sua capacidade, Maria muitas vezes duvidava de si mesma e ficava
ansiosa, temendo o fracasso. Jamais conseguia descansar, por causa de suas
grandes obrigações em relação ao trabalho. Com freqüência pedia conselhos
sobre a arte de representar. E, se eu sugeria um gesto ou uma postura que lhe
agradava, dizia-me: “Ora, eu mesma teria pensado nisso” (Hutchinson, 1996, p.
122).
Temos no relato de Minotis, diretor de uma das montagens de Medea
encenadas por Maria, um bom exemplo da profundidade do envolvimento da
cantora com seu trabalho. Nesta ocasião, segundo Hutchinson (1996), ela
“respirava Medea, sentia Medea, mal conseguia dormir por causa de Medea”
(Hutchinson, 1996, p. 185).
Ligava para mim às três ou quatro da madrugada. “O que foi que você disse hoje
à tarde, quando saio e subo a escada? Da esquerda ou da direita?” Em vez de
dormir, ensaiava sozinha. Passava por seu próprio filtro o que havíamos
elaborado juntos a fim de compreender, assimilar, incorporar o que fizéramos
(Hutchinson, 1996, p. 185).
Sempre empenhada em alcançar a perfeição, durante toda a sua vida só
descansava quando seu corpo se rebelava contra o excesso de trabalho,
nervosismo e ansiedade e lhe impunha o repouso obrigatório. A citação abaixo
ilustra a convicção de Maria de que sua arte deveria estar acima de qualquer
causa, inclusive, sua própria saúde.
85
[...] às vésperas da estréia de Norma estava particularmente tensa. Entregou-se
de corpo e alma ao papel. Zefirelli suplicou-lhe que tivesse cuidado, que evitasse
proezas absurdas. “Não posso”, ela respondeu. “Recuso-me a negligenciar minha
música. Tenho de correr riscos, mesmo que signifiquem um desastre e o fim de
minha carreira” (Hutchinson, 1996, p. 254).
Não era apenas falácia da artista. Em mais de uma ocasião, ela realmente
subiu aos palcos contra a recomendação de seus médicos. Com um forte
resfriado, escapou em 2 de janeiro de 1958 da Ópera de Roma pela porta dos
fundos, após um primeiro ato sofrível de Norma, em uma récita prestigiada pelo
então presidente da Itália, Giovanni Gronchi. Já em 29 de maio de 1965, ao
concluir a primeira cena do segundo ato de Norma, ela desfaleceu e a
apresentação foi interrompida. Deste modo, não soa exagerada a consideração
de alguns de que Maria Callas levou seu talento aos limites do masoquismo a fim
de servir a sua arte.
Durante uma entrevista que concedeu à revista americana High Fidelity,
Maria resumiu sua filosofia artística: “A cada ano quero ser melhor que no ano
anterior. Do contrário me afasto da ópera. Não preciso de dinheiro. Trabalho por
amor à arte” (Hutchinson, 1996, p. 122). Esta declaração continha um elemento
profético, pois, de fato, afastou-se quando parou de melhorar a cada ano.
Como demonstra Hutchinson (1996), a obsessão de Callas pelo trabalho
não favorecia apenas sua própria atuação, mas tinha o poder de influenciar o
desempenho de todos os que com ela trabalhavam. Afinal, havia a consciência de
que o verdadeiro sucesso de uma representação dependia da qualidade de todo
o elenco:
Como profissional consciente que era, não suportava amadorismo. Como
perfeccionista, não podia admitir que qualquer um dos artistas envolvidos
prejudicasse toda a representação. Sua dedicação ao trabalho contagiava os que
a rodeavam – embora exasperasse uns e outros que já haviam caído na rotina –
e logo se difundiu a lenda de que, quando Callas cantava, o desempenho de todo
mundo melhorava: o tenor cantava melhor, o maestro regia melhor, os
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lanterninhas orientavam melhor o público, o bilheteiro vendia melhor os
ingressos... (Hutchinson, 1996, p. 103).
Como vimos em Jung (2003a), um desenvolvimento espontâneo da
inteligência pode ocorrer a partir de defesas contra a mãe, e esse
desenvolvimento costuma ser acompanhado de uma emergência de traços
masculinos em geral. Ele afirma que, graças a sua lucidez, objetividade e
masculinidade, este tipo de mulher é encontrado freqüentemente ocupando
cargos importantes, desenvolvendo uma eficiência propícia (Jung, 2003a).
Assim era Maria em sua profissão (e também fora dela): controladora,
exigente, perfeccionista, persistente, pragmática e, sem dúvida, eficiente. Estes
são todos atributos masculinos, que ela provavelmente desenvolveu de forma
compensatória à própria insegurança e à baixa auto-estima que se configuraram a
partir de uma experiência de pouca aceitação genuína na infância. A atitude
perfeccionista consciente de Maria, por sua vez, era compensada por mais
sentimento inconsciente de inferioridade, que se vingava com a avidez e o anseio
de poder, e assim por diante, num círculo vicioso. Afinal, “a psique compensa todo
extremo com o seu oposto” (Whitmont, 2006, p. 44).
Portanto, uma hipótese a ser levantada neste caso é de que houve uma
identificação do ego com a atmosfera do complexo paterno. Vivendo sob o jugo
de um complexo materno negativo, ela procurou seu caminho por meio do
complexo paterno, tentando conquistar a auto-estima e o sentimento de ser digna
de amor com seu desempenho e destaque profissional. De acordo com Kast
(1997b), é através do desenvolvimento de atributos masculinos que estas
pessoas procuram validar sua existência em âmbito social.
Maria, acuada diante da falta de aprovação do ambiente e principalmente
da mãe, pode ter interiorizado o complexo paterno, em que o papel de pai
consiste nas exigências impiedosas e austeras para consigo próprio. O fato de
que ela fosse capaz de cumprir com êxito tais exigências não evitava, porém, que
estas também trouxessem à sua vida um quantum significativo de infelicidade, a
despeito de sua competência. A identificação com o complexo fez com que se lhe
87
tornassem de difícil acesso determinados âmbitos vitais, como as emoções e o
sentimento de pertencer indiscutivelmente às outras pessoas, sem que, para isso,
devesse mostrar um desempenho em troca.
Outra hipótese plausível para tal postura é de que Maria tenha
desenvolvido um animus negativo, dirigido para o poder. Como, aparentemente,
ela não teve um pai forte nem uma mãe com atributos femininos marcantes, seu
modelo de masculinidade deve ter sido o animus da mãe. Ao que tudo indica, seu
animus foi realizado por meio de canais de fraqueza submissa disfarçada de força
manifesta; por isso, sua intenção consciente de ser forte e perseverante sempre
acabava sendo compensada por sentimentos de incapacidade, de não ter feito
bem o suficiente.
O herói que nela existia lutava para ser realizado por meio de um animus
austero, que a mantinha numa escravidão disfarçada de paraíso. Whitmont (2006)
descreve muito bem esta situação, assinalando que o animus, em sua forma
realizada de rigidez e fraqueza, impede a mulher de descobrir seu próprio
potencial de animus positivo não reconhecido. Uma mulher que vive sob a égide
de um animus desta natureza não é capaz de reconhecer em si mesma a
capacidade de realizar algo por si só, individualmente.
O resultado pode ser uma inflação negativa, que é mais um sentimento muito
ruim do que muito bom. Ela sente que de modo algum é suficientemente boa
para esse mundo, que tem muitos defeitos, que está sempre errada; por isso, é
supersensível à crítica, tanto a real como a imaginada. Está sempre na defensiva
e constantemente se sente atacada. Reage a qualquer constatação de um fato
como se fosse uma crítica; qualquer obstáculo, qualquer dificuldade, qualquer
problema de relacionamento prova que ela não é boa, que é um fracasso; [...]
Isso porque o julgamento do animus é projetado para fora; todos a atacam, todos
a criticam, a dilaceram. Ela se ressente amargamente com todos. Mas é a força
dentro dela que lhe diz, “Você deve”, “Você precisa”, “Você falhou”, “Você não é
boa”, sem considerar se isso é ou não realista (Whitmont, 2006, p. 187).
88
De fato, toda e qualquer reação desfavorável a seus feitos artísticos, toda
crítica negativa, eram recebidas como uma agressão direta à sua pessoa, tendo o
poder de desestabilizá-la de imediato. A porção vulnerável e suscetível de Callas
se ressentia da reprovação tanto quanto do elogio insincero, e não hesitava em
expressar sua mágoa. Segundo Hutchinson (1996), ela considerava o reproche
por parte dos amigos uma deslealdade, quase uma traição, e, reagindo ao que
considerava afastamento, desdém e repúdio, sempre se lançava no trabalho de
maneira ainda mais obsessiva. Adotando uma postura altiva e indiferente,
esforçava-se por manter a imagem da profissional inabalável e segura de si,
inclusive perante si própria. Para a biógrafa, “esconder a dor era um de seus
grandes talentos” (Hutchinson, 1996, p. 55).
Quando a mulher está em posse de um animus negativo, segundo
Whitmont (2006), toda sugestão de que algo pode não se encontrar no estado
ideal suscita reações de crítica e ataque, que tendem a reforçar os estados
negativos e nunca são vistas como uma tentativa de ajuda. O arquétipo se
exprime como um ímpeto de separação inconsciente que interfere na vida do ego
com a impossibilidade de relacionamento, de amor e compreensão. (Whitmont,
2006).
“É mais fácil admirá-la do que amá-la” (Hutchinson, 1996, p. 107), declarou
Walter Legge, referindo-se à diva. Este comentário ilustra a colocação de Stein
(2004), a respeito das mulheres que sofrem com o que denomina “problema de
animus”:
Com freqüência, seu relacionamento sofre irreparáveis danos, porque as pessoas
que convivem com ela têm que construir escudos que as protejam sempre que
entram em contato com ela. Mantêm-se em atitude defensiva e desconfortável na
presença da mulher com problema de animus (Stein, 2004, p. 120).
Portanto, suas idéias e opiniões autônomas, transmitidas com a energia
emocional de uma pessoa arrogante e prepotente, acabam atrapalhando sua
adaptação ao mundo. Realmente, de acordo com Hutchinson (1996), cada fase
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da vida de Callas foi marcada mais pela ruptura com velhos amigos que pela
conquista de novas amizades.
A biógrafa revela que havia pouca camaradagem e ainda menos amor
entre Maria e seus colegas, que eram vistos como adversários. “Dinheiro não me
interessa”, disse ela, “porém, devo ganhar mais que qualquer outro artista”
(Hutchinson, 1996, p. 163), como confirmação indispensável de que era, sem
sombra de dúvida, a maioral. Sua convicção de que o mundo era um lugar
perigoso e pouco confiável se confirmava cada vez que ocorria algum impropério,
como no episódio em que foi vaiada pelos fãs de Renata Tebaldi, cantora que
durante muito tempo liderou sua lista de adversários. “Querem beber meu
sangue” (Hutchinson, 1996, p. 131), esbravejou, revelando mais seu estado de
espírito que as reais intenções dos chamados tebaldistas.
Schmitt (2006) faz uma consideração interessante acerca do senso de
competitividade que muitas vezes se instala nas pessoas dominadas por
sentimentos de inferioridade, afirmando que a vitória sobre outrem eleva
temporariamente sua auto-estima e modifica favoravelmente sua autopercepção.
No entanto, o autor salienta que este efeito tem prazo de validade, visto que o
cerne da questão localiza-se num nível muito mais profundo.
É comum ouvirmos dizer que as pessoas que estão constantemente envolvidas
em algum tipo de competição estão tentando “provar algo”. A vitória, de certo
modo, melhora a nossa auto-estima e modifica temporariamente a nossa
identidade. Essas mudanças são temporárias porque a vitória é definida por um
juiz externo. Nosso juiz interno está mais interessado em outra questão: “Por que
eu não sou amado?”. De qualquer modo, a sensação boa que temos quando
vencemos é um bom atenuante da dor de não ser amado e, além disso, a vitória
ainda costuma atrair a atenção de muitas pessoas (Schmitt, 2006, p. 94).
Apesar de todo o sucesso, Maria arrancava a vitória de elementos hostis e
tinha a imaginação povoada de inimigos. Assim, mantinha-se o tempo todo à
espreita, com seu radar pronto a captar o mais sutil sinal de deslealdade. Havia
uma necessidade de controle sobre o que pairava na cabeça dos outros, sobre a
90
avaliação que dela faziam, típica das personalidades narcisistas. Como
apreendemos de Kast (1997b), a necessidade de controle se impõe como uma
tentativa de prevenir o surgimento do sofrimento - com o predomínio da
desconfiança primordial e do medo, entende-se que tudo o que é passível de
controle deve ser controlado.
A partir da expectativa de ser novamente rejeitada e repelida, toda
expressão emocional e toda mudança afetiva de outros indivíduos chamavam a
sua atenção, sendo interpretadas pelo prisma do complexo dominante,
consideradas como rejeição, ofensa, ao que reagia com grande fúria. Como
ressaltou Kast (1997b), esta postura de compensação é facilmente interpretada e
experienciada externamente como “complexo de poder”, mas, na realidade,
trata-se de uma tentativa extrema da pessoa livrar-se de seu sentimento de
impotência.
A interpretação de qualquer demonstração de hostilidade como um ataque
direto contra sua pessoa intensificava-se, sobretudo, quando o marido,
Meneghini, chamava sua atenção para tais manifestações, atribuindo-lhes uma
importância exagerada. “Uma ofensa atrás da outra” (Hutchinson, 1996, p. 146),
dizia ele, e, com isso, geralmente provocava na esposa um sofrimento
desproporcional em relação aos fatos.
Ao longo de quase sete anos, Maria recebeu o estímulo constante de que
precisava principalmente de Meneghini, que costumava ficar nas coxias,
murmurando-lhe: “Coragem! Não existe ninguém como você. Você é a maior do
mundo” (Hutchinson, 1996, p. 133). Parece que ela encontrou no marido uma
complementação bastante conveniente, visto que ele se dedicava quase que
exclusivamente à carreira da esposa, reconhecendo que o universo girava em
torno de sua pessoa e de sua arte e mostrando-se muito satisfeito com isso - tudo
o que uma pessoa dominada por sentimentos de inferioridade anseia.
Walter Legge relatou um episódio que exemplifica nitidamente o
relacionamento do casal. Chegando de madrugada ao hotel onde estavam
hospedados, após uma estréia de Lucia em Berlim, soube que os Meneghini o
aguardavam, pois precisavam muito falar com ele.
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Encontrei-os sentados na cama [...] Folheavam umas revistas italianas enquanto
esperavam o momento de me inquirir sobre o espetáculo. Maria fizera jus a si
mesma? Recebera aplausos mais ruidosos e demorados que o restante do
elenco? Tranqüilizados, deitaram-se finalmente e apagaram a luz (Hutchinson,
1996, p. 128).
Mesmo passados dez anos da fatídica apresentação de Norma em Roma,
à qual não pôde dar continuidade em decorrência do debilitado estado de sua voz
- o que gerou uma repercussão bastante desfavorável na mídia -, Maria ainda não
havia superado o trauma e torturava-se: “Meu Deus, ainda sinto o efeito de Roma”
(Hutchinson, 1996, p. 312).
Eu não tinha condições de continuar, não podia me matar daquele jeito. Seria
uma loucura. [...] Sou famosa por saber me defender bem. Tigresa, é assim que
me chamam. Mas preciso ser crucificada? Eu estava sem voz. A voz sempre me
falhava diante de um público agressivo. E assim por diante, e isso e aquilo, e
minha mãe, e agora ele [referindo-se a Onassis]. Tive de parar e engolir tudo sem
abrir a boca, porque tudo que digo é usado contra mim. Tudo que digo acaba se
tornando indigno de mim, não deles. Quem se importa? E não tenho um único
amigo. Por quê? (Hutchinson, 1996, p. 312).
Esse desabafo, que a coloca no centro de um mundo hostil, sempre pronto
a feri-la, a traí-la, a crucificá-la, resume sua visão da realidade. “Só meus
cachorros nunca hão de me trair” (Hutchinson, 1996, p. 312), declarou em seus
últimos meses de vida.
Durante muito tempo, Maria resistiu ao confronto com sua sombra, que lhe
dizia que ela não era onipotente, nem perfeita, mas um ser humano que devia
aceitar as próprias limitações e imperfeições. Ficava dominada pelo medo de que,
entrando em contato com suas fragilidades, rebaixando suas defesas, permitisse
que novamente viesse à tona aquela jovem gorda, desengonçada e rejeitada que
fora um dia, e esta possibilidade era para ela insuportável.
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Hutchinson (1996) faz uma consideração a este respeito:
Em certo sentido ela nunca superou a frustração de não poder fazer tudo, pensar
em tudo, alcançar a perfeição em tudo. Carregou essa frustração até o fim da
vida e a viu crescer à medida que suas dificuldades vocais aumentavam. Quando
não conseguia mais cantar papéis de soprano e passou a receber ofertas de
grandes teatros de ópera para interpretar qualquer papel meio-soprano que lhe
aprouvesse, desconsiderou todas as propostas – exceto a referente à Carmem,
que não obstante se limitou a gravar. Aparentemente, achava que aceitar
personagens criadas para meio-soprano e reconhecer que era humana –
portanto sujeita ao declínio – equivalia a admitir a derrota. Sob muitos aspectos,
jamais se perdoou por não ser sobre-humana (Hutchinson, 1996, p. 122).
Para esta artista, permitir uma integração dos conteúdos sombrios, isto é,
reconhecer e aceitar tudo aquilo de “ruim” (segundo o julgamento do ego) que
nela existia, era uma tarefa um tanto quanto difícil de ser realizada, pois implicava
em um prejuízo direto à “Tigresa”, a máscara com a qual se apresentava para o
mundo e que estava colada ao seu rosto. Como veremos no próximo item, Maria
Callas é um exemplo clássico de identificação do ego com a persona e das
implicações inerentes a este mecanismo.
4. A dualidade Maria/ Callas: identificação com a persona
Como vimos até o momento, as experiências que Maria Callas teve no
decorrer de sua vida e, principalmente, em sua infância, contribuíram fortemente
para o estabelecimento de um complexo de inferioridade ligado a um complexo
materno negativo, os quais a faziam perceber-se como um ser pouco importante
para as pessoas e para o mundo. Através do canto, ela começou a reverter esta
situação, passando de um “patinho feio” anônimo e insignificante à maior cantora
que a história da ópera já conheceu. Não é de surpreender, portanto, que ela
tenha desenvolvido um alto apreço pelo seu instrumento, que lhe propiciava uma
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série de vantagens, a ponto de identificar-se quase que inteiramente com o mito
que se formou em torno da sua pessoa.
Se, por um lado, a persona representa um sistema útil de defesa, por outro,
pode ser tão excessivamente valorizada a ponto de o ego identificar-se com ela,
como parece ser o caso da cantora. Esta superidentificação levou, em últimas
conseqüências, a uma dicotomização de sua personalidade: havia Maria, para a
qual praticamente nenhum espaço era reservado em sua pesada rotina de
trabalho e na vida pública, e havia a imperiosa “La Callas”, cuja imagem era
preciso manter a qualquer custo.
Poucos anos antes de morrer, ela gravou em fita algumas idéias, reflexões
sobre sua vida. Em um desses depoimentos, traz à tona a referida dualidade
Maria/ Callas:
Eu gostaria de ser Maria, mas La Callas exige que me comporte com sua
dignidade. Eu gostaria de pensar que as duas na verdade são uma só, porque
uma vez Callas também foi Maria, e sempre me coloquei inteira em minha
música. Tudo que fui sempre foi autêntico. Trabalhei com toda a honestidade
possível, e Maria também. Quem quiser realmente me compreender, irá me
encontrar inteira em meu trabalho. [...] Afinal, talvez não seja possível separar
Callas, a estrela, de Maria – as duas estão em sintonia” (Hutchinson, 1996, p.
331).
Ao que tudo indica, não estavam. Temos neste termo que ela utiliza,
“sintonia”, um possível indício de que a pessoa e a estrela eram percebidas como
uma unidade simbiótica, de que ambas se encontravam perigosamente
identificadas. Como se pode observar de seu relato, Maria Callas tornou-se, ela
mesma, seu próprio trabalho, a ponto de quase não conseguir mais se distinguir
deste, ter uma existência separada deste. Na realidade, Maria sufocava sob o
peso de “La Callas”. E o fardo se tornava mais pesado, à medida que sua voz se
encontrava cada vez mais desgastada, e este inexorável dado da realidade
dolorosamente confrontava sua exigência interna de sempre se superar.
94
Para melhor compreendermos a identificação com a persona, recorremos a
Whitmont (2006), que faz uma importante consideração sobre o fenômeno.
Segundo o autor, todos precisamos desenvolver tanto uma máscara de persona
como um ego adequados, e sobre esta necessidade não resta dúvida alguma. No
entanto, ele ressalta que
Se essa diferenciação fracassar, forma-se um pseudo-ego: o padrão de
personalidade se baseia na imitação estereotipada ou numa atuação meramente
zelosa em relação ao papel atribuído coletivamente à pessoa na vida. O
pseudo-ego é um precipitado estereotipado dos padrões coletivos (Whitmont,
2006, p. 140).
Neste sentido, a pessoa passa a ser integralmente o papel social que ela
representa - sua profissão, por exemplo -, ao invés de atribuir-lhe o seu devido
valor, nos momentos em que ele se faz necessário. Com isso, cria-se o que o
autor chama de “pseudo-ego”, cujas características ele descreve da seguinte
maneira:
Tal pseudo-ego é não apenas rígido, mas também extremamente frágil e
quebradiço; a necessária energia psíquica de apoio proveniente do inconsciente
não está acessível, mas sim em oposição ao consciente, já que tal ego está
completamente separado das intenções do Self. O pseudo-ego está sujeito a
pressões constantes que vêm de dentro, e não tem meio de ajustar o seu
equilíbrio precário [...] (Whitmont, 2006, p. 140).
Percebe-se que a relação entre o ego e a persona não é simples, devido
aos objetivos contraditórios desses dois complexos funcionais. Enquanto o ego se
movimenta no sentido da separação e da individuação, em direção à
consolidação de uma posição autônoma fora do inconsciente, primeiramente, e
fora do meio familiar, num segundo momento, a persona se movimenta na direção
oposta, rumo ao relacionamento e adaptação ao mundo dos objetos (Stein, 2004).
Essas duas tendências contrárias coexistindo dentro do ego geram uma tensão
95
na psique, visto que o desejo de separação/ individuação do ego está
freqüentemente radicado na sombra, representando uma ameaça à vida do grupo
e ao bem-estar do indivíduo.
Com relação a isso, Whitmont (2004) diz:
Os elementos ameaçadores da psique objetiva opositora que lhe é contrária
provavelmente serão vivenciados em projeções sobre o mundo exterior até o
ponto em que surgem as ilusões paranóicas, e o pseudo-ego lida com elas
retraindo-se ainda mais na identificação protetora do papel que representa
(Whitmont, 2006, p. 141).
As projeções persecutórias da cantora recaíam, em larga medida, sobre o
público e a crítica, que lhe dedicaram tanto o amor como o ódio. Ter de sempre
agradá-los e convencê-los de que ela era uma grande artista gerava um enorme
desgaste, pois, nestas circunstâncias, a fundamental energia psíquica de apoio
oriunda do inconsciente não apenas se torna inacessível ao ego como ainda se
opõe à consciência. A despeito de todo o dispêndio emocional, contudo, Maria
continuava se justificando perante o público, insistindo em provar-lhe o seu valor:
Caro público, peço-lhe que me veja como uma musicista que dedicou a vida à
musica. Não acredite em todas as mentiras que espalharam a meu respeito.
Falam de mim todo tipo de coisa, e isso talvez faça parte de meu destino. Tudo
que me interessa é que o público seja imparcial, saiba que consagrei totalmente
minha vida a minha arte (Hutchinson, 1996, p. 331).
No caso de Maria, existia ainda um agravante, pois sua persona era de fato
muito valorizada socialmente. Como afirma Stein (2004), de um modo geral,
quanto mais prestigioso é o papel, mais forte é a tendência para identificar-se
com ele. A pessoa que adquire um papel com elevado valor coletivo e enorme
prestígio, juntamente ao qual vêm fama, honrarias e grande visibilidade social,
tende a fundir-se com o seu papel, até o ponto em que começa a perder de vista
seu verdadeiro ser, a esquecer-se de quem ela realmente é.
96
O ego de Maria Callas estava profundamente fundido com a persona de
Maria Callas, porque esse papel garantiu suas aspirações pessoais na vida. Uma
cantora lírica, com todo seu “glamour” e sofisticação, é, sem dúvida, uma pessoa
de alta posição na sociedade, a quem é concedida uma persona que atrai forte
identificação. E, de acordo com Stein (2004), “a identificação com um papel é
motivada, de um modo geral, pela ambição e aspiração social” (Stein, 2004, p.
106).
A declaração que certa vez deu em uma entrevista exprime de forma
concisa que, para ela, o trabalho estava intrinsecamente ligado à própria
existência: “Trabalho; logo existo. O que você há de fazer se não trabalhar?”
(Hutchinson, 1996, p. 35). O temor que a dominava quando pensava em parar de
cantar era o mesmo temor que o ego sente diante da possibilidade de ter sua
existência suprimida. É o que apreendemos do relato abaixo:
“Se não trabalhar, o que vou fazer da manhã à noite? [...] Não tenho filhos, não
tenho família [...] O que vou fazer, se não tiver minha carreira? Não posso
simplesmente ficar sentada, jogando cartas ou mexericando – não sou esse tipo
de gente” (Hutchinson, 1996, p. 244).
Em seu julgamento, parar de trabalhar equivalia a não ter nada mais com o
que se ocupar. Dizendo de outro modo, caso sua persona fosse retirada, pouca
coisa restaria, pois, conforme considera em seu relato, tudo o que não era
trabalho eram somente futilidades: jogar cartas, mexericar, ou simplesmente não
fazer coisa alguma. Seu senso de identidade parecia restringir-se ao papel que
desempenhava socialmente, ao mundo da arte que respirava, na ausência do
qual todo o resto ou era insignificante ou pertencia aos domínios da sombra, o
que, evidentemente, parecia-lhe ainda pior.
É possível, também, acrescentar um outro enfoque sobre a questão,
baseados no que Jung (1991a) preconiza, ao afirmar:
É como se cada ser humano nascesse com um capital limitado de energia vital. A
dominante do artista, isto é seu impulso criador, arrebatará a maior parte dessa
97
energia, se verdadeiramente for um artista; e para o restante sobrará muito
pouco, o que não permite que outro valor possa desenvolver-se (JUNG, 1991a, §
158).
Segundo esta visão, seu lado humano pode ter sido realmente preterido
em nome de seu lado criador, permanecendo subdesenvolvido, em um nível
primitivo e insuficiente. Este fenômeno se expressa através de uma certa
puerilidade da artista, de um auto-erotismo e vaidade que, para Jung (1991a),
acabam sendo significativas, pois é devido a estas formas inferiores que poderá
ser encaminhada uma quantidade suficiente de energia vital para o eu, que
necessita delas para não se entregar a uma privação completa. De fato, o autor
compara o auto-erotismo de alguns artistas ao de pessoas que foram
negligenciadas na infância e precisaram se defender precocemente contra o
efeito avassalador de um ambiente desprovido de afeição. “Tais crianças, com
efeito, tornam-se muitas vezes abusivamente egocêntricas [...] permanecendo
infantis e frágeis durante toda a vida [...]” (Jung, 1991a, § 158).
Deste modo, percebemos que Maria não foi capaz de se adaptar às
exigências culturais e coletivas em conformidade com seu papel na sociedade –
com sua ocupação e posição social – e ainda assim ser ela mesma. Quando isso
acontece, o ego, que sempre contém mais do que a identificação com a persona,
pode acabar se tornando pobre e inflado. De acordo com Whitmont (2006),
Quando a individualidade é assim confundida com o papel social, quando a
adaptação à realidade não é suficientemente individual mas inteiramente coletiva,
o resultado pode ser um estado de inflação. A vítima se sente esplêndida e
poderosa, porque é uma refinada figura de sociedade, mas não consegue ser um
ser humano, ou mesmo dar os primeiros passos no sentido de tornar-se humana.
Tal confiança exagerada e inflacionada na persona, ou a identidade com ela,
resulta em rigidez e em falta de uma genuína sensibilidade (Whitmont, 2006, p.
141).
98
A despeito da referida sensação de poder e esplendor experienciada pelo
ego identificado com a persona, Maria muitas vezes demonstrava não se sentir
nem um pouco satisfeita em fazer de sua vida uma representação, que nem
sempre lhe garantia a segurança e a felicidade almejadas. Pelo contrário, tantas
vezes acabava por aumentar ainda mais suas defesas, ao ver-se obrigada a
negar suas necessidades e desejos essenciais e a reprimir seus conteúdos
sombrios, movida pela desconfiança primordial.
Com relação a isso, Von Franz (2005) afirma:
As pessoas que negaram seus sentimentos ou suas demandas sobre outras
pessoas ou sua capacidade de confiar, geralmente não se sentem
completamente reais, espontâneas ou elas mesmas. Elas se sentem apenas
meio-vivas e geralmente não se vêem como pessoas completamente reais. [...]
Quando isso acontece, a pessoa representa! A pessoa pode acabar se
adaptando à vida, mas se ela for honesta consigo mesma não poderá negar que
está representando a maior parte do tempo (Von Franz, 2005, p. 47).
A representação costuma estar ligada ao arquétipo do puer aeternus.
Segundo Von Franz (2005), as pessoas pueri aeterni sabem representar, têm
esse talento e representam papéis. De acordo com a autora, elas representam até
para si mesmas e se convencem de que estão vivendo, mas a sensação de vazio
e infelicidade que permanece revela que isso não é bem verdade. Outras pessoas
as consideram bem-sucedidas, mas elas próprias não concordam com isso, pois
sentem como se estivessem representando para si mesmas (Von Franz, 2005).
Aos olhos de seus admiradores, Maria Callas era um somatório de rainha,
feiticeira e divindade, e ela se empenhava arduamente em conquistar e manter o
amor do público, esforçando-se para ser universalmente “simpática” e querida.
Não demorou a perceber, entretanto, que “a fama é um bumerangue”
(Hutchinson, 1996, p. 142), como ela mesma declarou.
Apesar de a persona ser definida como a pele psíquica entre o ego e o
mundo (Stein, 2004), ela envolve também a pele física, isto é, a aparência do
indivíduo, e constitui um fator que exerce significativa influência em suas
99
interações interpessoais e em seu autoconceito. Como vimos, Maria carregou
desde cedo uma série de questões relacionadas à própria aparência, que julgava
inapropriada e à qual atribuía a causa de muitas de suas dificuldades. O excesso
de peso, do qual se livrou apenas aos trinta anos de idade, quando finalmente
realizou uma metamorfose corporal emagrecendo mais de quarenta quilos, gerava
na cantora uma sensação de mal-estar e de vergonha que interferia
negativamente em sua adaptação à realidade externa.
Na visão de Stein (2004), a vergonha é um motivador fundamental na
identificação com a persona. A máscara que utilizamos nas interações com o
mundo tem, de fato, a função de nos proteger contra a vergonha, e, segundo o
autor, a evitação deste sentimento é provavelmente o motivo mais forte para se
desenvolver e conservar uma persona, pois ele anula todo o sentimento de amor
próprio.
Maria, que já era uma cantora lírica de prestígio antes do emagrecimento,
tornou-se ainda mais popular e comentada na mídia após adquirir o perfil de uma
esguia e requintada atriz-cantante, e transformar-se na perfeita diva. A
transformação corporal certamente contribuiu para que sua persona se
fortificasse ainda mais, tornando irresistível a atração de Maria por “La Callas”.
E “La Callas” tornou-se conhecida por gastar milhões com suas casas,
jóias e roupas. Para Schmitt (2006), todos esses artifícios conferentes de status e
todas as crenças grandiosas que as pessoas narcisistas nutrem a respeito de si
próprias servem, na verdade, ao objetivo de desviar a atenção de um grande
complexo de inferioridade:
Automóveis, casas, mobília, jóias, arte, podem ser utilizados para alterar o lugar
de alguém no eixo vergonha/ orgulho. A ascensão social, em boa parte das
vezes, é mais um sistema de se evitar a vergonha do que propriamente uma
tentativa de se atualizar o verdadeiro potencial. Todas essas defesas podem ser
chamadas de defesas narcisistas [...] contra o sentimento de que não seremos
amados pelo que somos (Schmitt, 2006, p. 92).
100
As defesas empregadas por Maria revelaram-se, contudo, insuficientes
para encobrir sua arraigada baixa auto-estima. Conforme revela Hutchinson
(1996), mesmo com tudo o que alcançou, Maria nunca daria por completa sua
transformação. Continuava, em parte, presa à adolescente roliça e sem graça que
fora no passado, apavorando-se diante da possibilidade de voltar a engordar.
Nutria uma preocupação excessiva com a aparência, que, não obstante, também
se transformou num bumerangue: “É muito fácil deturpar uma imagem, como senti
na própria pele” (Hutchinson, 1996, p. 142), disse.
Segundo a biógrafa,
Sofria ainda mais com a persistente convicção de que era feia, de que a linda
mulher admirada pelo público não passava de uma máscara, um disfarce, quase
um truque. Até o fim da vida acreditou que o objeto de admiração geral não era
ela mesma, e sim o conjunto de roupas, penteados, jóias e peles que usava. Em
função disso, tinha uma preocupação quase obsessiva com a aparência e se
empenhava em apresentar aos olhos hostis do mundo uma Maria pequenina,
insignificante e indigna. Sua beleza era uma arma, não um atrativo, e a principal
obrigação de todo guerreiro consiste, afinal, em manter as armas em perfeitas
condições de uso (Hutchinson, 1996, p. 136).
Para o mundo, Maria era a personificação da realização profissional, do
poder, do sucesso. Todavia, como revela Schwartz (1988), embora os caracteres
narcisistas possam ter um forte efeito sobre os outros e costumem ser vistos
como confiantes e poderosos, eles mesmos raramente se sentem com algum
poder ou eficácia e com freqüência ficam pasmos quando são informados da força
que possuem (Schwartz, 1988). Como pessoalmente admitiu, Maria vivia
atormentada pela dúvida e pela sensação de não ser digna de suas conquistas.
“Quando me olham com evidente afeto, fico duplamente irritada. Penso: ‘Por que
estão me olhando com admiração? Eu não mereço” (Hutchinson, 1996, p. 142).
No entanto, quanto menos se sentia digna de admiração, mais procurava
apresentar ao mundo uma imagem admirável de si mesma.
101
O reconhecimento e a adoração que obtivera através da fama acabaram
por se tornar uma sutil armadilha, e, à medida que se acumulavam os louvores, a
armadilha se cerrava. A mulher que encantara tanta gente precisava mais de seus
admiradores que estes dela, dependendo quase que inteiramente da aprovação
dos outros. Havia muito tempo que o mito vinha destruindo a mulher, e quanto
maior sua identificação com o mito, maior sua responsabilidade – e maior seu
medo de não corresponder às expectativas.
“Pagamos caro por essas noites”, disse numa ocasião a propósito da
histeria geralmente suscitada por suas estréias. “Eu posso fingir que não percebo,
mas meu subconsciente não. E isso é péssimo. Confesso que às vezes uma parte
de mim fica lisonjeada com esse clima de grande emoção, mas em geral não o
aprecio nem um pouco. É aí que começo a me sentir condenada” (Hutchinson,
1996, 176). Sentia-se condenada a viver em função das futuras expectativas
resultantes da histeria, a continuar atuando num nível vocal e dramático que
justificasse a histeria, a repetir e superar nas récitas seguintes as façanhas da
estréia. “Quanto maior a fama, maior a responsabilidade, maior a sensação de
fragilidade e desamparo” (Hutchinson, 1996, 176), declarou certa vez.
Assim, Maria progressivamente se deixou aniquilar pela angústia que o
trabalho lhe causava. As exigências impossíveis que se impunha, o ressentimento
que se acumulava sempre que colegas, diretores, cenógrafos e funcionários do
teatro não correspondiam a seus padrões de perfeccionismo, o esgotamento
provocado pelo desejo e pela expectativa de ser a melhor, a inexorável decepção,
apesar de todas as suas conquistas e de todos os aplausos que recebia, tudo
isso contribuía para que a cantora passasse a se questionar se era realmente seu
desejo continuar seguindo por aquele mesmo caminho, ou se era hora de
experimentar algo novo. Naquele momento de sua vida, o pseudo-ego que havia
se configurado se tornava um fardo por demais pesado e sufocante, e ela, Maria,
já não agüentava mais ter que sustentar “La Callas”, cuja supremacia lhe causava
infelicidade e um dispêndio de energia psíquica que começava a julgar
desnecessário.
102
Quanto mais próxima se encontrava da metade da vida, com mais
intensidade urgia o desejo interno de não mais precisar manter aquela persona
perante os amigos, o público, os relações-públicas, repórteres, fotógrafos,
colunistas e maledicentes, de poder ser apenas ela. Como revela Hutchinson
(1996), tudo que queria era descansar, viver em paz, conquistar a estabilidade
emocional – anseios que expressou repetidamente em suas cartas e
pronunciamentos. O trabalho árduo, as tensões e os medos, as condenações e a
implacável autocrítica assumiam um peso insuportável. Ela desejava
ardentemente libertar-se (Hutchinson, 1996).
Selecionamos abaixo alguns trechos extraídos de sua biografia que
exemplificam a crescente insatisfação e os questionamentos que começavam a
surgir em relação ao rumo que sua vida havia tomado:
“Envelheci prematuramente, tornei-me apática, só pensava em dinheiro e
posição. Para mim a vida realmente começou aos quarenta – ou perto dos
quarenta” (Hutchinson, 1996, p. 204).
“Não tenho nada”, disse pouco depois de completar 53 anos. “O que vou fazer?”
(Hutchinson, 1996, p. 337).
“Depois de nove anos, me vejo sem filho, sem família, sem amigo! [...] E me
pergunto: ‘Meu Deus, por quê? Por que essas coisas têm de acontecer?’. Com
minha lógica boba acho que uma pessoa que recebeu o privilégio de conquistar
uma posição de destaque devia compreender que tem a obrigação de ser feliz,
de um modo ou de outro” (Hutchinson, 1996, p. 283).
“Afinal, o que é o mito? O público me fez” (Hutchinson, 1996, p. 260).
“Quanto mais famosa me torno, mais apavorada fico” (Hutchinson, 1996, p. 212).
“Você pode ir lá e dizer a eles que sou um ser humano e tenho meus medos?
Como podem conhecer uma pessoa que só vêem no palco, brilhando sob as
luzes da ribalta? Como os jornalistas podem conhecer essa pessoa?”
(Hutchinson, 1996, p. 261).
“Já passei dos cinqüenta. Sou livre, tenho todo o dinheiro necessário para me
divertir. E o que é que eu faço? Trabalho” (Hutchinson, 1996, p. 336).
“Não quero mais cantar. Quero viver como uma mulher normal, com filhos, uma
casa, um cachorro” (Hutchinson, 1996, p. 214).
103
“É horrível sentir-se odiada. Por que não posso cantar minha Norma em paz, só
eu e a lua numa floresta? Por que sou obrigada a suportar tudo isso?”
(Hutchinson, 1996, p. 256).
“Por que me amam? Não é porque cantei uma bela ária ou emiti uma bela nota;
deve haver algo mais” (Hutchinson, 1996, p. 318).
“Tudo que querem saber a meu respeito está ali, na música. Callas morreu”
(Hutchinson, 1996, p. 338).
Stein (2004) assinala que o núcleo arquetípico do ego não muda com o
tempo, mas que a persona pode ser modificada muitas vezes no transcorrer da
vida, dependendo da percepção do ego sobre as mudanças ocorridas no
ambiente e de sua capacidade para interagir com este último. Segundo o autor,
um dos momentos em que se dá uma importante mudança é na transição da fase
inicial da idade adulta para a meia-idade, quando o ego tem de enfrentar os
desafios de adaptação com alterações apropriadas no conceito de si mesmo e na
apresentação que faz de si através da persona. Jung denominou este período
metanóia, que se caracteriza por uma mudança da atitude consciente de forma
espontânea no inconsciente (Whitmont, 2006). O termo vem do latim, metanoein,
e significa “mudar de mente” (Jung, 1986).
Como ressaltamos no capítulo dos pressupostos teóricos, a individuação
não consiste apenas na tarefa de desenvolver o ego e a persona realizada
idealmente na primeira metade da vida. Feito isso, um novo projeto começa a
surgir, visto que o desenvolvimento ideal do ego e da persona deixou um vasto
material psicológico de fora da consciência: a sombra não foi integrada, a anima e
o animus permanecem inconscientes, e dificilmente houve um contato mais direto
com o si-mesmo. Assim, a segunda etapa da individuação, que normalmente
ocorre na segunda metade da vida, envolve a unificação da personalidade total,
de ego e inconsciente. Segundo Stein (2004), “[...] quando o desenvolvimento do
ego atinge o seu clímax na meia-idade, não faz mais sentido continuar
perseguindo os mesmos antigos objetivos” (Stein, 2004, p. 158). Alguns dos
objetivos já alcançados passam a ser questionados, levando a uma reavaliação
do que foi realizado através da atribuição de novos significados.
104
Não é por acaso, portanto, que o arrefecimento da carreira de Maria Callas
tenha se acentuado quando a diva se encontrava na casa dos quarenta anos, e
extremamente insatisfeita com a perspectiva de continuar fazendo de sua vida
uma representação, vivendo numa roda-viva, passando de uma cidade a outra, de
um papel a outro, de um triunfo a outro. Conforme assinala Silveira (1997), o
primeiro passo para a individuação é o desvestimento das falsas roupagens da
persona, e parece ter sido este o passo que ela tentou dar quando diminuiu o
alucinante ritmo de trabalho e, aos poucos, foi se tornando cada vez mais reclusa
e alheia à vida social.
Como coloca Hutchinson (1996): “Era como se tivesse dito a si mesma:
‘Primeiro você precisa se tornar a grande Maria Callas. Depois, pode se tornar
uma mulher’” (Hutchinson, 1996, p. 212). Quem era esta mulher, no entanto,
depois de tanto tempo à sombra da artista, era algo que não parecia estar muito
claro, pois “quando é retirada a máscara que o ator usa nas suas relações com o
mundo, aparece uma face desconhecida” (Silveira, 1997, p. 80). Por muito tempo
ainda, desde que os questionamentos começaram a despontar, ela continuou
trabalhando, sem alegria, sem objetivo, decerto porque a persona, quanto mais
adere à pele do ator, mais dolorosa torna a operação psicológica para despi-la
(Silveira, 1997).
Uma pessoa que certamente contribuiu para a intensificação deste
processo que já vinha acontecendo foi Aristóteles Onassis. Maria apaixonou-se
perdidamente pelo armador grego, para o qual praticamente toda a sua libido foi
direcionada, pouco sobrando para sua arte. Os amigos comentavam, e milhares
de musicófilos concordavam: aquele homem fizera com que Callas sacrificasse a
voz, a arte, a carreira. “Não se pode servir a dois senhores” (Hutchinson, 1996, p.
206), constatou, referindo-se à arte e a Onassis, pelo qual optara, pelo menos
temporariamente. “Ela só queria ficar com Onassis, ser sua esposa, sua mulher,
sua amante” (Hutchinson, 1996, p. 206), queixou-se o diretor Zefirelli.
Mas a verdade é que Onassis surgiu no exato momento em que ela
pretendia retirar-se da cena lírica e interromper o incessante ritmo de trabalho
que vinha mantendo desde o tempo de estudante no Conservatório de Atenas. As
105
inquietações típicas da metanóia levaram-na a perceber que cantar não era o
único objetivo, o único sentido de sua vida, e com Onassis pôde experienciar um
outro aspecto seu que jazia adormecido: sua sensualidade, o próprio sentido de
Eros. “Eu tinha a sensação de ter ficado muito tempo presa numa gaiola. Assim,
quando conheci Aristo, tão cheio de vida, transformei-me em outra mulher”
(Hutchinson, 1996, p. 199).
O bon vivant serviu de perfeito receptáculo às projeções de sua alma, de
tudo aquilo que até então se mantivera na sombra, clamando por expressão. Seu
erro, porém, consistiu em acreditar que, por haver despertado nela tanta vida,
tantos sentimentos e sensações latentes, apenas Onassis poderia alimentá-los.
De acordo com Hutchinson (1996), seu medo de perdê-lo incluía o temor de
perder a espontaneidade, a alegria e a paixão que ele a levara a descobrir.
Assim, estabeleceu com este homem um relacionamento de dependência,
portando-se como uma mulher passiva, submissa e resignada diante das
inúmeras faltas do parceiro.
Jung (1991b) discorre sobre este aspecto, freqüente nos indivíduos que se
identificam com a persona, explicitando os mecanismos psicológicos que atuam
nesses casos:
A identidade com a persona determina automaticamente uma identidade
inconsciente com a alma, pois, quando o sujeito, o eu, é indistinto da persona,
não tem relação consciente com os processos do inconsciente. Ele é esses
processos, é idêntico a isso. Quem é seu próprio papel exterior também
sucumbirá infalivelmente aos processos internos, isto é, há de contrariar, por
absoluta necessidade, seu papel exterior, ou vai levá-lo ao absurdo. Fica, assim,
excluída qualquer afirmação da linha individual e a vida transcorre em meio a
contradições inevitáveis. Neste caso, a alma é sempre projetada num objeto real
e correspondente, estabelecendo-se com este um relacionamento de
dependência quase absoluta. Todas as reações oriundas desse objeto têm efeito
direto e que toca o íntimo do sujeito. Trata-se, muitas vezes, de vínculos trágicos
(Jung, 1991b, § 761).
106
A tragédia só piorou quando Onassis a deixou por Jackeline Kennedy.
Embora publicamente se esforçasse em manter a mesma máscara inabalável de
sempre - “Não se deve sair por aí, exibindo a própria fraqueza. É preciso manter a
dignidade” (Hutchinson, 1996, p. 293) -, em seu íntimo, o sofrimento psíquico era
intenso. Até o final de sua vida, permaneceu fixada no passado, remoendo as
expectativas frustradas, todos os anseios que não puderam ganhar vida: o
matrimônio que não se concretizou, o filho que ele a convencera abortar.
Após o que foi sentido como um golpe em sua alma, cuja projeção na figura
de Onassis relutou em recolher, retomou paulatinamente a vida profissional.
Disse, após o casamento do ex-amante:
Se eu pudesse tomar um remédio que me desse força mental e física,
principalmente física... Eu me contentaria com um ano, um bom ano, para voltar
ao que fui. É o começo... isso é que me apavora, o começo (Hutchinson, 1996, p.
286).
Novos trabalhos, papéis e projetos eram os seus salva-vidas, já que ela
não via nenhuma outra forma de preencher seu tempo. Envolveu-se em algumas
montagens, gravações e até participou de um filme, mas a repercussão já não era
mais a mesma; nada do que fizesse poderia se comparar aos dias gloriosos que
ficariam para sempre enterrados no passado. Se bem que ela teimava em
desenterrá-los, pois continuava identificada com uma persona que, no entanto, já
não podia mais se atualizar. Precisava, mais do que nunca, da vitalidade que lhe
proporcionava a certeza de ser o alvo das atenções, e jamais falava em
aposentar-se, muito menos admitia que já o fizera. Segundo Hutchinson (1996),
Maria “cada vez mais se voltava para o passado, que transfigurava através da
memória seletiva e da imaginação. Vivia no passado e apenas existia no insípido
presente” (Hutchinson, 1996, p. 301).
A biógrafa descreve a rotina que se estabeleceu nos últimos anos de sua
vida:
107
Ela nunca se levantava antes do meio-dia, a não ser que fosse absolutamente
necessário. E à noite fazia de tudo para adiar a hora de ir para a cama. [...] quase
uma obsessão era ouvir a si mesma nas muitas gravações piratas, em discos e
fitas, que recebia de admiradores do mundo inteiro. Quando tinha convidados
para o jantar, comumente os fazia ouvir uma dessas gravações [...]. Recostada
no sofá, um dos poodles no colo, ouvia atentamente, absorta, numa espécie de
transe, do qual saía apenas para tecer um comentário para si mesma; sem
esperar resposta, voltava a mergulhar em seu mundo até a fita ou o disco chegar
ao fim. ‘Ela cantava bem, não?’, dizia às vezes [...]. Outras vezes desfiava
reminiscências. Em geral, porém, preferia ouvir suas gravações sozinha,
revivendo os velhos triunfos em toda a sua glória, repassando mentalmente toda
a sua vida (Hutchinson, 1996, p. 300).
Impossibilitada de manter o prestígio por ela mesma, vendo-se obrigada a
reconhecer que já não tinha mais condições de estar à altura de “La Callas”,
agarrou-se com acentuado saudosismo ao que fora no passado, inclusive
referindo-se a si própria em terceira pessoa, como se aquela prodigiosa mulher
capaz de cantar e encantar multidões já não tivesse mais nada que ver com a
mulher desgostosa e solitária que se tornara. Refugiou-se em sua carapaça,
assumindo uma atitude defensiva e mantendo as pessoas à distância. A
desconfiança básica permanecia: “Quanto menos se dá, menos se sofre. Mesmo
quando aparece uma coisa boa, você a recusa, porque tem medo. E perde a
oportunidade. Você se fecha e desconfia de tudo” (Hutchinson, 1996, p. 298).
Segundo a biógrafa, a cada ano Maria se tornava mais desesperada, mais
sozinha, mais amargurada. “Minhas esperanças chegaram aos céus e depois
ruíram. Oh, não. Chega de tantos altos e baixos. Prefiro ficar embaixo o tempo
todo” (Hutchinson, 1996, p. 297). Escreveu ao amigo John Ardoin:
“Oh, John, que vida solitária me espera! Nenhum trabalho que eu venha a fazer
será como no passado. [...] Ando muito desanimada por poder confiar apenas em
mim mesma e em ninguém mais – no passado, no presente e no futuro. Será que
sou uma criatura tão estranha? E por quê?” (Hutchinson, 1996, p. 287).
108
Estes relatos todos nos levam à conclusão de que Maria Callas, ao longo
de toda sua vida, nunca pôde integrar com sucesso os diversos aspectos da
personalidade, e, assim, beneficiar-se da conseqüente ampliação de consciência,
que a tornaria um pouco menos refém das movimentações intempestivas do
inconsciente. Permaneceu, a maior parte do tempo, em estado de identidade com
seus complexos, com seu animus negativo e com sua persona, raramente
permitindo à sombra integrar-se à consciência.
Como sabemos, a possibilidade de escolha e relacionamento depende
fundamentalmente da saída desse estado de identidade inconsciente. Enquanto
esta identidade perdurar, não haverá qualquer possibilidade de escolha, já que o
indivíduo fica à mercê dos “caprichos” do inconsciente, incapaz de compreender a
origem de seu sofrimento, das dificuldades internas, da falta de adaptação às
demandas da realidade externa. Como ele não sabe o que o está movimentando,
o estabelecimento de relações interpessoais torna-se uma tarefa bastante difícil, e
o caminho comumente encontrado é o da projeção, como forma destes conteúdos
chegarem à consciência. Na impossibilidade de integrá-los, o freqüente
mecanismo da projeção fazia com que Maria tivesse uma percepção distorcida da
realidade, que lhe parecia exageradamente ameaçadora e da qual sentia
necessidade de se proteger, o que resultou em isolamento da vida social.
Como assinala Silveira (1997), é no confronto entre inconsciente e
consciente, no conflito como na colaboração entre ambos que os diversos
componentes da personalidade amadurecem e se unem em uma síntese, na
realização de um indivíduo específico e inteiro. Portanto, em seu processo de
individuação, Maria Callas não se entregou ao projeto de completar-se, pois para
isso seria necessário que ela aceitasse o fardo de conviver conscientemente com
tendências opostas, irreconciliáveis, inerentes à sua natureza, ao invés de
apegar-se unilateralmente apenas àquilo que julgava apropriado, que lhe dava
prazer ou que simplesmente garantia seu status quo. Só que, com isso, não teve
como escapar das violentas reações compensatórias do inconsciente, que a
fizeram terminar seus dias em uma lamentável condição.
109
Referindo-se às pessoas que relutam em entrar em contato com o
sofrimento inerente ao processo de transformação e crescimento do ser humano,
Von Franz (2005) faz um comentário bastante propício: “Muitos adultos
simplesmente cortam essa parte e assim não alcançam a individuação. É apenas
quando a pessoa consegue aceitá-la e o sofrimento que ela acarreta que o
processo de individuação pode se realizar” (Von Franz, 2005, p. 86).
5. A perseveração na figura materna
Como vimos, uma característica recorrente no complexo materno negativo
é a perseveração na figura materna, que consiste em uma fixação na mãe real,
em decorrência de uma relação problemática, mas que tem como pano de fundo
uma imagem arquetípica negativa do materno. Jung (2003a) divide os efeitos
traumáticos da mãe em dois grupos: os que correspondem à qualidade
característica ou atitudes realmente existentes na mãe pessoal, e os que só
aparentemente possuem tais características, já que se trata de projeções de tipo
arquetípico do indivíduo.
É no primeiro grupo que se enquadra Maria Callas, cuja mãe pessoal teve
uma participação fundamental na formação de uma imagem materna negativa,
não se tratando, portanto, apenas de uma predisposição arquetípica. Como
aponta Neumann (1995), existem tanto mães boas quanto más, e se a relação da
criança com a mãe é prejudicada, as conseqüências são neuroses e uma fixação
da relação materna original, sem que o essencial para um desenvolvimento
saudável do indivíduo tenha sido alcançado.
O fato de Evangelia ser um tipo de mãe que está mais próxima da
polaridade “ruim” do que “boa”, contudo, não anula a premissa de Jung de que a
mãe internalizada é sempre resultante do cruzamento entre a mãe pessoal e a
mãe arquetípica. A este respeito, ele ressalta:
110
Se for sentida como um obstáculo real, a mãe passa a ser uma perseguidora
vingativa. Naturalmente, não se trata da mãe verdadeira, se bem que também ela
possa ferir seriamente o filho com a ternura mórbida com que o persegue até a
idade adulta, prolongando, assim, além da época apropriada, a atitude infantil
daquele. É antes a imago da mãe, que se transformou numa bruxa. Essa imago
da mãe, contudo, representa o inconsciente, sendo a necessidade de o
inconsciente unir-se com o consciente tão vital quanto a deste último em não
perder contato com aquele (Jung, 1999, § 457).
Não foi com a “ternura mórbida” que Jung usa como exemplo que
Evangelia feriu Maria, mas com indiferença e insuficiência amorosa. De forma
crescente, a filha passou a perceber a mãe como um obstáculo real, como a
personificação de tudo aquilo que ela mais abominava, desprezava e queria ver
longe de si. Como consta em sua biografia, ela manteve até os últimos dias de
sua vida uma forte resistência à mãe, esforçando-se para com esta ter o mínimo
de contato possível.
[...] até sua morte enxergou Evangelia através de uma névoa, vendo-a como uma
figura sombria e quase ameaçadora. Durante toda a vida foi presa dessa
inconsciente rebelião juvenil – obcecada pela mãe, porém até o fim glacial em
seu antagonismo (Hutchinson, 1996, p. 91).
Evangelia, no entanto, sempre encontrava as mais diversas maneiras de
assombrá-la: dando entrevistas a revistas nas quais ultrajava a filha, publicando
um livro sobre Maria em que a acusava de maldade e ingratidão, através de uma
tentativa de suicídio, como forma de chamar sua atenção, nas cartas que escrevia
pedindo-lhe ajuda financeira e queixando-se de sua falta de consideração. A mãe
se transformou em uma perseguidora vingativa, na concepção de Maria – embora
saibamos que o aspecto verdadeiramente perturbador desta “perseguição”
residia, provavelmente, na terrível imagem materna arquetípica que se formara.
“Você precisa me ajudar a enfiar um pingo de bom senso naquela cabeça
oca, a fazê-la entender sua posição e a calar sua linda boca. Parece câncer.
111
Nunca vou me livrar dela e de suas conseqüências” (Hutchinson, 1996, p. 242),
explodiu numa carta ao padrinho, indignada com uma entrevista que a mãe
concedera a uma revista, na qual caluniava a filha. “Nunca hei de me reconciliar
com minha mãe e tenho bons motivos para isso. Ela me fez muito mal, e os laços
de sangue não são tão fortes. Não me vejo obrigada a representar e dizer
‘mãezinha querida’. Não sei fingir” (Hutchinson, 1996, p. 309), desabafou.
Por mais que expressasse o desejo intenso de livrar-se da mãe e o
incômodo diante da constatação de que lhe seria impossível fazê-lo,
inconscientemente era como se estivesse sempre à espera da “bênção” materna,
aguardando o momento em que esta reconheceria seu erro na desvalorização.
Retomando as considerações de Kast (1997b) e Jung (2003a), mulheres com
esse tipo de complexo materno originalmente negativo freqüentemente
permanecem muito ligadas à mãe, deixam-se tiranizar, jogam jogos recíprocos de
poder, sempre na esperança de um dia finalmente conseguirem a vitória sobre a
mãe, mesmo que tardiamente. Os êxitos posteriormente alcançados na vida
adulta se revestem de um significado de resposta à mãe, como forma de provar
seu valor não reconhecido por ela. Apesar da fixação, elas guardam uma grande
distância da mãe pessoal, contra a supremacia da qual cria-se uma defesa que
prevalece sobre todo o resto.
Tudo o que Evangelia sempre quis foi ver a filha em posição de destaque.
Sua obsessão por dinheiro e fama lhe ditara a maneira de criar as filhas, e agora
que Maria se transformara em “La Callas”, esta se empenhava em demonstrar
que a mãe realizara todos os seus sonhos, mas não tinha nenhum poder sobre
ela. Quando, anos mais tarde, Evangelia passava por dificuldades financeiras e
escreveu à filha pedindo-lhe ajuda, esta respondeu: “Não venha nos aborrecer
com seus problemas. Eu trabalho para ganhar meu dinheiro e você é
suficientemente jovem para trabalhar também. Se não consegue ganhar o
bastante para viver você pode se jogar da janela ou se afogar” (Hutchinson, 1996,
p. 153). Estas palavras de alto impacto mostram que Maria ainda guardava o mais
profundo ressentimento pela mãe.
112
Segundo Hutchinson (1996), considerava-se uma vítima de Evangelia e da
infância. “Nunca a perdoarei por ter me privado de minha infância. Na época em
que eu deveria apenas brincar e crescer, eu estava cantando ou tratando de
ganhar dinheiro. O que fiz por eles em geral foi bom, e o que eles fizeram por mim
em geral foi péssimo”, declarou. E, em 1950, escreveu ao padrinho: “Quanto a
minha mãe, dei-lhe tudo que podia neste ano. Afinal, já está na hora de cada um
cuidar da própria vida como cuido da minha” (Hutchinson, 1996, p. 154).
Como revela Kast (1997b), participam também do complexo materno, além
da mãe pessoal, outras pessoas que cuidaram da criança, como os avós, os
irmãos, e mesmo o aspecto maternal do pai e das figuras masculinas. De fato,
muitos dos desabafos de Maria trazem um ressentimento não só em relação à
mãe, mas também ao pai e à irmã, os quais igualmente acusava de indiferença e
interesse dissimulado. Reportando-se a uma carta que recebera da irmã,
escreveu ao amigo John Ardoin:
Mas, se você tem uma família que só sabe lhe dar pontapés, feito louca. [...] E ela
vem me dizer que mamãe está ficando velha, que papai está ficando velho. Sabe
como é? Como você se sentiria? Eu seria capaz de estrangular aquela menina.
Menina... uma mulher com mais de cinqüenta anos! Aí você me diz que eles
estão envelhecendo. Claro que estão! Eu também estou, todo mundo está
envelhecendo. E o que é que nós temos? Quatro casas separadas: a minha e as
três deles. Miseravelmente sozinha. Pelo menos realizei alguma coisa verdadeira.
Mas por que devia realizá-la sozinha? E por que tenho de ficar sozinha em casa
agora, quando deveríamos, todos os quatro, nos ajudar mutuamente? [...] Nem
em pensamento! Aconteceu uma revolução em Paris. Pensa que meus pais
telefonaram? Que minha irmã telefonou? Que nada! Meus amigos ligaram. Meus
admiradores, que nem sequer me conhecem, ligaram de Londres, da Itália. Minha
ex-empregada, minha ex-cozinheira ligaram. Isso faz a gente pensar, sabe...
(Hutchinson, 1996, p. 309).
Nunca me dizem – Maria, como vai? Precisa de alguma coisa? Está doente?
Todo mundo se preocupa comigo mas elas nunca ligam a mínima. Isso não é
novidade, mas ainda não me acostumei. Só me escrevem quando estão
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precisando de dinheiro. Tudo bem – desculpe meu desabafo, mas é uma pena
não sermos uma família unida – todos nós seríamos menos solitários
(Hutchinson, 1996, p. 311).
De acordo com Hutchinson (1996), Maria tinha verdadeiro horror de ser
usada e, ante a possibilidade – real ou imaginária – de que isso acontecesse,
partia para o ataque. Em seu relato, é perceptível sua frustração diante da
impossibilidade de ver a família unida por interesses verdadeiros, e não apenas
por necessidades financeiras, em função das quais todos recorriam a ela.
Von Franz (2005) tece um comentário interessante a respeito das pessoas
que desde cedo têm de se haver com um ambiente familiar pouco afetivo que não
lhes propicia um real sentimento de pertencimento e de valor próprio. Ela ressalta
as conseqüências deletérias de uma tal vivência:
Há pessoas que se desiludem cedo na vida; você vê isso quando tem que
analisar órfãos negligenciados de camadas altas e baixas da sociedade, aqueles
que hoje são chamados de “crianças negligenciadas”, o que significa que são
tanto crianças pobres, criadas na favela e que tiveram destinos e famílias
horríveis, ou crianças ricas que tiveram todas as carências, exceto de dinheiro –
pais divorciados, um péssimo ambiente em casa e falta de afeto, que é tão vital
para as crianças. Tais pessoas muito freqüentemente crescem mais rapidamente
que outras porque se tornam bastante realistas, desiludidas, auto-suficientes e
independentes desde cedo. As vicissitudes da vida as forçaram a isso, mas você
pode facilmente dizer por suas expressões falsamente amadurecidas, que
alguma coisa andou mal com elas. Elas foram forçadas a abandonar a infância e
a cair na realidade.
Se você analisar essas pessoas, descobrirá que elas não elaboraram o problema
das ilusões infantis mas apenas o reprimiram. Têm certeza que seu desejo de
amor e seus ideais nunca serão satisfeitos. Crêem que isso está fora de
cogitação. Mas isso é uma convicção do ego que não leva a nada, e uma análise
mais profunda mostra que elas permanecem completamente mergulhadas em
suas ilusões infantis: o desejo de ter uma mãe que as amasse ou de felicidade
permanece o mesmo, encontra-se apenas reprimido. Elas são realmente muito
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menos adultas do que as outras, e o problema foi apenas posto de lado. O
indivíduo tem então a terrível tarefa de reviver essas ilusões porque sua vida ali
parou. Portanto, a pessoa acaba regredindo a essas lembranças até que alguém
tente puxá-la para fora adequadamente. Esse é o problema das pessoas que
dizem não conseguir amar nem confiar em ninguém. Nessas condições, a vida
fica sem sentido (VON FRANZ, 2005, p. 48).
Este processo descrito por Von Franz (2005) é bastante semelhante ao
vivido por Maria, que desenvolveu cedo uma independência e uma autonomia
forçadas, práticas para a vida, e esta capacidade para controlar sua vida
serviu-lhe como eficiente estratégia de sobrevivência. Paralelamente a tal
desenvolvimento precoce, entretanto, suas ilusões infantis não puderam ser
elaboradas, fazendo com que ela continuasse, internamente, ansiando pela
felicidade de uma família que a amasse. Esta fixação levava a uma regressão das
lembranças dolorosas das experiências familiares, que sempre se reatualizavam,
gerando sofrimento. “Na realidade nunca tive pai nem mãe” (Hutchinson, 1996, p.
238), lamentava-se.
É verdade, contudo, que, em sua adolescência, Maria encontrou na tutora
Elvira de Hidalgo uma substituta parcial para a mãe ineficaz. Declarou que, na
época em que estudava no conservatório, “ficar em casa era impensável; eu não
saberia o que fazer lá” (Hutchinson, 1996, p. 37).
Se “casa” é o lugar onde existe amor, então Maria não tinha (e nunca teve) uma
casa. Tinha um “lá”, e sua estreita relação com De Hidalgo tornava mais fácil
ausentar-se de “lá” por períodos cada vez mais longos. A seus olhos, no entanto,
Elvira era mais que uma mãe. Com seu conhecimento mágico de mundos
inteiramente novos da música, com seus dotes vocais e com sua aura de glória,
ela se parecia mais com uma fada madrinha (Hutchinson, 1996, p. 37).
Graças à existência desta “fada madrinha”, Maria pôde experienciar
minimamente um modelo materno positivo, capaz de propiciar-lhe o sentimento de
valorização pessoal e o desenvolvimento de suas potencialidades, de uma forma
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delicada e acolhedora, respeitando os limites e a individualidade da aluna. Sob
muitos aspectos, De Hidalgo foi além de seu papel de tutora, como demonstra
Hutchinson (1996):
De Hidalgo despertou-lhe a consciência da grandeza e da grandiosidade de sua
arte. Fez o patinho feio vislumbrar pela primeira vez o cisne em que haveria de se
transformar. E foi além: não só com seus ensinamentos, mas também com sua
compreensão, seu estímulo e seu amor, estabeleceu uma ponte entre essa
imagem e a realidade, que pareciam infinitamente distantes uma da outra.
Ensinou Maria a se vestir, a deslocar-se pelo palco, a andar pela rua, a
permanecer parada com toda a sua estatura interior (Hutchinson, 1996, p. 38).
E, quanto mais Maria idealizava a mestra, tanto mais transformava sua
mãe na “madrasta malvada”. De acordo com a biógrafa,
Quanto mais se afastava da mãe e da irmã, mais ela se apegava a De Hidalgo e
mais raiva sentia em relação à família. [...] ela encontrava mais dificuldade em
reprimir o ressentimento em relação à mãe – ressentimento que se devia a tudo
que Evangelia era, a todo o amor que lhe negara e a todo o amor que
incondicionalmente dedicara a Jackie. Nessa época, Jackie já havia aprendido a
aceitar com total naturalidade as atenções maternas e sua condição de filha
favorita, se não mimada. Maria vivia num estado de combustão quase constante.
Aprendera a investir as emoções e os impulsos no trabalho, porém achava cada
vez mais difícil fazer a mesma coisa em casa. Sentia-se mais sozinha do que
nunca, e a altivez se tornara seu único escudo (Hutchinson, 1996, p. 40).
Nos primeiros anos de sua carreira, permanecia ainda um laço de
dependência que unia Maria à mãe, e ele era tão forte que a levava a crer que
nada de importante poderia acontecer sem a presença materna. Evangelia
sempre fora sua maior colaboradora e também sua adversária mais implacável.
Quando da ausência da mãe, Maria sentia falta da colaboradora, pois sua força
interior se encontrava ainda projetada na força materna, e a confiança que a mãe
depositava nela assumia a importância de uma necessidade.
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Houve, inclusive, um período em que ela teve de conviver mais com o pai,
e este, com sua postura normalmente apática e calada, nutrindo interesses
limitados pela filha, levava-a a suspirar pela ambição da mãe. Havia, por um lado,
um fascínio da filha pela mãe que, no entanto, nunca se tornou uma identificação.
Por outro lado, criou-se uma resistência contra o seu poder que intensificou o
impulso para distanciar-se ao máximo do modelo materno, o qual se tornou, na
visão da filha, sinônimo de fracasso, frustração e futilidade.
Mesmo no período em que tinham uma convivência mais intensa, havia
pouca intimidade entre mãe e filha. Evangelia declarou: “Maria era formalmente
amável, às vezes até ostensivamente, como se estivesse lidando com um parente
distante, talvez um primo que conhecesse de longa data e ao qual dedicasse uma
vaga estima” (Hutchinson, 1996, p. 85). Hutchinson (1996) revela que, naquela
época, a única intimidade que Evangelia tinha com a filha se resumia a lavar suas
roupas íntimas e a massageá-la com álcool quando ela voltava para o hotel e caía
na cama depois de um espetáculo mais exaustivo.
Segundo Kast (1997b), o desligamento da adolescente de sua mãe deveria
ocorrer, no caso ideal, de tal forma que lhe fosse possível uma nova relação, na
qual de certo modo tivesse sido trabalhado o elemento complexado da relação
infantil. Por isso, de acordo com a autora, um desligamento é realmente
necessário, porém não com o objetivo da separação definitiva, mas com a idéia
caracterizada pelo objetivo de se poder ingressar em uma forma de relação
reciprocamente mais apurada. Pode-se dizer que Maria e Evangelia não foram
bem-sucedidas nesta empreitada; mal puderam evitar a separação definitiva,
muito menos estabelecer uma relação de reciprocidade e alteridade.
Em uma relação mãe-filha, afirma Whitmont (2006), é sempre criado um
campo de força dinâmico que abrange tanto uma quanto a outra da mesma forma
e simultaneamente. Ambas estão contidas neste campo, decisivamente ligadas a
ele e ligadas entre si, sem o saber ou escolher. No entanto, qualquer
relacionamento real entre elas dependeria de uma consciência daquilo que as
envolve, pois, sem esta consciência, elas ficam ao bel prazer do campo psíquico,
sem nunca saber o que as domina. Logo, na visão do autor, o relacionamento e a
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liberdade de escolha sempre dependem da conscientização do poder do “campo
de força” ou do poder arquetípico dentro do qual elas se movem – e não passam
de ilusão sem que haja essa conscientização (Whitmont, 2006).
Podemos inferir que este campo de força não conscientizado interfere
diretamente no livre-arbítrio dos indivíduos que estão nele contidos. E o
livre-arbítrio é, segundo Von Franz (2005), um sentimento subjetivo
tremendamente importante para que o ego se sinta minimamente capaz de
“comandar” sua vida, pelo menos até certo ponto. Ele é fundamental para a
disposição do ego. A autora demonstra os entrelaçamentos existentes entre
livre-arbítrio e complexo materno, cuja estratégia é manter o ego aprisionado e
alienado de sua vontade própria, interferindo, portanto, diretamente em sua
sensação de livre-arbítrio:
Se você não consegue acreditar no livre arbítrio e, portanto, na livre iniciativa do
ego, fica completamente deficiente, paralisado. Pode voltar-se para o passado e
estudar o inconsciente cada vez mais profundamente, mas nunca sairá dele. E é
essa a estratégia da aranha do complexo materno. É assim que a bruxa tenta
derrotar o herói [...] (Von Franz, 2005, p. 192).
Aparentemente, não só Maria permaneceu enredada na teia do complexo
materno, mas também Evangelia, fazendo parte do campo de interação psíquica
do qual ambas se tornaram reféns pela falta de conscientização, ficou fixada na
filha, eternamente frustrada pela falta de correspondência desta às suas
investidas de aproximação, sentindo-se injustiçada, pois se considerava a maior
responsável pelo estrondoso sucesso da filha e não via um reconhecimento de
“sua” proeza.
Vingava-se por isso. Quando Maria deixou o marido Meneghini por
Onassis, Evangelia foi a um programa de televisão sobre mães de filhas famosas.
“Agora minha filha não precisa mais dele, porém o coração me diz que nunca será
feliz. Mulheres como Maria não podem saber o que é o verdadeiro amor”
(Hutchinson, 1996, p 201), declarou, de forma contraditória. Ela não perdia a
chance de extravasar sua raiva: “Fui a primeira vítima de Maria. Agora é a vez de
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Meneghini. Onassis será a próxima”. E acrescentou: “Maria vai se casar com
Onassis levada unicamente por sua ambição sem limites” (Hutchinson, 1996, p.
202), identificando-se inconscientemente com a filha. Estas atitudes de Evangelia
só contribuíam para que aumentasse a convicção de Maria de que era uma vítima
da mãe, e a repelisse ainda mais.
Até o fim, seu relacionamento com a mãe ocupou o centro conturbado de
sua vida. Este é, portanto, um exemplo emblemático de complexo materno
originalmente negativo e seus desdobramentos extremos, quais sejam, a criação
de uma forte resistência contra a mãe, que, não obstante, continua exercendo um
grande poder sobre a filha, o desligamento como separação definitiva e a
dificuldade de reconciliação entre ambas, a supremacia de uma imago materna
terrível, a perseguir a filha eternamente e a atuar inconscientemente em diversos
âmbitos de sua vida.
Como assinala Penna (2003), pelo mecanismo da auto-regulação que rege
a psique, um conflito não elaborado tende a reconstelar a tensão entre os
opostos, repetidamente, em busca de integração das polaridades. Desta forma,
eventos repetitivos são sinais importantes da presença de um símbolo que
“precisa” ser compreendido, a fim de ser integrado à consciência (Penna, 2003).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exemplo da vida de Maria Callas nos mostra em que medida uma relação
primal em que não há suficiente envolvimento afetivo por parte da mãe, bem como
um ambiente pouco acolhedor, percebido como hostil pela criança, afetam o
desenvolvimento de sua personalidade, contribuindo para o estabelecimento de
uma auto-imagem negativa e para que mecanismos compensatórios sejam postos
em ação, obedecendo ao sistema de auto-regulação que rege a psique.
Através deste estudo, foi possível estabelecer relações entre estes fatores
determinantes e alguns dos aspectos psíquicos da cantora apreendidos de seus
dados biográficos. Cumpre salientar, mais uma vez, que o material biográfico
como objeto de estudo não permite o acesso direto à psique daquele que se quer
conhecer, por menor que seja a interferência do olhar do biógrafo. Este trabalho
consistiu, portanto, em um exercício teórico de intersecção entre os conceitos da
psicologia analítica e o que nos é dado conhecer sobre a vida de Maria Callas,
através dos dados disponíveis em sua biografia que não estão necessariamente
isentos de parcialidade.
Igualmente importante é não perdermos de vista que a cantora se
enquadrava em uma “categoria” especial de ser humano, na concepção de Jung
120
(1991a): a dos artistas. Como vimos, estes possuem uma maior predisposição a
conflitos psíquicos, pois o instinto criativo irrompe em sua consciência tal qual um
complexo autônomo e caprichoso, subjugando seu lado humano em detrimento da
criação. Analisar esta população é uma tarefa sempre arriscada, pois se corre o
risco de reduzir a grandiosidade das manifestações artísticas a condicionamentos
externos e pessoais do indivíduo criador.
Deste modo, é possível que muito do enfoque que demos na análise se
revele coerente a um indivíduo “normal”, que não sofre tanto com as pressões do
inconsciente quanto os artistas. Provavelmente, o peso que o mundo arquetípico
exercia sobre Callas tenha sido realmente muito mais determinante de todas as
suas dificuldades do que fomos capazes de demonstrar. Nos ativemos aos
aspectos mais diretamente acessíveis de sua constituição psíquica, afinal, uma
tentativa de análise no sentido do inconsciente coletivo, fonte primordial da
criação, consistiria em um passo por demais pretensioso e tratar-se-ia, em boa
parte, de mera especulação.
Um outro aspecto que foi pouco explorado, mas que gostaríamos de
ressaltar aqui é a função que o artista desempenha em sua comunidade. Estando
o indivíduo criativo mais em contato com o mundo arquetípico, ele se torna o
instrumento dos arquétipos que são constelados no inconsciente da coletividade
e que para ela são absolutamente necessários. Neste sentido, quem constrói o
“mito” não é apenas o próprio indivíduo que veste sua persona, com seu talento e
esforço pessoais, mas a coletividade também tem um papel crucial, ao fornecer
os subsídios para que esta personagem aconteça, para que venha à tona e se
torne o porta-voz das necessidades inconscientes latentes na cultura. Deste
modo, seria negligenciar o essencial pretender reduzir ao domínio pessoal a obra
de arte que se alicerça na alma da humanidade (Jung, 1991a).
Como considera Jung (1991a), devemos indagar como uma determinada
manifestação artística se relaciona com a consciência da época, e se essa
relação também não deve ser encarada como uma compensação. Afinal, todas as
épocas têm sua unilateralidade, suas restrições, preconceitos e males psíquicos,
necessitando uma compensação. O indivíduo criador é capaz de exprimir o
121
inexprimível de um contexto sócio-histórico-cultural, o que a necessidade
negligenciada dos indivíduos nele inseridos está almejando. “Sempre que o
inconsciente coletivo se encarna na vivência e se casa com a consciência da
época, ocorre um ato criador que concerne a toda a época” (Jung, 1991a, § 153).
Portanto, compreendida de forma mais profunda, a obra de arte é uma mensagem
dirigida a todos os seus contemporâneos.
Assim, uma questão que permanece é: quais seriam os conteúdos
arquetípicos da coletividade que se encontravam inconscientes, e que ganharam
visibilidade através do “arauto” Maria Callas? Esta é uma questão cuja tentativa
de resolução pode revelar-se também uma armadilha. A hipótese que podemos
levantar é de que se encontravam em livre curso na arte dramática desta artista
as emoções reprimidas do público moderno, expressando em tons intensos o
conflito que se trava entre nosso eu racional, respeitável, convencional, “normal”
e o eu passional, primitivo e sombrio. Trocando em miúdos, ela se fez de
instrumento capaz de externalizar a tensão existente entre a consciência e o
inconsciente da coletividade, e de compensar, ao menos parcialmente, uma
unilateralidade da consciência coletiva que se expressava através da supremacia
da racionalidade, do intelecto, do comedimento da expressão emocional.
Curiosamente, como pudemos averiguar, esta foi uma questão de cunho
pessoal especialmente importante em sua vida, que ela mesma não foi capaz de
equacionar adequadamente em seu processo de individuação. Deste modo, não
teve outra escolha senão submeter-se às conseqüências do eterno duelo entre as
polaridades consciente e inconsciente, persona e sombra, inflação positiva e
deflação.
122
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