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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE PSICOLOGIA DAFNE MENEGAZ TOMAZ DE AQUINO “TORNAR-SE CISNE?”: A PSEUDOTRANSFORMAÇÃO DO SENTIMENTO DE INFERIORIDADE Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação da Profª Drª Flávia Arantes Hime

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Page 1: “TORNAR-SE CISNE?”: A … Menegaz... · comum de mim mesmo enquanto ego, e por dar ao meu espírito uma noção de alma e de morte. James Hillman INTRODUÇÃO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE PSICOLOGIA

DAFNE MENEGAZ TOMAZ DE AQUINO

“TORNAR-SE CISNE?”: A PSEUDOTRANSFORMAÇÃO DO

SENTIMENTO DE INFERIORIDADE

Trabalho de conclusão de curso como exigência

parcial para graduação no curso de Psicologia,

sob orientação da Profª Drª Flávia Arantes Hime

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São Paulo

2007

Área de conhecimento: Código 7.07.00.00-1 - Psicologia

“Tornar-se cisne?”: a pseudotransformação do sentimento de inferioridade.

Dafne Menegaz Tomaz de Aquino, 2007.

Orientadora: Flávia Arantes Hime

Palavras-chave: Sentimento de inferioridade, complexo materno negativo, Maria

Callas.

Resumo

Este estudo teve como finalidade uma articulação teórica de alguns dos

conceitos da psicologia analítica com dados biográficos da cantora Maria Callas.

Para tanto, foi realizada uma leitura da biografia “Maria Callas – A mulher por trás

do mito”, de onde foram selecionados trechos que contivessem informações

relevantes sobre a vida da artista e pelos quais fosse possível a apreensão de

material psíquico. A seleção dos excertos teve como critério o problema colocado

de início, qual seja, a importância do relacionamento estabelecido entre a criança

e seus pais, bem como a influência do ambiente na constituição de uma

auto-imagem e no desenvolvimento da personalidade, de forma mais ampla.

A partir dos dados biográficos e dos depoimentos pessoais da cantora,

levantou-se a hipótese de que Maria Callas, tendo sido rejeitada desde o

nascimento pela mãe, desenvolveu um acentuado sentimento de inferioridade e

um complexo materno negativo que a acompanharam por toda a vida,

trazendo-lhe inúmeras implicações, tais como: falta de confiança básica no

mundo, supercompensação da inferioridade através da inflação egóica,

identificação com a persona, perseveração na figura materna, entre outras.

A cantora nos fornece um exemplo de como a dificuldade do ego em

realizar a integração dos conteúdos inconscientes e conscientes pode afetar

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negativamente o processo de individuação, fazendo com que o indivíduo fique à

mercê de seu próprio sofrimento psíquico.

AGRADECIMENTOS

À orientadora Flávia Hime, pela confiança, disponibilidade e respeito ao ritmo

individual de trabalho.

Às professoras Maria Georgina, por seu incentivo e generosidade no momento de

dúvida, e Noely Montes, por suas considerações precisas.

Aos meus pais, pelo exemplo de dedicação e valorização do conhecimento.

Aos amigos todos que me apoiaram durante este percurso, em especial à Michele

Tognini, que constantemente me inspirou com seu envolvimento e dedicação, e à

Paula Vianna, por sua presença sempre vivificante.

A Yedda, pela “retaguarda” fundamental a me escoltar ao longo do caminho do

crescimento individual.

À música, sem a qual a vida perderia um quantum de seu sentido.

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SUMÁRIO

Introdução...............................................................................................................0

1

Metodologia............................................................................................................04

Capítulo 1: Pressupostos

Teóricos.........................................................................06

1.1. Ego e

Consciência................................................................................07

1.2. Inconsciente coletivo e

Arquétipo..........................................................09

1.3. Inconsciente pessoal e

Complexo.........................................................11

1.4. Persona e Sombra................................................................................16

1.5. Anima e Animus....................................................................................18

1.6. Si-mesmo e Processo de

individuação.................................................20

Capítulo 2: Pressupostos Específicos................................................................... 24

2.1. A infância e os complexos parentais....................................................

24

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5

2.2. Complexo materno...............................................................................

27

2.3. Adler e o complexo de inferioridade.....................................................

32

2.4. Auto-estima e sentimento de inferioridade...........................................

34

2.5. Narcisismo............................................................................................

38

Capítulo 3: Arte e Psicologia: interfaces................................................................

43

3.1. O artista e a

criação..............................................................................45

3.2. James Hillman e as noções de criatividade.........................................

48

Capítulo 4: Maria Callas.........................................................................................

53

Análise e Discussão...............................................................................................

57

1. As experiências da primeira

infância........................................................57

2. O canto: oásis e

grilhões..........................................................................63

3. O caminho do Pai....................................................................................

70

4. A dualidade Maria/ Callas: identificação com a persona.........................

80

5. A perseveração na figura materna..........................................................

95

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Considerações Finais..........................................................................................

105

Referências Bibliográficas...................................................................................

108

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Quando estou prostrado pela aflição das depressões, dos sintomas

e das ansiedades profundas, deparo-me com a irrefutável

evidência

da independência das forças psíquicas. Algo vive em mim e não

é

obra minha. O demônio que fala nos sonhos, nas paixões e nos

sofrimentos não me deixa prosseguir e sou forçado a

reconhecer seu valor porque me aprofunda além da noção

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comum de mim mesmo enquanto ego, e por dar ao meu espírito

uma noção de alma e de morte.

James Hillman

INTRODUÇÃO

Muitos foram os temas cogitados para este trabalho de conclusão, dentre

os quais alguns chegaram a ser desenvolvidos: a dança indiana e seus símbolos,

a poesia de Hilda Hilst, a criatividade no relacionamento conjugal... No entanto,

por razões que nos são conhecidas e outras não, todos eles foram perdendo seu

sentido no decorrer do tempo. Saltando de um tema a outro, a única convicção

que permanecia era a de que o trabalho deveria, direta ou indiretamente, estar

relacionado com a questão da criatividade.

“Um belo dia”, estávamos lendo uma dissertação de mestrado intitulada “O

limite como potência: um estudo das relações entre a vergonha e a criatividade”,

de Alexandre Schmitt (2006), quando nos deparamos, surpresas, com Maria

Callas. O autor havia ilustrado suas hipóteses com uma breve discussão acerca

da biografia da cantora, e aquelas poucas, mas interessantes páginas nos

instigaram a conhecer um pouco mais sobre sua vida em “Maria Callas – A mulher

por trás do mito”, de Arianna Stassinopoulus Hutchinson, uma de suas mais

importantes biógrafas. Logo percebemos que tínhamos em mãos um material

bastante rico, repleto de nuances psicológicas que não haviam sido exploradas

por Schmitt, visto não ser a proposta do autor aprofundar-se no exemplo.

Convencemo-nos de que tais relatos biográficos realmente mereciam uma

análise mais ampla, por ilustrarem de forma tão emblemática situações típicas e

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fundamentais da experiência humana, no que diz respeito ao desenvolvimento do

indivíduo a partir de suas experiências iniciáticas com outros seres humanos, aos

cuidados dos quais ele está entregue.

A fim de obtermos uma compreensão teórica sobre a questão, recorremos

a Jung (1988), que dedicou uma série de estudos à psicologia infantil, abarcando

também a psicologia dos pais e educadores, que ele considerava como normativa

no processo de crescimento e maturação da criança. Nesses estudos, ele chama

a atenção para a importância do relacionamento psicológico insatisfatório entre

pais e filhos como causa das perturbações psicogênicas na infância e, muitas

vezes, na vida adulta.

Segundo o autor, nos primeiros anos de vida, o indivíduo se encontra

quase que inteiramente fundido com as condições do meio ambiente. A psique,

na infância, é até certo ponto apenas parte da psique materna e, logo depois, da

psique paterna, em conseqüência da atuação comum dos pais. Daí proviria, de

acordo com Jung (1988), o fato de que as perturbações nervosas e psíquicas

infantis se devem exclusivamente a perturbações na esfera psíquica dos pais. A

partir do momento em que a criança começa a desenvolver a consciência do

próprio “eu”, então, já existe uma psique individual, que, no entanto, só costuma

atingir uma relativa independência apenas após a puberdade. Até este período,

continua sendo em grau elevado joguete dos impulsos e das condições

ambientais (Jung, 1988).

Na visão do autor, “[...] deveríamos sempre examinar o ambiente doméstico

e o relacionamento psíquico dos pais, e, nestes, quase sem exceção, haveríamos

de encontrar as únicas e verdadeiras razões que explicassem as dificuldades dos

filhos” (Jung, 1988, § 107). Neste sentido, o modo de ser perturbador de uma

criança é muito menos expressão do interior delas mesmas do que reflexo das

influências perturbadoras dos pais. Sobre estes, interessa saber seus problemas,

a maneira como vivem ou deixam de viver, as suas aspirações que foram

realizadas ou descuidadas, a atmosfera reinante na família e os métodos

educacionais empregados, pois todo esse condicionamento psíquico tem

influência extremamente profunda na criança (Jung, 1988).

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Alguns autores pós-junguianos como Neumann, Kast e Whitmont, entre

outros, também nos serviram de base, com suas inestimáveis contribuições para

a elucidação dos fundamentos da formação e do desenvolvimento da

personalidade, que, idealmente, deveria levar ao estabelecimento de um ego bem

estruturado e suficientemente adaptado às realidades interior e exterior.

A escolha pelo arcabouço teórico da psicologia analítica deu-se a partir da

consideração de que esta é capaz de fornecer os substratos teóricos adequadas

à explicação e reflexão sobre os fenômenos que serão abordados no presente

estudo. Através das intersecções entre os conceitos junguianos e o caso em

questão, pretendemos demonstrar a extensão dessa teoria e propiciar uma

ampliação de sua compreensão.

A psicologia analítica concebe o ser humano como uma totalidade que

contém tanto aspectos herdados e inatos como adquiridos pela experiência

vivenciada na relação com o mundo. Nesse sentido, faz uma distinção entre o

aspecto coletivo da psique humana de seu aspecto pessoal, o qual é responsável

pela individualidade. Esta, segundo Penna (2003), se alicerça na noção de um

ser único, indivisível e complexo: “uma totalidade eco-bio-psíquico-social,

resultante de um potencial arquetípico que se atualiza num corpo biológico e num

contexto histórico e social; um microcosmo dentro do macrocosmo” (Penna, 2003,

p. 128).

É a este aspecto - o âmbito da individualidade - que daremos maior ênfase

no presente estudo, procurando compreender de que forma as experiências

vividas pelo indivíduo nas inter-relações com o mundo podem favorecer ou

prejudicar o seu desenvolvimento. Evidentemente, atentamos para não perder de

vista a dimensão arquetípica que também o constitui, e que não se pode atribuir a

um ser humano individual.

De forma concisa, portanto, o objetivo desse trabalho é promover uma

articulação entre alguns dos conceitos da psicologia analítica e a biografia de

Maria Callas, focando a questão do relacionamento com os pais, principalmente,

com a mãe, e seus desdobramentos posteriores. Gostaríamos de frisar que este

não se propõe a ser um estudo de caso ou um psicodiagnóstico, visto que, para

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isso, seria imprescindível o acesso direto ao ser humano em questão, com seu

sistema psíquico total, e aos símbolos do qual emergem. Como nosso objeto de

estudo consiste em uma obra biográfica, invariavelmente estará “contaminada”

pela perspectiva de quem a escreveu, deixando entrever sua avaliação pessoal

sobre os dados objetivos. Trata-se, portanto, de um exercício de articulação entre

teoria e prática que não assume um compromisso com a verossimilhança dos

fatos, mas se baseia exclusivamente nos dados apresentados pelo biógrafo.

É importante assinalar que vem ocorrendo, nos últimos tempos, uma

significativa retomada do uso de biografias como fontes de conhecimento em

trabalhos acadêmicos na área da psicologia. Este é um material que representa

mais uma possibilidade para o desenvolvimento da psicologia enquanto

instrumento de análise e compreensão do ser humano.

Para explicitação adequada do tema, dividimos o trabalho nos seguintes

capítulos:

- O primeiro capítulo tratará dos principais conceitos da psicologia analítica que

estarão presentes no transcorrer do trabalho, quais sejam: ego e consciência,

inconsciente coletivo e arquétipo, inconsciente pessoal e complexo, persona e

sombra, anima e animus, self e processo de individuação;

- O segundo capítulo está voltado para alguns conceitos mais específicos, que

constituirão a base para a compreensão dos fenômenos psíquicos quando da

análise. Faremos uma exposição sobre os seguintes temas: a infância e os

complexos parentais, complexo materno, Adler e o complexo de inferioridade,

auto-estima e sentimento de inferioridade e narcisismo;

- No terceiro capítulo, procuramos esclarecer a maneira como a psicologia

analítica se posiciona em relação às possíveis interfaces entre arte e psicologia e

a questão da criatividade. Será dividido em: arte e psicologia, o artista e a criação

e noções sobre criatividade.

- O quarto capítulo é dedicado à cantora lírica Maria Callas, através de uma breve

exposição de alguns dados biográficos, com a finalidade de tornar mais clara a

análise e discussão.

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Na análise e discussão, é realizada uma articulação da teoria apreendida

com os dados biográficos da cantora.

METODOLOGIA

Para atingir o objetivo deste trabalho, foi realizada uma leitura da biografia

“Maria Callas – A mulher por trás do mito”, de onde foram selecionados trechos

que contivessem informações relevantes sobre a vida da artista e pelos quais

fosse possível a apreensão de material psíquico. A seleção dos excertos teve

como critério o problema colocado de início, qual seja, a importância do

relacionamento da criança com seus pais, especialmente com a mãe, bem como

as influências do ambiente, para o estabelecimento de sua auto-imagem e o

desenvolvimento da personalidade, de forma mais ampla.

Com base nos pressupostos teóricos da psicologia analítica, procuramos

fazer um recorte que demonstrasse em que medida as interações da cantora com

a figura materna e com o ambiente determinaram sua maneira de ver e de se

relacionar com o mundo e consigo própria. Ao traduzirmos os fatos apresentados

na biografia em termos psicológicos, visávamos compreendê-los de tal forma que

o material desconhecido pudesse se tornar conhecido.

Devemos levar em consideração o fato de que a consciência, como

instrumento de observação dos fenômenos psíquicos, tem seus limites e

tendências unilaterais naturais, e que, portanto, a interpretação dos dados

biográficos no presente estudo obedecerá às referidas limitações do observador

(Penna, 2003).

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CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

A Psicologia Analítica concebe a psique como um sistema dinâmico cujo

fluxo energético é constante e movido pela lei da compensação dos opostos.

Consciente e inconsciente funcionam compensatoriamente, a partir de um

dinamismo auto-regulador próprio do sistema como um todo. Esta auto-regulação

é regida pela tensão energética que constantemente se produz entre as

polaridades, das quais as principais são consciente e inconsciente (Penna, 2003).

A energia que move a psique foi denominada por Jung libido. A

canalização desta energia no sistema psíquico como um todo é realizada através

de sua progressão e da regressão, isto é, dos movimentos da energia em direção

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ao ambiente externo e ao ambiente interno. De acordo com Silveira (1997), a

partir da regressão ou “marcha retrógrada” da libido, há a reativação de conteúdo

interior, possibilitando o desenvolvimento da personalidade.

A oscilação entre tensão e auto-regulação da energia circulante no sistema

psíquico foi denominada por Jung função compensatória. Nas palavras do autor:

[...] considero a atividade do inconsciente como equilibração da unilateralidade da

atitude geral, causada pela função da consciência. [...] A atividade da consciência

é seletiva. A seleção exige direção. E direção exige exclusão de todo o

irrelevante. Disso resulta obviamente certa unilateralidade da orientação da

consciência (Jung, 1991b, § 774).

Quanto mais a unilateralidade da consciência se acentua, aumenta também

a oposição dos conteúdos inconscientes em relação à consciência, e mais forte

se torna a tensão entre estes opostos. A função compensatória da psique, então,

tenta equilibrar a força opositora das polaridades em questão (Penna, 2003).

O produto resultante desta tensão energética entre as polaridades

consciente e inconsciente é o símbolo, que representa a síntese de ambas. Ele

consiste, segundo Silveira (1997), em uma forma complexa na qual se reúnem

opostos numa síntese que ultrapassa a capacidade de compreensão presente,

não podendo, portanto, ser formulada dentro de conceitos. Ele é a melhor

descrição ou fórmula de um fato relativamente desconhecido, porém, reconhecido

ou postulado como existente. O símbolo, portanto, tem função de mediação, pois,

através dele, inconsciente e consciente aproximam-se. A função da psique que

cria símbolos foi chamada por Jung função transcendente (Penna, 2003).

Como a psique é um padrão de totalidade que só pode ser descrito

simbolicamente, a produção imagética espontânea, os sonhos, as fantasias e as

expressões artísticas são valiosas fontes de informação e orientação do

psiquismo (Whitmont, 2006).

A complementação ou compensação inconsciente às deficiências ou

tendências unilaterais do ponto de vista consciente sugere, de acordo com

Whitmont (2006), uma direção ou um objetivo. Ela pressupõe uma configuração

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de totalidade que tem uma finalidade ou padrão de inteireza. Sobre este ponto de

vista finalista da psique, Penna (2003) assinala:

De acordo com a concepção da psique como um sistema dinâmico em que a

energia flui em busca de um equilíbrio, e as tensões entre polaridades acionam,

naturalmente, o mecanismo de auto-regulação, todo evento psíquico é forjado

numa relação de causa e finalidade. O símbolo é simultaneamente causado por

uma situação de tensão energética e tem por finalidade alcançar a homeostase

do sistema em busca de um nível de desenvolvimento da personalidade mais

íntegro (Penna, 2003, p. 186).

Se funcionalmente o psiquismo opera regido pelo mecanismo

compensatório, estruturalmente a dimensão psíquica compreende dois níveis: um

coletivo e outro individual. A psique coletiva se refere ao inconsciente coletivo e

aos arquétipos, enquanto a psique pessoal abarca o inconsciente pessoal, a

consciência e os complexos (Penna, 2003).

1.1. Ego e Consciência

Embora Jung tenha demonstrado possuir maior interesse pela investigação

das regiões mais profundas da psique, ele também assumiu a tarefa de descrever

e explicar a consciência humana, reconhecendo esta como a condição prévia

para qualquer investigação psicológica.

Jung (2003b) define o ego como um dado complexo com o qual todos os

conteúdos conscientes se relacionam, formado primeiramente por uma percepção

geral de nosso corpo e existência e, a seguir, pelos registros de nossa memória.

Este fator complexo se assenta, portanto, em duas bases: uma somática

(corpórea) e outra psíquica.

No que concerne à sua origem e desenvolvimento, Jung (1986) escreve:

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Embora as suas bases sejam relativamente desconhecidas e inconscientes,

psíquicas e somáticas, o ego é um fator consciente por excelência. É mesmo

adquirido, empiricamente falando, ao longo da vida do indivíduo. Parece surgir,

em primeiro lugar, da colisão entre o fator somático e o meio ambiente, e, uma

vez estabelecido como um sujeito, continua a desenvolver-se em conseqüência

de sucessivas colisões com os mundos exterior e interior.

O ego, como o complexo mais próximo e valorizado que conhecemos, é

sempre o centro de nossas atenções e desejos, e o cerne indispensável da

consciência. É ele quem toma as decisões, mobilizando a energia física e

emocional necessária para cumprir as tarefas. Como assinala Stein (2004), o ego

é um ponto de partida e o portal para ingressar no espaço interior a que

chamamos psique. Ele é dotado de poderosa força de atração, atraindo os

conteúdos do inconsciente e chamando a si impressões do exterior que se tornam

conscientes ao seu contato. Segundo o autor, o grau em que um conteúdo

psíquico é tomado e refletido pelo ego é o grau em que se pode afirmar que ele

pertence ao domínio da consciência (Stein, 2004).

A este respeito, Jung (2003b) é bastante enfático:

Uma consideração importante sobre a consciência é que não pode haver

elemento consciente que não tenha o ego como ponto de referência. Assim, o

que não se relacionar com o ego não atingirá a consciência. A partir desse dado,

podemos definir a consciência como a relação dos fatos psíquicos com o ego

(Jung, 2003b, § 18).

Assim, a consciência pode ser compreendida como um campo e o ego

como sujeito de todos os atos pessoais de consciência que ocupa o centro deste

campo. A consciência humana é uma aquisição recente da natureza, e, portanto,

ainda vulnerável e suscetível à fragmentação. Como salienta Jung (2003b),

O mundo da consciência caracteriza-se sobremaneira por uma certa estreiteza;

ele pode apreender poucos dados simultaneamente num dado momento.

Enquanto isso tudo o mais é inconsciente – apenas alcançamos uma espécie de

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continuidade, de visão geral ou de relacionamento com o mundo consciente

através da sucessão de momentos conscientes. A nossa possibilidade se

restringe à percepção de instantes de existência (Jung, 2003b, § 13).

Neste sentido, a consciência é um fenômeno intermitente, um campo

restrito de visão momentânea. Ela é, sobretudo, o produto da percepção e

orientação no mundo externo (Jung, 2003b).

Como qualquer complexo, o complexo do eu fundamenta-se sobre um

núcleo arquetípico, o Si-mesmo, ou a totalidade da personalidade presente e

futura, sendo este fator apriorístico que governa a construção do ego, em seu

desenvolvimento. A infância é a fase na qual a identidade ego-Self gradualmente

se separa e elementos do meio ambiente interagem com potenciais arquetípicos

para produzir uma primeira personalidade (Kast, 1997a).

1.2. Inconsciente Coletivo e Arquétipo

O conceito de inconsciente limitava-se, a princípio, a designar o estado dos

conteúdos esquecidos ou reprimidos. Apesar de já encontrarmos em Freud a

noção de inconsciente como sujeito atuante, ele se restringe a um receptáculo

geral daquilo que o ego deve reprimir por ser cultural ou pessoalmente

inaceitável, adquirindo um significado prático graças a estes conteúdos

recalcados ou esquecidos. Para Freud, portanto, o inconsciente é de natureza

exclusivamente pessoal. Já na concepção de Jung, este inconsciente

corresponde ao inconsciente pessoal, uma pequena parte do todo, distinta do que

pode ser considerado como um inconsciente coletivo. Este corresponde a uma

dimensão da psique inconsciente que é de um caráter humano geral, a priori, ao

invés de consistir simplesmente no precipitado do material pessoal reprimido

(Withmont, 2006).

Jung (2003a) afirma:

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Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente

pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este, porém, repousa sobre

uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou

aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que

chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato de o

inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente

à psique pessoal, ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são

‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras

palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um

substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada

indivíduo (Jung, 2003a, § 3).

Os conteúdos do inconsciente coletivo foram denominados por Jung

(2003a) arquétipos. Estes consistem em imagens primordiais e universais,

oriundas das camadas mais profundas da psique. Os arquétipos constituem o

fator apriorístico em todas as atividades humanas, são a estrutura individual inata

da psique, pré-consciente e inconsciente. De acordo com o autor, eles não se

difundem através da simples tradição, linguagem e migração, mas ressurgem

espontaneamente em qualquer tempo e lugar, sem a influência de uma

transmissão externa. Neste sentido, são determinados apenas quanto à forma e

não quanto ao conteúdo, pois o arquétipo é um elemento vazio e formal em si,

não passando de uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação

(Jung, 2003a).

Segundo Silveira (1997), os arquétipos resultariam do depósito das

impressões superpostas deixadas por determinadas vivências fundamentais,

comuns a todos os seres humanos. Estas vivências são típicas, tais como

emoções e fantasias suscitadas por fenômenos da natureza, pelas experiências

com a mãe, pelos encontros entre homem e mulher, vivências de situações

conturbadas, que exigem do ego uma postura heróica, etc. No arquétipo se

encerram motivos mitológicos, que surgem em forma pura nos contos de fadas,

nos mitos, nas lendas e no folclore, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes,

na filosofia, nas produções inconscientes de um modo geral (Silveira, 1997).

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Quando a energia psíquica que está concentrada no arquétipo se atualiza,

dá origem a uma imagem arquetípica, que é a forma como o arquétipo se

manifesta. Esta imagem não corresponde ao arquétipo em si, pois o arquétipo é

uma virtualidade, não podendo ser apreendido em sua forma pura.

1.3. Inconsciente Pessoal e Complexo

O inconsciente pessoal consiste nas camadas mais superficiais do

inconsciente, cujas fronteiras com o consciente são bastante imprecisas (Silveira,

1997). Sobre esta parte da psique, Jung (2006) afirma o seguinte:

O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente

esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não

ultrapassam o limiar da consciência (subliminares), isto é, percepções dos

sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos

que não amadureceram para a consciência. Corresponde à figura da sombra

(Jung, 2006, § 103).

Além de todos estes elementos que integram o inconsciente pessoal -

percepções e impressões subliminares dotadas de carga energética insuficiente

para atingir a consciência, combinações de idéias ainda fracas e indiferenciadas,

recordações perdidas ou reprimidas – nele residem ainda certos grupos de

representações carregados de forte potencial afetivo, incompatíveis com a atitude

consciente, chamados por Jung de complexos (Silveira, 1997). Como este

conceito será um dos eixos norteadores do presente trabalho, iremos dedicar-lhe

uma atenção especial.

A teoria dos complexos foi, possivelmente, a mais importante das primeiras

contribuições de Jung para o entendimento do inconsciente e sua estrutura. A

partir de uma série de experimentos com sujeitos humanos que mais tarde

culminariam no método de associação de palavras, ele chegou à descoberta e

mapeamento destes conteúdos da vida inconsciente. Os experimentos consistiam

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na exposição dos sujeitos a uma série de estímulos verbais comuns, cotidianos e

aparentemente neutros, dentre os quais encontravam-se disseminadas palavras

de maior teor afetivo. Eles tinham de responder a estas palavras-estímulo com a

primeira palavra que lhes viesse à mente, o que suscitou uma grande variedade

de reações emotivas e sinais de ansiedade, com seus respectivos efeitos sobre a

consciência. Jung considerou que as respostas idiossincráticas, como rimas,

palavras sem nexo ou associações incomuns eram indicadores da existência de

complexos, evidenciando as reações defensivas contra conflitos psicológicos

inconscientes (Stein, 2004).

Assim, os resultados de seus experimentos o levaram a postular a

existência de entidades psíquicas fora da consciência, como objetos que gravitam

ao redor da consciência do ego, capazes de lhe causar perturbações. Jung deu o

nome de “complexos” a estes conteúdos inconscientes, responsáveis pelas

perturbações da consciência (Stein, 2004).

“Um complexo é um aglomerado de associações – espécie de quadro de

natureza psicológica mais ou menos complicada – às vezes de caráter traumático,

outras, apenas doloroso e altamente acentuado” (Jung, 2003b, § 148). Por ser

dotado de tensão ou energia própria, o complexo apresenta a tendência a formar

uma espécie de ego, comportando-se como uma personalidade parcial ou

fragmentária na psique (Jung, 2003b).

Devido a estas características, tais conteúdos se tornam de difícil

abordagem. Eles sempre trazem consigo recordações, desejos, temores, deveres,

necessidades ou introspecções com os quais o indivíduo se vê às voltas, sem

saber bem o que fazer, e interferem em sua vida consciente sempre de maneira

perturbadora. “As características do conflito, do choque, da consternação, do

escrúpulo e da incompatibilidade são próprias dos complexos” (Jung, 1991b, §

989).

Cabe ressaltar, contudo, que Jung não se deteve apenas nos aspectos

negativos dos complexos. Ele considerava que, mesmo provocando perturbações

e reações emocionais, as colisões que inevitavelmente ocorrem entre o indivíduo

e o ambiente externo têm uma função positiva, pois tendem a estimular o

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desenvolvimento do ego, ao exigirem dele maior capacidade de concentração,

levando-o, assim, a desenvolver uma melhor competência para resolver

problemas e a conquistar maior autonomia individual. Através das vigorosas

interações com o mundo, das contrariedades, ameaças e frustrações resultantes

das mesmas, o ego é forçado a efetuar escolhas e a assumir posições e, desta

forma, se vê impelido a crescer (Stein, 2004).

Como os complexos são grupos autônomos de associações, com tendência

de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção

consciente, eles geram uma sensação de impotência e inferioridade, adquirindo

uma conotação negativa perante o ego. Contudo, a despeito dos efeitos

desconcertantes que os complexos imprimem no indivíduo, diante dos quais este

se sente ameaçado e sem controle, Jung (1991b) ressalta que eles também

possuem uma função importante no sentido de impulsionar o ego rumo ao seu

desenvolvimento, servindo, assim, ao processo de individuação. Visto desta

forma, o complexo passa a ser um sintoma valioso para diagnosticar uma

disposição individual que não nos seria acessível de outra maneira.

Sem dúvida, os complexos são uma espécie de inferioridade no sentido mais

amplo; mas quero sublinhar de saída que um complexo ou ter um complexo não

significa logo uma inferioridade. Quer dizer apenas que existe algo discordante,

não-assimilado e conflitivo, um obstáculo talvez, mas também um incentivo para

maiores esforços e, com isso, talvez nova possibilidade de sucesso. Neste

sentido, os complexos são precisamente focos ou entroncamentos da vida

psíquica que não gostaríamos de dispensar, que não deveriam faltar, caso

contrário a atividade psíquica entraria em estado de paralisação fatal. Eles

mostram ao indivíduo os problemas não resolvidos, o lugar onde sofrem, ao

menos provisoriamente, uma derrota, onde existe algo que ele não pode

esquecer ou superar, enfim o ponto fraco, no mais amplo sentido da palavra

(Jung, 1991b, § 990).

Kast (1997a) também aponta os aspectos positivos dos complexos,

afirmando que nestes se encontram os germes de novas possibilidades de vida

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que se revelam de forma criativa quando o indivíduo os aceita, ao invés de lutar

contra eles, e permite que se desdobrem em símbolos. Segundo a autora, “se o

eu consegue estabelecer um contato com o complexo, experienciar e configurar

as imagens e fantasias que surgem, a energia presa num complexo pode

tornar-se uma energia que vivifica a pessoa inteira” (Kast, 1997a, p. 43). No

entanto, enquanto o indivíduo se mantiver inconsciente de seus complexos, estes

permanecerão atuando de forma compulsiva e sendo projetados no mundo que o

cerca (Whitmont, 2006).

Para Jung (1991b), o complexo surge do choque entre uma necessidade

de adaptação e a constituição especial e inadequada do indivíduo para suprir

esta necessidade. Kast (1997b) enriquece esta explicação, ao afirmar que a

instalação dos complexos se dá a partir de uma interação difícil ou portadora de

significado entre duas pessoas, em que há mobilização de considerável carga

afetiva, e que todo evento semelhante passa a ser interpretado de acordo com

esse complexo, além de reforçá-lo. Ressalta, contudo, que os complexos

raramente surgem de uma única situação traumática; eles representam algo como

uma expectativa generalizada, a qual revela que daí resultam uma experiência e

um comportamento complexados, e que sempre ocorreram repetidas vezes

interações semelhantes entre a criança e as pessoas de seu relacionamento

(Kast, 1997b).

Complexos são núcleos afetivos da personalidade, provocados por um embate

doloroso ou significativo do indivíduo com uma demanda ou um acontecimento no

meio ambiente, acontecimento para o qual ele não está preparado. Torna-se

claro, com essa descrição, que os complexos surgem da interação do bebê, da

criança com as pessoas de seu relacionamento. E a primeira infância é

naturalmente uma situação marcante especialmente sensível para o surgimento

dos complexos; contudo, os complexos podem surgir a qualquer momento,

enquanto vivemos (Kast, 1997b, p. 31).

Podemos, portanto, compreender os complexos como sendo produtos de

experiência - traumas, interações e padrões familiares, condicionamento cultural -

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que se combinam com elementos inatos, denominados por Jung imagens

arquetípicas, e formam o conjunto do complexo em seu todo. “Os complexos são

o que permanece na psique depois que ela digeriu a experiência e a reconstituiu

em objetos internos” (Stein, 2004, p. 52).

Todo complexo tem dois aspectos: a casca e o núcleo. Whitmont (2006)

descreve a primeira da seguinte forma:

A casca é aquela superfície que imediatamente se apresenta como o padrão

peculiar de reação, dependente de uma rede de associações agrupadas em torno

de uma emoção central e adquirido individualmente, logo de natureza pessoal.

[...] (Whitmont, 2006, p. 59-60)

Ela sempre aponta para experiências pessoais, constituindo uma rede de

associações emocionalmente carregadas, agrupadas em torno de certas

situações geradoras de afeto, a partir da história e do condicionamento pessoais.

É formada, em grande parte, por acontecimentos e traumas da infância,

dificuldades e repressões, podendo, neste sentido, ser redutivamente explicada

em termos de causa e efeito (Whitmont, 2006). Evidentemente, esse

condicionamento da infância não explica tudo, pois, segundo o autor, existem

também na predisposição básica individual diferenças que determinam quais os

tipos de complexos que se desenvolvem ou não em resposta ao ambiente.

Já o núcleo do complexo consiste em um padrão humano universal, o

arquétipo do inconsciente coletivo. Este, no entanto, só pode ser abordado em

termos pessoais, como forma de alcançar seu poder impulsionador e seu

significado.

Portanto, o trauma que dá origem ao complexo cria uma imagem mnêmica

emocionalmente carregada que se associa a uma imagem arquetípica, e ambas

congelam numa estrutura mais ou menos permanente que contém uma certa

quantidade de energia, podendo, através desta, ligar-se a outras imagens

associadas para criar uma rede. Estas imagens são atadas pela mesma emoção e

pelo mesmo núcleo comum de significado (arquétipo). Quando o indivíduo se

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depara com um estímulo disparador, o conjunto dessas conexões inconscientes é

ativado (constelado), juntamente com a emoção a ele pertencente (Kast, 1997a).

Como assinala Stein (2004), o complexo pertence essencialmente ao

mundo subjetivo, embora represente também uma pessoa, experiência ou

situação real. Ele nunca deve confundir-se com realidade objetiva, visto que é um

objeto psíquico, que possui em seu núcleo uma imagem. Um complexo que tenha

em seu núcleo uma imago da mãe, por exemplo, será um complexo materno,

distinto da mãe real.

Kast (1997b) reforça esta idéia, ao afirmar que, no caso dos complexos

parentais, não existe apenas a experiência com a mãe ou o pai pessoais, mas

que cada pessoa apresenta uma expectativa quanto ao materno e ao paterno

arquetípicos. Ela afirma que “em nossos complexos não se retratam simplesmente

pai ou mãe com seu comportamento ou irmãos exatamente como eles eram; os

complexos parecem ser, antes, uma complicada fusão de algo factualmente

experienciado e algo fantasiado, de expectativas frustradas, etc” (Kast, 1997b, p.

32).

1.4. Persona e Sombra

A sombra e a persona são estruturas complementares e divergentes,

existentes em toda psique humana. O termo persona é utilizado por Jung para

caracterizar as expressões do impulso arquetípico para uma adaptação à

realidade exterior e à coletividade (Whitmont, 2006). Ela é a máscara que usamos

no encontro com o mundo social que nos cerca, e que geralmente não

corresponde ao nosso modo de ser autêntico. Apresenta-se mais como os outros

esperam que sejamos, ou como desejamos ser do que como somos realmente

(Silveira, 1997).

Todos precisamos de outras pessoas para sobreviver física e

psicologicamente. O movimento do ego no sentido da relação e da adaptação ao

mundo dos objetos, buscando assegurar a sobrevivência, oferece à persona a

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oportunidade de adquirir influência e predomínio. Ela passa, então, a ser a

auto-representação de uma pessoa ao mundo (Stein, 2004).

No entanto, como assinala Whitmont (2006), temos que aprender a nos

adaptar às exigências culturais e coletivas em conformidade com nosso papel na

sociedade – com nossa ocupação ou profissão e posição social – e ainda sermos

nós mesmos. Se a diferenciação ego-persona fracassar, teremos o surgimento do

que o autor denomina “pseudo-ego”, isto é, uma imitação estereotipada dos

padrões coletivos. O pseudo-ego vive num equilíbrio precário, sujeito a pressões

internas constantes, sendo desprovido de consistência.

Como coletividade e individualidade constituem um par de opostos,

trava-se um relacionamento de oposição e de compensação entre a persona e a

sombra. O termo sombra designa a parte da personalidade que foi reprimida em

benefício do ego ideal, por não estar em harmonia com os valores estabelecidos

por uma sociedade. Como tudo o que é inconsciente, ela é projetada em outras

pessoas, que passam, então, a ser combatidas pelo indivíduo.

De acordo com Whitmont (2006), a reação afetiva que marca a projeção

denuncia nosso complexo tonalizado pelo afeto, que interfere em nossa

capacidade de ver objetivamente e nos relacionar humanamente. Quando ocorre

uma projeção da sombra, nos tornamos incapazes de diferenciar a realidade da

outra pessoa dos nossos próprios complexos; ficamos impossibilitados de

distinguir fatos de fantasias e de enxergarmos tanto o outro quanto nós mesmos

(Whitmont, 2006).

Isso porque as características da sombra, em geral, estão em evidente

contraste com os ideais da persona e com os esforços da vontade. Segundo

Whitmont (2006), o desenvolvimento do ego ocorre como resultado do encontro

entre a individualidade potencial interior (o Si-mesmo) e a coletividade exterior, na

qual são projetadas as bases da consciência, no primeiro nível da experiência

entre o certo e o errado. A harmonia com o Si-mesmo depende da aceitação

externa, isto é, dos valores coletivos e da persona, e os elementos da

individualidade que sejam muito discrepantes dos valores aceitos da persona não

podem ser conscientemente incorporados à imagem que o ego tem de si mesmo.

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Estes elementos se tornam, portanto, sujeitos à repressão, embora nunca

desapareçam; permanecem funcionando como um alter-ego inconsciente que

parece estar localizado fora da pessoa (Whitmont, 2006).

A sombra consiste, portanto, nos complexos, nas características pessoais

que repousam em impulsos e padrões de comportamento relegados da estrutura

da personalidade. Muitas vezes são facilmente observáveis pelos outros, mas não

pelo próprio indivíduo (Whitmont, 2006).

Contudo, ela não se constitui apenas de aspectos tidos como negativos, de

acordo com Silveira (1997):

A sombra é uma espessa massa de componentes diversos, aglomerando desde

pequenas fraquezas, aspectos imaturos ou inferiores, complexos reprimidos, até

forças verdadeiramente maléficas, negrumes assustadores. Mas também na

sombra poderão ser discernidos traços positivos: qualidades valiosas que não se

desenvolveram devido a condições externas desfavoráveis ou porque o indivíduo

não dispôs de energia suficiente para levá-las adiante, quando isso exigisse

ultrapassar convenções vulgares (Silveira, 1997, p. 81).

Quando o indivíduo tem a possibilidade de reconhecer a própria sombra,

esta se torna fonte de renovação. Ela representa o primeiro estágio para o

encontro do Self, servindo como uma importante via de acesso ao inconsciente e

à própria realidade.

No entanto, confrontar a sombra significa mais do que simplesmente

conhecê-la. Para tanto, é preciso sofrer o choque de ver a nós mesmos como

realmente somos, e não como desejamos ou esperançosamente supomos ser. O

primeiro passo rumo à realidade individual só poderá ser dado quando formos

capazes de nos defrontar com a totalidade do ser, que engloba também os

aspectos desviantes dos padrões coletivamente e pessoalmente aceitos.

Deste modo, nenhum progresso ou crescimento é possível sem uma

adequada confrontação da sombra. Quando nos recusamos a encará-la ou

tentamos combatê-la, estamos apenas relegando-a para o inconsciente, de onde

passa a exercer seu poder negativamente, de forma compulsiva e projetada. O

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mundo, então, é transformado por nossas projeções em um ambiente que espelha

nossas faces, as quais não reconhecemos como nossas (Whitmont, 2006).

1.5. Animus e Anima

Embora considerasse a influência das expectativas culturais e sociais e

dos papéis atribuídos a cada um dos sexos nas maneiras como homens e

mulheres vivem suas vidas, Jung postulou a existência de padrões psicológicos

arquetípicos na consciência, que denominou anima e animus.

Convencionalmente, a anima é a imagem arquetípica feminina no homem, e o

animus é a imagem arquetípica masculina na mulher (Sanford, 2002).

Segundo Stein (2004), anima e animus são personalidades subjetivas que

representam um nível mais profundo do que a sombra. Enquanto esta representa

características pessoais inconscientes e reprimidas, anima e animus personificam

os padrões humanos gerais instintivos, inconscientes e a priori, e tendem a operar

como personalidades parciais, constituídas por diferentes padrões compostos

(Whitmont, 2006).

Sobre a estrutura interna anima/ animus, ele afirma:

Ela é, tal como a sombra, uma personalidade dentro da psique que não combina

a representação de si mesmo e a identidade de si mesmo refletida pela persona.

É diferente porém, da sombra, na medida em que não pertence do mesmo modo

ao ego: é mais “outro” do que a sombra é (Stein, 2004, p. 116).

É uma estrutura psíquica complementar à persona, que vincula o ego à

camada mais profunda da psique, isto é, à imagem e experiência do Si-mesmo.

Neste sentido, funciona como um complexo funcional cujo interesse se concentra

na adaptação ao mundo interior. Da mesma forma como a persona está voltada

para o mundo social e colabora com as necessárias adaptações externas, o

animus e a anima estão voltados para o mundo interior da psique, levando uma

pessoa às imagens do inconsciente coletivo, auxiliando-a a adaptar-se às

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exigências e necessidades dos pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e

emoções com que o ego se defronta (Stein, 2004).

Como padrão de comportamento, o arquétipo da anima representa os

elementos impulsivos relacionados à vida da emotividade, espontaneidade e dos

instintos. Na medida em que a individualidade separada do homem é

personificada como elemento masculino, a conexão é vivenciada e personificada

como uma entidade feminina (Whitmont, 2006).

De acordo com Whitmont (2006),

Como padrão de emoção, a anima consiste nos anseios inconscientes do

homem, seus estados de espírito, aspirações emocionais, ansiedades, medos,

inflações e depressões, assim como seu potencial de emoção e relacionamento

(Whitmont, 2006, p. 168).

Nas situações que exigem respostas emocionais e instintivas, podem

ocorrer invasões da anima, já que a resposta instintiva e emocional-intuitiva é

aquela que o homem, em geral, é menos capaz de fornecer de maneira

consciente. E, quando determinada situação evoca emoções e a resposta

emocional não é canalizada conscientemente, então, a resposta inevitavelmente

surgirá do inconsciente. Assim, o homem dominado pela anima poderá tornar-se

melancólico, inseguro e retraído (Whitmont, 2006).

Já no caso das mulheres, o animus representa o ímpeto de ação, a

capacidade de julgamento e discriminação. Ele descreve os aspectos de uma

mulher que são os meios pelos quais os julgamentos são formados. Segundo

Whitmont (2006), a mulher conduzida pelo animus é governada por preconceitos,

noções e expectativas preconcebidas, e é dogmática argumentadora e

hipergeneralizadora. Isso porque os julgamentos e convicções emocionais não

foram formados pela consciência, mas desenvolveram-se a partir do inconsciente.

Na primeira metade da vida, anima e animus tendem a projetar-se no

mundo exterior, sobre seres reais, desempenhando um importante papel nos

relacionamentos interpessoais. Contudo, a partir segunda metade da vida,

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quando tais projeções vão se esgotando, espera-se que sejam integrados à

consciência.

Assim como o enfrentamento da sombra é fundamental para o processo de

desenvolvimento da personalidade, também a confrontação da anima ou do

animus é primordial para este processo. Segundo Sanford (2002), para perceber

a realidade destes fatores arquetípicos, é necessário um considerável esforço da

consciência, e o encontro com estes constitui a obra-prima da individuação. O

processo de conscientização de anima/ animus, ainda que parcial, constitui um

meio indispensável de abordagem da dimensão não-pessoal da psique

(Whitmont, 2006).

Como assinala Whitmont (2006), o confronto com anima/ animus requer

consciência da natureza de suas expectativas autônomas e padrões de respostas

pessoais. É preciso reconhecer seus anseios e necessidades e se adaptar a eles,

canalizar os impulsos para expressões compatíveis com a realidade exterior e os

preceitos éticos da consciência do indivíduo.

1.6. Si-mesmo e Processo de Individuação

Jung (1986) denomina Si-mesmo a personalidade global que existe

realmente, mas que não pode ser captada em sua totalidade. Ele afirma que o eu

está subordinado ao Si-mesmo e está para ele assim como qualquer parte está

para o todo. Portanto, realiza uma discriminação entre ego e Si-mesmo: enquanto

o ego é apenas o sujeito da consciência, o Si-mesmo atua como o sujeito da

totalidade e, por isso, ele também inclui a psique inconsciente. Nesse sentido, o

Si-mesmo seria um fator (ideal) que engloba e inclui o ego (Jung, 1991b).

O Si-mesmo, como conceito psicológico, serve para exprimir uma essência

incognoscível que não se pode entender como tal, afinal, ela transcende o poder

de compreensão da consciência. A este respeito, Jung (1991b) afirma:

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O si-mesmo, como conceito empírico, designa o âmbito total de todos os

fenômenos psíquicos no homem. Expressa a unidade e totalidade da

personalidade global. Mas na medida em que esta, devido à sua participação

inconsciente, só pode ser consciente em parte, o conceito de si-mesmo é, na

verdade, potencialmente empírico em parte e, por isso, um postulado, na mesma

proporção (Jung, 1991b, § 902).

De acordo com Whitmont (2006), o Si-mesmo é a raiz da qual a

experiência e consciência do ser individual surgem como fenômeno secundário.

Este arquétipo se exprime como um sistema de orientação central dirigido para a

realização e a experiência consciente, embora não esteja no centro da

consciência. Pode ser visto como uma autoridade central, um campo unitário, que

governa tanto o mecanismo consciente quanto o inconsciente, tanto a realidade

interior quanto a exterior (Whitmont, 2006).

Para Stein (2004), a função que o Si-mesmo desempenha na psique pode

ser equiparada à função do ego no campo da consciência:

A influência do si-mesmo sobre a psique como um todo é refletida pela influência

do ego sobre a consciência. À semelhança do si-mesmo, o ego também exerce

uma função centralizadora, ordenadora e unificadora, e o seu objetivo é, tanto

quanto possível, equilibrar e integrar funções, dada a existência dos complexos e

das defesas (Stein, 2004, p. 144).

Assim, o Si-mesmo é o fator que ordena todo o sistema psíquico e o

mantém unido e coeso, criando os equilíbrios entre os vários outros fatores e os

atando numa unidade funcional. Ele atua sobre o sistema psíquico de forma a

produzir símbolos de integridade, imagens que apontam para a totalidade ou

inteireza, como as mandalas ou os quatérnios, por exemplo. Sua tarefa parece ser

a de manter o sistema psíquico unido e em equilíbrio, tendo como meta a unidade

dinâmica (Stein, 2004).

A experiência total de integridade no decorrer de uma vida inteira – o

surgimento do Si-mesmo na estrutura psicológica e na consciência – é o que Jung

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denominou individuação. Esta consiste na tendência instintiva a realizar

plenamente potencialidades inatas, no processo de tornar-se um indivíduo

psicológico, ou seja, uma unidade consciente separada e indivisa, um todo

indistinto (Stein, 2004).

Segundo Stein (2004), a plena expressão e manifestação da personalidade

leva toda uma vida para se desenrolar; o Si-mesmo emerge pouco a pouco,

através dos numerosos estágios do desenvolvimento humano. O desenvolvimento

psicológico, que acompanha a trajetória do desenvolvimento físico até certo

ponto, pode ser dividido em duas partes: a primeira metade da vida e a segunda.

Na primeira metade, dá-se o processo de diferenciação do ego em relação

ao inconsciente, e seu crescimento, expansão e crescente complexidade e poder

coincidem com o crescimento e desenvolvimento de seu corpo físico. O principal

projeto deste período consiste em desenvolver o ego e a persona até que seja

viável a individualidade, a adaptação cultural e a responsabilidade pela criação

dos filhos (Stein, 2004).

A partir da segunda metade da vida, uma outra tarefa começa a surgir.

Segundo Stein (2004), o desenvolvimento ideal de ego e persona deixou uma

considerável soma de material psicológico fora da consciência: a sombra não foi

integrada, a anima e o animus permanecem inconsciente, e o Si-mesmo

raramente pôde ser visto de uma forma mais direta. Assim, a meta passa a ser a

unificação da personalidade total, abarcando ego e inconsciente, o qual contém a

vida não vivida da pessoa e o seu potencial não realizado (Stein, 2004).

Portanto, o processo de individuação consiste na realização da unidade

psicológica, no sentido mais amplo do termo, o que pressupõe a união de

aspectos conscientes e inconscientes da personalidade. Como assinala Silveira

(1997), é precisamente no confronto entre consciente e inconsciente, no conflito

como na colaboração entre ambos que os diversos componentes da

personalidade amadurecem e se unificam numa síntese, na realização de um

indivíduo específico e inteiro.

A autora descreve resumidamente o processo de individuação e suas

implicações:

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O reconhecimento da própria sombra, a dissolução de complexos, a liquidação de

projeções, a assimilação de aspectos parciais do psiquismo, a descida ao fundo

dos abismos – em suma, o confronto entre consciente e inconsciente – produzem

um alargamento do mundo interior do qual resulta que o centro da nova

personalidade, construída durante todo esse longo labor, não mais coincida com

o ego. O centro da personalidade estabelece-se agora no self, e a força

energética que este irradia englobará todo o sistema psíquico. A conseqüência

será a totalização do ser, sua esferificação (abrundung). O indivíduo já não estará

fragmentado interiormente. [...] O homem torna-se ele mesmo, um ser completo,

composto de consciente e inconsciente, incluindo aspectos claros e escuros,

masculinos e femininos [...] (Silveira, 1997, p. 88).

CAPÍTULO II - PRESSUPOSTOS ESPECÍFICOS

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Ocupar-nos-emos, no presente estudo, dos complexos que causam

dificuldades ao indivíduo, isto é, aqueles complexos nos quais estão retratadas as

interações de relacionamento problemáticas e marcantes, bem como as histórias

de relacionamento da infância e da vida posterior, juntamente com as emoções

correspondentes, as formas de defesa que tais emoções assumem e as posturas

e expectativas daí provenientes, diante das inúmeras circunstâncias vivenciais.

Trataremos, mais especificamente, do complexo materno negativo e do

complexo de inferioridade e suas implicações para a auto-estima do indivíduo,

demonstrando em que medida a atuação destes complexos na psique é capaz de

interferir em seu desenvolvimento e nas relações que ele estabelecerá consigo

mesmo e com o ambiente que o cerca.

Para tanto, julgamos necessária uma exposição sobre alguns temas que

estão intimamente relacionados e interligados ao campo de atuação dos

complexos, a começar pela relação com os pais e o estabelecimento de

complexos parentais que é daquela resultante.

2.1. A infância e os complexos parentais

Segundo Jung (1988), nos primeiros anos de vida, o indivíduo se encontra

quase que inteiramente fundido com as condições do meio ambiente. A psique,

na infância, é até certo ponto apenas parte da psique materna e, logo depois, da

psique paterna, em conseqüência da atuação comum dos pais. Daí proviria, de

acordo com o autor, o fato de que as perturbações nervosas e psíquicas infantis

estejam intimamente relacionadas a perturbações na esfera psíquica dos pais. A

partir do momento em que a criança começa a desenvolver a consciência do

próprio “eu”, então, já existe uma psique individual, que, no entanto, só costuma

atingir uma relativa independência após a puberdade. Até este período, continua

sendo em grau elevado joguete dos impulsos e das condições ambientais (Jung,

1988).

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Jung ressalta a importância do ambiente doméstico e do relacionamento

psíquico dos pais, alegando que nestes quase sempre se encontram as

verdadeiras razões que expliquem as dificuldades dos filhos. Em sua visão, a

perturbação psíquica de uma criança costuma ser muito menos expressão do

interior dela mesma do que reflexo das influências perturbadoras dos pais. Nestes

casos, considera fundamental o acesso aos problemas destes, à maneira como

vivem ou deixam de viver, às suas aspirações que foram realizadas ou

descuidadas, à atmosfera reinante na família e aos métodos educacionais

empregados, pois todo esse condicionamento psíquico exerce uma influência

extremamente profunda na criança (Jung, 1988).

Como nos primeiros anos de vida a criança vive em um estado de

“participação mística” com os pais, ela reage prontamente a quaisquer

desenvolvimentos importantes que ocorram na psique destes. De acordo com

Jung, tanto os pais quanto a criança permanecem inconscientes destes

processos.

Como são contagiantes os complexos dos pais, deduz-se dos efeitos que suas

singularidades produzem nos filhos. Mesmo que os pais façam esforços

constantes e eficientes para se dominarem, de modo que um adulto nem sequer

perceba o mínimo vestígio de um complexo adulto, contudo os filhos de qualquer

maneira serão afetados por ele (Jung, 1988, § 107).

Kast (1997b), no estudo intitulado “Pais e filhas, mães e filhos”, presta uma

valiosa contribuição para o entendimento da atuação dos complexos parentais na

psique do indivíduo. Com base na constatação de que é possível observar,

repetidamente, certos aspectos em todos os complexos maternos ou paternos a

partir de suas marcas encontradas em filhos, mães e pais – por mais diferentes

que estes sejam entre si - ela conclui que existem aspectos típicos destes

complexos, o que também está relacionado aos padrões arquetípicos atuando na

experiência de ser pai, mãe e filho.

Em sua exposição, a autora parte do pressuposto de que os complexos

maternos se formam primariamente na relação com a mãe pessoal e os

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complexos paternos na relação com o pessoal. Ressalta, no entanto, que esses

pais e mães pessoais também possuem aspectos coletivos, pois há uma imagem

materna e paterna em vigor à qual se deve corresponder e também outras

pessoas com as quais se pode experienciar um sentimento parental ou maternal

(Kast, 1997b).

A depender da experiência que a pessoa teve no seio familiar desde sua

tenra infância, podem se formar complexos parentais que Kast (1997b) classifica

como “originalmente positivos” ou “originalmente negativos”. Os complexos

originalmente positivos têm uma influência favorável sobre o sentimento de vida

e, assim, sobre o desenvolvimento da identidade do indivíduo, ao passo que os

complexos originalmente negativos não propiciam o estabelecimento de um

sentimento de confiança básica no mundo, nem favorecem o desenvolvimento de

um senso de identidade adequado.

Os complexos parentais exercem uma influência tão extensa que, a

despeito de a exposição posterior do indivíduo à cultura mais vasta reduzir a

influência psicológica de culturas étnicas e familiares, os antigos complexos

induzidos pela família não desaparecem jamais da psique. Os complexos materno

e paterno continuam a prevalecer no inconsciente pessoal. Portanto, não

devemos menosprezar a importância do âmbito familiar e, principalmente, dos

pais, no estabelecimento de padrões comportamentais que, na pior das hipóteses,

acompanharão o indivíduo por toda a vida.

Todas as formas de complexos – que são relativamente poucas, diga-se de

passagem – se fundamentam nas primeiras vivências da infância, quando a

disposição individual já se manifesta, uma vez que é inata e não adquirida no

decurso da vida (Jung, 1991b).

O complexo parental nada mais é, portanto, do que o primeiro choque entre a

realidade e a constituição inadequada do indivíduo neste aspecto. A primeira

forma de complexo tinha que ser, portanto, um complexo parental, pois os pais

são a primeira realidade com a qual a criança pode entrar em conflito (Jung,

1991b, § 992).

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Tendo em vista que um dos focos deste trabalho consiste no complexo

materno, faremos uma exposição mais detalhada sobre o tema.

2.2. Complexo materno

Em sua conferência “Aspectos psicológicos do arquétipo materno”, Jung

(2003a) afirma que a base do chamado complexo materno é o arquétipo materno.

Ele ressalta que é ainda uma questão em aberto saber se este complexo pode

formar-se sem que haja uma participação causal da mãe passível de

comprovação. No entanto, salienta que, a partir de sua experiência, lhe parece

que a mãe sempre está ativamente presente na origem da perturbação,

especialmente nas neuroses infantis ou naquelas cuja etiologia se assenta na

primeira infância.

Ao discorrer sobre o arquétipo materno, cuja variedade de aspectos é

incalculável, Jung (2003a) menciona algumas de suas formas mais

características, apontando que todas elas comportam um sentido positivo,

favorável, ou negativo e nefasto sobre a psique do indivíduo. No que concerne

aos traços essenciais do arquétipo materno, ele escreve:

Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica autoridade do feminino;

a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que

sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento;

o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso

favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o

devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal (Jung, 2003a, § 158).

No que diz respeito ao significado da mãe pessoal, Jung (2003a)

estabelece uma diferenciação entre sua concepção e a teoria psicanalítica, a qual

considera uma psicologia personalista em que a figura materna se sobressai de

tal maneira que não se é capaz de ir além da mãe pessoal. Diferentemente da

visão psicanalítica, sua concepção atribui à mãe pessoal um significado mais

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limitado, ao acatar a noção de que não é apenas desta que provêm as influências

sobre a psique infantil, mas que, em larga medida, o arquétipo projetado na mãe

outorga à mesma um caráter mitológico, conferindo-lhe autoridade e

numinosidade.

Tal consideração, no entanto, não descarta a importância da mãe pessoal,

que é quem primeiramente fornece as condições necessárias à sobrevivência da

criança, não apenas em termos fisiológicos como também psíquicos.

A portadora do arquétipo é, em primeiro lugar, a mãe pessoal porque a criança

vive inicialmente num estado de participação exclusiva, isto é, numa identificação

inconsciente com ela. A mãe não é apenas a condição prévia física, mas também

psíquica da criança. Com o despertar da consciência do eu, a participação é

progressivamente desfeita, e a conciência começa a tornar-se sua própria

condição prévia, entrando em oposição ao inconsciente. A partir disto o eu

começa a diferenciar-se da mãe e sua particularidade pessoal vai-se tornando

cada vez mais distinta (Jung, 2003a, § 188).

Deste modo, é inegável a possibilidade de que um desenvolvimento

peculiar da fantasia infantil, como raiz da etiologia das neuroses, seja atribuído às

influências perturbadoras da mãe, e que na maioria dos casos de crianças que se

desenvolvem neuroticamente é possível rastrear as causas definitivas de

distúrbios nos pais e, sobretudo, na mãe.

É sabido, contudo, que os conteúdos das fantasias anormais apenas se

referem parcialmente à mãe pessoal, uma vez que eles freqüentemente aludem a

aspectos que sobrepujam o que se poderia atribuir a uma mãe real, tais como

imagens mitológicas, fantasias originadas de contos de fada e de observações

casuais, etc. Jung (2003a) afirma que, em todo caso, “é a esfera instintiva da

criança que se encontra perturbada, constelando assim arquétipos que se

interpõem entre a criança e a mãe como um elemento estranho, muitas vezes

causando angústia” (Jung, 2003a, § 161).

O autor divide, então, os efeitos traumáticos da mãe em dois grupos: os

que correspondem à qualidade característica ou atitudes realmente existentes na

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mãe pessoal, e os que só aparentemente possuem tais características, já que se

trata de projeções de tipo fantasioso, isto é, arquetípico, da própria criança.

Com relação aos efeitos do complexo materno na filha, ele aponta que este

pode ou estimular efetivamente o instinto feminino ou inibi-lo na mesma

proporção. Expõe as seguintes possibilidades de aspectos negativos do complexo

materno na mulher: hipertrofia do aspecto maternal, exacerbação do eros,

identificação com a mãe e defesa contra a mãe.

No presente estudo, nos ateremos ao último tipo, lembrando sempre que

“tipos” são construções ideais, meios-termos tirados da experiência, com os quais

um caso individual jamais se identifica plenamente (Jung, 2003a).

A defesa contra a mãe é o exemplo típico de complexo materno negativo,

que se trata “menos de uma exacerbação ou bloqueio dos instintos femininos do

que de uma defesa contra a supremacia da mãe que prevalece sobre todo o

resto” (Jung, 2003a, § 170). Aqui há, por um lado, um fascínio da filha pela mãe

que, no entanto, nunca se torna uma identificação e, por outro, uma exacerbação

de eros que se resume, porém, a uma resistência ciumenta contra a mãe. Nestes

casos, a filha procura distanciar-se ao máximo do modelo materno, no qual seus

instintos se concentram sob a forma de uma defesa persistente contra o poder

materno.

A partir da defesa contra a mãe, pode-se verificar um desenvolvimento

espontâneo da inteligência, como forma de criar uma esfera da qual a mãe esteja

excluída. Esse desenvolvimento, segundo Jung (2003a) resulta das próprias

necessidades da filha, com o propósito de quebrar o poder materno através da

crítica intelectual e cultura superior, e freqüentemente, é acompanhado de uma

emergência de traços masculinos em geral. A este respeito, ele afirma:

Graças a sua lucidez, objetividade e masculinidade, este tipo de mulher é

encontrado freqüentemente ocupando cargos importantes, em que sua

feminilidade materna, tardiamente descoberta, conduzida por uma inteligência

fria, desenvolve uma eficiência propícia. Não é apenas exteriormente que se

constata essa rara combinação de feminilidade e inteligência masculina, mas

também no âmbito da intimidade anímica (Jung, 2003a, § 186).

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Ao negar a mãe, esta mulher também repudia tudo o que é obscuro,

instintivo, ambíguo, inconsciente de seu próprio ser, preferindo colocar em

primeiro plano o que é seguro, nítido e razoável (Jung, 2003a).

A principal marca do complexo materno originalmente positivo é, segundo

Kast (1997), o sentimento de um incontestável direito à existência, de ser

interessante e de integrar um mundo que oferece tudo de que alguém necessita.

Este sentimento é fundamental, na medida em que permite que o eu também

possa entrar em contato, de modo confiante, com um “outro”. Ela considera que

Quem durante a infância experienciou muita dedicação, atenção, interesse em

todas as manifestações, envolvimento do amor maternal, será marcado por um

“complexo materno originalmente positivo”. Este marcará as expectativas em

relação às outras pessoas, à vida, ao mundo, mas também determinará

consideravelmente os interesses (Kast, 1997b, p. 39).

Tendo-se em vista a consideração de Neumann (1995) de que, para o ego

da criança, sua experiência do mundo é a experiência da própria mãe, cuja

realidade emocional determina a existência do filho, então, podemos dizer que a

experiência de uma mãe “suficientemente boa”, provedora de alimento,

sustentação, segurança e amor permite o surgimento de um complexo materno

originalmente positivo, transmitindo ao indivíduo uma confiança primordial e o

sentimento vital do direito natural à existência.

Em contrapartida, uma mãe pouco dedicada à criança, incapaz de nutrir

por esta um verdadeiro interesse, propicia o surgimento de um complexo materno

originalmente negativo, que provoca no indivíduo desconfiança primordial e, em

conexão com isso, um medo existencial e o imperioso sentimento de não ter

nenhum direito à existência (Kast, 1997b).

Aquele cujo maior problema na infância foi o conflito com uma mãe que - por

qualquer razão que seja – tinha dificuldades em se adaptar às necessidades

dessa criança, e quem também não pôde experienciar por meio de outras

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pessoas uma dedicação maternal sustentadora serão marcados por um

“complexo materno originalmente negativo” (Kast, 1997b, p. 39).

A autora afirma que, para este complexo, é típico o sentimento de que o

indivíduo deve lutar por tudo que seja absolutamente imprescindível. No lugar do

amor não exigente, da segurança, nutrição, proteção, interesse e atenção

experienciados no complexo materno originalmente positivo, encontra-se o

sentimento vital da solidão, do estar à mercê de alguém, “o sentimento de não

receber o suficiente para a vida, mas em demasia para morrer” (Kast, 1997b, p.

155).

É comum às pessoas portadoras de um complexo materno originalmente

negativo o fato de acharem que são um si-mesmo ruim em um mundo igualmente

ruim, que são desprovidas do direito inquestionável à existência,

considerando-se, elas mesmas, culpadas por isso. Como assinala Kast (1997b), o

anseio por um sentimento vital oceânico, que se vincula nitidamente ao

sentimento da participação, é grande. E, em conformidade com a marca deixada

pelo complexo fundamental, esses indivíduos pensam que se deve lutar para

alcançar tal estado.

Embora façam um grande investimento e se esforcem bastante para se

tornar indispensáveis, persiste a sensação de não pertencerem realmente a

outras pessoas, e o sentimento da incontestável participação, tão almejado,

acaba sendo frustrado. Com isso, intensifica-se a expectativa, oriunda do

complexo, de que serão novamente rejeitadas e repelidas pelos outros, mal vistas

e maltratadas. A partir deste fato, juntamente com a convicção de serem um eu

isolado, surgem enormes dificuldades de relacionamento, pois toda expressão

emocional, toda ínfima mudança afetiva de outros indivíduos chamam a atenção

dessas pessoas e são interpretadas pelo viés do complexo dominante,

geralmente no sentido da repulsa, consideradas como rejeição, ofensa.

Costumam reagir a isso com grande fúria (Kast, 1997b).

A necessidade de controle surge, então, como uma tentativa de prevenir o

surgimento do sofrimento. Como não há confiança primordial e um bom

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sentimento vital ligado a ela, mas sim o predomínio da desconfiança primordial e

do medo, o resultado disso é o entendimento de que tudo o que é passível de

controle deve ser controlado. Kast (1997b) salienta que esta postura de

compensação costuma ser exteriormente interpretada e experienciada como

“complexo de poder”, mas que, na realidade, trata-se de uma tentativa extrema da

pessoa livrar-se de seu sentimento de impotência. Mais adiante, veremos com

maior detalhe os mecanismos de supercompensação para os sentimentos de

inferioridade que acometem essas pessoas.

Paralelamente à necessidade de controle, o rivalizar é fortemente

desenvolvido, bem como a valorização de atributos masculinos, tais como o

desempenho e o destaque profissional, na tentativa de validar-se perante a

sociedade. As exigências que um indivíduo marcado por um complexo materno

originalmente negativo impõe a si mesmo, a fim de ser finalmente digno de amor,

são extremamente altas, e dificilmente costumam ser atingidas. Como afirma Kast

(1997b),

[...] muito freqüentemente se procura o caminho por meio do complexo paterno:

tenta-se conquistar a auto-estima e o sentimento de ser digno de amor por meio

do desempenho, do trabalho. Por meio do desempenho no mais amplo sentido,

estas pessoas procuram ganhar um direito à existência no âmbito social (Kast,

1997b, p. 174).

Outra característica recorrente é a perseveração na figura materna: o

indivíduo permanece fixado à mãe, sempre esperando inconscientemente a sua

“bênção”, esperando que ela reconheça “seu erro na desvalorização”. Um meio

de fazê-lo é através dos êxitos posteriormente alcançados na vida adulta,

freqüentemente revestidos de um significado de respostas à mãe, como forma de

provar seu valor não reconhecido por ela. Mulheres com esse tipo de complexo

materno originalmente negativo freqüentemente permanecem muito ligadas à

mãe, deixam-se tiranizar, jogam jogos recíprocos de poder – sempre na

esperança de um dia finalmente conseguirem a vitória sobre a mãe, mesmo que

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seja uma vitória tardia. Elas guardam uma grande distância de sua mãe concreta

(Kast, 1997b).

O que também chama a atenção no complexo materno originalmente

negativo, além do nítido problema de auto-estima, ligado a diversas formas da

problemática do medo, é quão freqüentemente se revelam no corpo os problemas

de vida originados disso, e distúrbios psicossomáticos no mais amplo sentido.

(Kast, 1997b).

2.3. Adler e o complexo de inferioridade

A origem do termo “complexo de inferioridade”, que se tornou bastante

popular e acabou sendo utilizado por psicólogos de diversas escolas

psicológicas, está na obra de Alfred Adler, fundador da psicologia individual. Sua

investigação partiu da observação de pessoas portadoras de algum tipo de

comprometimento orgânico, que ele denominou “inferioridade orgânica” (Adler,

1967, p. 72). Estas pessoas, segundo o autor, se empenham desde cedo em uma

árdua luta pela existência, permanecendo continuamente preocupadas consigo

mesmas e com a impressão que os outros possam ter ao seu respeito,

acarretando, assim, um prejuízo ao seu senso de sociabilidade.

Posteriormente, Adler (1967) percebeu que não apenas os indivíduos

gravemente enfermos sofrem do sentimento psicológico da inferioridade, mas

constatou que este é comum a todas as crianças, as quais, crescendo em meio

aos adultos, ficam predispostas a considerar-se fracas, pequenas, incapazes de

viver só:

Compreende-se, ao notar-se quão fraca e inerme é uma criança, que todo o

começo de vida é marcado por um maior ou menor senso de inferioridade. Mais

cedo ou mais tarde a criança adquire consciência de sua inaptidão para lutar,

sem a ajuda de outrem, com as dificuldades da existência. Este sentimento de

inferioridade é a força geradora, o ponto de partida dos impulsos combativos das

crianças (Adler, 1967, p. 72).

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De acordo com o autor, os sentimentos de inferioridade, de inaptidão e de

insegurança trazem em seu encalço os primeiros desejos do indivíduo de obter

consideração e apreço, de atingir uma posição em que seja aparentemente

superior ao seu ambiente. Conseguir isso representa a possibilidade do advento

de um sentimento de superioridade, de elevação da personalidade a tal ponto que

a vida se torne digna de ser vivida.

Comprimido pelo torturante sentimento de inferioridade, o indivíduo tenta

com todas suas forças neutralizar, sobrepujar este complexo de inferioridade. A

depender da sua intensidade, contudo, tal mecanismo de compensação pode

tornar-se uma supercompensação, que consiste em um exagero na luta pelo

poder e dominação. Nestas circunstâncias, o indivíduo adota uma atitude

incômoda perante o mundo e as outras pessoas, desdenhando-as, desejando

dominá-las a qualquer preço e guardando em relação às mesmas uma distância

que julgue segura (Adler, 1967).

Como demonstra Adler,

Quando se nos deparam casos de impulso patológico para a dominação,

presenciamos indivíduos a procurarem assegurar a sua posição na vida com

esforços extraordinários, com precipitação e impaciência inconcebíveis e com

uma violência de ímpetos que despreza todas as considerações e conveniências

(Adler, 1967, p. 78).

Ao referir-se à teoria adleriana, Jung (2004) considera que esta contém

uma verdade acerca da necessidade de auto-afirmação do indivíduo, baseada na

inferioridade, e julga que é um erro a atitude de menosprezá-la. Ao seu ver, a

concepção de Adler corresponde a uma realidade psíquica e, portanto, pode

explicar bem determinados casos. “A psicologia individual de Adler é uma

contribuição que não deve ser menosprezada, e representa, por conseguinte,

uma ampliação do ponto de vista psicológico” (Jung, 2004, § 39).

Ele procura, na medida do possível, aplicar a hipótese adleriana, sem

perder de vista sua relatividade. Deste modo, não vemos nenhum tipo de

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inadequação em tomarmos emprestado de Adler o termo “complexo de

inferioridade” e seus desdobramentos específicos, anteriormente explicitados,

para uma melhor compreensão do caso que será analisado neste estudo.

2.4. Auto estima e sentimento de inferioridade

Em sua obra, Jung não costuma empregar o termo “complexo de

inferioridade” para referir-se ao sentimento de invalidez, de insegurança, de

fraqueza que toma conta do indivíduo. Utiliza, em seu lugar, o termo “sentimento

de inferioridade”.

No que concerne à inevitabilidade do estabelecimento de um sentimento

de inferioridade durante a infância, encontramos em Whitmont (2006) uma noção

bastante parecida com a de Adler, visto que o primeiro também concebe o

equilíbrio da inferioridade como algo inerente à formação do ego. Afirma que, de

uma forma ou de outra, o ego em crescimento sempre apresenta a tendência de

vivenciar a si mesmo como relativamente inadequado e inferior, e que este é um

elemento básico do complexo do ego (ou complexo de identidade).

Como já ficou postulado, o sentido de existência da criança como ser

unificado, sua auto-imagem e senso de identidade são condicionados pelas

emoções particulares de seus pais - especialmente da mãe -, e sua relação com

os mesmos. A estrutura do ego saudável se baseia em uma atitude amorosa dos

pais em relação à criança, de aceitação desta como um indivíduo separado da

auto-imagem dos pais, capaz de formar suas próprias respostas e de lutar por

seus objetivos (Whitmont, 2006).

Whitmont (2006) ressalta que esta situação ideal raramente é encontrada,

visto que as reações dos pais são condicionadas por seus próprios complexos e

projeções. Assim, uma das conseqüências da impossibilidade de um equilíbrio

“correto” dos pais é a escassez de aceitação amorosa na infância, que pode

conduzir a uma confiança exagerada do ego, auto-rejeição (pois o ego não aceita

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a realidade da sombra), culpa, dificuldade para confiar nos outros e para

relacionar-se, bem como uma ênfase acentuada no egoísmo e no egotismo.

Um relacionamento no qual a criança tem muito pouca aceitação amorosa leva a

um agravamento da tensão da inferioridade, a sentimentos de inadequação,

culpa e deficiência; as outras pessoas parecem ser melhores, mais capazes, mais

desejáveis, portanto, essa criança torna-se ressentida, invejosa, superagressiva,

cheia de ódio e sem autoconfiança. Sua auto-rejeição procurará compensação na

rebelião, superindependência, superambição e agressividade (Whitmont, 2006, p.

212).

Encontramos aqui o “complexo de inferioridade” de Adler - um eu dominado

pelo sentimento de autopiedade, julgando-se privado de seu “legítimo” lugar ao

sol – e o conseqüente impulso de poder como forma de compensar essa

inferioridade.

Em um de seus trabalhos sobre a psicologia infantil, Jung (1998) trata da

problemática da inferioridade, que sempre traz em seu bojo uma superioridade,

como forma de compensação. A este respeito, ele considera:

(...) as crianças procuram de certo modo tornar real a sua inferioridade e

começam a compensá-la por meio da falsa superioridade; esta superioridade, por

sua vez, não passa de inferioridade, mas é de natureza moral e por isso nunca

satisfaz, e aqui começa um círculo vicioso. Quanto mais se procura compensar

uma inferioridade real por meio de uma falsa superioridade tanto menos se

consegue eliminar a inferioridade, mas se lhe acrescenta ainda uma inferioridade

moral, cujo efeito é aumentar o sentimento de inferioridade. Isto conduz

necessariamente a uma falsa superioridade ainda mais acentuada; e tudo se

repete de modo crescente (Jung, 1988, § 226).

Por mais que a falsa superioridade não elimine o sentimento de

inferioridade, mas, pelo contrário, acabe até mesmo por engrandecê-lo, parece

inevitável que uma sempre venha acompanhada da outra. Na visão de Jung

(2003a), “apesar de serem contraditórias, ambas as formas são idênticas, porque

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à megalomania consciente corresponde uma inferioridade compensatória e a uma

inferioridade consciente, uma megalomania inconsciente” (Jung, 2003a, § 304).

Portanto, nunca encontramos uma sem a outra, pois funcionam em uma dinâmica

compensatória.

O sentimento de inferioridade desempenha um papel importante nos

problemas de auto-estima. Kast (1997a) afirma que os complexos mais

perturbadores são os do âmbito da auto-estima, a qual ela define como “a emoção

que constitui o complexo do eu” (Kast, 1997a, p. 43). Por sinal, a autora parece

utilizar este termo, “complexo do eu”, para referir-se ao complexo de inferioridade.

É o que podemos inferir do trecho abaixo:

O complexo do eu constela-se quando não conseguimos realizar um trabalho do

eu para o qual nos julgávamos capazes, e envergonhamo-nos por causa disso.

Ou quando alguém se refere a um lado nosso que, na verdade, gostaríamos de

manter oculto aos nossos olhos e aos dos outros; somos revelados, expostos em

um existir deficitário e novamente nos envergonhamos por isso e nos sentimos

ofendidos, porque talvez alguém tenha reduzido nossa auto-estima de maneira

bastante proposital. Ofensas que levam a uma constelação do complexo do eu

também se relacionam com nossa necessidade de aceitação. Se essa

necessidade não é satisfeita, se somos muito pouco vistos, pouco percebidos,

infimamente avaliados, se nosso complexo do eu recebe muito pouca afirmação

e atenção do exterior, ele poderá “pôr-se em movimento”. Quando

experienciamos uma ofensa, quando nos sentimos envergonhados e restringidos

em nossa atividade do eu, precisamente no ponto em que queríamos

alegremente arriscar, aparece esse sentimento de não valer nada – na linguagem

popular teríamos aqui um complexo de inferioridade (Kast, 1997a, p. 87).

Nesta afirmação, há uma ênfase na ampla influência que as pressões do

mundo externo e a atitude das pessoas para conosco exercem em nossa

auto-estima. Elas têm o poder de nos fazer sentir envergonhados, rebaixados,

desvalorizados, ofendidos, e toda essa espécie de sentimentos negativos incide

diretamente sobre a avaliação que o ego faz de si próprio. Isso porque o

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complexo do eu tem de lidar com instâncias exigentes, que reclamam a realização

dos valores coletivos e individuais depositados na auto-imagem ideal. Essas

instâncias são elementos derivados das exigências éticas das pessoas de nossos

relacionamentos, pais, professores, sistemas religiosos coletivos (Kast, 1997a).

Neste sentido, portanto, a auto-estima encontra-se intimamente

relacionada com a sombra, na qual residem aspectos nossos que repugnamos

profundamente e que, no entanto, não podemos ocultar, pois são visíveis em

nossas ações. A aceitação deste lado da personalidade implica em conflitos e

ofensas à nossa auto-estima. “A ofensa à auto-estima ocorre porque insistimos

em nos identificar apenas com as boas representações de nós mesmos” (Kast,

1997a, p. 70). Quando conseguimos aceitar e integrar os conteúdos da sombra,

experienciamos o alívio, pois já não precisamos constantemente reprimi-los, e o

senso de auto-estima conseqüentemente se torna menos suscetível às avaliações

externas e às cobranças internas.

O valor ou dignidade que alguém atribui a si mesmo é como Jacoby (apud

Schmitt, 2006) define a auto-estima. Ele assinala que

Auto-estima é o valor básico que eu atribuo à minha personalidade. Essa

avaliação está profundamente assentada no inconsciente e somente é alterável

dentro de limites. Com elevada auto-estima, eu tenho um sentimento bom,

satisfatório, sobre a minha auto-imagem – a fantasia que eu tenho de mim

mesmo. A autodepreciação e sentimentos de inferioridade derivam de uma

avaliação negativa. Esses autojulgamentos estão bastante relacionados com as

avaliações e julgamentos que outros significativos fizeram no começo de nossas

vidas (Jacoby, apud Schmitt, 2006, p. 58).

Já Schmitt (2006) considera a baixa auto-estima como sendo uma situação

em que o ego não se encontra em sintonia com o Self. Ele afirma que no indivíduo

com baixa auto-estima, normalmente, o ego tenta assumir uma posição em que

age como se tomasse o lugar do Self. Ao contrário, uma alta auto-estima

corresponderia a uma situação em que o ego se encontra em profunda conexão

com o Self, ouvindo a “voz” que dele emana. Segundo o autor, “ao seguir valores

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que não estejam em sintonia com o Self, o indivíduo encontra-se em uma situação

de baixa auto-estima, do ponto de vista junguiano, mesmo que, aparentemente,

ele se mostre confiante e seguro de si” (Schmitt, 2006, p. 64).

A auto-estima e o complexo de inferioridade que atua em seu âmbito são

um ponto central nos chamados distúrbios de caráter narcisista, que veremos a

seguir.

2.5. Narcisismo

Os chamados transtornos de caráter narcisista são quadros psicológicos

de extrema complexidade. Uma discussão ideal sobre o tema demandaria um

aprofundamento que fugiria ao propósito deste trabalho; portanto, procuraremos

nos ater aos seus aspectos mais básicos.

Em seu estudo “A Criança”, Neumann (1995) discorre sobre a relação

primal mãe-filho, demonstrando que esta é decisiva nos primeiros meses de vida

de uma criança, quando seu ego começa e se desenvolver e adquirir unidade.

Para o autor, o desenvolvimento normal nesta fase da vida, caracterizado por

uma confiança permanente no amor da mãe, leva ao automorfismo, à formação de

um ego integral positivo, capaz de assimilar e integrar as qualidades dos mundos

interno e externo, ao estabelecimento de um eixo ego-Self estável, à sociabilidade

e à adaptação ao meio ambiente (Neumann, 1995).

Dentre as possíveis conseqüências de um distúrbio na relação primal, que

torna anormal o desenvolvimento do ego, Neumann (1995) cita o narcisismo.

Segundo o autor, “se uma relação primal negativa produziu um ego negativizado,

as agressões resultantes não podem mais ser integradas e, nesse caso, teremos

os fenômenos aos quais o termo narcisismo poderá ser aplicado com

propriedade” (Neumann, 1995, p. 64). Nestas circunstâncias, o ego se torna

prematuramente supervalorizado, como forma de compensação para uma

situação de desamparo e desamor. É devolvido precocemente a si mesmo e

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levado à independência pela situação de ansiedade e desconfiança (Neumann,

1995).

É apenas o ego ferido, privado da experiência de segurança – o fundamento de

toda fé e confiança – que, por causa de sua ansiedade e desconfiança, se vê

forçado a desenvolver um narcisismo que é a expressão de um ego reduzido a

seus próprios recursos. (Neumann, 1995, p. 65).

Existe uma necessidade humana básica e vital pelo que Heinz Kohut,

baseado em sua experiência clínica com distúrbios da personalidade narcisista,

denominou “ressonância empática”. Esta consiste no reconhecimento que o outro

demonstra para conosco e que valida nossa experiência, nos faz sentir seres

reais, aceitos e, conseqüentemente, importantes para outras pessoas e para nós

mesmos (Jacoby, 2004). Afinal, “ser refletido é ser compreendido, é sentir que

alguém segue empaticamente nossos pensamentos, sentimentos, experiências,

etc” (Schwartz, 1988, p. 60).

A ressonância e o reflexo da própria existência propiciados pelo meio

circundante é uma necessidade vital de todo ser humano, necessidade esta que

denota um equilíbrio narcisista saudável e uma busca pela sensação realista de

amor-próprio. Conforme assinala Jacoby (2004), a reflexão é especialmente

crucial na primeira infância, quando deve existir uma relação simbólica entre a

mãe e a criança:

[...] o desenvolvimento de um sentimento de amor-próprio realista e relativamente

estável mais tarde, durante a vida, depende, num alto grau, da ressonância

empática e do reflexo sensível que uma mãe é capaz de dar a seu filho ou sua

filha (Jacoby, 2004, p. 49).

A pessoa que toma conta da criança após seu nascimento é o primeiro e

mais decisivo espelho da existência de qualquer ser humano. Caso o indivíduo

não constate a presença de um outro que lhe forneça o reflexo e a ressonância

empática, então, podemos estar diante de um distúrbio da personalidade

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narcisista extremada, cujo sofrimento sintomático decorre da sensação básica de

isolamento e falta de confiança no mundo (Jacoby, 2004).

Nestas condições, o indivíduo apresenta dificuldades em saber quem ele é

realmente, em sentir-se bem-vindo e acolhido onde quer que esteja. Jacoby

(2004) revela que essas pessoas se tornam hipersensíveis, captando o mais sutil

sinal de uma possível rejeição, com um efeito traumatizante no senso do eu.

Como forma de se defender contra esta constante ameaça, desenvolvem uma

convicção supercompensatória, segundo a qual não necessitam de

absolutamente ninguém e se julgam capazes de uma total auto-suficiência. Para o

autor, isto consiste, na realidade, em uma identificação inconsciente com

sentimentos infantis de onipotência, ou com o chamado “eu grandioso” de Kohut

(Jacoby, 2004, p. 49).

Schwartz (1998), em seu estudo “Narcisismo e Transformação do Caráter”,

combina os pontos de vista junguiano e psicanalítico acerca das questões

subjacentes ao narcisismo e ao problema da identidade, considerando que ambos

os pontos de vista são necessários nestes casos.

O conceito de narcisismo, popularmente conhecido pela auto-adoração

extrema, acompanhada de uma indiferença que nega as necessidades do outro,

surgiu cedo na teoria psicanalítica. Conforme assinala Schwartz (1988), o termo

indicou, inicialmente, o amor-próprio num grau patológico e uma

impenetrabilidade associada, características estas que levavam um prognóstico

terapêutico pessimista. Acreditava-se que as assim chamadas desordens de

caráter narcisista eram intratáveis, pela consideração de que as defesas

narcisistas postas em ação pelo indivíduo constituíam uma barreira impenetrável,

impedindo o estabelecimento de qualquer tipo de vínculo transferencial com o

analista. Posteriormente, à medida que experiências clínicas foram sendo

realizadas, descobriu-se que, na realidade, são estabelecidas transferências

muitos intensas.

A principal queixa das pessoas narcisistas é, segundo Schwartz (1988),

uma falta de identidade e de auto-estima. Algumas das características dominantes

nestes casos são: auto-referência levada ao extremo, ausência de

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penetrabilidade, evitamento de contato, intolerância a críticas, desconhecimento

da realidade simbólica, baixa capacidade empática, orgulho de não ter

necessidades, entre outras. Sua fenomenologia consiste em auto-ódio,

necessidade de onipotência acentuada, sentimentos de raiva e inveja. De forma

resumida, portanto, a atitude defensiva especial da desordem de caráter

narcisista constitui uma defesa contra danos a um sentimento de identidade muito

pobre e frágil (Schwartz, 1988).

Um aspecto que o autor levanta é que a estrutura do caráter narcisista

consiste em um padrão que se configura como um vínculo entre os domínios

pessoal e arquetípico e que, portanto, é uma estrutura existente em todo padrão

arquetípico e em toda personalidade, um paradigma de uma estruturação geral da

psique que se manifesta em várias condições psicológicas (Schwartz, 1988, p.

34).

A estrutura do caráter narcisista é encontrada em personalidades que exibem as

mais variadas qualidades. Essa estrutura pode ser dominante ou constituir um

aspecto em todo padrão psicológico. Ela pode ser o padrão dominante, caso no

qual falamos de uma desordem do caráter narcisista. Ela também pode ser um

padrão auxiliar, secundário com relação a um outro, capaz de ajudar ou destruir o

desenvolvimento desse outro padrão. Trata-se de um forte aspecto do padrão

conhecido como puer aeternus e de sua contraparte, o senex. É sempre uma

qualidade da personalidade criativa, que se torna particularmente evidente

quando a pessoa luta para trazer sua criatividade ao mundo. É também a

qualidade dominante da personalidade infantil, que tem um forte complexo

materno. Essa relação pode ser estendida, pois a desordem do caráter narcisista

não corresponde a nenhum padrão arquetípico singular (Schwartz, 1998, p. 33).

A causa do que denomina de desordem do caráter narcisista residiria na

rejeição ao Si-mesmo, a incapacidade de viver o verdadeiro padrão pessoal.

Apenas o Si-mesmo é capaz de dar à pessoa um sentido de direção e, em última

análise, uma percepção da identidade pessoal. Assim, o caráter narcisista

fracassa em viver a realidade do Si-mesmo e sente a falta de uma relação vívida

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entre o ego e este arquétipo, cuja numinosidade excede em muito o conteúdo de

energia do ego (Schwartz, 1988).

O autor faz uma distinção entre o conceito psicanalítico de “si-mesmo

inflado grandioso-exibicionista”, que domina o caráter narcisista, e o Si-mesmo

como imagem do “ser humano maior” que procura ser realizado, impulsionando

sempre o ego para além de sua realidade conhecida. O primeiro exibe uma

acentuada qualidade defensiva, orientada para o poder, e não possui a

numinosidade do Si-mesmo, na terminologia junguiana. “Em oposição ao

si-mesmo grandioso-exibicionista, o Si-mesmo conduz o ego de uma maneira

capaz de levar à descoberta do sentido e à sensação de viver o próprio destino,

em lugar de levar às contínuas ilusões e ao inevitável beco sem saída do poder

pelo poder” (Schwartz, 1988, p. 24).

O Si-mesmo, devido a sua grandiosidade e por ser dotado de sua própria

vontade autônoma, ameaça levar o ego a profundezas que ele preferiria evitar.

Daí advém o que Schwartz (1988) denomina “temor ao Si-mesmo”, uma pedra

angular do narcisismo.

De fato, o caráter narcisista está numa atitude defensiva com relação à

numinosidade do Si-mesmo, pois o poder dessa numinosidade é muito superior

ao seu e poderia derrotar com facilidade seu si-mesmo grandioso. É essencial

compreender que o caráter narcisista está na defensiva, não apenas com relação

às relações externas com o objeto, mas igualmente com relação ao mundo

interno da realidade arquetípica. Esses dois planos são para ele uma grande

ameaça. O caráter narcisista teme o Si-mesmo, pois o Si-mesmo sempre é uma

derrota para o ego, especialmente quando há uma fusão grandiosa entre o ego e

o Si-mesmo (Schwartz, 1998, p. 24).

O indivíduo que encontrou um equilíbrio saudável de suas necessidades

narcisistas mantém uma postura despretensiosa diante do Si-mesmo,

reconhecendo sua pequenez e suas limitações egóicas. Disso resulta a

possibilidade de um contato com sua realidade mais profunda, como explicita

Stein (2004):

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Quando o ego está bem ligado ao Si-mesmo, uma pessoa mantém-se em relação

com um centro transcendente e não está narcisisticamente investida em objetivos

míopes e ganhos a curto prazo. Em tais pessoas, existe uma qualidade sem ego,

como se estivessem consultando uma realidade mais profunda e mais ampla do

que as meras considerações práticas, racionais e pessoais típicas da consciência

do ego (Stein, 2004, p. 138).

CAPÍTULO III - ARTE E PSICOLOGIA: INTERFACES

Em seu ensaio “Psicologia e poesia”, Jung (1991a) estabelece uma

diferenciação clara entre o estudo da estrutura psicológica de uma obra de arte e

a análise das circunstâncias psicológicas do homem criador. No primeiro caso, o

objeto da análise e interpretação psicológicas é a obra de arte concreta, enquanto

que, no segundo, é o próprio aparelho psíquico do ser humano criador, como

personalidade única e singular. Ele enfatiza que, por mais que a obra de arte e o

homem criador estejam profundamente ligados entre si, numa interação recíproca,

eles não se explicam mutuamente.

Certamente é possível tirar de um deduções válidas no que concerne ao outro,

mas tais deduções nunca são concludentes. [...] A psicologia pessoal do criador

revela certos traços em sua obra, mas não a explica. E mesmo supondo que a

explicasse, e com sucesso, seria necessário admitir que aquilo que a obra

contém de pretensamente criador não passaria de um mero sintoma e isto não

seria vantajoso nem glorioso para a obra (Jung, 1991a, § 134).

Com a colocação acima, ele faz uma crítica à tentativa de Freud de explicar

a obra de arte a partir da esfera das vivências pessoais do artista, derivando-a de

suas neuroses e recalques. Esta redução da obra de arte à anamnese pessoal,

na visão de Jung, a transforma em um mero “substitutivo”, uma simples expressão

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de um complexo pessoal, degenerando-a a ponto de esta não passar de uma

perturbação psíquica. Diante disso, ele preconiza: “É evidente que o artista deve

ser explicado a partir de sua arte, e não através das insuficiências de sua

natureza e de seus conflitos pessoais” (Jung, 1991a, § 158).

O segredo do mistério criador é, para este autor, um problema

transcendente, ao qual não compete à psicologia responder. Isso porque o

impulso criativo é visto como originário de uma área onde a verdadeira vida

psíquica tem sua origem - o inconsciente coletivo. Sendo assim, ao psicólogo

cabe apenas descrever os processos como possibilidades, sem nada poder

afirmar sobre a obrigatoriedade ou necessidade dos mesmos:

A totalidade dos processos psíquicos que se dão no quadro do consciente pode

ser explicada de maneira causal; no entanto, o momento criador, cujas raízes

mergulham na imensidão do inconsciente, permanecerá para sempre fechado ao

conhecimento humano (Jung, 1991a, § 135).

Sobre o ato criativo, é possível traçar hipóteses, mas nunca alcançar um

entendimento completo ao seu respeito. Jung (1991a) assinala que os elementos

criadores irracionais que se expressam nitidamente na arte desafiarão todas as

tentativas racionalizantes e, portanto, a psicologia deve renunciar à pretensão de

impor causalidades indubitáveis à criação artística.

Em vista destas considerações, cabe aqui ressaltarmos que o presente

estudo não tem como finalidade estabelecer relações meramente causais entre

fatos da vida pessoal de Maria Callas e seus feitos artísticos, o que representaria

uma atribuição por demais reducionista e incoerente com os preceitos de Jung

acerca dos possíveis diálogos entre arte e psicologia. Tampouco temos como

objetivo analisar a realização artística per se de Callas.

Não obstante, tais ressalvas não descartam a possibilidade de que sejam

levantadas algumas hipóteses a respeito da relação de Maria Callas com sua

arte, mais especificamente, e, de maneira mais ampla, com o mundo e as pessoas

a sua volta.

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A opção por este tipo de abordagem do problema encontra acolhida na

consideração de Jung (1991a) de que o princípio da psicologia de mostrar o

material psíquico como algo decorrente de premissas causais também é válido,

apesar de sua relatividade. Ele afirma também que a solução para o enigma do

homem criador pode ser proposta de várias maneiras, e que sua psicologia

pessoal pode e deve ser explicada de um modo pessoal, por ser fato inegável que

o mundo pessoal do artista influencia sob muitos aspectos a escolha e a forma de

sua temática. “Não se pode negar que a psicologia pessoal do poeta

eventualmente se encontra nas raízes e mesmo nas ramificações mais tênues de

sua obra” (Jung, 1991a, § 155).

É evidente que passaremos ao largo da pretensiosa intenção de desvendar

o mistério da criação artística tratando-a como algo de derivado, secundário, ou

mesmo como um sintoma, mas tendo sempre em vista que ela é um símbolo real,

a expressão de uma essencialidade desconhecida.

Se nos ativermos apenas a esse modo de considerar a questão, ressaltando

explicitamente os condicionamentos pessoais que nunca deixam de comparecer,

não haveria qualquer objeção a fazer. Mas se pretendermos, mediante essa

análise, esclarecer a essência mesma da obra de arte, então é preciso rejeitar

categoricamente tal pretensão (Jung, 1991a, § 156).

Vejamos, então, o que Jung tem a dizer sobre o processo de criação e o

indivíduo criador que lhe serve de veículo.

3.1. O artista e a criação

Embora Jung não tenha em nenhum ponto de sua obra propriamente

elaborado uma definição para criatividade, ele aborda o fenômeno no ensaio

intitulado “Determinantes Psicológicas do Comportamento Humano”, onde procura

estabelecer uma relação entre fatores biológicos e fatores psicológicos na

determinação do comportamento humano.

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Ele afirma que “os fatores psíquicos que determinam o comportamento

humano são, sobretudo, instintos enquanto forças motivadoras do processo

psíquico” (Jung, 1984, § 233). Por instinto ele entende o fator não só mais antigo,

como também anterior e exterior à psique (extrapsíquico), que se caracteriza

principalmente pela compulsividade. No entanto, o instinto está sujeito a um

processo denominado por Jung psiquização, que consiste na “assimilação do

estímulo a uma estrutura psíquica complexa” (Jung, 1984, § 234). Pode ser

modificado através e por meio de várias estruturas psíquicas, e é a este instinto já

experienciado, sentido e observado no comportamento que Jung se refere.

Em seguida, ele descreve cinco grupos de fatores instintivos básicos do ser

humano, quais sejam: fome, sexualidade, impulso para a atividade, reflexão e, por

último, instinto criativo. Jung chega a colocar em dúvida a utilização do termo

“instinto” para designar o fenômeno da criatividade, mas justifica-a alegando que

este fator se comporta dinamicamente, à semelhança de um instinto:

É compulsivo, como o instinto, mas não é universalmente difundido nem é uma

organização fixa e herdada invariavelmente. Prefiro designar a força criativa

como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto. Na

realidade, há íntima e profunda relação com os outros instintos, mas não é

idêntico a nenhum deles. Suas relações com a sexualidade são um problema

muito discutido, e sem muita coisa em comum com o impulso a agir e com o

instinto de reflexão. Mas pode também reprimir todos estes instintos e colocá-los

a seu serviço até à autodestruição do indivíduo. A criação é ao mesmo tempo

destruição e construção (Jung, 1984, § 245).

Como assinala Hillman (1984), o impulso criativo é capaz de produzir

imagens de seus objetivos e de orientar o comportamento para sua satisfação.

Segundo esta visão, ele constitui uma necessidade da vida, e a satisfação desta

necessidade se torna uma tarefa inadiável. A criatividade, no ser humano, requer

consumação, sendo um componente tão básico para o homem quanto a fome e a

sexualidade, por exemplo.

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Jung (1991a) chega a equiparar o impulso criativo a um complexo

autônomo, tamanha a força com que irrompe na consciência do indivíduo criador:

O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do

qual extrai seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o

processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem. A

psicologia analítica denomina isto complexo autônomo. Este, como parte

separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva vida psíquica

independente e, de acordo com seu valor energético e sua força, aparece, ou

como simples distúrbio de arbitrários processos do consciente, ou como instância

superior que pode tomar a seu serviço o próprio Eu. (Jung, 1991a, § 115).

A natureza autônoma, caprichosa e arbitrária do complexo é sentida, ela

mesma, como um “imperativo” do inconsciente que leva o indivíduo a realizar algo

de diferenciado. Trata-se de um acontecimento de natureza inconsciente que se

impõe sem a participação da consciência humana, e algumas vezes até mesmo

contra ela. Como assinala Jung (1991a), “a obra inédita na alma do artista é uma

força da natureza que se impõe, [...] sem se incomodar com o bem-estar pessoal

do ser humano que é o veículo da criatividade” (Jung, 1991a, § 115).

Ele ressalta que o artista é tanto uma personalidade humana quanto um

processo criador impessoal. É bem freqüente que isso resulte em uma vida cheia

de conflitos, na medida em que dois poderes passam a digladiar-se internamente:

de um lado, a personalidade comum, cujas demandas básicas e legítimas são a

felicidade, a satisfação e a segurança vital, e, de outro, a paixão criadora e

intransigente, que acaba suplantando todos os desejos pessoais.

Devido ao que ele denomina “inferioridade” ou “faculdade deficiente de

adaptação” da personalidade humana, Jung (1991a) constata que o destino

pessoal de muitos artistas é deveras insatisfatório, quando não trágico:

O lado humano é tantas vezes de tal modo sangrado, em benefício do lado

criador, que ao primeiro não cabe senão vegetar num nível primitivo e

insuficiente. Tal fenômeno se exprime freqüentemente como puerilidade e

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negligência, ou como um egoísmo ingênuo e intransigente (o assim chamado

“auto-erotismo”), como vaidade e outras fraquezas. Essas inferioridades são

significativas, pois devido a elas poderá ser encaminhada para o eu uma

quantidade suficiente de energia vital. O eu necessita dessas formas vitais

inferiores, porque senão sucumbiria a uma privação total. O auto-erotismo

pessoal de certos artistas pode ser comparado ao de certos filhos ilegítimos ou

negligenciados, que precisaram defender-se precocemente contra o efeito

destruidor de um ambiente desprovido de afeição, desenvolvendo em si mesmos

traços negativos. Tais crianças, com efeito, tornam-se muitas vezes

abusivamente egocêntricas, quer passivamente, permanecendo infantis e frágeis

durante toda a vida, quer ativamente, revoltando-se contra a moral vigente e as

leis (Jung, 1991a, § 158).

Também encontramos em Neumann (apud Schmitt, 2006) uma distinção

entre o que ele considera o “homem normal” e o “homem criativo”. Na visão do

autor, o que os diferencia é a “tensão psíquica intensiva que está presente no

homem criativo desde o começo; nele, uma animação especial do inconsciente e

uma ênfase igualmente forte sobre o ego e o seu desenvolvimento são passíveis

de demonstração desde os mais remotos estágios” (Neumann, apud Schmitt,

2006, p. 129). Portanto, a concepção de Neumann parece um pouco menos

pessimista no que diz respeito à possibilidade de estruturação egóica nos

indivíduos criativos.

Mesmo assim, ele não deixa de ressaltar que a natureza do homem criativo

faz com que ele não cumpra o desenvolvimento nomal do homem mediano, com a

sua correspondente adaptação à realidade. Afirma que, embora no homem

criativo também haja uma ligação entre os complexos pessoais e as imagens

arquetípicas, nele, esse processo não ocorre como no homem normal, por meio

da adaptação ao princípio da realidade; seus conflitos com o ambiente

geralmente se dão já nos estágios mais precoces, com grande intensidade. “Em

oposição às demandas do cânone cultural, o homem criativo se agarra

rapidamente ao mundo arquetípico, à sua bissexualidade original e à totalidade

ou, em outras palavras, ao seu Self” (Neumann, apud Schmitt, 2006, p. 130).

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3.2. James Hillman e as noções de criatividade

Hillman (1984), em “O Mito da Análise”, dedica um capítulo ao fenômeno

da criatividade, procurando fornecer uma base arquetípica para suas noções. Ele

enumera seis idéias principais acerca da criatividade.

A primeira delas relaciona a criatividade ao arquétipo paterno, expressa na

imagem de um Deus criador, que introduz a ordem onde antes só havia o Caos,

conferindo-lhe perfeição e harmonia. O mito do Gênesis, segundo coloca o autor,

apresenta a criação como um artefato do poder paterno, que separa, diferencia,

forma e declara a excelência de sua obra. O indivíduo identifica o processo

criativo com a diferenciação e tenta, com seu trabalho, produzir algo definitivo,

inquestionável, clássico e permanente mediante a coerência sistemática e a lei

axiomática:

A criatividade, aqui, é definida como um processo ordenador, de integração à

unidade, com a mandala como objetivo. E, mais ainda, as ordens moral e estética

são associadas: justiça, proporção, adequação, sistema; cada coisa em seu

lugar. O nous do ego se torna um pleroma sem partes móveis ou irracionais e, à

medida que a criatividade passa a corresponder à noção arquetípica,

configurando-se numa perfeição estável, ela converte-se na esterilidade do

senex. (Hillman, 1984, p. 47).

Portanto, a noção de criatividade filtrada através do arquétipo do pai

implica método e hierarquia, ordem e estrutura, qualidade e produtividade.

A segunda noção traz a criação como novidade, como possibilidade para o

surgimento de alguma coisa inteiramente nova. Esta idéia relaciona a criatividade

com a imagem do puer aeternus e do arquétipo da criança divina. A pessoa

criativa está sempre em movimento, e o movimento procede do conhecido rumo

ao desconhecido, do velho ao novo. Ela rompe os limites do tempo para alcançar

a eternidade; projeta-se sempre no futuro, revelando uma aura de futuridade. O

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autor assinala que esta noção é recoberta de esperança e otimismo, crescimento

e prazer, e que a ênfase é colocada no singular e no único.

A criatividade será definida principalmente pela palavra originalidade, enquanto

sua expressão negativa será a irresponsabilidade narcisista. Como nada

permanece, e não se pode preservar nada sem matar a centelha que não se

destina a durar, deve haver um contínuo fluxo e flexibilidade, avanço,

espontaneidade, inspiração divina – incondicionada, sem causa e sem

precedentes. Consolidação e maturidade impedem as erupções lampejantes de

novidade mercurial; por isso, o método é jogo, sorte, artimanhas, justaposições

caprichosas – e não o trabalho (Hillman, 1984, p. 48).

Já a terceira idéia relaciona o criativo com a sombra, abarcando tanto seus

aspectos construtivos quanto destrutivos. Sua influência parece ter como

verdadeiro objetivo a “contaminação” pela atividade (níveis primitivos de

agressão), pela fome e pela sexualidade, de forma a reforçar o instinto criativo

através da apropriação de outras energias instintivas. Esta noção concebe uma

certa obscuridade do impulso criativo, que é mantido na sombra a fim de não ser

inibido em seu poder primordial. A criatividade se torna, assim, poder primordial,

refletida no anormal, no extraordinário e na capacidade para extremos de

intensidade. O criativo é identificado com o rebelde, o iconoclasta, o

revolucionário, o insensato.

Em lugar de intelecto e razão, criatividade aqui significa primitivo, desnudo,

ignorante, negro, despojado e depravado. O poder bruto torna-se criatividade,

mas também o seu reverso: o desmembramento brutal, lacerado e lacerante no

drama criativo da sombra. [...] Como a fonte desta vitalidade dinâmica está na

obscuridade, ela é uma invocação do oculto e exige uma descida ao abismo da

desordem [...] (Hillman, 1984, p. 49).

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A quarta noção associa a criatividade ao complexo do ego, sendo a mais

comum em nossa cultura atual, com sua ênfase na psicologia do ego. Ela se

apresenta na mitologia através do roubo prometéico, em que o eu rouba a luz dos

deuses e se expande, às custas da divina luz da imaginação e da mente natural,

simbólica. Revela a capacidade humana de resolver problemas, de inventar e

descobrir, de converter o mistério da natureza num problema a ser desvendado,

ampliando, assim, o campo sob controle consciente:

O criativo, percebido pelo ego, é uma inventiva resolução de problemas, tudo

aquilo que pode servir para a expansão ou intensificação da consciência. [...]

Esta noção diz que as atividades criativas são “nove décimos transpiração”

(Hillman, 1984, p. 49).

A quinta idéia relaciona o criativo com o arquétipo da persona, como parte

da consciência coletiva que identifica criatividade com eminência, sumidade,

sucesso e fama. O criativo é percebido através da persona, e a pessoa se

transforma em sua própria imagem. A própria máscara se torna a portadora

psíquica do instinto criativo, que é expresso por meio dos gestos, da etiqueta, dos

rituais, da imagem, da performance:

O indivíduo não pode abdicar de seu papel, em parte por motivos de poder, mas

sobretudo porque o papel contém a sua eficácia criativa. Sua máscara representa

uma força coletiva, transpessoal, arquetípica, de modo que é obrigado a usá-la a

fim de se relacionar com os Deuses. Aqui, persona não significa apenas

aparência exterior, uma performance encenada que esconde o verdadeiro

si-mesmo; aqui ela é o verdadeiro si-mesmo em sua encenação arquetípica

(Hillman, 1984, p. 50).

O autor salienta que, neste contexto, a persona recupera seu sentido

original, necessário à realidade do teatro e da tragédia.

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A sexta noção relaciona a criatividade ao arquétipo da Grande Mãe, a fonte

primordial que carrega consigo o eterno movimento de recriação da natureza, de

nascimento, morte e renascimento:

À criatividade foi dado o significado de renovação e o caminho para ela seria a

regressão cíclica. O criativo é apresentado como o intemporal e indestrutível

terreno da natureza [...]. Somos seus servos, aguardando, passivos. O criativo é

uma fonte externa, uma inconsciência que é a mãe, nutrindo e regenerando

(Hillman, 1984, p. 51).

Haveria também uma sétima noção de criatividade, relacionada ao

arquétipo da anima, o padrão feminino não materno. Ele remete à sensualidade, à

sensibilidade, ao interesse estético, à feminilidade, à imaginação e à fantasia.

Este aspecto da atividade criativa é denominado incubação, até mesmo gravidez

e nascimento; e este aspecto do produto criativo é denominado sua imaginação e

beleza. Encontramos então: passividade, receptividade ao que surge, ingestão, o

eu que segue as imagens da fantasia em seu fluir emotivo ou paira sobre elas, a

susceptível sensibilidade que absorve o mundo através dos poros na própria

corrente sanguínea, enfado e amuo segundo o capricho da fantasia, os humores,

os amores, as excentricidades (Hillman, 1984, p. 53).

No entanto, segundo Hillman (1984), todas as referidas concepções de

criatividade dependem de um princípio criativo que se expressa sob a forma de

Eros:

O criativo é um resultado do amor. É marcado pela imaginação e beleza e pela

conexão com a tradição como força vivente e com a natureza como corpo

vivente. Esta percepção do instinto insistirá na importância do amor; para ela,

nada pode ser criado sem amor e o amor se revela como origem e princípio de

todas as coisas [...] (Hillman, 1984, p. 58).

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Para o autor, o mito de Eros e Psiquê constitui o “mito fundamental da

criatividade psicológica” (Hillman, 1984, p. 58). O despertar da alma através do

amor é um tema bastante recorrente no mito, nos contos populares, nas artes,

bem como nas experiências subjetivas, podendo, assim, ser considerado

arquetípico.

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CAPÍTULO IV - MARIA CALLAS

Considerada a maior cantora lírica soprano do período do pós-guerra e

uma das mais importantes de todo o século XX, Maria Callas imprimiu uma

revolução sem precedentes no mundo da ópera. Embora sua voz não se

destacasse pela beleza convencional de timbre, possuía uma extensa amplitude

que permitia à cantora interpretar papéis desde o alcance do mezzo-soprano até

o do soprano coloratura. Com domínio perfeito das técnicas do canto lírico, tinha

um repertório versátil, que incluía obras do bel canto, de Verdi, do verismo italiano

e até mesmo de Wagner. Ao longo de sua carreira, ela interpretou dezenas de

óperas de diversos estilos, perpetuando-se em papéis como Medea, Norma,

Tosca, Violetta, Lucia, Gioconda, Amina, entre outros.

Callas entrou para a história da ópera por suas inigualáveis habilidades

cênicas. Levando à perfeição a habilidade de alterar a "cor" da voz com o objetivo

de expressar emoções, e explorando cada oportunidade de representar no palco

as minúcias psicológicas de suas personagens, mostrou que era possível imprimir

dramaticidade mesmo em papéis que exigiam grande virtuosismo vocal por parte

do intérprete - o que usualmente significava, entre as grandes divas da época,

privilegiar o canto em detrimento da cena.

Praticamente sozinha, revitalizou e ampliou o repertório do bel canto.

Como considera Hutchinson (1996),

No século de Pasta e Malibran e do romantismo desenfreado, a voz se

tornara um instrumento a serviço do drama emocional; e era a essa tradição

esquecida que Maria pertencia. Desde o início ela reconheceu a totalidade de voz

e emoção. Sabia expressar furor e também transmitir uma melancolia capaz de

partir o coração. E, sem prejudicar o drama, devolveu à música o “acabamento”,

pesando meticulosamente cada frase, cada palavra; usando as palavras como

parte da escultura musical a que dava vida; e jamais fazendo do canto uma

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pirotecnia inexpressiva. Sempre subordinou a técnica à expressão e a beleza

vocal à verdade dramática (Hutchinson, 1996, p. 68).

Para Callas, a expressão vocal era primordial, em detrimento dos exageros

vocais injustificados. O divisor de águas que ela representa na história do canto e

da ópera é que, a partir dela, o trabalho de interpretação dramática passou a ser

tão importante quanto a música em si, e isto em uma época na qual a

verossimilhança nas encenações operísticas era praticamente inexistente. Assim,

reconduziu o cantor ao centro do universo operístico, reabilitando-o como o

principal veículo das intenções dramáticas do compositor.

Certa vez, revelou:

Não basta ter uma bela voz [...] O que isso significa? Quando interpreta um papel

você precisa ter mil nuanças para transmitir felicidade, alegria, tristeza, medo.

Como poderia fazer isso só com uma bela voz? Às vezes a expressão exige

estridência. [...] Pois seja estridente, ainda que as pessoas não compreendam.

(Hutchinson, 1996, p. 68).

Descendente de imigrantes gregos com poucos recursos financeiros, Ánna

María Cecilía Sofía Kalogerópulu nasceu em Nova York, em dezembro de 1923.

Aos sete anos de idade, iniciou sua educação musical e passou a ganhar prêmios

de canto e a destacar-se nas peças e concertos realizados no colégio. A partir

dos onze anos, teve início um longo circuito de espetáculos infantis, programas

de rádio e competições.

Em 1937, ela e a mãe embarcaram para a Grécia, onde estudou no

Conservatório Nacional de Atenas com Elvira de Hidalgo, a quem é atribuído o

mérito de seu real treinamento vocal. Adquiriu com facilidade a precisão e a

disciplina que a técnica do bel canto exige, e esse aprendizado constituiu a base

do profissionalismo e do perfeccionismo que distinguiram sua carreira.

Apesar do relativo sucesso que Callas conheceu na terra natal de sua

família, em 1944 ela decidiu voltar para os EUA, onde se envolveu em produções

malfadadas. Em 1947 as coisas começam a mudar em sua vida, quando foi então

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convidada para protagonizar a ópera “La Gioconda”, de Ponchielli, no festival de

ópera da lendária arena de Verona.

Apenas em 1949, quando Callas substitui a soprano Margherita Carosio no

papel de Elvira em “I Puritani” no teatro La Fenice, em Veneza, é que parece ter

iniciado a história da diva que mudaria a cena lírica. Foi neste ano também que se

casou com o industrial italiano Giovanni Battista Meneghini, que se tornaria seu

empresário artístico e grande responsável pela projeção de sua imagem.

Não raro ela cancelava de última hora suas apresentações, alegando

motivo de saúde ou porque simplesmente não se achava em condições de fazer

tudo o que queria fazer. Em mais de uma ocasião, subiu aos palcos contra a

recomendação de seus médicos. Com um forte resfriado, escapou em 2 de janeiro

de 1958 da Ópera de Roma pela porta dos fundos após um primeiro ato sofrível

de Norma, de Bellini, em uma récita prestigiada pelo então presidente da Itália,

Giovanni Gronchi. Em 29 de maio de 1965, ao concluir a primeira cena do

segundo ato de Norma, Callas desfaleceu e a apresentação foi interrompida.

É bem provável que muito do sentido pejorativo do termo “diva” em Callas

tenha surgido destes cancelamentos de última hora, além de sua conturbada vida

pessoal, que contribuiu para a lenda que se formou em torno da cantora.

Tornou-se famosa por indispor-se com maestros e colegas em nome de suas

crenças estéticas.

No final de 1953, ela finalmente realiza uma verdadeira metamorfose

corporal. Na versão de alguns, para melhor se adaptar aos papéis das frágeis

heroínas que representava, segundo outros, para melhor adaptar-se a um ideal

de diva que ela já havia vislumbrado para si, Maria perde mais de 40 quilos,

obtendo o “physique de rôle” para praticamente qualquer papel e adquirindo

ainda mais visibilidade na mídia.

Muito foi dito sobre a associação entre a perda de sua voz e seu

emagrecimento, a partir do qual algumas dificuldades vocais começaram a se

tornar evidentes. No entanto, a hipótese mais verossímil parece ser a de que o

desgaste vocal tenha sido decorrente do fato de ela cantar personagens muito

diferentes entre si, obrigando-a a constantes mudanças de tessitura que

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acabaram por desestabilizar sua voz, além, é claro, do excesso de trabalho no

início da carreira e do excesso de “farra” em seu final.

Neste momento, sua carreira, que já vinha sofrendo um crescente declínio

– fora banida dos dois maiores teatros de ópera do mundo, o Scala e o

Metropolitan -, arrefeceu-se ainda mais a partir de 1959, quando ela rompeu seu

casamento de dez anos com Meneghini para viver um romance que jamais se

concretizou em matrimônio com o milionário grego Aristóteles Onassis. Após este

tê-la preterido por Jacqueline Kennedy, seu mundo desaba. Apesar disso,

continua amando-o e recebendo suas constantes visitas.

Em 1971, tenta um retorno frustrado ao mundo da ópera com suas Master

Classes na Julliard, em Nova York. Em 1973 e 1973, faz uma série de concertos

de despedida ao lado de Giuseppe di Stefano, nos quais sua voz encontrava-se

em frangalhos. Após a morte de Onassis, em 1975, Callas passa a evitar cada

vez mais a vida social, vivendo confinada em seu apartamento em Paris, onde

veio a falecer em 1977, de ataque cardíaco.

ANÁLISE E DISCUSSÃO

1. As experiências da primeira infância

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Seus pais, George e Evangelia Kalogeropoulos, emigraram da Grécia após

a perda traumática de um filho, morto em uma epidemia de febre tifóide. Eles

tinham uma verdadeira adoração pelo menino, cuja morte abalou profundamente

o casal. George secretamente tomou a decisão de partir para os Estados Unidos,

a contragosto da esposa, que já se encontrava grávida de Maria. Anos mais tarde,

Evangelia escreveu: “Foi como se meu coração tivesse morrido junto, e pensei

que nunca voltaria a viver” (Hutchinson, 1996, p. 19).

Segundo nos relata Hutchinson (1996), os Kalogeropoulos sonhavam ter

um novo filho homem, acreditando que um menino viria tomar o lugar do filho

morto. Todas as roupas tricotadas por Evangelia eram azuis, tudo o que

compravam para o bebê era destinado a um menino. “Desde que Vasily morreu”,

disse a mãe, “rezei para ter outro filho que preenchesse o vazio de meu coração”

(Hutchinson, 1996, p. 20).

Nunca lhes passou pela cabeça a possibilidade de Evangelia estar grávida

de um bebê do sexo feminino. Quando ela finalmente deu à luz uma menina, em

lugar do filho tão esperado, as expectativas do casal foram frustradas. Maria foi

rejeitada desde o nascimento, que, para os pais, representou uma decepção:

As primeiras palavras que Maria ouviu de sua mãe foram: “Leve-a daqui”. E a

primeira coisa que sua mãe fez foi desviar os olhos do bebê para fixá-los na

nevasca que caía lá fora. Seus pensamentos cheios de amor e de tristeza se

voltaram para Vasily. Quando a enfermeira lhe perguntou que nome deveria

colocar no bracelete de identificação, não obteve resposta. [...] Evangelia

demorou quatro dias para olhar novamente para a filha (Hutchinson, 1996, p.

20-21).

Temos neste relato do início da vida de Maria uma boa dica sobre o tipo de

ambiente familiar que serviu de base ao seu desenvolvimento, e os futuros

desdobramentos da recepção negativa da criança por parte dos pais, como o

estabelecimento de um complexo de inferioridade que a acompanharia por longos

anos.

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Evidentemente, não devemos perder de vista que o complexo surge da

combinação de fatores externos e internos, isto é, das interações com o ambiente

e dos elementos inatos, arquetípicos. Mas, como assinala Whitmont (2006), o

complexo deveria sempre ser interpretado primeiramente sob a luz dos

acontecimentos e traumas da infância que constituem suas “cascas”, pois são as

manifestações concretas do complexo no aqui e agora. Apenas quando o pessoal

(o ontogênico) foi completamente explorado, na visão do autor, é que se deve

buscar compreender o núcleo arquetípico do complexo. Deste modo, nos

focaremos naquilo que nos é dado conhecer - as pessoas concretas e as

interações de Maria com o ambiente -, cientes de que este é apenas um dos

componentes de formação do complexo, sem dúvida, também essencial.

Desde pequena, Maria fugia ao padrão estético da época: vivia acima do

peso considerado apropriado para uma criança e usava óculos “fundo de garrafa”

para corrigir uma miopia avantajada. Ela tinha uma irmã mais velha, Jackie, com a

qual rivalizava pelo amor e a atenção da mãe. Como vimos nos capítulos teóricos,

é bastante comum que as pessoas dotadas de um complexo materno

originalmente negativo desenvolvam um senso de competitividade aguçado, e a

convicção de terem que lutar para garantir seu lugar no mundo.

Os cinco anos e meio que separavam Maria de Jackie contribuíram para

que ela idealizasse a primogênita:

As coisas não eram nada fáceis para Maria: mais nova, mais gorda, mais sem

graça, deve ter logo percebido que era também a menos amada. Na competição

pelo amor da mãe, Jackie vencera, e durante toda a sua infância, Maria a invejou.

No entanto, ao mesmo tempo, a adorava, ansiava por sua companhia, queria seu

afeto total (Hutchinson, 1996, p. 22).

Assim, não só a rejeição e a indiferença sofridas por parte da mãe, mas

toda a atenção e o afeto que eram destinados à irmã contribuíram decisivamente

para o estabelecimento de um sentimento de inferioridade e de uma auto-imagem

negativa. Como demonstra Hutchinson (1996), era inevitável que surgissem

comparações perniciosas entre as duas filhas:

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Todos os demais comparavam suas duas filhas e os cinco anos e meio que as

separavam determinavam a conclusão. Jackie era alta, esbelta, linda, com seus

cabelos e olhos castanhos. Maria era gorda, tinha o rosto salpicado de espinhas

e os imensos olhos negros escondidos através de grossas lentes. Era a sombra

da irmã: menos bonita, menos promissora, menos “dotada”. Era evidente, pelo

menos à primeira vista, que a menina mais velha não encontraria nenhuma

dificuldade em realizar um bom casamento, constituir uma bela família e ter o

sustento garantido pelo resto da vida. Já a caçula bem provavelmente acabaria

ficando para titia e seria obrigada a se arranjar sozinha (Hutchinson, 1996, p. 25).

Maria convenceu-se de tal modo de sua feiúra que desenvolveu o hábito

de desviar os olhos ou até fechá-los para não ter de encarar-se em um espelho.

Anos mais tarde, afirmou que se sentia “detestada e detestável”, e achava justo

que a rejeitassem, pois não tinha nenhuma dúvida de que era “um patinho feio,

gordo, desengonçado e malquisto” (Hutchinson, 1996, p. 26). Pode-se dizer que o

complexo de inferioridade encontrou em seu corpo, em sua aparência, um lugar

propício para se desenvolver.

Sabemos que a pessoa que tem um complexo materno originalmente

negativo está certa de não ser um si-mesmo bom e de viver em um mundo ruim,

desprovida do direito inquestionável à existência. O mundo é tal como é, e o

indivíduo sente que é ele mesmo o culpado de sua própria infelicidade (Kast,

1997b). Isso fica claro na passagem acima, quando Maria revela achar justo que

a rejeitassem. Na realidade, sentia-se ela mesma culpada pela situação,

julgando-se, portanto, merecedora de tal ônus e do sofrimento inerente ao

mesmo.

De acordo com Hutchinson (1996), a menina desenvolveu cedo o hábito de

empanzinar-se, decerto para compensar a carência e a fome de amor que sentia.

A mãe oferecia à filha quantidades praticamente ilimitadas de comida, o que pode

ser compreendido como uma forma que Evangelia encontrou para aplacar a

própria culpa pela impossibilidade de demonstrar-lhe afeto de outras maneiras.

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Kast (1997b) assinala que mulheres que possuem, elas mesmas, um

complexo materno originalmente negativo e não se emancipam dele têm, em

geral, dificuldade de realmente oferecer à criança um interesse genuíno. Não

temos acesso à história de Evangelia, mas tudo leva a crer que estamos diante de

um destes casos, em que a mãe exige muito, em que vê a si mesma, mas não o

filho, apresentando dificuldades para deixar que a criança se desenvolva de

acordo com sua própria natureza.

Os hábitos alimentares infantis de Maria se mantiveram por anos – a

menina vulnerável e infeliz continuava bem viva, porém, se encontrava sob o

controle de “La Callas”. Temos aqui um dado importante – a compulsão alimentar

- que, embora não seja o foco da análise, não deve ser ignorado, por manter

relações estreitas com o complexo materno negativo.

Woodman (2006), em seu estudo sobre as causas psíquicas e somáticas

da obesidade, detectou alguns fatores comuns, cuja presença podemos

identificar, em maior ou menor grau, em Maria Callas. Dentre as características

recorrentes no discurso das mulheres obesas que entrevistou, destacamos as

seguintes:

- crianças pouco amadas pela sua individualidade;

- rígido controle no lar;

- emoções reprimidas, desejo exagerado de viver a vida não-vivida dos pais;

- acossadas por projeções dos pais. Desejo de perfeição contrabalançado por

sentimento de falta de valor interior;

- sentido esmagador de isolamento;

- consideração de que se é feia, uma covarde fracassada aos olhos dos pais;

- desenvolvimento de um sentimento de inferioridade moral.

Deixaremos o detalhamento destas questões, principalmente das que

dizem respeito às expectativas desmesuradas dos pais em relação a seus filhos,

para o próximo tópico da análise. Por ora, o que nos interessa salientar é que o

complexo materno é crucial quando uma mulher está sob o domínio de uma

desordem alimentar (Woodman, 2006). Uma mãe que não dispõe de recursos

internos para dar respostas diferenciadas às necessidades de seu filho, ou não

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tem o amor para atender a essas necessidades, responde a todo “choro” (não só

no sentido literal da palavra, como também metafórico) com comida. Ela o

alimenta, mas, em contrapartida, ele também deve alimentá-la. É assim que o

complexo da mãe negativa é sentido pelo filho: como se engolisse de um só trago

sua capacidade de viver como indivíduo (Jackson, 1999).

Conseqüentemente, “o anseio pela boa mãe pode se transformar em uma

ânsia por toda espécie de substitutos” (Jackson, 1999, p. 26). Neste sentido,

comer em excesso e ser obesa podem ser uma defesa contra uma ruptura

psicológica. Jackson (1999) ressalta que problemas com a figura materna são

propensos a se refletir no corpo e na imagem corporal, e freqüentemente se

concretizam em problemas relativos à alimentação.

Como considera Kast (1997b), as nossas necessidades corporais podem

se manifestar tanto de forma saudável e natural como também patológica e

defensiva, a depender do tipo de complexo materno que se configurou. Segundo

a autora,

O corpo é a base do complexo do eu. Sobre a base de um complexo materno

positivo, as necessidades corporais são vivenciadas como algo “normal”, e

também podem ser normalmente satisfeitas. Há uma alegria natural com o corpo,

a vitalidade, a comida, a sexualidade. [...] Os outros contribuem para nosso

próprio bem-estar psíquico – e podemos contribuir para o bem-estar dos outros.

Uma pessoa que pode contar com interesse e compreensão e experiencia uma

certa plenitude de amor, cuidado, compreensão e segurança desenvolverá uma

saudável atividade do eu (Kast, 1997b, p. 13).

Esta é uma situação ideal, que não se aplica ao caso de Maria. Através

dos relatos da cantora que Hutchinson cita ao longo da biografia, torna-se

evidente que ela não pôde experienciar uma “ressonância empática”, o interesse

e compreensão a que Kast (1997b) se refere, ficando privada da plenitude do

amor, cuidado e segurança que são a condição primária para o desenvolvimento

de uma atitude saudável do eu. Isso fez com que, prematuramente, ela já tivesse

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estabelecido a base de sua visão de mundo e sua filosofia de vida um tanto

amarga:

Viver é sofrer, e quem diz o contrário para as crianças é desonesto, cruel [...]. Se

você está vivo, está lutando. Isso acontece com todos nós. A diferença está nas

armas que você usa e nas armas que são usadas contra você. Trata-se da

combinação de personalidade e circunstância. De destino (Hutchinson, 1996, p.

28).

Este relato nos remete a um comentário de Von Franz (2005), a respeito

das pessoas que têm dificuldade em aproximar-se de seu centro e só se sentem

em contato com seus sentimentos quando sofrem, quando vivenciam seu Self

verdadeiro. Ela salienta que, no período da infância, o indivíduo está muito mais

suscetível ao sofrimento:

[...] eu diria que a criança que existe na pessoa adulta é a fonte de sofrimento; é

a parte que realmente sofre, pois a parte adulta pode aceitar a vida como ela é, e

não sofre tanto. Os sofrimentos da infância são os piores – este é o verdadeiro

sofrimento – embora eles possam ser causados por coisas de pouca importância

[...]. Isso porque a criança é uma totalidade e uma totalidade em todas as suas

reações; portanto, mesmo se é apenas um brinquedo que lhe é tomado, é como

se o mundo estivesse vindo abaixo. [...] na infância há tragédias terríveis, o que

mostra que o núcleo infantil é a parte autêntica da pessoa e que é essa parte que

sofre, que não consegue aceitar a realidade e que reage dentro do adulto como

uma criança que diz “Quero tudo, e se eu não conseguir o mundo vai acabar”.

Tudo estará perdido. É assim que a parte autêntica da personalidade permanece

e que constitui sua fonte de sofrimento (Von Franz, 2005, p. 86).

A despeito do que vimos em Adler (1967) e Whitmont (2006), de que o ego

em crescimento sempre apresenta a tendência de vivenciar a si mesmo como

relativamente inadequado e inferior, este é um caso em que houve realmente um

desequilíbrio da inferioridade na formação egóica, em virtude de um

relacionamento no qual a criança teve muito pouca aceitação amorosa. Esta

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situação leva a um agravamento da tensão da inferioridade, a sentimentos de

inadequação, culpa e deficiência. As outras pessoas parecem ser sempre

melhores, mais capazes, mais desejáveis (vide sua irmã, Jackie); portanto, a

criança torna-se ressentida, invejosa, cheia de ódio e sem autoconfiança.

A auto-rejeição de Maria procurou compensação na superambição e na

agressividade competitiva; logo desenvolveu a noção de que tinha que ser boa o

suficiente para superar todos os seus adversários. Esta supercompensação foi

fundamental inicialmente, pois lhe serviu como um importante alicerce de

sustentação em meio à adversidade que emanava do ambiente. É sobre este

alicerce que cedo a auxiliou - a música - que faremos algumas considerações no

próximo tópico.

2. O canto: oásis e grilhões

Evangelia era uma mãe notoriamente preocupada com a formação de sua

prole, e passou, desde cedo, a tomar providências para estimular as inclinações

musicais das filhas. Com a Quebra da Bolsa de Nova York, George Callas se viu

obrigado a vender sua farmácia e a trabalhar como caixeiro-viajante de produtos

farmacêuticos, a fim de suprir as necessidades básicas da família. Apesar das

dificuldades financeiras, Evangelia fazia questão de que as filhas tivessem aulas

de piano quatro vezes por semana, e, para isso, obrigava o marido a desembolsar

uma parte considerável de seu limitado salário. Ele considerava isso uma

frivolidade, um luxo desnecessário, apenas uma forma de a esposa realizar suas

ambições frustradas.

Pode-se dizer que George não estava de todo enganado em sua

consideração. Com suas pretensões, no tocante à posição social, Evangelia não

se conformava com a idéia de ter uma vida pacata e prosaica. Fora obrigada a

abandonar seus sonhos de fazer carreira no teatro, e não tinha outra escolha

senão admitir que nunca se destacaria por seus próprios méritos nem

transformaria seu marido em um homem notável. Assim, transferia

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obsessivamente suas ambições frustradas para as filhas, como forma de

realizá-las.

Trata-se aqui de um daqueles casamentos típicos, em que o pai vive quase

que inteiramente absorvido pelos negócios, e a mãe se serve da filha para nela

encarnar sua ambição social. Jung (1988) revela que, neste contexto, a criança

deve ter êxito para que se realizem os desejos e as esperanças da mãe e para

que a vaidade desta última fique satisfeita. Um dos grandes inconvenientes desta

atitude materna está descrito na citação abaixo:

As mães desse tipo normalmente não enxergam o verdadeiro caráter da criança,

nem seu modo individual de ser, nem mesmo suas necessidades reais. Ela se

projeta na criança e a governa com seu poder de domínio, sem nenhuma

consideração (Jung, 1988, § 222).

Além do mais, o autor afirma que a mulher, quando é dotada de tal

masculinidade, torna-se quase incapaz de ter uma verdadeira compreensão

relativamente aos sentimentos de seu marido. Exige dele dinheiro, e ele, por sua

vez, paga para que ela se mantenha numa disposição de espírito relativamente

suportável. Como Jung (1988) salienta, é uma mulher cujo amor transforma em

ambição e desejo de poder. “Na realidade, não se dá à criança o menor vestígio

de verdadeiro amor” (Jung, 1988, § 222).

O autor constata ser bastante freqüente que os pais imponham ao filho as

próprias ilusões e ambições não realizadas. Quando os pais, por qualquer motivo

que seja, não podem viver sua vida consciente como gostariam, são os filhos as

principais pessoas afetadas pela carga dos desejos parentais não realizados, o

que ocorre principalmente via inconsciente. “Em regra, a vida que os pais podiam

ter vivido, mas foi impedida por motivos artificiais, é herdada pelos filhos, sob uma

forma oposta” (Jung, 1988, § 328). Isto significa que os filhos são forçados

inconscientemente a tomar um rumo na vida que compense o que os pais não

realizaram na própria vida, pois, via de regra, “o fator que atua psiquicamente de

um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais ou antepassados não

viveram” (Jung, 1988, § 87).

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Esta atitude dos pais é verdadeiramente devastadora, quando esperam

que seus filhos consigam fazer melhor o que eles próprios não estão fazendo

bem. Impossibilitados de serem eles mesmos, de atualizarem suas

potencialidades genuínas, os filhos carregam a sensação de serem seres

inapropriados, estranhos a si mesmos, pois sua verdadeira natureza permanece

acuada diante dos anseios parentais devoradores.

Nas palavras do autor:

Nada é mais poderoso para fazer uma criança tornar-se estranha a si mesma, do

que os esforços feitos pela mãe para encarnar-se e realizar-se na criança, sem

tomar em consideração uma única vez que o filho não é simplesmente o

prolongamento da mãe, e ocasionalmente sendo até portador de uma

estarrecedora diversidade (Jung, 1998, § 222).

Conforme Maria se dedicava ao estudo da música e começava a se

destacar por seus dotes vocais, era inevitável que seu talento saltasse aos olhos

argutos da mãe e fizessem com que esta passasse, então, a nutrir a convicção de

que a filha seria uma cantora de prestígio, e de que um futuro grandioso a

aguardava.

Evangelia sempre sonhara ver as filhas em posição de destaque. “O que

eu queria para minha filha era a fama. O dinheiro vinha em segundo lugar”

(Hutchinson, 1996, p. 47), revelou em uma entrevista, quase trinta anos mais

tarde. Em sua imaginação, Maria despontava para o mundo envolta numa glória

cada vez maior, e ela estava no centro dos triunfos da filha. A voz era a chave

que abriria a porta de tais triunfos.

Como aponta Hutchinson (1996),

Assim, enquanto a filha ainda falava e sonhava em ser dentista, a mãe já havia

decidido que ela seria não só cantora, como uma grande cantora, e não só uma

grande cantora, como uma grande cantora de fama internacional. Em sua

cabeça, amor, felicidade, fama e dinheiro eram valores intercambiáveis. Na época

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essa perigosa confusão lhe deu uma convicção inabalável que se tornou a força

propulsora da vida da filha (Hutchinson, 1996, p. 24).

Com relação às delegações das mães às filhas de muitas das coisas que

elas mesmas não viveram, Kast (1997b) ressalta que estas constituem privações

da liberdade e, além disso, atrapalham sensivelmente a relação entre mãe e filha.

Um apontamento interessante que a autora faz é de que, a despeito de haver

delegações também entre pais e filhos, entre pais e filhas, entre mães e filhos,

elas parecem ser especialmente freqüentes entre mães e filhas (Kast, 1997b).

Nos anos que se seguiram, Maria participou de longos e exaustivos

circuitos de espetáculos infantis, programas de rádio, competições, sempre sob a

“batuta” da mãe. O vigor com que Evangelia impulsionava a carreira da filha só

era comparável à cegueira que a impedia de enxergar suas necessidades

emocionais. Sobre este período, Maria declarou anos mais tarde: “Devia haver

uma lei contra esse tipo de coisa. Com esse tratamento uma criança se torna

adulta antes da hora. Não se deve privá-la de sua infância!” (Hutchinson, 1996, p.

25). Evidentemente, foi do amor incondicional que constitui a base de um forte

sentimento de auto-estima que privaram Maria.

A menina logo percebeu que todo o amor e toda a aprovação que recebia

eram estritamente condicionais. Em uma das raras ocasiões em que se referiu ao

período da infância, ela revelou: “Só quando estava cantando eu me sentia

amada” (Hutchinson, 1996, p. 26).

Em suas memórias, publicadas na revista Oggi, em 1957, ela declara:

Minha mãe [...] não apenas se deu conta dos meus dotes canoros, mas decidiu

fazer de mim, o mais cedo possível, uma garota prodígio. E as crianças prodígios

não têm uma infância autêntica. Eu não me lembro de um brinquedo querido –

uma boneca ou um jogo preferido – mas as canções que eu devia ensaiar e

reensaiar até a exaustão, para a apresentação final, ao término de cada ano

escolar; e, sobretudo, a penosa sensação de pânico que tomava conta de mim

quando, bem no meio de uma passagem difícil, parecia que eu de súbito iria me

sufocar e eu pensava, aterrorizada, que nenhum som sairia da minha garganta

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que já estava árida e seca. Ninguém percebia essa minha angústia porque, na

aparência, eu permanecia calmíssima e continuava a cantar.

Depois do primário, todos os meus amigos se inscreveram no ginásio ou

em outra escola secundária e eu gostaria muito de ter seguido o exemplo deles e

me tornar uma estudante de escolas superiores. Mas eu não podia: eu – havia

estabelecido a minha mãe – não devia desperdiçar nem um minuto do dia em

outras atividades que não o estudo do canto e do piano. Assim, aos onze anos,

deixei de lado os livros e comecei a conhecer as ânsias e esperas extenuantes

dos concursos para crianças prodígios, aos quais eu regularmente era inscrita,

para participar de transmissões radiofônicas ou ganhar alguma bolsa de estudo.

Eu sempre estudei graças às bolsas de estudo. Um pouco porque depois de 29,

éramos qualquer coisa menos ricos; e, também, porque sempre fui amplamente

pessimista quanto às minhas possibilidades. Ainda agora, muito embora me

culpem de ser uma presunçosa, não me sinto ainda segura de mim mesma e me

torturo nas dúvidas e nos temores. Desde garota eu não gostava da vida

mediana: minha mãe queria que eu me tornasse uma cantora e eu era bem feliz

em obedecê-la; mas só se fosse para ser um dia uma grande cantora. Ou tudo ou

nada: nisto não mudei em nada, com o passar dos anos. O fato de ganhar bolsas

de estudo representava para mim uma certeza de que os meus pais não se

iludiam acreditando na minha voz (Tosi, apud Schmitt, 2006, p. 167).

No relato acima, constata-se que Maria de fato “vestiu a camisa” que a mãe

lhe impusera, tomando para si as ambições maternas como se fossem

originalmente suas. E o fez talvez até com maior obstinação, na medida em que,

paralelamente às demandas maternas, uma supercompensação ao seu complexo

de inferioridade também exigia internamente que ela se destacasse. Esta

convicção lhe rendeu, anos mais tarde - quando era de fato a mais celebrada de

todas as cantoras de ópera – um grande desgaste emocional, visto que sua busca

pela perfeição e, conseqüentemente, pelo reconhecimento incondicional das

pessoas, não encontrava limites. O fundamento desta neurose, como veremos

adiante em maior detalhe, é um sentimento pronunciado de inferioridade. É um

caso em que a psicologia de Adler se demonstra claramente, pois o complexo de

poder surgiu a partir da inferioridade.

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Abrimos aqui um parêntese, para ressaltar que esta é tão-somente uma

hipótese que levantamos a fim de chegarmos a uma possível compreensão sobre

o surgimento da força criadora de Maria Callas. Parece-nos um erro deixá-la de

fora, embora sua relatividade e seu limitado alcance frente ao mistério da criação

sejam evidentes. Afinal, como pondera Jung (1991), este é um mistério que

permanecerá para sempre oculto, superior à capacidade de compreensão

humana. Não pretendemos, com esta hipótese, reduzir a genialidade artística de

Callas a uma mera ação de complexos.

O sentimento de inferioridade evocado nas situações domésticas se repetia

também na escola, que tampouco lhe proporcionava prazer e a fundamental

sensação de ser aceita e desejada. Hutchinson (1996) conta que Maria

Também aprendeu na escola que ser fraco e ignorado equivale a ser infeliz.

Como tantas crianças que em função da experiência escolar passam a se

precaver contra todo contato humano, Maria igualmente reforçou sua atitude de

desalento em relação ao mundo. Entretanto, pelo menos encontrou um jeito de

se defrontar com qualquer pessoa: usaria a voz para pôr fim à humilhação e à

aparente superioridade dos que a rodeavam. “Eu odiava a escola; odiava o

mundo” – assim resumiu essa época trinta anos depois (Hutchinson, 1996, p. 28).

Como pensa Kast (1997b), mesmo nas piores situações de vida existem

oásis, situações nas quais também se pode viver bem. Com uma mãe

normalmente inacessível, incapaz de dar-lhe o afeto necessário, uma irmã pela

qual todos demonstravam predileção, um pai ausente e pouco interessado na vida

familiar, uma experiência escolar aversiva e uma auto-imagem extremamente

negativa, a descoberta da música lhe serviu como um importante oásis, um lugar

onde ela podia ser, onde devia ser, onde era importante.

Aos doze anos ainda falava em ser dentista, porém já descobrira que em sua voz

estava a forma de conquistar a aprovação da mãe. Descobrira também que só

com a voz poderia destacar-se na escola e talvez até mesmo receber algum afeto

(Hutchinson, 1996, p. 28).

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Através do canto, Maria teve, pela primeira vez, o sentimento vital de fazer

parte de algo, do direito à existência, e também a sensação de ser, ela mesma,

objeto de atenção. Naturalmente, essa situação estava ligada a uma grande

valorização narcisista. Havia um temor de que sem o canto ela não seria nada,

não teria identidade alguma. Por isso, precisou, através dele, provar que estava à

altura da existência, que tinha garantido um lugar no mundo. Esta dinâmica se

deu obsessivamente no decorrer de sua vida, até um ponto em que era esperado

que ela conseguisse abandonar suas estratégias de supercompensação e, assim,

adquirir uma nova compreensão de si mesma – tarefa que, aparentemente, ela

não pôde realizar com sucesso.

Cada vez mais, a jovem Maria se convencia de que o destino, além de

ter-lhe agraciado com uma voz como arma contra a hostilidade do mundo, ainda a

nomeara guardiã de tudo o que dissesse respeito à música:

A família percebeu isso pela primeira vez numa tarde de sábado, quando em

companhia de um amigo ouvia no rádio uma transmissão de Lucia di

Lammermoor apresentada no New York’s Metropolitan Opera. Lily Pons era Lucia

e estava no meio da cena da loucura quando Maria, fazendo gestos

ameaçadores para o rádio, gritou, furiosa, que a cantora havia desafinado. O

amigo reagiu dizendo que Pons era uma grande estrela do Met e que uma

criança como Maria devia mostrar mais respeito. “Não me interessa se ela é uma

estrela”, a menina explodiu. “Ela canta fora do tom. Pode esperar. Pois um dia eu

vou ser uma estrela, uma estrela maior que ela” (Hutchinson, 1996, p. 28).

A citação acima ilustra a consideração de Jung (1988) de que o talento é

quase sempre compensado por certa inferioridade em outra parte. De acordo com

o autor,

O talento apresenta o inconveniente moral de fazer a pessoa sentir-se superior e

torná-la de certo modo cheia de si, e isto deveria ser compensado pela humildade

correspondente. Crianças talentosas costumam ser mal-acostumadas e gostam

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de ser tratadas de modo diferente. [...] os presentes dos deuses têm sempre dois

lados, um claro e outro escuro (Jung, 1988, § 246).

É o que se pode perceber na descrição da reação de Maria ao constatar

que a cantora havia desafinado. Com seu comentário, ela deixa entrever uma

pretensão exagerada, acompanhada de uma agressividade desproporcional à

situação. Para Jung (2003a), nestes casos de supercompensação, a pretensão

exagerada torna-se convicção de que se é algo especial, e a impossibilidade de

satisfazer a pretensão passa a ser prova da própria inferioridade, o que favorece

o papel do herói sofredor, em uma inflação negativa.

Maria Callas sempre se viu às voltas com as polaridades “ser especial” e

“ser inferior” (correspondentes à inflação positiva e à inflação negativa,

respectivamente), oscilando entre uma e outra, de acordo com os sinais advindos

do ambiente.

Sobre a inflação egóica, Whitmont (2006) escreve:

A inflação descreve [...] um sentimento de poder no qual somos inflacionados por

uma força desconhecida que não é nossa, nem do nosso julgamento e escolha.

Entretanto, é como se fosse, e nós a reivindicamos como sendo nossa. Ela nos

faz sentir infalíveis e autoconfiantes (Whitmont, 2006, p. 54).

Deste modo, podemos inferir que a vivência no âmbito da arte possuía,

para Maria, um caráter ambivalente. Por um lado, a música funcionava como

mediadora entre os mundos interno e externo, que, em geral, encontravam-se

dissociados. Ser capaz de mergulhar na dimensão psicológica de suas

personagens, de exprimir seus sentimentos de alguma maneira concreta, por

meio do canto e da interpretação dramática, provavelmente deve tê-la ajudado a

entrar em contato com seu próprio espírito vital interior, com emoções e afetos

tantas vezes reprimidos, bem como se perceber valorizada e reconhecida pelas

outras pessoas. Através de sua arte, ela pôde vislumbrar uma realidade mais

benfazeja, a qual descreve da seguinte maneira:

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Um mundo onde eu gostaria de viver para sempre. É um... não, eu não diria que

é um mundo superior, mas é lindo e bom. Sem inveja, sem maledicência, sem

estupidez. Tudo ali é puro e sereno. E, entretanto, também há nele uma grande

paixão, um grande amor (Hutchinson, 1996, p. 234).

Por outro lado, contudo, ela acabou se tornando refém do próprio mito que

este mundo havia criado em torno de sua pessoa, em nome do qual era preciso,

muitas vezes, esconder seu verdadeiro ser e todas as suas fragilidades inerentes.

Durante muitos anos, submeteu-se a um intenso e árduo treinamento, a fim de

fazer jus à fama que se criara e também à própria convicção individual,

independente de avaliação externa, de que era seu dever servir à arte com uma

dedicação que se tornou lendária. “Trabalho, trabalho, trabalho, isso é tudo. Para

mim, o que importa é trabalhar. Claro, há também o amor. Mas, se acredito no

amor, acredito também em minha arte, e arte exige disciplina” (Hutchinson, 1996,

p. 313).

É sobre esta questão que faremos algumas considerações a seguir.

3. O caminho do Pai

A carreira de Maria Callas distinguiu-se pelo profissionalismo e

perfeccionismo com que a artista se dedicava ao trabalho. Ela levou a cabo a

precisão, a disciplina e o senso de autoridade que o bel canto exige, o qual

definia como “um treino específico, o desenvolvimento de uma técnica que nos

habilita a fazer pleno uso da voz, tal qual o violinista ou o flautista aprende a fazer

pleno uso de seu instrumento” (Hutchinson, 1996, p. 39). A busca pela perfeição

desta técnica se tornou uma verdadeira obsessão em sua vida.

Naturalmente, seu rigoroso senso crítico nunca lhe permitia estar

plenamente satisfeita com suas realizações, por mais favoráveis que fossem a

crítica e a resposta do público. Certa vez, declarou: “Nunca estou satisfeita. Não

consigo exultar com o que fiz bem, pois vejo muito ampliadas as coisas que

poderia ter feito melhor” (Hutchinson, 1996, p. 40). Era comum que quando

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atenuasse a pressão exercida sobre si mesma, exercitando-se menos do que

achava que devia, experimentasse um sentimento de culpa muitas vezes

avassalador e, em função disso, invariavelmente se esforçasse o dobro no dia

seguinte.

Às vezes, falava de sua voz como se esta fosse uma entidade que nela

existia de forma independente, um apêndice físico dotado de vida própria, e, com

freqüência, tratava-a como se fosse uma força meio hostil e insubmissa exterior a

ela. “Hoje a voz obedeceu”, dizia; ou “Hoje a voz não obedeceu” (Hutchinson,

1996, p.39). Era uma luta constante.

Kast (1997b) assinala que essa característica da constante insatisfação

consigo próprio é bem freqüente no complexo materno originalmente negativo,

pois as exigências que um indivíduo marcado por ele impõe a si mesmo, a fim de

ser finalmente digno de amor, são monstruosamente altas, e, portanto,

dificilmente são atingidas.

No relato abaixo, Maria fala sobre essa dificuldade:

Raríssimas vezes me dou por satisfeita com meu desempenho. Essa é uma das

coisas que me enlouquecem. Nunca sei quando fiz uma grande apresentação. E

aí está o paradoxo. O que o público considera um excelente desempenho nem

sempre é a mesma coisa para mim. Às vezes penso que não estou à altura de

determinado papel. E, no entanto, ao término do espetáculo as pessoas se

apinham para me cumprimentar, e eu fico constrangida com os elogios. Outras

vezes, quando acho que realmente dei o melhor de mim, o público tem a reação

contrária. Assim, o mistério permanece. E me persegue (Hutchinson, 1996,

p.148).

Não possuir a chave para tal mistério implicava em ter que entrar em

contato com a própria impotência e falibilidade, em reconhecer que, diante da

impossibilidade de controlar as reações do público, estava sujeita à

desaprovação, e esta condição lhe era extremamente desagradável. A dimensão

do desconhecido e do não-controlável assume, assim, um tom ameaçador, quase

persecutório, como ela mesma coloca. Como vimos nos capítulos teóricos,

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também o não se sentir à altura de determinado papel, ou o constrangimento

diante dos elogios, advém da auto-imagem negativa, que não permite que o

indivíduo se sinta merecedor de suas façanhas, por mais notáveis que elas sejam.

Rossi-Lemeni, um amigo próximo de Maria, revela sua percepção sobre a

vulnerabilidade que a cantora deixava entrever:

Apesar de sua capacidade, Maria muitas vezes duvidava de si mesma e ficava

ansiosa, temendo o fracasso. Jamais conseguia descansar, por causa de suas

grandes obrigações em relação ao trabalho. Com freqüência pedia conselhos

sobre a arte de representar. E, se eu sugeria um gesto ou uma postura que lhe

agradava, dizia-me: “Ora, eu mesma teria pensado nisso” (Hutchinson, 1996, p.

122).

Temos no relato de Minotis, diretor de uma das montagens de Medea

encenadas por Maria, um bom exemplo da profundidade do envolvimento da

cantora com seu trabalho. Nesta ocasião, segundo Hutchinson (1996), ela

“respirava Medea, sentia Medea, mal conseguia dormir por causa de Medea”

(Hutchinson, 1996, p. 185).

Ligava para mim às três ou quatro da madrugada. “O que foi que você disse hoje

à tarde, quando saio e subo a escada? Da esquerda ou da direita?” Em vez de

dormir, ensaiava sozinha. Passava por seu próprio filtro o que havíamos

elaborado juntos a fim de compreender, assimilar, incorporar o que fizéramos

(Hutchinson, 1996, p. 185).

Sempre empenhada em alcançar a perfeição, durante toda a sua vida só

descansava quando seu corpo se rebelava contra o excesso de trabalho,

nervosismo e ansiedade e lhe impunha o repouso obrigatório. A citação abaixo

ilustra a convicção de Maria de que sua arte deveria estar acima de qualquer

causa, inclusive, sua própria saúde.

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[...] às vésperas da estréia de Norma estava particularmente tensa. Entregou-se

de corpo e alma ao papel. Zefirelli suplicou-lhe que tivesse cuidado, que evitasse

proezas absurdas. “Não posso”, ela respondeu. “Recuso-me a negligenciar minha

música. Tenho de correr riscos, mesmo que signifiquem um desastre e o fim de

minha carreira” (Hutchinson, 1996, p. 254).

Não era apenas falácia da artista. Em mais de uma ocasião, ela realmente

subiu aos palcos contra a recomendação de seus médicos. Com um forte

resfriado, escapou em 2 de janeiro de 1958 da Ópera de Roma pela porta dos

fundos, após um primeiro ato sofrível de Norma, em uma récita prestigiada pelo

então presidente da Itália, Giovanni Gronchi. Já em 29 de maio de 1965, ao

concluir a primeira cena do segundo ato de Norma, ela desfaleceu e a

apresentação foi interrompida. Deste modo, não soa exagerada a consideração

de alguns de que Maria Callas levou seu talento aos limites do masoquismo a fim

de servir a sua arte.

Durante uma entrevista que concedeu à revista americana High Fidelity,

Maria resumiu sua filosofia artística: “A cada ano quero ser melhor que no ano

anterior. Do contrário me afasto da ópera. Não preciso de dinheiro. Trabalho por

amor à arte” (Hutchinson, 1996, p. 122). Esta declaração continha um elemento

profético, pois, de fato, afastou-se quando parou de melhorar a cada ano.

Como demonstra Hutchinson (1996), a obsessão de Callas pelo trabalho

não favorecia apenas sua própria atuação, mas tinha o poder de influenciar o

desempenho de todos os que com ela trabalhavam. Afinal, havia a consciência de

que o verdadeiro sucesso de uma representação dependia da qualidade de todo

o elenco:

Como profissional consciente que era, não suportava amadorismo. Como

perfeccionista, não podia admitir que qualquer um dos artistas envolvidos

prejudicasse toda a representação. Sua dedicação ao trabalho contagiava os que

a rodeavam – embora exasperasse uns e outros que já haviam caído na rotina –

e logo se difundiu a lenda de que, quando Callas cantava, o desempenho de todo

mundo melhorava: o tenor cantava melhor, o maestro regia melhor, os

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lanterninhas orientavam melhor o público, o bilheteiro vendia melhor os

ingressos... (Hutchinson, 1996, p. 103).

Como vimos em Jung (2003a), um desenvolvimento espontâneo da

inteligência pode ocorrer a partir de defesas contra a mãe, e esse

desenvolvimento costuma ser acompanhado de uma emergência de traços

masculinos em geral. Ele afirma que, graças a sua lucidez, objetividade e

masculinidade, este tipo de mulher é encontrado freqüentemente ocupando

cargos importantes, desenvolvendo uma eficiência propícia (Jung, 2003a).

Assim era Maria em sua profissão (e também fora dela): controladora,

exigente, perfeccionista, persistente, pragmática e, sem dúvida, eficiente. Estes

são todos atributos masculinos, que ela provavelmente desenvolveu de forma

compensatória à própria insegurança e à baixa auto-estima que se configuraram a

partir de uma experiência de pouca aceitação genuína na infância. A atitude

perfeccionista consciente de Maria, por sua vez, era compensada por mais

sentimento inconsciente de inferioridade, que se vingava com a avidez e o anseio

de poder, e assim por diante, num círculo vicioso. Afinal, “a psique compensa todo

extremo com o seu oposto” (Whitmont, 2006, p. 44).

Portanto, uma hipótese a ser levantada neste caso é de que houve uma

identificação do ego com a atmosfera do complexo paterno. Vivendo sob o jugo

de um complexo materno negativo, ela procurou seu caminho por meio do

complexo paterno, tentando conquistar a auto-estima e o sentimento de ser digna

de amor com seu desempenho e destaque profissional. De acordo com Kast

(1997b), é através do desenvolvimento de atributos masculinos que estas

pessoas procuram validar sua existência em âmbito social.

Maria, acuada diante da falta de aprovação do ambiente e principalmente

da mãe, pode ter interiorizado o complexo paterno, em que o papel de pai

consiste nas exigências impiedosas e austeras para consigo próprio. O fato de

que ela fosse capaz de cumprir com êxito tais exigências não evitava, porém, que

estas também trouxessem à sua vida um quantum significativo de infelicidade, a

despeito de sua competência. A identificação com o complexo fez com que se lhe

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tornassem de difícil acesso determinados âmbitos vitais, como as emoções e o

sentimento de pertencer indiscutivelmente às outras pessoas, sem que, para isso,

devesse mostrar um desempenho em troca.

Outra hipótese plausível para tal postura é de que Maria tenha

desenvolvido um animus negativo, dirigido para o poder. Como, aparentemente,

ela não teve um pai forte nem uma mãe com atributos femininos marcantes, seu

modelo de masculinidade deve ter sido o animus da mãe. Ao que tudo indica, seu

animus foi realizado por meio de canais de fraqueza submissa disfarçada de força

manifesta; por isso, sua intenção consciente de ser forte e perseverante sempre

acabava sendo compensada por sentimentos de incapacidade, de não ter feito

bem o suficiente.

O herói que nela existia lutava para ser realizado por meio de um animus

austero, que a mantinha numa escravidão disfarçada de paraíso. Whitmont (2006)

descreve muito bem esta situação, assinalando que o animus, em sua forma

realizada de rigidez e fraqueza, impede a mulher de descobrir seu próprio

potencial de animus positivo não reconhecido. Uma mulher que vive sob a égide

de um animus desta natureza não é capaz de reconhecer em si mesma a

capacidade de realizar algo por si só, individualmente.

O resultado pode ser uma inflação negativa, que é mais um sentimento muito

ruim do que muito bom. Ela sente que de modo algum é suficientemente boa

para esse mundo, que tem muitos defeitos, que está sempre errada; por isso, é

supersensível à crítica, tanto a real como a imaginada. Está sempre na defensiva

e constantemente se sente atacada. Reage a qualquer constatação de um fato

como se fosse uma crítica; qualquer obstáculo, qualquer dificuldade, qualquer

problema de relacionamento prova que ela não é boa, que é um fracasso; [...]

Isso porque o julgamento do animus é projetado para fora; todos a atacam, todos

a criticam, a dilaceram. Ela se ressente amargamente com todos. Mas é a força

dentro dela que lhe diz, “Você deve”, “Você precisa”, “Você falhou”, “Você não é

boa”, sem considerar se isso é ou não realista (Whitmont, 2006, p. 187).

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De fato, toda e qualquer reação desfavorável a seus feitos artísticos, toda

crítica negativa, eram recebidas como uma agressão direta à sua pessoa, tendo o

poder de desestabilizá-la de imediato. A porção vulnerável e suscetível de Callas

se ressentia da reprovação tanto quanto do elogio insincero, e não hesitava em

expressar sua mágoa. Segundo Hutchinson (1996), ela considerava o reproche

por parte dos amigos uma deslealdade, quase uma traição, e, reagindo ao que

considerava afastamento, desdém e repúdio, sempre se lançava no trabalho de

maneira ainda mais obsessiva. Adotando uma postura altiva e indiferente,

esforçava-se por manter a imagem da profissional inabalável e segura de si,

inclusive perante si própria. Para a biógrafa, “esconder a dor era um de seus

grandes talentos” (Hutchinson, 1996, p. 55).

Quando a mulher está em posse de um animus negativo, segundo

Whitmont (2006), toda sugestão de que algo pode não se encontrar no estado

ideal suscita reações de crítica e ataque, que tendem a reforçar os estados

negativos e nunca são vistas como uma tentativa de ajuda. O arquétipo se

exprime como um ímpeto de separação inconsciente que interfere na vida do ego

com a impossibilidade de relacionamento, de amor e compreensão. (Whitmont,

2006).

“É mais fácil admirá-la do que amá-la” (Hutchinson, 1996, p. 107), declarou

Walter Legge, referindo-se à diva. Este comentário ilustra a colocação de Stein

(2004), a respeito das mulheres que sofrem com o que denomina “problema de

animus”:

Com freqüência, seu relacionamento sofre irreparáveis danos, porque as pessoas

que convivem com ela têm que construir escudos que as protejam sempre que

entram em contato com ela. Mantêm-se em atitude defensiva e desconfortável na

presença da mulher com problema de animus (Stein, 2004, p. 120).

Portanto, suas idéias e opiniões autônomas, transmitidas com a energia

emocional de uma pessoa arrogante e prepotente, acabam atrapalhando sua

adaptação ao mundo. Realmente, de acordo com Hutchinson (1996), cada fase

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da vida de Callas foi marcada mais pela ruptura com velhos amigos que pela

conquista de novas amizades.

A biógrafa revela que havia pouca camaradagem e ainda menos amor

entre Maria e seus colegas, que eram vistos como adversários. “Dinheiro não me

interessa”, disse ela, “porém, devo ganhar mais que qualquer outro artista”

(Hutchinson, 1996, p. 163), como confirmação indispensável de que era, sem

sombra de dúvida, a maioral. Sua convicção de que o mundo era um lugar

perigoso e pouco confiável se confirmava cada vez que ocorria algum impropério,

como no episódio em que foi vaiada pelos fãs de Renata Tebaldi, cantora que

durante muito tempo liderou sua lista de adversários. “Querem beber meu

sangue” (Hutchinson, 1996, p. 131), esbravejou, revelando mais seu estado de

espírito que as reais intenções dos chamados tebaldistas.

Schmitt (2006) faz uma consideração interessante acerca do senso de

competitividade que muitas vezes se instala nas pessoas dominadas por

sentimentos de inferioridade, afirmando que a vitória sobre outrem eleva

temporariamente sua auto-estima e modifica favoravelmente sua autopercepção.

No entanto, o autor salienta que este efeito tem prazo de validade, visto que o

cerne da questão localiza-se num nível muito mais profundo.

É comum ouvirmos dizer que as pessoas que estão constantemente envolvidas

em algum tipo de competição estão tentando “provar algo”. A vitória, de certo

modo, melhora a nossa auto-estima e modifica temporariamente a nossa

identidade. Essas mudanças são temporárias porque a vitória é definida por um

juiz externo. Nosso juiz interno está mais interessado em outra questão: “Por que

eu não sou amado?”. De qualquer modo, a sensação boa que temos quando

vencemos é um bom atenuante da dor de não ser amado e, além disso, a vitória

ainda costuma atrair a atenção de muitas pessoas (Schmitt, 2006, p. 94).

Apesar de todo o sucesso, Maria arrancava a vitória de elementos hostis e

tinha a imaginação povoada de inimigos. Assim, mantinha-se o tempo todo à

espreita, com seu radar pronto a captar o mais sutil sinal de deslealdade. Havia

uma necessidade de controle sobre o que pairava na cabeça dos outros, sobre a

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avaliação que dela faziam, típica das personalidades narcisistas. Como

apreendemos de Kast (1997b), a necessidade de controle se impõe como uma

tentativa de prevenir o surgimento do sofrimento - com o predomínio da

desconfiança primordial e do medo, entende-se que tudo o que é passível de

controle deve ser controlado.

A partir da expectativa de ser novamente rejeitada e repelida, toda

expressão emocional e toda mudança afetiva de outros indivíduos chamavam a

sua atenção, sendo interpretadas pelo prisma do complexo dominante,

consideradas como rejeição, ofensa, ao que reagia com grande fúria. Como

ressaltou Kast (1997b), esta postura de compensação é facilmente interpretada e

experienciada externamente como “complexo de poder”, mas, na realidade,

trata-se de uma tentativa extrema da pessoa livrar-se de seu sentimento de

impotência.

A interpretação de qualquer demonstração de hostilidade como um ataque

direto contra sua pessoa intensificava-se, sobretudo, quando o marido,

Meneghini, chamava sua atenção para tais manifestações, atribuindo-lhes uma

importância exagerada. “Uma ofensa atrás da outra” (Hutchinson, 1996, p. 146),

dizia ele, e, com isso, geralmente provocava na esposa um sofrimento

desproporcional em relação aos fatos.

Ao longo de quase sete anos, Maria recebeu o estímulo constante de que

precisava principalmente de Meneghini, que costumava ficar nas coxias,

murmurando-lhe: “Coragem! Não existe ninguém como você. Você é a maior do

mundo” (Hutchinson, 1996, p. 133). Parece que ela encontrou no marido uma

complementação bastante conveniente, visto que ele se dedicava quase que

exclusivamente à carreira da esposa, reconhecendo que o universo girava em

torno de sua pessoa e de sua arte e mostrando-se muito satisfeito com isso - tudo

o que uma pessoa dominada por sentimentos de inferioridade anseia.

Walter Legge relatou um episódio que exemplifica nitidamente o

relacionamento do casal. Chegando de madrugada ao hotel onde estavam

hospedados, após uma estréia de Lucia em Berlim, soube que os Meneghini o

aguardavam, pois precisavam muito falar com ele.

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Encontrei-os sentados na cama [...] Folheavam umas revistas italianas enquanto

esperavam o momento de me inquirir sobre o espetáculo. Maria fizera jus a si

mesma? Recebera aplausos mais ruidosos e demorados que o restante do

elenco? Tranqüilizados, deitaram-se finalmente e apagaram a luz (Hutchinson,

1996, p. 128).

Mesmo passados dez anos da fatídica apresentação de Norma em Roma,

à qual não pôde dar continuidade em decorrência do debilitado estado de sua voz

- o que gerou uma repercussão bastante desfavorável na mídia -, Maria ainda não

havia superado o trauma e torturava-se: “Meu Deus, ainda sinto o efeito de Roma”

(Hutchinson, 1996, p. 312).

Eu não tinha condições de continuar, não podia me matar daquele jeito. Seria

uma loucura. [...] Sou famosa por saber me defender bem. Tigresa, é assim que

me chamam. Mas preciso ser crucificada? Eu estava sem voz. A voz sempre me

falhava diante de um público agressivo. E assim por diante, e isso e aquilo, e

minha mãe, e agora ele [referindo-se a Onassis]. Tive de parar e engolir tudo sem

abrir a boca, porque tudo que digo é usado contra mim. Tudo que digo acaba se

tornando indigno de mim, não deles. Quem se importa? E não tenho um único

amigo. Por quê? (Hutchinson, 1996, p. 312).

Esse desabafo, que a coloca no centro de um mundo hostil, sempre pronto

a feri-la, a traí-la, a crucificá-la, resume sua visão da realidade. “Só meus

cachorros nunca hão de me trair” (Hutchinson, 1996, p. 312), declarou em seus

últimos meses de vida.

Durante muito tempo, Maria resistiu ao confronto com sua sombra, que lhe

dizia que ela não era onipotente, nem perfeita, mas um ser humano que devia

aceitar as próprias limitações e imperfeições. Ficava dominada pelo medo de que,

entrando em contato com suas fragilidades, rebaixando suas defesas, permitisse

que novamente viesse à tona aquela jovem gorda, desengonçada e rejeitada que

fora um dia, e esta possibilidade era para ela insuportável.

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Hutchinson (1996) faz uma consideração a este respeito:

Em certo sentido ela nunca superou a frustração de não poder fazer tudo, pensar

em tudo, alcançar a perfeição em tudo. Carregou essa frustração até o fim da

vida e a viu crescer à medida que suas dificuldades vocais aumentavam. Quando

não conseguia mais cantar papéis de soprano e passou a receber ofertas de

grandes teatros de ópera para interpretar qualquer papel meio-soprano que lhe

aprouvesse, desconsiderou todas as propostas – exceto a referente à Carmem,

que não obstante se limitou a gravar. Aparentemente, achava que aceitar

personagens criadas para meio-soprano e reconhecer que era humana –

portanto sujeita ao declínio – equivalia a admitir a derrota. Sob muitos aspectos,

jamais se perdoou por não ser sobre-humana (Hutchinson, 1996, p. 122).

Para esta artista, permitir uma integração dos conteúdos sombrios, isto é,

reconhecer e aceitar tudo aquilo de “ruim” (segundo o julgamento do ego) que

nela existia, era uma tarefa um tanto quanto difícil de ser realizada, pois implicava

em um prejuízo direto à “Tigresa”, a máscara com a qual se apresentava para o

mundo e que estava colada ao seu rosto. Como veremos no próximo item, Maria

Callas é um exemplo clássico de identificação do ego com a persona e das

implicações inerentes a este mecanismo.

4. A dualidade Maria/ Callas: identificação com a persona

Como vimos até o momento, as experiências que Maria Callas teve no

decorrer de sua vida e, principalmente, em sua infância, contribuíram fortemente

para o estabelecimento de um complexo de inferioridade ligado a um complexo

materno negativo, os quais a faziam perceber-se como um ser pouco importante

para as pessoas e para o mundo. Através do canto, ela começou a reverter esta

situação, passando de um “patinho feio” anônimo e insignificante à maior cantora

que a história da ópera já conheceu. Não é de surpreender, portanto, que ela

tenha desenvolvido um alto apreço pelo seu instrumento, que lhe propiciava uma

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série de vantagens, a ponto de identificar-se quase que inteiramente com o mito

que se formou em torno da sua pessoa.

Se, por um lado, a persona representa um sistema útil de defesa, por outro,

pode ser tão excessivamente valorizada a ponto de o ego identificar-se com ela,

como parece ser o caso da cantora. Esta superidentificação levou, em últimas

conseqüências, a uma dicotomização de sua personalidade: havia Maria, para a

qual praticamente nenhum espaço era reservado em sua pesada rotina de

trabalho e na vida pública, e havia a imperiosa “La Callas”, cuja imagem era

preciso manter a qualquer custo.

Poucos anos antes de morrer, ela gravou em fita algumas idéias, reflexões

sobre sua vida. Em um desses depoimentos, traz à tona a referida dualidade

Maria/ Callas:

Eu gostaria de ser Maria, mas La Callas exige que me comporte com sua

dignidade. Eu gostaria de pensar que as duas na verdade são uma só, porque

uma vez Callas também foi Maria, e sempre me coloquei inteira em minha

música. Tudo que fui sempre foi autêntico. Trabalhei com toda a honestidade

possível, e Maria também. Quem quiser realmente me compreender, irá me

encontrar inteira em meu trabalho. [...] Afinal, talvez não seja possível separar

Callas, a estrela, de Maria – as duas estão em sintonia” (Hutchinson, 1996, p.

331).

Ao que tudo indica, não estavam. Temos neste termo que ela utiliza,

“sintonia”, um possível indício de que a pessoa e a estrela eram percebidas como

uma unidade simbiótica, de que ambas se encontravam perigosamente

identificadas. Como se pode observar de seu relato, Maria Callas tornou-se, ela

mesma, seu próprio trabalho, a ponto de quase não conseguir mais se distinguir

deste, ter uma existência separada deste. Na realidade, Maria sufocava sob o

peso de “La Callas”. E o fardo se tornava mais pesado, à medida que sua voz se

encontrava cada vez mais desgastada, e este inexorável dado da realidade

dolorosamente confrontava sua exigência interna de sempre se superar.

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Para melhor compreendermos a identificação com a persona, recorremos a

Whitmont (2006), que faz uma importante consideração sobre o fenômeno.

Segundo o autor, todos precisamos desenvolver tanto uma máscara de persona

como um ego adequados, e sobre esta necessidade não resta dúvida alguma. No

entanto, ele ressalta que

Se essa diferenciação fracassar, forma-se um pseudo-ego: o padrão de

personalidade se baseia na imitação estereotipada ou numa atuação meramente

zelosa em relação ao papel atribuído coletivamente à pessoa na vida. O

pseudo-ego é um precipitado estereotipado dos padrões coletivos (Whitmont,

2006, p. 140).

Neste sentido, a pessoa passa a ser integralmente o papel social que ela

representa - sua profissão, por exemplo -, ao invés de atribuir-lhe o seu devido

valor, nos momentos em que ele se faz necessário. Com isso, cria-se o que o

autor chama de “pseudo-ego”, cujas características ele descreve da seguinte

maneira:

Tal pseudo-ego é não apenas rígido, mas também extremamente frágil e

quebradiço; a necessária energia psíquica de apoio proveniente do inconsciente

não está acessível, mas sim em oposição ao consciente, já que tal ego está

completamente separado das intenções do Self. O pseudo-ego está sujeito a

pressões constantes que vêm de dentro, e não tem meio de ajustar o seu

equilíbrio precário [...] (Whitmont, 2006, p. 140).

Percebe-se que a relação entre o ego e a persona não é simples, devido

aos objetivos contraditórios desses dois complexos funcionais. Enquanto o ego se

movimenta no sentido da separação e da individuação, em direção à

consolidação de uma posição autônoma fora do inconsciente, primeiramente, e

fora do meio familiar, num segundo momento, a persona se movimenta na direção

oposta, rumo ao relacionamento e adaptação ao mundo dos objetos (Stein, 2004).

Essas duas tendências contrárias coexistindo dentro do ego geram uma tensão

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na psique, visto que o desejo de separação/ individuação do ego está

freqüentemente radicado na sombra, representando uma ameaça à vida do grupo

e ao bem-estar do indivíduo.

Com relação a isso, Whitmont (2004) diz:

Os elementos ameaçadores da psique objetiva opositora que lhe é contrária

provavelmente serão vivenciados em projeções sobre o mundo exterior até o

ponto em que surgem as ilusões paranóicas, e o pseudo-ego lida com elas

retraindo-se ainda mais na identificação protetora do papel que representa

(Whitmont, 2006, p. 141).

As projeções persecutórias da cantora recaíam, em larga medida, sobre o

público e a crítica, que lhe dedicaram tanto o amor como o ódio. Ter de sempre

agradá-los e convencê-los de que ela era uma grande artista gerava um enorme

desgaste, pois, nestas circunstâncias, a fundamental energia psíquica de apoio

oriunda do inconsciente não apenas se torna inacessível ao ego como ainda se

opõe à consciência. A despeito de todo o dispêndio emocional, contudo, Maria

continuava se justificando perante o público, insistindo em provar-lhe o seu valor:

Caro público, peço-lhe que me veja como uma musicista que dedicou a vida à

musica. Não acredite em todas as mentiras que espalharam a meu respeito.

Falam de mim todo tipo de coisa, e isso talvez faça parte de meu destino. Tudo

que me interessa é que o público seja imparcial, saiba que consagrei totalmente

minha vida a minha arte (Hutchinson, 1996, p. 331).

No caso de Maria, existia ainda um agravante, pois sua persona era de fato

muito valorizada socialmente. Como afirma Stein (2004), de um modo geral,

quanto mais prestigioso é o papel, mais forte é a tendência para identificar-se

com ele. A pessoa que adquire um papel com elevado valor coletivo e enorme

prestígio, juntamente ao qual vêm fama, honrarias e grande visibilidade social,

tende a fundir-se com o seu papel, até o ponto em que começa a perder de vista

seu verdadeiro ser, a esquecer-se de quem ela realmente é.

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O ego de Maria Callas estava profundamente fundido com a persona de

Maria Callas, porque esse papel garantiu suas aspirações pessoais na vida. Uma

cantora lírica, com todo seu “glamour” e sofisticação, é, sem dúvida, uma pessoa

de alta posição na sociedade, a quem é concedida uma persona que atrai forte

identificação. E, de acordo com Stein (2004), “a identificação com um papel é

motivada, de um modo geral, pela ambição e aspiração social” (Stein, 2004, p.

106).

A declaração que certa vez deu em uma entrevista exprime de forma

concisa que, para ela, o trabalho estava intrinsecamente ligado à própria

existência: “Trabalho; logo existo. O que você há de fazer se não trabalhar?”

(Hutchinson, 1996, p. 35). O temor que a dominava quando pensava em parar de

cantar era o mesmo temor que o ego sente diante da possibilidade de ter sua

existência suprimida. É o que apreendemos do relato abaixo:

“Se não trabalhar, o que vou fazer da manhã à noite? [...] Não tenho filhos, não

tenho família [...] O que vou fazer, se não tiver minha carreira? Não posso

simplesmente ficar sentada, jogando cartas ou mexericando – não sou esse tipo

de gente” (Hutchinson, 1996, p. 244).

Em seu julgamento, parar de trabalhar equivalia a não ter nada mais com o

que se ocupar. Dizendo de outro modo, caso sua persona fosse retirada, pouca

coisa restaria, pois, conforme considera em seu relato, tudo o que não era

trabalho eram somente futilidades: jogar cartas, mexericar, ou simplesmente não

fazer coisa alguma. Seu senso de identidade parecia restringir-se ao papel que

desempenhava socialmente, ao mundo da arte que respirava, na ausência do

qual todo o resto ou era insignificante ou pertencia aos domínios da sombra, o

que, evidentemente, parecia-lhe ainda pior.

É possível, também, acrescentar um outro enfoque sobre a questão,

baseados no que Jung (1991a) preconiza, ao afirmar:

É como se cada ser humano nascesse com um capital limitado de energia vital. A

dominante do artista, isto é seu impulso criador, arrebatará a maior parte dessa

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energia, se verdadeiramente for um artista; e para o restante sobrará muito

pouco, o que não permite que outro valor possa desenvolver-se (JUNG, 1991a, §

158).

Segundo esta visão, seu lado humano pode ter sido realmente preterido

em nome de seu lado criador, permanecendo subdesenvolvido, em um nível

primitivo e insuficiente. Este fenômeno se expressa através de uma certa

puerilidade da artista, de um auto-erotismo e vaidade que, para Jung (1991a),

acabam sendo significativas, pois é devido a estas formas inferiores que poderá

ser encaminhada uma quantidade suficiente de energia vital para o eu, que

necessita delas para não se entregar a uma privação completa. De fato, o autor

compara o auto-erotismo de alguns artistas ao de pessoas que foram

negligenciadas na infância e precisaram se defender precocemente contra o

efeito avassalador de um ambiente desprovido de afeição. “Tais crianças, com

efeito, tornam-se muitas vezes abusivamente egocêntricas [...] permanecendo

infantis e frágeis durante toda a vida [...]” (Jung, 1991a, § 158).

Deste modo, percebemos que Maria não foi capaz de se adaptar às

exigências culturais e coletivas em conformidade com seu papel na sociedade –

com sua ocupação e posição social – e ainda assim ser ela mesma. Quando isso

acontece, o ego, que sempre contém mais do que a identificação com a persona,

pode acabar se tornando pobre e inflado. De acordo com Whitmont (2006),

Quando a individualidade é assim confundida com o papel social, quando a

adaptação à realidade não é suficientemente individual mas inteiramente coletiva,

o resultado pode ser um estado de inflação. A vítima se sente esplêndida e

poderosa, porque é uma refinada figura de sociedade, mas não consegue ser um

ser humano, ou mesmo dar os primeiros passos no sentido de tornar-se humana.

Tal confiança exagerada e inflacionada na persona, ou a identidade com ela,

resulta em rigidez e em falta de uma genuína sensibilidade (Whitmont, 2006, p.

141).

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A despeito da referida sensação de poder e esplendor experienciada pelo

ego identificado com a persona, Maria muitas vezes demonstrava não se sentir

nem um pouco satisfeita em fazer de sua vida uma representação, que nem

sempre lhe garantia a segurança e a felicidade almejadas. Pelo contrário, tantas

vezes acabava por aumentar ainda mais suas defesas, ao ver-se obrigada a

negar suas necessidades e desejos essenciais e a reprimir seus conteúdos

sombrios, movida pela desconfiança primordial.

Com relação a isso, Von Franz (2005) afirma:

As pessoas que negaram seus sentimentos ou suas demandas sobre outras

pessoas ou sua capacidade de confiar, geralmente não se sentem

completamente reais, espontâneas ou elas mesmas. Elas se sentem apenas

meio-vivas e geralmente não se vêem como pessoas completamente reais. [...]

Quando isso acontece, a pessoa representa! A pessoa pode acabar se

adaptando à vida, mas se ela for honesta consigo mesma não poderá negar que

está representando a maior parte do tempo (Von Franz, 2005, p. 47).

A representação costuma estar ligada ao arquétipo do puer aeternus.

Segundo Von Franz (2005), as pessoas pueri aeterni sabem representar, têm

esse talento e representam papéis. De acordo com a autora, elas representam até

para si mesmas e se convencem de que estão vivendo, mas a sensação de vazio

e infelicidade que permanece revela que isso não é bem verdade. Outras pessoas

as consideram bem-sucedidas, mas elas próprias não concordam com isso, pois

sentem como se estivessem representando para si mesmas (Von Franz, 2005).

Aos olhos de seus admiradores, Maria Callas era um somatório de rainha,

feiticeira e divindade, e ela se empenhava arduamente em conquistar e manter o

amor do público, esforçando-se para ser universalmente “simpática” e querida.

Não demorou a perceber, entretanto, que “a fama é um bumerangue”

(Hutchinson, 1996, p. 142), como ela mesma declarou.

Apesar de a persona ser definida como a pele psíquica entre o ego e o

mundo (Stein, 2004), ela envolve também a pele física, isto é, a aparência do

indivíduo, e constitui um fator que exerce significativa influência em suas

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interações interpessoais e em seu autoconceito. Como vimos, Maria carregou

desde cedo uma série de questões relacionadas à própria aparência, que julgava

inapropriada e à qual atribuía a causa de muitas de suas dificuldades. O excesso

de peso, do qual se livrou apenas aos trinta anos de idade, quando finalmente

realizou uma metamorfose corporal emagrecendo mais de quarenta quilos, gerava

na cantora uma sensação de mal-estar e de vergonha que interferia

negativamente em sua adaptação à realidade externa.

Na visão de Stein (2004), a vergonha é um motivador fundamental na

identificação com a persona. A máscara que utilizamos nas interações com o

mundo tem, de fato, a função de nos proteger contra a vergonha, e, segundo o

autor, a evitação deste sentimento é provavelmente o motivo mais forte para se

desenvolver e conservar uma persona, pois ele anula todo o sentimento de amor

próprio.

Maria, que já era uma cantora lírica de prestígio antes do emagrecimento,

tornou-se ainda mais popular e comentada na mídia após adquirir o perfil de uma

esguia e requintada atriz-cantante, e transformar-se na perfeita diva. A

transformação corporal certamente contribuiu para que sua persona se

fortificasse ainda mais, tornando irresistível a atração de Maria por “La Callas”.

E “La Callas” tornou-se conhecida por gastar milhões com suas casas,

jóias e roupas. Para Schmitt (2006), todos esses artifícios conferentes de status e

todas as crenças grandiosas que as pessoas narcisistas nutrem a respeito de si

próprias servem, na verdade, ao objetivo de desviar a atenção de um grande

complexo de inferioridade:

Automóveis, casas, mobília, jóias, arte, podem ser utilizados para alterar o lugar

de alguém no eixo vergonha/ orgulho. A ascensão social, em boa parte das

vezes, é mais um sistema de se evitar a vergonha do que propriamente uma

tentativa de se atualizar o verdadeiro potencial. Todas essas defesas podem ser

chamadas de defesas narcisistas [...] contra o sentimento de que não seremos

amados pelo que somos (Schmitt, 2006, p. 92).

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As defesas empregadas por Maria revelaram-se, contudo, insuficientes

para encobrir sua arraigada baixa auto-estima. Conforme revela Hutchinson

(1996), mesmo com tudo o que alcançou, Maria nunca daria por completa sua

transformação. Continuava, em parte, presa à adolescente roliça e sem graça que

fora no passado, apavorando-se diante da possibilidade de voltar a engordar.

Nutria uma preocupação excessiva com a aparência, que, não obstante, também

se transformou num bumerangue: “É muito fácil deturpar uma imagem, como senti

na própria pele” (Hutchinson, 1996, p. 142), disse.

Segundo a biógrafa,

Sofria ainda mais com a persistente convicção de que era feia, de que a linda

mulher admirada pelo público não passava de uma máscara, um disfarce, quase

um truque. Até o fim da vida acreditou que o objeto de admiração geral não era

ela mesma, e sim o conjunto de roupas, penteados, jóias e peles que usava. Em

função disso, tinha uma preocupação quase obsessiva com a aparência e se

empenhava em apresentar aos olhos hostis do mundo uma Maria pequenina,

insignificante e indigna. Sua beleza era uma arma, não um atrativo, e a principal

obrigação de todo guerreiro consiste, afinal, em manter as armas em perfeitas

condições de uso (Hutchinson, 1996, p. 136).

Para o mundo, Maria era a personificação da realização profissional, do

poder, do sucesso. Todavia, como revela Schwartz (1988), embora os caracteres

narcisistas possam ter um forte efeito sobre os outros e costumem ser vistos

como confiantes e poderosos, eles mesmos raramente se sentem com algum

poder ou eficácia e com freqüência ficam pasmos quando são informados da força

que possuem (Schwartz, 1988). Como pessoalmente admitiu, Maria vivia

atormentada pela dúvida e pela sensação de não ser digna de suas conquistas.

“Quando me olham com evidente afeto, fico duplamente irritada. Penso: ‘Por que

estão me olhando com admiração? Eu não mereço” (Hutchinson, 1996, p. 142).

No entanto, quanto menos se sentia digna de admiração, mais procurava

apresentar ao mundo uma imagem admirável de si mesma.

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O reconhecimento e a adoração que obtivera através da fama acabaram

por se tornar uma sutil armadilha, e, à medida que se acumulavam os louvores, a

armadilha se cerrava. A mulher que encantara tanta gente precisava mais de seus

admiradores que estes dela, dependendo quase que inteiramente da aprovação

dos outros. Havia muito tempo que o mito vinha destruindo a mulher, e quanto

maior sua identificação com o mito, maior sua responsabilidade – e maior seu

medo de não corresponder às expectativas.

“Pagamos caro por essas noites”, disse numa ocasião a propósito da

histeria geralmente suscitada por suas estréias. “Eu posso fingir que não percebo,

mas meu subconsciente não. E isso é péssimo. Confesso que às vezes uma parte

de mim fica lisonjeada com esse clima de grande emoção, mas em geral não o

aprecio nem um pouco. É aí que começo a me sentir condenada” (Hutchinson,

1996, 176). Sentia-se condenada a viver em função das futuras expectativas

resultantes da histeria, a continuar atuando num nível vocal e dramático que

justificasse a histeria, a repetir e superar nas récitas seguintes as façanhas da

estréia. “Quanto maior a fama, maior a responsabilidade, maior a sensação de

fragilidade e desamparo” (Hutchinson, 1996, 176), declarou certa vez.

Assim, Maria progressivamente se deixou aniquilar pela angústia que o

trabalho lhe causava. As exigências impossíveis que se impunha, o ressentimento

que se acumulava sempre que colegas, diretores, cenógrafos e funcionários do

teatro não correspondiam a seus padrões de perfeccionismo, o esgotamento

provocado pelo desejo e pela expectativa de ser a melhor, a inexorável decepção,

apesar de todas as suas conquistas e de todos os aplausos que recebia, tudo

isso contribuía para que a cantora passasse a se questionar se era realmente seu

desejo continuar seguindo por aquele mesmo caminho, ou se era hora de

experimentar algo novo. Naquele momento de sua vida, o pseudo-ego que havia

se configurado se tornava um fardo por demais pesado e sufocante, e ela, Maria,

já não agüentava mais ter que sustentar “La Callas”, cuja supremacia lhe causava

infelicidade e um dispêndio de energia psíquica que começava a julgar

desnecessário.

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Quanto mais próxima se encontrava da metade da vida, com mais

intensidade urgia o desejo interno de não mais precisar manter aquela persona

perante os amigos, o público, os relações-públicas, repórteres, fotógrafos,

colunistas e maledicentes, de poder ser apenas ela. Como revela Hutchinson

(1996), tudo que queria era descansar, viver em paz, conquistar a estabilidade

emocional – anseios que expressou repetidamente em suas cartas e

pronunciamentos. O trabalho árduo, as tensões e os medos, as condenações e a

implacável autocrítica assumiam um peso insuportável. Ela desejava

ardentemente libertar-se (Hutchinson, 1996).

Selecionamos abaixo alguns trechos extraídos de sua biografia que

exemplificam a crescente insatisfação e os questionamentos que começavam a

surgir em relação ao rumo que sua vida havia tomado:

“Envelheci prematuramente, tornei-me apática, só pensava em dinheiro e

posição. Para mim a vida realmente começou aos quarenta – ou perto dos

quarenta” (Hutchinson, 1996, p. 204).

“Não tenho nada”, disse pouco depois de completar 53 anos. “O que vou fazer?”

(Hutchinson, 1996, p. 337).

“Depois de nove anos, me vejo sem filho, sem família, sem amigo! [...] E me

pergunto: ‘Meu Deus, por quê? Por que essas coisas têm de acontecer?’. Com

minha lógica boba acho que uma pessoa que recebeu o privilégio de conquistar

uma posição de destaque devia compreender que tem a obrigação de ser feliz,

de um modo ou de outro” (Hutchinson, 1996, p. 283).

“Afinal, o que é o mito? O público me fez” (Hutchinson, 1996, p. 260).

“Quanto mais famosa me torno, mais apavorada fico” (Hutchinson, 1996, p. 212).

“Você pode ir lá e dizer a eles que sou um ser humano e tenho meus medos?

Como podem conhecer uma pessoa que só vêem no palco, brilhando sob as

luzes da ribalta? Como os jornalistas podem conhecer essa pessoa?”

(Hutchinson, 1996, p. 261).

“Já passei dos cinqüenta. Sou livre, tenho todo o dinheiro necessário para me

divertir. E o que é que eu faço? Trabalho” (Hutchinson, 1996, p. 336).

“Não quero mais cantar. Quero viver como uma mulher normal, com filhos, uma

casa, um cachorro” (Hutchinson, 1996, p. 214).

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“É horrível sentir-se odiada. Por que não posso cantar minha Norma em paz, só

eu e a lua numa floresta? Por que sou obrigada a suportar tudo isso?”

(Hutchinson, 1996, p. 256).

“Por que me amam? Não é porque cantei uma bela ária ou emiti uma bela nota;

deve haver algo mais” (Hutchinson, 1996, p. 318).

“Tudo que querem saber a meu respeito está ali, na música. Callas morreu”

(Hutchinson, 1996, p. 338).

Stein (2004) assinala que o núcleo arquetípico do ego não muda com o

tempo, mas que a persona pode ser modificada muitas vezes no transcorrer da

vida, dependendo da percepção do ego sobre as mudanças ocorridas no

ambiente e de sua capacidade para interagir com este último. Segundo o autor,

um dos momentos em que se dá uma importante mudança é na transição da fase

inicial da idade adulta para a meia-idade, quando o ego tem de enfrentar os

desafios de adaptação com alterações apropriadas no conceito de si mesmo e na

apresentação que faz de si através da persona. Jung denominou este período

metanóia, que se caracteriza por uma mudança da atitude consciente de forma

espontânea no inconsciente (Whitmont, 2006). O termo vem do latim, metanoein,

e significa “mudar de mente” (Jung, 1986).

Como ressaltamos no capítulo dos pressupostos teóricos, a individuação

não consiste apenas na tarefa de desenvolver o ego e a persona realizada

idealmente na primeira metade da vida. Feito isso, um novo projeto começa a

surgir, visto que o desenvolvimento ideal do ego e da persona deixou um vasto

material psicológico de fora da consciência: a sombra não foi integrada, a anima e

o animus permanecem inconscientes, e dificilmente houve um contato mais direto

com o si-mesmo. Assim, a segunda etapa da individuação, que normalmente

ocorre na segunda metade da vida, envolve a unificação da personalidade total,

de ego e inconsciente. Segundo Stein (2004), “[...] quando o desenvolvimento do

ego atinge o seu clímax na meia-idade, não faz mais sentido continuar

perseguindo os mesmos antigos objetivos” (Stein, 2004, p. 158). Alguns dos

objetivos já alcançados passam a ser questionados, levando a uma reavaliação

do que foi realizado através da atribuição de novos significados.

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Não é por acaso, portanto, que o arrefecimento da carreira de Maria Callas

tenha se acentuado quando a diva se encontrava na casa dos quarenta anos, e

extremamente insatisfeita com a perspectiva de continuar fazendo de sua vida

uma representação, vivendo numa roda-viva, passando de uma cidade a outra, de

um papel a outro, de um triunfo a outro. Conforme assinala Silveira (1997), o

primeiro passo para a individuação é o desvestimento das falsas roupagens da

persona, e parece ter sido este o passo que ela tentou dar quando diminuiu o

alucinante ritmo de trabalho e, aos poucos, foi se tornando cada vez mais reclusa

e alheia à vida social.

Como coloca Hutchinson (1996): “Era como se tivesse dito a si mesma:

‘Primeiro você precisa se tornar a grande Maria Callas. Depois, pode se tornar

uma mulher’” (Hutchinson, 1996, p. 212). Quem era esta mulher, no entanto,

depois de tanto tempo à sombra da artista, era algo que não parecia estar muito

claro, pois “quando é retirada a máscara que o ator usa nas suas relações com o

mundo, aparece uma face desconhecida” (Silveira, 1997, p. 80). Por muito tempo

ainda, desde que os questionamentos começaram a despontar, ela continuou

trabalhando, sem alegria, sem objetivo, decerto porque a persona, quanto mais

adere à pele do ator, mais dolorosa torna a operação psicológica para despi-la

(Silveira, 1997).

Uma pessoa que certamente contribuiu para a intensificação deste

processo que já vinha acontecendo foi Aristóteles Onassis. Maria apaixonou-se

perdidamente pelo armador grego, para o qual praticamente toda a sua libido foi

direcionada, pouco sobrando para sua arte. Os amigos comentavam, e milhares

de musicófilos concordavam: aquele homem fizera com que Callas sacrificasse a

voz, a arte, a carreira. “Não se pode servir a dois senhores” (Hutchinson, 1996, p.

206), constatou, referindo-se à arte e a Onassis, pelo qual optara, pelo menos

temporariamente. “Ela só queria ficar com Onassis, ser sua esposa, sua mulher,

sua amante” (Hutchinson, 1996, p. 206), queixou-se o diretor Zefirelli.

Mas a verdade é que Onassis surgiu no exato momento em que ela

pretendia retirar-se da cena lírica e interromper o incessante ritmo de trabalho

que vinha mantendo desde o tempo de estudante no Conservatório de Atenas. As

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inquietações típicas da metanóia levaram-na a perceber que cantar não era o

único objetivo, o único sentido de sua vida, e com Onassis pôde experienciar um

outro aspecto seu que jazia adormecido: sua sensualidade, o próprio sentido de

Eros. “Eu tinha a sensação de ter ficado muito tempo presa numa gaiola. Assim,

quando conheci Aristo, tão cheio de vida, transformei-me em outra mulher”

(Hutchinson, 1996, p. 199).

O bon vivant serviu de perfeito receptáculo às projeções de sua alma, de

tudo aquilo que até então se mantivera na sombra, clamando por expressão. Seu

erro, porém, consistiu em acreditar que, por haver despertado nela tanta vida,

tantos sentimentos e sensações latentes, apenas Onassis poderia alimentá-los.

De acordo com Hutchinson (1996), seu medo de perdê-lo incluía o temor de

perder a espontaneidade, a alegria e a paixão que ele a levara a descobrir.

Assim, estabeleceu com este homem um relacionamento de dependência,

portando-se como uma mulher passiva, submissa e resignada diante das

inúmeras faltas do parceiro.

Jung (1991b) discorre sobre este aspecto, freqüente nos indivíduos que se

identificam com a persona, explicitando os mecanismos psicológicos que atuam

nesses casos:

A identidade com a persona determina automaticamente uma identidade

inconsciente com a alma, pois, quando o sujeito, o eu, é indistinto da persona,

não tem relação consciente com os processos do inconsciente. Ele é esses

processos, é idêntico a isso. Quem é seu próprio papel exterior também

sucumbirá infalivelmente aos processos internos, isto é, há de contrariar, por

absoluta necessidade, seu papel exterior, ou vai levá-lo ao absurdo. Fica, assim,

excluída qualquer afirmação da linha individual e a vida transcorre em meio a

contradições inevitáveis. Neste caso, a alma é sempre projetada num objeto real

e correspondente, estabelecendo-se com este um relacionamento de

dependência quase absoluta. Todas as reações oriundas desse objeto têm efeito

direto e que toca o íntimo do sujeito. Trata-se, muitas vezes, de vínculos trágicos

(Jung, 1991b, § 761).

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A tragédia só piorou quando Onassis a deixou por Jackeline Kennedy.

Embora publicamente se esforçasse em manter a mesma máscara inabalável de

sempre - “Não se deve sair por aí, exibindo a própria fraqueza. É preciso manter a

dignidade” (Hutchinson, 1996, p. 293) -, em seu íntimo, o sofrimento psíquico era

intenso. Até o final de sua vida, permaneceu fixada no passado, remoendo as

expectativas frustradas, todos os anseios que não puderam ganhar vida: o

matrimônio que não se concretizou, o filho que ele a convencera abortar.

Após o que foi sentido como um golpe em sua alma, cuja projeção na figura

de Onassis relutou em recolher, retomou paulatinamente a vida profissional.

Disse, após o casamento do ex-amante:

Se eu pudesse tomar um remédio que me desse força mental e física,

principalmente física... Eu me contentaria com um ano, um bom ano, para voltar

ao que fui. É o começo... isso é que me apavora, o começo (Hutchinson, 1996, p.

286).

Novos trabalhos, papéis e projetos eram os seus salva-vidas, já que ela

não via nenhuma outra forma de preencher seu tempo. Envolveu-se em algumas

montagens, gravações e até participou de um filme, mas a repercussão já não era

mais a mesma; nada do que fizesse poderia se comparar aos dias gloriosos que

ficariam para sempre enterrados no passado. Se bem que ela teimava em

desenterrá-los, pois continuava identificada com uma persona que, no entanto, já

não podia mais se atualizar. Precisava, mais do que nunca, da vitalidade que lhe

proporcionava a certeza de ser o alvo das atenções, e jamais falava em

aposentar-se, muito menos admitia que já o fizera. Segundo Hutchinson (1996),

Maria “cada vez mais se voltava para o passado, que transfigurava através da

memória seletiva e da imaginação. Vivia no passado e apenas existia no insípido

presente” (Hutchinson, 1996, p. 301).

A biógrafa descreve a rotina que se estabeleceu nos últimos anos de sua

vida:

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Ela nunca se levantava antes do meio-dia, a não ser que fosse absolutamente

necessário. E à noite fazia de tudo para adiar a hora de ir para a cama. [...] quase

uma obsessão era ouvir a si mesma nas muitas gravações piratas, em discos e

fitas, que recebia de admiradores do mundo inteiro. Quando tinha convidados

para o jantar, comumente os fazia ouvir uma dessas gravações [...]. Recostada

no sofá, um dos poodles no colo, ouvia atentamente, absorta, numa espécie de

transe, do qual saía apenas para tecer um comentário para si mesma; sem

esperar resposta, voltava a mergulhar em seu mundo até a fita ou o disco chegar

ao fim. ‘Ela cantava bem, não?’, dizia às vezes [...]. Outras vezes desfiava

reminiscências. Em geral, porém, preferia ouvir suas gravações sozinha,

revivendo os velhos triunfos em toda a sua glória, repassando mentalmente toda

a sua vida (Hutchinson, 1996, p. 300).

Impossibilitada de manter o prestígio por ela mesma, vendo-se obrigada a

reconhecer que já não tinha mais condições de estar à altura de “La Callas”,

agarrou-se com acentuado saudosismo ao que fora no passado, inclusive

referindo-se a si própria em terceira pessoa, como se aquela prodigiosa mulher

capaz de cantar e encantar multidões já não tivesse mais nada que ver com a

mulher desgostosa e solitária que se tornara. Refugiou-se em sua carapaça,

assumindo uma atitude defensiva e mantendo as pessoas à distância. A

desconfiança básica permanecia: “Quanto menos se dá, menos se sofre. Mesmo

quando aparece uma coisa boa, você a recusa, porque tem medo. E perde a

oportunidade. Você se fecha e desconfia de tudo” (Hutchinson, 1996, p. 298).

Segundo a biógrafa, a cada ano Maria se tornava mais desesperada, mais

sozinha, mais amargurada. “Minhas esperanças chegaram aos céus e depois

ruíram. Oh, não. Chega de tantos altos e baixos. Prefiro ficar embaixo o tempo

todo” (Hutchinson, 1996, p. 297). Escreveu ao amigo John Ardoin:

“Oh, John, que vida solitária me espera! Nenhum trabalho que eu venha a fazer

será como no passado. [...] Ando muito desanimada por poder confiar apenas em

mim mesma e em ninguém mais – no passado, no presente e no futuro. Será que

sou uma criatura tão estranha? E por quê?” (Hutchinson, 1996, p. 287).

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Estes relatos todos nos levam à conclusão de que Maria Callas, ao longo

de toda sua vida, nunca pôde integrar com sucesso os diversos aspectos da

personalidade, e, assim, beneficiar-se da conseqüente ampliação de consciência,

que a tornaria um pouco menos refém das movimentações intempestivas do

inconsciente. Permaneceu, a maior parte do tempo, em estado de identidade com

seus complexos, com seu animus negativo e com sua persona, raramente

permitindo à sombra integrar-se à consciência.

Como sabemos, a possibilidade de escolha e relacionamento depende

fundamentalmente da saída desse estado de identidade inconsciente. Enquanto

esta identidade perdurar, não haverá qualquer possibilidade de escolha, já que o

indivíduo fica à mercê dos “caprichos” do inconsciente, incapaz de compreender a

origem de seu sofrimento, das dificuldades internas, da falta de adaptação às

demandas da realidade externa. Como ele não sabe o que o está movimentando,

o estabelecimento de relações interpessoais torna-se uma tarefa bastante difícil, e

o caminho comumente encontrado é o da projeção, como forma destes conteúdos

chegarem à consciência. Na impossibilidade de integrá-los, o freqüente

mecanismo da projeção fazia com que Maria tivesse uma percepção distorcida da

realidade, que lhe parecia exageradamente ameaçadora e da qual sentia

necessidade de se proteger, o que resultou em isolamento da vida social.

Como assinala Silveira (1997), é no confronto entre inconsciente e

consciente, no conflito como na colaboração entre ambos que os diversos

componentes da personalidade amadurecem e se unem em uma síntese, na

realização de um indivíduo específico e inteiro. Portanto, em seu processo de

individuação, Maria Callas não se entregou ao projeto de completar-se, pois para

isso seria necessário que ela aceitasse o fardo de conviver conscientemente com

tendências opostas, irreconciliáveis, inerentes à sua natureza, ao invés de

apegar-se unilateralmente apenas àquilo que julgava apropriado, que lhe dava

prazer ou que simplesmente garantia seu status quo. Só que, com isso, não teve

como escapar das violentas reações compensatórias do inconsciente, que a

fizeram terminar seus dias em uma lamentável condição.

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Referindo-se às pessoas que relutam em entrar em contato com o

sofrimento inerente ao processo de transformação e crescimento do ser humano,

Von Franz (2005) faz um comentário bastante propício: “Muitos adultos

simplesmente cortam essa parte e assim não alcançam a individuação. É apenas

quando a pessoa consegue aceitá-la e o sofrimento que ela acarreta que o

processo de individuação pode se realizar” (Von Franz, 2005, p. 86).

5. A perseveração na figura materna

Como vimos, uma característica recorrente no complexo materno negativo

é a perseveração na figura materna, que consiste em uma fixação na mãe real,

em decorrência de uma relação problemática, mas que tem como pano de fundo

uma imagem arquetípica negativa do materno. Jung (2003a) divide os efeitos

traumáticos da mãe em dois grupos: os que correspondem à qualidade

característica ou atitudes realmente existentes na mãe pessoal, e os que só

aparentemente possuem tais características, já que se trata de projeções de tipo

arquetípico do indivíduo.

É no primeiro grupo que se enquadra Maria Callas, cuja mãe pessoal teve

uma participação fundamental na formação de uma imagem materna negativa,

não se tratando, portanto, apenas de uma predisposição arquetípica. Como

aponta Neumann (1995), existem tanto mães boas quanto más, e se a relação da

criança com a mãe é prejudicada, as conseqüências são neuroses e uma fixação

da relação materna original, sem que o essencial para um desenvolvimento

saudável do indivíduo tenha sido alcançado.

O fato de Evangelia ser um tipo de mãe que está mais próxima da

polaridade “ruim” do que “boa”, contudo, não anula a premissa de Jung de que a

mãe internalizada é sempre resultante do cruzamento entre a mãe pessoal e a

mãe arquetípica. A este respeito, ele ressalta:

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Se for sentida como um obstáculo real, a mãe passa a ser uma perseguidora

vingativa. Naturalmente, não se trata da mãe verdadeira, se bem que também ela

possa ferir seriamente o filho com a ternura mórbida com que o persegue até a

idade adulta, prolongando, assim, além da época apropriada, a atitude infantil

daquele. É antes a imago da mãe, que se transformou numa bruxa. Essa imago

da mãe, contudo, representa o inconsciente, sendo a necessidade de o

inconsciente unir-se com o consciente tão vital quanto a deste último em não

perder contato com aquele (Jung, 1999, § 457).

Não foi com a “ternura mórbida” que Jung usa como exemplo que

Evangelia feriu Maria, mas com indiferença e insuficiência amorosa. De forma

crescente, a filha passou a perceber a mãe como um obstáculo real, como a

personificação de tudo aquilo que ela mais abominava, desprezava e queria ver

longe de si. Como consta em sua biografia, ela manteve até os últimos dias de

sua vida uma forte resistência à mãe, esforçando-se para com esta ter o mínimo

de contato possível.

[...] até sua morte enxergou Evangelia através de uma névoa, vendo-a como uma

figura sombria e quase ameaçadora. Durante toda a vida foi presa dessa

inconsciente rebelião juvenil – obcecada pela mãe, porém até o fim glacial em

seu antagonismo (Hutchinson, 1996, p. 91).

Evangelia, no entanto, sempre encontrava as mais diversas maneiras de

assombrá-la: dando entrevistas a revistas nas quais ultrajava a filha, publicando

um livro sobre Maria em que a acusava de maldade e ingratidão, através de uma

tentativa de suicídio, como forma de chamar sua atenção, nas cartas que escrevia

pedindo-lhe ajuda financeira e queixando-se de sua falta de consideração. A mãe

se transformou em uma perseguidora vingativa, na concepção de Maria – embora

saibamos que o aspecto verdadeiramente perturbador desta “perseguição”

residia, provavelmente, na terrível imagem materna arquetípica que se formara.

“Você precisa me ajudar a enfiar um pingo de bom senso naquela cabeça

oca, a fazê-la entender sua posição e a calar sua linda boca. Parece câncer.

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Nunca vou me livrar dela e de suas conseqüências” (Hutchinson, 1996, p. 242),

explodiu numa carta ao padrinho, indignada com uma entrevista que a mãe

concedera a uma revista, na qual caluniava a filha. “Nunca hei de me reconciliar

com minha mãe e tenho bons motivos para isso. Ela me fez muito mal, e os laços

de sangue não são tão fortes. Não me vejo obrigada a representar e dizer

‘mãezinha querida’. Não sei fingir” (Hutchinson, 1996, p. 309), desabafou.

Por mais que expressasse o desejo intenso de livrar-se da mãe e o

incômodo diante da constatação de que lhe seria impossível fazê-lo,

inconscientemente era como se estivesse sempre à espera da “bênção” materna,

aguardando o momento em que esta reconheceria seu erro na desvalorização.

Retomando as considerações de Kast (1997b) e Jung (2003a), mulheres com

esse tipo de complexo materno originalmente negativo freqüentemente

permanecem muito ligadas à mãe, deixam-se tiranizar, jogam jogos recíprocos de

poder, sempre na esperança de um dia finalmente conseguirem a vitória sobre a

mãe, mesmo que tardiamente. Os êxitos posteriormente alcançados na vida

adulta se revestem de um significado de resposta à mãe, como forma de provar

seu valor não reconhecido por ela. Apesar da fixação, elas guardam uma grande

distância da mãe pessoal, contra a supremacia da qual cria-se uma defesa que

prevalece sobre todo o resto.

Tudo o que Evangelia sempre quis foi ver a filha em posição de destaque.

Sua obsessão por dinheiro e fama lhe ditara a maneira de criar as filhas, e agora

que Maria se transformara em “La Callas”, esta se empenhava em demonstrar

que a mãe realizara todos os seus sonhos, mas não tinha nenhum poder sobre

ela. Quando, anos mais tarde, Evangelia passava por dificuldades financeiras e

escreveu à filha pedindo-lhe ajuda, esta respondeu: “Não venha nos aborrecer

com seus problemas. Eu trabalho para ganhar meu dinheiro e você é

suficientemente jovem para trabalhar também. Se não consegue ganhar o

bastante para viver você pode se jogar da janela ou se afogar” (Hutchinson, 1996,

p. 153). Estas palavras de alto impacto mostram que Maria ainda guardava o mais

profundo ressentimento pela mãe.

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Segundo Hutchinson (1996), considerava-se uma vítima de Evangelia e da

infância. “Nunca a perdoarei por ter me privado de minha infância. Na época em

que eu deveria apenas brincar e crescer, eu estava cantando ou tratando de

ganhar dinheiro. O que fiz por eles em geral foi bom, e o que eles fizeram por mim

em geral foi péssimo”, declarou. E, em 1950, escreveu ao padrinho: “Quanto a

minha mãe, dei-lhe tudo que podia neste ano. Afinal, já está na hora de cada um

cuidar da própria vida como cuido da minha” (Hutchinson, 1996, p. 154).

Como revela Kast (1997b), participam também do complexo materno, além

da mãe pessoal, outras pessoas que cuidaram da criança, como os avós, os

irmãos, e mesmo o aspecto maternal do pai e das figuras masculinas. De fato,

muitos dos desabafos de Maria trazem um ressentimento não só em relação à

mãe, mas também ao pai e à irmã, os quais igualmente acusava de indiferença e

interesse dissimulado. Reportando-se a uma carta que recebera da irmã,

escreveu ao amigo John Ardoin:

Mas, se você tem uma família que só sabe lhe dar pontapés, feito louca. [...] E ela

vem me dizer que mamãe está ficando velha, que papai está ficando velho. Sabe

como é? Como você se sentiria? Eu seria capaz de estrangular aquela menina.

Menina... uma mulher com mais de cinqüenta anos! Aí você me diz que eles

estão envelhecendo. Claro que estão! Eu também estou, todo mundo está

envelhecendo. E o que é que nós temos? Quatro casas separadas: a minha e as

três deles. Miseravelmente sozinha. Pelo menos realizei alguma coisa verdadeira.

Mas por que devia realizá-la sozinha? E por que tenho de ficar sozinha em casa

agora, quando deveríamos, todos os quatro, nos ajudar mutuamente? [...] Nem

em pensamento! Aconteceu uma revolução em Paris. Pensa que meus pais

telefonaram? Que minha irmã telefonou? Que nada! Meus amigos ligaram. Meus

admiradores, que nem sequer me conhecem, ligaram de Londres, da Itália. Minha

ex-empregada, minha ex-cozinheira ligaram. Isso faz a gente pensar, sabe...

(Hutchinson, 1996, p. 309).

Nunca me dizem – Maria, como vai? Precisa de alguma coisa? Está doente?

Todo mundo se preocupa comigo mas elas nunca ligam a mínima. Isso não é

novidade, mas ainda não me acostumei. Só me escrevem quando estão

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precisando de dinheiro. Tudo bem – desculpe meu desabafo, mas é uma pena

não sermos uma família unida – todos nós seríamos menos solitários

(Hutchinson, 1996, p. 311).

De acordo com Hutchinson (1996), Maria tinha verdadeiro horror de ser

usada e, ante a possibilidade – real ou imaginária – de que isso acontecesse,

partia para o ataque. Em seu relato, é perceptível sua frustração diante da

impossibilidade de ver a família unida por interesses verdadeiros, e não apenas

por necessidades financeiras, em função das quais todos recorriam a ela.

Von Franz (2005) tece um comentário interessante a respeito das pessoas

que desde cedo têm de se haver com um ambiente familiar pouco afetivo que não

lhes propicia um real sentimento de pertencimento e de valor próprio. Ela ressalta

as conseqüências deletérias de uma tal vivência:

Há pessoas que se desiludem cedo na vida; você vê isso quando tem que

analisar órfãos negligenciados de camadas altas e baixas da sociedade, aqueles

que hoje são chamados de “crianças negligenciadas”, o que significa que são

tanto crianças pobres, criadas na favela e que tiveram destinos e famílias

horríveis, ou crianças ricas que tiveram todas as carências, exceto de dinheiro –

pais divorciados, um péssimo ambiente em casa e falta de afeto, que é tão vital

para as crianças. Tais pessoas muito freqüentemente crescem mais rapidamente

que outras porque se tornam bastante realistas, desiludidas, auto-suficientes e

independentes desde cedo. As vicissitudes da vida as forçaram a isso, mas você

pode facilmente dizer por suas expressões falsamente amadurecidas, que

alguma coisa andou mal com elas. Elas foram forçadas a abandonar a infância e

a cair na realidade.

Se você analisar essas pessoas, descobrirá que elas não elaboraram o problema

das ilusões infantis mas apenas o reprimiram. Têm certeza que seu desejo de

amor e seus ideais nunca serão satisfeitos. Crêem que isso está fora de

cogitação. Mas isso é uma convicção do ego que não leva a nada, e uma análise

mais profunda mostra que elas permanecem completamente mergulhadas em

suas ilusões infantis: o desejo de ter uma mãe que as amasse ou de felicidade

permanece o mesmo, encontra-se apenas reprimido. Elas são realmente muito

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menos adultas do que as outras, e o problema foi apenas posto de lado. O

indivíduo tem então a terrível tarefa de reviver essas ilusões porque sua vida ali

parou. Portanto, a pessoa acaba regredindo a essas lembranças até que alguém

tente puxá-la para fora adequadamente. Esse é o problema das pessoas que

dizem não conseguir amar nem confiar em ninguém. Nessas condições, a vida

fica sem sentido (VON FRANZ, 2005, p. 48).

Este processo descrito por Von Franz (2005) é bastante semelhante ao

vivido por Maria, que desenvolveu cedo uma independência e uma autonomia

forçadas, práticas para a vida, e esta capacidade para controlar sua vida

serviu-lhe como eficiente estratégia de sobrevivência. Paralelamente a tal

desenvolvimento precoce, entretanto, suas ilusões infantis não puderam ser

elaboradas, fazendo com que ela continuasse, internamente, ansiando pela

felicidade de uma família que a amasse. Esta fixação levava a uma regressão das

lembranças dolorosas das experiências familiares, que sempre se reatualizavam,

gerando sofrimento. “Na realidade nunca tive pai nem mãe” (Hutchinson, 1996, p.

238), lamentava-se.

É verdade, contudo, que, em sua adolescência, Maria encontrou na tutora

Elvira de Hidalgo uma substituta parcial para a mãe ineficaz. Declarou que, na

época em que estudava no conservatório, “ficar em casa era impensável; eu não

saberia o que fazer lá” (Hutchinson, 1996, p. 37).

Se “casa” é o lugar onde existe amor, então Maria não tinha (e nunca teve) uma

casa. Tinha um “lá”, e sua estreita relação com De Hidalgo tornava mais fácil

ausentar-se de “lá” por períodos cada vez mais longos. A seus olhos, no entanto,

Elvira era mais que uma mãe. Com seu conhecimento mágico de mundos

inteiramente novos da música, com seus dotes vocais e com sua aura de glória,

ela se parecia mais com uma fada madrinha (Hutchinson, 1996, p. 37).

Graças à existência desta “fada madrinha”, Maria pôde experienciar

minimamente um modelo materno positivo, capaz de propiciar-lhe o sentimento de

valorização pessoal e o desenvolvimento de suas potencialidades, de uma forma

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delicada e acolhedora, respeitando os limites e a individualidade da aluna. Sob

muitos aspectos, De Hidalgo foi além de seu papel de tutora, como demonstra

Hutchinson (1996):

De Hidalgo despertou-lhe a consciência da grandeza e da grandiosidade de sua

arte. Fez o patinho feio vislumbrar pela primeira vez o cisne em que haveria de se

transformar. E foi além: não só com seus ensinamentos, mas também com sua

compreensão, seu estímulo e seu amor, estabeleceu uma ponte entre essa

imagem e a realidade, que pareciam infinitamente distantes uma da outra.

Ensinou Maria a se vestir, a deslocar-se pelo palco, a andar pela rua, a

permanecer parada com toda a sua estatura interior (Hutchinson, 1996, p. 38).

E, quanto mais Maria idealizava a mestra, tanto mais transformava sua

mãe na “madrasta malvada”. De acordo com a biógrafa,

Quanto mais se afastava da mãe e da irmã, mais ela se apegava a De Hidalgo e

mais raiva sentia em relação à família. [...] ela encontrava mais dificuldade em

reprimir o ressentimento em relação à mãe – ressentimento que se devia a tudo

que Evangelia era, a todo o amor que lhe negara e a todo o amor que

incondicionalmente dedicara a Jackie. Nessa época, Jackie já havia aprendido a

aceitar com total naturalidade as atenções maternas e sua condição de filha

favorita, se não mimada. Maria vivia num estado de combustão quase constante.

Aprendera a investir as emoções e os impulsos no trabalho, porém achava cada

vez mais difícil fazer a mesma coisa em casa. Sentia-se mais sozinha do que

nunca, e a altivez se tornara seu único escudo (Hutchinson, 1996, p. 40).

Nos primeiros anos de sua carreira, permanecia ainda um laço de

dependência que unia Maria à mãe, e ele era tão forte que a levava a crer que

nada de importante poderia acontecer sem a presença materna. Evangelia

sempre fora sua maior colaboradora e também sua adversária mais implacável.

Quando da ausência da mãe, Maria sentia falta da colaboradora, pois sua força

interior se encontrava ainda projetada na força materna, e a confiança que a mãe

depositava nela assumia a importância de uma necessidade.

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Houve, inclusive, um período em que ela teve de conviver mais com o pai,

e este, com sua postura normalmente apática e calada, nutrindo interesses

limitados pela filha, levava-a a suspirar pela ambição da mãe. Havia, por um lado,

um fascínio da filha pela mãe que, no entanto, nunca se tornou uma identificação.

Por outro lado, criou-se uma resistência contra o seu poder que intensificou o

impulso para distanciar-se ao máximo do modelo materno, o qual se tornou, na

visão da filha, sinônimo de fracasso, frustração e futilidade.

Mesmo no período em que tinham uma convivência mais intensa, havia

pouca intimidade entre mãe e filha. Evangelia declarou: “Maria era formalmente

amável, às vezes até ostensivamente, como se estivesse lidando com um parente

distante, talvez um primo que conhecesse de longa data e ao qual dedicasse uma

vaga estima” (Hutchinson, 1996, p. 85). Hutchinson (1996) revela que, naquela

época, a única intimidade que Evangelia tinha com a filha se resumia a lavar suas

roupas íntimas e a massageá-la com álcool quando ela voltava para o hotel e caía

na cama depois de um espetáculo mais exaustivo.

Segundo Kast (1997b), o desligamento da adolescente de sua mãe deveria

ocorrer, no caso ideal, de tal forma que lhe fosse possível uma nova relação, na

qual de certo modo tivesse sido trabalhado o elemento complexado da relação

infantil. Por isso, de acordo com a autora, um desligamento é realmente

necessário, porém não com o objetivo da separação definitiva, mas com a idéia

caracterizada pelo objetivo de se poder ingressar em uma forma de relação

reciprocamente mais apurada. Pode-se dizer que Maria e Evangelia não foram

bem-sucedidas nesta empreitada; mal puderam evitar a separação definitiva,

muito menos estabelecer uma relação de reciprocidade e alteridade.

Em uma relação mãe-filha, afirma Whitmont (2006), é sempre criado um

campo de força dinâmico que abrange tanto uma quanto a outra da mesma forma

e simultaneamente. Ambas estão contidas neste campo, decisivamente ligadas a

ele e ligadas entre si, sem o saber ou escolher. No entanto, qualquer

relacionamento real entre elas dependeria de uma consciência daquilo que as

envolve, pois, sem esta consciência, elas ficam ao bel prazer do campo psíquico,

sem nunca saber o que as domina. Logo, na visão do autor, o relacionamento e a

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liberdade de escolha sempre dependem da conscientização do poder do “campo

de força” ou do poder arquetípico dentro do qual elas se movem – e não passam

de ilusão sem que haja essa conscientização (Whitmont, 2006).

Podemos inferir que este campo de força não conscientizado interfere

diretamente no livre-arbítrio dos indivíduos que estão nele contidos. E o

livre-arbítrio é, segundo Von Franz (2005), um sentimento subjetivo

tremendamente importante para que o ego se sinta minimamente capaz de

“comandar” sua vida, pelo menos até certo ponto. Ele é fundamental para a

disposição do ego. A autora demonstra os entrelaçamentos existentes entre

livre-arbítrio e complexo materno, cuja estratégia é manter o ego aprisionado e

alienado de sua vontade própria, interferindo, portanto, diretamente em sua

sensação de livre-arbítrio:

Se você não consegue acreditar no livre arbítrio e, portanto, na livre iniciativa do

ego, fica completamente deficiente, paralisado. Pode voltar-se para o passado e

estudar o inconsciente cada vez mais profundamente, mas nunca sairá dele. E é

essa a estratégia da aranha do complexo materno. É assim que a bruxa tenta

derrotar o herói [...] (Von Franz, 2005, p. 192).

Aparentemente, não só Maria permaneceu enredada na teia do complexo

materno, mas também Evangelia, fazendo parte do campo de interação psíquica

do qual ambas se tornaram reféns pela falta de conscientização, ficou fixada na

filha, eternamente frustrada pela falta de correspondência desta às suas

investidas de aproximação, sentindo-se injustiçada, pois se considerava a maior

responsável pelo estrondoso sucesso da filha e não via um reconhecimento de

“sua” proeza.

Vingava-se por isso. Quando Maria deixou o marido Meneghini por

Onassis, Evangelia foi a um programa de televisão sobre mães de filhas famosas.

“Agora minha filha não precisa mais dele, porém o coração me diz que nunca será

feliz. Mulheres como Maria não podem saber o que é o verdadeiro amor”

(Hutchinson, 1996, p 201), declarou, de forma contraditória. Ela não perdia a

chance de extravasar sua raiva: “Fui a primeira vítima de Maria. Agora é a vez de

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Meneghini. Onassis será a próxima”. E acrescentou: “Maria vai se casar com

Onassis levada unicamente por sua ambição sem limites” (Hutchinson, 1996, p.

202), identificando-se inconscientemente com a filha. Estas atitudes de Evangelia

só contribuíam para que aumentasse a convicção de Maria de que era uma vítima

da mãe, e a repelisse ainda mais.

Até o fim, seu relacionamento com a mãe ocupou o centro conturbado de

sua vida. Este é, portanto, um exemplo emblemático de complexo materno

originalmente negativo e seus desdobramentos extremos, quais sejam, a criação

de uma forte resistência contra a mãe, que, não obstante, continua exercendo um

grande poder sobre a filha, o desligamento como separação definitiva e a

dificuldade de reconciliação entre ambas, a supremacia de uma imago materna

terrível, a perseguir a filha eternamente e a atuar inconscientemente em diversos

âmbitos de sua vida.

Como assinala Penna (2003), pelo mecanismo da auto-regulação que rege

a psique, um conflito não elaborado tende a reconstelar a tensão entre os

opostos, repetidamente, em busca de integração das polaridades. Desta forma,

eventos repetitivos são sinais importantes da presença de um símbolo que

“precisa” ser compreendido, a fim de ser integrado à consciência (Penna, 2003).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O exemplo da vida de Maria Callas nos mostra em que medida uma relação

primal em que não há suficiente envolvimento afetivo por parte da mãe, bem como

um ambiente pouco acolhedor, percebido como hostil pela criança, afetam o

desenvolvimento de sua personalidade, contribuindo para o estabelecimento de

uma auto-imagem negativa e para que mecanismos compensatórios sejam postos

em ação, obedecendo ao sistema de auto-regulação que rege a psique.

Através deste estudo, foi possível estabelecer relações entre estes fatores

determinantes e alguns dos aspectos psíquicos da cantora apreendidos de seus

dados biográficos. Cumpre salientar, mais uma vez, que o material biográfico

como objeto de estudo não permite o acesso direto à psique daquele que se quer

conhecer, por menor que seja a interferência do olhar do biógrafo. Este trabalho

consistiu, portanto, em um exercício teórico de intersecção entre os conceitos da

psicologia analítica e o que nos é dado conhecer sobre a vida de Maria Callas,

através dos dados disponíveis em sua biografia que não estão necessariamente

isentos de parcialidade.

Igualmente importante é não perdermos de vista que a cantora se

enquadrava em uma “categoria” especial de ser humano, na concepção de Jung

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(1991a): a dos artistas. Como vimos, estes possuem uma maior predisposição a

conflitos psíquicos, pois o instinto criativo irrompe em sua consciência tal qual um

complexo autônomo e caprichoso, subjugando seu lado humano em detrimento da

criação. Analisar esta população é uma tarefa sempre arriscada, pois se corre o

risco de reduzir a grandiosidade das manifestações artísticas a condicionamentos

externos e pessoais do indivíduo criador.

Deste modo, é possível que muito do enfoque que demos na análise se

revele coerente a um indivíduo “normal”, que não sofre tanto com as pressões do

inconsciente quanto os artistas. Provavelmente, o peso que o mundo arquetípico

exercia sobre Callas tenha sido realmente muito mais determinante de todas as

suas dificuldades do que fomos capazes de demonstrar. Nos ativemos aos

aspectos mais diretamente acessíveis de sua constituição psíquica, afinal, uma

tentativa de análise no sentido do inconsciente coletivo, fonte primordial da

criação, consistiria em um passo por demais pretensioso e tratar-se-ia, em boa

parte, de mera especulação.

Um outro aspecto que foi pouco explorado, mas que gostaríamos de

ressaltar aqui é a função que o artista desempenha em sua comunidade. Estando

o indivíduo criativo mais em contato com o mundo arquetípico, ele se torna o

instrumento dos arquétipos que são constelados no inconsciente da coletividade

e que para ela são absolutamente necessários. Neste sentido, quem constrói o

“mito” não é apenas o próprio indivíduo que veste sua persona, com seu talento e

esforço pessoais, mas a coletividade também tem um papel crucial, ao fornecer

os subsídios para que esta personagem aconteça, para que venha à tona e se

torne o porta-voz das necessidades inconscientes latentes na cultura. Deste

modo, seria negligenciar o essencial pretender reduzir ao domínio pessoal a obra

de arte que se alicerça na alma da humanidade (Jung, 1991a).

Como considera Jung (1991a), devemos indagar como uma determinada

manifestação artística se relaciona com a consciência da época, e se essa

relação também não deve ser encarada como uma compensação. Afinal, todas as

épocas têm sua unilateralidade, suas restrições, preconceitos e males psíquicos,

necessitando uma compensação. O indivíduo criador é capaz de exprimir o

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inexprimível de um contexto sócio-histórico-cultural, o que a necessidade

negligenciada dos indivíduos nele inseridos está almejando. “Sempre que o

inconsciente coletivo se encarna na vivência e se casa com a consciência da

época, ocorre um ato criador que concerne a toda a época” (Jung, 1991a, § 153).

Portanto, compreendida de forma mais profunda, a obra de arte é uma mensagem

dirigida a todos os seus contemporâneos.

Assim, uma questão que permanece é: quais seriam os conteúdos

arquetípicos da coletividade que se encontravam inconscientes, e que ganharam

visibilidade através do “arauto” Maria Callas? Esta é uma questão cuja tentativa

de resolução pode revelar-se também uma armadilha. A hipótese que podemos

levantar é de que se encontravam em livre curso na arte dramática desta artista

as emoções reprimidas do público moderno, expressando em tons intensos o

conflito que se trava entre nosso eu racional, respeitável, convencional, “normal”

e o eu passional, primitivo e sombrio. Trocando em miúdos, ela se fez de

instrumento capaz de externalizar a tensão existente entre a consciência e o

inconsciente da coletividade, e de compensar, ao menos parcialmente, uma

unilateralidade da consciência coletiva que se expressava através da supremacia

da racionalidade, do intelecto, do comedimento da expressão emocional.

Curiosamente, como pudemos averiguar, esta foi uma questão de cunho

pessoal especialmente importante em sua vida, que ela mesma não foi capaz de

equacionar adequadamente em seu processo de individuação. Deste modo, não

teve outra escolha senão submeter-se às conseqüências do eterno duelo entre as

polaridades consciente e inconsciente, persona e sombra, inflação positiva e

deflação.

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Imagem:

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