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TORNANDO-SE “DOUTOR”: O LUGAR E O PAPEL DAS INSIGNIAS NAS TRADIÇÕES ACADÊMICAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Marcia Terezinha Jerônimo Oliveira Cruz Universidade Federal de Sergipe i [email protected] Palavras-Chave: Tradições Acadêmicas. Rituais. Universidade de Coimbra. Introdução A Universidade de Coimbra, seja do ponto de vista institucional, seja do ponto de vista acadêmico é tema amplamente estudado por historiadores, educadores, sociólogos, antropólogos e etnólogos, a partir das mais diferentes abordagens ii . No que diz respeito aos rituais universitários, destacam-se as investigações realizadas por Maria Eduarda Cruzeiro (1990) que analisou o transcurso da vida estudantil coimbrã, com foco na Faculdade de Direito e, por Torgal (1993), que investigou detalhadamente os rituais de Doutoramento. Estes estudos discutiram tradições e rituais seculares em suas expressões no final dos séculos XIX e XX, respectivamente. Desse modo, a questão central do presente trabalho indaga acerca da utilização de insígnias acadêmicas e doutorais na Universidade de Coimbra na atualidade, tendo por objetivo refletir acerca do lugar e do papel que estas ocupam nas tradições coimbrãs. O “tornar-se Doutor” indica dois diferentes momentos e duas distintas circunstâncias no interior de uma instituição universitária portuguesa. A primeira delas refere-se ao processo de inclusão no grupo, por intermédio de rituais de separação e de agregação do recém- ingresso na academia. O segundo indica o ápice da formação acadêmica que pode assumir tanto a feição de um ritual de “investidura” como a de “consagração”. Dada a multiplicidade de rituais e de símbolos que estão abarcados pela cultura acadêmica/universitária em Coimbra, nos quais a utilização de insígnias se faz obrigatória, foi recortada, para fins de análise no que se refere à vida acadêmica, a Semana da Queima das Fitas e, dentro desta, o ato da Queima das Fitas. No que concerne aos rituais institucionais, foi selecionada a “Imposição de Insignias”. Para tanto, além da consulta a obras especializadas sobre a História e os rituais acadêmicos na Universidade de Coimbra, também foi observado como na prática esses rituais

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TORNANDO-SE “DOUTOR”: O LUGAR E O PAPEL DAS INSIGNIAS NAS

TRADIÇÕES ACADÊMICAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA.

Marcia Terezinha Jerônimo Oliveira Cruz

Universidade Federal de Sergipei

[email protected]

Palavras-Chave: Tradições Acadêmicas. Rituais. Universidade de Coimbra.

Introdução

A Universidade de Coimbra, seja do ponto de vista institucional, seja do ponto de vista

acadêmico é tema amplamente estudado por historiadores, educadores, sociólogos,

antropólogos e etnólogos, a partir das mais diferentes abordagensii. No que diz respeito aos

rituais universitários, destacam-se as investigações realizadas por Maria Eduarda Cruzeiro

(1990) que analisou o transcurso da vida estudantil coimbrã, com foco na Faculdade de

Direito e, por Torgal (1993), que investigou detalhadamente os rituais de Doutoramento.

Estes estudos discutiram tradições e rituais seculares em suas expressões no final dos

séculos XIX e XX, respectivamente. Desse modo, a questão central do presente trabalho

indaga acerca da utilização de insígnias acadêmicas e doutorais na Universidade de Coimbra

na atualidade, tendo por objetivo refletir acerca do lugar e do papel que estas ocupam nas

tradições coimbrãs.

O “tornar-se Doutor” indica dois diferentes momentos e duas distintas circunstâncias

no interior de uma instituição universitária portuguesa. A primeira delas refere-se ao processo

de inclusão no grupo, por intermédio de rituais de separação e de agregação do recém-

ingresso na academia. O segundo indica o ápice da formação acadêmica que pode assumir

tanto a feição de um ritual de “investidura” como a de “consagração”.

Dada a multiplicidade de rituais e de símbolos que estão abarcados pela cultura

acadêmica/universitária em Coimbra, nos quais a utilização de insígnias se faz obrigatória, foi

recortada, para fins de análise no que se refere à vida acadêmica, a Semana da Queima das

Fitas e, dentro desta, o ato da Queima das Fitas. No que concerne aos rituais institucionais, foi

selecionada a “Imposição de Insignias”.

Para tanto, além da consulta a obras especializadas sobre a História e os rituais

acadêmicos na Universidade de Coimbra, também foi observado como na prática esses rituais

são realizados, com o intuito de perceber suas peculiaridades e a ação performativa dos

agentes envolvidos. O registro etnográfico, que se insere nas novas possibilidades

metodológicas decorrentes do alargamento do campo de pesquisa da História da Educação,

foi definido como o recurso mais apropriado e a observação realizada entre os meses de maio

a julho de 2012.

O diário de campo desta pesquisa foi constituído a partir da coleta de imagens dos atos

rituais no que foi possível ser acompanhado, assim como, pela própria sequência de

atos/fatos/condições transversais à realização dos rituais, a exemplo do funcionamento do

comércio, da decoração das vitrines de lojas, das condições climáticas, dentre outros.

Alguns estudantes e profissionais responsáveis pelos rituais foram entrevistados com o

objetivo não só de caracterizar o modelo organizativo e a características assumidas pelos

rituais como também, colher como necessário contraponto as suas representações acerca das

práticas na atualidade.

A observação priorizou o acompanhamento da sequência dos atos do ritual; da

participação de professores, cursos, funcionários, autoridades e familiares; da utilização de

traje acadêmicoiii

e outros adereços inerentes à solenidade; dos espaços utilizados e dos

símbolos presentes e, finalmente, das sociabilidades vivenciadas.

Por fim, foram utilizadas imagens relativas a um Doutoramento Honoris Causa cedidas

pelo Cerimonial da Universidade de Coimbra, como modo de expressar com maio clareza

momentos essenciais da sequencia ritual.

2.1 O estudo dos rituais universitários

Como afirma Torgal (1993) “o rito constitui-se em uma regra ou conjunto de regras que

se praticam em qualquer cerimônia e a cerimônia é, pois, a “solenidade ritual” que exterioriza

um determinado ato.” (1993, p. 178).

Ainda que não se saiba ao certo quando começaram a ser adotados pelas Corporações

de Ofício e depois nas Universidades Medievais é certo que os rituais no âmbito académico /

universitário encontravam-se plenamente estruturados, tipificados e desenvolvidos na Idade

Moderna. Em Salamanca, por exemplo, havia ritos e símbolos correspondentes aos diversos

tipos de grau que um estudante salmantino pudesse ser investido: bacharel, licenciado, doutor

ou mestre, e que se relacionava também com o curso frequentado.

Na Universidade de Coimbra, fundada em 1290, as prescrições de um traje específico

para doutorandos e bedéis, para a realização da cerimônia de doutoramento já aparecem desde

1431, nos Estatutos da Universidade de Coimbra (Livro Verde) cuja sequência ritual também

se encontrava estabelecida.

O rito é uma “ação simbólica” que, segundo Torgal (1993), possui de forma geral e,

em especial, em sua adjetivação acadêmica, algumas características intrínsecas das quais se

podem destacar:

1. Possuir significado representativo.

2. Supor certo dogmatismo, fé, crença, por parte dos participantes.

3. Implicar na repetição de fórmulas em situações idênticas.

4. Expressar-se por meio de códigos e sinais.

5. Não relacionar a eficácia das cerimônias ao conhecimento da respectiva

simbologia.

6. Conceder somente aos iniciados o poder do completo entendimento do

significado dos rituais.

7. Justificar-se não de forma racional, mas, como herança de tradições

indefiníveis e não caracterizadas no espaço e no tempo.

8. Consagrar pessoas, grupos sociais e instituições.

9. Pressupor a ideia de poder, em sua dimensão simbólica.

Constituem-se assim, segundo Tambiah, S. (apud Peirano, M.G.S, 2000), em um

sistema cultural de comunicação simbólica formado por sequências ordenadas e padronizadas

de palavras e atos, em geral expresso por múltiplos meios. Estas sequências são caracterizadas

por graus de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e

redundância (repetição), e o conjunto pode-se denominar de Ação ritual – Ação performativa.

Convém ressaltar, todavia, como acentua Bourdieu, P. (1982), que o ritual não realiza

apenas uma passagem, mas, institui, sanciona, santifica a nova ordem estabelecida, possui um

efeito de consignação estatutária, encoraja o promovido a viver de acordo com as expectativas

sociais ligadas à sua posição. Estabelece uma diferença. Para Van Gennep, A. (1981) a

produção da diferença e da distinção socialmente relevante ocorre por intermédio das

sequências rituais compostas por ritos preliminares (separação), ritos liminares (agregação) e

ritos pós-liminares (desagregação).

A diferença socialmente relevante apontada por Bourdieu (1982) pode ser verificada

nas declarações da estudante de Engenharia Alimentar da Universidade de Coimbra, Laura

Melo, ao mencionar a importância do uso do traje acadêmico e de como este distingue

socialmente os estudantes coninbricences, ou ainda, como o uso da capa em favor de um

terceiro pode indicar esse mesmo sinal de distinção para o agraciado ou ser um meio de

expressar o poder simbólico exercido por essa pessoa, geralmente uma personalidade pública.

“Aqui em Coimbra, maioritariamente, os estudantes tem o traje e usam esse

traje. É uma questão muitas das vezes de honra e de orgulho, a primeira vez

que as pessoas..., que nós estudantes pomos o traje é quase como quando se

vão casar. Os pais a verem-nos usar o traje pela primeira vez ficam orgulhos

porque é uma sensação, é uma batalha, é uma batalha que vai iniciar-se, mas,

pelo menos conseguimos chegar lá, até a Universidade, é isso... Esse é o

símbolo: Os “Capas Negras”, o ver que estamos também...., que

pertencemos todos àquele grupo, muitos de nós crescemos e, principalmente

eu, por exemplo, sou natural de Coimbra, crescemos todos a ver os

estudantes, então, quando chegamos também a essa etapa pensamos:

“Conseguimos e chegamos aqui”. (Melo, 2012)

[...] há duas formas de honrarmos alguém com a Capa. Uma delas é

colocarmos a nossa capa nos ombros de alguém e, uma honra assim, mais

forte, é colocarmos a capa no chão para alguém passar por cima dela, por

exemplo, quando recebemos os presidentes, em festas oficiais, o Presidente

da República, o Papa, etc, [...]

Na imagem a seguir, capas são colocadas ao chão para a passagem do último

Presidente da República brasileiro a ter sido agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa

pela Universidade de Coimbra.

Imagem I – Capas ao chão

O Presidente Luís Inácio da Silva é honrado em frente à Porta Férrea, símbolo da entrada na

Universidade de Coimbra.

Fonte: Cerimonial da Reitoria da Universidade de Coimbra, 2011.

A (s) tradição (ões) consolida (m) socialmente determinados aspectos da cultura. As

tradições de que estamos a tratar estão circunscritas ao entendimento de Burke, P. (2007), que

opera com uma visão ampla a partir da qual estas «…abrangem a cultura oral, as práticas (o

saber prático, as habilidades técnicas) e a cultura material (...) Estudando-se as tradições, é

também preciso dar respostas abrangentes a perguntas como: Quem transmite? Ou como? A

chamada ‘organização social da tradição… » (p. 15-17).

Ainda assim, as tradições não são imutáveis. Essa relatividade e adaptabilidade foi

proposta por Hobsbawn, E. (1997), ao expressar o conceito de tradição inventada, entendida

como,

«…um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou

abertamente aceites; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam

inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o

que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.

Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um

passado histórico apropriado…». (p. 9)

Ao estabelecer coesão social, legitimar instituições, status ou relação de autoridades e

inculcar padrões de comportamento social, a tradição inventada e a sua reinvenção parecem

conceder longevidade aos ritos e símbolos sociais, o que possibilita uma chave de

compreensão quanto à capacidade de resistência das tradições da Universidade de Coimbra às

mudanças.

2.2 Algumas Insígnias Acadêmicas da Universidade de Coimbra

Para os estudantes da Universidade de Coimbra, o final do século XIX e início do

século XX foi marcado por comemorações e ações de protesto, dentre elas, o Centenário da

Sebentaiv ocorrido nos dias 28, 29 e 30 de maio de 1898, o Enterro do Grau

v ocorrido em

1905 e a Greve Acadêmicavi de 1907. Esse movimento estará presente também no Luto

Académicovii

decretado no final da década de 1960, assim como no retorno, na década de

1980, à vivência das tradições acadêmicas.

Foi nos anos 20 do século XX que a Queima das Fitas – ritual que indica a passagem

simbólica de um estudante do terceiro para o quarto ano e que a partir de então poderia

utilizar a pasta com as fitas nas cores do curso – deixou de ser um ritual apenas no âmbito da

Altaviii

a região geográfica mais elevada de Coimbra onde se situa o Paço das Escolas e lugar

por excelência onde moravam os estudantes coimbrãos e circunscrito à comunidade

académica para se transformar em um festejo que passou a reunir toda a comunidade coimbrã.

No mapa a seguir, formulado por Carrausse (s.d), é possível visualizar a distribuição

espacial dos Polos onde estão situados os diversos cursos da Universidade de Coimbra, com

destaque (na cor lilás) para a região onde ocorrem os rituais acadêmicos públicos no século

XXI, podendo-se observar que estes rituais são praticados na região central da cidade em uma

fusão com a própria origem do lugar, de seus prédios históricos, dos centros de poder

(Universidade de Coimbra Polo 1).

Imagem II - Circunscrição das práticas rituais públicas em Coimbra

Fonte: Carrausse (s.d.)

Segundo Cruzeiro, M. E. (1990, p.125-126) a Queima das Fitas trata-se de um ritual

hibrido que se encontra na fase de agregação se considerada a trajetória do curso em sua

integralidade, porém, atua como um rito preliminar para o ingresso no quarto ano.

Vinculado à Praxe,ix

a Queima das Fitas é realizada e conduzida pela Associação

Académica da Universidade de Coimbrax e se constitui no ato de incendiar (ou chamuscar) na

brasa incandescente colocada em um recipiente em forma de pinico (um dos símbolos da

praxe), a ponta de um cordão de algodão trançado medindo 2 e ½ centímetros de largura por

aproximadamente 1 metro de cumprimento, denominado de grelo, na cor do curso do

estudante, em ato realizado atualmente no Largo da Sé Nova, na manhã do Cortejo dos

Fitados.

É importante ressaltar que a Queima das Fitas, ao estar vinculada à Praxe, expressa a

hierarquização imposta aos participantes da Praxe que, a partir da lógica de funcionamento do

grupo, galga novas posições a partir de rituais de separação e de consagração pública e diante

do grupo, ao longo do estirão formativo. Somente podem queimar a fita (grelo) os estudantes

que no ano anterior, durante a Festa da Latada, receberam este mesmo grelo como insígnia, e

que a partir de então passaram a ser chamados pelo Código de Praxe (2007) DE “Candeeiro

Fitado”.

Na Semana da Queima das Fitas em 2012, o ato de queimar o grelo realizado na manhã

de domingo, não foi precedido de qualquer discurso ou apresentação. A fila de estudantes à

espera do início do ritual começou a formar-se antes das 09 horas. Contrariando a lógica

hierárquica académica coimbrã, os estudantes não se organizaram por cursos, nem foram

organizados seguindo a hierarquia dos cursos (do mais novo para o mais antigo).

Grande parte dos estudantes fazia-se acompanhar por algum tipo de familiar (mãe, pai,

avós, irmãos, namorado (a), dentre outros) que se encontrava especialmente vestido para a

ocasião e que realizava, na maioria das vezes, registro fotográfico não só do estudante, mas de

todo núcleo familiar, tendo como figura central o estudante da Universidade de Coimbra.

Nos trajes académicos e no rosto dos estudantes, as marcas do vivido.

A semana da Queima das Fitas havia começado com a Serenata Monumental na quinta-

feira da semana anterior. Desde então, os estudantes estavam e haviam sido submetidos a um

ininterrupto conjunto de atividades rituais, assim como, à boemia característica da vida

estudantil coimbrã.

Alguns trajes, principalmente, a barra das calças e da capa, assim como os sapatos, já

mostravam a lama resultado das Noites de Parque. Muitos rapazes já não tinham o colarinho

da camisa tão apertado e mostravam a barba por fazer. Nas moças, as olheiras eram ocultadas

por grandes óculos de sol. Outros estudantes, entretanto, tinham o traje impecavelmente

arrumado para o momento do registro de sua passagem pela queima das fitas.

A importância simbólica do ritual e suas decorrências econômicas na atualidade

puderam ser verificadas por meio do comércio informal que, instalado em vários pontos do

Largo da Sé, da Praça D. Dinís, arredores da Associação Acadêmica e Praça da República,

vendeu todo tipo de souvenir para perenizar o momento. Sem contar com a estrutura montada

especificamente pela Associação Académica para dar suporte ao evento e pelo comércio

legalizado que em vitrines, decoração de rua e cartazes, sempre apresentava símbolos ligados

aos rituais daquela semana, a exemplo de guitarras, pastas, grelo, fitas coloridas, miniaturas

de estudantes ou da própria Universidade de Coimbra, dentre outros.

Às 10 horas, dois prestadores de serviço credenciados pela Associação Académica

acenderam o fogo e alguns minutos após, foi dado início ao ritual. Em grupos por curso ou de

cursos diversos, os estudantes subiam os quatro lances e chegavam ao palanque forrado de

vermelho. Ao fundo a Sé Nova e à frente o recipiente para queimar o grelo. Abaixo:

familiares, amigos e uma gama de fotógrafos, a maioria credenciada pela Associação

Académica.

A maioria dos estudantes, independentemente do curso, não sabia o que de fato deveria

ser feito naquele momento. Repetidamente, um dos fotógrafos os orientava em como

proceder: capas sobre o ombro!!!, desenrolem as fitas da pasta!!!, podem colocar o grelo aí

dentro…, não tenham medo…, não se vão queimar!!!. Durante e após a realização da queima,

todavia, a alegria de haver participado desse momento estava estampada em seus rostos.

Depois de queimar o grelo, o momento de consagração. Todos (orientados pelo mesmo

fotógrafo) levantam a pasta para o alto. Alguns grupos entoavam o Grito de Guerra

Académico. Ao descerem do palanque, reuniram-se em baixo para novas fotografias do grupo

e dessa vez, já considerados pelo Código de Praxe como Candeeiros Fitados. Posam ao lado

dos familiares a registrar sua nova posição dentro da academia. Seguem agora a procura de

seu lugar no Cortejo dos Fitados. O festejo do dia somente terminará na madrugada com a

Noite de Parque.

Na imagem a seguir é possível conhecer os elementos simbólicos (insignias) utilizados

no ritual. Da esquerda para a direita temos o recipiente em forma de penico utilizado para a

queima do grelo. Ao lado, na mão direita dos estudantes do curso de Direito os grelos e na

mão esquerda, a pasta com as fitas.

Imagem III - Queima das Fitas da Universidade de Coimbra – 2012

Utensílio em formato de pinico, grelo, pasta e fitas: símbolos rituais

Fonte: Acervo pessoal de Cruz, M. T. J. O., 2012.

2.3 A Universidade de Coimbra e algumas Insignias Doutorais

Os rituais de Doutoramento Solenes são atos de investidura que, ao longo do tempo,

transformaram-se também, em atos de consagração. Assim, na atualidade, há mais dois tipos

de rituais a ele relativos e que assumem essa feição consagratória: a Imposição de Insignias

Doutorais, que tem a finalidade de formalizar a apresentação solene de Doutores ao Colégio

Doutoral de toda a Universidade de Coimbra, Doutores esses já detentores do Título

acadêmico de Doutor e, os Doutoramentos Honoris Causa, destinados a honrar

personalidades públicas e que não frewquentaram os bancos da academia ou possuem título

académico de Doutor.

Os Doutoramentos Solenes, a Imposição de Insignias Doutorais e os Doutoramentos

Solenes seguem os mesmo rituais, como a seguir especificado.

No dia 17 de junho de 2012 a Faculdade de realizou a Imposição de Insígnias a cinco

doutores, dois dos quais brasileiros, a primeira solenidade realizada com essa composição.

Rituais dessa natureza têm início com a indicação do nome do doutor que receberá as

insígnias, o que deve ser previamente aprovado pela Congregação da respectiva Faculdade.

Os padrinhos, professores catedráticos da casa, são testemunhas que atestam os feitos

académicos que justificam e legitimam o ingresso simbólico naquela academia. O ritual é

idêntico ao dos Doutoramentos Honoris Causa, com a diferença que na Imposição das

Insígnias os requerentes já possuem o título académico de Doutor. O Doutoramento Honoris

Causa foi ampla e profundamente estudado por Torgal, L. R. (1983), em trabalho em que o

historiador elenca minuciosamente cada uma das etapas do ritual, buscando suas origens.

Os grandes passos compreendem a preparação do espaço com a aposição de ramos de

folha de louro (símbolo de consagração e de poder visível, por exemplo, nas coroas dos

césares). Na Sala dos Capelos, é colocado um cortinado com a cor do curso que estará

impondo as insígnias, cadeiras para requerentes, padrinhos, oradores, Reitor.

O ritual tem início na Biblioteca Joanina e, ao som de uma Charamelaxi

segue em

direção à Sala dos Capelos, conforme demonstra a imagem a seguir.

Imagem IV – Ritual de Agregação – Cortejo

Imposição de Insígnias Doutorais da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 17/06/2012

Acervo pessoal de Cruz, M.T.J.O. 2012

Na imagem é possível visualizar sobre as cabeças o uso de Borla na cor de cada curso.

Sobre a capa que compõe o traje doutoral há o Capelo (ou pequena capa). Ressalte-se que,

compostos por seda e linha de seda, a Borla e o Capelo, feitos exclusivamente por

encomenda, levam cerca de um ano para ser confeccionados e custam nos dias atuais cerca de

2.500 Euros. Os bordados relacionam-se a símbolos de fartura e poder a exemplo da uva e

outras frutas.

Dentre outros aspectos que uma análise da imagem suscita é o de que nem todos os

Doutores que pertencem à Universidade de Coimbra, mesmo que Catedráticos, usam as

Insígnias Doutorais vez que a utilização delas apenas é possível se aquele que possui o

doutoramento científico recebeu esta honraria em um Doutoramento Solene ou Impsição de

Insignias na Universidade de Coimbra. O segundo aspecto informa que cada Doutor deve

utilizar, durante estes rituais, as Insígnias Doutorais da Universidade nas quais as obteve.

Uma vez que o cortejo já tenha se acomodado na Sala dos Capelos, após uma oração

(saudação) inicial por parte do doutorado requerente mais antigo, dirigida ao Reitor, há a

sequência dos discursos em que são destacadas as qualidades acadêmicas do (s) candidato (s)

requerente (s).

Ao fim, o Reitor indaga aos requerentes: «Quid petis?» a que é respondido em Latim

«Gradum doctoratus in…» Na sequência, o Reitor impõe a Borla sobre a cabeça do (s)

requerente (s), a conferir-lhe a investidura, recebendo o requerente, que já usava o Capelo

desde o início da solenidade, a Borla e o anel.

Em seguida, os agora doutores instituídos, seguem para a cerimônia do abraço,

oportunidade em que são abraçados por todos os membros do colégio doutoral, simbolizando

que foram acolhidos pela comunidade acadêmica. Por fim, os novos doutores sentam-se por

breves momentos, junto aos demais doutores, a ocupar simbolicamente o seu lugar no

conjunto doutoral, assim como, entre o Reitor a o Decano do Curso ao qual petence.

Encerrada a sessão, o cortejo é novamente montado e, retiram-se da Sala dos Capelos,

seguindo para o Senado da Universidade, onde recebem das mãos do Reitor, o Diploma do

Doutoramento, conforme evidenciado nas imagens a seguir em Doutoramento Honoris

Causa, que possui o mesmo conjunto de ritos da Imposição de Insignias.

Imagens V e VI - Ritos em Doutoramento Honoris Causa

Cerimônia (ritual) do Abraço e Entrega de Diploma ao Doutorado em Solenidade de Doutoramento do

então Presidente brasileiro, Luíz Inácio da Silva.

Fonte: Cerimonial da Reitoria da Universidade de Coimbra

Do mesmo modo que na Queima das Fitas, o ritual é acompanhado por familiares,

amigos, Imprensa da Universidade e imprensa em geral, que registram o momento,

perenizando as práticas rituais e sancionando a distinção produzida.

3. Considerações Finais

Por intermédio deste estudo pode-se verificar que acerca da História institucional da

Universidade de Coimbra, assim como, de suas tradições estudantis há uma diversidade de

estudos que têm sido produzidos por pesquisadores portugueses, a partir de diversas

abordagens.

A Etnografia mostrou-se essencial não só para a consecução do estudo dos rituais,

como já amplamente utilizado por antropólogos, como também, apresentou-se compatível

com as novas perspectivas metodológicas advindas do alargamento das fontes utilizadas nos

estudos em História da Educação.

Verificou-se a natureza conceitual e a dimensão social que os ritos assumem dentro do

conjunto das tradições acadêmicas / universitárias, como modo de operar distinção

acadêmico-institucional-social, assim como, de expressão de poder simbólico que esses rituais

assumem.

As tradições coimbrãs têm resistido às transformações sociais, em face do sentimento

de pertença obtido a partir de praticas rituais, assim como, pela possibilidade de reinvenção

das tradições em um processo de adaptabilidade ao transcurso do tempo. Desse modo, as

insígnias sejam acadêmicas ou doutorais funcionam como instrumento de ancoragem ritual,

funcionando como marcadores de distinção, sendo essenciais na execução dessas práticas.

4. Referências Bibliográficas

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História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Vol. 15. p. 177 –

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VAN GENNEP, A. (1981) Les rites de passage. Paris: Picard.

Notas: i Doutoranda vinculada ao Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.

Realizou Estágio Doutoral na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

(FPCEUP), sob a orientação da Profª Drª Margarida Louro Felgueiras, tendo como campo de pesquisa a

Universidade de Coimbra. ii A produção a esse respeito é de grande volume e, apenas a título exemplificativo, sugerimos a leitura das obras

produzidas por Lamy (1990); Prata (2002) e Frias (2003). iii

A história do traje acadêmico é extensa. O uso de um traje estudantil em se tratando das Universidades ou do

ensino superior não é uma característica exclusiva de Coimbra e confunde-se com a própria História da

Universidade Europeia e sua origem eclesiástica. Quanto à Coimbra, o traje atualmente utilizado remonta ao

século XIX e tem uma matriz burguês-liberal. Os trajes femininos foram resultado da necessária adaptação

requerida pelo ingresso das mulheres na Universidade. iv Festa burlesca concebida e realizada por um grupo de estudantes das faculdades de Direito e Teologia da

Universidade de Coimbra no mês de abril de 1899. O programa foi pensado como uma crítica parodial aos

centenários cívicos que vinham a ser realizados em Lisboa e no Porto desde 1880. O tema das festividades foi a

sebenta, folha litografada com os textos das lições teóricas dadas pelos lentes da Faculdade de Direito,

instrumento de ensino então considerado aberração pedagógica, sinônimo de obscurantismo e dogmatismo. Há

alguns exemplares de sebentas disponíveis na Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,

que fizeram parte do acervo do antigo aluno e professor Dr. Paulo Merêa. v Festividade satírica relacionada ao fim da realização das solenidades de concessão do grau de bacharel,

ocorrido nos anos iniciais do século XX na Universidade de Coimbra. A esse respeito ler Lamy, A. S. (1990). vi Conjunto de protestos estudantis decorrentes da não aprovação no doutoramento por José Eugênio Dias

Ferreira, na Universidade de Coimbra. vii

Protesto estudantil ocorrido no final da década de 1960 e que se estendeu até à década de 1980, quando os

estudantes de Coimbra, movidos pelo cenário político português e o contexto estudantil internacional, deixaram

de realizar todas as atividades acadêmicas festivas coimbrãs, inclusive, o uso do traje acadêmico. viii

Em contraposição à Alta encontra-se a Baixa, às margens do Mondego, com seus tipos populares, comércio,

etc. ix

Segundo estabelecido no artigo 1º do Código de Praxe de 2007, a Praxe Acadêmica é «o conjunto de usos e

costumes tradicionalmente existentes entre os estudantes da cidade de Coimbra e os que forem decretados pelo

Conselho de Veteranos». x A Associação Académica da Universidade de Coimbra foi fundada no final do século XIX para congregar os

estudantes da Universidade de Coimbra, desenvolvendo atividades de coesão e representando politicamente seus

associados atuando também no fomento à cultura (grupos de música, canto, e folclore), à pratica desportiva e

manutenção das tradições acadêmicas coimbrãs, dentre outros. Atualmente também possui associados estudantes

dos cursos superiores politécnicos. xi

Grupo de instrumentos de sopro, sob a direção de um maestro, que toca músicas específicas para a condução

dos professores até a Sala dos Capelos e para atuar entre as diversas fases do ritual, a substituir as palmas depois

dos discursos da solenidade.