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JARDIM DE INFÂNCIA EM GOIÁS: educação e civilidade
FONSECA, Lara Cariny Celestino
Universidade Federal de Goiás / Campus Catalão
Bolsista FAPEG
PERES, Selma Martines
Universidade Federal de Goiás / Campus Catalão
Resumo
Este trabalho refere-se à história do Jardim de Infância em Goiás, investigando sua
constituição no final da década de 1920 e início da década de 1930. A análise se dá,
principalmente, a partir do estudo do Regulamento do Ensino Primário do Estado de 1930,
visto que nesse momento se construía um projeto de uma nova civilidade para a sociedade
goiana.
Palavras-chave: Jardim de Infância. Educação. Civilidade.
Introdução
A história da infância desde o século XVII tem sido percebida por muitos
historiadores a partir do sentimento de infância, cujo principal teórico é Ariès (1981). A
infância, nessa perspectiva, assume importante papel, transformando e ampliando o universo
infantil inserido no contexto da sociedade ocidental envolvida num processo civilizador.
Segundo Ariès (1981, p. 65),
[...] A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua
evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos
séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se
particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e
durante o século XVII.
A preocupação com a infância também suscitou a preocupação com a educação
das crianças em instituições específicas, como o Jardim de Infância, objeto deste trabalho.
Kindergarten (Jardim de Infância) foi o termo criado para designar instituições responsáveis
pela educação infantil. Friedrich Froebel foi um dos primeiros educadores a se preocupar com
a educação das crianças e idealizou um espaço singular para a realização desse tipo especial
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de educação. Esta modalidade de instituição infantil foi criada em 1840, na Alemanha. De
acordo com Kuhlmann Jr. (2000, p. 8), as:
[...] creches, escolas maternais e jardins-de-infância fizeram parte do
conjunto de instituições modelares de uma sociedade civilizada, propagada a
partir dos países europeus centrais, durante a Era dos Impérios, na passagem
do século XIX e XX.
Disseminadas em vários países, as primeiras instituições voltadas para o
atendimento de crianças de 0 a 6 anos surgiram no Brasil, no final do século XIX, no contexto
de distintas reformas da instrução nas províncias. Estas tiveram seu início fortemente marcado
pela ideia de oferecer “assistência” e “amparo” aos necessitados.
Em Goiás, a Lei n. 851, de 10 de julho de 1928, assinada pelo presidente do
estado Brasil Ramos Caiado, autorizava a criação e regulamentação de um estabelecimento
destinado às crianças, denominado Jardim de Infância que, desde então, ganhou estatuto de
estabelecimento anexo à Escola Normal. É, pois, nesse contexto, que a educação da criança se
insere num projeto mais amplo da sociedade goiana por meio da instrução pública.
O primeiro Jardim de Infância foi instalado na antiga Capital, Cidade de Goiás, no
ano de 1929. Em 1930 foi expedido o Regulamento do Ensino Primário do Estado que,
dentre os diferentes graus de ensino primário trata do Jardim de Infância, do seu
funcionamento, do programa a ser adotado, enfim das normatizações e regras de modo geral.
A construção deste trabalho visa, portanto, o entendimento acerca da constituição
do Jardim de Infância em Goiás, num período em que emergia a preocupação com a educação
da infância como parte de um processo civilizador em curso na sociedade goiana, e apoia-se
nos estudos de Bretas (1991), Veiga (2010), Lourenço Filho (2001) e Elias (1993/1994), bem
como em documentos oficiais e demais impressos da época, encontrados no Arquivo Frei
Simão Dorvi, na Cidade de Goiás, e no Arquivo Histórico Estadual (AHE), em Goiânia, com
maior ênfase no Regulamento do Ensino Primário do Estado de Goiás, expedido em 1930.
Infância e Educação
O termo Infância aparece no Dicionário Aurélio (2008-2013), como “s.f. Período
da vida humana desde o nascimento até cerca de 12 anos. / As crianças: a infância
abandonada. / Fig. Começo, origem: a infância do mundo”. Etimologicamente, infância tem
sua origem proveniente do latim infantia: do verbo fari, falar, na forma de seu particípio
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presente fan, falante, e de sua negação in. Nesse sentido, o infans é aquele que ainda não
adquiriu, segundo Gagnebin (1997, p. 16), “o meio de expressão próprio de sua espécie: a
linguagem articulada”. E, de acordo com Kuhlmann Jr. (1998, p. 16), “essa incapacidade de
falar, atribuída em geral ao período que se chama de primeira infância, às vezes era vista
como se estendendo até os 7 anos, que representariam a passagem para a idade da razão”.
Como qualquer outra fase da vida, a infância tem um significado genérico em
função das transformações sociais, associando-se a um status e papel conforme os sistemas de
classes de idades que toda sociedade possui. Historicamente, a “descoberta da infância”,
figura no cenário da sociedade ocidental de forma mais significativa desde o fim do século
XVI e durante o século XVII. A transformação relativa ao sentimento da infância é relatada
por Ariès através da análise da escola, do surgimento da família nuclear, da iconografia, dos
trajes, das igrejas e de túmulos, ou seja, realizada à luz das mudanças que ocorreram nas
formas de organização da sociedade. Nesse contexto,
[...] O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas
crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa
particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo
jovem. (ARIÈS, 1981, p. 156).
O sentimento da infância permeou, pois, no âmbito familiar e escolar, a
concepção de infância e de educação das crianças. A esse respeito Ariès (1981, p. 11) destaca
que,
[...] A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer
dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida
diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e
retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa
espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a
escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento
das crianças [...] que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de
escolarização.
Nesses termos, não apenas o futuro, como também sua simples presença e
existência, seu desenvolvimento e educação passaram a ser dignos de preocupação,
assumindo a criança um lugar específico na família e na escola. Nessa perspectiva, a
constituição da educação das crianças, bem como o processo contínuo e inacabado que
caracteriza uma civilização pretendida ao longo dos séculos, vem sendo historicamente
construídos.
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Em se tratando da educação das crianças, especialmente a primeira infância, o
jardim de infância se constituiu no estabelecimento educativo, cuja finalidade era propiciar o
desenvolvimento intelectual, emocional, físico, social e moral da criança de 3 a 7 anos, por
meio de atividades que, segundo Kishimoto (1988, p. 58),
[...] envolviam a formação religiosa, o cuidado com o corpo, a observação da
natureza, o aprendizado de poesias e cantos, exercícios de linguagem,
trabalhos manuais, desenho, conto de lendas, cantos e realização de viagens
e passeios. Através dessas atividades, Froebel pretendia estimular o
desenvolvimento integral da criança e, nesse sentido, ajustava-se
perfeitamente aos objetivos de um estabelecimento com caráter educativo.
Para Froebel, na escola tudo deveria ser vivido pelas crianças, levando-as a
pensar, tendo por pressuposto a auto-atividade, principalmente, pelo uso de jogos. Assim, o
professor trabalharia tomando por referência os conhecimentos prévios das crianças. A
educação proposta por Froebel tinha como ponto crucial a sociedade capitalista e, por isso,
teve ampla difusão em diversos países, inclusive no Brasil.
O Jardim de Infância no Brasil e em Goiás
Desde a fundação do primeiro Jardim de Infância no Brasil, em 1875, no Colégio
Menezes Vieira, no Rio de Janeiro, discute-se a importância dessa modalidade de educação
para o público infantil. Entretanto, assim como nos Estados Unidos, coube à iniciativa privada
a instalação dos primeiros Jardins de Infância no Brasil, os quais atendiam a elite. De acordo
com Kuhlmann Jr. (1998, p. 117),
A influência norte-americana marcou preponderantemente a expansão
internacional dos jardins-de-infância e sua chegada ao Brasil. [...] Entretanto
– [...] – os ventos que sopravam da Europa também traziam seu referendo
para essas instituições, consagradas como um modelo para o atendimento
das crianças dos 4 aos 6 anos de idade.
Antes da República, no Brasil, ao visualizar uma sociedade que se urbanizava,
onde se ampliava gradativamente o contingente de pessoas que necessitavam trabalhar para
garantir sua subsistência e, por isso mesmo, deixavam seus filhos sozinhos em casa, Rui
Barbosa defendia, através de pareceres, uma reforma do ensino primário e das várias
instituições complementares da instrução pública. Assim, em 1822, propunha a implantação
do Jardim de Infância como etapa preliminar à escola primária, onde os filhos dos
trabalhadores poderiam estar durante o trabalho dos pais. Rui Barbosa previa que essa etapa
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não se restringia apenas a um espaço para deixar as crianças enquanto os pais trabalhavam,
pois para ele,
Educar a vista, o ouvido, o olfato: habituar os sentidos a se exercerem
naturalmente sem esforço e com eficácia; ensiná-los a aprenderem os
fenômenos que se passam ao redor de nós, a fixarem na mente a imagem das
coisas, a noção precisa dos fatos, eis a primeira missão da escola, e,
entretanto, a mais completamente desprezada na economia dos processos
rudimentares que vigoram em nosso país. A natureza está continuamente nos
ensinando esse caminho, revelado por todos os instintos da infância; mas a
rotina é incapaz de curvar-se à necessidade inteligente que nos aponta os
instintos normais da infância a base de toda educação salutar. [...] A verdade,
porém, é que, adormecidas essas disposições naturais pelo desuso, em que
nos cria uma educação insensata, assistimos cegos e surdos a uma infinidade
de fatos, e deixamos passar despercebidas um número inumerável de coisas
que constituiriam por si sós o fundamento de toda a nossa instrução durante
a existência inteira. (RUI BARBOSA apud LOURENÇO FILHO, 2001, p.
147-148)
Pelo exposto, Rui Barbosa considerava que através dos sentidos a criança tinha a
primeira ideia dos fenômenos que ocorriam no campo de ação externa, dando início à
educação pela razão, a qual considerava o “cultivo dos sentidos” a partir da observação para
que houvesse entendimento. Assim, para esse eminente político, a proposta educativa para a
educação da infância a ser considerada era a de Froebel.
Desse modo, vale ressaltar que o ideal de formação da infância fora preconizado
antes da República e o debate envolvia desde a organização das instituições à metodologia de
ensino. Contudo, somente após a implantação da República emergiu o ideal de um novo
padrão de desenvolvimento no país, o qual se alcançaria por meio de reformas educativas.
Entretanto, somente nos anos de 1920, com as mudanças sociais e políticas ocorridas no
Brasil e a difusão de uma nova concepção educacional, denominada Escola Nova, o setor
público começou a dispensar maior importância ao atendimento das crianças.
Nesse sentido, a preocupação com o atendimento às crianças de idade pré-escolar
teve impulso nas décadas de 1920 e 1930. No tocante à criação e melhoria das instituições
que atendiam à infância, o escolanovismo tinha por prioridade as necessidades da criança,
bem como o incentivo à sua aprendizagem e ao seu desenvolvimento psicológico e social,
somando-se a esses objetivos a assistência médico-higienista. A renovação dos métodos de
ensino, a preocupação com a estrutura e a organização das instituições educativas, como
também a formação de professores representavam os principais motivos para as novas
iniciativas diante da educação nacional.
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As propostas para o jardim-de-infância reconheciam, inequivocamente, a
especificidade do atendimento educacional a uma criança em idade anterior
à escolar. O reconhecimento que a criança não começava a aprender apenas
a partir dos 7 anos, da idade da razão, era acompanhado da intenção de não
subordinar essa capacidade ao engessamento no molde da escola primária.
Pelo contrário, no lugar de derivar o currículo daquele modelo, procurava-se
contribuir com a sua renovação. (KUHLMANN JR., 1998, p. 164)
Para atingir as expectativas na inovação da educação brasileira era preciso a
adequação e a melhoria das práticas e das políticas educacionais do país. Os ideais
escolanovistas difundidos, neste período, influenciaram a organização dos sistemas
educacionais e as instituições criadas ou reformadas para o atendimento da infância. Nessa
perspectiva, novos procedimentos pedagógicos foram incorporados às escolas e pré-escolas
dos estados brasileiros.
Em Goiás, os marcos mais significativos da história da educação goiana não se
expressam na periodização tradicional, observada no estudo da história da educação brasileira,
por meio da periodização Colônia, Império e República. Em se tratando da instrução
elementar, por exemplo, o passo inicial para a construção de uma estrutura alicerçada em
moldes diversos da escola tradicional se deu a partir da década de 1920 com a criação dos
grupos escolares. “A ideia ou o desejo de renovação constitui passo importante para uma
mudança pretendida” (SILVA, 1975, p. 235). Nesse contexto, via-se no Jardim de Infância
um meio para promover o desenvolvimento da instrução em Goiás e um movimento de
reconstrução educacional. Em Goiás, portanto,
Mais importante do que a simples presença física do Jardim de Infância foi o
espírito que o animou. Os objetivos propostos visavam a formar a criança de
“dentro para fora” e não amoldada a um “modelo tradicional”. No plano
teórico, a filosofia que o embasava era a da escola nova, caracterizando-se
pela atenção devotada à criança, “banidas as imitações e reproduções
servis”. O aprender descobrindo e o estímulo às iniciativas espontâneas do
educando deveriam encontrar oportunidade de afirmação nas atividades
curriculares, que, fiéis à filosofia da escola, se apoiavam em material
didático especializado. A iniciação na leitura, escrita, desenho e cálculo,
procedida através de brinquedos e jogos especiais, constituía a base de
conhecimentos a serem ministrados. (SILVA, 1975, p. 243)
Assim, desde o seu surgimento na esfera pública goiana, o Jardim de Infância
ganhou regulamento específico, embora tenha surgido enquanto estabelecimento adjunto à
escola primária, instituindo-se em condição de preparo para esta etapa de escolaridade.
Através da Lei n. 851, de 10 de julho de 1928, foi autorizada a criação do Jardim de Infância,
anexo à Escola Normal da Capital. Desse modo, o primeiro Jardim de Infância do estado foi
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instalado na Capital, Cidade de Goiás, juntamente com o Grupo Escolar, em 13 de julho de
1929, último dia do mandato de Brasil Ramos Caiado, conforme pode ser observado em
reportagem publicada no Correio Official:
Fonte: Correio Official – Julho de 1929 – 7 – 3.feira – 16
Inaugurada a primeira instituição pública de educação infantil de Goiás, o
Regulamento do Ensino Primário do Estado, expedido a partir do Decreto n. 10.640, de 13 de
fevereiro de 1930, é um dos documentos que trata, dentre os diferentes graus de ensino
primário, dos Jardins de Infância, do seu funcionamento até o programa a ser adotado. O
decreto foi elaborado com a colaboração de professores de ensino normal de São Paulo que,
atendendo a uma solicitação, vieram à Goiás em comissão denominada “Missão Pedagógica
Paulista” para organizarem o ensino normal e primário.
De São Paulo saíra, no entanto, a Missão Pedagógica Paulista. Enviada
pelo Presidente Júlio Prestes de Albuquerque, tinha, em sua agenda de
trabalho, a incumbência de colaborar na implantação da reforma que, [...], se
impunha como imperativo. (SILVA, 1975, p. 245-246)
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Segundo Bretas (1991), o Regulamento do Ensino Primário do Estado foi o mais
extenso e minucioso documento de reforma goiana. Com 400 artigos, ele contém uma clara
contribuição das reformas paulistas.
O padrão das escolas paulistas e mineiras prevaleceu desde os primeiros
tempos, fato que encontra explicação na própria incipiência educacional de
Goiás (impotente ainda para tentar o seu modelo) e no renome que, entre
nós, usufruía o ensino daqueles estados”. (SILVA, 1975, p. 238).
No que tange, especificamente, ao Jardim de Infância, são onze artigos,
localizados na Parte I – Do ensino em geral, Título II – Da distribuição do ensino, Capítulo I –
Jardim de Infância, Art. 4º a 14º. As finalidades apresentadas pelo Regulamento para o Jardim
de Infância, juntamente com as demais prescrições parecem caracterizar a educação das
crianças como uma educação para a autorregularão, de forma a preparar a criança para a
função de pessoa adulta, incidindo em alta dose de contenção de pulsões e afetos, o que
vislumbra a importância dada ao equilíbrio entre razão e sensibilidade, pelo cultivo da
emoção, caracterizando um vir-a-ser do indivíduo em interdependência com um projeto de
civilidade.
Jardim de Infância: Educação e Civilidade para o Estado de Goiás
Segundo Norbert Elias (1994, p. 24), processo civilizador é entendido como “algo
que está em movimento constante”, descrevendo um processo que envolve figurações
específicas e relações de interdependência. De acordo com a teoria proposta por Elias,
denominada sociologia configuracional ou figuracional, pode-se afirmar que o conceito de
figuração “refere-se à teia de relações de indivíduos interdependentes que se encontram
ligados entre si a vários níveis e de diversas maneiras” de modo que as ações de um grupo de
“pessoas interdependentes interferem de maneira a formar uma estrutura entrelaçada de
numerosas propriedades emergentes, tais como relações de força, eixos de tensão, sistemas de
classes e de estratificação, desportos, guerras e crises econômicas”. (ELIAS & DUNNING,
1992, p. 25-26 apud BRANDÃO, 2003, p. 61)
Nesse sentido, na perspectiva eliasiana, o indivíduo depende da figuração e das
relações de interdependência, os quais são fundamentais para o seu desenvolvimento, uma vez
que figuração é definida como qualquer tipo de configuração social,
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[...] enquanto uma análise das relações e funções sociais, vistas como um
conjunto de relações interdependentes, que ligam os indivíduos entre si
numa dada formação. Essas formações – ou em escala mais ampla, o
conjunto dessas formações – seriam o que Elias denomina figuração, sendo
que cada época histórica, cada tipo de sociedade, dentro do seu contexto
histórico específico, produz um conjunto de figurações igualmente
específicas. (BRANDÃO, 2003, p. 61)
Partindo, pois, do pressuposto de que todo indivíduo é social e que toda relação é
interdependente, pensar o Jardim de Infância enquanto figuração, mais especificamente no
que diz respeito à instituição de uma educação da infância, constituída no contexto de uma
sociedade em busca da disseminação de novos ideais, é pensá-lo vinculado a um processo
civilizador mais amplo.
Na transição do Império para a Primeira República, no Brasil, o conceito de
civilidade ganhou novos contornos, principalmente, a partir da intensificação das ideias de
urbano, boas maneiras, polidez e cordialidade, estando a campanha republicana ancorada em
novos ideais culturais, tecnológicos e econômicos. A Primeira República, na perspectiva de
Nagle (1976, p. 99 apud HONORATO, 2010, p. 2-3),
[...] foi um momento marcado por transformações sociais a partir do
aparecimento do inusitado entusiasmo pela escolarização e do marcante
otimismo pedagógico. Existia a crença dos defensores políticos que, pela
multiplicação das instituições escolares, da disseminação da educação
escolar, seria possível incorporar grandes camadas da população na senda do
processo nacional. Assim a escolarização colocaria o Brasil no caminho das
grandes nações do mundo e indicaria o caminho para a formação do homem
brasileiro.
No imaginário republicano, a educação institucionalizada significou a instauração
de uma nova ordem e arma de que dependia o progresso, sendo fundamental para isso,
[...] regenerar as populações brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-
as saudáveis, disciplinadas e produtivas, eis o que se esperava da educação,
erigida nesse imaginário em causa cívica de redenção nacional. Regenerar o
brasileiro era dívida republicana a ser resgatada pelas novas gerações.
(CARVALHO, 1989, p. 10)
Em Goiás, somente nas primeiras décadas do século XX, sob a inspiração dos
movimentos de reconstrução educacional, em processo de desenvolvimento em alguns
estados brasileiros, é que surgiram importantes iniciativas em relação à educação das crianças.
A criação do primeiro Jardim de Infância em 1928, com a Lei n. 851, conforme documento
abaixo, foi uma dessas iniciativas para promover não só o desenvolvimento da educação, mas
da sociedade goiana como um todo.
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Fonte: Lei 851 A, de 10 de julho de 1928 – Arquivo Frei Simão Dorvi / Cidade de Goiás
Nesse sentido, entendendo o processo civilizador como um movimento contínuo e
inacabado, pode-se apontar a infância enquanto um ponto crucial para a construção de
padrões de comportamento do indivíduo, vislumbrando o desenvolvimento da sociedade
moderna.
Ainda que o tema da infância não apareça como um dos focos principais da obra
de Norbert Elias é possível buscá-lo através da análise histórica do processo civilizador e das
mudanças localizadas pelo autor no desenvolvimento da personalidade e das normas sociais.
Afinal, de acordo com Elias (1993, p. 204 e 205), um fator determinante
[...] é a teia de relações sociais em que vive o indivíduo durante a fase mais
impressionável, a infância e juventude, tendo sua contrapartida na relação
entre suas instâncias controladoras [...]. O equilíbrio resultante entre essas
instâncias controladoras e as pulsões, em grande variedade de níveis,
determina como a pessoa se orienta em suas relações com outras, em suma,
determina aquilo que chamamos, segundo o gosto, de hábitos, complexos ou
estrutura da personalidade.
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Desse modo, pode-se afirmar que a infância e, por sua vez, a educação das
crianças, tem um papel fundamental na construção de uma sociedade moderna.
O processo civilizador de que nos fala Elias constitui, pois, “uma mudança na
conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica” (ELIAS, 1993, p. 193),
que altera o comportamento dos indivíduos, bem como as relações de interdependência e as
figurações sociais num processo de longa duração histórica. O controle dos sentimentos e a
moderação das emoções espontâneas fazem parte do novo conjunto de hábitos e atitudes que
se apresentam como modelo civilizado de convivência social. Assim, a educação da infância
como parte de um processo civilizador, no estado de Goiás, revela-se enquanto consequência
da preocupação do poder público e da sociedade civil com a educação das crianças e a sua
formação integral, visando o cidadão republicano.
Pelo Regulamento do Ensino Primário do Estado, de 1930, o Jardim de Infância,
anexo à Escola Normal, destinar-se-ia a crianças de 4 a 7 anos, tendo as seguintes finalidades,
conforme o disposto no Art. 9º:
Art. 9º - O Jardim da Infância comprehende três períodos e tem por fim:
a) dar à criança antes dos 7 annos a idéia e noção das cousas pela via dos
sentidos;
b) ao ensino, desde o inicio, um caracter puramente sensorial e cuidar do
desenvolvimento da attenção e aptidão motora;
c) estimular as actividades espontâneas e livres da criança induzindo-a a
tentativas e experiências, banidas as imitações e reproduções servis;
d) desenvolver gradativamente as faculdades, por meio de exercícios
adequados sobre objectos e seres familiares ao espírito infantil;
e) imprimir o gosto do bem e da verdade, por meio de historietas próprias e
accessíveis à comprehensão da criança;
f) despertar o espírito de observação da criança, estimular a sua imaginação e
satisfazer os interesses próprios de sua idade;
g) aproveitar os objectos da natureza para desenvolver as actividades
occultas da criança;
h) apresentar à criança um programma de idéias associadas pelo principio do
centro de curiosidade;
i) cultivar e desenvolver os dons de linguagem e de expressões, por meio de
jogos vocaes, que appelem para os interesses instinctivos da criança;
j) cuidar da educação do ouvido, para a percepção e compehensão das
gradações dos sons, que despertem a attenção infantil;
k) preparar a criança para receber com proveito a instrucção primaria,
iniciando na leitura, escripta, desenho, calculo, por meio de brinquedos
apropriados;
l) combater os automotismos e trejeitos inúteis, servindo-se, para esses fins,
de exercícios variados e ocupações úteis em todos os momentos livres;
m) não intervir na actividade infantil, senão para disciplina-la, corrigi-la e
orienta-la, para o fim de formação dos primeiros hábitos moraes, hygienicos
e educativos. (Regulamento do Ensino Primário do Estado de Goyaz, 1930).
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Tais finalidades direcionam-se a uma educação autorreguladora, refletindo a
formação da criança compreendida de forma diferente do adulto e, ainda, que pareça
paradoxal, a proposta de pensar uma educação da criança que valorize a espontaneidade e, ao
mesmo tempo, a disciplina e a formação de “hábitos morais, higiênicos e educativos”, recai
na ideia de banir hábitos inúteis, fazendo com que através das experiências vivenciadas pelas
crianças se imprima condutas para uma nova civilidade. De acordo com Veiga (2009, p.3),
“este processo de educação se faz na combinação entre a existência de um equipamento
biológico que permite o autocontrole, e a dinâmica da sociedade de que é parte, pois os
modelos de autocontrole se fazem nas relações entre as pessoas”.
Nesse sentido, o Regulamento do Ensino Primário do Estado de Goiás prevê, no
Art. 10, um programa para o Jardim de Infância em que as atividades sejam vivenciadas de
modo que os conteúdos sejam desenvolvidos de acordo com as necessidades próprias da
criança, considerada enquanto um ser sensível e diferente do adulto.
Art. 10 - O programma do Jardim da Infância comprehende:
a) exercícios de linguagem, recitativos e monólogos;
b) dons froebelianos;
c) contagem de bolas e conhecimento dos números no mappa;
d) cores primárias e secundárias;
e) confecção de modelos simples de mosaicos e architectura;
f) desenhos de pauzinhos, lentilhas, piões, tabuinhas com apliccações
diversas, desenho de imaginação;
g) exercícios representativos de figuras geométricas com gonigrapho,
exercício de graça;
h) cantos breves e pequenos hymnos, movimentados e accessíveis à
comprehensão infantil;
i) exercícios physicos com os dedos, mãos, braços, pernas e cabeça;
j) marchas, saltos, rondas, corridas e jogos imitativos do cultivador e do
operario, acompanhados sempre de cantos;
k) regras de etiqueta e conversações sobre o respeito devido aos paes, aos
mais velhos, aos iguaes e aos criados;
l) noções rudimentares sobre a família, a sociedade e as autoridades
constituídas. Esses ensinamentos devem ser ministrados por meio de
brinquedos que despertem o interesse infantil;
m) jardinagem;
n) jogos sensoriaes, visuaes motores; motores; auditivos motores; e,
finalmente, os chamados especiaes;
o) trabalhos com palhinhas, continhas, dobraduras, cortes e recortes em
papel, tecelagem, elinhavos, anneis, veretas, perfurações em trabalhos de
serrinha. (Regulamento do Ensino Primario do Estado de Goyaz, 1930).
Por intermédio desse currículo, pretendia-se estimular o desenvolvimento integral
da criança, assim como o proposto por Froebel, quando criou o Kindergarten ou Jardim de
Infância. Essa preocupação com a aprendizagem de conteúdos adequados e com o
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acompanhamento e orientação pedagógica da criança, seus comportamentos e emoções,
reflete as expectativas quanto à missão de civilizar, revelando a importância dada ao
equilíbrio entre razão e sensibilidade, pelo cultivo da emoção, aspirando à constituição de um
homem novo e, por conseguinte, de uma sociedade nova.
Além das finalidades e do programa a ser adotado, o Regulamento do Ensino
Primário do Estado de Goiás, expedido em 1930, também trata do funcionamento do Jardim
de Infância, da organização das classes, da matrícula, da uniformização, da gratuidade do
ensino, bem como do pessoal docente e administrativo, refletindo o sentimento de renovação
que vislumbrava a modernização e o progresso do estado através da educação. Em especial,
pode-se inferir que algumas finalidades do Jardim de Infância, contempladas nesse
Regulamento, imprimem aspectos para uma nova configuração da educação que se pretendia
no Estado de Goiás.
Sendo assim, percebe-se que a criação e a institucionalização do Jardim de
Infância em Goiás foi resultado de aspirações que vislumbravam uma escola enquanto
educadora e transformadora da sociedade, começando pela educação das crianças, o que
caracteriza uma faceta do que Norbert Elias chama de processo civilizador.
Considerações Finais
Tendo em vista a constituição do Jardim de Infância em Goiás como parte de um
projeto de uma nova civilidade, em curso no estado, pode-se considerar que com o
“descobrimento da infância” e o advento da escola moderna, bem como com a necessidade de
progredir, a educação das crianças revelou-se enquanto um caminho potencial para a
formação do cidadão goiano no contexto de um esforço civilizador.
O Regulamento do Ensino Primário do Estado de Goiás, de 1930, inserido no
contexto de uma Reforma Educacional, introduziu em Goiás um ideário pedagógico com
inspiração escolanovista e impulsionou ações que revelaram a intenção de modernizar o
ensino goiano a partir da educação das crianças, o que também contribuiria para a formação
de uma sociedade em consonância com o cenário nacional de modernidade e progresso.
Assim, a estrutura dessa sociedade corresponderia à estrutura dos indivíduos que a
constituem e o modo como eles se comportam. Desse modo, vislumbram-se os indivíduos
como construtores e construídos pela/na sociedade, enquanto um processo, sempre contínuo e
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inacabado de ordenação do mundo e em que a educação da infância tem um papel
fundamental.
Contudo, vale lembrar as palavras de Nagle (2001, p. 314): “[...] sem dúvida,
nesse primeiro momento, o novo e o modificado se acrescentaram ao modelo ainda
tradicional [...]”. E, conforme Kuhlmann Jr (2001, p. 19), “a propagação do jardim de infância
não ocorreu pela adoção de um modelo único de instituição com a rígida aplicação de seus
procedimentos originais”.
Por fim, o Jardim de Infância em Goiás representa um esforço considerável de
fortalecimento do estado e da formação de um novo conjunto de hábitos sociais, buscando
imprimir uma nova configuração à educação e à sociedade goiana.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora
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