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1 A CIRCULAÇÃO DE IDEIAS DA ESCOLA NOVA: PERSPECTIVA DA VERTENTE CATÓLICA SOBRE A PRÁTICA DE ENSINO (1946-1961) Manuela Priscila de Lima Bueno Unesp/Programa de Pós Graduação em Educação - Campus Rio Claro [email protected] Palavras-chave: circulação de ideias; Escola Nova; manuais pedagógicos Introdução Os estudos sobre manuais pedagógicos vem crescendo no Brasil, no sentido de contribuir para as análises das culturas escolares e, mais especificamente, da circulação de ideias pedagógicas, que nortearam, a partir de suas diversas interpretações, as políticas públicas e a prática do magistério em sala de aula, principalmente no que concerne ao ensino normal e à instrução primária no Brasil, auxiliando a construir historicamente tanto a imagem do professor quanto a da própria educação no país. De acordo com Valdemarin (2010), os manuais pedagógicos destinados às disciplinas didáticas e de prática de ensino eram livros didáticos que procuravam transformar valores, princípios e objetivos em prescrições de práticas pedagógicas, a partir da interpretação de um ideário, neste caso a Escola Nova. Portanto, os manuais eram livros didáticos que faziam a intermediação entre a ideia e seus desdobramentos (leis, decretos, programas de ensino) e a prática do magistério, pois eram a referência do professor em sala de aula tanto em relação a sua aproximação com a teoria vigente e o direcionamento teórico dado por ela, quanto, e principalmente, nas possíveis práticas ali firmadas. A seleção das fontes para o projeto de pesquisa de mestrado, intitulado “Os manuais pedagógicos como prescrição prática para o magistério: interpretações da Escola Nova para a Prática de Ensino (1946-1961)”, deveria responder à questão: quais foram as possíveis práticas pedagógicas vinculadas à Escola Nova prescritas a partir da orientação desses manuais? O levantamento preliminar apontou como dois autores expressivos no período: Theobaldo Miranda Santos, que publicava pela Companhia Editora Nacional e Afro do Amaral Fontoura, que publicava pela Editora Aurora, ambos

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A CIRCULAÇÃO DE IDEIAS DA ESCOLA NOVA: PERSPECTIVA DA

VERTENTE CATÓLICA SOBRE A PRÁTICA DE ENSINO (1946-1961)

Manuela Priscila de Lima Bueno

Unesp/Programa de Pós Graduação em Educação - Campus Rio Claro

[email protected]

Palavras-chave: circulação de ideias; Escola Nova; manuais pedagógicos

Introdução

Os estudos sobre manuais pedagógicos vem crescendo no Brasil, no sentido de

contribuir para as análises das culturas escolares e, mais especificamente, da circulação

de ideias pedagógicas, que nortearam, a partir de suas diversas interpretações, as

políticas públicas e a prática do magistério em sala de aula, principalmente no que

concerne ao ensino normal e à instrução primária no Brasil, auxiliando a construir

historicamente tanto a imagem do professor quanto a da própria educação no país.

De acordo com Valdemarin (2010), os manuais pedagógicos destinados às

disciplinas didáticas e de prática de ensino eram livros didáticos que procuravam

transformar valores, princípios e objetivos em prescrições de práticas pedagógicas, a

partir da interpretação de um ideário, neste caso a Escola Nova. Portanto, os manuais

eram livros didáticos que faziam a intermediação entre a ideia e seus desdobramentos

(leis, decretos, programas de ensino) e a prática do magistério, pois eram a referência do

professor em sala de aula tanto em relação a sua aproximação com a teoria vigente e o

direcionamento teórico dado por ela, quanto, e principalmente, nas possíveis práticas ali

firmadas.

A seleção das fontes para o projeto de pesquisa de mestrado, intitulado “Os

manuais pedagógicos como prescrição prática para o magistério: interpretações da

Escola Nova para a Prática de Ensino (1946-1961)”, deveria responder à questão: quais

foram as possíveis práticas pedagógicas vinculadas à Escola Nova prescritas a partir da

orientação desses manuais? O levantamento preliminar apontou como dois autores

expressivos no período: Theobaldo Miranda Santos, que publicava pela Companhia

Editora Nacional e Afro do Amaral Fontoura, que publicava pela Editora Aurora, ambos

2

com coleções de manuais pedagógicos destinados à formação de professores, com

diversas edições e grandes tiragens, e definidos pela literatura acadêmica como

pertencentes à vertente católica da Escola Nova. Apesar do rótulo comum, o discurso

apresentado nos manuais pedagógicos desses autores, selecionados para esta análise, era

diferente: Theobaldo tinha um discurso pouco marcado pelo embate entre os católicos e

os renovadores e pelo próprio discurso católico de valores morais, já Afro do Amaral

apresentava um discurso fervoroso em favor da aplicação em sala de aula dos preceitos

morais ditados pela Igreja. Revelavam-se, então, indícios da pluralidade das

apropriações do ideário escolanovista presentes no discurso e nas práticas das

organizações católicas, como aponta Carvalho (2003).

Isso nos levou a pensar que realmente a Escola Nova constituiu-se como um

ideário comum no Brasil à época, mas que se apresentava sob diversas interpretações

entrecruzadas, isto é, a Escola Nova foi apreendida no Brasil de uma forma particular:

ela cindiu-se em dois grupos dominantes que disputavam pela hegemonia no campo

educacional da época, os católicos e os renovadores1, que apresentavam diferenças

dentro de seus próprios grupos. Ao mesmo tempo ela foi interpretada pelos legisladores,

pelos autores dos programas de ensino e, enfim, pelos autores de livros didáticos, que

depuravam as lutas pelos ideais a partir dos conceitos sociais e educacionais,

influenciando a entrada do ideário na prática do magistério, com base em suas próprias

interpretações e, que mesmo pertencentes a um grupo específico, diferenciavam-se em

suas particularidades e em seus modos de apropriação das ideias.

Com este trabalho pretende-se analisar a interpretação dada às prescrições

práticas presentes nos manuais de ensino, no período entre as décadas de 1940 e 1960,

que tinham como autores alguns defensores da escola renovada aos moldes do ideal

católico de educação, salvaguardadas suas diferenças em relação à fervorosidade maior

ou menor e ao cerceamento católico de algumas proposições da Escola Nova. A

predominância de autores católicos nos manuais de ensino que apresentaram inúmeras

edições em curto espaço de tempo mostra sua força na formação de professores nas

Escolas Normais e Institutos de Educação, além de evidenciar a liderança católica na

iniciativa editoral entre as décadas de 1940 e 1970. A larga disseminação desses

manuais constitui indícios da entrada do ideal católico renovador nas escolas de

formação de professores primários, tanto públicas quanto particulares, indicando

3

também a grande aceitação por parte dos cursos normais e principalmente por parte do

magistério primário2.

Tomando como base o levantamento de SILVA (2001), dentre os manuais

pedagógicos com maior circulação de edições entre os anos de 1940 e 1970, estão os

manuais selecionados para essa pesquisa: Noções de Prática de Ensino, de Theobaldo

Miranda Santos, com 7 edições entre os anos de 1949 e 1967; e Prática de Ensino, de

Afro do Amaral Fontoura, com 8 edições entre o período de 1960 até 1967. Ambos os

manuais eram destinados à disciplina Prática de Ensino3, constante do currículo dos

cursos normais, que segundo a Lei Orgânica do Ensino Normal (Lei nº 8.530, de 2 de

janeiro de 1946) deveria integrar os conhecimentos teóricos e técnicos de todo o curso,

com a participação real no trabalho docente através dos estágios. A disciplina tinha

grande importância no currículo das Escolas Normais, pois responderia às prescrições

centradas no ensino ativo, servindo como campo de experimentação e aplicação dos

conhecimentos teóricos desenvolvidos nos cursos de formação de professores primários,

justificando, então, a presença da disciplina nos dois anos do curso com a maior carga

horária dentre as outras disciplinas: no primeiro ano teria quatro horas/aula e no

segundo ano ano teria seis horas/aula contra a média de 3 horas/aula das outras

disciplinas. Portanto, os manuais trabalhados aqui constituíam-se por serem orientações

práticas para o exercício dos estágios dos cursos normais, bem como material de apoio

também para os professores que já exerciam o magistério primário.

Nesse sentido, este trabalho pretende contribuir para os estudos dos manuais

pedagógicos, pensando no papel que esse material didático desempenhava por meio das

prescrições práticas propostas, através da interpretação do conteúdo do ideário

escolanovista, em voga no período entre as décadas de 1940 e 1960. Esta perspectiva é

elucidada pelo direcionamento da linha teórico-metodológica adotada aqui, a História

Cultural, situada no âmbito do entendimento das práticas sociais e das significações

culturais dos produtos produzidos pela humanidade, sejam eles materiais ou não

(CHARTIER, 1991).

1. Os católicos e a Escola Nova

O embate entre católicos e reformadores emerge quando os ideais

escolanovistas, a partir de expoentes como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e

4

Lourenço Filho, propõem uma instrução pública e laica, contrariando, portanto, uma

instrução confessional baseada nos preceitos da Igreja Católica, que buscava seu espaço

no regime republicano instituído no Brasil. Estava em disputa, a partir de fins da década

de 1920, a consolidação de um projeto cultural, que para os católicos deveria ser

baseado na construção do cristianismo social, e para os renovadores baseado em

conceitos científicos e laicos (EVANGELISTA, 2002). A educação era o palco dessas

disputas e lugar comum entre os opositores, pois a escola passava a ser um lugar de

conformação social que construiria as bases da nação, a alma nacional e livraria o país

dos males sociais a partir do derramamento da instrução (MONARCHA, 2009).

Já na segunda metade da década de 1930, o tom da disputa ainda era acirrado entre

as partes, mas as mudanças ocorridas na passagem das décadas refletem a abertura do

ideal católico para obras que antes eram proibidas por se configurarem como os

excessos da pedagogia moderna (CARVALHO, 2003). Os católicos, então, passaram a

depurar esses excessos daquilo que não fosse compatível com as prescrições da

encíclica papal Divini Illius Magistri e conciliavam os escritos de Dewey, Claparède e

Kilpatrick, por exemplo, às censuras do documento eclesiástico e de autores católicos

expoentes como Everardo Beckeheuser. Isso é evidenciado nas referências

bibliográficas e nas sugestões de leitura ao longo dos capítulos dos manuais analisados

aqui, quando Afro do Amaral Fontoura, por exemplo, lista como leituras

complementares Técnica da Pedagogia Moderna, de Beckheuser, e Vida e Educação,

de John Dewey, bem como quando Theobaldo Miranda Santos indica Introdução ao

Estudo da Escola Nova, de Lourenço Filho, e Manual de Pedagogia Moderna, de

Beckheuser.

Almeida Filho (2008) justifica o tom amistoso adotado pelos católicos:

Muitos católicos, entre eles os militantes da causa educacional,

embora conservassem a essência de seu ideário cristão,

procuravam colocar suas práticas de atuação em sintonia com o

momento histórico em que estavam inseridas. A compreensão

do movimento por uma Escola Nova católica só era possível ser

pensada por esse processo de aceitação, pelo menos em tese, de

que a modernidade era um processo irreversível. (p.78)

Por isso, a partir da década de 1940, proliferaram os manuais pedagógicos de

autores com orientação católica, com uma pluralidade de apropriaçoes e representações

do ideário escolanovista, na tentativa de ganhar a adesão dos professores para então

5

dirigir as possíveis práticas escolares, isto é, “o impresso funcionará como dispositivo

de regulação e adequação do discurso e da prática pedagógica do professorado aos

cânones escolanovistas propostos” (CARVALHO, 2003, p. 104) e os manuais passaram

a ser um dos dispositivos da disputa pelo controle ideológico da instrução no Brasil, daí

as estratégias de produção e circulação desse material didático destinado aos cursos

normais e ao magistério primário.

2. Um breve histórico dos autores

2.1. Theobaldo Miranda Santos

Theobaldo Miranda Santos nasceu em 1904 na cidade de Campos no Rio de Janeiro

e faleceu em 1971. Formado pela Escola Normal Oficial de Campos e em Odontologia

e Farmácia no Colégio Grambery, em Juiz de Fora, o autor ocupou inúmeros cargos na

esfera pública e educacional e dentre eles foi professor da cátedra de Prática de Ensino

na Universidade do Distrito Federal e no Instituto Católico de Estudos Superiores; em

1942 foi nomeado Diretor Geral do Departamento de Educação Primária; foi professor

da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e assumiu por duas vezes a

função de Secretário Geral de Educação e Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. O

autor também escreveu artigos para revistas e jornais, além de mais de 150 obras em

formato de livro e seus manuais pedagógicos foram, em grande parte, destinados aos

cursos normais (cf. ROBALLO, 2007 e ALMEIDA FILHO, 2008).

2.2. Afro do Amaral Fontoura

Afro do Amaral Fontoura nasceu em 1912, era bacharel pela Faculdade de Filosofia

do Brasil. Foi professor na Faculdade de Filosofia Santa Úrsula e na Escola de

Comando e Estado Maior do Exército e também professor titular nas seguintes

instituições: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade Estadual do

Rio de Janeiro e Faculdade de Serviço Social do Distrito Federal. Foi presidente da

Associação Brasileira das Escolas Normais na década de 1960, além de presidir o 1º

Congresso Brasileiro de Ensino Normal, realizado no Rio de Janeiro. Teve publicados

uma cartilha; quatro compilações de legislação educacional; dezenove manuais de

ensino e alguns artigos em periódicos e era o representante da Escola Viva, uma

vertente católica da Escola Nova (cf. MORTATTI et. al, 2009; SILVA,

SCHELBAUER, ROSIN, 2008; MEUCCI, 2007; e ROCHA, 2009).

6

3. As prescrições práticas dos manuais pedagógicos Prática de Ensino e Noções de

Prática de Ensino

3.1. Aproximações

Descreveremos as práticas prescritas nos manuais selecionados como fonte para

compor esse trabalho, com o objetivo de pensar nos modos de representação prática4 do

ideário escolanovista, a partir do movimento católico na disputa pelo campo

educacional, isto é, quais eram os direcionamentos dados às normalistas e às professoras

do magistério primário como possibilidade de ação em sala de aula.

O manual pedagógico Prática de Ensino, de Afro do Amaral Fontoura, teve sua

primeira edição em 1960 (edição a ser utilizada neste trabalho) e foi publicado pela

Editora Aurora. O manual faz parte da coleção denominada A Escola Viva e é o sétimo

volume da Biblioteca Didática Brasileira, da mesma editora. O manual pedagógico

Noções de Prática de Ensino, de Theobaldo Miranda Santos, teve sua primeira edição

em 1949 (usaremos aqui a 2ª edição- 1951) e foi publicado pela Companhia Editora

Nacional. O manual faz parte da coleção denominada Curso de Psicologia e Pedagogia,

sendo o nono volume.

Analisando a estrutura dos manuais, identificou-se que em ambos há uma clara

divisão entre as partes que tratam da interpretação da teoria da Escola Nova e as partes

encarregadas de prescrever atividades e dar direcionamentos práticos para a prática do

professor. Portanto, a explicação teórica aparece como embasamento das prescrições

práticas que são dispostas sempre depois dos capítulos que elucidam a teoria. Essa

teoria é composta por algumas noções de psicologia, sociologia, filosofia e da história,

campos de estudos largamente defendidos pelos reformadores como Lourenço Filho,

destinados a inserir a criança em atividades espontâneas, livres e criadoras, sendo ela

indivíduo central nos processos de ensino e aprendizagem.

A teoria apresentada nos manuais está de acordo com alguns preceitos centrais da

Escola Nova difundida pelos renovadores: educação ativa, centros de interesse,

sociedade em miniatura, construção do conhecimento, conteúdos dispostos de acordo

com o interesse do aluno, professor como mediador do conhecimento, integração dos

diferentes níveis de ensino, importância da prática de ensino e dos fundamentos da

ciências da educação. Além disso, os manuais definem alguns conceitos como ensino,

7

aprendizagem, o papel do aluno e do professor dentro do processo escolar, plano de

curso e reservam algumas páginas para discorrer sobre os métodos modernos de ensino.

Apesar da explicação teórica sempre anteceder as prescrições práticas, a

organização dos livros é diferente. No manual de autoria de Miranda Santos as

explicações teóricas vem condensadas nos dois primeiros capítulos e nos quatro

restantes o autor as usa como introdução às práticas. Por exemplo, no Capítulo VI,

denominado A verificação do ensino, o autor lista e explica os diferentes tipos de testes

para a verificação do ensino, estão lá provas tradicionais, provas objetivas, testes

mentais, testes pedagógicos para, na sequência de tópicos, apresentar as técnicas de

elaboração, organização e correção das provas e testes, tópicos nos quais o autor indica

passo a passo a prática que deve ser realizada pelo professor para a verificação do

ensino.

Amaral Fontoura durante todo o livro traz a teoria explicativa e depois propõe

soluções práticas para o dia-a-dia da sala de aula, a partir da elucidação feita

anteriormente. O indíce do manual exemplifica essa disposição entre o conteúdo do

livro:

Figura 1. Índice do manual Prática de Ensino de Afro do Amaral Fontoura. Demonstra a

disposição entre teoria e prática no livro. Os números 59 a 67 correspondem aos parágrafos

e o número 181 é a página de início da Unidade.

Vê-se a disposição entre os conteúdos teóricos que embasam os conteúdos de

prescrição prática quando, na Unidade III em seu Capítulo XI, nos itens 1 a 5 o manual

discorre sobre alguns conceitos disciplinares e, logo em seguida, nos itens 6 e 7,

prescreve os modos de fazer, ou seja, o como castigar os alunos e quais castigos são

permissíveis dentro dos conceitos apresentados inicialmente. Dessa forma, podemos

inferir que há uma intenção na disposição dos manuais, quando trazem a combinação

entre teoria e prática. Segundo Valdemarin (2010):

8

Por meio dos manuais, os autores apresentam uma apropriação

criativa, discursiva e instrumental das teorias estrategicamente

difundidas e, com isso, criam uma rede de relações

significativas. Ao estabelecer modos de emprego, fabricam

novos sentidos que combinam modos de pensar com sua

utilização (p. 130).

A combinação entre modos de pensar com sua utilização está diretamente ligada

à intenção da Igreja em divulgar a Escola Nova em seus moldes e longe das

permissividades da educação moderna atribuídas à instrução laica. Os manuais abririam

a possibilidade da difusão da Pedagogia da Escola Nova5, dando visibilidade e

credibilidade teórica à interpretação da Igreja sobre os preceitos escolanovistas. Para

Afro do Amaral Fontoura as fronteiras entre católicos e reformadores é mais demarcada

ainda, pois o autor coloca a necessidade da “Escola Viva” e cunha a expresão como

marca de uma de suas coleções e, portanto, como marca distintiva na disputa que havia

sido travada desde a década de 1920. Apesar desses indícios, a disputa entre católicos e

renovadores não aparece explícita nos manuais, em forma de combate ou crítica direta

aos reformadores. A grande marca distintiva dos católicos, são as dedicatórias marcadas

por excertos religiosos ou alguns exageros pontuais que pregam o amor, a compaixão e

a educação religiosa como um dos princípios para a educação integral, no caso de

Amaral Fontoura (1960, p. 70-71):

Ora, não é imprescindível que tôdas as professôras lecionem o

catecismo. Pode-se dar educação religiosa mesmo sem a

aprendizagem formal daquele. Ensinar às crianças o amor a

Deus, o respeito aos Mandamentos e aos preceitos religiosos

fundamentais, que devem existir no coração de tôdas as

criaturas, independente da crença a que pertençam – tudo isso é

dar educação religiosa.

(...) O único cuidado do mestre será obedecer a Constituição

Brasileira e as leis do ensino vigentes, respeitando a liberdade

de crença e a formação religiosa dos pais das crianças.

Além disso, a utilização de referências bibliográficas e de indicações de leitura

de autores ditos católicos também marcam a distinção entre os grupos. Mesmo assim, a

perspectiva católica em termos de fundamentos e métodos educacionais entre as

décadas de 1950 e 1970 se assemelha à Escola Nova difundida pelos renovadores. Isso

pode ser exemplificado na afeição aos postulados de Dewey por Amaral Fontoura

quando escreve “é como diz magnificamente JOHN DEWEY” (1960, p. 2) ou quando

Miranda Santos discute como possibilidade de prática, no capítulo II. As Técnicas de

Ensino, de Noções de Prática de Ensino, os métodos de Montessori, Decroly e

9

Cousinet, por exemplo, corroborando a tese de que os católicos aderiram a Escola Nova

a seu modo6.

4. As prescrições práticas

Devemos ressaltar que as prescrições práticas nos manuais pedagógicos, mesmo

embasadas nos fundamentos da Escola Nova, que propunha a ruptura entre o velho e o

novo, possuiam traços da educação dita tradicional (rótulo dado pelos renovadores a

tudo que fosse anterior ao movimento)7, já que os manuais também tinham como

objetivo conciliar as práticas até então instituídas com a modernidade das ideias novas

para a época. Evidencia-se, portanto, que o discurso de ruptura alardeado durante toda a

primeira metade do século XX era retórico e se aplicava somente às possíveis práticas

escolares contidas nos modos de fazer que eram característicos dos manuais

pedagógicos destinados a didática e a prática de ensino. As práticas escolares dos

manuais, sugeridas aos alunos dos cursos de formação de profesores, para uso nos

estágios e no exercício do magistério estavam de acordo com as ideias veiculadas pela

Escola Nova, quando trazem como prática, por exemplo, o método de projetos, os

centros de interesse, a escola como comunidade em miniatura, o método de testes, mas

ao prescrever as práticas como modos de fazer, com roteiros definidos dos passos a

serem seguidos e delimitando o “como fazer” em sala de aula, os autores ficam presos à

educação tradicional criticada por ambas as vertentes do movimento da Escola Nova, a

partir da década de 1950, posicionando-os com idéias novas, porém com prescrições

para a prática ainda dispostas dentro do modelo dito tradicional de educação8.

Nesse sentido, Valdemarin (2010, p.12) esclarece que “a cultura não opera apenas

pela incorporação ou pela recusa do novo, mas também pela combinação complexa

entre práticas emergentes e residuais, estabelecidas entre inúmeras possibilidades”. A

própria disposição dos manuais, através de proposições prontas e organizadas de forma

rígida, mostram a transição que ocorria no campo das práticas prescritas entre os moldes

da educação que vinha sendo praticada até então e a entrada, a partir da teoria, num

novo campo de conhecimentos metodológicos e práticos. No caso dos católicos, a

educação progressiva, tanto teórica quanto prática, também tinha limites e

possibilidades para além da combinação entre o velho e o novo, ou entre práticas

emergentes e residuais: não poderia ultrapassar os limites impostos pelos documentos

10

eclesiásticos ou deveria considerar a educação para além somente de seus

procedimentos, mas com objetivos mais amplos, como exemplifica a passagem do

manual de Miranda Santos: “não é suficiente, por exemplo, organizar a escola como

uma “sociedade em miniatura” para que os alunos se eduquem moral, social e

civicamente. É indispensável também que êles recebam ensinamentos sôbre educação

moral, social e cívica” (1951, p. 13).

O fim transcendental dado pelos católicos à educação resulta do fato de que “não há

prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e

afrontadas, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentindo ao seu mundo”

(CHARTIER, 2002, p. 66), isto é, a vertente católica cria sua interpretação da Escola

Nova a partir das representações que delimitam e fazem avançar seu entendimento das

teorias e processos educacionais, criando sua própria estrutura frente ao movimento

teórico educacional em voga no período entre as décadas de 1940 e 1960.

Dessa forma, as precrições práticas nos manuais analisados aqui apresentam tanto os

fundamentos das ciências da educação, embasados na teoria difundida pelos

reformadores, quanto os fundamentos de uma educação pautada na moral cristã, no

amor e na alegria, para legitimar a interpretação da Escola Nova pelo grupo católico,

criando uma identidade que os diferenciasse dos reformadores, mas que os inserisse no

movimento, tornando-os partícipes na inserção da teoria e da prática nos cursos de

formação de professores, a partir de seus valores eclesiásticos. As atividades propostas e

as técnicas a serem seguidas, portanto, tem como pressuposto, para além dos fins

educacionais, a evolução moral e o direcionamento cristão dos alunos que formariam a

“alma nacional”, o que coloca os manuais pedagógicos católicos dentro de pelo menos

três funções propostas por Chopin (2004): a função referencial, que serve como suporte

educativo a partir da reprodução ou interpretação dos programas de ensino; a função

instrumental, que propõe métodos de aprendizagem, exercícios ou atividades; e a função

ideológica e cultural, funcionando como um dos vetores essenciais da língua, dos

costumes e dos valores.

As atividades prescritas nos manuais selecionados para análise neste trabalho

exemplificam as técnicas didáticas apresentadas no material e os roteiros de trabalho, ou

seja, constituem-se por serem modelos de “como fazer”. Vale ressaltar que as atividades

11

apresentadas são decorrentes e respondem ao conteúdo proposto nos diversos

programas de ensino do país, principalmente nos de São Paulo e do Rio de Janeiro, que

eram modelos para os demais estados, que, por sua vez, se embasavam na legislação

federal vigente, direcionada pelos renovadores, que ocupavam cargos-chave na

administração da instrução pública à época.

Todas as indicações de organização e planejamento de ensino dos manuais eram

propostas através de roteiros e esquemas, que indicavam passo a passo a elaboração de

aulas, atividades, centros de interesse, planos de aula, planos de curso, ou indicavam os

passos de como proceder com um aluno indisciplinado, como castigar um aluno, como

motivá-lo, como proceder antes, durante e depois de uma aula, informava as condições

básicas à eficiência do professor, além de indicar para uso as técnicas das diferentes

matérias prescritas nos programas de ensino. Salientando sempre a necessidade da

educação ativa, da escola como sociedade em miniatura e com fins no interesse dos

alunos, por meio dos métodos modernos e progressivos de ensino e de autores como

Jonh Dewey, Edouard Claparède e William Kilpatrick, mas com as ressalvas apontadas

por Everardo Beckeheuser, no sentido de reforçar a opção doutrinária por uma educação

não destituída de um fim religioso.

No manual pedagógico Prática de Ensino de Amaral Fontoura, ressalta-se: “a

‘Biblioteca Didática Brasileira’ é, assim, uma coleção de livros que não apenas ensinam

o que se deve fazer, mas ao mesmo tempo mostram como se deve fazer” (p. XXII –

grifos do autor). Já Theobaldo Miranda Santos numa nota de advertência que antecede o

índice do livro, em Noções de Prática de Ensino, nega a prática de ensino através de

fórmulas: “na serena convicção de que a prática de ensino é fruto, não de fórmulas

pedagógicas ou de receitas didáticas, mas da atividade criadora do professor”, porém ao

longo do manual não é isso que se evidencia. A figura a seguir exemplifica o desvio do

discurso de Theobaldo nas prescrições práticas em forma de roteiros de execução que é

constante do livro:

12

Figura 2. Esquema ou plano de trabalho do manual pedagógico Noções de Prática de Ensino, de

Theobaldo Miranda Santos, 2ª edição, página 71, 1951.

Ambos os manuais tinham como princípio inicial do trabalho do professor o

planejamento. Esse planejamento deveria ser feito através dos planos de curso e dos

planos de aula, que deveriam conter: os objetivos, a matéria, a técnica didática a ser

utilizada, como iria se dar o desenvolvimento do conteúdo, apontando os materiais e os

livros didáticos a serem utilizados, as atividades e a tarefas referentes ao plano proposto,

além das expectativas frente ao que foi planejado. Os planos embasariam o trabalho do

professor através dos roteiros por eles propostos e seriam realizados por meio das

técnicas de ensino referentes a cada matéria do curso primário, que foram explicitadas

passo a passo pelos autores dos manuais. Posteriormente a prática consistiria na

verificação do ensino, isto é, nos testes e provas definidos e dirigidos pelos objetivos

propostos nos planos, que mediriam tanto a aprendizagem dos alunos quanto a

eficiência do professor. É importante ressaltar que as etapas descritas brevemente aqui

são precedidas por uma elucidação teórica e depois são detalhadas passo a passo para a

sua realização, então como fazer uma prova, como montar uma atividade, como

construir os planos de aula, quais os caracteres indispensáveis para a realização das

aulas, quais os passos a serem seguidos para o ensino de leitura ou de geometria, por

exemplo.

Reconhecendo ou não o modelo de roteiro presente nos manuais, o fato é que as

prescrições práticas presentes nesses livros didáticos iam ao encontro da necessidade de

normalização do ensino no país, que até então ainda se apresentava disperso diante de

inúmeros modos de fazer e também diante das disputas travadas em torno do ideário da

13

Escola Nova. A semelhança entre as práticas presentes nos manuais analisados aqui

mostra essa necessidade de firmar um ideário, que independentemente da orientação

doutrinária, se laica ou católica, se diferentes dentro de um mesmo grupo ou não, já

estava ganhando o terreno da intermediação entre seus fundamentos e a prática, isto é,

ganhavam espaço também nas proposições práticas para o exercício do magistério, para

além da teoria difundida largamente desde a década de 1920, sendo condição

indispensável para a consolidação de um sistema pedagógico, pois se há uma concepção

pedagógica também está presente a intenção da orientação de práticas

(VALDEMARIN, 2010).

Conclusão

O campo de disputa pela circulação de idéias e orientação de práticas entre

católicos e renovadores e as reorientações teóricas de análise que emergiram com a

História Cultural, nas últimas décadas, nos fez procurar aproximações com uma das

interpretações da Escola Nova, a partir de um dos produtos culturais produzidos como

estratégia de legitimação do ideário escolanovista no Brasil. Podemos afirmar que as

práticas escolares propostas nos manuais pedagógicos destinados à disciplina Prática de

Ensino, e publicados pela vertente católica, estavam em consonância com os preceitos

da Escola Nova, portanto, com a utilização de métodos ativos a partir do interesse e do

desenvolvimento biológico da criança, sendo o processo de construção de seu

conhecimento mediado pelo professor. A ressalva recai sobre a forma como essas

práticas escolares foram prescritas: a partir de modos de fazer com roteiros pré-

estabelecidos para o exercício do magistério primário, indicando que a estrutura trazida

pelos manuais pedagógicos refletia os velhos modos de transmissão de conhecimentos e

não de construção dele, assim como apregoado pela Escola Nova.

Dessa forma, legitimamos a tentativa de analisar os manuais pedagógicos e as

práticas escolares por eles propostas, inferindo que essas práticas eram direcionadas

como modos de fazer e descritas passo a passo, procurando enfatizar para os leitores a

importância do ensino ativo e da educação moral para o magistério primário como

elementos principais na construção da educação no país, conciliando o ideal pedagógico

hegemônico às censuras eclesiáticas e demonstrando a aproximação pretendida pela

Escola Nova entre a teoria e a prática.

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Os católicos criaram uma identidade a partir da depuração dos ideais

escolanovistas, por meio da apropriação das idéias que a Igreja apoiava ou condenava e

dos fundamentos da Escola Nova difundidas pelos renovadores, já que “a apropriação

tal como a entendemos visa uma história social dos usos e das interpretações,

relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que

os produzem” (CHARTIER, 2002, p.68), justificando as diferenças e similitudes

presentes nos dois manuais pedagógicos analisados, bem como as aproximações e

distanciamentos do ideário da Escola Nova. Essa apropriação era uma das responsáveis

por nortear a prática do magistério em sala de aula, tendo em vista a grande circulação

dos manuais pedagógicos de Prática de Ensino de Theobaldo Miranda Santos e Afro do

Amaral Fontoura, entre as décadas de 1940 e 1960, visando uma escola que fosse para

além dos fins educacionais, mas pautada pela evolução moral e pelo direcionamento

cristão.

Referências

CARVALHO, M. M. C. A escola e a República e outros ensaios. Bragança Paulista:

Edusf, 2003.

CHARTIER, R. As práticas da escrita. In: CHARTIER, R. (org.). História da vida

privada, vol. 3: da Renascença ao século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras,

1991.

CHARTIER, R. O mundo como representação. In: CHARTIER, R. À beira da falésia: a

história entre certezas e inquietudes. Tradução: Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre:

Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

CHOPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte.

Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 549-566, set/dez, 2004.

FONTOURA, Afro do A. Prática de Ensino. Rio de Janeiro: Editra Aurora, 1960.

MONARCHA, C. Brasil Arcaico, Escola Nova: ciência técnica e utopia nos anos 1920-

1930. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

SILVA, V. B. História de leituras para professores: um estudo da produção e

circulação de saberes especializados nos “manuais pedagógicos” brasileiros (1930-

1971). Dissertação de Mestrado, Unesp, Marília, 2001.

SANTOS, T. M.. Noções de Prática de Ensino. Sao Paulo: Companhia Editora

Nacional, 2ª edição, 1951.

15

VALDEMARIN, Vera Teresa. História dos métodos e materiais de ensino: a escola

nova e seus modos de uso. São Paulo: Cortez, 2010.

1 Assim como aponta Carvalho (2003), a separação entre católicos e reformadores é redutoramente demarcada, já que oculta os pontos em comum do movimento do ideário no Brasil. Isso porque, segundo a autora eles possuiam objetivos comuns, no sentido de normatizar práticas escolares, promover a mudança na mentalidade do professorado, conquistar a hegemonia no campo educacional e, portanto, na formação das elites e do povo. O ponto em divergência entre os dois grupos dava-se no campo das estratégias tomadas para alcançar objetivos comuns. Porém, a separação nos serve de forma a elucidar as cisões do movimento e as disputas que foram travadas em torno dele. 2 O grande número de edições e tiragens dos manuais representa a grande disseminação desse material didático, mas isso não garante que esses manuais foram lidos, nem que suas prescriões práticas foram adotadas e é por isso que trabalhamos com possibilidades a partir da interpretação dos indícios constantes nas fontes e nas referências utilizadas para o trabalho.

3 Em 1957, o Decreto n. 3.739, de 22 de janeiro altera a denominação da disciplina para Metodologia e Prática de Ensino.

4 De acordo com Viñao (2001), a cultura escolar se articula a partir dos seguintes aspectos: as práticas e rituais da ação educativa; o funcionamento das salas de aula; os modos organizativos de funcionamento da escola e as relações entre seus atores; os discursos, modos de representação, conversação e comunicação.

5 expressão utilizada pelos expoentes católicos para se diferenciar da Escola Nova dos reformadores, segundo Carvalho (2003).

6 O trabalho de Costa (2007), que identificou o discurso católico contra o Deweyano por considerá-lo pragmatista, cético e comunista, quando analisa os manuais pedagógicos Noções de História da Educação (1951), de Theobaldo Miranda Santos, e A filosofia contemporânea (1981), de Leonardo Van Acker, aponta forte embate e aversão desses autores ao pensamento filosófico de Dewey. Porém, não identificamos esse discurso combativo nos manuais destinados à disciplina Prática de Ensino. Em nossa interpretação, no âmbito das prescrições práticas, as diferenças e acusações apontadas por Costa (2007) se amenizavam, no sentido da aproximação, apontada pela literatura acadêmica, dos católicos às ideias escolanovistas difundidas pelos renovadores. Confirmando, portanto, a tese de que o discurso de embate se dissolveu e deu lugar às conciliações entre a filosofia dos liberais e a filosofia dos católicos.

7 “[...] vivia-se uma época de separação e distinção entre o velho e o novo, o antigo e o moderno, a ‘consciência de ruptura’ dos reformadores aparecia como percepção das demandas do tempo e da história. Decidida a promover soluções apaziguadoras e negações drásticas do passado histórico-cultural, uma polifonia verbal alardeava a iminência da passagem de etapas retrógradas para outras modernas e industriais” (MONARCHA, 2009, p. 68).

8 Nos manuais pedagógicos analisados aqui pudemos identificar algumas características que os autores atribuem a escola tradicional: pautada por um conjunto de regras e formas, na trasmissão e não construção do conhecimento, na fixação de hábitos e na centralidade do professor no processo de ensino e aprendizagem, ao invés da centralidade no aluno.