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TEXTOS 62 Resumo: O texto aborda a função do tempo na psicanálise, através do auxílio das ciências ditas exatas, tais como a topologia e as teorias dos grafos, de redes, dos nós, etc. Com elas, além da formalização da psicanálise, se pode presentificar o conceito de espaço-tempo inserido na escuta analítica, assim como no discurso do analisando e na transferência, determinando, inclusive a direção de uma cura. Palavras-chave : psicanálise, topologia, tempo, espaço. TOPOLOGY AND TIME Abstract: The text discusses the role of time in psychoanalysis, through the aid of so-called exact sciences, such as topology and the graph theories, networks, nodes, etc. With them, in addition to the formalization of psychoanalysis, we can presentify the concept of space-time inserted in analytic listening, as well as in the discourse of the patient and in transfer, determining the direction of a cure. Keywords : psychoanalysis, topology, time, space. Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 62-69, jul./dez. 2010 TOPOLOGIA E TEMPO Ligia Gomes Víctora 1 1 Psicanalista; Membro da APPOA; Responsável pelos Seminários e Oficinas de Topologia da APPOA. E-mail: [email protected]

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TEXTOS

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Resumo: O texto aborda a função do tempo na psicanálise, através do auxíliodas ciências ditas exatas, tais como a topologia e as teorias dos grafos, deredes, dos nós, etc. Com elas, além da formalização da psicanálise, se podepresentificar o conceito de espaço-tempo inserido na escuta analítica, assimcomo no discurso do analisando e na transferência, determinando, inclusive adireção de uma cura.Palavras-chave : psicanálise, topologia, tempo, espaço.

TOPOLOGY AND TIME

Abstract: The text discusses the role of time in psychoanalysis, through the aidof so-called exact sciences, such as topology and the graph theories, networks,nodes, etc. With them, in addition to the formalization of psychoanalysis, wecan presentify the concept of space-time inserted in analytic listening, as wellas in the discourse of the patient and in transfer, determining the direction of acure.Keywords: psychoanalysis, topology, time, space.

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 62-69, jul./dez. 2010

TOPOLOGIA E TEMPO

Ligia Gomes Víctora1

1 Psicanalista; Membro da APPOA; Responsável pelos Seminários e Oficinas de Topologia daAPPOA. E-mail: [email protected]

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Instante de ver

Àprimeira vista, os conceitos de tempo e de espaço podem parecer bemdistintos. Pelo senso comum, o tempo pode ser medido por relógios, sol,

fases da lua, calendários, enquanto o espaço pode ser avaliado em metros,quadras, mapas, etc. Mas basta uma reflexão simples para constatar que não ébem assim.

Quando, por exemplo, se marca um encontro, o que se diz? Em primeirolugar, endereço: rua tal, número tal. Mas só com as coordenadas espaciais,uma das partes pode ir na segunda-feira, e a outra, no domingo. Nunca irão seencontrar. Logo, é preciso sempre estar ciente de uma outra dimensão: Quando?.Dia e hora do encontro completam a informação. O tempo é um número para sedemarcar as coordenadas de um espaço! Pois, o que se vê na realidade? Queessas noções – tempo e espaço – andam sempre juntas. Tanto que as primeiraspreocupações dos filósofos da Antiguidade – para além das leis morais e éticas– são com o cálculo do espaço físico (inclusive o sideral) e do tempo: o infinitoe a eternidade. Quanto a isso, Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) (1995), afirmaque movimento e tempo são interdependentes: um determinando o outro emuma função recíproca e permanente. Ainda antes, Parmênides (530 a.C. – 460a.C.) definira um corpo em movimento como sendo um ponto entre dois infinitos,e seu discípulo Zenão de Eleia (490 a.C. – 430 a.C.), a propósito, já classificaracomo impossível medir-se uma grandeza infinitamente grande com um númerofinito. Isso seria explorado durante séculos, e muitos outros matemáticos efilósofos correriam, como Aquiles, atrás de uma solução para seu paradoxo datartaruga. Somente no século XX encontra-se uma saída possível, com aformalização dos conceitos de limite e tendência.

Mais de dois milênios transcorridos, Einstein ([1953] 1981), finalmente,daria um passo à frente, formalizando todas essas constatações com a teoriada relatividade de 1915. Segundo ele, espaço e tempo não apenas não sãoindependentes – como já suspeitara Aristóteles sem ter como prová-lo –, mastambém fazem parte de uma variedade de quatro dimensões, sendo três espaciaise uma temporal. Porém, contrapondo-se à física aristotélica e mesmo ànewtoniana, a teoria de Einstein demonstra que o espaço de três dimensõesdeveria ser substituído por um novo espaço-tempo, de quatro dimensões. Alémdisso, a relatividade do tempo também implica diferentes percepções – conformea pressa do observador, digamos assim, pode ser dilatado ou diminuído seucompasso. A expressão “o tempo voa”, além de denotar uma tautologia, fala dasubjetividade do nosso tempo, que é elástico. Prova disso: experimente navegarna internet por 60 minutos. Depois tente caminhar numa esteira durante essemesmo tempo...

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Como Cronos e Aion – o fugaz momento presente e a contínua einapreensível passagem – entre o tempo objetivo e o subjetivo há muitas variáveis,provavelmente todas elas presentes em cada tratamento psicanalítico.

Tempo para compreender

É óbvio que o tempo é fundamental para toda psicanálise. Ele se materializa,não apenas no tempo de duração de uma sessão ou de uma cura, na frequênciae na regularidade das sessões. Quanto a isso, é estranho ouvir como as pessoasem geral medem suas análises: – “Estou em terapia há dez anos”. – “E eu, háquinze”. Quando escuto um diálogo desses, minha vontade é de perguntar: –“Como assim? Tanto tempo em análise e ainda estão tentando aferir o infinitocom o relógio?”. Enfim, seria como medir o incomensurável. Talvez seja somentedepois de concluída uma cura – naquele tempo freudiano do Nachträglich – queisso possa se organizar.

Aliás, esse tempo retroativo – chamado por Lacan ([1956-57]) de après-coup – também está implicado em toda intervenção do terapeuta – como naspontuações, nos cortes da sessão e mesmo em seu silêncio – que pode terefeito de interpretação. Só depois se constatam suas consequências. A ausênciade resposta, por exemplo, muitas vezes faz a escansão imprescindível aomovimento de báscula do inconsciente. Nisso, pode-se dizer que é o tempológico que regula. E é de responsabilidade do analista – aquele que se rege pelodesejo de escutar e de conduzir uma cura.

De como o tempo se manifesta na sessão de análise e na transferência,parece desnecessário acrescentar, pois ele está implícito nos mecanismos decondensação, deslocamento, projeção, e na própria narrativa – nas figuras delinguagem. Dentre estas, a metáfora e a metonímia geralmente são as maistrabalhadas, o simultâneo e o sucessivo na retórica de cada sujeito,representando os movimentos sincrônicos e diacrônicos da dialética.

*****

Há muito anos, numa tarde cálida, entro na sala de espera para receberuma paciente de dezesseis anos, e ela está dormindo no tapete. Acorda-secom minha entrada: – “Desculpa. Aqui tem uma cor, cheiro, de infância, sei lá,baunilha, me lembra bolo quente, sesta e verão”. Se fosse Lacan, eu a mandariavoltar no outro dia. Um retorno à infância, sinestesia, catarse, acting out ,interpretação – uma sessão completa feita à espera da sessão.

À la Proust – que diz que o corpo tem memórias – essa breve viagem notempo relatada pela menina, se percebida e considerada pelo analista como um

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mecanismo de emergência do inconsciente – point de capitón, em Lacan –pode ser pontuada e aproveitada como início de abertura para outras associações.

Freud, desde os primeiros escritos, com sua técnica da associação livre,faz questão de mostrar que o segredo está nas palavras: não atrás delas, nãonas entrelinhas. Seu artigo sobre as Lembranças encobridoras (Freud, [1899]1976) é um bom exemplo (entre muitos em suas obras) de como trabalhar oencadeamento entre os termos de um discurso para se chegar à verdade doinconsciente.

E, nisso, Freud é mestre. Trabalhando com a teoria de redes, vai tecendoum bordado entre pontos escolhidos da fala de seus pacientes, cozendo-os natela infinita, ou melhor, transfinita, da estrutura de cada um. A interpretação vem,então, como um nó nessa linha de costura delicada.

– “No meu sonho, que estava numa casa antiga, que eu conheço muitobem, e ia mostrando para... [colegas], abrindo suas muitas portas para muitaspeças. Já fui nesta casa muitas vezes, mas só em sonhos... Me lembra a casada minha vó no interior... mas era diferente... Uma vez estava em férias nessacasa e sonhei...” (sic).

Nesse relato de um analisante de 30 anos, muitas dimensões do tempovão se abrindo como as portas de sua casa construída no mundo dos sonhos –dispostas sucessivamente, uma após outra, como imagens numa sala deespelhos. A superfície se replica não só no espaço, mas, como se pode observarem todas as narrativas, em muitas dimensões do tempo – para além da realidadee da imaginação, o simbólico tem esse poder de acrescentar sempre mais umelemento, como um conjunto infinito cantoriano.

Também o tempo verbal com que um sujeito fala – sua escolha seriaapenas por acaso? O que significa quando ele opta por contar um sonho ouacontecimento no passado “[...] eu estava numa casa [...]”; no presente “[...] euestou numa casa [...]”; ou no pretérito perfeito do modo Indicativo “[...] eu estivenuma casa [...]”? E quando mistura os tempos verbais, numa precariedade deparalelismo gramatical injustificável perante seu nível de escolaridade? A ausênciade paralelismo denunciaria a hesitação de um Sujeito enunciador que não sabeem que lugar ele próprio se situa nesses tempos de sua vida e da história de suafamília.

A rigor, o psicanalista deve estar atento a essas nuanças da linguagemde seu paciente e tratar inclusive erros de concordância verbal como sendolapsus linguæ. Se estiver demonstrado no discurso, pede uma pontuação epode ser interpretado. O mais profundo é a pele, diria o grande poeta e frasistafrancês Paul Valéry (1996). A verdade do inconsciente, assim como suaresistência, pode ser revelada não na história contada ou no assunto abordado,mas através dos termos empregados em seu relato. Como uma tela disposta

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por cima, para encobrir o segredo do inconsciente, a narrativa serviria comodisfarce, hipnotizando o analista, quando o que importa mesmo jaz na superfície.

“O que se diga fica esquecido atrás do que se diz, naquilo que se escuta”2

(Lacan, 1973, p. 5). Essa frase, Lacan a enuncia no modo subjuntivo, para emseguida ressaltar que é no que tange à sua lógica que todo discurso toca oReal, e, assim, justificá-lo como impossível. A verdade, então, pode surgir aqualquer hora, em todo lugar, mas ficaria velada, à espera de uma decifração.Sua enunciação é um momento da existência do sujeito que se situa em suafala. Revela-se, mas exige um Champollion para ler seus hieróglifos. É nessesentido que o dizer do sujeito ficaria perdido atrás do dito, mas se revelaria nomomento em que o analista o escuta.

A topologia e o tempo

Se o tempo é essencial a todo relato e à cura analítica, às vezes ainda édifícil compreender como as ciências ditas exatas, tais como a topologia e asteorias dos grafos, de redes, dos nós, etc., podem nos auxiliar na clínicapsicanalítica. Qual é a relação entre os pontos de inflexão de curvas, pontos detensão em nós, torções em superfícies, planos projetivos, toros, cintas mœbianas,com algo tão delicado como a escuta analítica? Tanto em Freud quanto emLacan, a necessidade de buscar uma formalização da psicanálise em linguagemcientífica é uma constante.

Freud, em seus escritos, cartas, esquemas, desenhos e grafos, tenta atoda ocasião possível encontrar uma topografia dos processos do pensamentoe do comportamento humano. A cada avanço de sua teoria, retoma toda elanovamente e, com a perseverança de um Frege3, tenta reordenar sua obra.Exemplos disso encontram-se nos textos: Projeto para uma psicologia científica(Freud [1895] 1976); Sobre a psicoterapia (Freud [1905] 1976); O tratamentopsíquico (Freud [1905] 1976); O interesse científico da psicanálise (Freud [1913]1976); A história do movimento psicanalítico (Freud [1914] 1976); Psicanálise(Freud [1926] 1976); Esboço de psicanálise (Freud [1938] 1976).

O interesse de Lacan pela topologia e por outros ramos das matemáticasaponta para essa mesma direção: como Freud, ele atualiza suas pesquisas

2 «Qu’on dise reste oublié dernière ce que se dit dans ce que s’entend». (Tradução da autora).3 Gottlob Frege (1848-1925), matemático e filósofo alemão, fez o mesmo nas matemáticas comsua obra Fundamentos da aritmética (Frege, 1884).

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incessantemente. Estuda a fundo essas outras ciências, em busca de ummathema, uma escritura universal que faça a transmissão integral da psicanálise.

Porém, à diferença de Freud, a obra de Lacan é, mormente, falada: suaherança são lições orais, proferidas ao vivo durante quase trinta anos, e depoistranscritas por alunos. Justamente por ser verbal, e não escrito, seu produto nãopode ser revisado, corrigido ou modificado pelo autor. Seus seminários sãoprofícuos em deslizes teóricos (quando aborda questões matemáticas), lapsos,erros gramaticais e falhas de paralelismo verbal. Tal e qual as alocuções de umsujeito em análise – e ele mesmo diz que todo analisante fala desde o discursohistérico – sua fala gongórica às vezes é muito custosa ao leitor para decifrar.Com variadas figuras de estilo – Lacan fala, muitas vezes, utilizando-se demetataxes, negações, elipses, quiasmas. Seria, talvez, a tentativa de entrarnos intervalos impossíveis entre dois heterodoxos, que tanto o intrigavam? Senão, vejamos na passagem a seguir:

O nó não se trata de um modelo, o que seria da ordem doImaginário A topologia suporta sem imagem, isto é, não supõenada, a não ser letras [...] somente suporta o Real (Lacan, [1973-1974], lição de 15/01/1974).

E nestas outras, aparentemente contraditórias:

A topologia é imaginária. Ela não se desenvolveu a não ser atravésda imaginação... Há uma distinção que se deve fazer entre oImaginário e o que chamo de Simbólico. O Simbólico é a palavra; oImaginário é distinto daquele (Lacan, [1978-1979], lição de 19/12/1978). O nó é um abuso de metáfora, porque na realidade não há nadaque suporte o Imaginário, o Simbólico e o Real (id. ibid., lição de09/01/1979).

Mesmo assim, até o final de seu ensino, Lacan se esforça por lançarconceitos sobre o tempo e o espaço do campo psicanalítico, e tenta formalizá-los através da topologia. No seminário A topologia e o tempo (Lacan, [1978-1979]), por exemplo, ele faz uma analogia entre a topologia e a práticapsicanalítica, afirmando que essa correspondência consiste no tempo. Pareceenigmático, mas, lendo-se seu texto todo, vê-se que o tempo está para apsicanálise assim como está para a topologia – o tempo é a dimensão necessáriapara a aplicação de qualquer operação – seja ela corte, pontuação ou interpretaçãodo psicanalista.

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O espaço e o tempo da psicanálise em Lacan seriam como uma cintamœbiana com muitas torções: como sua obra, ela vai e retorna, se torce e voltasobre si mesma, num permanente movimento. Mais que mœbiano, consideroque o campo de uma psicanálise deva ser pensado como um espaço – não oeuclidiano, como muitas vezes Freud e Lacan o fazem – mas como um espaçominkowskiano. A hipersuperfície de Minkowski4 é uma variedade pluridimensional,que ultrapassa com muitas vantagens suas tentativas de demonstração emsuperfícies de conexões planas, do diagrama de representação das palavras(Wortvorstellungen) de Freud ([1891]; [1915] 1976)5, ou da cadeia de significantesde Lacan, bem como do funcionamento de uma psicanálise.

Essas hipersuperfícies nos mostram outras possibilidades de articulaçãode redes. Sua matematização inclui números complexos [ϕ : Mn – (Rn+ 1)] emsuas equações; logo, não são passíveis de construção no espaço trivialtridimensional. Para visualizá-las, trabalha-se com imersões e mergulhos emespaços de dimensões menores, havendo sempre uma perda considerável.Nessas figuras lindas e virtuais, tempo e espaço se desdobram em superfíciesfolhadas infinitamente, ou melhor, transfinitamente, pois sempre se pode adicionarmais uma associação, como nos relatos de um analisante.

Com os recursos da topologia, hoje é possível transpor barreiras do espaçoe do tempo, fazer passagens entre dimensões, transformações entre estruturas,o que Freud e Lacan, em sua época, intuem, mas não podem justificar.

Momento de concluir

A topologia resiste, e é aí que a correspondência [entre topologia etempo] existe. [...] Apesar de tudo, há uma hiância entre apsicanálise e a topologia. No que me detenho, é nesta hiância: empreenchê-la [...] (Lacan, [1978-1979], lição de 21/11/1978) (Traduçãoda autora).

Lacan e seus quiasmas – suas hiâncias, punções, básculas – oscruzamentos entre termos dão tempo e espaço para surgir o desejo e,consequentemente, o sujeito desse desejo.

4 Hermann Minkowski (1864-1909), matemático russo.5 Ver Monografia sobre as Afasias (1891); e O Inconsciente (1915), Apêndice C: Palavras eCoisas.

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REFERÊNCIAS:ANDRADE, Almir. As duas faces do tempo. São Paulo: USP, 1971.ARISTÓTELES. Física. Trad. Guillermo R. de Echandía. Madrid: Gredos, 1995.Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/7264164/Aristoteles-Fisica .EISTEIN, Albert. Como vejo o mundo [1953]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.FREGE, Gottlob. Fundamentos da aritmética [1884]. Rio de Janeiro: Abril Cultural,1973. (Col. Os Pensadores, v. XXXVI)FREUD, Sigmund. Monografia sobre as Afasias [1891]. In: ______. Edição standardbrasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Imago, 1976.______. Projeto para uma psicologia científica [1895]. In: ______.______. Sobre as lembranças encobridoras [1899]. In: ______.______. Sobre a psicoterapia [1905]. In: ______.______. O tratamento psíquico [1905]. In: ______.______. O interesse científico da psicanálise [1913]. In: ______.______. A história do movimento psicanalítico [1914]. In: ______.______. O inconsciente [1915]. In: ______.______. Psicanálise [1926]. In: ______.______. Esboço de psicanálise [1938]. In: ______.LACAN, Jean-Marie Jacques. Séminaire La relation d’objet [1956-1957]. In: ______.Œuvres complètes [1952-79]. Disponível em: <www.gaogoa.free.fr>. Acesso em: 01/06/2011.______. Séminaire Le désir et son interprétation [1958-1959]. In: ______.______. Séminaire Les non-dupes errent [1973-1974]. In: ______.______. Séminaire La topologie et le temps [1978-1979]. In: ______.______. L’étourdit. Scilicet, n. 4, p. 5-52, 1973. Disponível em: <www.gaogoa.free.fr>.Acesso em: 01/06/2011. [Ed. bras.: O aturdito. In: LACAN. Outros escritos. Rio deJaneiro: Zahar, 2003.]Biografias dos matemáticos. Disponível em: < www.history.mcs.st-and.ac.uk >. Acessoem: 01/06/2011.VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.VÍCTORA, Ligia Gomes. Notas sobre o seminário A topologia e o tempo. Correio daAPPOA – Topologia e tempos lacanianos, n. 175, Porto Alegre, dez. 2008.

Recebido em 05/04/2011Aceito em 23/04/2011

Revisado por Valéria Rilho

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TEXTOS

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Resumo: O artigo propõe uma reflexão sobre o ato analítico pela verificação dacondição borromeana do nó. O estudo vem desde a linha temporal significantede F. de Saussure, passa pelas semi-retas de J.Nicod e chega até a cadeiaborromeana de J.Lacan. A proposta sustenta-se na série significante de S1 geradana cadeia de associações livres, todos atravessados na produção de um novosignificante mestre pelo discurso do analista.Palavras-chave: par ordenado, associação livre, diagnóstico, gozo.

(UN)TIE

Abstract: the article proposes a reflection on the analytical act through verifyingthe knot borromean condition. The study comes from the signifier´s time line ofF. de Saussure, passes through the semi-straight lines and reaches the borromeanchain of J. Lacan. The proposal finds support in the signifiers seiries of S1generated in the free associations chain, all crossed in the production of a newmaster signifier by the discourse of the analyst.Keywords: ordered pair, free association, diagnosis, jouissance.

(DES) ATO1

Adão Luiz Lopes da Costa2

1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Dizer e fazer em análise, realizadasem Porto Alegre, novembro de 2010.2 Médico; Psiquiatra; Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Diretorda Hybris – Clínica de Psicanálise e Psiquiatria. E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 70-81, jul./dez. 2010

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Inicio evocando o famoso caso Aimée, do Lacan psiquiatra, publicado em Paris,em 1932, com o nome Da psicose paranoica em suas relações com a persona-

lidade (Lacan, [1932] 1985). Allouch (1997), a respeito desse livro, escreve quea apresentação do caso Aimée se faz, inicialmente, como pesquisa histórica ediagnóstica. Depois Lacan nos apresenta o não menos famoso O estádio doespelho como formador da função do eu (Lacan, [1949] 1998), para logo dedicar-se à linguística de Saussure. E com isso coloca o significante como insumobásico para todo o trabalho em psicanálise.

O algoritmo que funda a linguística é que o significante remete ao significadoS/s. Essa apresentação do significante serviu para Laplanche (1976), em Elinconscient: un estúdio psicoanalitico, postular que a interpretação está abertaa todos os sentidos e supõe que o significante poderia significar-se a si mesmo.O significante remete ao significado e não a ele mesmo. Não só o significantenão pode significar a si mesmo como também a interpretação não está aberta atodos os sentidos (Lacan, 1979) e não pode ser qualquer coisa. Para Lacan, osignificante remete-se a outro significante: S1 S2.

Nesse momento linguístico saussuriano, o significante é definido comouma linha, uma reta temporal: S1 S2. Em seguida, com Jacobson, Lacanapresenta-nos a cadeia significante como metonímia3 e como metáfora4. A linhaou a cadeia, tudo parece tratar-se de reta até que vem outra proposta, referidapor Lacan ([1961-1962] 2003), a partir do livro de Jean Nicod (1924) em Lagéométrie dans le monde sensible, que são estudos sobre os segmentos dereta5.

Esses segmentos de retas já estavam intuídos por Lacan ([1953] s/d) emseu artigo O Simbólico, o imaginário e o real. Mesmo antes de invocar Nicod,Lacan já se deixava levar pelos segmentos de reta.

Em 9 de fevereiro de 1972, 19 anos após esse artigo, no seminário...oupior, Lacan ([1971-1972] s/d), pela primeira vez, fecha os segmentos de reta emum ponto no infinito “ ”, coloca-os sob a forma do nó borromeano6. A partir daí,

3 (Nota do Editor: A figuras reproduzidas nas notas de rodapé deste texto estão presentes no seminário O sintoma ([1975-1976]2007), de Jaques Lacan.

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não se trata mais de linha temporal, mas de emaranhado, de teia, de rede7. Talcomo propunha um dos inspiradores de James Joyce, Giambattista Vico, queviveu no século 17 e que propôs o estudo científico da história, que Lacan ([1975-1976] 2007) chama de mito Vico, pois, segundo ele, a história é a maior dasfantasias; por trás da história há sempre o mito. O mito enaltece a história.

Mesmo que Lacan tenha partido do estudo de caso como pesquisahistórica, como disse anteriormente, ele não deixa de criticar a história porque,diz ele, não reencontramos, encontramos. A única vantagem de um reencontroé que não poderia haver progresso, ficamos girando em círculos, diz ele. Vejamque mesmo pensando o emaranhado, não é fácil sair da linha temporal, da linhahistórica ou, como apresento no artigo A psicose, seu tratamento, seus limites(Costa, 2011), não é fácil quebrar a linha dura.

Com o emaranhado, desde Vico e com Joyce, passa-se, então, para oestudo do que a ciência chama a teoria do caos, das complexidades e tambémdo infinito. Refiro-me à distinção entre a linha temporal e o emaranhado dasgrandes complexidades. Veja-se Vico e Joyce. Podemos pensar ainda nosrelatos dos analisandos, inicialmente como verdadeiros emaranhados.

A ciência, ao contrário, estuda os fenômenos com tendência à reduçãoao mínimo, na busca da menor partícula, visando estabelecer umacorrespondência biunívoca entre causa e efeito. Com o nó borromeano, Lacanintroduz o modelo de lidar com o todo, com o complexo, com o emaranhado,outra forma que não a linear. Isso só veio acontecer no século XX.

Lacan espera, com o chamado nó borromeano generalizado, encontrar aboa maneira de poder manter constante a propriedade borromeana, ou seja,que, ao cortar indiscriminadamente qualquer elo, os restantes soltam-se. Issotorna-se uma busca intensa por parte de Lacan.

A ênfase passa a ser dada ao nó borromeano. Nó como aparelho do gozoe como constituição do sujeito.

O sujeito, para Lacan, decorre da relação de um significante para outrosignificante: S1 S2, o que retoma o matema inicial da reta. Seu matema diz:um significante representa um sujeito para outro significante. Não há, então,

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sujeito senão nessa relação. Sua constituição é um instante, pois se constitui edesaparece. O sujeito assim constituído é representado por um significante:

Essa descrição da relação de constituição do sujeito é o que temoscomumente: S1 S2. Mas isso é uma simplificação, pois S2, o significante dosaber no Outro, está fora do Outro, como ilustra a figura:

Dentro do conjunto do Outro não figura nenhum A (Autre/Outro) comoelemento, mas apenas significantes, que Lacan designa como Sá,Sâ,Sã. Então,o A(Autre/Outro) não é um elemento dele mesmo. Um significante não significaa si mesmo, como postulou Laplanche (1976); portanto, no interior do conjuntoOutro não figura nenhum Outro como elemento. O A maiúsculo é o Outro detodos esses significantes. Lacan apresenta aqui o chamado par ordenado8. OS1 de cada significante, diz ele, encarnado na língua, é algo que resta indecisoentre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento. É o significante-mestre. É o significante Um.

Na matemática, temos que o número 1(um) contém o subconjunto vazio,que, por sua vez, enquanto conjunto, faz um e este 1 contém o subconjuntovazio que por sua vez faz um. Vejam! Esse procedimento vai deixando um rastrode 19.

O primeiro S1 da relação S1 S2 é apenas representação do sujeito enão o constitui. Sabe-se, no entanto, que é o S1 que representa o sujeito, como

8 S1(S1(S1(S1S2)))9

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apresentado acima. Onde está, então, o S1 que deve representar o sujeito? Nãoestá no interior do Outro, pois, como já vimos, o Outro é vazio. O Outro não podeconter a si mesmo, exceto sob a forma de subconjunto.

Lacan ([1969-1970] 1992) ensina, no seminário O avesso da psicanálise,que tendo surgido S1, primeiro tempo, repete-se junto a S2. Repete-se junto aS2 sob a forma de subconjunto. De onde surge esse S1? Da livre associação.Lacan mostra como se serviu de Freud, que, com seu gênio, soube escutar ahistérica. Freud não colocou a histérica em regressão, mas em progressão.Freud não se serviu do discurso do mestre para, em regressão, bancar ouniversitário, mas tratou de tirar o corpo fora, bem ao modelo da histérica,produzindo seu ato, instaurando a histerização do discurso, escutando a histéricaem progressão. É a associação livre, é o falar sem pensar que a histéricaindustriosa faz tão bem com o parceiro, pois a histeria se produz sempre a dois.Vemos esse movimento no discurso dominante para a sua histerização, que édar um quarto de giro no sentido da progressão (sentido horário) no discurso domestre. Um quarto de giro regressivo (sentido anti-horário) produz o discursouniversitário.

A associação livre, dizer qualquer coisa, falar sem pensar... como é queisso poderia levar a algo? Nesse falar sem pensar surge uma produção fervilhantede S1. Cada fragmento de associação livre é um S1. Assim, a série deAssociações Livres compõe uma série de S1. No final, em algum ponto, se oanalista não perder a corda, essa linha, essa cadeia de S1(S1(S1... desliza10

10 S1(S1(S1(S1(S1(S1 –

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até o nó, isto é, até o corte porque é o corte que verifica a qualidade borromeanado nó.

Lacan ([1968/1969] 2008) propõe, no seminário De um Outro ao outro,servir-se do par ordenado da matemática, como sendo uma forma de colocar oS1 no Outro, como maneira de constituição do sujeito. Chama este S1 de umOutro.

A partir desse um Outro, é possível o corte de um dos elos do nó (o Real),que libera todos os outros. Isso garante a sua qualidade borrromeana. Aí está aconstituição do sujeito, a queda, o esvaziamento do objeto a e a reprodução dogozo, único para cada sujeito.

A topologia do gozo é a topologia do sujeito. É o que Lacan ([1958] 1998)chama em A direção do tratamento e os princípios de seu poder como reproduçãodo sintoma: fazer o S1 advir como representante do sujeito. Ele retoma o mentadoem O saber do psicanalista. Ali pergunta na aula de 04/05/197211:

Que é a psicanálise? É a localização de um significante que marcouum ponto do corpo. A psicanálise é o que reproduz uma produçãoda neurose. Esta neurose que se atribui à ação dos pais não élocalizável mais que na medida em que a ação dos pais se articulajustamente pela posição do psicanalista. É na medida em queesta posição do psicanalista converge para um significante queemerge aí, que a neurose vai ordenar-se segundo o discurso cujosefeitos tinham produzido o sujeito. Todo pai traumático está namesma posição que o psicanalista. A diferença está em que opsicanalista, por sua posição, reproduz a neurose, enquanto o paitraumático a produz inocentemente (Lacan, [1971-1972] s/d, p.71)12.

Segue Lacan:

Do que se trata é de reproduzir este significante a partir do qual foisua eflorescência. Fazer modelo da neurose é em suma a operaçãodo discurso analítico. Por quê? É na medida em que quita a dosede gozo, o gozo exige o privilégio de que não há duas formas para

11 Traduzido do espanhol pelo autor.12 O Seminário que ficou conhecido como O saber do psicanalista trata-se de uma série deconferências que Lacan proferiu no Hospital Saint´Anne, em Paris, nos anos de 1971-1972,concomitante ao desenvolvimento do seminário ...ou pior, proferido no mesmo período.

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obtê-lo por cada um. Toda a reduplicação o mata. Não sobrevivemais que se a repetição é vã. É do significante-amo que fala, dizele. Trata-se de apontar em um discurso o que faz efeito de um(Lacan, [1971-1972] s/d, p.71).

Estamos estudando o um que não é o outro. É um outro. Temos o um, oOutro e o um outro como diferentes categorias.

É o corte do nó borromeano que mata o gozo. O gozo é o mantenedor dosintoma. O sintoma, enquanto nutrido pelo gozo, repete-se, volta como ervadaninha. Nesse sentido, o ato analítico é um desatar. Lacan procurou o chamadonó borrroeano generalizado, com a esperança de poder cortá-lo fosse qual fossea amarração? Mas vamos verificar em Joyce que ele ressalta o chamado nó egode Joyce. Aí temos um nó que rateia:

Vejam esse nó. O elo do simbólico passa por cima do real e não porbaixo. O imaginário fica solto.

Nada mais comum imaginar esse erro, essa falha, esse lapso. Porquenão poderia acontecer de um nó não ser borrromeano, dele ratear? Joyce encarnao ego como corrigindo a relação faltante, o que, no seu caso de que não enodaborromeanamente o imaginário ao que faz cadeia com o real e o inconsciente:

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Deixa um elo livre, o imaginário, que precisa ser amarrado. O ego é o quecorrige o nó.

Vemos aqui que o real está enganchado no simbólico, o que impede apropriedade borromeana, que é cortar qualquer um e soltar todos. Então, éobrigatório fazer buraco no real, cortar no real, isto é, tirar um ponto do círculo noreal. Só dessa maneira soltam-se todos os elos. É a retirada de um ponto noinfinito que faz buraco no real.

A questão é a seguinte: será que podemos cortar com o chamado nóborromeano generalizado ou somente o real faz corte, faz nó, faz bindung, fazligação? Se for assim, só podemos cortar no real. Mas, atenção, isso não é agirna realidade como mimese do real. Repito que o corte só pode fazer buraco noreal (retirar um ponto no infinito no real) para liberar todos os elos. Dizíamos,anteriormente, que bastava cortar qualquer um dos elos para soltar todos. Agoraé preciso cortar especificamente no real, para que haja a liberação de todos.Isso Lacan ([1974-1975] 2007) avança com seu estudo de James Joyce.

O que ocorre quando alguma coisa acontece a alguém em consequênciade uma falha?

Essa falha não está condicionada unicamente pelo acaso. Há, por trásde todo lapso, para chamá-lo por seu nome, uma finalidade significante. Se háum inconsciente, a falha tende a querer exprimir alguma coisa, que não é somenteo que o sujeito sabe, uma vez que o sujeito reside nessa divisão mesma que éa relação de um significante com outro significante. O sinthoma produz-se nolugar exato em que o traçado do nó sai errado. É o jeito com que o falante secorrige.

Temos o significante como insumo básico da psicanálise e com ele vamosoperar no real. Isso é totalmente diferente do deslizamento polissêmico infinitodo significante. O corte, a queda do objeto implicará que nada mais será comoantes. A queda do objeto é a realização do (des)ser que atinge o sujeito supostosaber. Como propõe Lacan ([1974-1975] 2007) no seminário O sinthoma não hásujeito senão como suposto. O sujeito é suposto e depende do significante umque o represente.

O falante inscrito na linguagem, frequentando o campo do Outro, refazsua amarração, agora de outro jeito. Muitos dizem que a soltura dos elos, dosregistros da linguagem, pode causar psicose. E pode mesmo. Lacan explica:

Basta que Um-pai se situe na posição terceira em alguma relaçãoque tenha por base o par imaginário a-a’, isto é, eu-objeto ou ideal-realidade, concernindo ao sujeito no campo de agressão erotizanteque ele induz (Lacan, [1955] 1998, p. 584).

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Momento, portanto, em que a psicose pode eclodir.Não há dúvida de que a figura de um prof. Flechsig, em sua gravidade de

pesquisador, consegue seus Schreberes, dando-lhes consistência imagináriaque, por mais desprovida de sentido que pareça, não deixa de estar no imaginário,mesmo parecendo real. Pode ainda conseguir boas crises de pânico, e outrascoisas mais. Um-pai é diferente do significante do nome do pai. Este é o quereduplica no lugar do Outro.

O corte do nó borromeano produz a cessação súbita no encadeamentode pensamentos ou a interrupção no meio de uma frase. Isso é conhecido empsiquiatria como bloqueio do pensamento ou privação de pensamento. O tempoé aspirado ao modelo da alucinação negativa.

Lacan ([1966-1967] s/d) começa a usar a denominação “ato psicanalítico”no seminário a Lógica do fantasma, em fevereiro de 1967. O curioso é que, apóssua apresentação do nó borromeano, em 9 de fevereiro de 1972, ele nunca maisse refere à expressão “ato psicanalítico”. A partir do nó, o que lhe interessa é oreal. Fazer furo no real, desafiar o impossível.

Lacan ([1975-1976] 2007), no seminário O sinthoma, refere-se a umanoção de real. Segue dizendo que pode haver um contexto em que o real façasentido. Mas parece que o real se funda por não ter sentido, por excluir o sentidoou, mais exatamente, por se decantar ao ser excluído dele. Prossegue: “A formamais desprovida de sentido do que, entretanto, se imagina é a consistência”(Lacan, [1975-1976] 2007, p. 63). Nada nos faz imaginar a consistência. Aconsistência mantém junto e mostra a corda. A consistência exclui o nó.

Esse real da consistência pode ser, por exemplo, uma crise de pânico,como já referido acima, que mesmo após 10 avaliações médicas, continua na11ª a morrer de ataque. A consistência, a corda, a linha temporal faz sintomasclínicos. Esse real faz sentido e é consistente, mesmo que não imaginemos osentido na consistência. Portanto, é imaginário, mas vivido como consistênciareal. A saída é fazer o nó borromeano que exclua o sentido.

Deve ser lançada nos Estados Unidos uma versão da nova edição doManual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V). Vem sendotrabalhada nesta DSM-V uma investigação sobre o impacto das mutaçõesgenéticas no desenvolvimento do cérebro. Elas estão revelando que as condiçõesanteriormente consideradas distintas têm muitas vezes base genética comuns.Por exemplo, um gene que contribui para a esquizofrenia também contribui paraa ansiedade. Genes que interferem na bainha de mielina podem afetar pacientescom esquizofrenia e transtornos bipolares. Ainda, uma década de imagem cerebralestá mostrando os mesmos circuitos neuronais envolvidos em muitas doenças.Os circuitos de recompensa, por exemplo, estão implicados na dependência,na esquizofrenia, na depressão e no transtorno obsessivo-compulsivo.

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Parece estar emergindo aí uma maneira nova para olhar o diagnósticopsiquiátrico, no qual não existiria uma relação um-para-um entre genes esintomas. Além disso, os remédios mais comumente prescritos em psiquiatriasão eficazes em muitos diagnósticos, precisamente por apresentaremcaracterísticas subjacentes em comum.

A Associação Americana de Psiquiatria (APA) e também a OrganizaçãoMundial de Saúde (OMS) estão se deparando com questões tanto de saúdepublica como de pesquisa que as obrigam a pensar em formulações mais alémda proposta inicial, que era encontrar classes de diagnósticos-padrão com seustratamentos específicos. É claro que a DSM não vai deixar de ser um manual dediagnósticos. A psiquiatria precisa continuar sua proposta de encontrar classesdiagnósticas confiáveis.

Vamos considerar, então, por outro lado, a ideia sugerida por Lacan ([1975-1976] 2007) psicanalista, em oposição ao psiquiatra referido no início do texto,no seminário O sinthoma, que há apenas uma espécie do nó de três. E que “seo nó de três, qualquer que ele seja, é de fato o suporte de toda espécie desujeito como interrogá-lo? Como interrogá-lo de modo que se trate efetivamentede um sujeito? (Ibid., p.52)”. Repito: O que é indispensável no tratamentopsicanalítico é a constituição do sujeito. Não há ato psicanalítico sem constituiçãodo sujeito. E, ainda, será que qualquer emaranhado pode ser elevado à condiçãodo nó de três?

Lacan parece permanecer emaranhado entre a reta, a corda, a consistênciae o nó borromeano. Mesmo que ele proponha o nó de três como suporte de todaespécie de sujeito ainda pensa a paranoia não como uma linha dura, impenetrávelna continuidade dos três registros, mas o nó de três como uma única e mesmaconsistência. Mas aqui paranoia já passa a ser igual a personalidade, ou seja:paranoia = personalidade.

Vemos que Lacan se afasta dos diagnósticos, das classificações e dahistória.

Essa questão do nó de três nos põe a pensar a operação psicanalíticamais além do que pela via das estruturas, aliás, como precisa fazer a novaDSM-V; a par de sua busca de classes diagnósticas confiáveis, também precisatrabalhar sobre os impasses diagnósticos que os resultados evidenciam. Então,parece que, por materialidades diferentes, pode-se vir a cogitar coisassemelhantes. Tudo isso a partir de resultados e, certamente, muito menos pelaaceitação dos especialistas. Porque a abordagem por classes diagnósticasfacilita muito mais o treinamento e a administração de terapêuticas pelosespecialistas, como ainda facilita o manejo do grande número de pessoas queprecisam ser incluídas em programas de saúde mental no mundo, segundo aOMS.

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Mas o que faria então a singularidade do sujeito, se o nó de três puder sero suporte de toda espécie de sujeito? Lacan já nos trouxe que cada sujeito tem,isso sim, sua maneira própria de gozar. Cada um para cada gozo próprio. Só háum objeto de gozo. Tratamos, portanto, singularidades. O que não dispensa asidentificações, os grupos.

No 6º Fórum Político da Unimed, realizado em maio de 2010, em PortoAlegre, Contardo Calligaris disse que pensar é um ato individual. “Pensar porconta própria é um ato político”. Conforme ele: “O mal é o grupo eliminar opensamento individual”. “O que me importa”, diz ele, “é o meu esforço pessoalpara recusar a proposta de cumplicidade, que significa a desistência dopensamento”. O ato psicanalítico, constituinte do sujeito, visa justamente a suasingularidade.

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______. Seminário O saber do psicanalista [1971-1972]. S/d. (Publicação nãocomercial).______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 1985.______. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor, 2007.LAPLANCHE, J. et al.. El inconscient: un estúdio psicoanalítico. In: ______. Elinconsciente freudiano y el psicoanalisis francés contemporâneo. Buenos Aires:Ediciones Nueva Visión,1976.NICOD, J. La géométrie dans le monde sensible. Paris: Librairie Félix Alcan, 1924.SAUSSURE, F. Curso de linguística general. Buenos Aires: Losada, 1986.

Recebido em 19/01/2011Aceito em 03/03/2011

Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

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TEXTOS

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Resumo: O texto trata da articulação entre psicanálise e história, tomando orastreio de traços no tempo como ponto de interface, e o caráter de negatividadeou positividade desses traços como distinção que delimita o litoral entre taiscampos do saber.Palavras-chaves: psicanálise, história, tempo, traço, imagem dialética.

PSYCHOANALYSIS AND HISTORY: EXPLORING A LITTORAL

Abstract: The text approches the relationship among psychoanalysis and history,taking the path of traces in time as a point of interface, and the character ofnegativity or positivity of such traits as a distinction that delimits the littoralbetween such fields of knowledge.Keywords: psychoanalysis, history, time, trait, dialectic image.

1 Este texto é parte da tese de Doutorado em Educação, Trauma e sintoma social: resistênciasdo sujeito entre história individual e história da cultura, defendida na Universidade Federal do RioGrande do Sul, em Porto Alegre, 2010.2 Psicanalista; Membro da APPOA; Psicóloga do Grupo Hospitalar Conceição; Mestre em PsicologiaSocial e Institucional (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). E-mail: [email protected]

PSICANÁLISE E HISTÓRIA:explora-se um litoral1

Eliana Mello2

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 82-89, jul./dez. 2010

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Um litoral divide heterogêneos, como água e terra, por exemplo, um fazendolimite ao outro e, ao mesmo tempo, assinalando uma zona de interface e

também de indefinição. Zona de vertigem. Como metáfora de um encontro entrediferentes campos do saber, o litoral permite pensarmos a irredutívelespecificidade de cada campo, marcada pela relação do saber com seu objeto,mas também do que fica fora em sua delimitação, conforme o texto Litorais dapsicanálise, da psicanalista Ana Costa (2009), possibilita-nos formular. Todo equalquer campo de saber, segundo a autora, estará referido, igualmente, a seuobjeto e a um ponto de negatividade, enquanto índice do que faz borda. Dessaforma, a Verdade, com maiúscula, idealizada por cada campo, configura-se comoimpossível e se parcializa nas construções discursivas que os sustentam.Conclui-se, então, que os diferentes campos do saber serão mais ou menospermeáveis de acordo com a inclusão ou não desse ponto negativo em suaspróprias formulações (Costa, 2010).

Em comum, psicanálise e história rastreiam fragmentos, tênues traçosque ganham relevância em suas produções. Ao estabelecer o inconsciente comoseu objeto, a psicanálise, em sua orientação freudolacaniana, o define como oinsabido, posto que lócus do inconcluso encontro entre Real e Simbólico, entrecorpo e linguagem, gerando uma ética referida à incompletude e ao desejo. Naspalavras de Lacan:

O inconsciente é um conceito forjado no rastro daquilo que operapara constituir o sujeito. O inconsciente não é uma espécie quedefina na realidade psíquica o circulo daquilo que não tem atributo(ou virtude) na consciência (Lacan, [1960] 1998, p. 844) (Grifos daautora).

Já na descoberta do inconsciente, Freud decifrou que a memória armazenaas lembranças dos objetos, não sob a forma de objetos, mas de imprecisostraços linguísticos associados a restos sensoriais enlameados de pulsão. Seuinteresse, em seus primeiros estudos, esteve justamente em compreender oprocesso pelo qual as experiências humanas eram inscritas no aparelho psíquico,e de que modo essas percepções eram registradas, e depois transliteradas,dando origem às imagens e ideias elaboradas pelo psiquismo.

Igualmente suportado na noção de traço, o eu, para Freud ([1923] 2007),não é mais que um precipitado de catexias objetais abandonadas que contém ahistória dessas escolhas. As decorrências do fato de os elementos formadoresdo eu se constituírem de rastros deixados pelos investimentos no mundoencontraram bela síntese nestas palavras das psicanalistas Ana Simoni e SimoneRickes:

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O que de mais íntimo situamos – o eu – é superfície de decantaçãodos traços que os encontros com o mundo deixaram em cada umde nós. Não temos essência, nossa natureza é móvel, fruto deencontros, desencontros, afetações, o que não é o mesmo quedizer que não experimentamos estabilizações – precárias – capazesde nos identificar no tempo e no espaço. O que sim está em jogo éo fato de que os traços que nos identificam, no tempo, não sãoestabelecidos a priori, mas são restos deixados pelas passagenspelo mundo que se inscrevem enquanto experiências a posteriori.Não temos qualquer essência que seja anterior ao percurso pelomundo (Simoni., Rickes, 2008, p. 104) (Grifos da autora).

Assim, as modalidades da inscrição dessa falta estrutural do sentido emum falante – ou seja, o ser humano como ser na e de linguagem, submetido àssuas leis e por elas dividido enquanto falta-a-ser –, estarão condicionadas tantoà história do indivíduo quanto à de sua cultura.

No que diz respeito à história, interessa-nos situar a mudança deparadigma inaugurada pela École des Annales, com Marc Bloch e Lucien Febvre,em 1929, que desloca o foco do acontecimento factual e positivado, vigente atéentão, para o questionamento das relações do homem com seu tempo e espaço,provindo de perguntas sobre o presente. A partir dos Annales, sabe-se que ohomem não só constrói a história, mas também é construído por ela. Nos anos50, na esteira dessas proposições e sob a influência do estruturalismo, surge anoção de história de longa duração, na proposição de Fernand Braudel. É emseus desdobramentos que, na década de 70, vai tomar forma o que hoje seconhece como “História Nova” (Le Goff, 2001).

A historiografia tem sido teorizada, desde então, enquanto modos deescrever a história, no realce da densidade narrativa e do relacionamento dialéticoentre acontecimento e estrutura. Sob as reverberações da noção de “outro”,advinda da antropologia e da psicanálise, privilegia-se o estudo dos sistemas eas permanências que dariam sentido aos processos históricos, numa visadaque ressignifica as palavras de Lucien Febvre em 1929: “Tirai a história do marasmoda rotina, em primeiro lugar de seu confinamento em barreiras estritamentedisciplinares” (Apud Le Goff, 2001, p. 29).

Michel de Certeau, no livro A escrita da história, desde sua proximidadeexplícita com o campo da psicanálise, afirma:

A historiografia (quer dizer “história” e “escrita”) traz inscrito nopróprio nome o paradoxo – e quase o oximoron – do relacionamentode dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa

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de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se osarticulasse. [...] Que aliança é esta entre a escrita e a história? Elajá era fundamental na concepção judaico-cristã das Escrituras.Daí o papel representado por esta arqueologia religiosa na elaboraçãomoderna da historiografia, que transformou os termos e mesmo otipo desta relação passada, para lhe dar aspecto de fabricação enão mais de leitura ou de interpretação. Desse ponto de vista, oreexame da operatividade historiográfica desemboca, por um lado,num problema político (os procedimentos próprios ao “fazer história”)e, por outro lado, na questão do sujeito (do corpo e da palavraenunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silênciopela lei de uma escrita “científica” (Certeau, 2008, p. 11) (Grifos daautora).

Constata-se, portanto, que, diferentemente da História (com maiúscula),a escrita da historiografia, nessa acepção, não pretende conter todo o real eintroduz a dimensão do sujeito e da política no “fazer história”. Dois camposheterogêneos fazendo laço, mesmo que “como se”. Refazendo pegadas,rastreando fontes, a historiografia opera a partir do que Carlo Ginzburg (1989)chamou de paradigma indiciário. Como vimos, essa operação incide igualmenteno pensamento psicanalítico, desde seu advento com Freud – pois o inconscienteé proposto como escrita constituída pela inscrição de traços mnêmicos, e osintoma é compreendido como índice de um conflito (conforme também observadopor Ginzburg) –, assim como na proposição do traço unário em Lacan, um traçoapagado (para a consciência) como fundamento das possibilidades de registrono psiquismo.

Ambas – historiografia e psicanálise – baseiam-se assim em um conjuntode rastros, pistas, índices da verdade que do real advém e, que, portanto, éimpossível de se dizer toda. Dessa forma, coincidem na compreensão dos mitose também da escrita da história – do indivíduo ou da cultura – enquantoconstruções, a partir de fragmentos de verdade histórica (Freud, [1937] 1996),em que os elementos ficcionais que as permeiam apontam para a verdade dodesejo humano embutido na circunscrição e na reconstituição temporal quepropõem.

É interessante constatar que onde reside o compartilhamento é tambémjusto ali que a diferença se estabelece, pois a historiografia busca traços comoíndice de presença, o que implica a necessidade de positivar e preencher o queescapa com o imaginário do historiador e da cultura, na qual ele está imerso. Jáa psicanálise rastreia a presença de uma ausência, pois propõe que aquilo queopera para constituir o sujeito é a inscrição de um traço apontando para uma

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falta, referida a um desencontro inaugural. O contexto, a história e a temporalidadesão contudo as coordenadas fundamentais com que um sujeito poderá contarpara relativizar o código que o precede, e, assim, viabilizar uma posiçãoenunciativa.

Tempo: nascimento e morte. Este, entendemos, é o tempo do real,enquanto pura fluição. Para construir o entre nascimento e morte – tudo o quetemos –, somar-se-ão o tempo do simbólico e o tempo do imaginário. O tempodo simbólico é aqui compreendido como o tempo enquanto referido à ordenação,a uma convenção simbólica compartilhada por uma cultura. É na linguagem quelhe vem do Outro que um bebê torna-se humano. É pelas marcas deixadas pelapresença/ausência do Outro primordial que um ritmo inscreve a música da língua,como intervalos em um fluir ainda indiscriminado de sons. Esses intervalosmarcam a modalidade vocativa da língua, o que para sempre denunciará alguémpelo sotaque, no encontro com a alteridade das comunidades linguísticas (Costa,2010). O simbólico é anterior aos falantes e recorta o real. A linguagem estáantes do sujeito, o nome ao nomeado, assim como as convenções que organizamo tempo cronológico, dividindo-o em dias, meses e anos, por exemplo. Já otempo do imaginário pode ser pensado como o tempo da pessoalização dessecódigo, das atribuições de imagens que criam sentidos e predicados (comobom ou mau, feio ou bonito, etc.), para um eu que emerge na dialética com ooutro.

A temporalidade, como concebida e operada pela psicanálise, pressupõe,portanto, dimensões não lineares. Ao propor o conceito de posterioridade(Nachträglichkeit) para explicar a formação dos sintomas histéricos, já em seusprimeiros trabalhos, Freud ([1895] 1968) indicou que não é o acontecimento emsi mesmo que tem ação traumática. Esta se realizaria, no caso dos sintomashistéricos, apenas em um segundo tempo (só-depois), por sua revivescênciasob a forma da fantasia, quando o sentido sexual é assumido pelo sujeito, nomomento da adolescência. Já Lacan retoma e generaliza esse esquema freudianoda posterioridade do sentido, fazendo dele o tempo de retroação de umsignificante sobre o outro, ou seja, convertendo-o em esquema explicativo dasignificação, ao indicar que é apenas quando uma frase se encerra que elaencontra sua significação, a qual retroage a seus primeiros termos (Lacan, [1960]1998).

Com a noção de tempo lógico, trabalhada no texto O tempo lógico e aasserção da certeza antecipada ([1945] 1998) – que não deve ser confundidacom uma lógica do tempo –, Lacan apresentou uma lógica da ação e dadeliberação, que se apoia em três tempos: o instante de ver, o tempo decompreender e o momento de concluir. Essa dimensão do tempo lógico constituium valor paradigmático de múltiplas aplicações no campo da psicanálise.

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Walter Benjamin é outro autor que subverte a linearidade do tempo, emsua filosofia da história, ao conceber que a relação entre passado e presente seinstaura graças a uma dialética em suspensão, ou seja, sem uma síntese possívelque a harmonizaria, conforme nos diz Jeanne-Marie Gagnebin (1994). Trata-sede um movimento dialético porque a junção entre o passado e o presente se fazem uma intensidade temporal diferente de ambos; e é dialética, também, porqueo passado não ressurge como repetição de si mesmo, e o presente, nessarelação de interpelação pelo passado, tampouco pode continuar o mesmo.Portanto, para esse autor, não se pode dizer nem que o passado ilumina opresente, nem que o presente ilumina o passado, pois o passado se tornaanacrônico, enquanto o presente se apresenta reminiscente.

Para Benjamin, em Sobre o conceito da história (1985, p. 231), “a históriauniversal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Elautiliza a massa dos fatos para preencher o tempo homogêneo e vazio”. Para ele,existem duas histórias coexistindo e sendo construídas dialética econcomitantemente, uma a antítese da outra: a dos vencedores – a história doprogresso contínuo, do capitalismo, da técnica, dos meios de comunicação, dofascismo, etc.; e a história dos vencidos – a história descontínua, permeada detragédias, da qual restariam somente ruínas. Resgatar os fragmentos da históriadestes, na concepção benjaminiana, é acessar os sonhos e as aspirações degerações massacradas no passado, explodindo o continuum da história, em ummovimento dialético a partir do presente. “O passado só se deixa fixar, comoimagem que relampeja irreversivelmente, no momento que é reconhecido”(Benjamin, 1985, p. 224).

Algo se perde, necessariamente, no movimento dialético do tempo. E, àmedida que o trabalho da memória não recuse o confronto com o que restouenquanto indício de tudo o que foi perdido, novas imagens podem se produzir; aestas, Benjamin chamou de imagens dialéticas. Esse conceito de imagemdialética foi proposto pelo filósofo como o que possibilita sustentar o paradoxode conceber uma figura inédita inventada de memória. É de se perceber que“memória” é aqui pensada não como instância que apenas retém, mas tambémcomo a que suporta uma perda, na qual, contudo, alguma coisa resta, um traço,um fragmento, que permite recolocar algo novo em jogo e transformar o mesmoem diferença. Compreende-se, dessa forma, por que somente a imagem que sedialetiza em dupla distância – do que é e do que se perdeu “ é capaz de figurá-la (Gagnebin, 1994).

A partir desses pressupostos minimamente situados, pode-se dizer,portanto, que o tempo, quando concebido como composição que reúne diferentestemporalidades, está submetido ao descontínuo, em que o “traumático” seconstruiria em uma defasagem temporal, na medida em que, no funcionamento

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do psiquismo, o momento posterior atribui significação ao anterior. Isso implicaque “a representação que fazemos do passado carrega uma escolha interpretativa,que indica também a forma como nos contamos nesta escolha. Nesse sentido,se uma gênese pudesse ser levada em conta, ela seria a posteriori: do presentepara o passado”, como aponta Costa (2001, p. 27). Do que decorre aimpossibilidade de se afirmar um absoluto isto é, enquanto certeza de nossasleituras do mundo, como também o pontua Rosa Fischer (2007, p. 65), pelo fatode nossa memória “acionar sentidos que escapam a interpretações simplistas,ligadas a rastros de ausências”.

Quais “imagens dialéticas” podem emergir no encontro entre questõesdo presente e o estudo da história? Benjamin (1985) situou o esquecimentocomo inscrevendo o vazio de tudo aquilo que não foi lembrado e, com isso,introduziu uma cesura específica no discurso da história. O estudo da históriavem contribuir para resgatarmos fragmentos do que ficou esquecido, ensejandonovas possibilidades interpretativas. Ocuparmo-nos do legado histórico, contudo,não pressupõe um sentido único: este adquirirá todos os sentidos que vierem aser-lhes atribuídos pelo encontro com cada história individual nele inscrita. Asingularidade com que os acontecimentos históricos são recordados e recontadospor cada um foi também já apontada pela psicanalista Carmen Backes, conformea citação:

Os acontecimentos, os fatos, serão, como os elementos de umaescritura, transformados em palavras e rearranjados, compondouma nova versão. O que surge da reunião desses vários elementosé um novo mito, um novo objeto, até então ausente, embora nãoinexistente. Cada sujeito, inserindo-se na história, vai descobri-lanuma recomposição do passado com o presente, escrevendo-a denovo. Desde um olhar psicanalítico, o tempo linear é subvertido,como também a causalidade, que diz ser o passado causador dopresente ou do futuro. Ao contrário, o presente e o futuro articuladoscompõem o passado, pois o desejo trabalha a temporalidade a seumodo, dando às lembranças um outro estatuto (Backes, 2000, p.150).

Essa exploração da interface entre psicanálise e história leva-nos aconstatar que quem se propõe a trabalhar com a história, seja ele um historiadorou um psicanalista, necessariamente estará submetido a um funcionamentoimaginário, que tenderá a eliminar a incerteza que o simbólico humano não dáconta de recobrir. No entanto, a aceitação dessa condição, que parcializa umaimpossível imparcialidade absoluta, permite-nos propor esse ensaio de

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aproximação entre psicanálise e história, que visa refletir sobre a produção dosujeito entre a história individual e a história da cultura.

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Recebido em 04/05/11Aceito em 28/05/11

Revisado por Valéria Rilho

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TEXTOS

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Resumo: Este artigo discute alguns conceitos fundamentais da clínica comcrianças. Inicia trazendo breves noções sobre a história da infância para, nasequência, tratar das raízes da psicanálise com crianças. Após a introdução, oartigo desdobra-se nas seguintes questões: a constituição psíquica na infância,o sentido dos sintomas, a transferência, o brincar e o trabalho com pais. Partindoda noção de que a psicanálise com crianças partilha da mesma ética dapsicanálise, o artigo sugere que os analistas mantenham o foco da intervençãona escuta da demanda da criança.Palavras-chave :psicanálise com crianças, brincar,transferência.

SOME OBSERVATIONS ON THE CLINIC’S CHILDHOOD

Abstract: This article discusses some fundamental concepts of childhood clinic.Firstly, it brings brief notions regarding the history of childhood, followed by theroots of psychoanalysis for children. Ensuing the introduction, the article developsthe following issues: the psychic constitution in childhood, the meaning ofsymptoms, transference, playing and working with parents. Having as a startingpoint the premise that psychoanalysis for children shares the same ethics ofpsychoanalysis, the author suggests that analysts should keep the focus ofinterventions on listening to the productions of the child’s unconsciousness.Keywords: psychoanalysis for children, playing, transference.

ALGUMAS OBSERVAÇÕESSOBRE A CLÍNICA DA INFÂNCIA

Roselene Gurski1

1 Psicanalista; Membro da APPOA; Doutora em Educação (UFRGS); Profa. do Departamento dePsicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia (UFRGS); Autora e organizadora doslivros Cenas da infância atual: a família, a escola e a clínica (Unijuí, 2006) e Educação e funçãopaterna (Editora da UFRGS, 2008). E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 39, p. 90-102, jul./dez. 2010

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Ainfância, tema soberano de nosso tempo, vem sendo constantementerevisitada por diferentes campos de conhecimento. Desde que os ventos da

modernidade aguçaram o interesse sobre as crianças, o tema da infância,gradativamente, transformou-se em uma das preocupações mais caras ao mundoadulto. Parafraseando Freud, quando fala de sua majestade o bebê, podemosdizer que acolhemos, na atualidade, a criança como a grande depositária dosideais dos adultos, seja em sua face de rei ou de dejeto (Calligaris, 1991).

Em que pesem as nuances desse tempo social, vale lembrar que não hánada de natural, tampouco de universal, nesse oceânico sentimento de infância,ao menos tal como o entendemos na atualidade. Pelo contrário, algunshistoriadores já demonstraram que a infância do mundo contemporâneo é umaconstrução tributária de um determinado tempo sócio-histórico, mais exatamentefilha do iluminismo com a modernidade.

Através dos estudos de Philliph Ariès (1981), sabemos que o lugarconferido à infância e à família sempre variou de acordo com cada cultura ecada sociedade. Até a Idade Média, por exemplo, a infância não existiacomo especificidade; as crianças misturavam-se aos adultos no cotidiano enão havia nenhum saber particular acerca de sua constituição. Na passagemda sociedade medieval para a sociedade moderna, as crianças ganharamum lugar de representação no social, sendo a família nuclear a instituiçãosocial que foi, cada vez mais, ampliando o protagonismo no cuidado com ospequenos.

Mas se, até a Idade Média, não existia o sentimento de infância e afamília não detinha o status que passou a ter, ao final do século XVI eclodiu umaintensa onda de afeição com relação às pequenas criaturas. A paparicação,primeiro sentimento moderno dirigido à infância – costume de achar engraçadinhoo que as crianças faziam –, começou pelas amas e mães de classe alta, emmeados do século XVI, e estendeu-se até o final do século XVII a toda e qualquerinfância, independente do estatuto social (Ariès, 1981).

Tais novidades nas relações sociais promoveram o surgimento, ao finalda Idade Média, de uma produção denominada de literatura de civilidade, dirigidaà prescrição de novos hábitos e comportamentos. Os escritos de Erasmo deRotterdam, principalmente, De civilitate morum puerilium, é considerado umdos primeiros livros de civilidade pueril, como eram conhecidas as recomendaçõessociais dirigidas à educação infantil. Essa publicação marca um momento deintenso interesse no incremento da formação das crianças, o que demonstra amutação social que estava acontecendo na noção de infância (Apud, Ariès,1981).

Foi nesse período que nasceu o conceito que esteve presente até o séculoXX, qual seja, o de que a criança deveria ser educada e lapidada, pois representava

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o esboço grosseiro do homem racional, bem simbolizado no perfil do pequenoselvagem de Rousseau ([1762] 1995). Além do surgimento da civilidade, outrasmudanças sociais também contribuíram para a movimentação no lugar da criançae da família. Na época do Renascimento, a troca da vida rural para a vida nacidade ensejou a família moderna e nuclear, como a conhecemos hoje, já quehavia cada vez menos lugar para os ancestrais. Ariès (1981) diz que as cidadesmodernas foram, cada vez mais, sendo pensadas como corpo, produzindo, então,a busca pela família como lugar de recolhimento e refúgio. Além do que, o modelorural de procriação foi substituído pelo modelo urbano, ou seja, o desejo de terfilhos simplesmente para amá-los e não para assegurar a continuidade dalinhagem.

Por volta do século XVII, a partir das noções sobre a importância dacivilidade que ensejaram os ideais iluministas, surgiram críticas severas àeducação familiar. Em 1762, com a publicação do tratado sobre educação,intitulado Emílio, de Jean-Jacques Rosseau ([1762] 1995), tornou-se clara aexigência da educação para a civilidade, proposta através de preceptoreseducativos, e em seguida reconhecida como tarefa do Estado, através dainstituição escolar.

A infância, ao ganhar especificidade, passou a ser vista como um períodode preparação para a vida adulta. Mais recentemente, o nascimento da pedagogiamoderna, no início do século XVIII, somado às pautas da sociedade industrial,acabou produzindo uma demanda por conhecer o desenvolvimento infantil. Taldemanda, estimulada pelas descobertas da ciência a partir dos séculos XIX eXX, dirigiu-se para a reeducação e padronização das crianças, viés incrementadopela criação de baterias de testes e escalas, cujo objetivo era mensurar adistância dos pequenos em relação à média e o seu correspondente grau denormalidade ou anormalidade (Jerusalinsky, 1998).

Segundo Roudinesco (1998), essas variáveis, somadas à crise da famíliaburguesa, ensejaram, no final do século XIX e início do século XX, a construçãoda psicanálise como um outro saber acerca da infância, que colocou em xequealguns pressupostos até então vigentes como universais. Com a descoberta doinconsciente, Freud introduziu dois conceitos fundamentais para pensar asmanifestações sintomáticas e a psicopatologia: o infantil e a transferência. Aesses conceitos, agregou-se em 1905, através do polêmico texto Três ensaiossobre a sexualidade, a noção de que a sexualidade é algo bem mais complexoe abrangente do que o sexo, atestando sua presença desde a infância.

Nos escritos de Freud, a descoberta da sexualidade infantil polimorfa,como ficou conhecida, apareceu relatada através da escuta das experiências desedução sofridas pelas histéricas. Freud supôs que as experiências contadaspor suas pacientes eram fantasiosas e faziam parte de um processo de construção

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da sexualidade adulta. Mas foi com a escrita dos Três ensaios sobre asexualidade e depois, com a análise do Pequeno Hans, em 1909, que Freuddefinitivamente inscreveu a infância em um novo capítulo na história dahumanidade.

Entre os conceitos trazidos pelo pesquisador vienense está o apontamentode que a sexualidade não inicia na puberdade e o fato de as crianças partilharemda sexualidade desde cedo, através do que ele denominou de pulsões parciais.Ou seja, segundo Freud ([1905] 1980), a perversão polimorfa das crianças serviupara demonstrar que as manifestações da sexualidade estão presentes desdeos primeiros meses de vida.

Mesmo havendo em sua obra considerações valiosas acerca de temasrelativos à infância, sabemos que Freud não se dedicou de modo sistemático àanálise de crianças (Fendrik, 1991). Como então se construíram os pilares dessesaber? Quais as especificidades que a infância introduz no que se refere aoaparelho psíquico? Quais os dispositivos que a clínica psicanalítica com criançasdispõe na contemporaneidade? A partir dessas e de outras questões, faremosuma breve passagem por alguns pontos que consideramos fundamentais para aintervenção no trabalho clínico com crianças.

A clinica com crianças: um pouco de história

A história da psicanálise de crianças é marcada por uma cisão dentro daIPA2: de um lado, o grupo dos vienenses, representados por Anna Freud, e, deoutro, o grupo dos ingleses, representados por Melanie Klein. Essa histórialitigante de dois lados que interpelam o pai, pedindo um reconhecimento soberano,parece ter tido um custo alto para a prática com crianças (Tavares, 1998).

Nessa disputa, Fendrik (1991) propõe que os psicanalistas tenham cuidadopara não se cegarem. Antes de buscar o que é a “verdadeira” psicanálise decrianças, ela sugere que se possa pensar sobre as condições que edificaram ocaminho dessa prática. O próprio Freud, em uma correspondência de 1927,com Joan Rivière, fala da abordagem de Klein e de sua filha, Anna, no tratamentodas crianças, e diz que a experiência é que deverá ter a palavra final no que serefere ao verdadeiro estatuto de uma análise infantil. Desse modo, Freud introduzuma dimensão salomônica na disputa: ele não escolheria nem Anna, nem Melanie;segundo ele, os efeitos da palavra, ou melhor, os efeitos da prática com crianças

2 International Psychoanalytical Association.

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é que decidiriam pela pertinência e adequação da intervenção mais própria coma infância (Roudinesco; Plon, 1998, p. 610).

A pergunta sobre a legitimidade da prática analítica com criançasacompanha os analistas que decidem por esse trajeto e parece ser reveladoradesse mal-estar de origem. Erik Porge (1998), ao trabalhar o tema da transferênciana psicanálise com crianças, sugere que há desconfiança tácita quanto ao teorda psicanálise que praticam os analistas de crianças: será mesmo uma análise?Não se trata mais de uma pedagogia? As crianças precisam de análise ou deeducação?

Porge (1998) lembra que os analistas, ao buscarem técnicas quejustifiquem a razão de seu fazer, parecem esquecer-se do mais fundamental emqualquer intervenção psicanalítica: a transferência. Nesse sentido, Porge fazuma bela contribuição à calorosa discussão sobre a transferência na clínicacom crianças. Ele denomina de “fala nos bastidores” o tipo de transferência dascrianças; seria algo como “falar a um personagem que não está em cena” (Porge,1998, p. 13). Porge retira a expressão do texto Télévision, de Lacan, no qual elese refere à fala dos atores no teatro – aqueles que falam a esmo, como sejogassem suas palavras ao vento. Na clínica com crianças, o analista acabasendo o interlocutor dessa fala, o suporte da falha na transferência com os pais:

“O ponto de ruptura da transferência, em um dos pais, é esse ponto emque não se é mais bom entendedor, onde não se ouve mais a divisão do sujeitona sua mensagem, ali onde justamente seria importante que ele ouvisse” (Porge,1998, p. 14).

Interessante apontamento esse, pois os conflitos de origem desse campoforam pautados pela conhecida interrogação de Anna Freud acerca dapossibilidade de as crianças pequenas entrarem em transferência analítica. Elaacreditava que nessas condições só os pais ou uma instituição pedagógicapoderiam conduzir a intervenção com a criança (Freud,[1927] 1971). Ao considerara “fala aos bastidores” como um modo de escuta da transferência na clínicacom crianças, Porge parece dar perspectiva mais interessante ao trato daspeculiaridades da infância. Ao invés de propor uma pedagogia analítica, Porgeaponta para a possibilidade de os analistas de crianças seguirem a ética dapsicanálise como azimute no trabalho clínico com a criança.

Mas, retomemos novamente a provocação de Fendrik (1991) com relaçãoao teor da psicanálise com crianças. Importa sublinhar que o contexto no qualnasce a psicanálise com crianças é o mesmo no qual estava em debate o temada análise leiga e da transmissão da psicanálise. Nesse sentido, Fendrik relembraque, por conta dessa discussão, ensejada na década de 20, os analistas decrianças teriam sido eximidos da formação médica, ou seja, a eles era feita umaexceção. Além dessa questão, constitui matéria de reflexão o motivo pelo qual

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Freud dizia que a psicanálise de crianças era um campo para as mulheres. Ouseja, parece que a psicanálise com crianças acabou herdeira da reflexão acercado que é verdadeiro e do que é profano na psicanálise – discussão mantida porconta do debate acerca da análise leiga e dos caminhos da transmissão.

De todo modo, é preciso pontuar que, em contraponto à pedagogia analíticade Anna Freud, Melanie Klein inovou, consolidando a técnica do brincar comodispositivo por excelência da análise de crianças. Enquanto o grupo representadopor Anna Freud limitava a profundidade da análise infantil, Klein potencializou oalcance desta, mostrando que tal modalidade de análise não diferia muito daanálise com o adulto, podendo-se também trabalhar com o inconsciente e coma associação livre. Nessa direção, o mais importante do trabalho desenvolvidopor Melanie Klein ([1932] 1975) é que ela preconizou, em seus pressupostosteóricos, a possibilidade de os pequenos serem tomados em análise. Ao entendero brincar como o equivalente do sonho, possibilitou a análise da associação livrena infância. É preciso lembrar que, apesar dessa contribuição histórica para aclínica psicanalítica com crianças, Klein as abordava segundo pressupostospouco freudianos, emprestando em suas interpretações clínicas, sentidosunívocos e sígnicos às expressões do inconsciente da criança.

Alfredo Jerusalinsky (2001) brinca com os impasses que se criam a partirdesse litígio, mostrando os possíveis efeitos imaginários do conflito. Ele refere-se à tradição lacaniana dos analistas de criança, que, representados porFrançoise Dolto, resolveram, em certa época, banir todo e qualquer brinquedodas sessões. Ora, se a criança impinge ao brincar e ao brinquedo todo osimbolismo de suas associações, não importa que tenha uma caixa de brinquedosou simplesmente uma folha. Como diz a psicanalista Eda Tavares (1998), nessabriga, ao tomar o partido do pai, corre-se o risco de ficar como filhos de umdivórcio, esquecendo do mais importante a fazer numa análise de crianças: acolocação da função paterna.

A constituição do sujeito psíquico e os sentidos do sintoma

Apesar de a psicanálise com crianças partilhar da mesma ética que orientaa psicanálise, é preciso que se reconheçam algumas de suas particularidades.A condição lógica, e não cronológica da estruturação psíquica do sujeito,determina diferenças no trato com a infância. Dentre essas, destacamos a posiçãoda criança em relação às manifestações sintomáticas que apresenta.

Importa sublinhar que o filhote humano, dado o grau de precocidade desuas funções orgânicas ao nascer, necessita de um outro semelhante, que otutele e faça a dupla função do início da vida: os cuidados com a sobrevivênciaorgânica, através da alimentação e da higiene, bem como os “cuidados”

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simbólicos, através das inúmeras atribuições de sentidos e significaçõesnecessários à edificação de um sujeito. Costuma-se dizer que a criança humananasce em condição de deficiência instintiva, questão que a coloca desde oinício no que Lacan chama de campo do Outro (Jerusalinsky, 1989). Dessanoção, deriva a máxima lacaniana de que o desejo do sujeito é o Desejo doOutro, ou seja, a criança, que inicialmente é falada e tem condição passiva,deve ganhar um “banho de linguagem”. As palavras recobrem o real de seucorpo, ofertando-lhe múltiplos sentidos e significações.

Tal operação de subjetivação é o que Calligaris (1986) denomina designificação mínima, que o sujeito extrai da homogeneização que opera naheterogeneidade inicial entre corpo e linguagem. Isso, quando existem adultosque exercem o que se denomina de função materna e função paterna. Apesar desabermos que uma criança é falada muito antes do nascimento, ou seja, ospais antecipam questões de ordem simbólica que estarão presentes naestruturação da criança mais tarde, o momento depois do nascimento constituio primeiro modo de inscrição – processo que ocorre desde o início da vida até aadolescência e que constrói o lugar psíquico do sujeito.

Nesse sentido, dizemos que a condição da infância é de antecipação. Acriança é falada muito antes de poder falar. Ela mal sabe que tem um corpo,mas, seu sexo anatômico é suficiente para ganhar um nome de homem ou demulher. Sua condição é também de insuficiência, questão evidenciadaespecialmente no que se refere ao ato, já que, por mais que seja antecipada nodiscurso, a criança sofre sempre de uma impossibilidade: deve lidar com asdemandas que lhes são dirigidas em um tempo futuro, seu ato é semprepostergado. Por essa configuração é que o tempo da infância é denominado defuturo anterior. Ou seja, será a aposta no presente de um futuro que tem oestatuto de já ter acontecido. Esse saber antecipado produz a alienação dacriança ao Outro. Entretanto, quando não estamos frente a uma psicose, acriança tem um espaço, uma brecha que lhe permite estruturar ali um saber enão jogar-se de modo ecolálico nessa demanda.

Pela condição de absoluta dependência com o Outro real, própria dainfância, é que devemos escutar de modo atento as questões que levam a criançaa manifestar sintomas. Conforme dizia Maud Mannoni (1981), devemos entendero sintoma sempre como uma linguagem a ser decifrada.

Não raras vezes, a criança é levada ao tratamento em função de queixasdaqueles que denominamos seus “Outros reais” – os que estão presentes emseu cotidiano e que reclamam de sua inadequação em relação aos ideais queestão postos na direção dela –, que são os pais, a escola, o pediatra, enfim osrepresentantes do mundo adulto. Porém, a criança também faz sintomas emseu nome. Nesse âmbito, é bom lembrar que, segundo Jerusalinsky (2001), é

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um erro tomar todo sintoma da criança como um derivado da relação com ospais, como se o inconsciente fosse só receptáculo das fantasias parentais,deixando de lado toda a problemática da sexuação, que é o que determina aposição do inconsciente na infância.

Neste ponto, faz-se necessário um esclarecimento. Na infância,apresentam-se dois tipos de sintomas: os sintomas estruturantes3 ou sinthome,que constituem formas de a criança lidar com a sua insuficiência para responderao ideal que o Outro lhe demanda – são sintomas necessários para a constituiçãopsíquica da criança – e os sintomas clínicos, ou seja, sintomas transitórios que,em geral, estão atravessados pelas demandas do Outro real (Jerusalinsky, 1997).

Os sintomas de infância, como são chamados os sintomas estruturantes,são a resposta no imaginário ao real, ou seja, a versão subjetiva que a condiçãoinfantil permite dar à demanda de antecipação sexual desde o Outro. Caso acriança responda com o real da imagem ao que falta no real é porque está naordem do sintoma infantil. Isso acontece quando a criança toma a impossibilidadedo sexual como impotência.

O que faz sintoma na infância coloca o analista, muitas vezes, no avessoda psicanálise com adultos: dependendo do momento estrutural em que seencontra a criança, o analista implica-se menos com a interpretação – aquiloque desconstrói o excesso de sentido condensado nos sintomas – que provocaa repetição e o gozo sintomático e envolve-se mais com a construção deelementos faltantes ou mal alicerçados na estruturação psíquica da criança(Pedó, 2008).

De todo modo, será através do faz-de-conta, no vir-a-ser, que a criançapoderá construir pontes entre a sua insuficiência atual e o ideal de futurodemandado desde o Outro. Costumamos observar, na clínica com crianças, queos sintomas surgem na medida em que se estabelece a impossibilidade defazer polissemia com os significantes ofertados a partir da demanda do Outro. Oconstrangimento em responder de modo real ao imperativo da demanda do Outrorompe com a possibilidade de a criança fazer metáfora daquilo que recebe.Nessas situações, parece que o brincar perde sua principal função, qual seja,articular metaforicamente, na cena simbólica, a demanda de antecipação própriada infância.

3 Dentre os sintomas estruturantes, citamos alguns: angústia do 8° mês; pequenas mentiras etravessuras; a arte como efeito equívoco de criação e simultaneamente de travessura; o desenhar,o brincar, o fabular e o narrar.

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Conceitos fundamentais na clínica da infância: o brincar, atransferência e o trabalho com os pais

Pode-se dizer que a posição da infância é brincar para recobrir o buracoentre a insuficiência de seu ser, o real e o ideal. É através do brincar que acriança tenta realizar o impossível da antecipação que lhe é demandada. Porisso se diz que o brincar é estruturante na infância. As crianças brincam com ossignificantes ofertados desde o Outro familiar e social e, através das diferentestramas e composições desses significantes, vão delicadamente tecendo os fiosde sua constituição psíquica. Por isso, dizemos que, na clínica com crianças,trata-se de ajudar a criança a retomar seu processo de estruturação, de seusinthome ou de sua neurose infantil4. Toda a possibilidade de emergir o novo emtermos subjetivos se dá na medida em que as significações possam deslizar enão fiquem cristalizadas na literalidade da demanda e dos significantes unívocosdo Outro.

Sabemos que as crianças fazem suas manifestações de modo diferentedos adultos, às vezes pouco ou nada falam, mas utilizam o brincar e outraslinguagens para expressar as produções do inconsciente. Conforme Allouch(1995), é como se a expressão do inconsciente com as crianças precisasse dapassagem de uma linguagem a outra, uma espécie de transliteração. Transliteraré diferente de traduzir ou decodificar. Transliterar implica revelar o que estácifrado à linguagem da intervenção e, através da voz, expressar a interpretação.

De todo modo, nessas expressões a criança expõe sua posição na relaçãocom a demanda do Outro. É através dessas expressões também que semanifestam os ideais aos quais a criança está submetida. Serão esses ideaisque colocarão a criança na posição de constituir o S2, o saber paterno que aajudará a lidar com a demanda do Outro de modo metafórico, e não literal. Obrincar simbólico, nesse sentido, constitui a expressão dessa metaforização;quando as crianças brincam, elas fazem deslizar os múltiplos matizes que ademanda do Outro pode adquirir, produzindo polissemicamente muitos modosde subjetivação. Nas palavras de Winnicott, (1975) não há nada de significativona construção da simbolização da criança que não passe pelo brincar.

4 O infantil em psicanálise não é da ordem da cronologia; refere-se, às marcas e inscriçõesinconscientes que acontecem na infância e depois se repetem como experiências infantis emqualquer época da vida.

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Sabemos que, nos primórdios, a clínica com crianças, através do trabalhode Melanie Klein, deu ao brincar matizes sígnicos nos quais a possibilidade deassociação livre tornava-se apagada pelo excesso de interpretações em formade teorias sobre a cena primária e as fantasias primordiais. Ora, se o imaginárioé a via pela qual as manifestações do inconsciente fazem passagem –especialmente na infância, em que a inconsistência da cadeia significantedemanda um apoio maior que somente a palavra –, o brincar será o suporteimaginário na cena terapêutica com a criança, o dispositivo que irá permitir apassagem de um significante a outro.

Essa concepção nos transporta a uma das importantes premissas dapsicanálise: as imagens do sonho devem ser lidas como expressões da linguagemdo inconsciente e não como imagens em si, ou seja, devem ser lidas tais comose leem os hieróglifos e os rébus. Nesse sentido, a clínica contemporânea comcrianças tem sido pródiga na identificação de produções do inconsciente,demonstrando que, quando as produções da criança podem ser escutadas demodo significante, o objeto brinquedo e as diferentes articulações promovidaspelo brincar também podem equivaler às imagens do sonho (Pedó, 2008).

Como comentamos no início, as intervenções com crianças na psicanálise,ao mesmo tempo em que são rigorosamente como as intervenções com osadultos, pois continuam sendo intervenções sobre as formações do inconsciente,não deixam de ter suas peculiaridades. Essas peculiaridades referem-se aomodo discursivo como as formações apresentam-se na infância: a língua figuradarequer decodificação, para além das imagens enganosas. Na clínica comcrianças, deve-se operar também a partir de diferentes modalidades deintervenção: interpretações, pontuações e construções, possibilitando assimque a cadeia de significantes siga seu fluxo, favorecendo o aparecimento deequívocos e reticências, mais do que fechando sentidos interpretativos. Aintervenção que produz aberturas de sentidos convoca o novo, fazendo falha nacristalização imaginária da semântica do Outro, que determina o sentido.

Outro tema caro à clínica com crianças é a transferência, questão querequer um profícuo debate. A discussão acerca das possibilidades transferenciaisna infância são tão antigas quanto a própria psicanálise com crianças. Já foireferido que, para Anna Freud ([1927] 1971), as crianças não poderiam entrarem análise, pois, segundo ela, a proximidade com os Outros reais retira apossibilidade de a criança entrar em transferência com o analista; por isso, elaacabou apostando em uma pedagogia psicanalítica e na intervenção atravésdos pais.

Mais recentemente, Alfredo Jerusalinsky propõe o contrário de Anna Freud:ele diz que a criança está sempre em transferência, já que os adultos estão naposição constante de suposto saber para uma criança (apud Tavares, 1998).

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Partindo dessa noção, pensamos que as condições para que se estabeleça atransferência está dada pela possibilidade de o analista interpretar na transferênciae não interpretar a transferência – a interpretação na transferência ocorre medianteo brincar (Tavares, 1998). O analista, ao produzir uma interpretação na cena dobrincar, provoca uma operação polissêmica cuja função é esvaziar o sentido dosintoma e passar o saber adiante, possibilitando que a criança não faça umaunivocidade de sentido na relação com a demanda do Outro. Desse modo, afunção transferencial do brincar seria viabilizar novas cadeias significantes paraque o sintoma possa deslizar.

Uma das grandes dificuldades no trabalho com a criança é que ele implicaa transferência com os adultos, que representam os chamados Outros reais, ospais, professores, educadores, médicos, etc.

Erick Porge (1998) diz que, em geral, uma criança chega ao tratamentoquando os pais têm um ponto de ruptura na transferência; não conseguemmais ocupar um lugar na transferência com o filho, de modo que não sustentammais o lugar de suposto saber e tomam a demanda endereçada ao lugar terceirode modo direto e literal. Isso é o que provoca a falência na operação de defesada criança, na constituição de seu sinthome. Ou seja, aquele que estáencarregado de fazer passar socialmente a mensagem não assume mais afunção de sujeito suposto saber, mas, cola-se a esse lugar. Nesse sentido, osimples fato de a criança ter um espaço no qual sua palavra possa circularjá constitui uma intervenção, na medida em que situa a possibilidade de darum fluxo a sua cadeia significante. Torna-se especialmente importante queo analista possa ajudar os pais a reconstruírem seu lugar transferencialjunto à criança.

A presença dos pais no tratamento da criança deve ser pensada de acordocom os critérios psicanalíticos, ou seja, de acordo com a posição do sintoma dacriança na relação com o Outro parental. Para Balbo (1992), as entrevistaspreliminares são o momento em que se torna preciso situar a demanda dospais, antes de tomar a criança em atendimento, abrindo uma série de perguntas:o que se encontra cifrado no sintoma que a criança apresenta? De que ordem é?Configura-se em um sintoma que a estrutura ou está referido à fantasmáticaparental?

Ora, a possibilidade de a criança brincar sem ter a necessidade deresponder com um objeto real à demanda que lhe é endereçada, depende doquanto ela fica atrelada a representar de imediato o campo da antecipação nasexuação. Ou seja, é preciso escutar em qual posição está colocada a criançana relação com o desejo e demanda parental: ela pode metaforizar a demandaque lhe dirigem os adultos, brincando de “vir-a-ser” grande ou está comprometidaa responder ao ideal dos adultos pela via do real? (Jerusalinsky, 1997).

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Pensar sobre essas posições é o que situa a indicação de como iráacontecer a intervenção com a criança e, consequentemente, com os pais.Entretanto, ainda que se recomende, em algumas situações, o trabalho com ospais, o analista não pode perder de vista que há um trabalho específico quedeverá ser feito com as produções do inconsciente da própria criança.

Nesse sentido, encerramos este escrito sublinhando a importância de osanalistas de crianças não esquecerem que, apesar de guardadas algumasespecificidades, sua prática está inserida em uma mesma ética, a ética dapsicanálise. Assim, na clínica da infância, devemos oferecer às criançascondições que possibilitem que as produções do inconsciente emerjam, sejamelas na linguagem falada, onírica, do brincar, do encenar ou do jogar.

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Recebido em 01/12/10Aceito em 06/01/11

Revisado por Beatriz Kauri dos Reis