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1 Impactos socioambientais do projeto de exploração de petróleo e gás no município de Coari/AM: o caso da comunidade ribeirinha de Sao Pedro da Vila Lira 1 Raimundo Emerson Dourado Pereira (PUC/SP) 2 Resumo: A partir das representações sociais de informantes escolhidos qualitativamente entre os moradores da Comunidade São Pedro da Vila Lira, localizada no município de Coari/AM, o trabalho busca revelar o ponto de vista desses ribeirinhos amazônicos acerca dos impactos decorrentes da dinâmica do projeto de exploração de petróleo e gás, em curso na região Amazônica. Essas atividades extrativistas estão ligadas à construção do poliduto Urucu-Coari/Coari-Manaus e do depósito de petróleo Terminal Solimões. As alterações socioambientais têm início com os trabalhos de prospecção em 1986 e a efetiva exploração de hidrocarbonetos e gás natural pela empresa PETROBRAS a partir de 1988, na Província Petrolífera de Urucu - PPU, localizada a 280km da sede municipal. Palavras-chave: Amazônia, Petróleo e gás, Coari/AM. Introdução Viver na Amazônia é em si mesmo uma atitude instigante, desafiadora e encantadora. Esclarecer em que consiste, em nosso entendimento, cada uma destas aqui simplificadas categorias certamente não é algo original que se possa dizer. Desde o século XVI (Hemming, 2011), e os primeiros execráveis contatos genocidas entre colonizadores europeus e povos indígenas habitantes da Amazônia, essa região é caracterizada por alumbramentos (com os mais diferentes matizes de interesses, sejam eles econômicos, políticos, ambientais ou científicos; ou a combinação entre estes), impactos socioambientais e perplexidades negativas diante das formas de sua cultura indígena e seu característico modo de vida das populações ribeirinhas locais. Neste sentido, pode-se dizer que o inventário físico e de riquezas da chamada Amazônia Legal cuja denominação foi criada em 1966 sob a égide da geopolítica dos governos militares é, por outro lado, inevitavelmente surpreendente. Compreende os Estados do Amazonas, Pará, Acre, Rondônia, Roraima, Tocantins, oeste do Maranhão, norte do Mato Grosso e Amapá. Desse modo, mais da metade do território nacional está 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - PEPGCS, Bolsista de doutorado do CNPq. E-mail: [email protected].

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Impactos socioambientais do projeto de exploração de petróleo e gás no município

de Coari/AM: o caso da comunidade ribeirinha de Sao Pedro da Vila Lira 1

Raimundo Emerson Dourado Pereira (PUC/SP)2

Resumo: A partir das representações sociais de informantes escolhidos

qualitativamente entre os moradores da Comunidade São Pedro da Vila Lira, localizada

no município de Coari/AM, o trabalho busca revelar o ponto de vista desses ribeirinhos

amazônicos acerca dos impactos decorrentes da dinâmica do projeto de exploração de

petróleo e gás, em curso na região Amazônica. Essas atividades extrativistas estão

ligadas à construção do poliduto Urucu-Coari/Coari-Manaus e do depósito de petróleo

Terminal Solimões. As alterações socioambientais têm início com os trabalhos de

prospecção em 1986 e a efetiva exploração de hidrocarbonetos e gás natural pela

empresa PETROBRAS a partir de 1988, na Província Petrolífera de Urucu - PPU,

localizada a 280km da sede municipal.

Palavras-chave: Amazônia, Petróleo e gás, Coari/AM.

Introdução

Viver na Amazônia é em si mesmo uma atitude instigante, desafiadora e

encantadora. Esclarecer em que consiste, em nosso entendimento, cada uma destas aqui

simplificadas categorias certamente não é algo original que se possa dizer. Desde o

século XVI (Hemming, 2011), e os primeiros execráveis contatos genocidas entre

colonizadores europeus e povos indígenas habitantes da Amazônia, essa região é

caracterizada por alumbramentos (com os mais diferentes matizes de interesses, sejam

eles econômicos, políticos, ambientais ou científicos; ou a combinação entre estes),

impactos socioambientais e perplexidades negativas diante das formas de sua cultura

indígena e seu característico modo de vida das populações ribeirinhas locais.

Neste sentido, pode-se dizer que o inventário físico e de riquezas da chamada

Amazônia Legal – cuja denominação foi criada em 1966 sob a égide da geopolítica dos

governos militares – é, por outro lado, inevitavelmente surpreendente. Compreende os

Estados do Amazonas, Pará, Acre, Rondônia, Roraima, Tocantins, oeste do Maranhão,

norte do Mato Grosso e Amapá. Desse modo, mais da metade do território nacional está

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - PEPGCS, Bolsista de

doutorado do CNPq. E-mail: [email protected].

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representada nesta área, cuja superfície abrange mais de 5 milhões de km² (60% do

território nacional) e contém em solo brasileiro cerca de 30% da floresta tropical do

planeta. Também representa 65% do continente sul-americano, com 11.248 km² de

fronteiras internacionais com o Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname

e Guiana Francesa. Estima-se que, além de possuir o maior ambiente de

sociodiversidade e biodiversidade do planeta e a maior reserva de florestas latifoliadas

tropicais do mundo, a Amazônia brasileira possui ainda 50% do potencial hidroelétrico

do país e detém 12 milhões de várzeas e terras férteis e 25 mil quilômetros de rios

navegáveis, o que equivale a 1/5 da água doce do planeta. Além de se constituir, como

bem sabemos, em ambiente físico relevante nas estabilidades mecânica, termodinâmica

e química dos processos atmosféricos em escala global (SILVA, 2000, p.160-1).

No entanto, se por um lado a Amazônia brasileira apresenta essa dimensão de

inquestionável grandiosidade, por outro ela continua a ser uma região socialmente

desprovida, com baixa qualidade de vida e falta de oportunidades para a população. O

que torna possível afirmar que a crescente exploração de seus vastos recursos pouco tem

contribuído para a melhoria do padrão de vida de suas populações, desencadeando, ao

contrário, graves processos de degradação ambiental e conflito social. Nesse contexto, a

análise da pobreza humana na Amazônia é vista como consequência da ausência ou

insuficiência de serviços básicos de infraestrutura social, política, educacional,

científica, tecnológica, agravados pela grande distância e carência de cadeias produtivas

que assegurem emprego, renda e tributo para fazer face aos elevados custos da

administração pública. E que, portanto, permitam a exploração do potencial de sua geo-

bio-eco-diversidade em bases sustentáveis (BENCHIMOL, 2002, p.11).

Em outros termos, a desigualdade social se apresenta como uma dimensão que

se articula às formas de interferência do Estado brasileiro e do capital privado na região,

contribuindo decisivamente para a péssima qualidade de vida das populações locais.

Tomando-se como exemplo os grandes projetos sob a égide do desenvolvimento

capitalista na Amazônia pode-se notar que o desenvolvimento social não acompanhou

na mesma medida o crescimento econômico. Ao contrário, embora esses

empreendimentos tracem metas para ações mitigadoras dos impactos ambientais e

sociais, essas ações não são suficientes para conter as graves contradições sociais

geradas em suas áreas de influência. Nesse contexto, o reconhecimento do estatuto da

Amazônia como equilíbrio ecológico da Terra, bem como sua crescente importância na

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contemporaneidade, recoloca incessantemente em questão os problemas sociais gerados

pelas formas de sua ocupação e modelos de desenvolvimento adotados para torná-la

produtiva. Assim, o deslinde de questões que implicam na intensificação da

desigualdade no contexto regional amazônico deve se constituir numa das principais

preocupações para o século XXI. Como apontam os estudos sobre os efeitos sociais dos

grandes projetos, esse tipo de relação vem se reproduzindo na Amazônia nas últimas

décadas, podendo ser observado em empreendimentos como:

“Mineração Novo Astro (MNA); Garimpo Mutum e Lourenço, com relações

tensas entre empresa e garimpeiros, além das evidências de degradação

ambiental e social; Mineração Yokio Yoshidome S.A., exploração do

manganês na Serra do Navio com graves impactos socioambientais; CVRD –

tanque de rejeito de ferro no Igarapé Gelado, palco de convivência

conflituosa entre a CVRD e os colonos; CVRD – década de 80 – exploração

do ouro na Serra do Carajás, com fortes conflitos entre a União, Estado do

Pará, CVRD e garimpeiros, além dos impactos sociais, econômicos e físico-

ambientais” (SOLER, 2009, p.16).

O IDH é um referencial executado pelo PNUD – Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento e publicado anualmente pelo Relatório de Desenvolvimento

Humano – PDH. O índice baseia-se em três pilares sociais na população: Expectativa de

vida, Educação e Renda per capita (MALVEIRA, 2009, p.66). Com um (IDHM) em

0.621, considerado baixo se comparado ao montante da arrecadação fiscal do município,

Coari mobilizou recentemente um processo migratório para sua zona urbana em função

da descoberta de petróleo e gás na região de Urucu em 1986, exploração que é

executada pela PETROBRAS e demais empresas prestadoras de serviços terceirizados

desde os anos 90 (VIANA, 2007, p.120). Do ponto de vista do que estamos

examinando, analisar as transformações sociais na região do Médio Solimões a partir de

uma apreciação dos impactos socioambientais às condições de vida dos atores

envolvidos diretamente neste processo (a população residente no município de

Coari/AM) nos permite considerar não somente as implicações imediatas dos processos

de desenvolvimento capitalista na região, mas, sobretudo avaliar, como a intensificação

de seus efeitos desfavoráveis contribui decisivamente para a condição de

vulnerabilidade social e subcidadania a que estão submetidas parte expressiva das

populações na Amazônia.

A partir de 1996, devido aos Royalties transferidos mensalmente por esta

estatal, Coari ocupa uma posição econômica privilegiada, sendo o segundo município

em arrecadação fiscal do Estado do Amazonas, ficando atrás apenas da capital, Manaus.

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No entanto, como mostra a tabela abaixo, Coari ocupa a 33ª colocação no ranking do

IDHM estadual (em 62 municípios), a colocação 349ª no ranking regional (em 449

municípios) e a colocação 4.176ª no ranking nacional (em 5.507 municípios). Com isso,

é possível alegar que os recursos disponibilizados ao poder público local não garantem a

estas populações melhorias em seus padrões de vida, pois contraditoriamente, Coari é

um município explicitamente marcado pela desigualdade, miséria, pobreza e exclusão

social. O acesso ao município é feito somente por via aérea ou fluvial, uma vez que não

há qualquer ligação da malha rodoviária com os municípios vizinhos. O tempo de

deslocamento partindo de Manaus é em média 50 minutos com avião, a utilização do

transporte por lanchas que conduzem passageiros dura cerca de 9 horas e meia, há ainda

a opção por barcos regionais, mas estes consomem cerca de 23 horas no percurso (463

km via fluvial). O custo para este deslocamento é proporcional ao tempo gasto, sendo,

portanto, o de maior valor o transporte aéreo, cuja tarifa é mais cara do que os preços

normalmente cobrados por percursos entre estados no país.

TABELA 1 – Dados socioeconômicos do município de Coari/AM

Fonte: Adaptado de IBGE 2000/PNUD 2003.

1 O município de Coari/AM

O município de Coari/AM está situado no centro do Estado do Amazonas, às

margens do rio Solimões, entre o Lago de Mamiá e Lago de Coari, a 362 km em linha

reta de Manaus, a capital do Estado. Com seus 57.922 km², Coari limita-se ao norte com

o município de Codajás, ao sul com o município de Tapauá, a leste com o município de

Anori e a oeste com o de Tefé.

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FIGURA 1 – Localização do município de Coari/AM

Fonte: http://www.coari.am.gov

Como assinala Gawora (2003), a história do município se inicia no século

XVII, quando o Jesuíta Alemão Samuel Fritz funda uma aldeia de índios para a

catequização dos Yuris e Mauás, a qual denominou de Coari, por ficar à margem do

lago que possui este nome. Outras tribos habitavam a região onde hoje está estabelecido

o município de Coari, dentre elas: Catuxi, Juma, Irijú e Solimões. Algum tempo depois,

por ser partidário da Coroa espanhola, o fundador da cidade precisou abandonar o Brasil

em 1708. Na mesma época, os monges carmelitas fundaram o povoado de Paraná do

Parati (hoje município de Manacapuru). Este povoado foi várias vezes transferido, até

ser finalmente anexado à missão fundada por Fritz, a qual foi conquistada pelos

carmelitas para a Coroa portuguesa. No mesmo período, entre 1690 e 1730, a população

indígena ao longo do rio Solimões foi fortemente dizimada, dando origem, nas décadas

seguintes, a uma população mista de descendentes de colonizadores portugueses e de

indígenas. A denominação Vila de Coari ocorreu em 1º de maio de 1874, sendo

instalada sua comarca em 1891, a qual foi suprimida em 1913, ficando o termo

subordinado à comarca de Tefé. Sendo restaurada, outra vez, em 1924, compreendendo

os termos de Coari, Manacapuru e Codajás. Em 1932, Coari foi elevada à categoria de

cidade, por força do Ato Estadual n° 1665, de 2 de agosto do mesmo ano, no governo

municipal de Alexandre Montoril.

A história de pouco mais de trezentos anos da região revela um lento processo

de transformação social de Coari até o ano de 1986. A partir dessa década o município

passou a sofrer modificações relativamente aceleradas em virtude do início das

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atividades de prospecção e extração de petróleo e gás natural em seu subsolo pela

empresa PETROBRÁS. Em 1980, 14.787 pessoas ocupavam a área urbana e 27.825 a

área rural, nos anos seguintes esses números se invertem e sua população urbana

aumenta consideravelmente, atingindo em 2005, 49.633 habitantes em área urbana e

34.676 na área rural. O que representou um crescimento populacional urbano superior a

300% em apenas 25 anos. Como mostram os estudos sobre esta dinâmica regional, o

percentual de crescimento demográfico no município foi de “-9% no período de 1980-

1991 [antes do projeto]; e de 73% de 1991 para 2000 [inclui o período das obras do

gasoduto]. No período 2000/2005 o crescimento foi de 26% [período intermediário

entre a construção dos gasodutos Urucu-Coari e Coari-Manaus]” (SOLER, 2009, p.13).

Assim sendo, os dados confirmam que o incremento populacional esteve diretamente

relacionado à intensificação das atividades da PETROBRÁS e a construção do gasoduto

Urucu-Coari.

Pesquisas recentes apontam que o projeto de construção do gasoduto Urucu-

Manaus foi planejado para ser executado em duas etapas (SOLER, 2009, p.9). A etapa

inicial compreendeu o trecho Urucu-Coari, no qual o gasoduto foi construído no período

de junho de 1997 a abril de 1999. A execução da segunda etapa (trecho que compreende

o trajeto Coari-Manaus) esteve suspensa durante quatro anos a partir deste período, por

ordem do Governo do Estado do Amazonas, e sobretudo por conta das fortes pressões

de grupos ambientalistas e da comunidade local, e agora encontra-se em pleno processo

de funcionamento. Esta etapa do gasoduto deu sequência ao gasoduto existente,

iniciando o processo de comercialização do gás em seu estado natural.

Durante os anos noventa, o fluxo migratório se dirigiu para a sede municipal, o

que acarretou esvaziamentos na área rural de Coari. Segundo a pesquisa de Almeida,

“as construções do Terminal Solimões (TESOL), entre os anos 1996 e 1999, além da

própria expansão da PPU [Província Petrolífera de Urucu], foram as principais obras

que atraíram contingentes de trabalhadores, contribuindo para a já crescente expansão

de sua área urbana” (2008, p.81). A intensa migração resultou no surgimento de vários

bairros na periferia da cidade: Espírito Santo, Sham, Uniao, Urucu, Duque de Caxias,

Santa Efigênia, Itamaraty, Pera I, Pera II, Pera III, decorrentes de ocupações irregulares

e sem qualquer planejamento de infraestrutura. O efeito mais explícito desse aspecto das

transformações foram as graves consequências sociais que se expressam na

intensificação do tráfico e consumo de drogas, no avanço da violência entre jovens e a

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formação de gangues, na prostituição adulta e infantil, no tráfico infantil para fins de

exploração sexual, no aumento da incidência de contaminação adulta e infantil por

DST/AIDS, entre outros.

FIGURA 2 – Bairro Duque de Caxias em Coari/AM

Fonte: Pesquisa de campo (26/03/2011).

Como mostram os indicadores socioeconômicos do Atlas do Desenvolvimento

Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2003), no

período de 1991 a 2000, quando o município de Coari possuía uma população de 67.055

habitantes, a intensidade de pobreza cresceu de 54,33% para 56,06%, o que significou

um aumento de cerca de 2%; no mesmo período por sua vez a intensidade de indigência

evoluiu de 41,34% para 51,39%, ou seja, uma ampliação de 10%. Isto indica claramente

que no referido período, a população local não somente trilhou um caminho em direção

à pobreza como, mais grave ainda, foi intensamente empurrada para a condição de

indigência. Atualmente a população do município de Coari é de 75.909 habitantes, com

49.638 em área urbana (65,39%) e 26.271 nas zonas rurais (34,60%), e eleitorado de

36.863 eleitores (IBGE 2010 – Primeiros resultados). Uma população formada em sua

maioria por ribeirinhos, que notadamente não ocupam nenhum espaço de decisão no

poder público local, assim como não possuem representação política significativa ou

perspectivas imediatas de mudanças dessas relações sociais a seu favor.

TABELA 2 – Indicadores de pobreza da População de Coari/AM

Fonte: Adaptado de PNUD (2003).

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Disso decorre a necessidade de uma reflexão sobre as transformações sociais

que se reproduzem localmente, as repercussões sociais da ausência de direitos e, por

conseguinte, da qualidade da cidadania usufruída. Processo que se traduz em

contradições que se estabelecem entre os efeitos da apropriação de recursos naturais, a

destinação de royalties e participações especiais e o recrudescimento das questões e

problemas sociais entre as populações residentes no município, como ilustrado

sucintamente no organograma abaixo.

ORGANOGRAMA 1 – Problemática observada no município de Coari/AM

Fonte: Pesquisa de campo e bibiográfica (2012).

Nesse contexto, a realidade social do município indica que a apropriação de

recursos naturais oriunda das políticas de desenvolvimento do Estado brasileiro, ao

invés de produzir melhorias nas condições de vida das populações, pela concessão

governamental de recursos pecuniários ao poder público local (Royalties3 e

Participações especiais4), contraditoriamente, pelo mau uso ou desvio para fins de

3 Royalties são uma compensação financeira devida ao Estado Brasileiro pelas empresas que produzem

petróleo e gás natural no território brasileiro: uma remuneração à sociedade pela exploração desses

recursos não-renováveis. São pagamentos, entre outras participações governamentais, previstos no regime

de concessão (Lei no 9.478/1997 - Lei do Petróleo), na cessão onerosa de direitos de exploração e

produção à Petrobras (Lei no 12.276/2010) ou no regime de partilha da produção nas áreas do pré-sal e

outras áreas estratégicas (Lei no 12.351/2010). O pagamento dos royalties é feito mensalmente à

Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que tem como atribuição repassá-los aos estados e municípios

brasileiros, ao Comando da Marinha, ao Ministério da Ciência e Tecnologia e ao Fundo Especial. Este

Fundo, administrado pelo Ministério da Fazenda, é distribuído a todos os estados e municípios da

Federação, de acordo, respectivamente, com o Fundo de Participação dos Estados e o Fundo de

Participação dos Municípios. O valor mensal em Royalties pago ao município de Coari/AM em

25/10/2013 foi de R$ 59.391.780,34. Publicado pela Superintendência de Participações Governamentais.

Disponível em: < http://www.anp.gov.br/?pg=7594> (Acesso em 20/11/2013). 4 A Participação especial, prevista no inciso III do Art. 45 da Lei nº 9.478, de 1997, constitui

compensação financeira extraordinária devida pelos concessionários de exploração e produção de

petróleo ou gás natural, nos casos de grande volume de produção ou de grande rentabilidade, conforme os

critérios definidos no Decreto nº 2.705/1998. Para efeito de apuração da participação especial sobre a

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apropriação inescrupulosa por alguns representantes públicos locais, vêm agravando o

cenário de exclusão social pelo aprofundamento pobreza e da desigualdade.

2 A região do médio Solimões e as populações humanas na Amazônia

No que se refere à cultura política local e a concepção sobre a garantia e

exercício dos direitos de cidadania pela população, a Amazônia possui autênticas

especificidades. Assim, embora em nível nacional e nas capitais do país seja possível

observar na atualidade nuances mais democráticas na relação entre os cidadãos e os

representantes do poder público, nos municípios do Amazonas ainda é profundamente

presente o autoritarismo, os desmandos e o uso do populismo no controle das massas

populacionais empobrecidas e vulneráveis. Como as mostram algumas pesquisas

recentes desenvolvidas na região, o que caracteriza as condições sociais de vida das

populações residentes no interior do Amazonas é em larga medida a de negação de

direitos e a subcidadania (SCHERER, 2009).

Frente a esta questão que se apresenta, simultaneamente vem a lume que ao

longo da história da sociedade brasileira podem-se constatar inúmeros exemplos de

como as elites dominantes sempre introduziram meios eficazes de dificultar ou mesmo

impedir o acesso aos bens públicos, bem como o estabelecimento do espaço

democrático, de suma importância para a afirmação e consolidação da sociedade civil.

Na Amazônia, em particular, o que se denominou como “processo civilizatório”

apresenta como principal marca identificadora as relações de subordinação, de violência

política e institucional. Assim como a pouca ou quase inexistente importância que as

elites e grupos dominantes locais atribuíam aos direitos civis, políticos e sociais,

reproduzindo uma condição social onde se sobressai como característica predominante

das populações humanas amazônicas a de “uma massa imensa, em completa

desagregação social, vivendo em condições subumanas, embrutecida e aviltada”

(BATISTA, 1976, p.88).

Entretanto, como nos alertam algumas reflexões sobre as populações humanas

que habitam a Amazônia, contemporaneamente, os próprios modos de se fazer

produção de petróleo e de gás natural são aplicadas alíquotas progressivas sobre a receita líquida da

produção trimestral de cada campo, consideradas as deduções previstas no § 1º do Art. 50 da Lei nº

9.478/1997, de acordo com a localização da lavra, o número de anos de produção e o respectivo volume

de produção trimestral fiscalizada. O valor em Participação Especial do segundo trimestre de 2013, pago

em 08/08/2013 ao município de Coari/AM, é de R$ 3.829.007,14. Publicado pela Superintendência de

Participação Especial. Disponível em: < http://www.anp.gov.br/?pg=7594> (Acesso em 20/11/2013).

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referência política à sociedade regional tendem a privilegiar como viés explicativo,

sobretudo a ideia de povos excluídos, marginalizados, vítimas das desigualdades e

iniquidades econômicas, sociais, e que nutrem desprezo por qualquer atividade

relacionada à constituição de um juízo político dessas populações. O que se por um lado

essas imagens coincidem inegavelmente com a realidade social da região, por outro lado

essas designações e tipificações têm atualmente contribuído para escamotear, disfarçar,

apagar as verdadeiras razões que levam a essa condição.

Isso significa dizer que no discurso dominante essas denominações e

qualificações têm se transformado em estigma “natural” e “peculiar”, associado às

particularidades dos problemas enfrentados na Amazônia. Essa mesma característica

também se expressa de maneira viva e incômoda na constatação de que essas aberturas

insólitas, essas passagens surpreendentes para um “reconhecimento” das questões

sociais na região, aparecem de súbito, como se estivessem descoladas dos processos que

atuam na região, bem como das ações desenvolvimentistas que dinamizam os lugares

mais remotos da Amazônia. Em outros termos, o que estamos querendo sugerir é que

frequentemente, pela sutileza da retórica politicamente consciente, estamos “caindo na

armadilha ideológica que está sendo montada a cada momento e na qual a dominação de

classes, a hegemonia dos sistemas políticos e econômicos dominantes se manifestam

com diferentes intensidades no processo de exclusão” (PINTO, 2006, p.103).

Daí entendermos a necessidade de se refletir, frente a ação socialmente

negativa das transformações sociais sobre as populações humanas da Amazônia, a

participação política e a inclusão social a partir de um viés interpretativo que as resgate

da teia de dominação e convencionalismo que as permeia. E para isso, caracterizar um

juízo político das populações residentes na região do Médio Solimões, considerando-se

a perspicácia política e o vigor de compreensão da realidade social que este conceito

expressa, pode ser um caminho seguro para a construção de um processo de mudança na

forma como estão estruturadas as relações sociais de classe e, por conseguinte, da

qualidade de vida na região.

No sentido dessas observações, para um futuro próximo, as avaliações de

sustentabilidade econômica e social das populações residentes no município de

Coari/AM são alarmantes. Estudos recentes revelam que por volta de 2020 – data

provável de início do esgotamento das reservas de petróleo e gás na região –, mantidas a

conjuntura política e institucional atual do poder público local, é muito provável que o

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município “venha a experimentar um caos econômico e cultural, com situações cada vez

mais explosivas, com crescimentos demográficos e desigualdades sociais significativas.

No seu conjunto, esses fatores empurrarão a população coariense para migrações sem

perspectivas e consequente destruição de áreas florestais e seus respectivos

ecossistemas” (ALMEIDA, 2008, p.69-92).

TABELA 3 – Arrecadação de Royalties nos anos 1994 a 2005

Arrecadação anual líquida de Royalties repassada ao município de Coari/AM (em R$ 1,00)

1994 1995 1996 1997 1998 1999

871.188,52 1.428.708,77 3.454.154,58 7.146.859,54 8.300.927,64 7.117.618,53

2000 2001 2002 2003 2004 2005

15.449.356,06 19.143.801,10 22.405.387,67 29.018.847,10 37.547.252,94 46.608.715,17

Fonte: Adaptado de Agência Nacional do Petróleo – ANP (2006)

No caso do município de Coari/AM, com a implantação do empreendimento da

PETROBRAS na Bacia do Solimões, as compensações financeiras oriundas de

Royalties e Participações Especiais, devidas pela extração de recursos naturais na

região, passaram a representar a partir de 1996 uma expressiva receita para o município.

No entanto, embora repassados mensalmente ao poder público municipal através da

Agência Nacional do Petróleo (ANP) e crescido mais de treze vezes entre os anos

1996/2005, como podemos observar na tabela acima; isto de modo algum significou

uma garantia em termos de políticas públicas direcionadas aos setores sociais, que

pudessem produzir mudanças ou melhoria na qualidade de vida das populações

residentes nesta localidade (VIANA, 2006, p.85).

3 Da necessidade de uma perspectiva das populações ribeirinhas

A necessidade de se caracterizar os efeitos das transformações sociais sob a

ótica das populações residentes no município de Coari/AM, emerge em resposta a

questões colocadas por uma pesquisa que realizávamos sobre as relações entre os efeitos

das alterações ambientais na Amazônia e o recrudescimento da vulnerabilidade social

das populações residentes na região. Dentre os conteúdos discursivos expressos nas

representações sociais dos sujeitos para aquela pesquisa, ainda que minimamente,

emergia no universo pesquisado um juízo político que se destacava pela formulação de

uma lúcida compreensão dos problemas e questões gerados pela dominação atuante nas

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relações entre a crescente apropriação capitalista da Amazônia, a degradação ambiental

e as atuais condições sociais daquela população5.

Nesse processo, o caráter de dignidade do modo de vida é ressaltado enquanto

dimensão fundamental para a existência humana. Para aqueles entrevistados, a maioria

já proveniente de outras zonas rurais dos municípios amazonenses, sua intenção de

transferência definitiva para Manaus se justificava pelos baixíssimos índices de

qualidade de vida, escassez de recursos econômicos, pela ausência de expectativa de

mudança desse quadro social pelo poder público e, por conseguinte, a impossibilidade

de permanência em seus locais de origem.

Um juízo político que merece destaque, por exemplo, pela amplitude e crítica

das relações entre as transformações sociais e o recrudescimento da desigualdade social

entre as populações locais, está relacionado à forma como percebem suas atuais

condições de vida social e econômica. No sentido de que estabelecidos nas ocupações

irregulares das zonas periféricas de Manaus, como verificado em outra oportunidade6,

ou na condição de desabrigados da enchente, como a ocorrida em 2009 no município de

Coari/AM; emerge em suas representações a compreensão, enunciada de um modo

bastante amplo, de que se não tivessem sido obrigados a sair de seus locais de origem

em busca de melhores condições sociais, do lugar onde viveram os pais, avós e bisavós,

certamente estariam vivendo dignamente naquele momento.

Como sabemos, o resultado deste processo migratório é quase sempre

socialmente trágico. E nestes casos, perde-se a perspectiva de dignidade social

5 O contato com as populações amazônicas das zonas rural e urbana do município de Coari deveu-se à

coordenação de uma pesquisa no âmbito do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da

Amazonas/IFAM – Campus Coari, desenvolvida no ano de 2009 e intitulada “Desequilíbrio ecológico e

degradação social na Amazônia: um perfil dos desabrigados da enchente de 2009 no município de

Coari/AM”, cujos resultados foram apresentados no II Encontro Internacional de Ciências Sociais – 8 a

11 de junho de 2010 – UFPEL, Pelotas/RS, na 62ª Reunião Anual da SBPC – 25 a 30 de julho de 2010 –

UFRN, Natal/RN, e no I Seminário Nacional de Sociologia da Saúde e Ecologia Humana – 14 a 16 de

setembro de 2010 – UFSC – Florianópolis/SC. Este fenômeno ambiental da enchente ocorrida em 2009

foi o mais intenso e devastador já registrado na Amazônia, desabrigando milhares de famílias em quase

todos os municípios do Amazonas e alguns Estados da região norte. Em Coari a Defesa Civil registrou o

atendimento de 1.350 famílias na zona urbana e 2.565 na zona rural, num total de 3.915 famílias atingidas

pela inundação. Neste trabalho sobre os desabrigados da enchente, pelos conteúdos discursivos enunciado

nas representações sociais dos entrevistados, nos foi possível a percepção deste juízo político entre estas

populações. 6 A preocupação fundamental da pesquisa era caracterizar os aspectos que norteiam a cidadania da

população manauense, verificando o distanciamento que o discurso governamental adquire ao ser

confrontado à reprodução da pobreza e da exclusão social. Nesse contexto de análise, partimos da

concepção de que enquanto materialização de serviços, as políticas sociais se constituem uma mediação

nas relações sociais com o poder público, o que permite apreendê-las como espaço contraditório onde se

operam tanto os interesses das elites políticas dominantes como também o embate pelos direitos de

cidadania (PEREIRA, 2005).

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assegurada formalmente pela cidadania brasileira, que vai se tornando cada vez mais um

ideal distante da dura realidade social enfrentada por essas populações. Quando enormes

contingentes populacionais se deslocam para viver nas zonas urbanas das capitais,

predominantemente representa para estas populações empobrecidas e com baixíssimo

nível escolar, a subsistência adquirida pela economia informal ou adquirir um

subemprego. Quando não amargam por um longo tempo o desemprego, habitando

precárias moradias nas ocupações irregulares da periferia da cidade, assim como

estarem expostos a níveis alarmantes de criminalidade (SCHERER, 2009, p.129).

Neste sentido, ao se pensar a Amazônia partindo da consideração de que é um

espaço promovedor do equilíbrio ecológico em nível local, regional e planetário, nos

deparamos também com a lamentável constatação de que a região possuidora da mais

rica biodiversidade mundial é também a que apresenta um dos piores indicadores sociais

das populações brasileiras. As transformações sociais decorrentes da crescente

apropriação de recursos naturais produzida atualmente pela ação das políticas de

desenvolvimento do Estado brasileiro e do capital privado na Amazônia apresentam-se

perigosas e socialmente degradantes para os povos que nela vivem.

Assim, entendemos que através do juízo político é possível a percepção do tipo

de relação social imposta pelas elites no poder, o discernimento do teor da condição de

cidadania, bem como a oportunidade de se pensar as possibilidades de mudança social.

No pensamento arendtiano, o juízo político é definido como o resultado da capacidade

que todas as pessoas têm para refletir sobre a realidade social em que vivem (ARENDT,

1993b). Ao buscar captar as representações dos atores diretamente atingidos pelos

processos de transformação social na região amazônica, certamente será possível

reproduzir a voz de um segmento deliberadamente negligenciado nas relações sociais

em âmbito regional. Para citarmos um exemplo, nos relatórios de impactos

socioambientais dos grandes projetos na Amazônia, seus interesses e visão de mundo

sequer são mencionados como proposição válida na problematização desses

empreendimentos (EPIA-RIMA JURUÁ/URUCU, 2008).

De tal modo que, se partirmos do entendimento de que as populações

ribeirinhas da Amazônia são perfeitamente capazes de expressar coerentemente seu

ponto de vista das alterações no ambiente em que vivem; bem como de manifestar uma

coerente percepção política das transformações sociais nas quais estão inseridas; parece

ser possível vislumbrarmos relações de classe menos desiguais no confronto de forças

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atuantes na região. Uma vez que estes sujeitos sociais são invisibilizados social e

politicamente por um poder que se exerce hegemonicamente (no sentido gramsciano do

termo) e se apresenta em consonância aos interesses dos grandes projetos de exploração

de recursos da natureza no ambiente amazônico (ADAMS, 2006).

Neste sentido, sustentamos que mesmo confinados sob o efeito socialmente

danoso das transformações sociais impetrada pela ação das políticas de

desenvolvimento do Estado brasileiro e do capital privado na Amazônia; e, embora se

saiba que a forma histórica de atuação política do poder público local nos municípios

amazônicos seja predominantemente marcada pelo autoritarismo, o clientelismo e a

reiteração da dominação e da subserviência política na relação com as massas

populacionais; ainda assim, se considerarmos a legitimidade das representações

expressas no sensus communis das populações ribeirinhas, é possível a apreensão de um

juízo político que pode se apresentar como possibilidade de mudança favorável ao

desenvolvimento social desses segmentos, de modo a lhes fornecer uma abertura

emancipatória na exígua condição social a que estão submetidas as populações na

Amazônia.

A superação da subalternidade, afirma Gramsci (1999, p.111), requer a

construção de novos modos de pensar, necessária para suplantar as ideologias

dominantes presentes consideravelmente no senso comum e tornar as classes

subalternizadas capazes de produzir uma contra-hegemonia. Nesse processo, aprofundar

e aperfeiçoar o conhecimento da realidade impõe-se como condição essencial na luta

por mudanças sociais favoráveis. Desse modo, enquanto via de acesso aos interesses

dos próprios atores atingidos pelos processos de transformação social, a caracterização

deste juízo político a partir de suas representações sociais pode revelar ainda, a

intensidade da vulnerabilidade social no município e a crueza das dificuldades

materialmente enfrentadas pelas populações ribeirinhas atingidas. Assim como, também

nos permitir apreender seus dilemas e aspirações de melhoria das condições de vida, em

consonância a uma constituição efetiva do espaço público, que requer a oportunidade de

um lugar de liberdade para as pessoas expressarem seus pensamentos e opiniões (doxa),

o que seguramente contribui para a preservação da dignidade da política, como sugerem

as reflexões políticas de Arendt (1993a).

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4 Caracterização da Comunidade de São Pedro da Vila Lira

FIGURA 3 – Comunidade Vila Lira e Terminal Solimões (TESOL)

Fonte: Adaptado de http://wikimapia.org/ (CNES, 2014).

A Comunidade de São Pedro da Vila Lira está localizada na região de lago do

rio Badajós, Longitude – 63.11056 – Latitude –3.5448, distante 7km da sede do

município de Coari e apenas 5km da calha do poliduto construído pela empresa

PETROBRAS. A Comunidade é formada essencialmente de um ecossistema de terra

firme, situada às margens do lago e composta por 54 famílias, concentradas no núcleo

da comunidade e áreas próximas. O acesso ao local ocorre através de barcos ou

pequenas embarcações movidas a motor a diesel, chamada de “rabetas”. O modo de

vida na comunidade não é diferente da maioria das comunidades ribeirinhas

amazônicas, cuja manutenção das famílias ocorre sobretudo do que é caçado, plantado

ou colhido na floresta, bem como dos peixes do lago, os quais proporcionam a essa

população uma forma diferenciada e tradicionalmente sustentável de conviver com a

natureza. Como assinalam certos estudos (ARAÚJO, 2003), nesse ambiente social da

Amazônia em que se desenvolve atividades como pesca, roça e culturas de outras

espécies predominantes na região, não significa que as populações ribeirinhas não

desenvolvem suas próprias atividades econômicas, como foi mencionado pelos

moradores sobre a comercialização do peixe, antes da construção do TESOL.

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4.1 Aspectos abordados pelos moradores da Comunidade São Pedro da Vila Lira:

FIGURA 4 – Comunidade Vila Lira

Fonte: Adaptado de http://wikimapia.org/ (CNES, 2014).

Dentre os moradores entrevistados7 destaca-se a observação de que, com a

construção do Terminal Solimões – TESOL entre os anos 1996 e 1999, e o

desenvolvimento de suas atividades (cujo cotidiano envolve o tráfego constante de

lanchas, barcos e navios de médio e grande porte), os cardumes de peixes que antes

eram encontrados em abundância naquela imediação, desapareceram. De modo que hoje

é possível adquiri-los apenas o suficiente para o consumo familiar. Conforme o relato

dos moradores mais antigos, a comunidade que há mais de oitenta anos viveu com os

recursos econômicos advindos das atividades de pesca (cujo incremento garantia a

aquisição e consumo do que não é produzido na comunidade), teve que buscar

alternativas para sua sobrevivência. Nesse processo, muitas famílias migraram para a

sede do município (espaço urbano de Coari) ou mesmo diretamente para Manaus. Aos

que ficaram a solução para o sustento da família foi o plantio da roça de mandioca para

a produção de farinha e o cultivo de legumes como jerimum, batata-doce, maxixe e

7 Entrevistamos 12 pessoas, entre homens e mulheres, de idades diversas, residentes na Comunidade São

Pedro da Vila Lira. O principal critério para seleção destes sujeitos sociais guiou-se por sua importância

na manutenção do modo de vida para o interior do núcleo familiar, e por habitarem a zona rural do

município de Coari, onde os impactos socioambientais são também consideravelmente evidentes.

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quiabo; bem como frutas como o abacaxi, o mamão, a banana e a melancia. Essa

produção desde então passou a ser é vendida no porto da comunidade ao “atravessador”,

que ao adquirir esses produtos revende aos comerciantes locais.

FIGURA 5 – Comunidade Vila Lira

Fonte: Pesquisa de campo (26/07/2012).

Um aspecto que emerge em todos os relatos dos moradores de São Pedro da

Vila Lira, tanto os jovens quanto os mais idosos, é o ocorrido com o igarapé que serve a

Comunidade. O aterro do solo onde haveria de ser construída a “estrada” (termo que se

refere ao terreno por onde ocorre para a passagem do poliduto de gás natural e petróleo,

ligando a Província Petrolífera de Urucu – PPU a sede de Coari) causou a poluição do

único igarapé próximo à Comunidade. As águas que antes eram limpas e serviam para o

consumo dos moradores passaram a se apresentar demasiadamente barrentas, pesadas e

sem oxigenação. Conforme os relatos colhidos, a queixa dos moradores junto aos

dirigentes do empreendimento teve um efeito pouco favorável.

A solução adotada pela empresa PETROBRAS à época foi a construção de um

poço artesiano que abasteceria a Comunidade com água potável e funcionaria com

diesel doado pela própria empresa, o que foi bastante anunciado nos meios de

comunicação impresso e eletrônico, em nível nacional e mundial. No entanto, já nas

suas primeiras vezes em que foi posto em funcionamento o poço apresentou água

inexplicavelmente densa e com sabor ferruginoso, o que impossibilitou o consumo

pelos moradores. Meses depois, os técnicos da empresa PETROBRAS retornaram e

constataram que a perfuração havia atingido uma camada de pedregulho, daí a

densidade e o sabor alterado da água. Segundo declaração dos moradores, com esta

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constatação ficou sugerida a mudança do local de perfuração do poço como solução

para o problema. Todavia os moradores da comunidade não tiveram outra visita da

equipe técnica, assim como jamais tiveram notícias sobre quando ocorreria outra

perfuração. De modo que o consumo de água para as atividades domésticas continuou

sendo do próprio igarapé (desde então poluído e quase sem vida), clareada com

hipoclorito (distribuído como política pública pelo governo municipal de Coari aos

moradores das comunidades), e bebida dessa forma.

Os moradores da Comunidade de São Pedro da Vila Lira também se queixam

da destruição de parte de suas terras de cultivo e as indenizações irrisórias que

receberam. Segundo seus relatos, durante a abertura das “estradas” para o trajeto do

poliduto suas plantações foram drasticamente atingidas, umas com perda parcial e

outras com perda total da área cultivada; no entanto, foi lhes repassados a título de

indenização um valor considerado muito aquém do que, conforme suas experiências,

lhes renderia a produção. Mais o que mais lamentam a esse respeito é a impossibilidade

de uso destas terras desde então (considerada as melhores, visto como mais produtivas),

posto que há uma rigorosa prescrição e controle pela empresa PETROBRAS sobre a

impossibilidade de qualquer outra utilização do terreno ao longo do poliduto, haja vista

a iminência de ocorrer acidentes e catástrofes ambientais sem precedentes.

Por fim, quando inquiridas sobre o que teria ficado das inovações criadas pela

empresa PETROBRAS, constatadas em julho de 2012, as avalições dos moradores da

Comunidade São Pedro de Vila Lira revelam um balanço pouco otimista. Além do que

anteriormente relatamos, mencionado com certa amargura pelos moradores, por terem

noção do poder econômico descomunal que lhes atinge, o que dizem em suas

considerações a respeito pode ser traduzido como degradação ambiental, social e vãs

promessas de emprego numa grande empresa, ícone do capitalismo na Amazônia.

Considerações Finais

Por se encontrar hoje numa posição chave no complexo cenário geopolítico

mundial, a Amazônia requer a redefinição de um diálogo científico que também priorize

a discussão das condições de possibilidade para políticas públicas eficazes, que

considerem relevantes a valorização humana e social das populações amazônicas. Desse

modo, pode-se dizer que debater, esclarecer e decidir sobre a formulação das condições

objetivas de vinculação destas políticas, e os desdobramentos subsequentes na qualidade

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de vida dos povos amazônicos, constitui uma atuação política que deve,

necessariamente, ser exercida por esses povos (FREITAS, 2001, p.43).

Em vista disso, a execução de pesquisas que vislumbrem esses aspectos

assinalados, objetivamente pode tornar possível uma reflexão sobre as relações que se

estabelecem entre as transformações sociais e o recrudescimento da degradação social

entre as populações residentes no interior da Amazônia. Estudos que se ocuparam de

temas transversais a este mostram alguns aspectos marcantes desse processo sobre estas

populações na região (ALMEIDA, 2008; GAWORA, 2003; VIANA, 2006). Mas,

analisar essas relações a partir do contato direto com os sujeitos sociais envolvidos e

diretamente atingidos, ou seja, as populações ribeirinhas, tal como aqui muito

sucintamente tentamos apresentar com a Comunidade São Pedro da Vila Lira; ao se

fazer emergir um juízo político sobre este processo, certamente poderia nos permitir

considerar não somente as implicações imediatas das transformações sociais na região,

mas, especialmente avaliar como a intensificação de seus efeitos desfavoráveis contribui

decisivamente para a condição de aviltamento e vulnerabilidade social a que estão

submetidas as populações da Amazônia.

Do que foi aqui mencionado brevemente, reiteramos que a formulação de uma

apreciação neste nível de aproximação com as populações atingidas, pode possibilitar

não somente a legítima expressão de seus interesses, como a elaboração de políticas

públicas mais eficazes e especialmente voltadas para as demandas sociais destes

segmentos populacionais diretamente atingidos pelos efeitos das transformações sociais

na região. Ou seja, como parâmetro para as decisões do poder público, na concepção e

efetivação de ações com maior envergadura e alcance sobre os problemas que se

apresentam localmente na Amazônia. Daí o interesse em se caracterizar em que medida

esta noção de juízo político pode criticamente vislumbrar neste processo – pela ótica dos

próprios sujeitos atingidos pelas implicações socialmente negativas das transformações

sociais – condições de possibilidade emancipatórias às atuais condições sociais das

populações humanas da Amazônia, baseando-se sobretudo no respeito a um peculiar e

sustentável modo de vida, que é a maneira como vivem tradicionalmente os ribeirinhos.

Em vista disso, espera-se, sobretudo, que pesquisas com este objetivo mencionado

venham a contribuir de algum modo como indicativo da possibilidade de uma autêntica

participação democrática nas decisões de interesse coletivo.

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