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Impactos socioambientais do projeto de exploração de petróleo e gás no município
de Coari/AM: o caso da comunidade ribeirinha de Sao Pedro da Vila Lira 1
Raimundo Emerson Dourado Pereira (PUC/SP)2
Resumo: A partir das representações sociais de informantes escolhidos
qualitativamente entre os moradores da Comunidade São Pedro da Vila Lira, localizada
no município de Coari/AM, o trabalho busca revelar o ponto de vista desses ribeirinhos
amazônicos acerca dos impactos decorrentes da dinâmica do projeto de exploração de
petróleo e gás, em curso na região Amazônica. Essas atividades extrativistas estão
ligadas à construção do poliduto Urucu-Coari/Coari-Manaus e do depósito de petróleo
Terminal Solimões. As alterações socioambientais têm início com os trabalhos de
prospecção em 1986 e a efetiva exploração de hidrocarbonetos e gás natural pela
empresa PETROBRAS a partir de 1988, na Província Petrolífera de Urucu - PPU,
localizada a 280km da sede municipal.
Palavras-chave: Amazônia, Petróleo e gás, Coari/AM.
Introdução
Viver na Amazônia é em si mesmo uma atitude instigante, desafiadora e
encantadora. Esclarecer em que consiste, em nosso entendimento, cada uma destas aqui
simplificadas categorias certamente não é algo original que se possa dizer. Desde o
século XVI (Hemming, 2011), e os primeiros execráveis contatos genocidas entre
colonizadores europeus e povos indígenas habitantes da Amazônia, essa região é
caracterizada por alumbramentos (com os mais diferentes matizes de interesses, sejam
eles econômicos, políticos, ambientais ou científicos; ou a combinação entre estes),
impactos socioambientais e perplexidades negativas diante das formas de sua cultura
indígena e seu característico modo de vida das populações ribeirinhas locais.
Neste sentido, pode-se dizer que o inventário físico e de riquezas da chamada
Amazônia Legal – cuja denominação foi criada em 1966 sob a égide da geopolítica dos
governos militares – é, por outro lado, inevitavelmente surpreendente. Compreende os
Estados do Amazonas, Pará, Acre, Rondônia, Roraima, Tocantins, oeste do Maranhão,
norte do Mato Grosso e Amapá. Desse modo, mais da metade do território nacional está
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - PEPGCS, Bolsista de
doutorado do CNPq. E-mail: [email protected].
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representada nesta área, cuja superfície abrange mais de 5 milhões de km² (60% do
território nacional) e contém em solo brasileiro cerca de 30% da floresta tropical do
planeta. Também representa 65% do continente sul-americano, com 11.248 km² de
fronteiras internacionais com o Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname
e Guiana Francesa. Estima-se que, além de possuir o maior ambiente de
sociodiversidade e biodiversidade do planeta e a maior reserva de florestas latifoliadas
tropicais do mundo, a Amazônia brasileira possui ainda 50% do potencial hidroelétrico
do país e detém 12 milhões de várzeas e terras férteis e 25 mil quilômetros de rios
navegáveis, o que equivale a 1/5 da água doce do planeta. Além de se constituir, como
bem sabemos, em ambiente físico relevante nas estabilidades mecânica, termodinâmica
e química dos processos atmosféricos em escala global (SILVA, 2000, p.160-1).
No entanto, se por um lado a Amazônia brasileira apresenta essa dimensão de
inquestionável grandiosidade, por outro ela continua a ser uma região socialmente
desprovida, com baixa qualidade de vida e falta de oportunidades para a população. O
que torna possível afirmar que a crescente exploração de seus vastos recursos pouco tem
contribuído para a melhoria do padrão de vida de suas populações, desencadeando, ao
contrário, graves processos de degradação ambiental e conflito social. Nesse contexto, a
análise da pobreza humana na Amazônia é vista como consequência da ausência ou
insuficiência de serviços básicos de infraestrutura social, política, educacional,
científica, tecnológica, agravados pela grande distância e carência de cadeias produtivas
que assegurem emprego, renda e tributo para fazer face aos elevados custos da
administração pública. E que, portanto, permitam a exploração do potencial de sua geo-
bio-eco-diversidade em bases sustentáveis (BENCHIMOL, 2002, p.11).
Em outros termos, a desigualdade social se apresenta como uma dimensão que
se articula às formas de interferência do Estado brasileiro e do capital privado na região,
contribuindo decisivamente para a péssima qualidade de vida das populações locais.
Tomando-se como exemplo os grandes projetos sob a égide do desenvolvimento
capitalista na Amazônia pode-se notar que o desenvolvimento social não acompanhou
na mesma medida o crescimento econômico. Ao contrário, embora esses
empreendimentos tracem metas para ações mitigadoras dos impactos ambientais e
sociais, essas ações não são suficientes para conter as graves contradições sociais
geradas em suas áreas de influência. Nesse contexto, o reconhecimento do estatuto da
Amazônia como equilíbrio ecológico da Terra, bem como sua crescente importância na
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contemporaneidade, recoloca incessantemente em questão os problemas sociais gerados
pelas formas de sua ocupação e modelos de desenvolvimento adotados para torná-la
produtiva. Assim, o deslinde de questões que implicam na intensificação da
desigualdade no contexto regional amazônico deve se constituir numa das principais
preocupações para o século XXI. Como apontam os estudos sobre os efeitos sociais dos
grandes projetos, esse tipo de relação vem se reproduzindo na Amazônia nas últimas
décadas, podendo ser observado em empreendimentos como:
“Mineração Novo Astro (MNA); Garimpo Mutum e Lourenço, com relações
tensas entre empresa e garimpeiros, além das evidências de degradação
ambiental e social; Mineração Yokio Yoshidome S.A., exploração do
manganês na Serra do Navio com graves impactos socioambientais; CVRD –
tanque de rejeito de ferro no Igarapé Gelado, palco de convivência
conflituosa entre a CVRD e os colonos; CVRD – década de 80 – exploração
do ouro na Serra do Carajás, com fortes conflitos entre a União, Estado do
Pará, CVRD e garimpeiros, além dos impactos sociais, econômicos e físico-
ambientais” (SOLER, 2009, p.16).
O IDH é um referencial executado pelo PNUD – Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento e publicado anualmente pelo Relatório de Desenvolvimento
Humano – PDH. O índice baseia-se em três pilares sociais na população: Expectativa de
vida, Educação e Renda per capita (MALVEIRA, 2009, p.66). Com um (IDHM) em
0.621, considerado baixo se comparado ao montante da arrecadação fiscal do município,
Coari mobilizou recentemente um processo migratório para sua zona urbana em função
da descoberta de petróleo e gás na região de Urucu em 1986, exploração que é
executada pela PETROBRAS e demais empresas prestadoras de serviços terceirizados
desde os anos 90 (VIANA, 2007, p.120). Do ponto de vista do que estamos
examinando, analisar as transformações sociais na região do Médio Solimões a partir de
uma apreciação dos impactos socioambientais às condições de vida dos atores
envolvidos diretamente neste processo (a população residente no município de
Coari/AM) nos permite considerar não somente as implicações imediatas dos processos
de desenvolvimento capitalista na região, mas, sobretudo avaliar, como a intensificação
de seus efeitos desfavoráveis contribui decisivamente para a condição de
vulnerabilidade social e subcidadania a que estão submetidas parte expressiva das
populações na Amazônia.
A partir de 1996, devido aos Royalties transferidos mensalmente por esta
estatal, Coari ocupa uma posição econômica privilegiada, sendo o segundo município
em arrecadação fiscal do Estado do Amazonas, ficando atrás apenas da capital, Manaus.
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No entanto, como mostra a tabela abaixo, Coari ocupa a 33ª colocação no ranking do
IDHM estadual (em 62 municípios), a colocação 349ª no ranking regional (em 449
municípios) e a colocação 4.176ª no ranking nacional (em 5.507 municípios). Com isso,
é possível alegar que os recursos disponibilizados ao poder público local não garantem a
estas populações melhorias em seus padrões de vida, pois contraditoriamente, Coari é
um município explicitamente marcado pela desigualdade, miséria, pobreza e exclusão
social. O acesso ao município é feito somente por via aérea ou fluvial, uma vez que não
há qualquer ligação da malha rodoviária com os municípios vizinhos. O tempo de
deslocamento partindo de Manaus é em média 50 minutos com avião, a utilização do
transporte por lanchas que conduzem passageiros dura cerca de 9 horas e meia, há ainda
a opção por barcos regionais, mas estes consomem cerca de 23 horas no percurso (463
km via fluvial). O custo para este deslocamento é proporcional ao tempo gasto, sendo,
portanto, o de maior valor o transporte aéreo, cuja tarifa é mais cara do que os preços
normalmente cobrados por percursos entre estados no país.
TABELA 1 – Dados socioeconômicos do município de Coari/AM
Fonte: Adaptado de IBGE 2000/PNUD 2003.
1 O município de Coari/AM
O município de Coari/AM está situado no centro do Estado do Amazonas, às
margens do rio Solimões, entre o Lago de Mamiá e Lago de Coari, a 362 km em linha
reta de Manaus, a capital do Estado. Com seus 57.922 km², Coari limita-se ao norte com
o município de Codajás, ao sul com o município de Tapauá, a leste com o município de
Anori e a oeste com o de Tefé.
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FIGURA 1 – Localização do município de Coari/AM
Fonte: http://www.coari.am.gov
Como assinala Gawora (2003), a história do município se inicia no século
XVII, quando o Jesuíta Alemão Samuel Fritz funda uma aldeia de índios para a
catequização dos Yuris e Mauás, a qual denominou de Coari, por ficar à margem do
lago que possui este nome. Outras tribos habitavam a região onde hoje está estabelecido
o município de Coari, dentre elas: Catuxi, Juma, Irijú e Solimões. Algum tempo depois,
por ser partidário da Coroa espanhola, o fundador da cidade precisou abandonar o Brasil
em 1708. Na mesma época, os monges carmelitas fundaram o povoado de Paraná do
Parati (hoje município de Manacapuru). Este povoado foi várias vezes transferido, até
ser finalmente anexado à missão fundada por Fritz, a qual foi conquistada pelos
carmelitas para a Coroa portuguesa. No mesmo período, entre 1690 e 1730, a população
indígena ao longo do rio Solimões foi fortemente dizimada, dando origem, nas décadas
seguintes, a uma população mista de descendentes de colonizadores portugueses e de
indígenas. A denominação Vila de Coari ocorreu em 1º de maio de 1874, sendo
instalada sua comarca em 1891, a qual foi suprimida em 1913, ficando o termo
subordinado à comarca de Tefé. Sendo restaurada, outra vez, em 1924, compreendendo
os termos de Coari, Manacapuru e Codajás. Em 1932, Coari foi elevada à categoria de
cidade, por força do Ato Estadual n° 1665, de 2 de agosto do mesmo ano, no governo
municipal de Alexandre Montoril.
A história de pouco mais de trezentos anos da região revela um lento processo
de transformação social de Coari até o ano de 1986. A partir dessa década o município
passou a sofrer modificações relativamente aceleradas em virtude do início das
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atividades de prospecção e extração de petróleo e gás natural em seu subsolo pela
empresa PETROBRÁS. Em 1980, 14.787 pessoas ocupavam a área urbana e 27.825 a
área rural, nos anos seguintes esses números se invertem e sua população urbana
aumenta consideravelmente, atingindo em 2005, 49.633 habitantes em área urbana e
34.676 na área rural. O que representou um crescimento populacional urbano superior a
300% em apenas 25 anos. Como mostram os estudos sobre esta dinâmica regional, o
percentual de crescimento demográfico no município foi de “-9% no período de 1980-
1991 [antes do projeto]; e de 73% de 1991 para 2000 [inclui o período das obras do
gasoduto]. No período 2000/2005 o crescimento foi de 26% [período intermediário
entre a construção dos gasodutos Urucu-Coari e Coari-Manaus]” (SOLER, 2009, p.13).
Assim sendo, os dados confirmam que o incremento populacional esteve diretamente
relacionado à intensificação das atividades da PETROBRÁS e a construção do gasoduto
Urucu-Coari.
Pesquisas recentes apontam que o projeto de construção do gasoduto Urucu-
Manaus foi planejado para ser executado em duas etapas (SOLER, 2009, p.9). A etapa
inicial compreendeu o trecho Urucu-Coari, no qual o gasoduto foi construído no período
de junho de 1997 a abril de 1999. A execução da segunda etapa (trecho que compreende
o trajeto Coari-Manaus) esteve suspensa durante quatro anos a partir deste período, por
ordem do Governo do Estado do Amazonas, e sobretudo por conta das fortes pressões
de grupos ambientalistas e da comunidade local, e agora encontra-se em pleno processo
de funcionamento. Esta etapa do gasoduto deu sequência ao gasoduto existente,
iniciando o processo de comercialização do gás em seu estado natural.
Durante os anos noventa, o fluxo migratório se dirigiu para a sede municipal, o
que acarretou esvaziamentos na área rural de Coari. Segundo a pesquisa de Almeida,
“as construções do Terminal Solimões (TESOL), entre os anos 1996 e 1999, além da
própria expansão da PPU [Província Petrolífera de Urucu], foram as principais obras
que atraíram contingentes de trabalhadores, contribuindo para a já crescente expansão
de sua área urbana” (2008, p.81). A intensa migração resultou no surgimento de vários
bairros na periferia da cidade: Espírito Santo, Sham, Uniao, Urucu, Duque de Caxias,
Santa Efigênia, Itamaraty, Pera I, Pera II, Pera III, decorrentes de ocupações irregulares
e sem qualquer planejamento de infraestrutura. O efeito mais explícito desse aspecto das
transformações foram as graves consequências sociais que se expressam na
intensificação do tráfico e consumo de drogas, no avanço da violência entre jovens e a
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formação de gangues, na prostituição adulta e infantil, no tráfico infantil para fins de
exploração sexual, no aumento da incidência de contaminação adulta e infantil por
DST/AIDS, entre outros.
FIGURA 2 – Bairro Duque de Caxias em Coari/AM
Fonte: Pesquisa de campo (26/03/2011).
Como mostram os indicadores socioeconômicos do Atlas do Desenvolvimento
Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2003), no
período de 1991 a 2000, quando o município de Coari possuía uma população de 67.055
habitantes, a intensidade de pobreza cresceu de 54,33% para 56,06%, o que significou
um aumento de cerca de 2%; no mesmo período por sua vez a intensidade de indigência
evoluiu de 41,34% para 51,39%, ou seja, uma ampliação de 10%. Isto indica claramente
que no referido período, a população local não somente trilhou um caminho em direção
à pobreza como, mais grave ainda, foi intensamente empurrada para a condição de
indigência. Atualmente a população do município de Coari é de 75.909 habitantes, com
49.638 em área urbana (65,39%) e 26.271 nas zonas rurais (34,60%), e eleitorado de
36.863 eleitores (IBGE 2010 – Primeiros resultados). Uma população formada em sua
maioria por ribeirinhos, que notadamente não ocupam nenhum espaço de decisão no
poder público local, assim como não possuem representação política significativa ou
perspectivas imediatas de mudanças dessas relações sociais a seu favor.
TABELA 2 – Indicadores de pobreza da População de Coari/AM
Fonte: Adaptado de PNUD (2003).
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Disso decorre a necessidade de uma reflexão sobre as transformações sociais
que se reproduzem localmente, as repercussões sociais da ausência de direitos e, por
conseguinte, da qualidade da cidadania usufruída. Processo que se traduz em
contradições que se estabelecem entre os efeitos da apropriação de recursos naturais, a
destinação de royalties e participações especiais e o recrudescimento das questões e
problemas sociais entre as populações residentes no município, como ilustrado
sucintamente no organograma abaixo.
ORGANOGRAMA 1 – Problemática observada no município de Coari/AM
Fonte: Pesquisa de campo e bibiográfica (2012).
Nesse contexto, a realidade social do município indica que a apropriação de
recursos naturais oriunda das políticas de desenvolvimento do Estado brasileiro, ao
invés de produzir melhorias nas condições de vida das populações, pela concessão
governamental de recursos pecuniários ao poder público local (Royalties3 e
Participações especiais4), contraditoriamente, pelo mau uso ou desvio para fins de
3 Royalties são uma compensação financeira devida ao Estado Brasileiro pelas empresas que produzem
petróleo e gás natural no território brasileiro: uma remuneração à sociedade pela exploração desses
recursos não-renováveis. São pagamentos, entre outras participações governamentais, previstos no regime
de concessão (Lei no 9.478/1997 - Lei do Petróleo), na cessão onerosa de direitos de exploração e
produção à Petrobras (Lei no 12.276/2010) ou no regime de partilha da produção nas áreas do pré-sal e
outras áreas estratégicas (Lei no 12.351/2010). O pagamento dos royalties é feito mensalmente à
Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que tem como atribuição repassá-los aos estados e municípios
brasileiros, ao Comando da Marinha, ao Ministério da Ciência e Tecnologia e ao Fundo Especial. Este
Fundo, administrado pelo Ministério da Fazenda, é distribuído a todos os estados e municípios da
Federação, de acordo, respectivamente, com o Fundo de Participação dos Estados e o Fundo de
Participação dos Municípios. O valor mensal em Royalties pago ao município de Coari/AM em
25/10/2013 foi de R$ 59.391.780,34. Publicado pela Superintendência de Participações Governamentais.
Disponível em: < http://www.anp.gov.br/?pg=7594> (Acesso em 20/11/2013). 4 A Participação especial, prevista no inciso III do Art. 45 da Lei nº 9.478, de 1997, constitui
compensação financeira extraordinária devida pelos concessionários de exploração e produção de
petróleo ou gás natural, nos casos de grande volume de produção ou de grande rentabilidade, conforme os
critérios definidos no Decreto nº 2.705/1998. Para efeito de apuração da participação especial sobre a
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apropriação inescrupulosa por alguns representantes públicos locais, vêm agravando o
cenário de exclusão social pelo aprofundamento pobreza e da desigualdade.
2 A região do médio Solimões e as populações humanas na Amazônia
No que se refere à cultura política local e a concepção sobre a garantia e
exercício dos direitos de cidadania pela população, a Amazônia possui autênticas
especificidades. Assim, embora em nível nacional e nas capitais do país seja possível
observar na atualidade nuances mais democráticas na relação entre os cidadãos e os
representantes do poder público, nos municípios do Amazonas ainda é profundamente
presente o autoritarismo, os desmandos e o uso do populismo no controle das massas
populacionais empobrecidas e vulneráveis. Como as mostram algumas pesquisas
recentes desenvolvidas na região, o que caracteriza as condições sociais de vida das
populações residentes no interior do Amazonas é em larga medida a de negação de
direitos e a subcidadania (SCHERER, 2009).
Frente a esta questão que se apresenta, simultaneamente vem a lume que ao
longo da história da sociedade brasileira podem-se constatar inúmeros exemplos de
como as elites dominantes sempre introduziram meios eficazes de dificultar ou mesmo
impedir o acesso aos bens públicos, bem como o estabelecimento do espaço
democrático, de suma importância para a afirmação e consolidação da sociedade civil.
Na Amazônia, em particular, o que se denominou como “processo civilizatório”
apresenta como principal marca identificadora as relações de subordinação, de violência
política e institucional. Assim como a pouca ou quase inexistente importância que as
elites e grupos dominantes locais atribuíam aos direitos civis, políticos e sociais,
reproduzindo uma condição social onde se sobressai como característica predominante
das populações humanas amazônicas a de “uma massa imensa, em completa
desagregação social, vivendo em condições subumanas, embrutecida e aviltada”
(BATISTA, 1976, p.88).
Entretanto, como nos alertam algumas reflexões sobre as populações humanas
que habitam a Amazônia, contemporaneamente, os próprios modos de se fazer
produção de petróleo e de gás natural são aplicadas alíquotas progressivas sobre a receita líquida da
produção trimestral de cada campo, consideradas as deduções previstas no § 1º do Art. 50 da Lei nº
9.478/1997, de acordo com a localização da lavra, o número de anos de produção e o respectivo volume
de produção trimestral fiscalizada. O valor em Participação Especial do segundo trimestre de 2013, pago
em 08/08/2013 ao município de Coari/AM, é de R$ 3.829.007,14. Publicado pela Superintendência de
Participação Especial. Disponível em: < http://www.anp.gov.br/?pg=7594> (Acesso em 20/11/2013).
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referência política à sociedade regional tendem a privilegiar como viés explicativo,
sobretudo a ideia de povos excluídos, marginalizados, vítimas das desigualdades e
iniquidades econômicas, sociais, e que nutrem desprezo por qualquer atividade
relacionada à constituição de um juízo político dessas populações. O que se por um lado
essas imagens coincidem inegavelmente com a realidade social da região, por outro lado
essas designações e tipificações têm atualmente contribuído para escamotear, disfarçar,
apagar as verdadeiras razões que levam a essa condição.
Isso significa dizer que no discurso dominante essas denominações e
qualificações têm se transformado em estigma “natural” e “peculiar”, associado às
particularidades dos problemas enfrentados na Amazônia. Essa mesma característica
também se expressa de maneira viva e incômoda na constatação de que essas aberturas
insólitas, essas passagens surpreendentes para um “reconhecimento” das questões
sociais na região, aparecem de súbito, como se estivessem descoladas dos processos que
atuam na região, bem como das ações desenvolvimentistas que dinamizam os lugares
mais remotos da Amazônia. Em outros termos, o que estamos querendo sugerir é que
frequentemente, pela sutileza da retórica politicamente consciente, estamos “caindo na
armadilha ideológica que está sendo montada a cada momento e na qual a dominação de
classes, a hegemonia dos sistemas políticos e econômicos dominantes se manifestam
com diferentes intensidades no processo de exclusão” (PINTO, 2006, p.103).
Daí entendermos a necessidade de se refletir, frente a ação socialmente
negativa das transformações sociais sobre as populações humanas da Amazônia, a
participação política e a inclusão social a partir de um viés interpretativo que as resgate
da teia de dominação e convencionalismo que as permeia. E para isso, caracterizar um
juízo político das populações residentes na região do Médio Solimões, considerando-se
a perspicácia política e o vigor de compreensão da realidade social que este conceito
expressa, pode ser um caminho seguro para a construção de um processo de mudança na
forma como estão estruturadas as relações sociais de classe e, por conseguinte, da
qualidade de vida na região.
No sentido dessas observações, para um futuro próximo, as avaliações de
sustentabilidade econômica e social das populações residentes no município de
Coari/AM são alarmantes. Estudos recentes revelam que por volta de 2020 – data
provável de início do esgotamento das reservas de petróleo e gás na região –, mantidas a
conjuntura política e institucional atual do poder público local, é muito provável que o
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município “venha a experimentar um caos econômico e cultural, com situações cada vez
mais explosivas, com crescimentos demográficos e desigualdades sociais significativas.
No seu conjunto, esses fatores empurrarão a população coariense para migrações sem
perspectivas e consequente destruição de áreas florestais e seus respectivos
ecossistemas” (ALMEIDA, 2008, p.69-92).
TABELA 3 – Arrecadação de Royalties nos anos 1994 a 2005
Arrecadação anual líquida de Royalties repassada ao município de Coari/AM (em R$ 1,00)
1994 1995 1996 1997 1998 1999
871.188,52 1.428.708,77 3.454.154,58 7.146.859,54 8.300.927,64 7.117.618,53
2000 2001 2002 2003 2004 2005
15.449.356,06 19.143.801,10 22.405.387,67 29.018.847,10 37.547.252,94 46.608.715,17
Fonte: Adaptado de Agência Nacional do Petróleo – ANP (2006)
No caso do município de Coari/AM, com a implantação do empreendimento da
PETROBRAS na Bacia do Solimões, as compensações financeiras oriundas de
Royalties e Participações Especiais, devidas pela extração de recursos naturais na
região, passaram a representar a partir de 1996 uma expressiva receita para o município.
No entanto, embora repassados mensalmente ao poder público municipal através da
Agência Nacional do Petróleo (ANP) e crescido mais de treze vezes entre os anos
1996/2005, como podemos observar na tabela acima; isto de modo algum significou
uma garantia em termos de políticas públicas direcionadas aos setores sociais, que
pudessem produzir mudanças ou melhoria na qualidade de vida das populações
residentes nesta localidade (VIANA, 2006, p.85).
3 Da necessidade de uma perspectiva das populações ribeirinhas
A necessidade de se caracterizar os efeitos das transformações sociais sob a
ótica das populações residentes no município de Coari/AM, emerge em resposta a
questões colocadas por uma pesquisa que realizávamos sobre as relações entre os efeitos
das alterações ambientais na Amazônia e o recrudescimento da vulnerabilidade social
das populações residentes na região. Dentre os conteúdos discursivos expressos nas
representações sociais dos sujeitos para aquela pesquisa, ainda que minimamente,
emergia no universo pesquisado um juízo político que se destacava pela formulação de
uma lúcida compreensão dos problemas e questões gerados pela dominação atuante nas
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relações entre a crescente apropriação capitalista da Amazônia, a degradação ambiental
e as atuais condições sociais daquela população5.
Nesse processo, o caráter de dignidade do modo de vida é ressaltado enquanto
dimensão fundamental para a existência humana. Para aqueles entrevistados, a maioria
já proveniente de outras zonas rurais dos municípios amazonenses, sua intenção de
transferência definitiva para Manaus se justificava pelos baixíssimos índices de
qualidade de vida, escassez de recursos econômicos, pela ausência de expectativa de
mudança desse quadro social pelo poder público e, por conseguinte, a impossibilidade
de permanência em seus locais de origem.
Um juízo político que merece destaque, por exemplo, pela amplitude e crítica
das relações entre as transformações sociais e o recrudescimento da desigualdade social
entre as populações locais, está relacionado à forma como percebem suas atuais
condições de vida social e econômica. No sentido de que estabelecidos nas ocupações
irregulares das zonas periféricas de Manaus, como verificado em outra oportunidade6,
ou na condição de desabrigados da enchente, como a ocorrida em 2009 no município de
Coari/AM; emerge em suas representações a compreensão, enunciada de um modo
bastante amplo, de que se não tivessem sido obrigados a sair de seus locais de origem
em busca de melhores condições sociais, do lugar onde viveram os pais, avós e bisavós,
certamente estariam vivendo dignamente naquele momento.
Como sabemos, o resultado deste processo migratório é quase sempre
socialmente trágico. E nestes casos, perde-se a perspectiva de dignidade social
5 O contato com as populações amazônicas das zonas rural e urbana do município de Coari deveu-se à
coordenação de uma pesquisa no âmbito do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da
Amazonas/IFAM – Campus Coari, desenvolvida no ano de 2009 e intitulada “Desequilíbrio ecológico e
degradação social na Amazônia: um perfil dos desabrigados da enchente de 2009 no município de
Coari/AM”, cujos resultados foram apresentados no II Encontro Internacional de Ciências Sociais – 8 a
11 de junho de 2010 – UFPEL, Pelotas/RS, na 62ª Reunião Anual da SBPC – 25 a 30 de julho de 2010 –
UFRN, Natal/RN, e no I Seminário Nacional de Sociologia da Saúde e Ecologia Humana – 14 a 16 de
setembro de 2010 – UFSC – Florianópolis/SC. Este fenômeno ambiental da enchente ocorrida em 2009
foi o mais intenso e devastador já registrado na Amazônia, desabrigando milhares de famílias em quase
todos os municípios do Amazonas e alguns Estados da região norte. Em Coari a Defesa Civil registrou o
atendimento de 1.350 famílias na zona urbana e 2.565 na zona rural, num total de 3.915 famílias atingidas
pela inundação. Neste trabalho sobre os desabrigados da enchente, pelos conteúdos discursivos enunciado
nas representações sociais dos entrevistados, nos foi possível a percepção deste juízo político entre estas
populações. 6 A preocupação fundamental da pesquisa era caracterizar os aspectos que norteiam a cidadania da
população manauense, verificando o distanciamento que o discurso governamental adquire ao ser
confrontado à reprodução da pobreza e da exclusão social. Nesse contexto de análise, partimos da
concepção de que enquanto materialização de serviços, as políticas sociais se constituem uma mediação
nas relações sociais com o poder público, o que permite apreendê-las como espaço contraditório onde se
operam tanto os interesses das elites políticas dominantes como também o embate pelos direitos de
cidadania (PEREIRA, 2005).
13
assegurada formalmente pela cidadania brasileira, que vai se tornando cada vez mais um
ideal distante da dura realidade social enfrentada por essas populações. Quando enormes
contingentes populacionais se deslocam para viver nas zonas urbanas das capitais,
predominantemente representa para estas populações empobrecidas e com baixíssimo
nível escolar, a subsistência adquirida pela economia informal ou adquirir um
subemprego. Quando não amargam por um longo tempo o desemprego, habitando
precárias moradias nas ocupações irregulares da periferia da cidade, assim como
estarem expostos a níveis alarmantes de criminalidade (SCHERER, 2009, p.129).
Neste sentido, ao se pensar a Amazônia partindo da consideração de que é um
espaço promovedor do equilíbrio ecológico em nível local, regional e planetário, nos
deparamos também com a lamentável constatação de que a região possuidora da mais
rica biodiversidade mundial é também a que apresenta um dos piores indicadores sociais
das populações brasileiras. As transformações sociais decorrentes da crescente
apropriação de recursos naturais produzida atualmente pela ação das políticas de
desenvolvimento do Estado brasileiro e do capital privado na Amazônia apresentam-se
perigosas e socialmente degradantes para os povos que nela vivem.
Assim, entendemos que através do juízo político é possível a percepção do tipo
de relação social imposta pelas elites no poder, o discernimento do teor da condição de
cidadania, bem como a oportunidade de se pensar as possibilidades de mudança social.
No pensamento arendtiano, o juízo político é definido como o resultado da capacidade
que todas as pessoas têm para refletir sobre a realidade social em que vivem (ARENDT,
1993b). Ao buscar captar as representações dos atores diretamente atingidos pelos
processos de transformação social na região amazônica, certamente será possível
reproduzir a voz de um segmento deliberadamente negligenciado nas relações sociais
em âmbito regional. Para citarmos um exemplo, nos relatórios de impactos
socioambientais dos grandes projetos na Amazônia, seus interesses e visão de mundo
sequer são mencionados como proposição válida na problematização desses
empreendimentos (EPIA-RIMA JURUÁ/URUCU, 2008).
De tal modo que, se partirmos do entendimento de que as populações
ribeirinhas da Amazônia são perfeitamente capazes de expressar coerentemente seu
ponto de vista das alterações no ambiente em que vivem; bem como de manifestar uma
coerente percepção política das transformações sociais nas quais estão inseridas; parece
ser possível vislumbrarmos relações de classe menos desiguais no confronto de forças
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atuantes na região. Uma vez que estes sujeitos sociais são invisibilizados social e
politicamente por um poder que se exerce hegemonicamente (no sentido gramsciano do
termo) e se apresenta em consonância aos interesses dos grandes projetos de exploração
de recursos da natureza no ambiente amazônico (ADAMS, 2006).
Neste sentido, sustentamos que mesmo confinados sob o efeito socialmente
danoso das transformações sociais impetrada pela ação das políticas de
desenvolvimento do Estado brasileiro e do capital privado na Amazônia; e, embora se
saiba que a forma histórica de atuação política do poder público local nos municípios
amazônicos seja predominantemente marcada pelo autoritarismo, o clientelismo e a
reiteração da dominação e da subserviência política na relação com as massas
populacionais; ainda assim, se considerarmos a legitimidade das representações
expressas no sensus communis das populações ribeirinhas, é possível a apreensão de um
juízo político que pode se apresentar como possibilidade de mudança favorável ao
desenvolvimento social desses segmentos, de modo a lhes fornecer uma abertura
emancipatória na exígua condição social a que estão submetidas as populações na
Amazônia.
A superação da subalternidade, afirma Gramsci (1999, p.111), requer a
construção de novos modos de pensar, necessária para suplantar as ideologias
dominantes presentes consideravelmente no senso comum e tornar as classes
subalternizadas capazes de produzir uma contra-hegemonia. Nesse processo, aprofundar
e aperfeiçoar o conhecimento da realidade impõe-se como condição essencial na luta
por mudanças sociais favoráveis. Desse modo, enquanto via de acesso aos interesses
dos próprios atores atingidos pelos processos de transformação social, a caracterização
deste juízo político a partir de suas representações sociais pode revelar ainda, a
intensidade da vulnerabilidade social no município e a crueza das dificuldades
materialmente enfrentadas pelas populações ribeirinhas atingidas. Assim como, também
nos permitir apreender seus dilemas e aspirações de melhoria das condições de vida, em
consonância a uma constituição efetiva do espaço público, que requer a oportunidade de
um lugar de liberdade para as pessoas expressarem seus pensamentos e opiniões (doxa),
o que seguramente contribui para a preservação da dignidade da política, como sugerem
as reflexões políticas de Arendt (1993a).
15
4 Caracterização da Comunidade de São Pedro da Vila Lira
FIGURA 3 – Comunidade Vila Lira e Terminal Solimões (TESOL)
Fonte: Adaptado de http://wikimapia.org/ (CNES, 2014).
A Comunidade de São Pedro da Vila Lira está localizada na região de lago do
rio Badajós, Longitude – 63.11056 – Latitude –3.5448, distante 7km da sede do
município de Coari e apenas 5km da calha do poliduto construído pela empresa
PETROBRAS. A Comunidade é formada essencialmente de um ecossistema de terra
firme, situada às margens do lago e composta por 54 famílias, concentradas no núcleo
da comunidade e áreas próximas. O acesso ao local ocorre através de barcos ou
pequenas embarcações movidas a motor a diesel, chamada de “rabetas”. O modo de
vida na comunidade não é diferente da maioria das comunidades ribeirinhas
amazônicas, cuja manutenção das famílias ocorre sobretudo do que é caçado, plantado
ou colhido na floresta, bem como dos peixes do lago, os quais proporcionam a essa
população uma forma diferenciada e tradicionalmente sustentável de conviver com a
natureza. Como assinalam certos estudos (ARAÚJO, 2003), nesse ambiente social da
Amazônia em que se desenvolve atividades como pesca, roça e culturas de outras
espécies predominantes na região, não significa que as populações ribeirinhas não
desenvolvem suas próprias atividades econômicas, como foi mencionado pelos
moradores sobre a comercialização do peixe, antes da construção do TESOL.
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4.1 Aspectos abordados pelos moradores da Comunidade São Pedro da Vila Lira:
FIGURA 4 – Comunidade Vila Lira
Fonte: Adaptado de http://wikimapia.org/ (CNES, 2014).
Dentre os moradores entrevistados7 destaca-se a observação de que, com a
construção do Terminal Solimões – TESOL entre os anos 1996 e 1999, e o
desenvolvimento de suas atividades (cujo cotidiano envolve o tráfego constante de
lanchas, barcos e navios de médio e grande porte), os cardumes de peixes que antes
eram encontrados em abundância naquela imediação, desapareceram. De modo que hoje
é possível adquiri-los apenas o suficiente para o consumo familiar. Conforme o relato
dos moradores mais antigos, a comunidade que há mais de oitenta anos viveu com os
recursos econômicos advindos das atividades de pesca (cujo incremento garantia a
aquisição e consumo do que não é produzido na comunidade), teve que buscar
alternativas para sua sobrevivência. Nesse processo, muitas famílias migraram para a
sede do município (espaço urbano de Coari) ou mesmo diretamente para Manaus. Aos
que ficaram a solução para o sustento da família foi o plantio da roça de mandioca para
a produção de farinha e o cultivo de legumes como jerimum, batata-doce, maxixe e
7 Entrevistamos 12 pessoas, entre homens e mulheres, de idades diversas, residentes na Comunidade São
Pedro da Vila Lira. O principal critério para seleção destes sujeitos sociais guiou-se por sua importância
na manutenção do modo de vida para o interior do núcleo familiar, e por habitarem a zona rural do
município de Coari, onde os impactos socioambientais são também consideravelmente evidentes.
17
quiabo; bem como frutas como o abacaxi, o mamão, a banana e a melancia. Essa
produção desde então passou a ser é vendida no porto da comunidade ao “atravessador”,
que ao adquirir esses produtos revende aos comerciantes locais.
FIGURA 5 – Comunidade Vila Lira
Fonte: Pesquisa de campo (26/07/2012).
Um aspecto que emerge em todos os relatos dos moradores de São Pedro da
Vila Lira, tanto os jovens quanto os mais idosos, é o ocorrido com o igarapé que serve a
Comunidade. O aterro do solo onde haveria de ser construída a “estrada” (termo que se
refere ao terreno por onde ocorre para a passagem do poliduto de gás natural e petróleo,
ligando a Província Petrolífera de Urucu – PPU a sede de Coari) causou a poluição do
único igarapé próximo à Comunidade. As águas que antes eram limpas e serviam para o
consumo dos moradores passaram a se apresentar demasiadamente barrentas, pesadas e
sem oxigenação. Conforme os relatos colhidos, a queixa dos moradores junto aos
dirigentes do empreendimento teve um efeito pouco favorável.
A solução adotada pela empresa PETROBRAS à época foi a construção de um
poço artesiano que abasteceria a Comunidade com água potável e funcionaria com
diesel doado pela própria empresa, o que foi bastante anunciado nos meios de
comunicação impresso e eletrônico, em nível nacional e mundial. No entanto, já nas
suas primeiras vezes em que foi posto em funcionamento o poço apresentou água
inexplicavelmente densa e com sabor ferruginoso, o que impossibilitou o consumo
pelos moradores. Meses depois, os técnicos da empresa PETROBRAS retornaram e
constataram que a perfuração havia atingido uma camada de pedregulho, daí a
densidade e o sabor alterado da água. Segundo declaração dos moradores, com esta
18
constatação ficou sugerida a mudança do local de perfuração do poço como solução
para o problema. Todavia os moradores da comunidade não tiveram outra visita da
equipe técnica, assim como jamais tiveram notícias sobre quando ocorreria outra
perfuração. De modo que o consumo de água para as atividades domésticas continuou
sendo do próprio igarapé (desde então poluído e quase sem vida), clareada com
hipoclorito (distribuído como política pública pelo governo municipal de Coari aos
moradores das comunidades), e bebida dessa forma.
Os moradores da Comunidade de São Pedro da Vila Lira também se queixam
da destruição de parte de suas terras de cultivo e as indenizações irrisórias que
receberam. Segundo seus relatos, durante a abertura das “estradas” para o trajeto do
poliduto suas plantações foram drasticamente atingidas, umas com perda parcial e
outras com perda total da área cultivada; no entanto, foi lhes repassados a título de
indenização um valor considerado muito aquém do que, conforme suas experiências,
lhes renderia a produção. Mais o que mais lamentam a esse respeito é a impossibilidade
de uso destas terras desde então (considerada as melhores, visto como mais produtivas),
posto que há uma rigorosa prescrição e controle pela empresa PETROBRAS sobre a
impossibilidade de qualquer outra utilização do terreno ao longo do poliduto, haja vista
a iminência de ocorrer acidentes e catástrofes ambientais sem precedentes.
Por fim, quando inquiridas sobre o que teria ficado das inovações criadas pela
empresa PETROBRAS, constatadas em julho de 2012, as avalições dos moradores da
Comunidade São Pedro de Vila Lira revelam um balanço pouco otimista. Além do que
anteriormente relatamos, mencionado com certa amargura pelos moradores, por terem
noção do poder econômico descomunal que lhes atinge, o que dizem em suas
considerações a respeito pode ser traduzido como degradação ambiental, social e vãs
promessas de emprego numa grande empresa, ícone do capitalismo na Amazônia.
Considerações Finais
Por se encontrar hoje numa posição chave no complexo cenário geopolítico
mundial, a Amazônia requer a redefinição de um diálogo científico que também priorize
a discussão das condições de possibilidade para políticas públicas eficazes, que
considerem relevantes a valorização humana e social das populações amazônicas. Desse
modo, pode-se dizer que debater, esclarecer e decidir sobre a formulação das condições
objetivas de vinculação destas políticas, e os desdobramentos subsequentes na qualidade
19
de vida dos povos amazônicos, constitui uma atuação política que deve,
necessariamente, ser exercida por esses povos (FREITAS, 2001, p.43).
Em vista disso, a execução de pesquisas que vislumbrem esses aspectos
assinalados, objetivamente pode tornar possível uma reflexão sobre as relações que se
estabelecem entre as transformações sociais e o recrudescimento da degradação social
entre as populações residentes no interior da Amazônia. Estudos que se ocuparam de
temas transversais a este mostram alguns aspectos marcantes desse processo sobre estas
populações na região (ALMEIDA, 2008; GAWORA, 2003; VIANA, 2006). Mas,
analisar essas relações a partir do contato direto com os sujeitos sociais envolvidos e
diretamente atingidos, ou seja, as populações ribeirinhas, tal como aqui muito
sucintamente tentamos apresentar com a Comunidade São Pedro da Vila Lira; ao se
fazer emergir um juízo político sobre este processo, certamente poderia nos permitir
considerar não somente as implicações imediatas das transformações sociais na região,
mas, especialmente avaliar como a intensificação de seus efeitos desfavoráveis contribui
decisivamente para a condição de aviltamento e vulnerabilidade social a que estão
submetidas as populações da Amazônia.
Do que foi aqui mencionado brevemente, reiteramos que a formulação de uma
apreciação neste nível de aproximação com as populações atingidas, pode possibilitar
não somente a legítima expressão de seus interesses, como a elaboração de políticas
públicas mais eficazes e especialmente voltadas para as demandas sociais destes
segmentos populacionais diretamente atingidos pelos efeitos das transformações sociais
na região. Ou seja, como parâmetro para as decisões do poder público, na concepção e
efetivação de ações com maior envergadura e alcance sobre os problemas que se
apresentam localmente na Amazônia. Daí o interesse em se caracterizar em que medida
esta noção de juízo político pode criticamente vislumbrar neste processo – pela ótica dos
próprios sujeitos atingidos pelas implicações socialmente negativas das transformações
sociais – condições de possibilidade emancipatórias às atuais condições sociais das
populações humanas da Amazônia, baseando-se sobretudo no respeito a um peculiar e
sustentável modo de vida, que é a maneira como vivem tradicionalmente os ribeirinhos.
Em vista disso, espera-se, sobretudo, que pesquisas com este objetivo mencionado
venham a contribuir de algum modo como indicativo da possibilidade de uma autêntica
participação democrática nas decisões de interesse coletivo.
20
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