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Milenarismo e política Renato Pinto Venâncio Romeiro, Adriana. Um visionário na corte de d. João V: revolta e mile- narismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 286 páginas. Na última década surgiram es- tudos inovadores a respeito da “cul- tura política” na sociedade colonial. Tal perspectiva consiste em procu- rar elaborar uma história política fora dos marcos das análises factuais e institucionais, quase sempre com- prometidas com a reprodução da auto-imagem dos grupos dominan- tes. De acordo com a nova aborda- gem, o conteúdo tradicional cede lugar à investigação das representações sociais e de suas conexões com as prá- ticas sociais, priorizando a problemá- tica do simbólico. 1 O livro de Adriana Romeiro é um desses casos. A auto- ra analisa o percurso de Pedro de Rates Henequim, português, que, como milhares de seus conterrâneos, tentou a sorte em Minas Gerais nas primeiras décadas do século XVIII. Retornando à terra natal, Hene- quim vê-se às voltas com graves acu- sações feitas pelo Santo Ofício, vin- do a morrer em auto-de-fé de 1744, sob a acusação de ser heresiarca. Nesse processo inquisitorial, conforme sublinha Adriana Romei- ro, revelam-se fascinantes interpre- tações dos textos bíblicos. O réu sustenta, entre outras convicções, a localização do paraíso em terras bra- sileiras. A autora, contudo, não en- cerra a pesquisa nessas constatações, mostrando a importância da análi- se crítica dos testemunhos inquisi- toriais — como, aliás, de qualquer outra fonte histórica. Assim, sob o manto de heresiarca, esconde-se o Henequim conspirador político. O conventículo (para utlilizarmos um termo de época) do qual parti- cipa tem como projeto a passagem da América Portuguesa meridional, principalmente das cobiçadas re- giões mineradoras, para o domínio da Espanha ou então para o contro- le de d. Manuel, príncipe decaído da corte de d. João V. O acusado, ape- sar de ter prestado leais serviços à Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 181-185.

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Milenarismo e política

Renato Pinto Venâncio

Romeiro, Adriana. Um visionário nacorte de d. João V: revolta e mile-narismo nas Minas Gerais. BeloHorizonte: Editora UFMG,2001. 286 páginas.

Na última década surgiram es-tudos inovadores a respeito da “cul-tura política” na sociedade colonial.Tal perspectiva consiste em procu-rar elaborar uma história políticafora dos marcos das análises factuaise institucionais, quase sempre com-prometidas com a reprodução daauto-imagem dos grupos dominan-tes. De acordo com a nova aborda-gem, o conteúdo tradicional cedelugar à investigação das representaçõessociais e de suas conexões com as prá-ticas sociais, priorizando a problemá-tica do simbólico.1 O livro de AdrianaRomeiro é um desses casos. A auto-ra analisa o percurso de Pedro deRates Henequim, português, que,como milhares de seus conterrâneos,tentou a sorte em Minas Gerais nasprimeiras décadas do século XVIII.Retornando à terra natal, Hene-

quim vê-se às voltas com graves acu-sações feitas pelo Santo Ofício, vin-do a morrer em auto-de-fé de 1744,sob a acusação de ser heresiarca.

Nesse processo inquisitorial,conforme sublinha Adriana Romei-ro, revelam-se fascinantes interpre-tações dos textos bíblicos. O réusustenta, entre outras convicções, alocalização do paraíso em terras bra-sileiras. A autora, contudo, não en-cerra a pesquisa nessas constatações,mostrando a importância da análi-se crítica dos testemunhos inquisi-toriais — como, aliás, de qualqueroutra fonte histórica. Assim, sob omanto de heresiarca, esconde-seo Henequim conspirador político.O conventículo (para utlilizarmosum termo de época) do qual parti-cipa tem como projeto a passagemda América Portuguesa meridional,principalmente das cobiçadas re-giões mineradoras, para o domínioda Espanha ou então para o contro-le de d. Manuel, príncipe decaído dacorte de d. João V. O acusado, ape-sar de ter prestado leais serviços à

Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 181-185.

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coroa, seja descobrindo lavras, sejacombatendo o contrabando na re-gião das minas, viu serem negadosseus pedidos e reivindicações juntoà burocracia metropolitana, sendoestes os possíveis motivos de sua ati-vidade subversiva. Aliás, tendo emvista os fragmentados e incompletostestemunhos analisados, caberiaconsiderar tais conspirações maiscomo “rumores” do que como con-luios efetivos.

Ao contrário de outras inves-tigações, em geral obcecadas pela re-levância militar dos movimentos derevolta em Minas Gerais do séculoXVIII, a análise de Romeiro explo-ra o universo cultural do conspira-dor, sublinhando sua possível mani-pulação. Descarta, no entanto, ainterpretação de que o processo fosse,do começo ao fim, uma farsa (p. 68).A autora atinge, nesse momento,como ela própria observa, o âmagoda questão. Explorando o discursode Henequim do ponto de vista desuas articulações internas, seja emseus vínculos com a teologia, seja emseu ideário político, Adriana Romei-ro associa o conteúdo do depoimen-to do suposto heresiarca a tradiçõesintelectuais bastante antigas. A pri-meira delas diz respeito à vertentejudaica, descrita no Antigo Testa-

mento, principalmente no Livro deDaniel. A segunda deita raízes emPortugal, estando presente na poe-sia de Bandarra, do início do séculoXVI, e nos escritos de AntonioVieira, de fins do século XVII, atra-vés de referências ao Quinto Impé-rio. Há também, no referido depoi-mento, traços de sebastianismo, cren-ça que, a partir da perda da indepen-dência de Portugal frente à Espanha,conquistou aliados entre letrados2 eteve importante papel no movimen-to de restauração de 1640.

Nesse cadinho cultural, com-posto por várias linhagens intelec-tuais, Henequim construiu sua pe-culiar cosmologia milenarista. Pas-so a passo, Adriana Romeiro desven-da as relações entre certos aspectosdo universo cultural da época e oconjunto de crenças do acusado deheresia. Tal análise é um exemplofascinante de interpretação da reli-giosidade não como irracionalismoou expressão de uma falsa consciên-cia, mas sim como uma visão demundo, uma ferramenta cognitivade organização e interpretação darealidade, com profundas conse-qüências políticas. Assim, nas pági-nas 166-167, lemos que as teses pro-fético-milenaristas em nada eraminocentes. Um exemplo disso esta-

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ria no fato de que, ao fazer da Colô-nia o local do paraíso, sede do Quin-to Império, o discurso milenaristasubvertia politicamente a relaçãocentro-periferia pela qual a metró-pole-colônia deveria se pautar. Ouniverso mental subjacente à malo-grada conspiração também lançauma pá de cal (mais uma!) sobre asinterpretações que concebem os mo-vimentos políticos do período coloni-al em função de um suposto ideal delibertação nacional (p. 210); críticahá muito repetida, mas nem sempreacompanhada de interpretações al-ternativas sobre o ideário que orien-tava essas mesmas revoltas. Mais ain-da, a autora brinda o leitor com in-teressantes sugestões de pesquisa.Uma delas diz respeito à origem dosíndios. No depoimento é registradoo debate, que envolveu vários rabi-nos e padres, sobre a origem judai-ca dos povos indígenas, uma das tri-bos expulsas da Babilônia (p.114);afirmação que sugere uma matriz re-ligiosa3 para algumas idéias caras aoindianismo do século XIX, como,por exemplo, a noção de que os ín-dios descendiam de populações me-diterrâneas. Outra sugestão de pes-quisa diz respeito à circulação, emMinas Gerais do início do séculoXVIII, de obras proibidas na forma

de manuscritos — no caso específi-co, a Clavis Prophetarum, de Anto-nio Vieira (p. 152). Embora se tratede um único caso até agora registra-do, esse fato sugere que tão impor-tante quanto a investigação da cir-culação de livros é a pesquisa queincida sobre a produção e a circula-ção do papel no mundo colonial,base para a divulgação de textos nãocontrolados pelo poder metropoli-tano. Last but not least, Romeiroidentifica a permanência de tensõesentre paulistas e reinóis, mesmoapós o fim do que se costumou de-finir como Guerra dos Emboabas(1707-1709), sugerindo umainstigante interpretação a respeitoda Revolta de 1720 (p. 199).

Como pode ser percebido, aobra em questão apresenta um con-junto de contribuições substanciais.No entanto, cabe registrar algumasressalvas. A autora insiste em afirmarque a ação contra Henequim enco-bria uma perseguição política, enfa-tizando a despolitização sofrida pelolibelo inquisitorial, no qual o réudeixa de ser associado a uma conspi-ração malograda para encarnar o es-tereótipo de heresiarca (p. 40). Con-forme é sugerido, o texto do proces-so estava subordinado à retórica teo-lógica do Santo Ofício. No entan-

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to, outras pistas poderiam ser explo-radas. Uma delas seria a de abordarcomparativamente a atividade doconspirador com a de outros revol-tosos perseguidos pela Inquisição.Este, por exemplo, foi o caso deManoel Beckman, líder da revoltaocorrida no Maranhão entre 1684e 1685, cujas investigações que a In-quisição mandou fazer ... confirmamquanto a política e a religião estavaminterligadas....[e quanto] heresia reli-giosa e heresia política caminhavamjuntas.4 Em outras palavras, quandovisto em uma perspectiva compara-da, é possível suspeitar do caráterexcepcional não do conteúdo doprocesso de Henequim, mas sim dosquadros institucionais que lhe de-ram origem.

Ao se concentrar, aliás commuito brilho e talento, sobre a ma-triz letrada das idéias e projetos dosuposto heresiarca, Romeiro acabaabordando apenas tangencialmentea temática do milenarismo popular.Da mesma forma que no caso ante-rior, a autora priva-se de investiga-ções que a auxiliariam a melhorcompreender o alcance das idéias deHenequim. Assim, cabe lembrarque, há alguns anos, Alida Metcalftem procurado estabelecer as rela-ções entre o movimento quilombola

e a tradição milenarista seiscentista.5

Antes dela, Liana Maria S. Trinda-de propôs interpretar o processo dedesagregação do sistema escravista apartir de signos escatológicos de umtempo apocalíptico, observando quesurgiam, entre os escravos, profetascom mensagens de redenção, santos cu-randeiros que aglutina[vam] eexpressa[vam] as esperanças populares,como os redentores de um mundo emextinção.6 Luiz Mott — aliás em li-vro citado por Adriana Romeiro —também investigou esse milenaris-mo popular, traçando o perfil deuma ex-escrava que previa um novodilúvio e o retorno de d. Sebastião;essa última convicção, de forte pe-netração popular, foi fartamente re-gistrada entre numerosos viajantes,como Spix e Martius, Lucock,Ferdinand Denis ou CharlesExpilly.7 Por mais polêmicas quesejam algumas destas interpretações,elas mostram que as crenças milena-ristas eram compartilhadas entre ossegmentos mais pobres — e maisnumerosos — da antiga sociedadebrasileira, daí provavelmente deri-vando, para a coroa portuguesa, ocaráter político ameaçador do dis-curso de Henequim.

Enfim, o livro Um visionário nacorte de d. João V sugere novos cami-nhos para se pensar a “política” e a

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“revolta” no período colonial. Elenão só contribui para uma melhorcompreensão do passado, comotambém instiga-nos a refletir sobreo presente. Quando, nos dias atuais,assistimos ao ressurgimento do fun-damentalismo (milenarismo?!) reli-gioso em escala planetária, livroscomo o de Adriana Romeiro lem-bram-nos a importância do mito eda religião como elementos forma-dores de opiniões políticas, sugerin-do assim que nosso futuro pode es-tar no passado.

Notas

1 FALCON, Francisco. História e poder.CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS,Ronaldo (orgs.). Domínios da História: en-saios de teoria e metodologia. Rio de Janei-ro: Campus, 1997, p. 76.2 HERMANN, Jacqueline. No reino do de-sejado: a construção do sebastianismo emPortugal nos séculos XVI e XVII. São Paulo:Companhia das letras, 1998, p. 247.3 Em outro texto, a autora afirma que “areflexão sobre a ascendência das populações

indígenas ocupa um lugar central nas espe-culações profético-messiânicas”. ROMEI-RO, Adriana e RAMINELLI, Ronald. SãoTomé nas Minas: a trajetória de um mitono século XVIII. Vária História, 21, p. 67,1999.4 LIBERMAN, Maria. O levante doMaranhão: “Judeu Cabeça do Motim”,Manoel Beckman. São Paulo: Centro deEstudos Judaicos FFLCH/USP, 1983, p. 6.5 METCALF, Alida C. Os limites da trocacultural: o culto da Santidade no Brasil co-lonial. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cul-tura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lis-boa: Estampa, 1995, pp. 35-52; Millenarianslaves? The santidade de Jaguaripe and slaveresistance in the Americas. The AmericanHistorical Review, v. 104, n. 5, pp. 1531-1559, 1999; Messianismo e resistência àescravidão no Brasil seiscentista. SILVA,Maria Beatriz Nizza da. Brasil: colonizaçãoe escravidão. Rio de Janeiro: Nova Frontei-ra, 2000, pp 311-323.6 TRINDADE, Liana Maria Salvia. A crisedo sistema escravocrata e as interpretaçõesmíticas da realidade social. Revista do Insti-tuto de Estudos Brasileiros, v. 30, p. 68, 1989.7 MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santaafricana no Brasil. São Paulo: Bertrand Bra-sil, 1993, p. 569.