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Tiragem: 34258 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 2 Cores: Cor Área: 27,41 x 30,75 cm² Corte: 1 de 9 ID: 53610198 25-04-2014 Foi muito bonita a festa, pá O PÚBLICO pediu a Alexandre Quintanilha, André Gonçalves Pereira, Henrique Granadeiro, Irene Flunser Pimentel, João Constâncio, João Taborda da Gama, João Luís Barreto Guimarães, Maria de Fátima Bonifácio, Maria de Lurdes Rodrigues, Maria Manuel Leitão Marques, Nick Racich, Pedro Magalhães e Rui Pena Pires que identificassem os momentos fracturantes de 40 anos de democracia. São interlocutores de diferentes gerações e disciplinas, homens e mulheres, de esquerda e de direita, figuras públicas e anónimas. Quase sempre, as áreas de que falam não são aquelas em que se especializaram; procurou-se contrariar a previsibilidade do discurso. Identificámos com eles as decisões políticas que nos conduziram ao ponto em que estamos, fomos mais ao encontro dos factos do que dos protagonistas. Foi um modo de interrogar como se fez um país democrático 25 DE ABRIL40 ANOS DE DEMOCRACIA

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Page 1: Tiragem: 34258 Pág: 2 Cores: Cor Period.: Diária ID ... · Há uma cifra que diz respeito ... gínquo como o tempo dos reis de Portugal. O cientista político Pedro Maga-lhães

Tiragem: 34258

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 2

Cores: Cor

Área: 27,41 x 30,75 cm²

Corte: 1 de 9ID: 53610198 25-04-2014

Foi muito bonita a festa, páO PÚBLICO pediu a Alexandre Quintanilha, André Gonçalves Pereira, Henrique Granadeiro, Irene Flunser Pimentel, João Constâncio, João Taborda da Gama, João Luís Barreto Guimarães, Maria de Fátima Bonifácio, Maria de Lurdes Rodrigues, Maria Manuel Leitão Marques, Nick Racich, Pedro Magalhães e Rui Pena Pires que identifi cassem os momentos fracturantes de 40 anos de democracia. São interlocutores de diferentes gerações e disciplinas, homens e mulheres, de esquerda e de direita, fi guras públicas e anónimas. Quase sempre, as áreas de que falam não são aquelas em que se especializaram; procurou-se contrariar a previsibilidade do discurso. Identifi cámos com eles as decisões políticas que nos conduziram ao ponto em que estamos, fomos mais ao encontro dos factos do que dos protagonistas. Foi um modo de interrogar como se fez um país democrático

25 DE ABRIL40 ANOS DE DEMOCRACIA

Page 2: Tiragem: 34258 Pág: 2 Cores: Cor Period.: Diária ID ... · Há uma cifra que diz respeito ... gínquo como o tempo dos reis de Portugal. O cientista político Pedro Maga-lhães

Tiragem: 34258

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

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1.Salgueiro Maia exigiu ser

sepultado em campa rasa

e sem honras de Estado.

Maia comandou a colu-

na de tanques que saiu

de Santarém e que teve

a delicadeza, o civismo, o sonho

de parar num semáforo antes de

derrubar a mais longa ditadura da

Europa. Primeira imagem do 25 de

Abril: a cara de menino de Salgueiro

Maia. Primeiro gesto da dimensão

do irreal: respeitar o vermelho,

olhos postos no verde, numa noi-

te ainda escura.

Poderia Salgueiro Maia adivinhar

que passados 22 anos sobre a sua

morte, e rentes aos 40 anos desse

dia inaugural, falaríamos da trasla-

dação dos seus restos mortais para

o Panteão? Porque foi tão explícita

e veemente a decisão no seu testa-

mento? Campa rasa e sem honras de

Estado. Como quem quer deixar o

Estado de fora disto. Ele que coman-

dou no terreno uma operação genial

para mudar o Estado e torná-lo, de

novo, parte disto. E, sobretudo, a

campa rasa, sem os arrebiques e sa-

lamaleques que também acompa-

nham a morte, algumas mortes.

Uma campa de pessoa do povo.

Maia tinha orgulho em ser povo. Foi

por ele, povo, que disse as famosas

palavras: “Como todos sabem, há

diversas modalidades de Estado. Os

estados sociais, os corporativos e o

estado a que chegámos. Ora, nesta

noite solene, vamos acabar com o

estado a que chegámos.”

Correram os anos. Maia recusou

cargos e honrarias, o Estado recu-

sou pensão à sua família. Estudou

Ciências Políticas. Desiludiu-se com

o outro estado a que chegámos,

depois de tudo se ter levantado de

uma folha branca, e ainda tão longe

deste estado a que chegámos.

Mas os estados não podem senão

mudar, e levar-nos na enxurrada

da desilusão.

Não é crível que tenha lamentado

por um momento os passos daque-

le dia longo em que era capitão. Nas

fotografi as parece um rapaz de uma

sensatez de aço, elegante como um

cavaleiro.

Maia é o povo, o povo que está no

coração da História e que é herói.

Qual é o lugar dos heróis? E qual é a

sua, a nossa, defi nição de herói?

Agora o povo está zangado. Com

o péssimo que isto está, com o que

fi ca por punir, com o que apanha

no ar e não consta nas estatísticas.

Anabela Mota RibeiroZangado e com uma granada no lu-

gar do peito que se chama injustiça.

Qual foi o estado a que chegámos?

Foi mesmo bonita a festa, pá?*

* Da letra de Tanto Mar, tema com-

posto por Chico Buarque para a Re-

volução dos Cravos (primeira ver-

são em 1975, segunda em 78).

2.Vejamos as fotografi as. A eufo-

ria que faz levitar é a do 1.º de

Maio, dissipadas as dúvidas.

Numa semana, o mundo parecia

edifi cado em certezas.

Uma semana. O tempo que me-

diou o noivado e o casamento. To-

dos assistiram à festa. Uma gaivota

voava, voava. Um milhão de pessoas

na Alameda. Só não estavam os fas-

cistas. Também já tinha diminuído

drasticamente o número de fascistas.

Porque no dia seguinte todos tinham

sido opositores a Salazar, todos ti-

nham sido perseguidos ou presos. A

efabulação (de que Adelino Gomes

fala numa entrevista com Alfredo

Cunha ao PÚBLICO) tinha começado

e era transversal. A memória colec-

tiva, inevitavelmente reconstruída,

tinha incorporado distorções, ine-

xactidões. Mas eram boas memórias.

E aquilo foi uma festa.

Agora lemos o que dizem Os Ra-

pazes dos Tanques sobre o que está

pior, e lemos sobre o abismo entre

a classe política e o povo. A clas-

se política dos últimos vinte anos.

Lemos sobre “a cambada que nos

está a dirigir”, “o descrédito da

classe política”, “os governos que

deram cabo disto, e o caraças”, “a

classe política mais ordinária da

Europa”, “uma classe política sem

nível e sem sentido de Estado”.

Não só isto, mas constantemente

isto. Não só isto porque, apesar

disto, isto é melhor do que o que

havia. Globalmente de acordo em

relação a isto. Comprova-o uma

sondagem do Instituto de Ciências

Sociais (ICS). Cinquenta e oito por

cento dos inquiridos consideram

o 25 de Abril mais positivo do que

negativo. Da esquerda à direita.

Diz o então cabo apontador Vítor

Ribeiro Costa no livro de Adelino

Gomes e Alfredo Cunha: “O 25 de

Abril não trouxe nada de pior. Para

a maioria das pessoas, o pior que

temos hoje é melhor do que tive-

mos com Salazar e Marcelo.”

Quando é que começou a apare-

cer o ponto de interrogação e, repe-

tindo os versos de Chico Buarque,

se procurou o restinho de alecrim,

a semente esquecida nalgum canto

do jardim?

3.— Quando é que o senhor co-

meçou a trabalhar?

— Aos 12 anos.

— Os seus fi lhos, quando é que

começaram a trabalhar?

— Depois da faculdade, fez tudo

a faculdade.

— E diz que antigamente é que

era melhor?

Irene Flunser Pimentel (1950) tra-

vou esta conversa com um taxista,

recentemente, em Lisboa.

O discurso saudosista do antiga-

mente é uma praga com que a histo-

riadora (de esquerda) lida amiúde.

“É verdade que hoje podem ir para

a faculdade e fi car desempregados

ou ter de emigrar. Mas é outra si-

tuação.”

Quão outra situação? Números.

Em 1974, estavam inscritos no en-

sino superior 50 mil alunos, 7% da-

queles que estavam em idade de o

fazer. Tem-se noção da explosão

quando comparamos com os da-

dos de 1994. Número de inscritos:

270 mil, 30% dos que tinham entre

18 e 22 anos. (Fonte: A Situação So-

cial em Portugal, 1960-95, organiza-

ção de António Barreto.) Em 2000,

eram 350 mil inscritos, 53% dos que

tinham entre 18 e 22 anos.

Há uma cifra que diz respeito à

totalidade da população e que es-

maga. Em 1981, quase metade da

população com mais de 30 anos

não tinha a quarta classe, e 28%

não sabiam ler nem escrever. Já a

revolução tinha sido e o caminho

começado. E no bilhete de identi-

dade carimbava-se “não sabe as-

sinar”. E atestava-se que aquela

pessoa era aquela pessoa pela im-

pressão digital. Quase sempre um

dedo grosso, pesado. Mão de quem

trabalha. Do povo.

Não é novidade para ninguém

quem é que ia à escola, quem é

que prosseguia a escola, quem é

que chegava à universidade. E por

isso o 25 de Abril representa a rup-

tura com o “fatal como o destino”,

permite “sair da cepa torta”.

Maria de Lurdes Rodrigues

(1956), ex-ministra da Educação

(2005/2009) e autora e coordena-

dora, entre outros títulos, de Políti-

cas Públicas em Portugal (2012, com

Pedro Adão e Silva): “O insucesso

escolar, como conceito, não existia.

A confi rmação do acesso à escola

como um direito de todos propicia

a ascensão social. Numa sociedade

estratifi cada como a portuguesa, on-

de as pessoas terminavam no ponto

onde tinham começado, o conheci-

mento começou a contar como fac-

tor de mobilidade social.”

O taxista que transportava Irene

Flunser Pimentel falava com orgu-

lho e zanga. Orgulho no esforço que

fez para que os seus fi lhos conse-

guissem. Orgulho no que os fi lhos

conseguiram. Talvez tenha esque-

cido o que o Estado fez para que os

fi lhos tenham conseguido.

A educação, o acesso universal à

educação, faz parte daquilo a que

o historiador Tony Judt chamou a

“banalidade do bem”, explica Irene

Flunser Pimentel. A expressão de

Judt é uma forma não poética, mas

concreta, de falar do Estado social,

conquista da Europa que se ergueu

sobre as ruínas da Segunda Guerra

e que em Portugal se cimentou no

pós-revolução.

O Estado social é a jóia que nin-

guém quer empenhar, quanto mais

perder. É o anel que resta quando, a

alguns, não resta a certeza de haver

dedo. E é o anel que os mais jovens

se habituaram a ter como uma es-

pécie de sexto dedo.

Houve mesmo um tempo em que

os nossos pais, os nossos avós, não

iam à escola ou começavam a tra-

balhar depois da quarta classe, a

alombar madeira, pedra, por meia

dúzia de escudos? Isto com dez, 14

anos. Parece um tempo tão lon-

gínquo como o tempo dos reis de

Portugal.

O cientista político Pedro Maga-

lhães (1970) contou aos fi lhos que

o seu pai fazia cinco quilómetros a

pé, todos os dias, para ir à escola.

No profundo Trás-os-Montes. Cin-

co quilómetros, sob o sol, a chuva,

o frio que se entranha nos ossos.

“A sério? Mesmo com neve?” Mi-

údos incrédulos. Zero de atitude

prosélita, zero do sermão, “e têm

muita sorte por não terem as mes-

mas difi culdades”. Foi só uma his-

tória espantosa para um coração

esperançado (como deve ser o das

crianças de dez anos). Em duas ge-

rações, andou-se isto.

O Estado social é o que podemos

apontar quando nos perguntamos

pelo que correu bem. Ramalho Ea-

nes, Mário Soares e Jorge Sampaio

defenderam-no numa conferência

na Gulbenkian sobre os 40 anos do

25 de Abril. No mesmo dia, na cele-

bração organizada pelo Expresso,

SIC e ICS, uma sondagem indicava

que o povo — o povo-Salgueiro Maia

que percebe muito bem o estado a

que vamos chegando — considera

que estamos melhor na assistência

médica, na educação (70%) e na Se-

gurança Social (46%). Melhor agora

do que no antigo regime.

“A educação e a saúde foram as

O insucesso escolar, como conceito, não existia. A confirmação do acesso à escola como um direito de todos propicia a ascensão social. Numa sociedade estratificada como a portuguesa, onde as pessoas terminavam no ponto onde tinham começado, o conhecimento começou a contar como factor de mobilidade socialMaria de Lurdes Rodrigues ex-ministra da Educação (2005/2009)

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País: Portugal

Period.: Diária

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grandes conquistas da democracia.

Não tem grande importância que o

Estado social esteja falido. Está em

toda a parte”, afi rma André Gonçal-

ves Pereira (1936), advogado e ex-

ministro dos Negócios Estrangeiros

(1981/83). “É melhor ter um Estado

social falido do que não ter Estado

social nenhum, obviamente.”

O programa estava no essencial

escrito numa canção de Sérgio Go-

dinho de 1972. “A paz, o pão, edu-

cação, saúde, habitação.” Arran-

que a seco, grito no refrão: “Só há

liberdade a sério quando houver...”

O programa estava no texto (1942)

de William Beveridge que serviu de

matriz à criação do Estado social na

Europa. O economista apontou os

núcleos: ensino, protecção na do-

ença, protecção na velhice, protec-

ção no desemprego e habitação.

Com isto fazia-se O Portugal Futu-

ro do poema de Ruy Belo, “aonde

o puro pássaro é possível/ e sobre

o leito negro do asfalto da estrada/

as profundas crianças desenharão

a giz. (...) Mas desenhem elas o que

desenharem/ é essa a forma do meu

país/ e chamem elas o que lhe cha-

marem/ Portugal será lá e lá serei

feliz”.

O poema de 1972 de Ruy Belo

desenha uma ideia de felicidade,

adivinha a cara que as pessoas vão

ter em Abril de 74, a confi ança ilimi-

tada no futuro, o sorriso. Está tudo

nas fotografi as daquele tempo. Era

uma vez um país.

4.Toca a fazer. A partir daquele

“dia inicial inteiro e limpo/

onde emergimos da noite e do

silêncio”, versos-síntese de Sophia

de Mello Breyner, toca a fazer. Até

porque “Quem não faz, não vive,

apenas dura”, disse outro portu-

guês (Padre António Vieira).

E outro disse “Quanto faças, su-

premamente faz” (Fernando Pes-

soa). Toca a fazer. Supremamente.

Mas como se faz um país livre? Co-

mo se concretizam projectos dís-

pares, contraditórios, o meu 25 de

Abril e o teu 25 de Abril? Os cami-

nhos do fazer dividem-nos.

Entretanto, os soldados regressa-

ram a casa. Não foi “nem mais um

só soldado para as colónias” (frase

do MRPP). Foi (acima de tudo) para

acabar com esse estado de coisas

— a guerra — que se fez esta revo-

lução. O meu pai regressou a casa,

o que não interessa senão para a

minha história e a da minha família.

Muitos pais regressaram a casa, o

que interessa para as histórias de

muitas famílias. O meu pai, que

não tinha estado quando comecei

a andar ou a falar, regressava. Os

nossos pais, os da geração a que

pertenço, nascida na década de

1970, regressaram dos cus de Ju-

das marcados pela guerra. Muitos

mais não chegaram a ir. No dia 25

de Abril acabou-se com a ditadura,

acabou-se com a guerra. No dia 1 de

Maio não se combatia. O meu pai

contou-me que a 10 de Junho fi ze-

ram uma festa na messe em Angola,

cantaram canções de Zeca Afonso.

Regressou daí a cinco dias.

Entretanto os políticos e o povo

gizaram no asfalto as grandes linhas

do puro pássaro, respondendo ao

momento.

5.— Quais foram os momentos

fracturantes destes 40 anos

de democracia?

— As nacionalizações de 11 de

Março de 75, as eleições para a

Constituinte no dia 25 de Abril de

75, a chegada de meio milhão de

retornados entre Abril e Novembro

de 75, o 25 de Novembro de 75, a

Constituição de 2 de Abril de 76,

a revisão do Código Civil em 77, a

extinção do Conselho da Revolu-

ção em 1982, a abertura do merca-

do bancário à iniciativa privada em

84, a entrada na CEE em 86, as pri-

vatizações a partir de 90, o euro em

circulação a 1 de Janeiro de 2002, a

crise mundial de 2008.

As grandes fracturas que não têm

data de ratifi cação: a criação do Es-

tado social, o desenvolvimento do

país, o estatuto da mulher, a eclo-

são da classe média que solidifi ca

a democracia.

A primeira de todas: o 25 de

Abril, que permitiu liberdade de

expressão, liberdade de associa-

ção, eleições livres, direitos e ga-

rantias consagrados. Falar sem ter

medo. Falar sem procurar escutas

debaixo da mesa. Andar na rua sem

procurar a sombra que vigia e de-

lata. Poder espichar numa parede

“O Povo Unido Jamais Será Venci-

do”. Ter voto na matéria, qualquer

matéria.

Acreditar.

6.As nacionalizações, pela his-

toriadora (de direita, então

feroz esquerdista) Maria de

Fátima Bonifácio (1948). “Foi uma

devastação da nossa economia.

Custaram anos de atraso ao país.

Não foi só a banca, e a banca foi um

disparate. Nacionalizaram-se vãos

de escada. Era jornalista. Cheguei

a fazer a cobertura de uma tintu-

raria que tinha sido nacionaliza-

da. A ideia de que no Alentejo se

nacionalizaram grandes herdades

abandonadas é falsa. Estabeleceu-

se um método de calcular o valor

das herdades através de uma pon-

tuação que valorizava tudo o que

era regadio, maquinaria, gado; e

foram essas explorações, que es-

tavam a ser bem exploradas, que

foram nacionalizadas. O que não

se nacionalizou foi o que estava ao

abandono.”

Do outro lado: a terra a quem a

trabalha, as fábricas a quem lá pro-

duz. Vamos corrigir o sofrimento e

a injustiça. Socialismo aqui e já.

7.As eleições, um ano depois da

revolução. O cumprimento do

D de Democracia. Filas intermi-

náveis para votar. Afl uência às urnas

de 90%. Irene Flunser Pimentel:

“É admirável que pessoas que es-

tiveram tantos anos afastadas da

política, debaixo de um regime di-

tatorial, votem em massa de forma

entusiástica e organizada. Traduz

uma aprendizagem da política mui-

to repentina.”

Homens e mulheres. Agora tam-

bém mulheres, quaisquer mulhe-

res, e não apenas chefes de família

e licenciadas. A emancipação co-

meçava. Mas do movimento tectó-

nico que o 25 de Abril representou

na vida da mulher fala-se mais à

frente.

8.“Então a metrópole afi nal é

isto”, escreveu Dulce Maria

Cardoso no livro O Retorno.

Entre Abril e Novembro de 1975

chegaram 400 mil “retornados”, “a

falar das coisas de lá, a minha casa

isto, a minha casa aquilo, deixei lá

isto e aquilo, os tiros isto, os mor-

teiros aquilo”.

A grande equação desse tempo

e do tempo futuro: e agora? Como

se refaz a vida, como se lida com a

perda? Uma mão à frente e outra

atrás.

Descolonizar, o outro D, por

André Gonçalves Pereira: “Muitas

pessoas consideram que a descolo-

nização foi o que correu pior. Não

concordo inteiramente. A descolo-

nização correu mal como não podia

deixar de correr. Foi a descoloniza-

ção possível, que começou com 15

anos de atraso.”

Quinze anos antes, a guerra.

Para muitos, não era um retorno,

uma vez que nunca aqui, na metró-

pole, haviam estado. Era em todo

o caso um exercício hercúleo para

milhares de “desterrados”. É as-

sim que Dulce Maria Cardoso lhes

chama, é a eles que dedica o livro.

“Três malas e vinte contos é tudo o

que temos até resolvermos a vida.

Resolver a vida é o que mais se ouve

entre os retornados.”

Rui Pena Pires (1955), especialista

em movimentos migratórios, che-

gou de Angola em Setembro de 1975.

Olha para o fenómeno com olhos de

sociólogo. “Os retornados voltam ao

seu ponto de origem, espalham-se

pelo país. É o contrário do que acon-

tece em França, com os pied noir

a concentrarem-se em Marselha. A

dispersão transforma o fenómeno

num fenómeno nacional. Os retor-

nados são em média mais qualifi ca-

dos, empreendedores. Houve um

período em que um terço dos pa-

trões (de indústria, comércio e ser-

viços) em Trás-os-Montes era retor-

nado. Trazem diversidade religiosa

(aparecem os primeiros grupos de

muçulmanos). Quebram o grau de

homogeneidade que havia (chegam

mestiços). Constituem uma popu-

lação maioritariamente de direita,

furiosa com a descolonização. Mário

Soares centraliza ódios.”

Ah, e os retornados aprenderam

o que são frieiras e cieiro, lê-se em

O Retorno.

Trouxeram minissaias, roupa

descapotável, a liberalização dos

costumes, a ideia de uma vida li-

vre, com espaço a perder de vista,

que tinham nas colónias. Uma certa

forma de calor.

Integraram-se sem rupturas e

convulsões sociais. Um êxito, tam-

bém do novo poder local.

9.O golpe militar contra-revolu-

cionário de 25 de Novembro

por Henrique Granadeiro

(1943). “Foi o realinhar das coisas

em conformidade com o projecto

inicial. Havia um desvio que defrau-

dava a generalidade das pessoas,

que não queriam substituir uma

ditadura por outra. A tentativa

de implementação de uma socie-

dade socialista já tinha aspectos

evidentes. Cartilhas, saneamento,

violência.”

O que houve entre 25 de Abril de

74 e 25 de Novembro de 75? Num

ano e meio fez-se a revolução, co-

meçou um novo calendário, e com

ele a corrupção do sonho. As difi -

culdades típicas do momento em

que a minha liberdade começa a

ocupar o espaço da tua. As difi cul-

dades típicas do momento em que a

revolução é minha e faço com ela o

que eu acho que deve ser feito. Eu e

o meu grupo político. E toda a gente

tinha um grupo político.

25 DE ABRIL40 ANOS DE DEMOCRACIA

Foi uma devastação da nossa economia. Custaram anos de atraso ao país. Não foi só a banca, e a banca foi um disparate. Nacionalizaram-se vãos de escada. (...)A ideia de que no Alentejo se nacionalizaram grandes herdades abandonadas é falsaMaria de Fátima Bonifácio historiadora

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País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

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Ramalho Eanes foi o responsá-

vel pelo plano de operações do

golpe, não deu espaço às pressões

dos radicais. Rematou-se um Verão

Quente. O PC saiu derrotado. Ideo-

logicamente foi um marco.

Henrique Granadeiro foi chefe da

Casa Civil de Eanes entre 1976/79.

O seu discurso é o dos vencedores

do 25 de Novembro.

O historiador José Pacheco Perei-

ra, que organizou na Assembleia

da República uma exposição que

comemora os 40 anos da democra-

cia, considera que foi nesse período

que nasceu a democracia. “Quem

pena com os excessos do PREC é

quem não gostou do 25 de Abril. O

PREC teve excessos e houve mortos

e gente que mandou matar, mas a

verdade é que foi naqueles anos tur-

bulentos que nasceu a democracia

portuguesa”, disse numa entrevista

recente ao jornal i.

10.Constituição de 76. “É o

primeiro instrumento or-

ganizador do que vamos

ser”, sintetiza Maria Manuel Leitão

Marques (1952), professora univer-

sitária e ex-secretária de Estado

da Modernização Administrativa

(2007/11). “Tudo o resto é afi nado a

partir daí. Há coisas que são muito

alteradas nas revisões constitucio-

nais, mais na organização do poder

político (sobretudo em 82) e da eco-

nomia (em 89), menos nos direitos

e deveres fundamentais.”

No princípio, nessa magna carta,

estava escrito que devíamos cami-

nhar para o socialismo. Que socialis-

mo? Que caminhos? A questão não

é despicienda, porque mexe com

um entendimento do que a demo-

cracia deve ser. E porque, sustenta

Pedro Magalhães, “a maioria das

pessoas tende a associar — e inten-

samente — liberdade de expressão,

liberdade de associação e eleições

livres a justiça social, segurança e

prosperidade económica”.

As democracias nórdicas, que queremos ser há 40 anos, têm menos corrupção, melhor Governo, são menos desiguais, têm um nível de vida médio mais elevado. Têm o pacote completoPedro Magalhãescientista político

Esta era a promessa, refl ectida

na Constituição de 1976.

Um equívoco, considera Maria

de Fátima Bonifácio. “As pessoas

habituaram-se a usar democracia e

bem-estar económico como sinóni-

mos. No meu ponto de vista, demo-

cracia [corresponde] a liberdades,

direitos, a um Estado de direito, ao

Serviço Nacional de Saúde (que é

uma aquisição civilizacional, mes-

mo que não faça sentido eu pagar o

mesmo que a minha empregada por

uma radiografi a). Mas a democracia

não são os ténis da Nike. A demo-

cracia pode ser mais redistributiva

ou menos, conforme o Governo for

mais social-democrata, menos so-

cial-democrata. Em si mesma, não

promove o crescimento e o desen-

volvimento económico. A prova é

que a Europa está em recessão há

anos e promete continuar a arras-

tar os pés.”

Esta associação entre prosperi-

dade, bem-estar e liberdades cí-

vicas não é exclusiva de Portugal.

“É característica de democracias

mais pobres e de democracias mais

recentes”, especifi ca Pedro Maga-

lhães. “Os EUA, a Suécia, a Noruega

dizem que democracia corresponde

a liberdade de expressão, liberdade

de associação, eleições livres.”

Esta é uma das pistas para com-

preender a nossa zanga com a de-

mocracia. “As pessoas sentem que

ainda não receberam dela o que

estava prometido”, diz o cientista

político. “As democracias nórdicas,

que queremos ser há 40 anos, têm

menos corrupção, melhor Gover-

no, são menos desiguais, têm um

nível de vida médio mais elevado.

Têm o pacote completo.”

O pacote completo que o povo

também quer. Não foi (também) pa-

ra isso que se fez uma revolução,

pá? Portanto, porque é que não o

temos?, grita o povo. “Porque 40

anos é pouco tempo”, conclui Pe-

dro Magalhães.

11.A Revisão do Código Civil

em 1977 consagra a igual-

dade constitucional entre

homem e mulher em toda a vida

familiar.

Era o momento das mulheres.

“Os homens ganharam liberdade

política. As mulheres ganharam

tudo. Ainda me lembro de que a

minha mãe tinha de pedir autori-

zação ao meu pai quando queria

passar férias comigo, em Berkeley.

Ou quando quis comprar um carro.

A minha mãe era uma alemã que

cresceu nos anos 1920, em Berlim.

Imagine.” Alexandre Quintanilha

(1945), cientista. Os pais viviam

em Moçambique. Lá como cá, o

homem tinha o direito de ver a

correspondência da mulher. Um

contraste absoluto com o ambien-

te da baía de São Francisco, onde

Quintanilha trabalhava e vivia.

Veio a Portugal em 1979 com o

então namorado hoje marido, Ri-

chard Zimler.

Entretanto, a célula da família

mudou tanto que é possível escre-

ver banalmente “o então namorado

hoje marido”. Como se o casamen-

to homossexual não fosse um tema

fracturante (expressão que não se

usava e agora se usa).

Entretanto, também o sexo dei-

xou de ser um tema fracturante. “Já

não passa pela cabeça de ninguém

criticar uma mulher por ter tido re-

lações sexuais antes do casamento.

Há uns anos, se a mulher não fos-

se virgem, tinha um nome”, nota

Quintanilha.

O casal mudou-se para Portugal

em 1990. Casaram-se em 2010, pou-

cos meses depois da aprovação do

casamento entre pessoas do mes-

mo sexo. Mas quando vieram juntos

pela primeira vez encontraram um

país “medieval”.

Não havia jornais estrangeiros,

levava-se um dia para chegar a um

lugar mais recôndito, esperava-se

meses — ou anos — que instalassem

o telefone em casa. E fi cava-se à

mercê das pessoas que se conhe-

cia e que podiam aligeirar o proces-

so. “Eu telefono ao senhor não sei

quantos e ele trata disso — diziam-

me. Ou éramos ignorados porque

ninguém nos conhecia ou éramos

tratados como príncipes porque

trazíamos recomendação.”

Diagnóstico: arbitrariedade e

inefi ciência do sistema. Palavra de

todos os dias: meter uma cunha.

Cunha em modo soft.

Mais à frente, quando o dinheiro

começou a ser a sério, meteram-se

cunhas a sério. Algumas eram tão

a sério que passaram a chamar-se

corrupção. Mas isso é mais à fren-

te.

As mulheres, para já. Uma das

primeiras manifestações, logo de-

pois do 25 de Abril, teve que ver

com a proibição do divórcio dos

que eram casados pela Igreja — a

esmagadora maioria.

Irene Flunser Pimentel: “Fez-se

um comício. Pela primeira vez, uma

mulher foi oradora principal. A

questão do divórcio tocou homens

e mulheres. Muitos deles tinham

amantes, fi lhos ilegítimos.”

Porque é que isso constituía um

drama? Porque homens e mulhe-

res separavam-se e continuavam

casados com os antigos maridos e

mulheres; porque viviam com ou-

tros e continuavam casados com

os anteriores; porque tinham fi -

lhos das novas relações e não os

podiam perfi lhar. Numa linha: não

era possível dissolver uma família

e constituir outra.

Em 1975, o ministro da Justiça

Salgado Zenha reviu a Concordata

com a Santa Sé. Passou a ser pos-

sível o divórcio entre casados pela

Igreja.

Número de divórcios em 1965:

600. Em 1975, há 1500. Em 1977,

há 7700.

A completa igualdade entre fi lhos

e entre homem e mulher, que resul-

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País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

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25 DE ABRIL40 ANOS DE DEMOCRACIA

ta da Constituição de 1976, é incor-

porada no Código Civil de 77.

12.A extinção do Conselho da

Revolução em 1982 e a criação

do Tribunal Constitucional.

Henrique Granadeiro: “Do ponto de

vista simbólico, é um grande momen-

to. Do ponto de vista prático, nem

tanto. O general Eanes era Presidente

da República e chefe do Estado-Maior

das Forças Armadas, era o vértice

do encontro do poder militar com

o poder civil. Foi enviando a tropa

para os quartéis e valorizando a po-

lítica nas instituições. A extinção do

Conselho da Revolução foi a morte

natural de um processo que veio a

ser conduzido por ele desde o pri-

meiro momento, de forma discreta

e sistemática.”

13.Um não-momento: o bloco

central liderado por Mário

Soares e Mota Pinto pede

ajuda ao FMI em 1983. Os portugue-

ses habituam-se a ver Teresa Ter-

Minassian na televisão. José Mário

Branco compõe o disco FMI.

Um não-momento porque somos

essencialmente os mesmos depois

dessa passagem ou da passagem de

1977. Ao contrário do que aconte-

ce com a presença da troika desde

Abril de 2011.

Então tínhamos moeda própria,

infl ação e desvalorização. E a Euro-

pa era um oásis próximo. José Me-

deiros Ferreira, sonhador da per-

tença à Europa e ao mundo, havia

feito o pedido de adesão quando era

ministro dos Negócios Estrangeiros

(1976/78). Esse sim, um momento.

14.Outros gráfi cos. Taxa de

mortalidade infantil: 55

por mil nados-vivos em

1970. Oito por mil em 1994. Três

por mil em 2008. A média da UE é

superior a quatro por mil.

Número de pensionistas: em

1960 são 56 mil, em 1976 é um mi-

lhão. Pensão de sobrevivência: em

1960 são sete mil benefi ciários, em

1976 são 125 mil. (Fonte: Eurostat e

Pordata.)

Em 1980, Cavaco Silva, na pasta

das Finanças do Governo Sá Car-

neiro, faz um alargamento do re-

gime não contributivo. Mulheres

que foram domésticas toda a vida,

agricultores e outros que nunca

tinham contribuído passam a ter

protecção social.

15.Nick Racich (1949) che-

gou a Portugal há 30 anos,

quando foram concedidas

as primeiras licenças à banca priva-

da. Banqueiro, vice-presidente do

banco BIG, estudou na prestigiada

Wharton School depois de aban-

donar um doutoramento em Dom

Quixote de la Mancha, de Cervantes.

Um percurso banal num país como

os Estados Unidos, improvável, pa-

ra não dizer impossível, num país

como Portugal.

Este americano de Filadélfi a tra-

balhava em Nova Iorque e tudo o

que sabia de Portugal era que Lis-

boa era uma jóia.

Claro que sabia onde fi cava Por-

tugal, mas no banco onde trabalha-

va, em 1980, “em termos de organi-

zação, Portugal e Espanha faziam

parte da América Latina. Em todos

os bancos americanos era assim.

Por causa da língua. Só em 1986,

quando integraram a Comunidade

Económica Europeia, começaram

a estar arrumados de outra manei-

ra”.

Nick Racich falava espanhol por

causa do cavaleiro da triste fi gura.

Hoje fala um português sem má-

cula. Tem dupla nacionalidade e

diz pá.

“O primeiro sector a ser aberto

à iniciativa privada foi o bancário.

Foi uma medida inteligente, porque

a banca é um motor da economia.

Não havia mercado monetário,

mercado cambial, bolsa, não havia

produtos fi nanceiros. Em poucos

anos chegámos a ter 17 bancos es-

trangeiros. Começou a pensar-se

na privatização de sectores-chave

da economia.”

A cerveja não é um sector-chave,

mas foi com a Unicer em 1989 que

começaram as privatizações. Ver-

dadeiramente só em Abril de 1990,

com a lei das mesmas, começaram

a ser levadas a cabo.

Outra palavra começava a ser

usada: empreendedorismo. Com

um signifi cado que não coincide

com o de um americano: “Empre-

endedorismo é pegar em capital —

nosso, privado — e começar com

esse capital, e não esperar patrocí-

nios, dinheiro do Estado ou dívida

bancária.”

Mas isto é um americano a falar,

com uma aprendizagem diferente

da nossa, que vive num país-conti-

nente onde é possível recomeçar no

dia seguinte, várias vezes. A escala

permite-o.

Em Portugal, a democracia tinha

pouco mais de dez anos. E o dinhei-

ro da CEE estava a chegar. O país

parecia de mangas arregaçadas,

com condições para cumprir o D

de desenvolvimento.

16.Bem, não exactamente de

mangas arregaçadas.

O que fi cou no imagi-

nário colectivo: betão, rotundas,

infra-estruturas ruinosas. Recur-

sos malbaratados, fraude com os

dinheiros do Fundo Social Europeu

e do PEDIP. Uma certa trafulhice e

o início do folguedo.

É uma visão injusta, porque par-

celar, dos anos que começavam

com a adesão de Portugal à CEE.

Essa foi a década da emergência

da classe média, do alargamento

do Sistema Nacional de Saúde, da

estabilidade democrática. Mais do

que tudo: essa foi a década em que

deixámos de ser a choldra e passá-

mos a fazer parte de um clube se-

lecto. Ruy Belo, que parecia saber

tudo, e antes do tempo, escreveu

no poema Sexta-feira sol dourado:

“Agora é que vamos ser felizes. (...)

Portugal fi ca em frente.”

O Portugal triste fotografado por

Victor Palla, a preto e branco, e o

português pobre encarnado por

Belarmino no fi lme de Fernando

Lopes (1964) pareciam de outro

século. Tinham passado apenas

30 anos.

Nenhuma das pessoas ouvidas

pelo PÚBLICO para a elaboração

deste texto deixou de referir a en-

trada na CEE como momento-chave

de 40 anos de democracia.

O fi scalista e professor universi-

tário João Taborda da Gama (1977)

chamou-lhe “o mecenas do nosso

25 de Abril. Quer dizer, a Europa

permitiu-nos ter o dinheiro para

efectivar o 25 de Abril”.

17.Quando é que começámos a

ter um Estado gordo? Maria

Manuel Leitão Marques: “Eu

não sei se temos um Estado gordo.

A questão é a de saber que Estado

podemos sustentar e onde deve-

mos concentrar a despesa. Mas no

fi nal dos anos 1980, algumas das re-

formas nas carreiras da função pú-

blica efectuadas por Cavaco Silva,

designadamente com a criação de

promoções automáticas por tempo

de serviço, aumentaram signifi cati-

vamente a despesa com funcioná-

rios. Mesmo que a intenção fosse

boa, o resultado foi desastroso em

termos de progressões não assentes

em critérios de mérito e tornou o

peso dos salários na administração

pública muito elevado.”

Miguel Cadilhe, então ministro

das Finanças, discordou e saiu do

executivo.

A imagem não era a da grande

porca de Bordalo Pinheiro, que ser-

ve para a expressão “mamar na teta

do Estado”. Essa veio (voltou) mais

tarde. A imagem era a de um Esta-

do tentacular que dominava toda a

economia (ainda que de 1990 a 95 o

sector público tenha sido fortemen-

te diminuído com as privatizações).

A imagem era a de um Estado on-

de cabiam as clientelas políticas, a

inefi ciência, o manga de alpaca. O

Estado dos tachos.

Contudo, as prestações sociais

ainda estavam aquém da média eu-

ropeia. O Estado social era recente

e insufi ciente. Continuou necessa-

riamente a crescer, na educação, na

saúde, nas pensões. António Guter-

res fez da educação a sua paixão.

Em 2002, Durão Barroso disse que

o país estava de tanga.

A resolução do problema não se

fez com uma diminuição da despe-

sa nem com reformas estruturais

dirigidas ao crescimento, mas com

uma reforma da máquina fi scal. Co-

braram-se impostos, muitas vezes

devidos há anos e anos.

João Taborda da Gama: “É ver-

dade que havia um sentimento de

grande impunidade e de corrupção

na administração fi scal. O momento

marcante foi quando Paulo Macedo

assumiu o lugar de director-geral

dos Impostos [2004/2007]. Hoje

esse sentimento de impunidade

não existe.”

A confusão entre despesa com o

Estado social (pensões, educação,

saúde) e peso da máquina adminis-

trativa é um preconceito antigo. No

ano em que Portugal pediu ajuda

fi nanceira e a palavra de ordem era

cortar nas gorduras do Estado, o ní-

vel de despesa pública no PIB era

de 48,9%. A média da União a 27 era

49,1% e da zona euro 49,4%. (Fonte:

Eurostat). Grande parte da despesa

pública estava concentrada em paga-

mentos de pensões e funcionalismo

público - a fatia era de 65,70%.

Segundo o livro de Emanuel dos

Santos, Sem Crescimento não Há

Consolidação Orçamental, em 2011,

47% da despesa pública consistia

em redistribuição de recursos que

o Estado operava de uns cidadãos

para outros, incluindo pensões e

outras prestações sociais. As despe-

sas de funcionamento da adminis-

tração pública (salários mais con-

sumos intermédios) representavam

39% dos gastos totais. Mas como

abrangiam a produção de serviços

como a educação, a saúde ou a se-

gurança, o custo da máquina buro-

crática do Estado central fi cava-se

pelos 15,5% da despesa pública ou

7,2% do PIB.

A confiança na justiça está abalada. Nos EUA, os Madoff vão para a prisão por 150 anos. Em Portugal, o povo tem a noção de que ao tubarão não acontece nada. Que o tubarão se safa. Os políticos estão a subestimar a importância da confiança na vida das pessoasNick Racichbanqueiro, vice-presidente do banco BIG

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18.Uma confusão: despesa pú-

blica com o Estado social

e custo da máquina admi-

nistrativa. Outra confusão: dívida

interna e dívida externa. Outra con-

fusão ainda: dívida e crescimen-

to. Para Nick Racich, o problema

não é o que devemos, o problema

é o que não crescemos. “O endi-

vidamento externo português em

83/84 era qualquer coisa como 16

mil milhões de dólares. Em 2011 era

20 vezes superior. E o PIB apenas

duplicou. Ou seja, o país produziu

o dobro mas pediu emprestado 20

vezes mais.”

O que é que o país fez com o di-

nheiro que foi buscar? Entre 1998

e 2010, o investimento produtivo

feito pelo sector fi nanceiro baixou

20%, o fi nanciamento ao consumo

privado aumentou 19%. (Fonte: arti-

go de opinião de João Pinto e Castro

no Jornal de Negócios a partir do

livro de Emanuel dos Santos Sem

Crescimento não Há Consolidação

Orçamental).

“É um país extremamente endivi-

dado. Não mais do que os outros. A

diferença está em que alguns con-

seguem dar a volta rapidamente.

Portugal, não”, diz Nick Racich.

De novo gritamos, zangados com

o nosso malfadado destino: porque

é que não conseguimos dar a volta?

Porque é que voltamos a ouvir Jú-

lio César dizer que este é um povo

que nem se governa nem se deixa

governar? (É a elite ou o povo que

não se governa nem se deixa gover-

nar?) Porque é que lemos Causas da

Decadência dos Povos Peninsulares

(1871) de Antero de Quental e o tex-

to nos faz sentido?

“É uma democracia muito nova”,

continua o banqueiro. “Quarenta

anos é muito pouco. São duas gera-

ções. Ainda temos muitas pessoas

vivas que viveram o antes. E antes

de décadas de ditadura estão sé-

culos de monarquia, de paterna-

lismo.”

João Constâncio (1971), profes-

sor universitário, autor, entre ou-

tros, do livro Nietzsche e o Enigma

do Mundo, chama igualmente a

atenção para este ponto. “Em 40

anos não se substitui a população

de um país. A cabeça das pessoas

não mudou o sufi ciente, apesar

das transformações económicas e

sociais. Em 40 anos não se trans-

forma uma população em grande

medida analfabeta numa popula-

ção instruída.”

Pensemos nisto: quantos dos que

estavam vivos em 1974, com uma

identidade, um passado, uma raiz

fizeram a transição para o Por-

tugal democrático? Quantos dos

que eram impreparados, iletrados

aprenderam a viver num país no-

vo? E pensemos nos que nasceram

depois de 74 e nos fi lhos desses.

Dir-se-ia fi lhos de um outro país.

Contudo, os nossos pais ainda são

aqueles.

19.Problema central: porque

não crescemos? A resposta

de Henrique Granadeiro:

“Existe uma correlação directa en-

tre instabilidade política e desen-

volvimento económico. Tivemos

25 governos em 40 anos [seis go-

vernos provisórios e 19 governos

constitucionais]. Com este vaivém

de governos é impossível gerar po-

líticas de longo prazo. A primeira

preocupação do governo seguinte

é rectifi car o [que considera] dis-

parates do governo anterior. Isso

introduz uma precariedade cujo

resultado está à vista.”

Segundo dados do Eurostat, os

ciclos políticos mais longos e com

maior taxa de crescimento corres-

pondem aos X, XI e XII governos

(1985/95, governos de Cavaco Silva)

com uma taxa de crescimento do

PIB de 4,2%. Os XIII e XIV governos

(1995/2002, governos de António

Guterres) tiveram uma taxa de cres-

cimento de 3%.

Na opinião do presidente da PT,

“o sistema constitucional permi-

te, e em certa medida encoraja, a

existência de governos minoritá-

rios. Um exemplo: o Presidente da

República empossou um governo

minoritário em plena crise mundial

(2009). Foi um erro político de Ca-

vaco, que o nomeou, e um erro po-

lítico de Sócrates, que aceitou”.

O povo volta a perguntar: porque

é que não crescemos? Porque é que

não damos a volta?

Ouçamos de novo as vozes d’Os

Rapazes dos Tanques, das manifes-

É melhor ter um Estado social falido do que não ter Estado social nenhum, obviamenteAndré Gonçalves Pereiraadvogado e ex-MNE

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25 DE ABRIL40 ANOS DE DEMOCRACIA

tações, dos que agora emigram.

Ouçamos a zanga com a classe po-

lítica, com essa elite. Com a elite

que não dá a volta, que não nos faz

dar a volta, que não nos deixa dar

a volta. Uma elite pequena, pou-

co capitalizada e dependente do

Estado.

O advogado Vasco Vieira de Al-

meida disse numa entrevista ao

Jornal de Negócios (2012): “Em Por-

tugal pertencer a uma elite nunca

representou, como devia, uma fon-

te extra de obrigações, antes uma

atribuição anormal de privilégios.

O povo foi sempre melhor do que

as elites.”

20.Antes do leite derramado,

há a Expo 98 e o orgulho

numa obra com aquela

dimensão, aquela beleza. Não é

pouco porque um povo precisa de

pão e circo.

Antes ainda privatiza-se a pro-

dução de informação. Aparecem

as rádios e as televisões privadas.

Não muda só a forma de comuni-

car. Muda, o que é fundamental,

a forma de comunicar política e

consequentemente a forma de fa-

zer política.

Mudam os protagonistas. O povo

aparece na televisão, a sua biogra-

fi a importa. O povo vê e comenta o

povo na televisão, a elite vê o povo

na televisão e comenta o Big Bro-

ther de Orwell. Nos anos 1990, o

mundo era tão estável que a gera-

ção nascida na década de 1970, ou

pouco antes, não sabia o que era o

contrário de liberdade.

João Constâncio era um miúdo

quando o pai, Vítor Constâncio, foi

secretário-geral do Partido Socialis-

ta (1986/89). Acompanhava-os nos

comícios, no fervilhar da política.

Depois fechou-se a estudar. Grego

antigo, alemão, Platão. “A minha

geração foi a primeira que pôde vi-

ver acomodada no tipo de demo-

cracia ocidental que resultou do 25

de Abril. A política era uma questão

que estava resolvida. Alguém já ti-

nha feito o que era preciso fazer.

Mais do que isso: a política tinha-se

tornado uma questão burocrática.

Não havia nada de heróico nem de

decisivo nela.

Como costumo dizer, não vivi

os anos 90. Como se o mundo não

existisse para mim. Eu podia estar

alienado, para usar uma linguagem

marxista, nas minhas preocupações

existenciais.”

O poeta e cirurgião plástico João

Luís Barreto Guimarães, nascido

em 1967, diz o mesmo num dos po-

emas do livro Você Está Aqui: “Nin-

guém da nossa geração esteve na

revolução; outros, antes de nós, fi -

zeram as nossas guerras. Quando

chegámos aos dias já a guerra ha-

via sido. (...) Para nós sobejou outra

sorte de batalhas: levantar cada ma-

nhã o peso imenso das pálpebras,

correr por um lugar na trincheira

do balcão.”

O poema traduz um lamento, o

individualismo, uma vida por ve-

zes autómata. “Agora luta-se por

o ter a casa, o ter o carro, o ter o

telemóvel. Coisas concretas desti-

tuídas de idealismo”, diz Barreto

Guimarães.

Algumas palavras caíram em de-

suso. Idealismo, por exemplo.

21.Adeus escudo, willkommen

euro. As novas notas apa-

receram há 12 anos.

A vida subiu de preço. No super-

mercado e na bomba de gasolina,

nos restaurantes e nos centros co-

merciais. Só uma coisa embarate-

ceu, e muito: o preço do dinheiro.

As taxas de juro eram tão baixas

que só não tinha casa própria quem

não quisesse (dizia-se). E já agora

férias na República Dominicana (a

crédito). E um segundo carro para

a família (ainda a crédito). A banca,

de motor da economia, passou a

motor do consumo.

Foi o momento em que palavras

como spread se começaram a usar

todos os dias. E os bancos se sobre-

endividaram (além do estabelecido

nas regras de Basileia) a curto para

emprestar a longo prazo.

O endividamento dos bancos por-

tugueses no estrangeiro passou de

49% do PIB em 1999 para 96% em

2007.

Até que o Lehman Brothers tom-

bou e a torneira estancou.

22.Fomos nós que vivemos

acima das nossas possibi-

lidades? João Constâncio

rejeita o que considera ser um dis-

curso punitivo que se impôs depois

da queda do gigante americano e

em especial depois do pedido de

resgate do Estado português. “Um

discurso que faz as pessoas sentirem

que desde a entrada na CEE até 2011

andaram a viver de uma herança de

uma tia rica. E que têm de voltar a

ser pobres porque Portugal é um

país pobre.”

Do outro lado: os povos do Sul

são preguiçosos, desorganizados,

perdulários. Há quem pense que,

além destes atributos, são ignaros.

As crianças introduziram no seu lé-

xico uma palavra nova: austerida-

de. E aprenderam, à força de ouvir

os pais, os avós, a televisão, que o

futuro podia não ser radioso. Que

o mais provável é que não seja ra-

dioso.

Centenas de milhares de pesso-

as manifestaram-se e empunharam

cartazes onde se lia: queremos o

nosso futuro de volta. Homens,

mulheres, crianças, jovens, velhos.

Reformados que se transformaram

no esteio de milhares de famílias

(apesar das pensões cortadas para

metade). A classe média que vive no

fi o (por causa dos cortes para me-

tade). Desempregados. Gerações

à rasca. Não estavam as centenas

de milhares que nos últimos anos

tiveram que emigrar.

João Luís Barreto Guimarães

especializou-se em reconstrução

mamária de mulheres que tiveram

cancro da mama. No hospital, no

consultório, assiste a uma degrada-

ção rápida da jóia indiscutível que é

o SNS, ao empobrecimento do po-

vo. “É preciso saber ler os sinais.

As pessoas andam tristes, estão a

engordar, a envelhecer, têm sapatos

cambados, roupa puída, semblan-

tes zangados. Os doentes dizem:

‘Tenho diabetes, hipertensão ar-

terial e insufi ciência cardíaca. Deste

três, qual é o menos grave? Porque

só tenho dinheiro para comprar

medicamentos para dois.’ A vida

inteira trabalharam, confi ando que

o Estado era pessoa de bem e que

um dia, quando precisassem da re-

forma, iam tê-la. O Estado pura e

simplesmente está-lhes a falhar. Es-

tica a corda sem introduzir o factor

sentimental na regra económica.”

23.— Onde é que falhámos? O

que é que correu mal?

— André Gonçalves Pe-

reira: “Nada correu especialmente

mal. A sociedade é o que é. Temos

um regime aristocrático medío-

cre, em que o papel das famílias

dominantes é desempenhado pe-

los partidos políticos. A nova aris-

tocracia são os partidos políticos. É

uma aristocracia de posição, não de

ideias nem de nascimento.”

— Rui Pena Pires: “O que é que

falhou no 25 de Abril? Nada. Nos

últimos 40 anos, o que falhou mais

foi o facto de continuarmos a ser o

país mais desigual da Europa (agora

menos do que a Bulgária e a Romé-

nia - não é grande consolo).”

— João Luís Barreto Guimarães:

“Abril realizou-se? A resposta é não.

Não se cumpriram os objectivos da

revolução. A sociedade não cresceu

como um todo. Aumenta o fosso

entre os mais pobres e aqueles que

enriquecem na proximidade do po-

der. Tenho a maior desconfi ança

da classe política. O pote vai vol-

tar a encher? Temo que o regabofe

volte.”

— Maria Manuel Leitão Marques:

“Foi-se avançando com as maiorias

políticas existentes. Seria bom que

tivéssemos tido governos de maio-

ria? Não os tivemos. Porque as pes-

soas não votaram assim nem obri-

garam a que houvesse um pacto

entre os principais partidos. Mas

devíamos ter tido mais coragem e

mais visão para em 1986 fazer re-

formas dolorosas. Por exemplo, de

reestruturação empresarial (e não

alimentar com fundos europeus

empresas cuja competitividade era

duvidosa, e que caíram agora como

tordos). Isso tem custos. Há cliente-

las políticas que se perdem.”

— Irene Flunser Pimentel: “Cor-

reu-nos mal a Europa, como correu

mal a outros países. Não foi a nossa

inserção no projecto europeu. Foi o

projecto europeu. Não fi zemos uma

união política europeia. Fomos pela

via do dinheiro, e aconteceu o que

aconteceu.”

— João Constâncio: “Até 2010, a

evolução do país foi muito positi-

va. O que correu mal foi a resposta

da Europa à crise das dívidas sobe-

ranas, que afectou em particular

certos países da zona euro, entre

eles Portugal. As coisas podiam ter

tomado outro caminho. Um cami-

nho que reconhecesse a assimetria

que há desde início entre a periferia

e o centro. As principais decisões

foram tomadas segundo o princípio

‘cada um por si’.”

— Alexandre Quintanilha: “Gran-

de falhanço: é capaz de ser a justi-

ça. Como se vê. Portugal continua

a ser muito individualista e tem di-

fi culdade na interdisciplinaridade.

Pomos pessoas da Filosofi a a falar

com um cientista e há sempre um

arrogante que faz troça, que acha

que o outro não sabe o que está a

dizer. Educação: é mentira que a

escola pública seja má. Há de tudo,

claro. Mas em todas as turmas que

passaram por mim havia pessoas

excepcionais.”

— Maria de Fátima Bonifácio:

“A democratização do ensino foi

calamitosa. Dizer que é a geração

mais bem preparada de sempre dá-

me vontade de rir. Fui professora

universitária de 1980 a 2008. As

pessoas podem ter diplomas que

atestam a sua escolaridade, mas o

nível de ignorância é assustador. Se

As pessoas andam tristes, estão a engordar, a envelhecer, têm sapatos cambados, roupa puída, semblantes zangados. Os doentes dizem: ‘Tenho diabetes, hipertensão arterial e insuficiência cardíaca. Deste três, qual é o menos grave? Porque só tenho dinheiro para comprar medicamentos para dois.’João Luís Barreto Guimarães médico

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houver 15% de alunos excelentes, é

fantástico.”

— Nick Racich: “A confi ança na

justiça está abalada. Nos EUA, os

Madoff vão para a prisão por 150

anos. Em Portugal, o povo tem a

noção de que ao tubarão não acon-

tece nada. Que o tubarão se safa. Os

políticos estão a subestimar a im-

portância da confi ança na vida das

pessoas. O sentimento de injustiça

cria zanga, desapontamento.”

— Maria de Lurdes Rodrigues: “As

ambições e expectativas vão sen-

do actualizadas, reajustadas. Todos

os estudos apontam para ter sido

o sector da justiça aquele em que

a mudança falhou.”

— Pedro Magalhães: “É normal o

cepticismo em relação à política, é

saudável. Onde não vejo tanta saú-

de é na desconfi ança em relação à

justiça. Confi am na justiça 28% dos

inquiridos. Na Dinamarca, confi am

84%. (Dados de 2010.) Isto é mui-

to grave e preocupante. Tenho de

confi ar na justiça para resolver os

problemas que tenho na relação

com os outros, com o Estado. Se

não confi o na justiça, o que é que

sobra? Na sondagem que se apre-

sentou na Gulbenkian, 77% acham

que estamos pior agora do que no

antigo regime no que diz respeito

à corrupção; 81% acham que es-

tamos pior na criminalidade e na

segurança.”

— João Taborda da Gama: “O 25

de Abril chega tarde. Se tivéssemos

tido uma revolução dez, quinze

anos antes tínhamos tido um de-

senvolvimento mais sustentado.

Foi tudo feito muito à pressa por-

que teve de ser tudo feito muito à

pressa. Por causa da Europa (que

era o nosso quadro institucional

e geoestratégico). Isso vê-se, por

exemplo, no desastre urbanístico

de Portugal. A marquise é o símbolo

desse desenvolvimento. Outros pés

de barros: como povo, como comu-

nidade, não fomos exigentes com

o investimento público, as rendas

excessivas, as instituições.”

— Henrique Granadeiro: “A classe

média, conquista de Abril, está a

sair pela porta dos fundos. O ar do

tempo é claramente de fi m de regi-

me. As pessoas não têm confi ança

no Governo nem esperam grande

coisa da oposição, e não olham pa-

ra o Presidente da República como

defensor das instituições. Estamos

a viver num puro sistema tecnocrá-

tico. Um sistema em que as deci-

sões são tomadas mas onde não

há política. Faz-me lembrar a frase

que um anarquista mexicano pôs

num mural: ‘Basta de realizações,

dêem-nos promessas.’ As pessoas

precisam de um discurso político

portador de alguma esperança. E

mesmo de alguma ilusão.”

24.Ainda que continue-

mos a ser Fátima, Fado

e Futebol, não somos

da mesma maneira Fátima, Fado

e Futebol. O Fado é Património

Imaterial da Humanidade, Camané,

Carminho e Mariza enchem plateias

no mundo todo. José Mourinho foi

o melhor treinador do mundo,

Cristiano Ronaldo é o melhor jo-

gador do mundo. Fátima continua

cheia, com uma basílica nova, mas

o peso da religião é outro.

João Taborda da Gama foi discí-

pulo de Saldanha Sanches, consul-

tor de Cavaco Silva na presidência,

tem cinco fi lhos. Não recebeu dos

pais, Jaime Gama e Alda Taborda,

uma educação religiosa. Converteu-

se ao catolicismo na universidade.

“Hoje, a religião é um fenómeno

mais refl exivo e menos ritualístico.

Há uma queda dos níveis de par-

ticipação religiosa, há uma secu-

larização da sociedade, como em

toda a Europa. Mas aqueles que têm

uma vivência religiosa têm-na de

uma forma menos automática. É

uma religião mais vivida, mais es-

piritual.”

E agora também temos Manoel de

Oliveira, Paula Rego, Saramago, Siza

projectados no mundo todo, cientis-

tas entre os melhores do mundo. Em

muitas disciplinas estamos entre os

melhores do mundo.

João Constâncio: “Quando co-

mecei a dar aulas, em 96, fazia o

doutoramento quem era profes-

sor universitário. Tudo isso mu-

dou imenso. A universidade pro-

duz uma elite, que é pequena, mas

que apesar de tudo é muito maior

do que era, e que tem uma dimen-

são internacional, está inserida em

redes internacionais de investiga-

ção.”

25.O 25 de Abril foi a inven-

ção do dia claro, para

glosar o título de Almada

Negreiros. Há muito que se perdeu

a capacidade de sonhar, o impulso

vital da juventude. O povo voltou a

cantar Grândola Vila Morena. Lídia

Jorge escreve em Os Memoráveis,

livro-olhar sobre o 25 de Abril, que

precisamos de uma nova canção.

Escreve também: “Acha, então, que

a mente humana está defi nitivamen-

te formatada para se esquecer do

bem? Para se esquecer dos momen-

tos em que o anjo da alegria passa

pelo mundo?”

É isso. Passou por nós o anjo da

alegria. Apesar de tudo, foi muito

bonita a festa, pá. Resta saber co-

mo vamos cumprir o Portugal que

falta.

A classe média, conquista de Abril, está a sair pela porta dos fundos. As pessoas não têm confiança no Governo nem esperam grande coisa da oposição, e não olham para o Presidente da República como defensor das instituições. Estamos a viver num puro sistema tecnocrático. Um sistema onde as decisões são tomadas mas onde não há políticaHenrique GranadeiroCEO e chairman da PT

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BalançoComo se fez um país democrático, as conquistas e os fracassos Págs. 2 a 9

FOTO

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Valeu a penaa festa, pá

1972

2013