tinta e dor: a prÁtica da tatuagem na ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e...

94
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS FAFIC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PPGCISH THASSIO MARTINS DE OLIVEIRA DIAS TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE Mossoró, RN 2014

Upload: lenhan

Post on 25-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – FAFIC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS –

PPGCISH

THASSIO MARTINS DE OLIVEIRA DIAS

TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA CONSTRUÇÃO DA

IDENTIDADE

Mossoró, RN

2014

Page 2: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

THASSIO MARTINS DE OLIVEIRA DIAS

TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA CONSTRUÇÃO

DA IDENTIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais e Humanas da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte,

como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Ciências Sociais e humanas.

Área de Concentração: Cotidiano, identidades e

subjetividades.

Orientadora:

Dra. Maria Cristina Rocha Barreto

Mossoró, RN

2014

Page 3: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

Dias, Thassio Martins de Oliveira.

Tinta e dor: a prática da tatuagem na construção da identidade. / Thassio Martins de Oliveira Dias. – Mossoró, RN, 2014. 94 f. Orientador(a): Profa. Dra. Maria Cristina Rocha Barreto Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais e Humanas). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas.

1. Identidade - Construção - Dissertação. 2. Tatuagem - Corpo. 3. Poder. I. Barreto, Maria Cristina Rocha. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título.

UERN/BC CDD 305.3

Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Page 4: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão
Page 5: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

Em memória de Francisco de Assis, Chicão.

Page 6: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

AGRADECIMENTOS

À CAPES e CNPQ pelo suporte financeiro que possibilitou este trabalho.

À Prof.ª Dra. Maria Cristina Rocha Barreto, pela aposta feita na presente pesquisa e

pelas orientações que tiveram grande peso na construção deste trabalho.

Aos professores e professoras do PPGCISH, que possibilitaram, direta e

indiretamente, a minha formação enquanto pesquisador.

À todas as pessoas que tornaram possível esta pesquisa, em especial a Joaquim, Luan,

Jean e a todos os outros tatuados, pela confiança e empolgação em todas as conversas que

tornaram esta pesquisa possível.

À Chicão, por ter aberto as portas do seu estúdio, pela confiança e camaradagem.

Page 7: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

“A profundidade da pele é hospitaleira para

todos os significados.”

(David Le Breton)

Page 8: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

Tinta e dor: a prática da tatuagem na construção da identidade.

RESUMO

A prática da tatuagem encontra-se cada vez mais difundida em nossa sociedade ocidental

urbana, não apenas enquanto um desejo de embelezamento corporal, mas principalmente

atrelada à ideia de distinção do outro, do comum. As marcas corporais são encaradas como

uma forma de singularização por muitos indivíduos, uma maneira de cristalizar em si uma

identidade escolhida, e por esta via (re)significando o próprio corpo. O presente trabalho visa

discutir o papel da tatuagem na construção da(s) identidade(s) dos indivíduos que se utilizam

desta prática, buscando compreender de que maneira esta prática se torna uma realização de

um desejo que “não tem preço”, constituindo uma marca de sua autonomia corporal através de

um procedimento estético, onde a ressignificação da dor se torna uma forma de superação, ao

mesmo passo que uma evidência para si, funcionando como atestado de que se está a altura

deste desafio. O corpo é percebido enquanto um território a ser conquistado, geograficamente

pensado enquanto potencializador das marcas inscritas, as quais são estrategicamente

dispostas, configurando um jogo de sedução onde se fundamenta uma estética da presença. A

busca por um traço singular e único é encarado como uma forma de diferenciação e

individualização, uma impressão de traços primordiais à(s) identidade(s). Através deste

prisma, discutiremos a noção de corpo e como este se constitui dentro das relações de poder e

saber, as quais buscam o controlar através de uma padronização. Discutiremos também a

noção de identidade, na medida em que esta se encontra inserida dentro de padrões culturais e

linguísticos que tornam possível a sua representação, e como esta noção tornou-se

fragmentada e múltipla em nossa sociedade ocidental contemporânea. A tatuagem atuaria para

estes indivíduos enquanto uma prática de liberdade sobre si, na qual exercem uma autonomia

sobre seus corpos, buscando imprimir em sua pele desejos, gostos e memórias no intuito de

cristalizar uma identidade efêmera, objetivando através das marcas corporais seus processos

de subjetivação.

Palavras-chave: Tatuagem. Corpo. Identidade. Poder.

Page 9: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

Ink and pain: the practice of tattooing in identity construction

ABSTRACT

The practice of tattooing is increasingly widespread in our urban Western society, not only as

a desire for body embellishment , but mostly tied to the idea of distinction from the other ,

from ordinary. The body marks are seen as a way of singling out individuals for many , a way

to crystallize itself a chosen identity , and by this means redefining the body. This paper aims

to discuss the role of tattooing in the identity( s ) construction( s ) of those who uses this

practice, seeking to understand how this practice becomes a fulfillment of a wish that is

"priceless " , constituting a mark of their bodily autonomy through an aesthetic procedure ,

where the reframing of pain becomes a way of overcoming the same whereas evidence for

themselves , functioning as stating that this is the height of this challenge . The body is

perceived as a territory to be conquered , geographically thought while potentiating the

registered marks , which are strategically placed , setting up a game of seduction which is

based on an aesthetic presence . The search for a single trait and is only seen as a form of

differentiation and individualization , an impression of the primary traits of identity ( s ) .

Through this prism , we discuss the notion of the body and how it is constituted within

relations of power and knowledge , which seek control through standardization . Also

discussed the notion of identity , as it is embedded within cultural and linguistic patterns that

make possible their representation , and how this notion has become fragmented in our

contemporary Western society . The tattoo works for these individuals as a practice of

freedom on himself, which exert autonomy over their bodies , seeking to print on your skin

desires , tastes and memories in order to crystallize an ephemeral identity , aiming through the

body marks its processes of subjectivation

Keywords: Tattoo. Body. Identity. Power.

Page 10: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

LISTA DE FOTOGRÁFIAS

Figura 1 - A friend ship never sinks, tatuagem no peito de Andreas simbolizando as

amizades. ................................................................................................................................. 41

Figura 2 - Tatuagem de Jean com o símbolo da banda norte americana Foo Fighters. .. 42

Figura 3 - Faz o que tu queres, pois é tudo da lei. Tatuagens de Emmeson que

contemplam o símbolo e parte da canção sociedade alternativa de Raul Seixas. .............. 44

Figura 4 - Tatuagem de Danie no antebraço. ....................................................................... 50

Figura 5 - Tatuagem no antebraço de Ivickson. Um estilo de vida impresso na pele. ..... 56

Figura 6 - Tatuagem da ilustração feita por Robert Crumb de Franz Kafka. .................... 65

Figura 7 - 1º tatuagem de Danie. ........................................................................................... 67

Figura 8 – Tatuagens de Andreas com os símbolos das bandas Misftis e Municipal Waste.

.................................................................................................................................................. 69

Figura 9 - Tatuagem exclusiva feita para Joaquim. ............................................................ 75

Figura 10 - Tatuagens luck 7, fate nos dedos de Luan. ...................................................... 78

Page 11: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 11

1 CORPO E MARCAS CORPORAIS ........................................................................ 22

1.1 Breve olhar sobre o corpo no ocidente ............................................................... 22

1.2 Um corpo modelável ........................................................................................... 25

1.3 Identidades flutuantes ......................................................................................... 26

1.4 Tatuagem contemporânea: uma breve história ................................................... 32

1.5 Novos contornos da tatuagem ............................................................................. 35

2 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE .................................................................... 38

2.1 Identidade, significado e linguagem ................................................................... 38

2.2 Representação e diferença .................................................................................. 43

3 RISCANDO IDENTIDADES ................................................................................... 48

3.1 Corpos (in)disciplinados ..................................................................................... 48

3.2 Corpo, poder e sujeito em Foucault .................................................................... 51

3.3 Cuidados de si e liberdade .................................................................................. 56

3.4 A moderna bioascese e as bioidentidades ........................................................... 60

3.5 Horizontes do corpo ............................................................................................ 62

3.7 Um prazer doloroso ............................................................................................ 70

3.8 A busca pelo diferencial ..................................................................................... 73

3.9 O contato com o tatuador .................................................................................... 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 86

ANEXOS ....................................................................... Erro! Indicador não definido.

Page 12: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

11

INTRODUÇÃO

O corpo humano é algo fascinante, único e comum em sua estrutura biológica, porém

não se limita apenas às características de natureza fisiológica. Este substrato material pode ser

capaz de possibilitar formas diversificadas de existência. Seu torso e membros, ações e

práticas, são um terreno fértil às mais variadas construções simbólicas, edificações que visam

uma composição de sentido, significado, valor. Por meio deste viés, as modificações corporais

podem ser consideradas enquanto práticas que visam moldá-lo, e desta maneira recompor sua

significação.

As culturas modificam os corpos, desde maneiras mais superficiais por meio de

vestimentas, pinturas corporais e cortes de cabelos, até transformações mais agudas através de

ferimentos, deformações, pigmentações: perfurar e escarificar a pele; alargar os lábios ou os

lóbulos auriculares; imprimir de forma indelével figuras e formas no corpo. Estas são algumas

das formas de interferir diretamente - e indiretamente - na experiência corporal e, assim, na

própria existência do ser.

Vivemos em uma sociedade cada vez mais voltada para o corpo, constituindo um

verdadeiro culto a este. A busca pela beleza na sociedade contemporânea tem levado vários

sujeitos a exercerem inúmeras práticas de modificações corporais no intuito de realçar

características ou esconder imperfeições. Ideais de beleza são veiculados através das mais

variadas mídias e a busca pelo corpo perfeito faz parte do cotidiano para muitas pessoas.

Através de exercícios, o body-building busca construir o corpo através de atividades físicas,

malhando para exaurir sinais de gordura e se livrar de fraquezas; os tratamentos biomédicos

buscam retardar o máximo possível os efeitos do envelhecimento e até mesmo a morte; as

maquiagens cumprem o papel de disfarçar ou realçar traços faciais; as cirurgias plásticas

visam mudar as silhuetas do corpo e o rosto de acordo com os anseios de indivíduos

insatisfeitos com suas formas. Dentre outras várias maneiras de se relacionar com o corpo e a

ideia construída de si, as mais variadas formas de modificações corporais fazem uma

reivindicação por uma identidade, cada vez mais efêmera e mutável na presente sociedade.

Nesta conjuntura, a tatuagem, enquanto uma prática de modificação corporal, pode nos

proporcionar uma aproximação do universo particular dos indivíduos, possibilitando enxergar

Page 13: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

12

através de um prisma que dá acesso às constelações simbólicas dos sujeitos, na qual

constroem suas relações, tanto com a sociedade na qual se encontram “suturados” quanto

consigo mesmos.

O universo das modificações corporais está cada dia mais difundido na sociedade

urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas

como algo tão estranho, anormal ou exótico, possuindo destaque em revistas especializadas e

ganhando visibilidade através de novelas e filmes. O crescente número de pessoas que fazem

tatuagem demonstra que tal prática encontra-se cada vez mais legitimada no atual cenário

citadino, sendo considerada enquanto mais um adorno possível para embelezar o corpo, assim

como uma forma de ressignificação da própria experiência corpórea.

Esta amplitude da prática da tatuagem vem se tornando cada vez menos associada à

marginalidade e ao comportamento desviante, características estigmatizantes que a

acompanharam no decorrer da história, sendo hoje mais e mais relacionada a um estilo de

vida, a uma busca por diferenciação e singularização, assim como a um ideal de beleza.

Contudo, por mais que esta prática se encontre mais aceita e difundida, certos limites

ainda circunscrevem os padrões que a balizam, instituindo noções do que pode ser

considerado normal e admissível. Desta maneira, a pele toma proporções geográficas,

dividindo os corpos em lugares aceitáveis ou reprováveis para a impressão das tatuagens. O

corpo se torna um território e a cartografia das tatuagens assume contornos na maioria das

vezes visíveis aos olhos dos demais, configurando uma outra dinâmica em relação aos corpos

não tatuados, onde as marcas corporais ingressam em um jogo que busca a atração do olhar

alheio.

A decisão de marcar a pele não se faz através de um processo indolor. Ao contrário,

leva o sujeito a enfrentar uma agonia, característica intrínseca a esta prática, variando de

lugares onde é suportável até lugares aonde chega a causar um completo desconforto. O

enfrentamento da dor se torna uma superação pessoal, uma glória individual por sobrepujar o

que se constitui uma barreira, uma vez que vivemos em uma sociedade que, cada vez mais, se

distancia de tudo aquilo que venha a proporcionar uma aflição.

Estratégias, subjetivação, enfrentamento da dor, realizações de desejos, a experiência

da tatuagem não se faz no simples encontro da agulha com a pele. A vontade, a seleção do

desenho, a procura pelo tatuador, o olhar do outro, uma série de fatores rodeiam e permeiam a

experiência da tatuagem, que é vivenciada pelo indivíduo.

Page 14: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

13

Assim, algumas inquietações servirão de fio norteador para nos guiar em um mundo

muito mais profundo do que as agulhas podem penetrar na pele. Então, o que mais esses

corpos marcados nos guardam? De que maneira esses corpos se construíram em nossa

sociedade? Quais as motivações e intensões que entremeiam os desenhos e locais escolhidos?

De que formas as experiências de vida invadem os poros destes indivíduos? E como, através

das modificações corporais, o indivíduo se relaciona consigo e com a sociedade em que se

encontra? Tais implicações serão esclarecidas à medida que os horizontes forem sendo

desbravados, clareando nossa visão pelo mundo de marcas escolhidas, símbolos, formas. Ao

buscar entender esta prática adentramos no âmbito da própria vivência humana em sua una

pluralidade.

Assim, nos valemos de uma das particularidades desta prática na busca de algo para

além dos desenhos impressos na pele: a experiência vivida. Nesta mesma acepção, as relações

construídas juntamente com a tatuagem também irão se configurar enquanto norte para nossos

questionamentos acerca desta prática, proporcionando-nos a compreensão de caracteres

modelados e modeladores entre indivíduo e sociedade.

A presente pesquisa tem como panorama geral a compreensão das relações

estabelecidas pelos sujeitos a partir da tatuagem, identificando de que maneira as experiências

vividas tomam contornos pigmentados e se tornam parte importante de suas subjetivações, e

assim, da própria construção de suas identidades. A partir deste prisma objetivamos entender

como os indivíduos constroem uma imagem de si através das tatuagens, e de que maneira o

corpo é utilizado como terreno geográfico e estratégico para a distribuição dos desenhos

escolhidos. Atentamos também para a maneira como a ressignificação da dor se torna uma

forma de superação, ao mesmo passo que uma evidência para si, funcionando como um

atestado de que se está a altura deste desafio.

Por este viés, acreditamos que a tatuagem deva ser encarada, não somente pela

perspectiva do tatuado ou do tatuador, mas compreender a construção dos laços de confiança

entre os sujeitos e subjacentes a esta relação.

Este estudo visa, então, contribuir para a construção de um saber a respeito do corpo, a

respeito das construções simbólicas e identitárias as quais a tatuagem se faz denominador

comum, e também para a ampliação dos conhecimentos que constituem o ser humano em suas

relações e representações com a sociedade e consigo.

Page 15: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

14

O mundo das tatuagens é amplo e diverso, possuindo uma vasta gama de estilos que

variam desde modelos mais clássicos como, por exemplo, a oriental e a old school, até novas

formas de aplicação da técnica em busca de um traço singular que se destaca dos outros, tendo

como inspiração obras de artes plásticas. As características que dizem respeito a esta prática

caminham de maneira a convergirem, partilhando motivações e interpretações, circulando

dentro de um campo comum onde a busca por um atrativo, uma identidade e uma

originalidade permeiam os discursos.

A passagem para estas compreensões foi possível graças a uma bibliografia que serviu

como base para nosso trabalho, elucidando nosso caminho dentro da prática da tatuagem.

Dentro desta bibliografia damos destaque a dois trabalhos efetuados em Florianópolis, SC. O

primeiro, desenvolvido por Andrea Lisset Perez Fonseca (2003) que fez uma etnografia sobre

o novo contexto da prática da tatuagem, evidenciando relações construídas entre tatuados e

tatuadores neste meio, demonstrando que a tatuagem se configura enquanto uma normalidade

estética e vivencial na contemporaneidade, assim como uma nova forma de construção da

subjetividade. E a outra importante contribuição é creditada ao trabalho de Zelia Costa (2004)

que demonstra a transição da prática da tatuagem enquanto uma atividade marginal, feita em

lugares improvisados, para uma atividade comercial e legitimada no meio urbano

contemporâneo, possuindo lugares devidamente pensados para o exercício desta prática.

A antropologia sempre se debruçou sobre as mais diversas modificações corporais,

buscando compreender as dinâmicas envolvidas nestas práticas e como estas se encontram

ligadas a construções particulares que moldam a vivência humana. Nesta perspectiva

buscamos respaldo nos estudos antropológicos de Débora Krischke Leitão (2004) e David Le

Breton (2004), os quais fazem referência à mudança de significado da tatuagem na

contemporaneidade, visto que suas análises apontam para uma transição desta prática

enquanto pertencente a indivíduos excluídos socialmente para uma forma de expressão da

subjetividade, se convertendo em um ideal de embelezamento ligado a noção de autonomia

sobre a anatomia e a singularidade.

Os estudos sobre o corpo são primordiais para uma melhor compreensão da dimensão

alcançada pelas marcas corporais. Desta forma as observações de Marcel Mauss (2003) nos

chamam a atenção para a importância da análise do corpo e da corporeidade enquanto

pertencentes ao âmbito das ciências sociais, ratificando os estudos de David Le Breton (2006;

2011) e José Carlos Rodrigues (2006), os quais sublinham como o corpo pode assumir um dos

principais vetores para construções simbólicas e sociais, imbuídos em crenças e

Page 16: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

15

representações que estão na base da vida social, as quais possuem diversas formas e

percepções que dizem respeito à época e a cultura a qual se encontram, convergindo desta

forma com a perspectiva apontada por Roy Porter (1992) da qual o corpo deve ser inserido na

história para que sua compreensão seja possível.

A contribuição do enfoque dado por Pierre Bourdieu (2001) à experiência deste corpo

no mundo, da capacidade de aprendizado relativa a esta relação confrontante do ser

corporificado com a sociedade, demonstra que este vínculo não se desenvolve de forma

passiva, mas em um elo estruturado e estruturante, que o produz e vem a dar condições para

que ele se produza, tornando-se, na perspectiva de Denise Bernuzzi Sant’anna (2005), difícil

de limitar este corpo a apenas uma acepção.

Inserimos este debate à ótica de Michel Foucault (2004), percebendo como estes

corpos se encontram atrelados a relações de poder com o intuito de docilizar e adestrá-los,

minando e controlando as possibilidades que estes corpos podem assumir em nossa sociedade.

Os conceitos de biossociabilidade e bioascese expostos por Francisco Ortega (2008) nos

ajudam a compreender os contornos que o corpo ganha na contemporaneidade, onde o

discurso do risco baliza toda a relação do indivíduo consigo mesmo.

Buscamos da mesma forma auxílio nos debates acerca da identidade através do viés

dos estudos culturais, nos respaldando nos trabalhos de Anthony Giddens (1991; 2002) e

Stuart Hall (2011) para compreendermos os fatores que proporcionaram as transformações na

noção de identidade na modernidade. Correlatos a estes conhecimentos, os estudos de Tomaz

Tadeu da Silva (2014), Kathryn Woodward (2014), Fabiano Rocha Flores (2011) e Manuel

Castells (1999) nos auxiliam no entendimento da noção de identidade em sua relação com a

cultura, com a linguagem, com a diferença e com a representação.

Tendo em vista uma análise qualitativa, nos apoiamos na observação participante

enquanto método empregado na pesquisa, adotando a técnica da entrevista direta baseada em

questões semiestruturadas. Devido à natureza da pesquisa, nos limitamos a um universo que

compreendeu a análise de dez entrevistas no total.

O ponto de partida se deu no 1º Fest Tattoo Mossoró, que ocorreu nos dias 11 e 12 de

Janeiro de 2014 no Hotel VillaOeste, em um espaço preparado para receber eventos. O

festival contou com a participação de vários tatuadores da região nordeste, em sua grande

maioria do próprio estado do RN, e de um tatuador internacional vindo de Portugal. O

ambiente montando proporcionava a cada tatuador um estande para que suas atividades

Page 17: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

16

fossem praticadas, ao mesmo tempo em que uma curiosa plateia circulava o local, parando e

observando linhas sendo traçadas, borrões que revelavam cores e formas, ao som do

barulhinho das máquinas de tatuagem que ecoava freneticamente pelo amplo espaço, povoado

por um público diverso de não tatuados e tatuados, homens e mulheres, crianças e adultos,

proporcionando um clima de confraternização.

A rotatividade de pessoas era constante, mas culminou com bom público para o

julgamento das melhores tatuagens. As premiações eram divididas por categorias, cada qual

relacionada a um estilo de tatuagem. Em um desses certames, o de melhor old school, o

tatuador Chicão havia agradado mais aos juízes.

Almejando uma melhor compreensão acerca do mundo da tatuagem, objetivamos

entender alguns aspectos que dizem respeito à figura do tatuador. Desta forma, buscamos esta

análise através da perspectiva de Chicão, o qual possui um estúdio de tatuagem há sete anos

na cidade de Mossoró, RN. Atualmente se encontra em seu segundo endereço, onde também

faz residência, dividindo o espaço de moradia com mais duas pessoas. Francisco de Assis, ou

simplesmente Chicão (28), possui pouco mais de sete anos de carreira no ramo, começando a

desenvolver sua técnica impulsionado pela curiosidade e de maneira autodidata por volta dos

20 anos de idade, quando residiu em São Paulo, SP. Nesta fase inicial utilizou sua própria

pele como área de aprendizado, prática comum entre os tatuadores quando iniciantes.

Enxergar a tatuagem por meio dos relatos do tatuador foi de suma importância, uma

vez que é através dele que a tatuagem tome contornos na pele, estabelecendo um contato

íntimo por meio de uma prática onde dor e prazer dialogam.

Este evento também proporcionou o reencontro com vários colaboradores da minha

primeira pesquisa sobre marcas corporais, realizada ao final da graduação em 2007, assim

como a aproximação com outros até então desconhecidos.

O interesse pelo mundo das modificações corporais não é algo completamente novo a

minha vivência, pois entrei em contato com este universo ainda muito cedo em minha vida,

através dos mais variados meios midiáticos como revistas, televisão, internet etc. Esta

curiosidade foi em parte sanada ao final do curso de graduação em Ciências Sociais, onde fiz

minha primeira investida no campo das modificações corporais, buscando compreender a

tatuagem e seus significados dentro do cenário musical underground na cidade de Mossoró.

Esta pesquisa proporcionou que minha curiosidade acerca do mundo das tatuagens tomasse

formas em meu próprio corpo.

Page 18: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

17

Este episódio se transformou em um dos grandes desafios a serem superados nesta

pesquisa, pois esta prática não me é estranha devido ao fato de possuir um número

significativo de tatuagens. Porém, tal exercício foi primordial para a construção deste

trabalho, uma vez que a própria experiência na prática da tatuagem ajudou a compreender esta

realidade, servindo ao final como uma forma de autoconhecimento.

O período de entrevistas se estendeu por quatro meses, de Janeiro até Maio de 2014,

pois, à medida que as conversas se construíam, nossos colaboradores demonstraram interesse

em indicar alguns de seus amigos que também possuíam tatuagens. Esta dinâmica

proporcionou o acompanhamento de alguns destes sujeitos em situações cotidianas,

participando de conversas informais em grupos diversos, nos quais se encontravam pessoas

tatuadas na grande maioria das vezes. Retornei posteriormente durante mais dois meses, no

período de Julho e Agosto, para maior aprofundamento.

O 1º Fest Tattoo Mossoró contava com uma trilha sonora, da qual Mateus ficara

encarregado de fazer no primeiro dia, pois no segundo dia ele iria participar como “tela” para

um dos tatuadores. Mateus (20) é estudante e já possui outras tatuagens. Sua 1º tatuagem foi o

ano do seu nascimento since 1994, e iria fazer sua 4º tatuagem na convenção.

E a partir de uma rede de amizades tecidas outrora, muitos dos colaboradores foram

sendo apresentados, o que nos levou a um novo universo de informantes. Joaquim (26) é

estudante de pós graduação e integrante de uma banda de rock, suas tatuagens são aparentes

caso não use camisas de mangas longas, localizadas no ante braço, e são expressão de sua

paixão por literatura e música. Luan (23), supervisor de operações, compartilha a semelhança

com Joaquim de também possuir uma banda de rock, porém, suas tatuagens seguem um estilo

de “tatuagem de cadeia”, propositalmente mal feitas seguindo o estilo old school, além de ter

tatuagens em um lugar incomum: nos dedos das mãos.

Danie (22), da mesma forma que Luan, é supervisora de operações, sendo inclusive

colegas de trabalho. Ela possui quatro tatuagens, sendo que apenas duas são aparentes em

seus ante braços, sendo uma delas sua 1º tatuagem feita aos 13 anos de idade, juntamente com

sua mãe. Emmesson (23) é estudante de engenharia e trabalha como gerente em uma loja no

shopping da cidade, começou as modificações corporais com a utilização de piercings, e sua

primeira tatuagem foi uma homenagem a Raul Seixas, com parte de sua música sociedade

alternativa. Anderson (23), estudante de veterinária, possui uma tatuagem que se estende

pelas suas costas e toma parte de uma de suas pernas, feita quando morava em Minas Gerais,

Page 19: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

18

aos 18 anos. Todos eles trabalharam juntos durante um bom tempo na loja em que Emmesson

viria a se tornar gerente, este fato fez com que eles sempre se relacionassem em suas falas,

citando uns aos outros como parte de suas narrativas.

Marcos (21) é amigo de Danie, natural do Rio de Janeiro. Além de trabalhar também

como supervisor de operações, canta pela noite em bares e restaurantes da cidade. Possui

quatro tatuagens, uma delas que toma toda a parte interna de seu ante braço com a frase have

Faith, juntamente com o símbolo da banda Evanescence localizada em seu pulso.

Jean (27) é estudante e professor de inglês, possui tatuagens estrategicamente

localizadas de modo a facilitar serem cobertas, alegando que faz suas tatuagens para si e que

não faz questão de mostrá-las. Suas tatuagens envolvem homenagens a bandas das quais gosta

e que marcaram simbolicamente sua vida. Esta motivação para as marcas corporais também é

partilhada pelo gerente de vendas Andreas (20), o qual tem o intuito de tatuar símbolos de

bandas que influenciaram seu modo de ser, possuindo 9 tatuagens ao todo, sendo duas delas

de bandas de rock. Suas outras tatuagens são pela admiração da arte, pela beleza do desenho,

possuindo como característica o fato de todas terem sido feitas por tatuadores diferentes.

Ivickson (38), professor de filosofia, possui várias pequenas tatuagens, algumas

visíveis, outras fáceis de esconder, viveu sua juventude em João Pessoa/PB onde andava de

skate e frequentava festas de punk rock hardcore, experiência que resolveu marcar em sua

pele (foto ). Possui um berimbau tatuado em sua perna como forma de homenagear o esporte

que pratica hoje, e em suas horas vagas também surfa, outro esporte que irá se transformar em

futura tatuagem.

Nossos informantes não formam um grupo coeso, alguns deles não se conhecem,

possuindo como único elo lugares em comum como eventos de rock ou outras manifestações

artísticas. A grande parte das entrevistas se deu na casa dos informantes, outras em locais

públicos como universidades e escolas, entre uma aula e outra. Um ponto a se destacar sobre

as entrevistas é a aura de empatia que as permeou, muito pelo fato de eu possuir tatuagens,

que ficavam visíveis nos momentos das conversas, onde em vários momentos eu era incluso

em seus argumentos como um “igual”.

As entrevistas tomaram um tom de narrativas, onde os indivíduos buscavam

constantemente suas experiências vividas, recordando episódios de suas vidas para então

chegarem as suas conclusões e explicações. Destaco a importância para este fato, pois, de

acordo com Marvasti (2003), a análise das narrativas não se limita ao exame das respostas

Page 20: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

19

dadas sobre a vida do informante, sendo ampliada para um melhor entendimento das

experiências vividas pelo informante.

Acredito que através da narrativa entraremos em contato com o universo de criações

simbólicas dos informantes, proporcionando-nos sua interpretação da realidade e das

experiências vividas, demonstrando-nos para além de sua narratividade as relações que

estabelece com a sociedade, com os outros e consigo mesmo.

Através da prática da narrativa iremos focar simultaneamente o que as pessoas dizem

ou fazem e como elas tornam esses discursos ou ações significativas.

A suposição aqui é de que a vida social, e narrativas em particular, são moldadas

através de uma série de práticas e condições que as tornam significantes. A análise

visa demonstrar como a habilidade de falar e circunstancias concretas da vida social

se juntam para formar a realidade social (Idem., Ibid., p.97 tradução nossa).

As narrativas estão diretamente ligadas às experiências pessoais, dando acesso a

detalhes dos acontecimentos e ações. Não pode ser encarada como apenas uma listagem de

acontecimentos, mas uma maneira de ligá-los cronologicamente dando sentindo aos

acontecimentos (BAUER; GASKELL, 2003).

[...] o sentido não está no “fim” da narrativa; ele permeia toda a história. Deste

modo, compreender uma narrativa não é apenas seguir a seqüência cronológica dos

acontecimentos que são apresentados pelo contador de histórias: é também

reconhecer sua dimensão não cronológica, expressa pelas funções e sentidos do

enredo (Idem., Ibid., p.93).

É através do enredo que a narrativa ganha coerência e sentido, fornecendo o contexto

para o entendimento dos acontecimentos, dos atores, descrições, objetivos, moralidades e

relações que formam a história. “Como a narrativa é contada irá depender crucialmente dos

recursos culturais disponíveis.” (ELLIOTT, 2005, p.127, nossa tradução).

Para uma melhor sistematização das informações tecidas dividimos o presente trabalho

em três capítulos, buscando confrontar as ideias construídas a partir do embasamento

bibliográfico com a realidade pesquisada. Na primeira parte contextualizaremos, de forma

breve, as ideias ligadas ao universo do corpo, da identidade e da tatuagem, nos apropriando de

suas construções históricas enquanto embasamento para a compreensão das atuais

representações que desaguam na contemporaneidade. Por esta via abordaremos a construção

da noção de corpo, buscando demonstrar de que forma se deu seu entendimento dentro da

perspectiva das ciências sociais e como esta compreensão possibilitou novas interpretações

Page 21: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

20

sobre o que pode ser considerado enquanto corporeidade, inserindo o corpo em um contexto

cultural e social que o cria, o molda, desenhando seus contornos junto a uma série de regras e

normas que buscam dar significado a este corpo. Em seguida nos remeteremos à identidade,

objetivando compreender de que maneira esta noção foi sendo construída ao longo da história,

transitando de uma visão que a considerava enquanto uma característica inata e estável ao ser,

a uma concepção flutuante e múltipla da qual se encontra em constante construção. Por este

viés analisaremos quais acontecimentos possibilitaram esta alternância de perspectiva em

relação à identidade e de que maneira ela se encontra relacionada à noção de corpo.

Finalizamos este capítulo expondo, de maneira sucinta, o contexto no qual a prática da

tatuagem se construiu no ocidente, explorando resumidamente sua história de modo a

compreender de que maneira estas marcas corporais se relacionavam a um comportamento

desviante, tornando-se um traço de indivíduos que se encontravam à margem da sociedade.

Por meio deste prisma iremos analisar quais fatores foram significativos para que esta

atividade viesse a se desvencilhar de sua carga histórica estigmatizante, ingressando em um

contexto comercial e legitimado socialmente, tornando-se uma forma a mais de ornamentação

corporal, sendo ressignificada pelos atores sociais em busca de uma distinção ligada a ideia de

singularização do corpo que escapa aos padrões corporais em vigência.

Trataremos no segundo capítulo de algumas das características que constituem aquilo

que conhecemos como identidade, e de que modo a cultura na qual os sujeitos se encontram

inseridos tem papel preponderante em suas construções. Por este viés analisaremos a

intersecção de traços culturais e linguísticos que visam atribuir sentido à vivência humana,

simbolizando o corpo e as ações, neste caso a tatuagem, para dar coerência à vida através de

representações que buscam fixar um discurso na pele destes sujeitos. Da mesma maneira,

buscamos compreender o papel da diferença enquanto uma qualidade significativa para a

ideia de identidade, as quais afirmam e reafirmam relações de poder inseridas nestas

distinções em relação aos corpos. Este panorama se mostra salutar para o entendimento dos

fatores que levaram ao descentramento da identidade, antes vista como uma característica

invariável durante a vida do sujeito e que o acompanharia desde o berço até a morte sem

mudanças significativas, para uma visão onde a identidade se encontra em constante

construção, inserida em um contexto de mudanças radicais no cotidiano e que vem a afetar

aspectos pessoais de nossas vidas.

Iniciamos o terceiro capitulo discutindo, dentro de uma perspectiva pautada nos

pensamentos de Michel Foucault, de que modo a disciplinarização encontra-se atrelada à

Page 22: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

21

noção de sujeito e estas relações de poder tentam sujeitar este corpo em vias de torná-lo dócil,

obediente, domesticado, onde a tatuagem é vivenciada pelo sujeito enquanto um dos meios

possíveis de não ser subjulgado, resistindo a esta formatação e exercendo sua liberdade em

viver este corpo de uma forma única, procurando formas de praticar sua individualidade sobre

si. Se faz salutar destacar de que vivenciamos em uma época em que nossas identidades são

somáticas, no sentido de serem atribuídas ao nosso corpo e pelo nosso corpo, na qual se deve

cuidar deste a todo custo para afastá-lo de qualquer sinal de impotência ou dor. Através desta

concepção, empregada por Francisco Ortega (2008), analisaremos de que maneira a prática da

tatuagem escapa a esses moldes e proporciona ao indivíduo uma vivência desta experiência

corpórea, entrando em consonância com os pensamentos de Pierre Bourdieu (2001) e Denise

Bernuzzi Sant’anna (2005), os quais atribuem a este caráter da presença do corpo no mundo,

logo de sua experimentação, uma constante relação entre estruturas estruturantes e

estruturadas, possibilitando ao sujeito vivenciá-lo enquanto um horizonte a ser descoberto.

Consonante com o exposto, também analisaremos a experiência da tatuagem através de uma

de suas características mais ressaltadas: a dor. A prática da tatuagem faz com que esta

sensação, encarada enquanto algo negativo na sociedade ocidental contemporânea, passa a ser

vivenciada enquanto uma positividade, um obstáculo a ser superado para a aquisição de um

desejo, estabelecendo uma assemelhação com a própria experiência de se estar vivo. Em

seguida, veremos de que forma a ideia de distinção é levada em consideração no que diz

respeito tanto para o tatuado quanto para tatuador, na medida em que ambos buscam um grau

de singularização, de diferenciação nos traços desejados e executados. Por meio deste viés,

buscamos compreender o elo de confiança estabelecido entre tatuado e tatuador, e de que

modo esta relação é negociada levando em consideração os anseios de ambos os atores

sociais. As negociações não se limitam à relação com o tatuador, mas também dizem respeito

à própria sociedade, que impõem padrões de lugares e desenhos a serem tatuados,

segmentando o corpo em lugares aceitáveis e reprováveis.

As marcas corporais não se fazem apenas impressões na pele destes indivíduos, mas

dialogam com toda a experiência do viver, proporcionando uma construção de significados

para brindar suas vidas com o sentido necessário, edificando uma possibilidade de vivenciar

suas corporeidades.

Page 23: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

22

1 CORPO E MARCAS CORPORAIS

Neste capítulo iremos tratar dos aspectos teóricos que envolvem nossa análise.

Partiremos da construção do corpo no ocidente, buscando compreender, de maneira breve, sua

composição e seu diálogo com a cultura, que o transforma, remodela, modifica; e de que

forma as ciências sociais se debruçaram sobre este objeto.

Correlato a esta construção corpórea, visamos abranger a categoria da identidade, uma

vez que é através do corpo que ela toma formatos e é expressa, transmutando o próprio corpo

em prol de um ideal de ser.

Ao fim, dialogaremos com a modificação corporal em destaque no presente trabalho, a

tatuagem. Observando sua história de forma sucinta, iremos vislumbrar sua construção através

dos tempos, e de que forma está se modificou.

Corpo, identidade e modificações corporais caminham juntos para uma compreensão à

cerca do ser humano, que vivi está experiência, que molda seu corpo em busca de uma melhor

relação com sua construção identitária.

1.1 Breve olhar sobre o corpo no ocidente

As ciências sociais, ao definir seu campo de atuação, definem também seu objeto de

estudo, onde foram reservados aos fenômenos superorgânicos, frutos da capacidade humana

de simbolizar, enquanto caberiam às ciências naturais os estudos dos fenômenos naturais.

Desta forma os estudos sobre o corpo não se constituíram como um campo consagrado dentro

da sociologia clássica, ao contrário de outras áreas como a religião e o conhecimento. A esfera

da corporeidade fica então relegada à tutela das ciências biológicas e a área da saúde, e apesar

de ser um objeto de simbolizações, recebendo atenção e menções da antropologia e da

etnografia, o corpo não se constitui como uma área de investigação ou como objeto de estudos

de interesse tanto da antropologia como da sociologia até recentemente (ALBUQUERQUE,

2001).

Page 24: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

23

As representações corporais que experimentamos hoje, e que tem para nós a força de

natureza, foram gestadas apenas há quatro séculos (Id., ibid.). Levando-nos a buscar na

história dos corpos a incorporação de suas percepções para então entender seus contornos

(PORTER, 1992).

De acordo com Le Breton (2011), a visão mitológica da concepção do ser humano que

permeava a Idade Média estabelecia limites aos saberes que diziam respeito ao corpo, pois o

homem era visto como fruto da criação divina, possuindo em si uma sacralidade que impedia

com que este fosse violado. “No universo dos valores medievais e renascentistas, o homem

está tomado pelo universo, ele condessa o cosmo. O corpo não é isolável do homem ou do

mundo, ele é o homem e é, na devida proporção, o cosmos.” (Id., ibid., p.72).

A mudança da concepção acerca do corpo vivenciada durante os séculos XVI e XVII o

ressignifica no Ocidente. A partir de então, o corpo não é mais encarado ao que se é,

irredutível de sua ligação com o divino, mas também ao que se possui. O corpo se torna

objeto, podendo ser submetido à comercialização, vendido, comprado, consumido como uma

mercadoria. Esta ideia do corpo objeto não é uma invenção dos tempos modernos, pois esta

prática é tão antiga quanto a própria civilização. É no seio das sociedades industriais e

urbanas emergentes, porém, que a ideia da similaridade do corpo a uma mercadoria, ou

mesmo a uma máquina, se torna cada vez mais central. Esta nova visão sobre o corpo humano

é fundamental para a composição de um dos pilares para que determinadas classes sociais em

ascensão viessem a estabelecer certo domínio sobre uma parcela de indivíduos, aliando-se aos

avanços e incrementos proporcionados pela ciência e tecnologia, que a esta altura se

encontravam mais laicas e menos místicas (SANT’ANNA, 2005).

Durante o século XIX, a ascensão da burguesia e do pensamento positivista imprimem

seus projetos sociais na fisiologia humana, modelando os corpos através de espartilhos e

extraindo a força nos processos de produção, mecanizando-os para uma maior eficácia e

utilidade (ALBUQUERQUE, 2001).

A corporeidade começa a ser introduzida aos estudos sociológicos e antropológicos

com o ensaio “Técnicas corporais” de autoria de Marcel Mauss (2003), o qual apresenta um

inventário de gestos, técnicas e hábitos corporais. Em seu ensaio, Mauss lembra que até então

tais estudos estavam relegados à categoria de “diversos” dentro dos estudos etnográficos,

revelando assim o caráter introdutório de tal tema no terreno das ciências sociais.

Page 25: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

24

Para a ciência moderna, que tomou por base o método proposto por Descartes e a

máxima atribuída a ele “penso, logo existo” fundamenta a existência no pensamento,

dividindo a realidade em res-extensa (Matéria) e res-cogitans (consciência), fazendo, desta

forma, o corpo enquanto um mero suporte, um objeto no qual a consciência encontra-se

encarnada (REIS, 2011). O corpo estaria em oposição à mente, assim como a natureza estaria

para a cultura ou a razão para a emoção, implicando uma hierarquização onde os primeiros se

encontram inferiores aos seus opostos (ALBUQUERQUE, 2001).

Porém, a dualidade que encontramos referente à distinção corpo/mente aparece muito

antes de Descartes, onde ser humano significava ser uma alma encarnada. Um dos fatores que

contribuíram para que a história do corpo fosse negligenciada encontra suas raízes em nossa

herança judaico-cristã, onde encontramos uma visão fundamentalmente dualista do homem.

Nestas tradições o homem é uma aliança entre alma e corpo, psique e soma, na qual a alma

possui privilegio, deixando em segundo plano o corpo (PORTER, 1992).

Ao direcionarmos nossa atenção para as sociedades mais tradicionais, percebesse que

o corpo é encarado como uma parte do mundo natural, possuindo uma ligação direta ao

cosmos. A própria palavra “corpo” - que para nós não desperta espanto algum - acaba por

atribui uma separação, uma ruptura, onde se coloca uma distinção entre o ser humano e a

natureza, e desta forma é tomada com estranheza aos olhos de muitas comunidades que

possuem uma visão holista, a qual não separa o corpo do ser, uma vez que estes se encontram

integrados a natureza, ao cosmos e a própria comunidade.

Nessas sociedades, as representações do corpo são, de fato, representações do

homem, da pessoa. A imagem do corpo é uma imagem de si, alimentada das

matérias-primas, que compõem a natureza, o cosmos, em uma espécie de

indistinção. [...] o corpo não existe como um elemento de individuação, uma vez que

o próprio indivíduo não se distingue do grupo, sendo, no máximo, uma

singularidade na harmonia diferencial do grupo (LE BRETON, 2001, p.31-33).

Atualmente há tentativas em curso para acabar com estas antigas visões hierárquicas

culturais, onde a alma possui um privilégio superior ao corpo. Nas palavras de Porter (1992,

p.293) estas hierarquias acabaram por sancionar “sistemas inteiros de relações de poder

regulador-regulado.” E apesar de seu caráter paradoxal e mistificador, tal dualismo se torna

fundador de sistemas de valores, moldando o uso linguístico, esquemas classificatórios e

éticos. A desmistificação destes processos vem ocorrendo nas ultimas décadas, sendo possível

perceber a subversão às relações puritanas e à platônica suspensão do corpo (id. Ibid.).

Page 26: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

25

A partir da década de 60, com o surgimento e fortalecimento de movimentos sociais

diversos tais como os movimentos feministas, movimentos por igualdades raciais e os

movimentos de contracultura, novas representações do corpo começam a surgir, tornando-se

um terreno fértil para novos estudos acercada corporeidade (PORTER, 1992;

ALBUQUERQUE, 2001).

Através de valores integradores como a vivência comunitária, a aliança com a

natureza e a reconciliação entre corpo e a mente, a contracultura procurou construir

modos de agir, sentir, pensar e curar distantes do dualismo hierárquico que sustenta

a modernidade (PORTER, 1992, p.35).

Além da cultura a qual os indivíduos se encontram inseridos, devemos levar em

consideração a época, a classe social e a própria sociedade. Dentro deste panorama se

estabelecerá funções e responsabilidades no que diz respeito ao corpo, possibilitando uma

pluralidade de significações.

1.2 Um corpo modelável

A corporeidade é um fenômeno social e cultural, um motivo simbólico, objeto de

representações e imaginários. Tal traço da raça humana poderia ser encarado pouco mais do

que uma massa de modelar, a qual recebe da sociedade em que se encontra formas de ser e

existir, de socializar e se comportar (LE BRETON, 2003, 2006; RODRIGUES, 2006). Assim

como o mundo se torna compreensível através desta experiência corpórea, nós também nos

tornamos compreensíveis uns aos outros através deste caráter sensível ao qual se constitui o

corpo.

Durante o começo dos estudos antropológicos foi posto em questão se poderia haver

um estágio “natural”, ou mesmo “selvagem”, do ser humano, visto que alguns casos de

“crianças selvagens” foram registrados na história (LÉVI-STRAUSS, 2003; LE BRETON,

2009). Porém, de acordo com Rodrigues (2006) a noção de um comportamento humano tido

como natural, um estado de natureza deste ser, é instaurado culturalmente. Nas palavras de

Lévi-Strauss (2003, p.41) “O homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo

social.”, porém, na carência de significações históricas aceitáveis, a distinção entre estado de

natureza e estado de cultura apresenta seu valor lógico, que justifica sua utilização como

instrumento de método pela sociologia moderna.

Page 27: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

26

Cada sociedade elege uma série de características intelectuais, morais,

comportamentais e também atributos físicos, atribuindo-os um caráter de normalidade. E por

mais que exista uma distinção entre grupos e indivíduos, sempre existirá um limite para este

distanciamento da normalidade, sendo atribuído à educação o papel de inculcar nas crianças

esta constelação de características comuns, buscando traçar um perfil minimamente

homogêneo a todos (RODRIGUES, 2006).

A criança se encontra predisposta a mimetizar e interiorizar gestos e ações, tanto dos

seus pais quanto dos outros ao seu redor. A imitação é algo ordinário nesta fase da existência

humana (LE BRETON, 2006).

Desde a infância o ser humano sofre processos de construções da noção de corpo, o

qual encontrasse diretamente atrelado a sua sociedade e cultura. Neste sentido a educação

pode ser vista como um processo repressor que incutirá no indivíduo uma série de princípios

que são comuns a todos os membros da sociedade, orientando desta forma seus

comportamentos em relação com o mundo e consigo mesmo. Sejam as regras formais ou

informais, explícitas ou tácitas, associadas aos valores sociais transformam a ação, ou a

inação, em mensagens significativas, ou seja, acabam por funcionar como códigos. Estes

códigos são encarados como adequados e justos, e geram obrigações e expectativas por parte

dos indivíduos, onde as transgressões são sancionadas negativamente pelo grupo

(RODRIGUES, 2006).

1.3 Identidades flutuantes

As experiências corpóreas são necessárias para nosso conhecimento de si, fazendo

destes estágios importantes movimentos na construção de nossa individualidade. Desta forma,

a conexão visceral de nossos corpos com nossas personalidades nos guiam em direção à sua

compreensão, em como nossa noção de identidade se desdobra no período correlato a

construção da noção de corpo, e assim assimilar sua atual condição.

As diversas mudanças em nossa maneira de nos relacionarmos com nossa

corporeidade também modificou nossa maneira de nos relacionarmos com nossas identidades.

As mudanças ocorridas nas sociedades modernas a partir do final do século XX

ocasionaram uma série de eventos que proporcionaram uma fragmentação da paisagem

Page 28: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

27

cultural, descentrando os indivíduos tanto de suas bases culturais e sociais quanto de si

mesmo. Este duplo descentramento do sujeito acaba por afetar nossas identidades pessoais,

mudando também a forma pela qual pensamos e enxergamos a nós mesmos enquanto sujeitos

detentores de uma identidade.

Vista anteriormente como sendo divinamente estabelecida, e desta forma sem grandes

possibilidades de transformações e mudanças, a identidade rompe com estas amarras a partir

do nascimento do “indivíduo soberano”. Concebido entre o Renascimento do século XVI e o

Iluminismo do século XVIII, este episódio é tido como o motor que colocou em movimento a

“modernidade.” (HALL, 2006).

O “indivíduo soberano” era tido como um:

[...] indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de

consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela

primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que

permanecendo essencialmente o mesmo [...] ao longo da existência do indivíduo

(id., ibid., p.10-11).

Esta visão “individualista” da qual o centro do eu era a identidade de uma pessoa

sofreria mudanças com a concepção sociológica do indivíduo, relacionando a identidade aos

processos de interação dos quais eram partilhados em sociedade. Esta noção do sujeito refletia

a crescente complexidade da modernidade, modificando o foco da identidade enquanto algo

autônomo e autossuficiente para uma esfera de relações estabelecidas com outras pessoas, das

quais mediariam valores, sentidos e símbolos constituintes da cultura em que se encontravam.

A noção de sujeito estava ligada a um mundo polarizado, no qual o indivíduo possuidor de

uma essência interior viria a dialogar continuamente com um mundo exterior, formando e

modificando o indivíduo (id., ibid.).

Argumenta-se que tal visão acerca da noção de identidade tem sofrido constantes

mudanças desde o final do século XX, e desta maneira a ideia pela qual se entendia a auto

identidade não encontra mais correspondência com a realidade. Nas palavras de Stuart Hall

(ibid., p.12):

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está

se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,

algumas vezes contraditórias e não resolvidas. Correspondentemente, as identidades,

que compunham as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa

conformidade subjetiva com as ‘necessidades’ objetivas da cultura, estão entrando

em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio

Page 29: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

28

processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

O mundo moderno não passa simplesmente por mudanças sociais num ritmo mais

frenético e acelerado que outrora, mas estas mudanças acabam possuindo também uma maior

amplitude e profundidade nas práticas sociais e modos de comportamento. Segundo Giddens

(2002, p.9), “[...] a modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta

os aspectos mais pessoais de nossa existência.”

Estas constantes modificações encontram-se inseridas em um intenso processo de

globalização. Os avanços tecnológicos fazem com que fronteiras sejam ultrapassadas, ligando

cada vez mais o local ao global. Giddens (ibid.) nos chama a atenção neste ponto para a

separação das noções de tempo e espaço enquanto uma das peculiaridades desta nova

dinâmica da vida social moderna. Nas sociedades pré-modernas as noções de tempo e espaço

estavam ligadas diretamente ao cotidiano e “[...] se conectavam através da situacionalidade do

lugar.” (Id., ibid., p. 22, grifo do autor). O desenvolvimento de uma dimensão “vazia” do

tempo foi preponderante para sua separação da noção de espaço. A invenção do relógio, zonas

de tempo globalmente padronizadas, mapa global, possibilidade de deslocamentos em curtos

períodos desvincularam cada vez mais o tempo do espaço, reduzindo sua correlação.

O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando

relações entre outros “ausentes”, localmente distantes de qualquer situação dada ou

interação face a face. Em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais

fantasmagórico, isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em

termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é

simplesmente o que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as

relações distanciadas que determinam sua natureza (Giddens, 1991, p.22, grifo do

autor).

Esta ruptura entre o tempo e o espaço é considerada como principal condição para o

processo de desencaixe, que deve ser entendido como um “deslocamento” assim como uma

reestruturação das relações sociais através desta nova relação entre tempo-espaço (id., ibid.).

Stuart Hall (2006) elenca cinco deslocamentos que vieram a descentrar o sujeito

racional, pensante e consciente, demonstrando uma série de rupturas nos discursos sobre os

indivíduos. A primeira descentração diz respeito à redescoberta e a reinterpretação dos

escritos de Marx. Seus novos interpretes percebiam os indivíduos não mais como autores ou

agentes da história, mas que estes só poderiam agir baseando-se em condições históricas que

eram proporcionadas por outros, onde utilizariam recursos materiais e culturais fornecidos por

Page 30: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

29

gerações anteriores a sua existência. Dando ênfase as relações sociais e não a uma noção

abstrata do sujeito, Marx desloca a ideia de que existiria uma essência universal de homem, e

que esta essência seria um atributo singular ao indivíduo.

O segundo descentramento está ligado à descoberta do inconsciente por Freud, onde

nossas identidades e nossa sexualidade são formadas através de processos psíquicos e

simbólicos inconscientes. Assim, a identidade seria algo formado ao longo do tempo, e não

inato ao indivíduo desde sua nascença. “[...] em vez de falar da identidade como uma coisa

acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento.” (id.,

ibid., p.39, grifo do autor).

O terceiro descentramento está associado ao trabalho de Ferdinand de Saussure, o qual

argumenta que nós não somos os autores de nossas afirmações, visto que a língua é um

sistema social e não individual, e sua existência é anterior a nossa. Ao falarmos, evocamos

uma imensa gama de significados que já se encontram atrelados a nossa língua e ao nosso

sistema cultural.

O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas

ele é constantemente perturbado (a diferença). Ele está constantemente escapulindo

de nós. Existem sempre significados suplementares sobre os quais não temos

qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas tentativas para criar mundos

fixos e estáveis (id., ibid., p.41).

O quarto descentramento envolvendo o sujeito e sua identidade se faz nos estudos

conduzidos por Michel Foucault. Sua genealogia do indivíduo moderno possui como base os

debates envolvendo o “poder”, o qual não é tratado enquanto algo abstrato, um objeto a ser

possuído por alguém, mas enquanto relações que permeiam os discursos. Aqui se dá destaque

ao “poder disciplinar”, regulador e vigilante, procurando sempre manter as atividades que

envolvem a vida dos sujeitos e a maneira como estes lidam consigo e com os outros sob certo

controle, alicerçado nos conhecimentos fornecidos pelas ciências. Estes novos discursos sobre

o indivíduo fazem com que este seja cada vez mais individualizado, e “[...] quanto mais

coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a

vigilância e a individualização do sujeito individual.” (id., ibid., p.43).

O quinto momento que veio a corroborar para o descentramento do indivíduo se deu

nos anos sessenta juntamente com uma série de “novos movimentos sociais”. O surgimento e

impacto causado pelo feminismo, por exemplo, teve uma correlação direta com o

descentramento do sujeito, questionando distinções, contestando esferas da nova vida social e

Page 31: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

30

principalmente de formação de identidade sexuais e de gênero, abrindo precedentes para

novas formas de se encarar a identidade.

A perda das ancoras sociais que assegurava aos indivíduos o caráter natural,

predeterminante e inegociável da identidade faz com que a importância dada à identificação

se torne cada vez maior. O que antes era tido como caráter definidor de identidade como raça,

gênero, país, local de nascimento, classe social, família, agora se encontra diluído,

fragmentado e menos importante. Neste novo panorama, a ansiedade de encontrar ou criar

novos grupos que possibilitem a vivencia do pertencimento, e que facilitem a construção da

identidade, se torna salutar.

Buscamos, construímos e mantemos as referências comunais de nossas identidades

em movimento – lutando para nos juntarmos aos grupos igualmente móveis e

velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento,

mas não por muito tempo (BAUMAN, 2005, p.32, grifo do autor).

Segundo Bauman (ibid.), a ideia de identidade nasceu em um momento em que a

noção de pertencimento sofrera uma crise, desencadeando um grande esforço na tentativa de

transpor a fenda entre o “deve” e o “é”, recriando a realidade à semelhança da ideia.

As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras

infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta

constante para defender as primeiras em relação às últimas. Há uma ampla

probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece

eternamente pendente (id., ibid., p. 19).

A identidade se faz em um constante esforço, em uma tarefa incompleta, uma ficção

que necessita de processos de coerção e convencimento para se consolidar enquanto concreta

em uma realidade imaginável. A identidade não é definida por um modelo dado desde o início

de nossas vidas, como no caso das identidades pré-modernas ou mesmo do “sujeito

soberano”.

Seu problema não é o que você precisa para “chegar lá”, ao ponto que pretende

alcançar, mas quais são os pontos que podem ser alcançados com os recursos que

você já possui, e quais deles merecem os esforços para serem alcançados. [...] A

tarefa de um construtor de identidade é, como diria Lévi-Strauss, a de um bricoleur,

que constrói todo tipo de coisas com o material que tem à mão... (id., ibid., p. 55,

grifo do autor).

Apesar da crença em uma identidade estável, imutável, ou mesma escondida em nosso

interior a espera de um despertar, a atribuição de uma identidade a si mesmo é um processo de

Page 32: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

31

construção mútua, onde o contato constante com outras construções identitárias se faz

necessário para a aquisição de instrumentos que proporcionem ao indivíduo sua ideia de “eu”.

O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos

identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com

sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses, etc. (CIAMPA, 1984, p.

64).

Este “eu” não paira pelo cosmos de forma indefinida, ele se encontra corporificado,

encarnado. Tomar consciência de si, construir uma identidade, ser e existir; a vida e a

realidade encontram concretude na práxis cotidiana. O corpo não é apenas uma “entidade”,

mas se faz como parte primordial da experiência, um “[...] modo prático de enfrentar

situações e eventos exteriores.” (GIDDENS, 2002, p.57). O processo de construção de um

“eu” fundamenta-se na visão do reflexo de um “eu” corporificado, o qual possui limites,

fronteiras que vêm a preparar a cena para todas as identificações possíveis (WOODWARD,

2014).

A imersão deste eu corporificado nas interações da vida cotidiana “[...] é uma parte

essencial da manutenção de um sentido coerente de auto identidade.” (GIDDENS, 2002, p.

95).

[...] na identidade, biologia e biografia se inter-relacionam pela elaboração de

sentidos e uma linguagem específica, codificada, que transforma a objetividade do

corpo, sua natureza, em um privilegiado espaço de manifestações autênticas,

particulares. Mais do que uma essencialidade, o corpo adquiri uma gramática e uma

semântica que lhe é própria e que é resultado e processo de uma determinada forma

de construção social [...] (LUCAS, 2012, p.127).

Percebemos que a ideia que possuímos de nossa identidade enquanto algo acabado e

bem definido é apenas uma ilusão. Resquício do pensamento moderno no qual centralizou e

interiorizou no ser humano, através da razão e da consciência, a ideia de uma essência

inerente ao ser, que permaneceria estável durante toda sua existência. A ruptura com este

pensamento permitiu que novos horizontes possíveis fossem vislumbrados, e desta forma a

identidade torna-se um enigma a ser edificado não somente através do ser, do indivíduo, mas

sim de sua relação com o mundo, com seus semelhantes e vice-versa. A identidade deixa de

ser um porto seguro, no qual o indivíduo ancorava suas certezas sem receios de abalo, e passa

a ser um problema; uma constante reivindicação necessária ao sujeito em sua existência. A

modernidade tardia proporcionou uma profusão de identidades possíveis, deixando a

estabilidade à mercê de ansiedades e de inseguranças, constantemente ameaçando a existência

Page 33: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

32

do sujeito. A manutenção de uma postura em diversos ambientes se torna uma garantia à

coerência de sua auto identidade.

Tal qual percebemos até o presente momento, a correlação das noções de corpo e

identidade perpassou uma série de construções sociais que se encontravam inseridas em

determinados períodos históricos, nos amparando na compreensão dos indivíduos

contemporâneos. Neste sentindo, a prática da tatuagem pode ser encarada como um dos

possíveis prismas para considerar transformações e (re)significações, imprimindo no corpo do

indivíduo sua representação, sua visão de si e do mundo que o abrange.

1.4 TATUAGEM CONTEMPORÂNEA: UMA BREVE HISTÓRIA

Hoje, as tatuagens se encontram em um sistema comercial, podem ser compradas,

consumidas ao bel prazer dos indivíduos dispostos a pagar por estas modificações. Mas,

apesar de ter sido englobada pela moda dos jovens urbanos como uma forma de circunscrever

seus gostos e identificações, sua história nos é importante para a compreensão de aspectos

ainda latentes cotidianamente como, por exemplo, o caráter estigmático que a acompanha,

relacionando-a a um comportamento desviante e a rebeldia.

As modificações corporais expressão uma manifestação simbólica do ser humano, um

traço de cultura que o acompanha desde o momento em que um troglodita se orgulhou de suas

cicatrizes como uma forma de expressar sua coragem. Não existe um consenso quanto ao

surgimento da prática de pigmentar a pele de maneira proposital, sendo atribuída a um

surgimento múltiplo, ou a populações nômades que transmitiram essa prática a outros povos

(MARQUES, 1997). O fato é que o corpo humano deixa de ser apenas uma matéria biológica,

mas passa a ser lócus de simbolizações, onde transmuta-se o físico para modificar também a

própria existência.

A tatuagem durante muito tempo foi remetida fortemente a um caráter desviante, à

delinquência e à promiscuidade. Este fator é compreensível dentro de sua dinâmica histórica,

Page 34: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

33

uma vez que seu processo de (re)ocidentalização1 teve como um dos principais canais de

transmissão desta prática os marinheiros, os quais difundiram comumente suas atividades nas

áreas portuárias e estaleiros das cidades do velho continente, espalhando-se majoritariamente

entre os próprios marinheiros, assim como também entre outros frequentadores comuns a

estes perímetros, tais como ladrões, assassinos, prostitutas e toda uma parcela da população

que se encontrava a margem da sociedade (MARQUES, 1997).

Em épocas variadas da história, a tatuagem serviu como identificador de

transgressores, sendo utilizada para marcar desde os corpos de escravos na Grécia antiga,

geralmente aplicada nos rostos destes, estigmatizando-os, até judeus nos campos de

concentração nazistas durante a segunda guerra mundial, como uma forma de controle e

identificação (ARAUJO, 2005; MARQUES, 1997).

No universo carcerário as marcas corporais agiriam como reforçadores e reafirmadores

de determinados códigos capazes de externar a natureza das relações sociais dentro das quais

são produzidas. Fazendo transparecer para aqueles que conseguem decifrar tais códigos os

crimes cometidos ou mesmo as penas infligidas àqueles que carregam tais marcas (DA

SILVA, 1991).

As efetivas trocas são comunicativas, não informativas, pois se dão entre os grupos.

Não há preocupação com grandes plateias – a correspondência ideológica é

construída entre eles mesmos. Trata-se de um produto de uma articulação individual

ou de pequenos grupos que estão continuamente particularizando a imagem e o seu

significado (RAMOS, 2005, p. 95).

Outrora, o movimento punk em meados da década de 1970 chocou a sociedade

britânica com seus cortes de cabelos pontiagudos, com suas roupas rasgadas e/ou

incrementadas com alfinetes e espigões. O ódio social tomou de conta de seus corpos,

configurando-se como um ódio pelo próprio corpo, expresso através de modificações

corporais como o uso de piercings (de uma forma bastante rústica, onde alfinetes muitas vezes

eram utilizados no lugar das joias) e também através de tatuagens. O corpo perfurado,

marcado e odiado simbolizava a relação forçada com o outro; se torna uma superfície de

projeção, onde suas modificações são testemunhos da recusa das condições de sua existência.

1 Pautamo-nos na perspectiva empregada por Toni Marques (1997), na qual a prática da tatuagem se encontrava

inserida no contexto europeu, entretanto, esta foi quase que totalmente banida durante a idade média, voltando à

tona no século XVIII com as grandes navegações.

Page 35: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

34

Contudo, a cultura punk, e dentre várias outras manifestações de contracultura, entram no

circuito do consumo, transmutando-se em estilo. As marcas corporais sofrem uma mudança

de status, são engolidas pela moda, pelos esportes, pela cultura das jovens gerações nascentes,

onde “[...] diversificam-se igualmente em uma busca de singularidade pessoal [...].” (LE

BRETON, 2003, p.34).

O estigma social ainda é um eixo de identificação, classificação e de relacionamento.

No que diz respeito à prática da tatuagem e sua história no ocidente, apesar de se encontrar

menos intenso e latente na contemporaneidade, ainda segue como fator de relevância dentro

desta dinâmica (FONSECA, 2003).

Nesta perspectiva devemos ter em mente o conceito de estigma trabalhado por

Goffman (2012), que se torna fundamental para melhor compreendermos o que de fato o

constitui. Nas palavras do referido autor, o termo estigma faz referência a:

[...] um atributo profundamente depreciativo, mas que é preciso, na realidade, é uma

linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode

confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é em si mesmo, nem honroso

nem desonroso (GOFFMAN, 2012, p.13).

Através desta compreensão podemos nos soltar das amarras que atrelam a ideia de

estigma como algo naturalizado, inerente ou próprio de quem a possui, passando a ser

entendido enquanto uma construção social e cultural. Logo, o desviante é constituído dentro

do mundo social, sendo a partir destas construções que se desenvolvem as interações

evidenciadas pelo estigma (FONSECA, 2003).

[...] o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma

consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O

desviante é alguém a quem este rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento

desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal (BECKER, 2009, p.22).

O que irá constituir, ou não, o desvio se refere em parte ao ato, se este viola ou não

alguma regra, e em parte da reação das outras pessoas acerca dele. O desvio não recai

enquanto uma qualidade inerente ao comportamento em questão, mas na interação entre

aqueles que cometem o ato e aqueles que reagem a este (id., ibid.).

Devemos voltar nossa atenção ao fato de que, dentro da reflexão proposta, o estigma

da tatuagem é algo voluntário, uma vez que a pessoa não nasce com ela, muito menos é

induzido socialmente a fazê-la, é uma decisão pessoal que se realiza enquanto uma opção de

vida, cobrando uma dimensão singularizante de tal prática (FONSECA, 2003).

Page 36: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

35

Contudo, a tatuagem sofre uma mudança em seu significado e uso na

contemporaneidade. Ultrapassa a conotação de prática subversiva pertencente a classes

marginais e excluídas socialmente, ou de movimentos de contracultura ligados politicamente

e ideologicamente a estéticas contrárias ao padrão social, não estando mais, necessariamente,

ligada ao desvio (LEITÃO, 2004).

Neste sentindo podemos observar que existe um caráter de ambiguidade no que se

refere às marcas corporais, uma vez que as tatuagens são encardas como traço estigmatizante

em alguns lugares ou por certos grupos de pessoas, enquanto é valorizada e apreciada em

outros ambientes. O habitus dos indivíduos, assim como os campos em que se encontram,

irão balizar essas classificações enquanto legítimas ou ilegítimas.

Os esquemas do habitus, formas de classificação originárias, devem sua eficácia

própria ao fato de funcionarem aquém da consciência e do discurso, portanto, fora

das tomadas do exame e do controle voluntário: orientando praticamente as práticas,

eles dissimulam o que seria designado, erroneamente, como valores nos gestos mais

automáticos ou nas técnicas do corpo, na aparência [...], envolvem os princípios

mais fundamentais da construção e avaliação do mundo social [...] (BOURDIEU,

2007 , p.434, grifo do autor).

1.5 Novos contornos da tatuagem

O grande marco na história da prática da tatuagem foi a invenção do “tatuógrafo" em

1891, máquina elétrica que possibilitou uma revolução em aspectos chaves referentes ao

ofício da tatuagem, tais como: diminuição do tempo empregado, passando de horas para

minutos, assim como o aumento das qualificações técnicas no que diz respeito a aplicação da

tatuagem, as quais incluem um melhor aperfeiçoamento do acabamento dos traços, contornos,

brilho e coloração. Para além dos aprimoramentos dos aspectos técnicos, a necessidade de ter

que estar próximo a um ponto de corrente elétrica, logo de fixar-se, faz com que está prática

tome uma maior dimensão social, configurando um cenário no qual a aplicação da tatuagem

necessitasse de uma pessoa com disposição de tempo e com certa dedicação para este ofício.

A máquina de tatuar passa a identificar o tatuador moderno, da mesma forma que simboliza a

sua profissionalização, passando de um saber artesanal, manual e adquirido de maneira

ocasional para um conhecimento técnico, sendo necessário ter habilidade e maestria em sua

execução (FONSECA, 2003; SANDERS, 2008).

Page 37: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

36

Apesar da necessidade de se estabelecer em um local fixo para a prática da tatuagem,

esta atividade ainda não se encontrava inserida em um espaço específico, destinado única e

exclusivamente para tal fim. Durante este ínterim a tatuagem vivia uma fase de transição e

experimentações e os pontos comerciais que abriam possuíam uma natureza “ambígua”, uma

vez que a tatuagem era oferecida juntamente com outros produtos e serviços, e não

acarretavam lucros suficientes para se manter (FONSECA, 2003).

Anteriormente vista como underground e ligada a uma parcela de indivíduos que se

utilizavam destas ornamentações enquanto reafirmadores de sua vontade de estar à margem

da sociedade, o panorama estigmatizante ao qual a tatuagem encontrava-se atrelado sofre

mudanças a partir do momento em que esta prática, antes relegada a cantos improvisados e

com acesso restrito, passa a ser encontrada nos centros das cidades. Este rearranjo social faz

com que sejam agregados ganhos fundamentais a esta atividade: um reconhecimento social

desta prática, e desta forma sua entrada em um campo de “legitimação” social, exaurindo-se

de seu entorno de marginalidade com o qual era identificado (id., ibid.).

A prática da tatuagem chega ao Brasil oficialmente no início dos anos 60, juntamente

com o dinamarquês Knud Harald Lykke Gregersen, ou simplesmente Tattoo Lucky, como

ficou conhecido. Luky foi considerado pela imprensa nacional como o primeiro tatuador

profissional na América do sul, se instalando na região de Santos e depois no Rio de Janeiro,

disseminando a prática da tatuagem pela região sudeste e sul do país. Este foi considerado o

grande marco para a tatuagem em território nacional, marcando a pele e a história de muitos, e

abrindo caminho para a entrada do Brasil no mapa da tatuagem moderna (MARQUES, 1997).

A partir da década de 80 a tatuagem passa por uma nova fase, entrando no circuito do

mercado através do estabelecimento de vários pontos comerciais. Inúmeros avanços técnicos

e tecnológicos, juntamente com a regulamentação da profissão, fazem com que a face desta

prática tome novas proporções, possibilitando uma maior abrangência social. O aparecimento

dos estúdios de tatuagem, a utilização de equipamentos importados, de materiais descartáveis,

de revistas e catálogos especializados disponíveis aos clientes proporciona que esta prática

passe do âmbito marginal para o comercial. Uma vez instalado em local fixo e organizado,

devidamente decorado e pensado para a tatuagem, este ambiente vem a se relacionar com

novas formas de conceber o corpo, onde as modificações corporais entram em jogo como uma

nova forma de estilo, de uma nova busca que vem a caracterizar e identificar o sujeito

contemporâneo (COSTA, 2004; FONSECA, 2003).

Page 38: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

37

Corpo, identidade e tatuagem dialogam constantemente. As mudanças a cerca da visão

que tínhamos sobre o que é o corpo influenciaram diretamente em nossa noção do que é a

própria identidade, e vice-versa. Nossas identidades, assim como nossos corpos, eram

encaradas de maneira imutável, estática, firme, onde qualquer mudança de percurso apontaria

para uma anormalidade. Neste viés, as marcas corporais eram expressão desta anomalia, um

traço do desvio utilizado por aqueles que queriam se por fora da sociedade, marginais ao

convívio comum.

As mudanças proporcionadas a cerca da visão do nosso corpo, antes sagrado e agora

individual, assim como a noção de nossas identidades, antes estáticas e agora fluídas,

encontraram nas marcas corporais uma nova maneira de se modelarem, ultrapassando o

entendimento de que forma estes corpos e estas identidades deveriam se apresentar.

Esta forma de expressão da identidade encontra-se amplamente difundida em nosso

cotidiano, onde cada vez mais e mais pessoas se utilizam desta modificação corporal para

embelezar seus corpos, imprimindo em si marcas de identificações, laços visíveis de suas

paixões pelas suas vivências, experiências; momentos que encontram desenhos e pigmentos

como ancoradouro. Objetivando analisar de que forma corpo, identidade e tatuagem possuem

uma intima relação, iremos nos debruçar na realidade de alguns atores sociais em vias de

explorar através de seus discursos as amarras que buscam moldar estes corpos, e de que

maneira a tatuagem encontra-se ligada a um modo de cuidado de si, visando uma via

alternativa de vivenciar este corpo dentro das relações de poder que visam impor padrões

normativos a ele, podendo ser encarado enquanto um exercício de liberdade o qual o

indivíduo pratica em sua construção identitária.

Page 39: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

38

2 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Ao falarmos sobre identidade adentramos em um terreno que possui em seu cerne

debates, tensões e divergências acerca das visões que julgam haver um essencialismo ou um

não essencialismo no que se refere à identidade. A primeira vertente pode alicerçar suas

afirmações tanto na história quanto na biologia, buscando princípios e certezas na

fundamentação da identidade em uma “verdade”, que pode tomar um caráter fixo em

acontecimentos de um passado comum ou atrelado ao corpo enquanto limite que vem a

definir quem somos, por exemplo, para a identidade sexual (WOODARD, 2014). Porém, seria

possível reivindicar a identidade sem apelar para uma “verdade” única? Existiria alguma

estratégia alternativa ao argumento fundamentador desta essencialidade da identidade? Seriam

as identidades fluídas e mutáveis, ou possuiriam um núcleo fixo? Estas questões ilustram o

embate existente entre as concepções essencialistas e construcionistas, nos proporcionando

uma problematização do que vem a constituir a identidade contemporânea.

As discussões acerca da identidade possuem diferentes níveis, podendo tomar

contornos amplos e globais, envolvendo preocupações com as identidades étnicas e com as

identidades nacionais. Por outro lado, podemos compreender este conceito ligado a um

contexto que vêm a dar ênfase à identidade pessoal e às relações interpessoais. Em ambos os

enfoques acredita-se que a identidade nas últimas décadas tem passado por um período de

“crise”, decorrente de mudanças ocorridas durante a modernidade (GIDDENS, 2002; HALL,

2011; WOODWARD, 2014).

Tomando como bússola a perspectiva dos estudos culturais, isto implicaria em

examinar a maneira como estas identidades são formadas e os processos nos quais se

encontram envolvidas. Ao analisarmos a ideia de identidade devemos atentar para sua relação

com a cultura, com a linguagem e com a representação (SILVA, 2014; WOODWARD, 2014).

2.1 Identidade, significado e linguagem

Nas palavras de Clifford Geertz (2008, p.9) “a cultura é pública porque o significado o

é”, ou seja, os significados e os símbolos são partilhados pelos atores sociais uns entre os

outros, e não dentro de si. Nesta perspectiva, a cultura pode ser encarada como um sistema

Page 40: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

39

entrelaçado de significados e símbolos; um contexto no qual estes signos interpretáveis

podem assumir uma forma inteligível. De acordo com Néstor Garcia Canclini (2004, p.41),

podemos afirmar que a cultura envolve “[...] o conjunto de processos sociais de produção,

circulação e consumo da significação na vida social.”

As identidades são um processo de construção de significado que possuem em sua

base um atributo cultural, ou ainda “[...] um conjunto de atributos culturais inter-relacionados,

o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado.” (CASTELLS, 1999, p.22). A

cultura molda as identidades ao possibilitar dar sentido à experiência, e torna possível optar

por um modo específico de subjetividade (LARAIA, 2005; WOODWARD, 2014).

As identidades podem ser encaradas como um conjunto de traços que estruturam os

modos como os indivíduos são, proporcionando também um conjunto de senhas pelas quais

esses mesmos indivíduos se identificam e se deixam identificar. Desta forma, através deste

viés, as identidades viriam a se definir “[...] tanto no intercâmbio entre as crenças e

construções simbólicas quanto na dinâmica das trocas.” (FLORES, 2011, p. 23).

Este modo de ser, de conceber a si mesmo, se dá através do nosso cotidiano. Como

vimos anteriormente, desde nossa infância somos educados, moldados, disciplinados através

de nossas socializações, que extrapolam nossa vivência no âmbito familiar e se estendem a

inúmeras experiências. Neste sentindo, a aproximação com as modificações corporais também

corroboram para a idealização desta identidade, se caracterizando enquanto um traço

indelével na formação deste indivíduo que se utiliza da tatuagem enquanto uma faceta do seu

eu. A proximidade com a prática da tatuagem em nossas vidas também é perpassada pelas

mais variadas mídias, as quais possuem uma grande participação na composição de nossas

identidades. Por meio do relato de Andreas podemos observar a atribuição que este dá a sua

identidade, a qual encontrasse relacionada com um estilo de vida concernente ao Rock n’ Roll

e a bandas pertencentes a este gênero musical como seu alicerce, onde teve contato tanto no

âmbito familiar quanto através de programas de TV e com experiências com bandas

independentes. Por intermédio destes intercâmbios midiáticos e vivenciais nos é possível

compreender de que forma há um delineamento conjunto de sua identidade, se constituindo

enquanto um canal possível para a formação de sua autoimagem.

Eu lembro que, antes de eu gostar de rock, eu assim: caralho, vou seguir esse estilo

de vida assim. Vou ser rockeiro. Eu já ouvia metal por causa do meu tio. E meu

nome, por causa do maluco do Sepultura, que minha mãe gosta do Sepultura.[...] Já

nasci, acho que já fadado a ser rockeiro. Mas quando eu comecei a ter contato com

Page 41: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

40

programas da MTV: Riff, total massacration, essas parada assim, que mesmo que

era zueira passava uns clipes de metal. Ai eu parava e olhava assim, a postura

subversiva, assim agressiva. Ser contra assim oh, com as parada que é certinha.

Caralho, eu quero ser assim, eu acho massa. Eu não tinha ideal nenhum [...], mas

uma coisa foi puxando a outra. [...] Primeiro instrumento, andar com a galera, ter as

tattoo.[...] “Fulaninho tem tatuagem”, caralho, o bicho tem coragem velho, um dia

eu quero chegar nesse nível de ter assim. É uma parada, assim, quase todo mundo do

rock tem tattoo, mas eu não vejo uma coisa de "Maria vai com as outras" (Andreas,

gerente de vendas).

A dinâmica envolvida no processo da tatuagem passa a ter tanta importância quanto os

significados dos desenhos impressos na pele, uma vez que a própria história perpassa pelo

significado, se tornando uma memória de experiências vividas, de um momento o qual foi

escolhido enquanto significativo para o indivíduo, de uma banda de rock que se atribui uma

carga de influência em sua maneira de viver. Exibir e falar sobre as tatuagens que possui são

uma forma de reafirmar sua identidade, definindo-a aos seus olhos e aos olhos dos outros,

demonstrando que suas raízes são pertencentes a um determinado estilo de vida. É através

destas narrativas de suas vidas que podemos perceber o entrecruzamento das realidades nas

quais os indivíduos se encontram, proporcionando-nos uma melhor compreensão de suas

marcas corporais enquanto signos, símbolos, senhas que adquirem suas significâncias

inseridas em uma conjuntura.

Cada tattoo que eu tenho, quando eu paro e penso na tattoo assim: rapaz, essa tattoo

aqui, eu tava vivendo alguma parada. Quando eu fiz essa tattoo, eu pensava de uma

maneira diferente. A minha prmeira tattoo, eu lembro como eu era antes.[...] Ai eu

fiz... a do peito. Ai, meu irmão, já não sou mais o mesmo cara, assim, não é porque

eu tenho mais uma tattoo, mas pô, eu faria aquilo naquela época?! Não, mas eu sei o

que eu tava vivendo e o que eu queria. Então, cada tattooo vai marcando... cada

época que eu tô vivendo. Aqui em Mossoró ainda não fiz nada, mas quando eu fizer

eu vou lembrar: quando eu tava lá em Mossoró... [...]Não que eu vá esquecer, assim,

se eu não fizer a tattoo, mas se eu fizer eu acho que é muito mais marcante (Andreas,

gerente de vendas).

Page 42: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

41

Figura 1 - A friend ship never sinks, tatuagem no peito de Andreas simbolizando as amizades.

Desta forma, podemos conceber que ser algo, ou alguém, só pode ser compreendido

quando se está dentro de um processo de produção simbólica e discursiva, pois, não pode se

considerar a identidade enquanto um aspecto absoluto, onde sua existência não possua uma

ligação com a linguagem, encarada como uma característica puramente inerente ou

plenamente externa; não pode ser vislumbrada enquanto mero referencial natural ou fixo

(SILVA, 2014).

Neste sentido, podemos considerar a linguagem como um sistema movediço, pois seus

elementos – os signos – não possuem valor absoluto e não transmitem sentido se considerados

de maneira isolada. O sentido é adquirido quando se insere estes elementos dentro de uma

cadeia infinita de outras marcas gráficas ou fonéticas que se diferem umas das outras. A

linguagem enquanto sistema de significação é uma estrutura instável (id., ibid.).

A tatuagem, da mesma maneira que a linguagem, também pode ser considerada

enquanto um sistema instável, uma vez que seus significados se dão através da inclusão em

uma série de outras marcas. Neste caminho, a tatuagem pela tatuagem não expressa seu real

significado, repousando seu sentindo dentro de uma sucessão de construções simbólicas

arquitetadas pelo indivíduo e anexo a sua realidade. Entrando em consonância com o relato de

Andreas, Jean nos ilustra este entrecruzamento de momentos que fazem com que o desenho

escolhido possua sua historicidade, uma narrativa que irá imprimir uma significância ao

desenho escolhido, uma idealização singular que transmuta o caráter natural do corpo e fixa

uma memória do acontecimento.

Page 43: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

42

As minhas tatuagens são muito pessoais, e pra mim chegar a fazer acontecem várias

coisas, uma série de acontecimentos, que eu idealizo isso de alguma forma pra

marcar e nunca mais esquecer. Basicamente é isso. [...] Depois que acontece é que

eu vou começando a juntar e formar as coisas. Nada surgi assim, em vão, apenas

pelo desenho ou por amar o cara que toca naquela banda... não. É uma coisa mais

pessoal mesmo, mais profunda vamos dizer assim [Figura 9] (Jean, Professor).

Desta forma, a tatuagem se constitui enquanto uma linguagem pela qual os indivíduos

imprimem em seus corpos uma infinidade de desejos, uma série de desenhos e temas que

possuem suas lógicas e explicações. Estas figuras não surgem “do nada”, são pensadas e

relacionadas com as experiências vivenciadas pelo indivíduo, onde muitas vezes extrapola os

significados pertencentes aos símbolos que tomam contornos em sua epiderme.

Podemos estabelecer uma correlação com esta característica vacilante da tatuagem e a

indeterminação da linguagem. Esta imprecisão referente à linguagem decorre de uma

propriedade do signo, que é um sinal, um rastro, uma marca que se encontra no lugar de outra

coisa, que pode vir a ser um objeto concreto, um conceito ligado a um objeto concreto ou

mesmo um conceito abstrato. Porém, o signo não possui em si a coisa ou o conceito, nos

proporcionando uma ilusão de que a coisa se encontra presente no signo, sendo esta ilusão

necessária para que o próprio signo funcione enquanto tal. Através deste viés, Silva (2014,

p.79) nos elucida que: “A presença da ‘coisa’ mesma ou do conceito ‘mesmo’ é

indefinidamente adiada: ela só existe como traço de uma presença que nunca se concretiza.”

Figura 2 - Tatuagem de Jean com o símbolo da banda norte americana Foo Fighters.

Page 44: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

43

Sendo assim, a identidade se torna possível de ser ancorada na medida em que nos

inserimos em um sistema simbólico e de linguagem, os quais passarão a fornecer pontos de

apoio linguísticos. As identidades adquirem sentido através da linguagem e dos sistemas

simbólicos pelos quais elas são representadas, sendo este significado atribuído culturalmente e

socialmente, além de se encontrar atrelado a um sistema de representação. Por sua vez, a

representação encontrasse ligada a sua dimensão significante, como sistema de signos, logo,

não é uma representação mental ou interior, mas sim uma marca, um traço visível

exteriormente. Age simbolicamente para classificar o mundo e as relações ao seu redor

(SILVA, 2014; WOODWARD, 2014).

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio

dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos. É por

meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa

experiência e àquilo que somos (WOODWARD, 2014, p.17 – 18).

As tatuagens atuam enquanto uma representação que vem a balizar o sentindo

atribuído à existência daqueles que se utilizam desta prática, dando uma significância a sua

vida e localizando-os dentro de suas relações, sejam estas interpessoais ou pessoais. Estas

marcas corporais compõem uma linguagem que expressa as mais diversas ideias através da

pele, permeada pelas experiências do contato com estas modificações e pelos momentos

vivenciados. Um amálgama necessário para compreender àquilo que se é.

2.2 Representação e diferença

A tentativa de definir a noção de identidade no ocidente passa pela definição de

representação. O termo representação comporta uma relação ambígua entre presença e

ausência, pois, “[...] é uma presentificação de um ausente, que é dada a ver por uma imagem

mental ou visual que, por sua vez, suporta uma imagem discursiva.” (PESAVENTO apud

FLORES, 2011, p. 26). Enunciando algo distante no tempo e no espaço, estabelece uma

relação de correspondência entre o que está ausente e o que está presente.

As representações do mundo social não são o reflexo do real nem a ele se opõem de

forma antitética, numa contraposição vulgar entre imaginário e realidade concreta.

Há, no ato de tornar presente ou ausente, a construção de um sentido ou de uma

cadeia de significações que permite a identificação. Representar, portanto, tem o

caráter de anunciar, “pôr-se no lugar de”, estabelecendo uma semelhança que

Page 45: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

44

permita a identificação e reconhecimento do representante como representado. (id.,

ibid., p.26).

A representação é uma forma de atribuir sentido; faz parte de um sistema linguístico e

cultural, sendo assim arbitrário e indeterminado. É por meio desta representação que a

identidade passa a existir. A tatuagem, enquanto representação, busca fixar na pele uma

imagem, objetivando um discurso que permeia as linhas, as cores e os temas que ali se

encontram impressos. Torna constantemente presente e evidencia características que podem

ser identificadas por terceiros, expressando particularidades, qualidades, atributos do seu

portador.

A tatuagem pra mim é a forma de você mostrar a sua personalidade. Não tipo, ah

sou rockeiro loucão e tenho uma tatuagem, mas como eu falei, sempre tão ligadas a

significados, entendeu? Tipo, se eu vejo uma pessoa que tem uma tatuagem de Jesus

e é um sarcasmo, eu já sei que aquela pessoa não é uma pessoa religiosa. Então é

uma forma de você expressar quem você é, sem necessariamente abrir a boca, tipo:

“eu tenho uma tatuagem do ac/dc”, pronto, essa cara gosta de rock, não precisou

abrir a boca pra falar que ele gosta (Emmeson, gerente de vendas).

Figura 3 - Faz o que tu queres, pois é tudo da lei. Tatuagens de Emmeson que contemplam o

símbolo e parte da canção sociedade alternativa de Raul Seixas.

Quando os indivíduos encontram-se na presença uns dos outros, geralmente tendem a

buscar indicadores que possam transmitir algum tipo de informação a seu respeito, e dessa

Page 46: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

45

forma definir a situação e antecipar o que se pode esperar do outro (GOFFMAN, 2007). Neste

sentido a tatuagem serve como uma objetivação da subjetividade do indivíduo, uma forma de

cristalizar uma representação de si, permitindo um discernimento acercadaquele que estampa

em si tatuagens.

Estas marcas corporais irrompem pelos poros, corroborando para a construção de

nossa representação enquanto indivíduos, compondo e ornando nossos corpos. Fazem parte da

elaboração de nossas “máscaras”, daquilo que desejamos e nos esforçamos a alcançar,

elaborando nossas identidades. Nossas representações não se limitam a características

indeléveis como a tatuagem, perpassando por modos de agir e se portar.

Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra “pessoa”, em sua

acepção primeira, queria dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que

todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos conscientemente,

representando um papel... É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é

nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos.

Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que

formamos de nós mesmos – o papel que nos esforçamos por chegar a viver – esta

máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a

concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral

de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um

caráter e nos tornamos pessoas (PARK apud. GOFFMAN, p.27).

Porém, neste ponto devemos atentar para uma pequena distinção entre o papel

exercido pelo indivíduo e sua identidade. A influência dos papéis no comportamento de um

indivíduo depende de negociações e acordos que se dão entre o indivíduo e as instituições e

organizações, as quais normatizam tais papéis. Já as identidades constituem fontes de

significados para o próprio indivíduo, que são construídas por ele através do processo de

individuação. As identidades – auto identificação – podem vir a coincidir com o papel social

exercido, porém, as primeiras são fonte de significado de maior prestígio, pois envolvem

processos de autoconstrução e individuação. Genericamente pode-se afirmar que “[...]

identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções.” (CASTELLS,

1999, p.23).

Estar em sociedade é participar ativamente do constante processo dialético em curso,

logo, a construção da identidade perpassa por vários âmbitos da realidade, valendo-se da

matéria prima fornecida pela história, biologia, geografia, instituições produtivas e

reprodutivas, por uma memória coletiva e por fantasias pessoais. Este material é então

Page 47: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

46

processado pelos indivíduos, por grupos sociais e pela própria sociedade, proporcionando

uma reorganização de seus significados “[...] em função de tendências sociais e projetos

culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço.” (id.,

ibid., p.23).

Ao afirmamos nossa identidade fixamos aquilo que somos – o que achamos de nós, ou

como gostaríamos de ser vistos –, e a partir deste ponto também estabelecemos o que os

outros são, em um quadro onde os outros são diferentes ou semelhantes a nós. Ao voltar nosso

foco à noção de identidade, devemos também buscar entender sua relação com a diferença,

não como opostos, mas inseridos como elementos primordiais dentro do processo de criação e

produção da própria identidade.

A um primeiro olhar a definição de identidade parece ser concebida como uma

positividade, uma característica independente, um “fato autônomo” que faz referência a si

próprio, autocontido e autossuficiente. A identidade é “aquilo que sou”. Da mesma forma a

diferença também é vista como algo plenamente existente em si mesmo, mas em oposição à

identidade, é “aquilo que o outro é”. Neste sentido, a identidade só precisa ser (re)afirmada

porque há outros que não o são. “Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual

todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam

sentido.” (SILVA, 2014, P.75).

Em nossa sociedade, em nosso convívio cotidiano, somos guiados a buscar nossas

identidades, em um sentindo de construí-las, de nos singularizarmos de algum modo, de nos

diferenciarmos uns dos outros. Seja através dos nossos modos de agir e pensar, de nossa

faceta mais subjetiva, seja por modos mais visíveis, através de nossas roupas e adereços,

almejamos nos constituir enquanto seres singulares em nossa existência. A tatuagem,

enquanto um (re)afirmador de uma singularidade, é apontada por Danie como sendo uma

forma de se buscar essa desejada distinção, um traço que a diferenciaria dos outros e estaria

atrelado a uma personificação de si.

Pra mim, a princípio, foi uma busca por identidade. Como eu falei pra você, eu fiz a

1° pra me diferenciar dos demais. E eu acredito que você tem uma tatuagem, que

você tenha uma modificação corporal seja ela qual for, você tem aquilo pra buscar

um diferencial, seu individualismo. [...] então eu fui buscar mudar a minha estética,

a busca de uma personalidade que me destacasse das demais, porque eu nunca gostei

de nada que fosse similar de outras pessoas. (Danie, Supervisora de operações).

Page 48: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

47

A afirmação da identidade, na verdade, faz parte de uma extensa série de “negações”,

ou seja, quando dizemos “sou brasileiro” o sentido envolvido neste caso é de dizer

implicitamente que “não somos argentinos”, “não somos chineses” e assim por diante. Da

mesma forma, a diferença só se torna compreensível em sua relação com as afirmações sobre

outras identidades. Em geral, considerasse a diferença como produto diretamente derivado da

identidade, refletindo a tendência em tomar o que somos como norma da qual irá descrever e

avaliar os outros, aquilo que não somos (id., ibid.).

A marcação da diferença é crucial no processo de construção das posições de

identidade. A diferença é reproduzida por meio de sistemas simbólicos. [...] As

identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. [...] a identidade

depende da diferença (WOODWARD, 2014, p.40).

Ao afirmar a identidade e marcar a distinção implicam-se as operações de inclusão e

exclusão, demarcando fronteiras, limites que irão diferenciar o que se encontra dentro ou fora.

“Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo,

afirma e reafirma relações de poder.” (SILVA, 2014, p.82). Este processo de produção e

construção de identidades oscila entre dois movimentos: por um lado nos deparamos com

processos que tendem a fixar a identidade; por outro lado encontramos processos que tendem

a subverter e desestabilizar estas identidades. A fixação sempre será uma tendência e ao

mesmo tempo uma impossibilidade (id., ibid.).

Page 49: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

48

3 RISCANDO IDENTIDADES

Neste capítulo iremos discutir de que maneira o corpo se encontra dentro de relações

de poder que buscam moldá-lo, criando uma ideia de normalidade e padronização do corpo.

Porém, as marcas corporais estariam dispostas como uma forma do indivíduo exercer uma

liberdade na sua relação com o que encara enquanto corpo, vivenciando este corpo de forma

única, ressignificando inclusive a dor envolvida no processo da tatuagem.

Estas marcas corporais entram num jogo da busca pela exclusividade, uma forma de

tentar se distinguir dos outros através de tatuagens exclusivas, que buscam a singularização

tanto da pessoa tatuada quanto do traço do tatuador.

3.1 Corpos (in)disciplinados

O indivíduo não se encerra nele mesmo, sendo o mesmo uma encarnação do coletivo,

uma corporificação do social, um corpo inserido no mundo, o qual se encontra ligado de

forma implícita e explícita a certa limitação de sua representação legitimada (MEDEIROS,

2011).

Deste modo, o controle sobre o corpo começa a ser exercido através dos processos de

educação, o qual se estende desde a infância até as vivências adultas, fazendo da disciplina

uma maneira de domesticar e docilizar os corpos. “Em qualquer sociedade, o corpo está preso

no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”

(FOUCAULT, 2004, p.117). Segundo as palavras de Cláudio Lúcio Mendes (2006, p.168,

grifo do autor), o corpo é entendido dentro da perspectiva de Michel Foucault como sendo:

[...] ao mesmo tempo uma massa, um invólucro, uma superfície que se mantém ao

longo da história. Sintetizando, pode-se dizer que, para Foucault, o corpo é um ente,

composto por carne, ossos, órgãos e membros, isto é, matéria, literalmente um lócus

físico e concreto. Essa matéria física não é inerte, sem vida, mas sim uma superfície

moldável, transformável, remodelável por técnicas disciplinares e de biopolítica.

Com isso, o corpo é um ente – com sua propriedade de “ser” –, que sofre a ação das

relações de poder que compõem tecnologias políticas específicas e históricas.

Os mecanismos disciplinares, dentro de uma perspectiva foucaultiana nos ajudam a

compreender como esse corpo é produzido, como através das relações de poder essa noção de

Page 50: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

49

corpo é inserida e percebida. Logo, o corpo, ou melhor, a maneira pela qual o percebemos,

deve estar em consonância com a estrutura à qual encontrasse incorporado, sendo seu desvio

encarado com estranheza diante dos padrões impostos. Através do discurso de Emmesson

podemos ilustrar de que maneira esta ideia de normalidade, que também é relativa às várias

modificações corporais que são praticadas em nossa sociedade, recai sobre a tatuagem. Este

tipo específico de adereço corporal encontra-se parcialmente excluído das remodelações

corporais legitimadas na sociedade contemporânea.

[...] acho que a maioria da população, ou talvez apenas os mais antigos, ainda são

conservadores, não em relação a tudo, mas pelo menos ao que diz respeito à

mudança corporal e o fato de se expressar, ou talvez modificar o corpo por prazer

vai contra essa maioria. Talvez não seja de fato só mudança corporal em si. Pois

plásticas, lipo, implantes de cabelo etc, são mais bem vistas ou pelo menos, menos

mal vistas. Então, é ser diferente do que está predominando ( Emmeson, gerente de

vendas).

Esta ideia de corpo na qual devemos encarnar tende a entra em choque com maneiras

alternativas de personifica-lo. Ao passo que modificar suas características tidas como naturais

através de procedimentos que se encontram inseridos dentro de práticas legitimadas, como os

procedimentos cirúrgicos estéticos, não é tido como algo estranho, porém, a ruptura com a

representação legítima desta matéria física através da tatuagem, mesmo com o intuito de

embelezamento para o indivíduo, é encarado muitas vezes como exótico, anormal ou mesmo

bizarro. Neste sentindo, a tatuagem, por mais difusa e popularizada que esteja em nossa atual

conjuntura, ainda é um tipo de modificação corporal que possui um limite quanto ao estilo, à

quantidade e localização, características estas que acabam por enquadrar a um modelo

aceitável de tatuagens. Estes corpos são aferidos a um padrão no qual possuí certos desenhos,

número e lugares para as tatuagens, distinguindo-os entre belos ou feios, normais ou

estranhos, aceitáveis ou condenáveis.

Este tipo de relato perpassou as falas de vários de nossos entrevistados, tal como

podemos perceber através das palavras de Danie. Ela possui uma tatuagem de uma caveira

localizada na parte inferior interna do seu antebraço, e relatou já ter recebido alguns olhares

de reprovação de terceiros. Segundo ela:

[...] hoje todo mundo tem tattoo, por menor e mais simples que seja. Mas quem faz

mudança no corpo e não se contenta em parar em 1, 2 e possui várias expostas acaba

sendo e se sentindo um pouco diferente sim, e acho que são enxergados de tal forma.

Page 51: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

50

[...] existe um padrão de beleza imposto do que é perfeito e do que é estranho/feio,

infelizmente (Danie, supervisora de operações).

Através da fala de Danie podemos perceber que o corpo deve ser encarado como uma

superfície onde se exercem relações de poder, visto como um caminho para a subjetivação;

uma maneira de entender as relações de poder-saber nas sociedades modernas. Este corpo está

em constante relação com o poder disciplinar, ao qual irá docilizá-lo ao máximo criando

maneiras de extrair deste a maior produtividade possível, ou mesmo inibi-la, caso este venha a

transgredir tais processos disciplinares (MENDES, 2006). E para além da extração da força

produtiva, também o legitima enquanto espaço de simbolização, validando certas

modificações que se encontram polarizadas em praticáveis e censuráveis, estabelecendo não

somente uma ideia de belo ou feio, mas balizando a construção subjetiva do ser.

Figura 4 - Tatuagem de Danie no antebraço.

A obediência às regras não se faz apenas por receio às punições, pois encontrasse

cristalizada nos próprios indivíduos, pelo desejo de seu reconhecimento enquanto parte

integrante da sociedade, como nós alerta Rodrigues (2006, p.38), uma vez que “[...] não

existindo indivíduo sem a sociedade, este não pode negá-la sem no mesmo ato estar negando

a si mesmo. Neste sentido, a sociedade é um bem e suas regras apresentam-se como

desejáveis.”

Page 52: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

51

Neste sentido, podemos nos pautar na obra “O processo civilizador”, de Nobert Elias

(1994), para compreender de que maneira ocorreu o desenvolvimento de condutas de

autocontrole que cristalizam um modo de ser civilizado no ocidente. Tomando como base de

suas analises obras que buscaram uma educação e polidez do comportamento em meados do

século XVI, e como estas regras de etiqueta moldaram e controlaram a afetividade, as

emoções e a experiência humana, Elias nos chama a atenção para perceber que este processo

civilizador:

[...] consiste principalmente na mudança estrutural ocorrida em pessoas na direção

de maior consolidação e diferenciação de seus controles emocionais e, por

conseguinte, de sua experiência (como, por exemplo, na forma de um avanço do

patamar de vergonha e nojo) e de sua conduta (como, por exemplo, na diferenciação

dos utensílios usados à mesa) (id., ibid., p.216).

O processo civilizador percorreu a história ocidental impondo padrões

comportamentais específicos com fortes consequências ao corpo. Tais maneiras de balizar as

condutas humanas recaem sobre a maneira como os indivíduos se relacionam com seus corpos

e o modo que devem se relacionar com as funções corporais, introjetando, ao longo do

processo de educação, uma naturalização dos hábitos de higiene, etiqueta e representação do

seu corpo. “A consequência desse processo é uma ampliação do mental em detrimento do

corporal e o desenvolvimento de um autocontrole que deve moldar pulsões, sentimentos e

afetos.” (ALBUQUERQUE, 2001, p.34). Desta maneira, a coerção externa que se daria

através de punições e penalidades passa a ser autocoerção, manifestada na educação e polidez

dos indivíduos que controlam a si mesmos.

A tatuagem, ao ser associada a uma prática vinculada a povos selvagens, e logo após a

um comportamento desviante e marginal, é excluída das condutas civilizadoras, permeando a

educação e assim balizando a maneira de como um corpo (civilizado) deveria ser concebido.

Neste sentido, a prática da tatuagem encontrasse atrelada às relações de poder-saber que

moldam os corpos e as subjetividades dos sujeitos.

3.2 Corpo, poder e sujeito em Foucault

O intuito dos estudos de Michel Foucault (1995) não se pautava simplesmente em

elaborar fundamentos de analises em relação ao fenômeno do poder. Foucault buscava

Page 53: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

52

compreender, através do método arqueológico, a história dos diversos modos pelos quais, na

cultura ocidental, o ser humano se torna sujeito. O que nos leva a entender que não é o poder

que constitui seu tema geral, mas sim o sujeito. Este sujeito se encontra e é colocado em

relações de produção e significado, sendo desta forma igualmente posto em complexas

relações de poder.

É necessário, assim, entender as dimensões de uma definição de poder, uma vez que

esta vem a objetivar o sujeito. Primeiramente temos que ter em mente as condições históricas

que se encontram por detrás dessa conceituação, ou seja, se faz necessário uma consciência

histórica da situação presente, assim como também necessitamos de uma nova forma de

economia das relações de poder. O intuito então seria analisar racionalidades específicas

como processos em campos variados, aos quais fazem referência a uma experiência

fundamental (FOUCAULT, 1995).

Foucault expõe essa nova forma de economia das relações de poder com implicações

mais próximas entre a teoria e a prática.

Ela consiste em usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder

como um ponto de partida. Para usar uma outra metáfora, ela consiste em usar esta

resistência como um catalisador químico de modo a esclarecer as relações de poder,

localizar sua posição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodos empregados.

Mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela

consiste em analisar as relações de poder através do antagonismo das estratégias

(Id., ibid., p.244).

Em outras palavras, se por um acaso deseja-se descobrir o significado da sanidade em

nossa sociedade, deveríamos atentar para investigação do campo da insanidade. Da mesma

forma, para conseguirmos compreender o significado da prática da tatuagem, devemos nos

atentar para os impedimentos que dizem respeito às modificações corporais.

Tal qual nos referimos anteriormente, as modificações corporais entram em um rol que

separa representações cabíveis e condenáveis, permeando as relações humanas e

determinando as possibilidades do indivíduo se conceber. Podemos perceber através do

discurso acercado preconceito sofrido por aqueles que se utilizam desta prática que existe uma

relação de poderes, contrários, opostos, dispares em relação à imagem do corpo e de como

esta deve ser representada. Estes poderes visão uma homogeneização da ideia de corpo. Ao

questionarmos se a tatuagem proporciona algum tipo de mudança na relação indivíduo-

Page 54: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

53

sociedade, Mateus nos ilustra de que é inevitável não entrar em conflito no que diz respeito ao

preconceito que estas marcas vêm a causar nas relações interpessoais.

Eu acho que muda. Muita gente diz que não muda nada em você, mas de um jeito ou

de outro você vai ter que bater de cara com o preconceito, você vai ter que mudar

em relação a... muita gente vai olhar torto pra você. [...] Eu comigo mesmo sou a

mesma coisa, sou até melhor quando faço uma tatuagem. Porque... Quando eu faço

uma tatuagem eu me sinto renovado, assim, mais estiloso. Vai me dizer que quando

você fez a pessoa não fica se olhando de frente pro espelho assim e tal, ficou massa

e não sei o que. Aumenta o ego da pessoa (Mateus, estudante).

Segundo Foucault (ibid.), uma série de lutas antiautoritárias surgiu nos últimos anos,

porém, não basta enxergá-las simplesmente enquanto tais, mas sim perceber o que há de

comum entre elas. Foucault elenca seis características em comum: 1) São lutas “transversais”,

ou seja, não se limitam a um país; 2) O objetivo destas lutas são os efeitos de poder enquanto

tal; 3) São lutas “imediatas”, ou seja, objetiva-se o inimigo imediato, criticam-se as instâncias

de poder mais próximas; 4) São lutas que questionam o estatuto do indivíduo, não são contra

nem a favor do “indivíduo”, são batalhas contra o “governo da individualização”; 5) São lutas

contra os privilégios do saber, pondo em questão o modo pelo qual esse saber circula e

funciona, assim como suas relações de poder; 6) Todas essas lutas giram em torno de um

questionamento: quem somos nós?

O objetivo principal destas lutas não seria atacar um determinado grupo, instituição ou

classe, mas sim uma técnica, uma forma de poder.

Esta forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo,

marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe

uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer

nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois significados

para a palavra sujeito: sujeito ao outro através do controle e da dependência, e ligado

à sua própria identidade através de uma consciência ou do autoconhecimento.

Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e sujeita (Id., ibid., p.235).

No entender de Michel Foucault, haveria três tipos de luta: contra as formas de

dominação; contra a exploração e o que separe o indivíduo daquilo que ele produz; contra

aquilo que liga o individuo a si mesmo, e desta forma, o submete ao outro.

Em nossa sociedade essas lutas tendem a prevalecer devido ao fato de que uma nova

forma de política do saber se desenvolveu de modo contínuo desde o século XVI. Esta nova

estrutura política seria o Estado. O poder do Estado combina duas técnicas, que seriam a

Page 55: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

54

individualização e os procedimentos para uma totalização. Porém, Foucault (ibid., p.237) nos

alerta para um detalhe importante em relação ao Estado:

Não acredito que devêssemos considerar o “Estado moderno” como uma entidade

que se tenha desenvolvido acima dos indivíduos, ignorando o que eles são e até

mesmo sua própria existência, mas, ao contrário, como uma estrutura muito

sofisticada, na qual os indivíduos podem ser integrados sob uma condição: que esta

individualidade fosse moldada numa nova forma e submetida a um conjunto de

modelos muito específicos.

De inicio vale salientar que o poder dentro da perspectiva foucaultiana em questão não

é tratado enquanto objeto, ou seja, como algo que se possui ou não, ou mesmo a um nível

institucional (o poder pertencente a uma instituição em específico), mas sim enquanto uma

relação que se estabelece historicamente através das práticas, saberes e discursos que dizem

respeito aos indivíduos.

Temos que alçar nosso olhar para como se exerce esse poder sobre os indivíduos,

como acontece quando os indivíduos exercem esse poder sobre os outros, e não buscar

entendê-lo em como se manifesta.

Foucault (ibid., p.240, grifo do autor) expressa a motivação que o leva a seguir essa

lógica de raciocínio:

Grosso modo, eu diria que começar a análise pelo “como” é introduzir a suspeita de

que o “poder” não existe; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdos

significativos podemos visar quando usamos este termo majestoso, globalizante e

substantificador; é desconfiar que deixamos escapar um conjunto de realidades

bastante complexo, quando claudicamos, indefinidamente, ante a dupla

interrogação: “O que é o poder? De onde vem o poder?” A pequena questão, direta e

empírica: “Como isto acontece?”, formulada como esclarecedora, não tem por

função denunciar como fraude uma “metafísica” ou uma “ontologia” do poder; mas

tentar uma investigação crítica sobre a temática do poder.

O poder, como foi dito anteriormente, se dá em um processo de relações, e tais

relações são colocadas em jogo entre os indivíduos. O poder é exercido por alguns sobre os

outros.

Neste sentindo, quando falamos em padrões corporais temos o entendimento de que

existe uma ideia de uniformização destes corpos a um modelo, que deve ser seguido por todos

aqueles que se encontram no seio de nossa sociedade contemporânea. Apesar da ampliação

das caraterísticas que envolvem este modelo, a concepção de como devemos encarnar este

Page 56: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

55

corpo encontrasse permeada por relações de poder que tentam limitar os horizontes possíveis.

Vislumbramos estes aspectos através do depoimento de Ivickson, quando este menciona suas

influências de estilo de vida, e para o mundo da tatuagem, que se pautam no meio Hardcore e

no skate, ambos presentes em sua adolescência. Através da filosofia deste estilo de vida,

Ivickson nos proporciona um entendimento de como os indivíduos se encontram em um

processo de resistência contra uma padronização destes corpos.

Foi a minha vida mesmo, acho que foi até mesmo reflexo de minha adolescência.

Como eu andava e frequentei muito o meio Hardcore lá em João pessoa,

principalmente, por que passei a adolescência lá, e o movimento lá, de 90 pra 2000,

tinha um movimento interessante lá. Punk rock, Hardcore e tudo mais, então assim,

e como eu andei com pessoal de skate muito, então isso ficou. Ai eu realmente

adotei, assim como um estilo mesmo, até de música pra se ouvir. [...] É um modo de

viver alheio a muita padronização, muita sistematização. Claro que tem que ter uma

sistematização pras coisas, mas eu acho que alheio a uma massificação, a coisas que

são impostas sem você pensar. Então, esse tipo de coisas que as pessoas seguem, são

submissos, e não sabem por que, então eu acho que o Punk-rock-Hardcore eles

expressão [...] pra mostrar isso [Figura 6] (Ivickson, professor).

Tal analise das relações de poder devem considerar o indivíduo como agente da ação,

e não simplesmente como uma marionete, no qual irá deixar apoderar-se. Uma relação de

poder pressupõe indivíduos livres, ou seja, tanto indivíduos ou grupos de indivíduos possuem

um campo de possibilidades, onde diversas condutas, reações e comportamentos estão diante

de si.

O poder aqui exposto não deve ser encarado de uma maneira negativa, de forma

comumente encarada pelo senso comum, como o poder que não permite escapatórias ou vias

alternativas de fuga.

O poder, enquanto relacional, só existe em ato, tanto do lado de quem o exerce como

do lado daquele sobre o qual é exercido. Dessa forma, o poder é visto em sua

positividade, pois na verdade, o poder produz; produz realidade. O poder permeia,

induz ao prazer, constitui saber, produz discurso (CARVALHO; SILVA, 2010, p.

2).

Page 57: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

56

Figura 5 - Tatuagem no antebraço de Ivickson. Um estilo de vida impresso na pele.

Nesta via de pensamento, o poder deve ser visto como um exercício ao qual visa

balizar condutas e ordenar possibilidades. Poderíamos dizer que o poder se constitui enquanto

um conjunto de ações que recaem sobre outras ações possíveis, induzindo e respondendo uma

as outras, facilitando ou dificultando, ampliando ou limitando tais ações.

3.3 Cuidados de si e liberdade

As relações de poder suscitam respostas, reações, invenções. Nas palavras de Foucault

(1988, p.91), “[...] onde há poder, há resistência”, ou seja, o poder proporciona possibilidades

de liberdade, porém, essa liberdade é agonística, não possui o triunfo de uma vitória sobre o

poder, não é plena tal como é idealizada por muitos. Faz parte desta própria relação uma

constante luta, um embate no qual o ser humano busca não se sujeitar.

[...] se é verdade que no centro das relações de poder e como condição permanente

de sua existência, há uma “insubmissão” e liberdades essencialmente renitentes, não

há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual;

Page 58: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

57

toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de

luta [...] (FOUCAULT, 1995, p.248, grifo do autor).

A resistência surgiria então como uma prática na qual visa enfrentar às práticas de

sujeição, às práticas dominadoras, “[...] institui-se como um modo de desassujeitamento na

produção da própria subjetividade.” (CARVALHO; SILVA, 2010, p. 3). A liberdade surge a

partir de atitudes e comportamentos, os quais visam ir de encontro com o que é, de certa

maneira, imposto pelas práticas de sujeição, tentando desta forma se instituir como sujeitos

das suas próprias práticas.

Seguindo este viés de pensamento, os saberes concernentes aos modos de

representação dos nossos corpos estão ligados a estas relações de poder-saber. Como pudemos

observar anteriormente, as marcas corporais se encontram ligadas a formas de padronizações

que dizem respeito a como devemos gerir estes corpos, restringindo suas possibilidades e

impondo modelos a serem seguidos. Assim, a tatuagem pode ser encarada enquanto uma

maneira destes sujeitos exercerem suas liberdades sobre si, ornamentando seus corpos fora de

padrões estéticos impostos.

Liberdade e poder não são antagônicos, mas sim correlatos um ao outro, um

constituindo a fronteira do outro. Elas são residentes de um mesmo campo de forças e formam

assim um limite permanente. Estabelecem entre si uma provocação constante. Nunca se é

livre fora desta dimensão, pois não há liberdade fora das relações de poder. “O poder só se

exerce, portanto, sobre sujeitos livres e na proporção em que eles são livres, pois, do

contrário, seria um estado de dominação, sem margem para a efetivação da liberdade.” (Id.,

ibid., p. 4).

Ao pensarmos os processos que visam padronizar o corpo, sejam através dos

processos educativos ou dos veículos midiáticos, podemos observar de que maneira a

tatuagem, assim como outras modificações corporais, se encontram em um caminho que vai

de encontro a esta normatização, servindo aos indivíduos como uma maneira de expressar

suas singularidades, da mesma forma que expõe uma resistência por parte destes atores a uma

sujeição a um padrão corporal, que é tido enquanto um padrão a ser seguido e desejado.

Se encaixar dentro de um padrão de beleza, se encaixar dentro de um padrão de

estilo de vida, se encaixar... Eu acho que ainda tem muito, apesar de você ter várias

opções hoje, mas essas várias opções se transformam cada uma em uma. O negócio

ele só se espalhou mais, mas eu acho que ainda tem (Ivickson, Professor).

Page 59: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

58

Estas formas alternativas de se corporificar também acabam entrando em

padronizações que subjugam os indivíduos, e que por mais que exista um alargamento destas

possibilidades, ainda sim, estas relações de padronização e resistência só são possíveis dentro

desta constante relação de poder.

A liberdade é uma condição para a existência do poder, assim como para a existência

do sujeito. Se o poder se exerce de tal forma a anular a liberdade, o poder se converte em

dominação, e o sujeito em mero objeto.

Aos olhos de Foucault se faz necessário praticar a liberdade eticamente. A liberdade

seria condição ontológica para a ética, assim como esta seria a forma refletida que a liberdade

assume (CARVALHO; SILVA, 2010).

Foucault, desta maneira, ao investigar a cultura da antiguidade greco-romana, colocou

a ética como prática racional de liberdade, a qual girava em torno do imperativo “cuida-te de

ti mesmo.” (FOUCAULT, 2004b, p.268). Esse cuidar de si implicava várias ações do sujeito

para com ele próprio, o que encerraria a prática da governabilidade. Esta governabilidade

abarcaria um conjunto de práticas pelas quais seria possível “[...] constituir, ordenar, definir,

instrumentalizar as estratégias que os seres humanos, em sua liberdade, podem ter em relações

aos outros.” (CARVALHO; SILVA, 2010, P. 4). É este governo de si que faz valer a

liberdade do sujeito.

A ética aqui deve ser entendida como uma ação que contribui para a formação da

subjetividade. Está ligado ao tipo de pessoa que supostamente se deseja ser, ao tipo de vida ao

qual seguir, ao estado moral que se é convidado a atingir.

A ética, na concepção do filósofo, refere-se a um processo de subjetivação de cunho

moral, por meio do qual o indivíduo constrói relações consigo mesmo e busca

transformar-se, permanentemente, mediante os cuidados, as técnicas ou as práticas

de si. Ou seja, o termo ético, em Foucault, faz referência à relação consigo mesmo e

se traduz como uma prática, um exercício que o ser executa em prol de si próprio, na

tentativa de ficar bem, de se constituir enquanto sujeito (Id., ibid., p. 5).

A tatuagem é a concretização de um desejo, a realização de uma vontade do sujeito

que dialoga com sua subjetividade, sendo elencada como algo que muda o estado de espírito

depois de sua aquisição, como nos relata Mateus, renovando sua autoimagem e autoestima.

[...] quando eu faço uma tatuagem eu me sinto renovado, assim, mais estiloso. Vai

me dizer que quando você fez a pessoa não fica se olhando de frente pro espelho.

[...] aumenta o ego da pessoa (Mateus, estudante).

Page 60: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

59

Desta maneira, percebemos uma aproximação da prática da tatuagem ao que Foucault

denomina enquanto uma prática ascética, conhecida por tecnologia do eu, onde o indivíduo

por si só, ou com a ajuda de outros, pode efetuar ações em relação ao seu corpo e a sua alma,

sobre seu pensamento, objetivando um estado de felicidade, força, sabedoria, perfeição ou

integridade.

Os modos de subjetivação seriam uma ética da moral, constituindo um ethos, ou seja,

uma maneira de ser do sujeito que se traduzem em variados aspectos, como costume, sua

maneira de se portar diante de si, da vida e dos outros.

Dentro desta linha de pensamento, o indivíduo que fosse capaz de exercer essa

maneira de subjetivação, de controlar a si mesmo, estaria exercendo a liberdade de fato. A

relação de si consigo mesmo também advêm de uma relação com o outro, uma vez que para

se ter tais cuidados de si para consigo seria preciso saber ouvir os saberes de um mestre, tais

como conselhos proferidos por amigos, etc.

Foucault, desta maneira, abre o espaço para questionarmos a respeito de novas

maneiras de produzir esta subjetividade, de nos produzirmos. Deveríamos então, com o

auxílio desta investigação proposta em relação à ética dos Greco-romanos, cujo objetivo se

pautava em uma estética da existência, encarar a própria vida como uma obra de arte.

Desse modo, Foucault problematiza a Grécia clássica não como “algo ao qual

retroceder”, nem como “valor exemplar”, mas compreendendo que dentre as

invenções culturais da humanidade há dispositivos, procedimentos que constituem

ou ajudam constituir um certo ponto de vista que pode ser útil como uma ferramenta

para analisar o que ocorre hoje em dia e para modificá-lo (CARVALHO; SILVA,

2010, p. 6).

Em nossa sociedade essa forma de se relacionar consigo mesmo de maneira ética e

estética estaria em certa via perdida, e como haveria uma necessidade de transformar essa

nossa sociedade através dessa construção de nós mesmo, tomando como referência o modo de

se relacionar consigo tratado pelos Gregos.

As práticas de modificações corporais possibilitam ao sujeito um contato consigo

mesmo através da superação da dor, da realização e felicidade de ver nascer em si algo que

condiz com sua representação, exercem grande influência no modo de encarar e se relacionar

com suas subjetividades. À medida que os pigmentos se fixam na pele, a construção da

identidade através desta experiência, cristaliza uma singularidade impar através da memória

deste investimento voluntário para consigo.

Page 61: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

60

3.4 A moderna bioascese e as bioidentidades

Na contemporaneidade, a ascese clássica que representava uma forma de resistência e

uma vontade de singularização que estaria ligada a práticas investidas no corpo com intuito de

crescimento espiritual, e que também estaria ligada a uma dimensão político-social, que

visava a cidade e o outro, dá lugar ao que Ortega (2008) denomina de bioasceses. As

bioasceses, na maioria de suas práticas, visão a saúde e o corpo perfeitos, configurando-se em

uma vontade de uniformidade, a uma adaptação a norma de modos de existir conformistas e

egoístas. Ainda a luz dos conhecimentos de Ortega (ibid., p.30) a bioasceses proporciona

biossociabilidades, que seriam:

[...] uma forma de sociabilidade apolítica construídas por grupos de interesses

privados, não mais reunidos segundo critérios de agrupamentos tradicionais como

raça, classe, estamento, orientação política, como acontecia na biopolítica clássica,

mas segundo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas,

logevidade, entre outros.

Um dos elementos estruturantes básicos da biossociabilidade seria o discurso do risco,

o qual separa experts de leigos e o modo pelo qual organizam seus mundos sociais. O olhar

censurador do outro leva a introjeção da retórica do risco, que resulta em um indivíduo

responsável e orientado a escolhas comportamentais e estilos de vida que tem por finalidade a

saúde e o corpo perfeito, longe de perigos. O indivíduo que não procura uma existência livre

de ameaças é encarado como um desviante, irresponsável, que fornece maus exemplos (Id.,

ibid.).

A ênfase crescente dada na nossa sociedade contemporânea aos diversos

procedimentos de cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos leva à

formação de identidades somáticas, às bioidentidades, as quais têm deslocado para a

exterioridade o modelo internalista e intimista de construções e descrições de si (Id.,

ibid., p. 42).

A externalização da subjetividade se torna sintoma da contemporaneidade, onde

através do corpo se demonstra aquilo do que gosta e o que é, independente das filiações

culturais e de classe (SANT’ANNA, 2001). “A própria subjetividade e interioridade do

indivíduo são deslocadas para o corpo [...].” (ORTEGA, 2008, p.43). Nas palavras de Le

Breton (2004, p.21) em nossas sociedades “[...] a interioridade do sujeito é um esforço

constante de aparência, reduz-se à sua superfície.”

Page 62: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

61

Com a cultura da biossociabilidade tendo um dos seus pilares a aparência corporal

como fundamental para a identidade pessoal, tornando os indivíduos “escravos da aparência”,

as marcas corporais agiriam como uma representação da busca por autenticidade, segundo

Ortega (ibid., p.61), “[...] de uma localização real de nossa essência na sociedade da

aparência.” Esta localização real se daria justamente por uma manutenção do discurso do

risco, uma vez que a prática das modificações corporais proporcionaria uma possível porta de

acesso à contaminação, mas também pelo fato de que a dor é um elemento fundamental desta

prática, que poderia ser encarado como “[...] uma via de acesso ao corpo vivido numa cultura

como a nossa, na qual a dor é um anacronismo que deve ser suprimido, um escândalo

intolerável [...].” (Id., Ibib., p.64).

A ressignificação da dor relatada anteriormente por nossos entrevistados nos auxiliam

no entendimento deste posicionamento, uma vez que este fator ainda é um dos grandes

argumentos para não se fazer tatuagens. A dor, e toda prática que a proporcione, ainda é

encarada como algo a ser evitado, aliando-se ainda a uma forma alternativa de encarnar este

corpo, fugindo aos padrões legitimados em nossa sociedade.

As marcas corporais representam uma ilusão de ruptura com a ordem simbólica,

buscando, testando e incorporando os limites simbólicos do corpo em vias de atingir seus

reais limites, criando desta forma uma nova relação com o real. As modificações corporais

constituem uma radicalização do real: “[...] quando a ordem simbólica não produz mais a

ordem social, o simbólico é reduzido ao Real, ele é incorporado, encarnado.” (Id., ibid., p.62).

À luz dos conhecimentos de Ortega (ibid.), se por um lado a formação de

bioidentidades através das modificações corporais possam parecer seguir um padrão

identitário e apolítico, características constituintes das modernas biossociabilidades, em um

nível fenomenológico da experiência subjetiva as modificações corporais se constituiriam em

um “[...] esforço de fugir da cultura da aparência e de recuperar uma dimensão do vivido

corporal.” (p.57). Podemos perceber isso na fala de um dos nossos interlocutores, quando este

afirma que sua decisão pelas marcas corporais seria uma forma de se rebelar contra uma

repressão instaurada no senso comum.

Se rebelar contra a repressão das pessoas contrárias ao que eu queira ser... A minha

pessoa. Não rebelar contra algo, e sim apenas a pressão das outras pessoas. Então,

quando minha mãe falou assim: “não! Não quero, não quero”, é... Eu fui por mim

[...], pela minha vontade. Mais uma forma de eu seguir aquilo que eu queria fazer,

não deixar me abater pelo que outras pessoas pensam. Ela vir com um argumento

Page 63: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

62

completamente inválido [...], ou seja, eu me rebelei contra aquela opressão dela, não

contra ela [...]. É apenas seguir o que você quer, o que você é. É uma coisa em mim

que eu sempre gostei (Jean, professor).

A imagem de um corpo ideal, comum e normal a todos se faz presente em nosso

cotidiano. Desde a infância nossa noção de corpo é cultivada e alimentada dentro de padrões e

normas, visando uma conduta comum, uma normalidade na maneira que nos relacionamos

com nosso corpo e como devemos tratá-lo. Porém, estas condutas a serem seguidas não

encontram um indivíduo passivo, apática, indiferente. O sujeito rompe este paradigma,

resistindo a esta subjugação ao exercer sua liberdade. As marcas corporais ultrapassam os

limites impostos pelas modernas bissociabilidades, possibilitando aos indivíduos moldarem

seus corpos ao bem entender de suas imaginações, permitindo a estes vivenciarem a

experiência de se conceberem de uma maneira idealizada, movimento significativo na

construção de suas identidades; de buscar uma característica que os façam distinguir do corpo

padronizado, alcançando uma singularidade. A tatuagem, através deste prisma, é uma

manifestação da ruptura da ordem simbólica que unia o indivíduo à sociedade, fazendo com

que este sujeito crie novos pontos de apoio simbólicos, encarnando suas realidades através das

marcas corporais como um porto seguro o qual irá fixar um sentindo para sua existência.

3.5 Horizontes do corpo

Podemos perceber em Bourdieu (2001) uma superação do distanciamento do corpo em

relação ao mundo. Para o referido autor, o mundo é compreensível devido à capacidade do

corpo estar presente no exterior de si mesmo, no mundo, e de ser impressionado e

duravelmente modificado por ele.

A relação com o mundo é uma relação de presença no mundo, de estar no mundo, no

sentido de pertencer ao mundo, de ser possuído por ele, na qual nem o agente nem o

objeto são colocados como tais. O grau em que o corpo é investido nessa relação

constitui decerto um dos principais determinantes do interesse e da atenção que se

acham nela mobilizados, bem como da importância – mensurável por sua duração,

sua intensidade, etc. – das modificações corporais dela decorrente (id., ibid., p.172).

As modificações corporais manifestam a relação do indivíduo com o mundo ao seu

redor, a maneira como este encara sua realidade e a interpreta, um investimento em seu

próprio corpo na busca por um pertencimento de si, marcando sua relação consigo e com os

Page 64: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

63

outros. As modificações corporais podem ser diversas, englobando desde cortes de cabelos e

maquilagens até cirurgias plásticas e outras intervenções mais radicais sobre o corpo como

tatuagens e piercings. Modificar o corpo implica uma modificação não somente na aparência;

não é apenas o visual que se encontra submetido a uma transformação, mas toda uma cadeia

de relações.

Eu vejo que uma pessoa tá se descaracterizando ou ela tá criando uma nova versão

de si mesmo que ela acha mais condizente com o que ela é por dentro. Ela tá

modificando a parte externa pra ser mais condizente com o que ela é por dentro. Eu

acho que a tatuagem é parecido com isso um pouco. Você tá marcando fora do seu

corpo ideias através de imagens, ou às vezes através de palavras mesmo, que lhe

representam, que representam quem você é (Joaquim, estudante).

Bourdieu (ibid.) nos chama a atenção para o fato de que por meio desta constante

confrontação com o mundo, a ordem social se inscreve nos corpos, pois é pelo corpo que

aprendemos. Esta relação com o mundo não se dá de forma passiva, relegando ao indivíduo

um papel de mero receptáculo da ordem imposta, mas sim numa relação dupla, estruturada e

estruturante, com o ambiente.

Ele constitui o lugar de solidariedade duráveis, de fidelidades incoercíveis, pelo fato

de estarem fundadas em leis e laços incorporados [...], adesão visceral de um corpo

socializado ao corpo social que o fez e com o qual ele faz corpo (id., ibid., p.176-

177).

O corpo é parte primordial da experiência do indivíduo no mundo, instaurando uma

forte conexão entre os atores sociais e a sociedade, local de impressões visíveis e invisíveis,

declaradas e tácitas, ambas reais e enraizadas no corpo.

Podemos perceber que o corpo sugere separações e uniões, possui demarcações que

impõem limites ao passo que indica o que há fora dele. Assim como olhar para o horizonte e

perceber os limites que confundem o céu com a terra ou o mar, o corpo é um paradoxo que

faz com que vários horizontes se abram, seja na moda, no campo da sexualidade, dos gêneros,

passando pela saúde e educação física, e que também remete as modificações corporais. O

corpo possui inúmeros detalhes os quais são impossíveis de serem apreendidos ou decifrados,

pois seria muito difícil limitar o corpo à apenas um prisma da realidade, seria “[...] ocioso e

vão definir de uma vez por todas o que é o corpo e como ele deve ser utilizado.”

(SANT’ANNA, 2005, p.121).

Page 65: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

64

As diversas formas de intervir no corpo sejam através da moda, de intervenções

cirúrgicas ou modificações corporais, podem servir como um catalisador da ânsia por

consumo de “novos horizontes”, ou de forma diferente, podem servir para que o corpo se

torne o próprio horizonte, ajudando o corpo a se tornar ele mesmo (id., ibid.).

Muitos corpo funcionam exatamente desse modo: enquanto alguns querem se

apropriar de horizontes nunca vistos, outros funcionam eles mesmos como

horizontes que diferem repetindo a experiência de viver um dia após o outro [...].

Por isso, há que se manter uma espécie de articulação simétrica entre o plano

individual e o plano coletivo. No lugar de valorizar um em desprezo do outro,

valoriza-se a composição de ambos [...] (id., ibid., p.133).

O indivíduo faz do seu corpo o próprio horizonte, vivenciando-o ao modificá-lo,

contemplando-o a cada nova marca impressa em si, reiterando a experimentação de sua

existência na busca de harmonizar seu eu no mundo.

Eu sempre olho, sempre admiro o fato de tá ali, porque é uma parte nova do meu

corpo, há um diferencial no meu corpo e eu fico prestando atenção àquilo de uma

forma positiva, admirando ele. Mas eventualmente, com o tempo, se torna o meu

corpo, passa a ser... Aquela parte nova passa a ser uma parte do meu corpo, então

quando eu olho pro meu braço tatuado eu já não vejo mais a tatuagem, eu vejo o

meu braço, ele é normal. Eu não fico olhando pra ele; ele tá lá, ele existe e eu não

sinto o peso da tatuagem, eu não sinto o peso do desenho que você sente no começo.

[...] e eu começo a olhar a outra parte, eu começo a olhar as partes que não tem

tatuagem, porque eu fico querendo botar mais tatuagens novas (Joaquim, estudante).

[...] existe uma sensação diferente, porque é o seu corpo, o corpo ele também é a

pessoa. O corpo não é só físico, o corpo é a pessoa, você pode também ter ideias no

corpo, seu movimento é o jeito de você pensar. Então por isso, eu acho que você

pode se sentir diferente com algumas tatuagens, porque se você se sente diferente

para o outro, então por que você não se sentir diferente pra si mesmo? Que as vezes

você é o mesmo, mas você é o outro também quando você olha pro seu corpo. Você

tá olhando pra você, mas o corpo é um objeto e um sujeito ao mesmo tempo, acaba

acontecendo isso ai (Ivickson, professor).

Page 66: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

65

Figura 6 - Tatuagem da ilustração feita por Robert Crumb de Franz Kafka.

Modificar o corpo não é apenas uma modificação estética, no sentido de interferir

unicamente no exterior do indivíduo. As modificações se dão no corpo, logo, no próprio

sujeito, uma vez que não podemos conceber a ideia de um corpo separado da pessoa que o

encarna. Através do relato de Ivickson podemos ilustrar de que forma nossos corpos são ao

mesmo tempo objetos e sujeitos, para nós e para o outro, uma zona que nos distancia ao

mesmo passo que nos uni com o mundo sensível, e através da tatuagem pode se experienciar

uma sensação de distinção, para o outro e para si mesmo.

3.6 Tatuagem como memória

A prática da tatuagem atravessou a existência dos seres humanos em várias épocas e

continentes, assim como teve propósitos e técnicas diversas em toda sua história. Estas marcas

corporais encontravam-se diretamente ligadas ao desvio, servindo como um emblema

pertencente àqueles que eram relegados à margem da sociedade, servindo muitas vezes como

uma forma de imprimir em si os delitos cometidos ou mesmo para legitimar a dissociação e

desagrado com o outro. A passagem desta prática, que antes se encontrava situada em locais

improvisados e passa para os centros das cidades, modificou o panorama das marcas

Page 67: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

66

corporais. Inserida em um seguimento comercial, a tatuagem é ressignificada, passa a ser uma

ornamentação a mais para o corpo, uma intervenção estética que expressa a personalidade do

indivíduo. A tinta penetra na pele sublinhando gostos, momentos, experiências, vivências das

quais são primordiais para a edificação destes atores sociais, os quais recorrem a este tipo de

modificação corporal enquanto cristalizador das suas identidades. A tatuagem vai além de um

embelezamento corporal, é uma maneira de ressignificar a dor, um modo de objetificar traços

da subjetividade do ser, de sua maneira de encarar e interpretar o mundo em que vive. As

marcas corporais são uma busca por distinção, originalidade, uma individualidade que muitas

vezes funcionam como um elo tegumentar que possibilita a relação entre indivíduos que

partilham esta prática, sejam estes tatuados ou tatuadores.

A prática da tatuagem como uma maneira de buscar uma cristalização de uma

identidade, a qual encontrasse inserida em uma sociedade cada vez mais efêmera, é vista em

Le Breton (2003, p.40) quando este afirma que: “A marca é um limite simbólico desenhado

sobre a pele, fixa um batente na busca de significado e de identidade, é uma espécie de

assinatura de si pela qual o indivíduo se afirma em uma identidade escolhida.”.

Neste sentido, as marcas corporais são uma maneira de marcar suas próprias

identidades, de se identificar enquanto sujeito, deixando impresso em si através de traços e

cores quem a pessoa é, quais vivências foram importantes, assim como características e gostos

que se julgam permanentes na constituição de si. Estes fatores se tornam claros diante da fala

de Jean, o qual possui a maior parte de suas tatuagens em homenagem a bandas das quais ele

acredita que o representariam e fariam parte de sua própria construção como pessoa. A

tatuagem não aparece apenas enquanto uma simples homenagem, mas também como uma

forma de lembrança, uma memória à qual remetem a certas épocas, onde estas bandas e

músicas exerceram grande importância em sua vivência, trazendo à tona momentos

específicos e únicos que transcendem as marcas impressas na pele.

Trago uma coisa que fique firme lá no que eu quero fazer, não deixo nada atrapalhar,

fazer com que eu me arrependa, sabe? Fiz e não me arrependo porque são bandas

que me representam musicalmente, letramente também, tudo. Então são coisas que

marcaram a minha vida, certos momentos da minha vida e que toda vez que eu olho

eu vou lembrar disso. Em contrapartida eu esqueço, e realmente serve como

lembrança, porque às vezes eu esqueço que eu tenho tatuagem, então esqueço das

experiências, mas depois que eu vejo me remete a certos tempos (Jean, Professor).

Page 68: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

67

Olhar para si ou ser questionado a respeito das tatuagens em seu corpo faz com que o

indivíduo venha a lembra-se, ao mesmo tempo, das razões que o motivaram em sua ação

assim como as circunstâncias que o dirigiram à sua execução. Torna-se uma forma de parar o

tempo, de marcar na memória, e sobre tudo no corpo, a celebração de um acontecimento a fim

de que este não venha a ser dragado pelo constante devir, assemelhando-se a um ancoradouro

para momentos dos quais não se quer deixar à deriva na memória. Nas palavras de David Le

Breton: “A vontade é eternizar um instante através de um acto irreversível, dele reter a

nostalgia, de se agarrar ao fluir infindável das coisas.” (2004, p.131 – 132).

O momento se torna correlacionado à tatuagem, como podemos perceber na memória

relatada por Danie sobre sua primeira experiência com esta modificação corporal, ainda

bastante nova.

Quando eu tinha 13 anos, eu devia tá na 6° ou na 7° série, que eu resolvi fazer. Ai eu

queria meio que me diferenciar um pouco das outras pessoas que tavam lá e tal, ai

eu fiz uma tatuagem, muito escrota por sinal, [...] que foi minha 1° tatuagem. Foi, eu

fiz no dia 2 de novembro, no dia de finados. Minha mãe que me levou pra fazer, eu

tinha 13 anos. Ela fez uma um tempo antes, uns dias antes. Ai eu falei: mãe eu quero

fazer uma também. Ai “tá bom!”, ela me levou. Foi bem fácil, não teve nenhuma

complicação (Danie, supervisora de operações).

Figura 7 - 1º tatuagem de Danie.

Page 69: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

68

A marca tegumentar feita em busca de uma diferenciação perante os outros é, ao

mesmo tempo, além de um sinal de distinção em busca de uma singularidade, um registro

permeado por toda uma conjuntura única à experiência do ser, um arcabouço de recordações

que dão a tônica ao próprio ato da tatuagem, configurando-se enquanto uma memória

importante na construção de sua autoimagem.

A marca impressa na pele representa um elo entre o corpo do indivíduo e o objeto pelo

qual as emoções estão sendo manifestadas. Neste sentindo, a tatuagem age simbolicamente

como um significante emocional, vem a indicar a força da união, se torna um símbolo contra a

ausência. A tatuagem é uma demonstração pública, ou encoberta, a qual aponta através de um

sacrifício de sangue que a relação penetrou sob a pele, o limite corporal com o mundo,

representando simbolicamente as relações mantidas entre o Eu e o exterior. “Os sentimentos

são percebidos como da alçada do interior, da subjetividade, do Eu. A pele, a camada

intermediária entre o Eu e o mundo, é um local de comunicação entre o mundo subjetivo e o

mundo objetivo.” (OSÓRIO, 2010, p.127).

A conexão existente entre o ser e o objeto pelo qual se tem apreço pode ser observada

na relação estabelecida por Andreas e as bandas de rock das quais ele elenca como

importantes, não somente por gostar da sonoridade, mas por ser um apoio para a sua própria

maneira de ser e se portar.

[...] eu tenho certeza que o rock influenciou de mais, até porque essa perna aqui eu

quero fazer toda com banda. Pra marcar assim, as bandas que eu mais gostei. [...]

Foi a formação, desde caráter... Até meu caráter eu acho que foi formado por bandas

de rock. Olhar assim a postura do vocalista tal, do guitarrista tal. Ai eu pego a

influência assim, vejo como é a vida do cara fora do palco e trago pra mim às vezes.

Eu pego uma influência do cara e vou além da música, pego a personalidade e trago

assim, às vezes. (Andreas, gerente de vendas).

Page 70: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

69

Figura 8 – Tatuagens de Andreas com os símbolos das bandas Misftis e Municipal Waste.

A busca por um embelezamento singularizado a qual a tatuagem proporciona, soma-se

também a uma maior aceitação e admiração de si. Ao visualizar os pigmentos em sua pele o

indivíduo se sente completo, satisfeito, uma vez que sua idealização de si toma formas e

cores. Podemos perceber nas falas de Mateus e Luan esta renovação na relação consigo

mesmo, a qual é possibilitada através da aquisição de uma nova marca corporal com o intuito

de se sentir bem e mais belo.

Quem disser que tatuagem não é uma forma de vaidade tá extremamente enganado.

Você veste uma roupa legal porque você quer que as pessoas vejam que você tá

vestindo uma roupa legal e que você se sente bem vestindo aquela roupa. E

tatuagem é o mesmo esquema, você faz uma tatuagem por que você quer se sentir

bem e você quer parecer legal também, e... Não há nada de errado com isso. [...]

como a tatuagem ela meio que traduz esse lance da personalidade, eu queria que eu

tivesse uma tradução bonita do que eu quero passar (Luan, Supervisor de

operações).

Apesar das práticas de modificações corporais estarem inseridas dentro de parâmetros

ou moldes culturalmente e socialmente estabelecidos, estas são reafirmadas e referidas como

respostas aos desejos individuais (LEITÃO, 2004). “A tatuagem opera como um símbolo:

Page 71: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

70

engloba um gosto, uma vontade, uma posição que só pode ser compreendida a luz da

interpretação daquilo que é o espaço que rodeia o indivíduo.” (BAPTISTA, 2010).

A tentativa de compreender as tatuagens apenas pelos desenhos impressos é uma

forma incompleta de análise, pois, além das figuras e seus significados próprios, a tatuagem

contemporânea é utilizada pelos indivíduos como uma maneira de embelezamento

singularizante, onde há uma constante resignificação dos desenhos atrelados às suas

vivências, experiências, interpretações, etc. Através deste viés podemos entender que por mais

que a prática da tatuagem se encontre inserida em parâmetros de aceitação, esta modificação

corporal se transforma em cada indivíduo que a resignifica, e através desta prática de

embelezamento e ornamentação da pele, se busca uma realização de um desejo, que se

encontra circunscrito em uma maneira distinta de interpretar a realidade.

3.7 Um prazer doloroso

A tatuagem é um processo no qual a dor se encontra diretamente envolvida, não sendo

possível a aplicação de anestesia no local a ser trabalhado. Apesar da existência de algumas

pomadas anestésicas que aliviam parcialmente a dor, o uso destas é visto com desconfiança e

sobriedade pelos tatuadores. E mesmo que o tatuador seja bastante experiente e possua uma

“mão leve”2, o processo não deixa de ser penoso para quem se submete a ele, principalmente

quanto mais horas durarem a sessão.

Durante muito tempo, enquanto a tatuagem ainda se encontrava marginalizada e se

fazia prática comum entre grupos de marinheiros e soldados, a resistência e a indiferença à

dor eram tidas como valores admiráveis. Quanto mais tatuagens, maior a virilidade e a

coragem desta pessoa. A preocupação de mostrar-se resistente a dor desapareceu com o passar

dos tempos, principalmente com a difusão da tatuagem entre os jovens e a expansão desta

prática para além do universo masculino. A resistência à dor deixa de ser uma virtude

almejada, e passa a ser uma barreira, um desafio pessoal a ser superado no intuito de realizar o

desejo de ver impresso na pele uma marca escolhida (LE BRETON, 2004).

2 Termo usado para definir a força empregada pelo tatuador no momento da tatuagem, podendo ser a mão “leve”

ou “pesada”. Outro termo comum é “mão boa” ou “mão firme” que diz respeito à precisão dos traços e a nitidez

do desenho.

Page 72: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

71

O contato das agulhas com a pele causa um leve desconforto, suportável ao primeiro

momento. Mas com o passar das horas a dor se torna mais acentuada, a pele já se encontra

inflamada, inchada, sangrando e suja de tinta. Um borrifador com uma solução de água e

sabonete antisséptico é utilizado para limpar o local, aliviando por alguns instantes a pele

ferida, que novamente volta a ser marcada. Dependendo da figura escolhida, pode se levar

dias, semanas ou meses. Alguns projetos, chamados de telas, levam anos para serem

concluídas, pois cobrem grandes partes do corpo como, por exemplo, toda a extensão das

costas. Além do tempo empregado no desenho, alguns locais proporcionam uma sensibilidade

maior à dor, tais como: as mãos, os pés, o tórax, as costelas e etc.

Tal incômodo é amplamente desvalorizado pelos clientes, embora seja relevado na

grande maioria das vezes. A dor se torna um elo entre tatuador e tatuado, é infligida por um

enquanto é aceita pelo outro. Torna-se um laço sutil que imprime uma memória profunda do

acontecimento (id., ibid.).

[...] eu tenho que me acostumar que a dor vem de várias formas. Ela vem como a

tatuagem, ela vem... Sei lá, em forma de relacionamento; você bateu num canto você

vai sentir dor, a dor é inevitável. Mas ai você decide quais são as escolhas que você

quer fazer pra sua vida, que você acha que vão valer a pena, ai você vai enfrentar

aquilo ali como tudo na vida. Nada você ganha de graça, então se você vai fazer

alguma coisa que você considera importante pra você, independente de fazer o

mínimo sentindo pra você ou pras pessoas que tão ao seu lado, você vai ter que

passar por dor (Luan, Supervisor de operações).

Através das falas de nossos entrevistados podemos perceber que a dor é resignificada

pelos indivíduos, sendo utilizada por eles como uma maneira de lidar com a vida. Transmuta-

se o seu entendimento desfavorável e cria-se uma nova interpretação, apartando a ligação de

uma experiência negativa. A dor passa a ser encarada enquanto um apaziguador de outros

tormentos vividos pelos sujeitos, um sacrifício de sangue do qual irá fazer brotar na pele não

somente formas e colorações, mas um desejo, uma marca escolhida, imprimindo

indelevelmente em uma parcela de si uma imagem almejada e idealizada. A dor envolvida

neste processo desvia o foco de outras dores mais subjetivas ao sujeito, proporcionando uma

experiência única da qual tem como resultado algo belo e cobiçado pelo indivíduo.

Você tá passando por um momento que não é muito bacana, e você sente aquela dor e

tal, e você vai fazer uma coisa que você quer muito fazer e acaba criando coragem

quando tá mais vulnerável. No meu caso é isso, eu crio mais a coragem pra fazer uma

tatuagem ou pra aumentar minha orelha. É tanto que eu não uso mais alargador, só

Page 73: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

72

que quando eu tô tensa com alguma coisa eu ponho. Então é mais ou menos isso, é pra

mascarar um pouco, não é que aquilo vá me lembrar do problema que passou não. Pra

mim é mais a questão de mascarar aquela dor porque você vai sentir uma outra dor, e

daquela dor vai vir uma coisa que você quer (Danie, Supervisora de operações).

Quando as pessoas entrevistadas possuíam outro tipo de modificação corporal, neste

caso em específico o alargador, peça utilizada para aumentar o diâmetro dos lóbulos

auriculares, a dor envolvida neste processo era sempre comparada à dor que envolve a

tatuagem, que vem a proporcionar uma sensação de adrenalina, tal qual podemos perceber

através da fala de Emmeson.

Faz parte, precisa ter dor, assim como o alargador. Quando eu alargava a orelha, eu

conversava com Anderson umas coisas que ele achava que eu também tinha razão. No

alargador, você não se preocupa com o tamanho do alargador, a sensação boa é

quando você alarga a sua orelha e inflama e fica latejando, aquela sensação ruim de

alargar a orelha, você se deitar e ficar aquele negócio latejando na sua orelha. É tanto

que... “Ah, mas eu só queria um de 6mm, 7mm” suponhamos, mas ai chega e não tem

mais graça, é só um brinco qualquer, um brinco faria o mesmo sentido. Ai você vai e

coloca outro, mas justamente por isso, pela dor e pela sensação que dá depois, sua

orelha tá inflamada e fica... Você sente que tem alguma coisa na sua orelha, sua orelha

tá pesando, sua orelha tá sendo incomoda. É isso que me faz alargar a orelha, e com

tatuagem se não tivesse a dor, não teria tanta graça na tatuagem. [...] é que quando

você tá fazendo é muito bom. É tanto que antes eu tinha um preconceito com o

pessoal que fazia suspensão e hoje em dia eu já entendo, pela adrenalina que dá. Da

mesma forma que a dor é bom pra minha orelha, eu achava legal, é uma adrenalina

legal de ficar suspenso. Eu acho que se torna meio que um mérito. Sim, um mérito,

tipo... não foi uma coisa fácil, por mais que seja uma coisa suportável, não foi uma

coisa fácil (Emmeson, gerente de vendas).

O resultado final é sempre destacado como sendo uma recompensa pelos esforços

desprendidos. A dor é sublimada, não é uma sensação em vão, pelo contrário, ela acompanha

o processo de metamorfose que se desenha nos corpos dos sujeitos. A satisfação de

vislumbrar em si uma modificação a muito tempo esperada faz com que a dor seja encarada,

por muitos daqueles que se submetem a esta prática, enquanto uma característica importante

ligada ao processo de modificação corporal.

[...] o que é desconhecido assusta, ou ele te assusta ou ele te atrai. A primeiro

instante a vontade eu tinha de mais... vamo fazer. [...] ai quando comecei a fazer eu

achei que... Eu imaginava uma dor pior do que realmente era, e foi tranquilo. Nossa

e é bom, você vê aquela pele sendo marcada e tal, uma escolha sua (Anderson,

Estudante).

Page 74: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

73

Há uma relação de ambivalência no que diz respeito à dor desprendida durante o

processo de impressão na pele. Uma espera ansiosa pelo enfretamento da dor e pelo desejo de

superação é uma forma de evidenciar a si mesmo de que se está a altura desta prova,

vivenciando-a como um reforço que vem a legitimar sua identidade escolhida (LE BRETON,

2004).

3.8 A busca pelo diferencial

De acordo com Sanders (2008) a partir da década de 1960 a prática da tatuagem passa

por uma “renascença”. Esta prática atravessava uma época na qual ainda era encarada como

uma atividade desviante, porém, foi cenário de mudanças significantes que vieram a acontecer

nas últimas décadas. Jovens tatuadores, geralmente com uma bagagem adquirida em

universidades de artes e com experiência nesta mesma área, começaram a se utilizar da prática

da tatuagem como uma forma de expressão. Esta exploração por novos horizontes seria

motivada por um desencantamento pelas formas tradicionais de expressão artística e uma

limitação presente no meio artístico convencional. Estes jovens artistas buscam uma maior

satisfação criativa ao invés de financeira, se especializando em designes exclusivos,

aprimorando suas técnicas, sendo seletivos nas imagens que irão imprimir na pele de seus

clientes.

Muitos tatuadores exercem tanto trabalhos exclusivos e únicos quanto trabalhos

comerciais, que já possuem um modelo. Aos olhos de Chicão, tatuador em Mossoró há 7

anos, os trabalhos comerciais não proporcionam a mesma satisfação e prazer que um trabalho

exclusivo, desenvolvido pelo tatuador, tornando-se uma boa fonte de renda.

Eu acho que o trabalho comercial é satisfatório pro tatuador sim, porque é um

trabalho rápido, que é comercial. E de 100% do trabalho comercial, é 50%, vamos

falar, "satisfatório". É o que dá o dinheiro rápido, pra falar a verdade. É um trabalho

que você tem retorno mais rápido. Mas pro tatuador, falando como tatuador, o

trabalho prazeroso é o trabalho que a gente faz, que dá prazer mesmo de fazer.

Aquele trabalho grande, que a gente vai mostrar bem o nosso poder e domínio sobre

a pele, e que o cliente aceite nossas dicas e tal. Isso é trabalho mais satisfatório

(Chicão, tatuador).

A tatuagem se constitui enquanto um universo, um campo, onde as regras se

aproximam do campo da arte. Neste universo os tatuadores se consideram, e são

Page 75: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

74

considerados, artistas, e neste sentido operam regras de inclusão ou exclusão de membros

deste campo, estabelecendo distinções entre profissionais e amadores. Este campo é permeado

por regras de pertencimento, compartilhadas por aqueles que querem adquirir ou manter o

status de profissional (OSÓRIO, 2010). O grau de artista é resultado direto dos processos

envolvidos em sua trajetória individual e singularizante, não bastando apenas tatuar para que

o resultado seja considerado arte. O tatuador precisa entender a “arte de tatuar”, fator que se

dá através da dedicação, interesse e técnica, havendo uma necessidade de constante

aperfeiçoamento, treinando e desenhando, participando de convenções para ter acesso a novos

conhecimentos e novidades (COSTA, 2004).

Um profissional pra mim é um tatuador que procura estudar, nunca deixa de estudar,

porque eu acho que o tatuador nunca deve deixar de evoluir. O tatuador bom mesmo

tá sempre procurando novas técnicas, tá procurando o diferencial em tudo, e sempre

mostrar o trabalho o melhor que ele faz. Isso é que é o diferencial do tatuador, não

parar. Eu, como tatuador, já tenho acho que sete anos de carreira e, eu pra mim,

nunca parei de estudar, sempre fui procurando inovar. Acho que isso é o diferencial,

procurar inovar (Chicão, tatuador).

Não somente o tatuador busca uma distinção perante seus pares, uma satisfação

alcançada através de designes e técnicas exclusivas que o diferenciem, que o singularizem,

mas, em contrapartida, também há um reconhecimento por parte dos clientes, que procuram

tatuadores na expectativa de possuírem em sua pele uma das suas criações únicas e

exclusivas, assim como também na busca de uma aplicação de técnicas singulares, reforçando

a distinção buscada através da “procura pelo diferencial”, pela originalidade.

Ter uma arte exclusiva também se alia ao fato de que esta arte esta sendo feita pelo

próprio artista, o que, nas palavras de Joaquim, se torna um grande distintivo da experiência

da tatuagem.

É massa porque, além de ser um desenho original, é um original tatuado pelo próprio

cara. Então, é uma arte do sujeito. É tipo você ser tatuado, sei lá, pelo Picasso, pelo

Ralph Steadman. É o próprio desenhista, é o próprio artista tatuando o seu corpo.

(Joaquim, Estudante).

Page 76: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

75

Figura 9 - Tatuagem exclusiva feita para Joaquim.

Os indivíduos que buscam a tatuagem enquanto um componente importante na

constituição de sua identidade fazem distinções sobre as marcas corporais, dividindo-as em

uma oposição entre originais e modistas. Ao falarmos em modismo operamos uma

diferenciação que liga o grau de originalidade a uma ideia de individualidade e singularidade,

enquanto que o modismo estaria atrelado a uma imitação, uma cópia. Desta maneira é

estabelecido uma hierarquia das marcas corporais, onde a cópia possui menor valor.

O sentindo da palavra modismo aqui é o de imitação, que revela um sujeito incapaz

de pensar por si e ter opiniões e gostos próprios. Esta valorização da originalidade

da tatuagem sugere que a marca não tem apenas um uso estético, mas também um

signo de distinção, criando uma hierarquia na qual quem tem uma tatuagem original

é superior a quem não tem, porque é uma pessoa mais individualizada, que expressa

sua autonomia na própria pele, instância imediata de comunicação de si com o

mundo. A tatuagem serve, na sua qualidade de signo de distinção, como signo de

individualidade. Estabelece-se, portanto, uma hierarquia entre a uniformização e a

individualização, em que a última emerge como mais legítima e valorizada

(OSÓRIO, 2010, p.128).

A mídia foi apontada por Marcos como um dos canais que viabilizam uma maior

difusão desta prática, e desta forma acaba por influenciar as pessoas a copiarem certos

modelos de tatuagens, acarretando, na fala de Danie, uma moda nos desenhos escolhidos.

Page 77: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

76

Eu acho que tem uma grande influência, acho que grande parte da mídia. A maioria

dos artistas tem uma tatuagem hoje, ai o pessoal vê na televisão acha bonito e quer

fazer igual pô. O que a maioria das pessoas fazem, viu na televisão acha que é muito

legal e quer fazer também. O pessoal se aliena naquilo (Marcos, supervisor de

operações).

[...] é a questão da moda, se a pessoa tá vendo lá uma coisa que várias pessoas tem

é...inevitável, inevitável. Sempre vão fazer, sempre vão copiar o outro, e vai virando

aquela bola de neve e acaba sendo a tatuagem do momento. É o símbolo do infinito,

é aquelas andorinhas saíndo de um pena. Sempre tem, tem a moda (Danie,

supervisora de operações).

O desejo de diferenciar-se não se distancia muito da vontade de pertencer, não a um

grupo estruturado e devidamente circunscrito, mas a uma sensibilidade dispersa e comum,

uma questão de estar com outros, conhecidos ou estranhos, investindo-se demasiadamente

numa conivência ao mesmo passo que se resguarda uma individualidade (LE BRETON,

2004). A tatuagem se torna um pequeno elo entre os indivíduos, criando ao primeiro olhar um

vínculo inicial, uma empatia mínima de pelo menos milissegundos, a qual se confirmará ou

não através de uma interação mais próxima.

Este sentimento em relação às modificações corporais faz com que as pessoas que

apreciam estas formas de expressão formem grupos, como nos relata Mateus, que fez parte de

um grupo virtual onde o elo era a body modification. Porém, os assuntos tratados neste grupo

não eram estritamente relacionados a tatuagens ou outros tipos de modificações,

proporcionando um ambiente de conversas e estabelecendo laços de amizade.

Quando eu tinha uns 12, 13 anos eu pesquisava direto. Participei de um bocado de

chat de body modification de São Paulo e tudo. Alargador, escarificação, tatuagem,

sobre tudo. Ai eu vim pegando o gosto, e sempre gostei desde pequeno. [...] Era

mais por amizade, sabe? Na verdade, falava até pouco sobre isso, era mais assim...

Falava, vez ou outra, entrava pessoas assim... Discutiam, mas... Sei não, era só pra

conversar mesmo, sendo que todo mundo que tava nesse grupo era tatuado, tinha

alargador, era tatuador. Era como se fosse uma família, era legal que só. No tempo

era no MSN. [...] Antes de acabar até mesmo o MSN eu sai desse grupo, foi muita

gente saindo, foi ficando fraco, mas até hoje eu tenho contato com uma amiga minha

lá de São Paulo que ela é tatuadora, a gente é muito amigo mesmo, até hoje. Ela é

gente boa. Eu até tirei uma brincadeira com ela, que ela tatua potilismo, ai eu disse

assim: um dia eu ainda vou ai em São Paulo e fazer uma tatuagem com você pra

ficar de lembrança (Mateus, estudante).

Page 78: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

77

As marcas corporais atraem os olhares e a atenção de muitos indivíduos e, por muitas

vezes, torna-se um “quebra-gelo” para o início de um contato mais prolongado, uma conversa

sobre as modificações, suas razões e significados, assim como histórias, vivências e tudo o

que perpassa pelos pigmentos tegumentares. Exibir suas tatuagens serve como uma forma de

mostrar suas “raízes” dentro do mundo, assim, as tatuagens se fazem quase que da mesma

forma que a exibição de um álbum de figurinhas, apontando com orgulho as vivências e

histórias que estão estampadas em seus corpos.

As conversas além de tratarem das questões técnicas ligadas aos desenhos tais como

traços e cores, envolvem também a questão do local tatuado. Como vimos anteriormente, um

dos fatores que vem a balizar a escolha de certos locais está ligado à dor envolvida em

determinados pontos do corpo. A superação da dor e a coragem de enfrentá-la é demonstrada

como uma conquista pessoal, encenada de forma caricata muitas vezes quando o local da

referida tatuagem encontrava-se em uma área demasiado sensível. A dor é relatada de forma

bastante específica, onde construções narrativas são desenvolvidas, ressaltando os detalhes

mais difíceis de ter enfrentado.

O fascínio e a curiosidade acabam por enveredar muitos a quebrarem barreias e

preconceitos.

Numa base diária tem pessoas que vem falar comigo por causa das minhas

tatuagens, mas por incrível que pareça eu achei que fosse rolar um certo repúdio

maior das pessoas, porque as pessoas também não estão tão acostumadas com

tatuagem no dedo [Figura 4], elas tão acostumadas com... Se não é num canto mais

normalzinho, se é no dedo ou no pescoço, sei lá... Ainda é um tabu. [...] mas logo

elas tiram esse estigma, porque quando eu começo a conversar eu mostro a elas que

isso não tem nada de mais, não significa que porque eu tenho tatuagem de marginal

eu não sou, necessariamente, um marginal [risadas] (Luan, supervisor de operações).

O contato com a tatuagem pode se dar de várias formas, seja através das múltiplas

mídias como já citado anteriormente, tais como revistas, televisão e internet, ou por uma

experiência marcante ao vislumbrar e se fascinar com estas modificações em outros,

enxergando beleza, sentindo e originalidade, levando o indivíduo a decidir-se por escolher

uma marca. Esta busca por uma originalidade, por uma distinção, uma afirmação da

identidade pessoal através de modificações corporais, paradoxalmente, possuem uma grande

força social (LE BRETON, 2004).

Page 79: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

78

Figura 10 - Tatuagens luck 7, fate nos dedos de Luan.

Estar presente em um grupo de pessoas que possuem tatuagens, ou outras

modificações corporais, aproxima o sujeito desta prática de tal forma que passa a ser uma

realidade mais sensível ao ser, fascinando e impelindo-o.

Eu disse: bicho, acho que rola de eu ser tatuado também. Comecei a sair com uma

galerinha que era tatuada, e foi por tabela mesmo [...]. Na época eu achava legal, só

que não tinha tanto aquela gana. Depois que eu fui dar significado às tatuagens que

eu tenho; entender porque eu tava fazendo tatuagem. E foi ai que eu decide: vou

fazer minha primeira tattoo. Via os caras com tatuagem, achava legal, comecei a

criar gosto pela coisa e começou a fixar na minha cabeça a ideia (Luan, supervisor

de operações).

Apesar de possuir uma parcela de influência do meio social ao qual se encontra

inserido, a busca da tatuagem enquanto um traço original e distinto é sempre apontada como

um grande marco na decisão de se voltar a esta prática de modificação corporal.

O que antes representava uma marca e uma prática de um grupo circunscrito tem

tomado, nas últimas décadas, contornos singularizantes, onde a busca pela originalidade, pela

diferenciação e por uma individualidade é percebida cada vez mais latente no que diz respeito

a esta atividade, envolvendo tanto atores sociais que buscam a tatuagem como uma forma de

embelezamento corporal, como uma maneira de imprimir uma identidade escolhida, quanto

Page 80: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

79

pelos tatuadores que a veem como uma forma de expressão artística, onde se fazem

necessários o domínio de técnicas e a constante busca por um aperfeiçoamento enquanto

legitimadores de sua prática.

3.9 O CONTATO COM O TATUADOR

O contato com o tatuador é indispensável, pois é a partir deste momento em que a

materialização dos projetos pode vir a ganhar seus contornos, e por mais espontânea e

impulsiva que pareça, não deixa de ter sua parcela de intimidade que engloba o lado

psicológico, o contato com a pele e o sangue, a dor aplicada e aceita, e tudo aquilo que

implica uma interferência corporal (FONSECA, 2003).

O processo de elaboração dos desenhos permite ao tatuador adentrar na intimidade da

vida de seus clientes. As conversas são prolongadas, perguntas são feitas de ambas as partes a

fim de desvendar características que possam ser inclusas dentro do projeto que irá ser

impresso na pele. Segundo Le Breton (2004, p.220), “Este momento de intimidade partilhada

é muitas vezes um tempo de confidência para o cliente que se sente confiante e revela as suas

dificuldades, os seus sonhos, os seus receios.” Histórias são contadas e intimidades reveladas,

e muitas vezes a pessoa que busca a tatuagem encara o tatuador também como uma espécie de

confidente.

Já teve tatuagem que eu me emocionei. Teve uma história no outro estúdio que eu

cheguei a chorar, mas eu tive que me conter assim... Foi uma das histórias mais

massa que eu tive. Tem tatuagem que parece simples, mas por detrás dela tem umas

histórias... Tem tatuagens que tem histórias totalmente cabulosas. Muita gente

acaba recorrendo à tatuagem, por que acho que é uma maneira de se expressar, de

homenagear, dependendo se for uma situação de tristeza, de felicidade... (Chicão,

tatuador).

A escolha do tatuador é seguida por uma relação em que empatia e confiança são tidas

como palavras chaves. O tatuador é quem dimensiona o corpo em função do sujeito e sua

subjetividade, como um todo que se relaciona. Tocar o corpo é, ao mesmo tempo, tocar o

sujeito e sua intimidade, não apenas a matéria orgânica, mas também o psicológico

(FONSECA, 2003).

As relações com o profissional participam do único registo de uma relação

comercial colorida com a simpatia. [...] A generosidade, a qualidade da presença, a

Page 81: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

80

disponibilidade, o escutar são unanimemente saudados e alimentam a reputação do

profissional (LE BRETON, 2004, p.104 – 105).

Apesar dos avanços tecnológicos que proporcionam com que a tatuagem possa ser

removida através de cirurgia a laser, as marcas corporais ainda são encaradas enquanto

eternas, uma vez que este procedimento é mais caro e mais doloroso do que a própria

tatuagem. Este caráter duradouro que as marcas corporais possuem encontrasse atrelado à

confiança no tatuador, pois, é este que irá marcar a pele de forma indelével. Deixar se

submeter a este processo faz com que o sujeito tenha que estar confiante naquele que

executará a tatuagem, fazendo da relação estabelecida entre tatuado e tatuador primordial para

sua efetivação.

Eu acho que tem que ter uma empatia mínima, até porque quando você cria essa

relação de empatia, enfim, quando você constrói uma espécie de relação com o

tatuador, você passa a ter mais confiança, porque você precisa ter muita confiança

no cara, porque você vai confiar a ele uma parte do seu corpo pra ficar marcada pro

resto da vida. Então, eu acho que a relação de confiança, a relação de empatia

mesmo entre tatuado e o tatuador, ela existe e ela tem uma importância quase que de

igual valor com a qualidade do tatuador, o quão ele desenha bem, o quanto o traço

dele é interessante (Joaquim, estudante).

Todas as 5 que eu tenho foram com o mesmo tatuador. Quando eu fui fazer a 1°, eu

fui por indicação [...]. Mas eu fui por indicação e vi que ele mandava bem e, fui lá e

confiei nele. Ai depois agora, essas últimas 3 que eu fiz, eu já morava aqui em

mossoró mas eu fiquei com o pé atrás de fazer aqui, com os tatuadores daqui. tanto

por ter medo de acontecer alguma coisa, de fazer alguma coisa errada e também pelo

preço, porque aqui é muito caro. [...] ai eu fui e falei com Elder, que é o tatuador:

"Elder, eu tô querendo fazer uma tatuagem e tal, é assim, assim, assim... e eu tô aqui

em mossoró, e eu vou sair daqui, pegar uma folga no trabalho só pra poder ir fazer

com você, porque eu confio em você e tal." Ai beleza, ele mandou mandar as fotos,

eu mandei as fotos pra ele e fui lá fazer. Eu passei o dia inteiro lá fazendo, 3

tatuagens (Marcos, supervisor de operações).

A escolha dos temas que iram ser pigmentados na pele passam por um longo caminho

de negociações, discussões e revisões sobre o projeto até chegar a um acordo mútuo entre o

tatuador e o cliente. Sabemos que a escolha é do cliente, porém, o tatuador, enquanto

profissional nesta atividade, tende a conversar e convencer o cliente sobre um melhor local,

melhores cores, disposição do desenho e do próprio desenho. Caso não se chegue a um meio

termo entre as partes, e o cliente insista em uma ideia da qual o tatuador não concorde, ou

vice-versa, a negociação deixa de ser feita assim como a própria tatuagem.

Page 82: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

81

Por exemplo, o cliente procura um desenho totalmente minimalisado, num curto

espaço, ai o tatuador vai saber o que não é bacana pro futuro. Porque tatuagem tem

que se procurar a ter cuidado com o futuro. Tem que pensar bem na frente já. [...]

Tem cliente que vem bem decidido já, bem decidido no que quer fazer, mas tipo,

quando eu converso com o cliente às vezes eu consigo mudar, se a tatuagem não for

possível eu consigo mudar, tento mudar, mas dentro daquele padrão que ele quer. Se

isso não acontecer, eu infelizmente vou ter que pensar no trabalho, e acabo não

tatuando se a tatuagem não for bacana. Se não vai ficar bacana, eu não tatuo

(Chicão, tatuador).

O contato entre tatuador e tatuado não cessa necessariamente logo após o termino do

trabalho, que segue uma série de instruções a serem seguidas para que a tatuagem passe por

um bom processo de cicatrização. Geralmente pede-se que o cliente volte para que o tatuador

possa ver o trabalho definitivamente concluído após a cicatrização.

O prazer de ter na pele um trabalho que atenda as expectativas desejadas,

principalmente depois de algumas sessões, gera uma confiança ainda maior, fazendo com que

o cliente retorne ao estúdio. Essas relações são por muitas vezes prolongadas, alargando-se os

vínculos que escapam a relação de cliente e tatuador, configurando-se em uma amizade. Os

laços de amizade se tornam tão fortes que ultrapassam as paredes do estúdio de tatuagem, e o

cliente se torna companhia para momentos de descontração.

É tanto que assim, a curto prazo, cliente e tatuador. Mas depois que a gente começa

a fazer o processo, tem clientes que a gente sai depois pra beber, sai pra se divertir,

acabo indo, sei lá, fazer algum esporte. Tem tudo isso. Rola a amizade e tal. Tem

clientes que sempre acabam voltando. Tem clientes aqui que nunca deixam de tatuar

comigo (Chicão, tatuador).

E tem o lance da confiança também nos tatuadores né! Às vezes você fica tipo: “ah

eu comecei a fazer com ele e...” Às vezes você tanto tem a intimidade e, por

exemplo, a minha eu fiquei três anos fazendo ela. Você cria um vínculo e tipo, se é

um trabalho que você gosta você volta. É como uma fidelização de cliente... Passa a

ser amigo. Por exemplo, o meu tatuador eu falo: “o meu amigo que me tatuava”, ai a

galera falava: “como assim, ele ia na tua casa?”, “não ele é tatuador”. Passou a ser

meu amigo. Eu já conhecia ele, mas só que fazendo a tatuagem você passa a

conviver mais. São horas que você passa ali no estúdio e tal, e vamo conversar né?!

Ai você cria um vínculo bacana (Anderson, estudante).

A satisfação de uma boa tatuagem aliada a um bom relacionamento com o tatuador é

tida como uma maneira de divulgar o seu trabalho. Este fator é levado em consideração por

Page 83: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

82

ambas às partes, de forma tácita, onde geralmente o próprio cliente toma a iniciativa de

indicar pessoas para o estúdio, como uma maneira de ajudar no trabalho do tatuador.

A gente tem contato até hoje... Ah, e sempre perguntam quando é que eu vou de

novo e tal, e às vezes eles mandam desenhos pra mim porque lembrou de mim

assim: “ah, esse desenho eu lembrei de você, o quê que cê acha?” Então assim,

mantenho amizade... Não amizade, mas o contato eu tenho, converso. Às vezes ao

indicar uma pessoa, eu ligo: “oh, vai um amigo meu fazer uma tatuagem ai e tal.”

Por eu ter 6 tatuagens, as pessoas sempre me perguntam, e é uma forma até de você

ajudar o cara. É o merchan (Jean, professor).

As marcas corporais ultrapassam a pele destes indivíduos, criando laços de confiança e

amizades que possuem a dor como marca comum. A tatuagem é encarada como uma forma de

superar a ideia de uma padronização corpórea, uma maneira de se libertar da normalização

destes corpos, marcas que visam estabelecer uma singularidade na existência destes

indivíduos.

A tatuagem ultrapassada também seus contornos e cores, servindo como um álbum de

memórias, facilmente acessível ao olhar do outro, porém, exigente de um contato mais

próximo para que estas lembranças se façam presentes nos desenhos. Uma experiência

vivenciada pelos sujeitos como marco de significância para suas próprias vidas.

Page 84: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O corpo humano não se limita apenas as suas funções de caráter fisiológico, podendo

ser encarado como um receptáculo de construções simbólicas, assemelhando-se a uma massa

de modelar, adquirindo formas ao ser inserido em uma cultura, possuindo a capacidade de

proporcionar uma pluralidade única ao indivíduo. A existência deste sujeito se dá através da

sensação de estar presente no mundo, o que implica de certa forma em ser possuído por este

na medida em que as diversas formas de modificações corporais são aplicadas, desejadas,

vivenciadas pelo sujeito em busca de uma significação. Nossa realidade é construída através

da experiência da qual o corpo nos proporciona. Esta vivência corpórea é tida como algo

incompleto, e o corpo um objeto passível de transformações e remodelamentos que visam sua

posse, uma busca pela certeza de que este corpo lhe pertence. Perfuração ou alargamento dos

lóbulos auriculares, cortes e pinturas dos cabelos, crescimento ou retirada de pelos, cirurgias

plásticas e outras várias modificações corporais; são inúmeras as possibilidades de se fazer

presente no mundo.

A tatuagem enquanto uma prática de modificação corporal permeou a história de

várias sociedades, possuindo significados e propósitos particulares a cada uma delas, sendo

utilizada desde uma forma ritualística que acenava a passagem para a vida adulta, um sinal de

que se estava preparado par assumir as responsabilidades deste momento, ou mesmo como

uma maneira de identificar escravos e dissidentes.

A grande influência em nossa sociedade ocidental advinda da tradição judaico-cristã

corroborou para a estigmatização das marcas corporais, uma vez que o corpo era tido como

algo sagrado, e sua modificação era vista como uma afronta a criação divina, encarada como

uma prática ligada ao paganismo. Os atores sociais responsáveis pela difusão desta prática

alimentaram o imaginário social onde a tatuagem era encarada como sinal de um ser não

civilizado e inclinado a cometer delitos, pertencente à margem da sociedade.

A invenção da máquina de tatuar proporcionou uma mudança no panorama das marcas

corporais, possibilitando um aprimoramento em seus aspectos técnicos, assim como

configurando um novo cenário para esta prática. O aparecimento das lojas especializadas em

Page 85: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

84

tatuagens, as quais acabam por assumir uma fachada comercial e se inserem nos centros das

grandes cidades, fazem com que esta prática permeie o cenário urbano contemporâneo.

As marcas corporais atingem um novo papel, distante da visão negativa e

estigmatizante de outrora, são ressignificadas na contemporaneidade e passam a ser encaradas

como outra forma possível de expressar a individualidade. As tatuagens possuem um

importante papel na construção e reafirmação das identidades destes indivíduos, marcando

vivências, experiências, servindo como um “álbum de memórias” impresso na pele; uma

forma de cristalizar características que julgam primordiais para sua edificação. Através da

tatuagem busca-se uma distinção, um diferencial do corpo comum visto no dia-a-dia, uma

forma de sentir-se diferente não somente em relação ao outro, mas também em relação a si

mesmo, demonstrando de que maneira o indivíduo se posiciona no mundo e de que forma se

enxerga.

Nossa identidade nunca se encontra definitivamente fechada, acabada, pelo contrário,

encontrasse em uma constante construção junto a toda a experiência do viver. Em uma era de

incertezas onde tudo se torna efêmero, a identidade perde suas âncoras e deixa o indivíduo à

deriva, ansioso por encontrar ou criar grupos que possibilitem a ancoragem, mesmo que

temporária, de suas identidades. Neste sentindo, a prática da tatuagem serve como um

cristalizador de uma identidade fugaz, gravando na pele uma relação em prol de uma certeza

de particularidades inabaláveis. Os traços, símbolos, desenhos e formas que ganham

contornos nos corpos destes sujeitos são uma maneira de imprimir sua constante construção,

caracterizando inúmeras narrativas de vidas, momentos, memórias, gostos etc; Cristalizações

de narrativas primordiais na edificação do sujeito. Enquanto muitos buscam se encaixar

dentro dos padrões de uma normalidade corporal, a tatuagem é tida como uma forma de

resistir a uma padronização, de exercer uma liberdade sobre si, de marcar na pele uma

autonomia sobre seu próprio corpo, modelando-o de acordo com seus desejos.

A impressão de desenhos na pele se configura em um ideal de embelezamento,

buscando através da tatuagem uma ornamentação, um adereço que se faz permanente no

corpo através de um sacrifício de sangue. A tatuagem carrega consigo a lembrança, uma

memória, nem sempre presente no desenho em si, em seu significado ou razão primeira, mas

acaba por remeter à uma época ou situação vivenciada no momento em que foi impressa. O

momento da tatuagem é encarado como um ritual de passagem pessoal, onde o enfrentamento

da dor é necessário como uma prova de que se está à altura de carregar estas marcas. A dor

envolvida no processo de modificação corporal entra em jogo com uma importância por vezes

Page 86: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

85

singular, onde não é encarada enquanto uma penalidade, mas sim vivenciada pelo sujeito

como uma forma de se dar com a realidade de sua própria existência, servindo como válvula

de escape para angústias e dores pessoais, onde o processo de cura acompanha o processo de

cicatrização. O sofrimento desprendido é encarado de forma positiva, uma barreira a ser

vencida tendo em vista uma expectativa de que ao final do processo irá se sentir mais

completo, satisfeito, contente por enxergar em si o fruto de sua escolha. A própria dor implica

em uma reafirmação da pertença deste corpo, de exercer sua autonomia sobre si, de poder

definir de acordo com seu repertório as formas que iram ser marcadas.

A influência para as marcas corporais são variadas, sendo possível entrar em contato

com a tatuagem através de programas de televisão, revistas, internet ou através de um contato

presencial. A tatuagem assumiu contornos individuais, não exercendo mais a vontade de

pertencer a um grupo social circunscrito, passando a ser um sinal de distinção, uma maneira

de expressar a singularidade que destaca um corpo do outro, objetivando através das marcas

corporais a subjetivação do mundo.

As dinâmicas envolvidas no processo de tatuagem nos demonstram que as marcas

corporais nos permitem vislumbrar o universo particular das construções corporais e

simbólicas dos indivíduos, seus ideais de beleza que dialogam diretamente com gostos,

memórias e experiências. Através das marcas corporais podemos compreender melhor a

correlação existente entre indivíduos e sociedade, de que maneira a tentativa de fuga dos

padrões sociais impostos acabam por criar novas constelações de construções simbólicas.

Almejar um ideal de corpo singular para escapar do corpo ideal desejado pela maioria. As

tatuagens se tornam uma identidade única ao indivíduo, marcando não somente a pele de

forma indelével, mas proporcionando a este sujeito uma nova experiência do seu corpo, novas

maneiras de se conceber e se portar.

Page 87: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. Nada além da epiderme: a performance romântica da

tatuagem. In: BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio de

Janeiro: Editora FGV, 2006.

ALBUQUERQUE, Leila Marrach Bastos de. As invenções do corpo: Modernidade e

contramodernidade. In: Matriz, Vol.7, N°1, p.33-39, jan-jun. 2001.

ARAUJO, Leusa. Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo. São Paulo: Cosac &

Naify, 2005.

BAPTISTA, Raquel Leonor Pimenta. A identidade estampada na pele: o quotidiano de um

estúdio de tatuagem e body-piercing em Lisboa. Lisboa: ISCTE, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro : Jorge

Zahar, 2005.

__________________. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.

BAUER, Martin W.; GASKELL, George. (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e

som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2003.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 1.ed – Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 2008.

BOURDIEU, Pierre. O conhecimento pelo corpo. In: Meditações pascalianas. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2001.

________________. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto

Alegre, RS: Zouk, 2007.

CARVALHO, Ana Maria de; SILVA, Francisco Paulo da. A liberdade agonística do sujeito

foucaultiano. In: Simpósio de letras do vale do Açu, 1, 2012, Açu. Anais do I simpósio de

letras do vale do Açu. Açu: UERN, Dez. 2010, p. 1-8.

CASTELLS, Maneul. Paraísos comunais: identidade e significado na sociedade em rede. In:

O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. P. 21 – 28.

CANCLINI, Néstor Garcia. A cultura extraviada nas suas definições. In: Diferentes, desiguais

e desconectados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. P. 35 – 53.

Page 88: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

87

CIAMPA, Antonia da Costa. Identidade. In: LANE, Silvia T. M.; CODO, Wanderley. (orgs.).

Psicologia Social: o homem em movimento. 8. Ed. São Paulo: Editora Brasiliense. 1989. P. 58

– 75.

COSTA, Zelia. Do porão ao estúdio: Trajetórias e práticas de tatuadores e transformações no

universo da tatuagem. Florianópolis, SC: UFSC, 2004. Originalmente apresentada como

dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, 2004.

DIAS, Thassio Martins O. Olhe em mim o eu: a tatuagem e sua subjetivação no cenário

underground de Mossoró. Mossoró, RN: UERN, 2008. Originalmente apresentado como

monografia de graduação, Universidade Estadual do Estado do Rio Grande do Norte, 2008.

ELIAS, Nobert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

ELLIOTT, Jane. Using Narrative in Social Research. London, SAGE Publications, 2005.

FLORES, Fabiano Rocha. Do problema das identidades na pós-modernidade. Santa Maria,

RS: UFSM, 2011. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado, Universidade

Federal de Santa Maria, 2011.

FONSECA, Andrea Lisset Perez. Tatuar e ser tatuado: Etnografia da prática contemporânea

da tatuagem. Florianópolis, SC: UFSC, 2003. Originalmente apresentada como dissertação de

mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, 2003.

FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In.: RABINOW, Paul e DREYFUS, Hubert. Michel

Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.231 – 249.

______________. Os corpos dóceis. In: Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de

Raquel Ramalhete. Petropólis: Editora vozes, 2004, p.117 – 137.

______________.Ética, Sexualidade, Política. Organização e seleção de textos de Manoel

Barros da Motta. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. (Coleção:

Ditos e Escritos, Vol. V). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b.

GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A

interpretação das culturas. 1. Ed., 13.reimpr. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

________________. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

Page 89: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

88

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 14. Ed. Petrópolis, Vozes,

2007.

________________. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. Ed.

Rio de Janeiro: LTC, 2012.

GOLDENBERG, Mirian. O corpo como capital: gênero, sexualidade e moda na cultura

brasileira. 2. ed. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.

HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. 11. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18. Ed. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 2005.

LEITÃO, Débora Krischke. Mudança de significado da tatuagem contemporânea. In:

Cadernos IHU Ideias. Ano 2, N°16, 2004.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas, SP: Papirus,

2003.

___________________. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2006.

___________________. Sinais de identidade: Tatuagens, piercings e outras marcas

corporais. Lisboa: Miosótis. Edição e Distribuidora, 2004.

___________________. As Paixões Ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis:

Vozes, 2009.

__________________. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Natureza e cultura. In: As estruturas elementares do parentesco.

Petrópolis: Vozes, 1982.

LUCAS, Doglas Cesar. A Identidade como Memória Biográfica do Corpo e sua Proteção

Jurídica: itinerários de um paradoxo. In: Revista seqüência – estudos jurídicos e políticos.

UFSC, Florianópolis, SC. V. 33 n. 65, 2012.

MARQUES, Toni. O Brasil tatuado e outros mundos. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

MARVASTI, Amit B. Qualitative Research in Sociology. London: SAGE Publications,

2004.

MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São

Paulo: Cosac & Naify, 2003.

Page 90: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

89

MEDEIROS, Cristina Carta Cardoso de. Habitus e corpo social: reflexões sobre o corpo na

teoria sociológica de Pierre Bourdieu. In: Movimento, Porto Alegre, v. 17, n. 01, p.281-300,

jan.-mar. 2011.

MENDES, Cláudio Lúcio. O corpo em Foucault: superfície de disciplinamento e governo. In:

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, n. 39, p. 167-181, Abr. 2006.

ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: Corporeidade, tecnologias médicas e cultura

contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

OSÓRIO, Andrea. Tatuagem de amor. In: GOLDENBERG, Mirian. O corpo como capital:

gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. 2. Ed. São Paulo: Estação das Letras e

Cores, 2010.

PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas

perspectivas. São Paulo: Editora UNESP 1992.

RAMOS, Célia Maria Antonacci. Tatuagem e globalização: uma incorporação dialógica. In:

BUENO, Maria Lucia; CASTRO, Ana Lúcia (Org.). Corpo, território da cultura – São

Paulo: Annablume, 2005.

REIS, Alice Casanova dos. A subjetividade como corporeidade: o corpo na fenomenologia de

Merleau-Ponty. In: Vivência. Natal, UFRN, n. 37, p. 37-48, 2011.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 7. Ed. rev. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ,

2006.

SANDERS, Clinton. Customizing the body: the art and culture of tattooing. Philadelphia:

Temple University, 2008.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Horizontes do Corpo. In: BUENO, Maria Lúcia;

CASTRO, Ana Lúcia (Org.). Corpo, território da cultura. São Paulo: Annablume, 2005.

_____________________________. Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade

contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e

diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 14. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. P.73

– 102.

Page 91: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

90

SILVA, Marina Albuquerque Mendes de. As tatuagens e a criminalidade feminina. In:

Cadernos de campo, n.1, 1991, p.5-16.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:

Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 14. Ed. – Petrópolis, RJ:

Vozes, 2014. P. 7 – 72.

Page 92: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

ANEXOS

Page 93: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

Anexo A – Roteiro de entrevista – Tatuados:

1. Quando foi a 1º vez que viu uma tatuagem?

2. Quando foi que começou a pensar em fazer uma tatuagem?

3. O que motivou a tomar essa decisão? Continua a ser a mesma motivação, ou

vem mudando com cada tatuagem?

4. O que sente antes do momento da tatuagem? E depois, como se sente? Existe

alguma mudança?

5. Como é a relação com a dor? É importante no processo ou poderia ser descartada

se possível?

6. Suas tatuagens possuem um significado?

7. Qual sua relação com o tatuador (anteriormente, durante e depois)?

8. Já sofreu algum tipo de preconceito? Já exerceu algum preconceito no que diz

respeito a tatuagens?

9. Como é a relação com outras pessoas sem tatuagem? Elas abordam você para

falar sobre? E as pessoas tatuadas?

10. O que é tatuagem para você?

Page 94: TINTA E DOR: A PRÁTICA DA TATUAGEM NA ... - uern.br§ões/arquivos... · urbana contemporânea, e a utilização de piercings e tatuagens não são mais consideradas como algo tão

Anexo B – Roteiro de entrevista – Tatuador:

1. Quando foi a 1º vez que viu uma tatuagem?

2. Quando foi que começou a pensar em fazer uma tatuagem?

3. Quando começou a se tornar tatuador? Como se deu esse processo? Houve

algum “mestre”?

4. Você acha que a tatuagem está mais bem aceita hoje? O que proporcionou isso?

5. Como é a relação com a dor? É importante no processo ou poderia ser descartada

se possível?

6. Qual sua relação com as pessoas? Existe uma conversa a respeito? O que é

tratado?

7. Já sofreu algum tipo de preconceito? Já exerceu algum preconceito no que diz

respeito a tatuagens?

8. Como é a relação com outras pessoas sem tatuagem? Elas abordam você para

falar sobre? E as pessoas tatuadas?

9. O que é tatuagem para você?

10. O que é preciso para ser um tatuador?