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THIAGO ROMEU DE SOUZA A RE-TERRITORIALIZAÇÃO DO RETORNADO CEARENSE: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia / Mestrado em Ordenamento Territorial e Ambiental da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Geografia da População. Orientador: ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA Niterói 2006

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THIAGO ROMEU DE SOUZA

A RE-TERRITORIALIZAÇÃO DO RETORNADO

CEARENSE: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Geografia / Mestrado em

Ordenamento Territorial e Ambiental da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do Grau de

Mestre. Área de Concentração: Geografia da

População.

Orientador: ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA

Niterói

2006

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THIAGO ROMEU DE SOUZA

A RE-TERRITORIALIZAÇÃO DO RETORNADO

CEARENSE: Uma proposta de análise

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Geografia / Mestrado em

Ordenamento Territorial e Ambiental da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do Grau de

Mestre. Área de Concentração: Geografia da

População.

Aprovada em maio de 2006.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Prof. Dr. Helion Póvoa NetoUniversidade Estadual do Rio de Janeiro

________________________________________________

Prof. Dr. Ivaldo Gonçalves de LimaUniversidade Federal Fluminense

________________________________________________

Prof. Dr. Rogério Haesbaert da CostaUniversidade Federal Fluminense

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Aos meus pais, inspiração maior, exemplos de perseverança, fé e honradez, presença contínua na constituição da minha “nordestinidade”.

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AGRADECIMENTOS

À professora Neide Patarra, pela ajuda incomparável desde a monografia e por relevar ingenuidades tolas comuns a novos pesquisadores como eu.

À Biano e Clarisse Paranhos que conseguiram ilustrar mais que uma monografia e uma dissertação respectivamente, ilustraram amizades eternas.

Aos meus grandes companheiros nuaregues, cujas idéias compõem grande parte deste trabalho. Pelo incentivo constante à reflexão.

Ao meu querido amigo e orientador Rogério Haesbaert. As palavras de gratidão jamais conseguirão chegar a altura de sua importância nesta obra e em minha vida.

À minha adorável Rachel, ajudadora em todas as horas. Meu aconchego nos momentos de grande dificuldade.

Ao meu amado Deus, incrível criador de criaturas criadoras.

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Más extrañeza há de causarte, lector, la precipitación de

mi retorno, que pueda yo renunciar tan presto a las

excelencias de la ciudad de Rómulo (...) ¡Oh, cuán

imponderablemente y cuántas veces felices puedo

considerar a quienes merecieron nacer en este suelo

dichoso, y como generosos retoños de los nobles

romanos acrecientan la distinción de su cuna com la

gloria de su Ciudad! Las semillas de las virtudes caídas

y transmitidas del cielo no habrían podido hallar más

digno asiento en otros lugares.

Namaciano, R. (2002: 43)

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Sumário

LISTA DE FIGURAS, 7RESUMO, 8RESUMEN,9APRESENTAÇÃO, 10INTRODUÇÃO, 131 A CONSTITUIÇÃO DO RETORNADO, 14

1.1 Os debates sobre a migração, 151.2 As concepções de retornado e suas implicações, 18

1.2.1 Os retornados numa perspectiva mais recorrente, 181.2.2 Os retornados em uma perspectiva mais sofisticada, 25

1.3 Os retornados e a des-reterritorialização, 391.3.1 O território, 391.3.2 A identidade territorial constituinte do migrante retornado, 46

1.3.2.1 Delineando a identidade do retornado, 471.3.2.2 A questão da região e da identidade regional para os migrantes

cearenses, 542 QUEM SÃO OS RETORNADOS CEARENSES?,60

2.1 Migração: primeiro mo(vi)mento de des-re-territorialização, 652.2 Retorno: segundo mo(vi)mento de des-re-territorialização,752.3 Migrantes retornados cearenses: categoria de difícil generalização, 84

2.3.1 Os retornados maduros, 862.3.2 Os retornados jovens, 93

3 RETORNADOS CEARENSES: MULTITERRITORIALIDADE E RETERRITORIALIZAÇÃO, 101

3.1 Retornados, indivíduos multiterritoriais, 111 3.2 A reterritorialização do retornado no Ceará, 120

CONCLUSÃO, 138BIBLIOGRAFIA

Obras citadas, 145Obras consultadas, 149

ANEXO 1, 152ANEXO 2, 153

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Lista de figuras:

Mapa: Retornados cearenses: municípios pesquisados, 10

• TabelasTabela 1: Migrantes retornados segundo municípios metropolitanos fluminenses por

município de retorno, 32

Tabela 2: Saldo migratórios inter-regionais por Unidade Federativa de origem e Unidade

Federativa e regiões de destino 1970/80, 62

Tabela 3: Saldo migratórios inter-regionais por Unidade Federativa de origem e Unidade

Federativa e regiões de destino 1980/91, 62

Tabela 4: CEARÁ – 1980/90: Saldo migratório da década de oitenta estimado a partir da

informação da data fixa, 63

Tabela 5: Participação dos retornados no comércio legal, 122

• GráficosGráfico 1: As Profissões dos migrantes no Rio de Janeiro, 48

Gráfico 2: Proporção de migrações de retorno por sexo e idade entre as migrações inter-

regionais (1988-1995), 93

• FotografiasFoto 1: “Pick-up” típica nas cidades do interior do Ceará, 126

Foto 2: Ponto de moto-táxi em Guaraciaba do Norte, 128

Foto 3: Mobilização dos trabalhadores rurais de Quixadá, 134

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RESUMO

O presente momento da humanidade tem proporcionado o surgimento de um vasto número de agentes sociais que por força do contexto socioeconômico, constituem-se novos sujeitos. No bojo dessas mudanças econômicas e sociais globais, os migrantes laborais são um dos sujeitos que mais sofrem e causam transformações espaciais. Contudo, o presente trabalho, que surge diante deste quadro, investiga o migrante no seu processo de retorno, que passa a ser conhecido como migrante retornado, tendo por objetivos identificar elementos motivadores para o retorno, sua ação espacial transformadora no lugar de retorno e mostrar que o peso simbólico do lugar de origem influencia decisivamente no retorno, tentou-se apresentar como se dá a re-territorialização deste indivíduo no seu lugar de retorno. Porém, a despeito das condições da pesquisa e das limitações para a investigação, a escala de estudo foi reduzida aos limites de alguns municípios no interior do Ceará, entendendo que este estado se constitui como um dos grandes pólos de emigração inter-regional do Brasil e hoje delineia-se como um dos grandes receptores de migrantes de retorno. Sendo assim, o migrante retornado assume feições características de quem incorporou elementos dos territórios distintos onde estabeleceu uma territorialidade, constituindo-se, portanto, um sujeito multiterritorial. Por fim, o retornado cearense aqui é alvo de uma investigação que conhecerá sua territorialidade vendo-o para além dos estigmas e estereótipos de migrantes, mas como sujeito social importante atualmente e agente de seu destino.

Des-reterritorialização, multiterritorialidade, migração de retorno, retornado.

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RESUMEN

El momento actual de la humanidad está aportando el surgimiento de un vasto número de agentes sociales que por fuerza del contexto socioeconómico, se constituyen nuevos sujetos. En el interior de esos cambios económicos y sociales globales, el migrante laboral es uno de los sujetos que más sufre y causa transformaciones espaciales. No obstante, el presente trabajo, que surge delante de este cuadro, investiga el migrante en su proceso de regreso que pasa a ser conocido como migrante retornado. Teniendo por objetivos identificar elementos motivadores para el regreso, su acción espacial transformadora en el sitio de retorno y enseñar que el peso simbólico del lugar de origen influye decisivamente en el dicho retorno. Se ha intentado presentar como se da la reterritorialidad de este individuo en su lugar de retorno. Sin embargo, a pesar de las condiciones de la investigación y de las limitaciones para la misma, la escala del estudio fue reducida a los límites de algunos municipios del interior de la provincia de Ceará, considerándose que esta provincia se constituye en uno de los grandes polos de emigración interregional de Brasil y hoy se delinea como uno de los principales receptores de emigrantes de retorno. Así pues, el migrante retornado asume rasgos característicos de quien ha incorporado elementos de los distintos territorios donde ha establecido una territorialidad, constituyéndose, por tanto, en un sujeto multiterritorial. Por fin, el retornado cearense aquí es blanco de una investigación que conocerá su territorialidad mirándolo más allá de los estigmas y estereotipos de emigrantes, sino como sujeto social actualmente importante y agente de su propio destino.

Reterritorialización, multiterritorialidad, migración de retorno, retornado

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APRESENTAÇÃO

Raimundo acorda naquele dia, e vê que o sol já vai nascer. É o dia em que começará

a transformar sua vida, mas ele não sabe disso. Vai para a roça e deixa sua mulher, Maria,

em casa, cuidando das coisas do lar. Maria está já próxima de dar à luz ao primeiro filho do

casal e Raimundo está alerta.

No final desta tarde, Maria começa a sentir dores e clama pelo marido. Não demora

e ele chega esbaforido sabendo que é chegado o momento. Há dois anos esperavam por

isso. O casamento em 1955, na igreja de Reriutaba, sorriu como uma novidade na vida

daqueles dois sertanejos que pretendiam a partir da vaquinha dada pelo pai do noivo e por

uma cabra dada pelo pai da noiva iniciar suas criações de gado. Maria já era experiente na

criação de galinhas e patos, possuía muitas aves desse porte. Raimundo, por sua vez,

ganhou também de seu pai um pequeno terreno e lá construiu uma arejada casinha de

estuque onde criaria sua família.

Começava o primeiro dia de dores de Maria e ela já chorava quando a parteira

chegou. Ali começou uma árdua luta, o bebê não saia e Raimundo após uma noite de

tentativas, foi, no amanhecer, em busca do Dr. Pedro, único médico num raio de dezenas de

quilômetros, naquelas bandas do Ceará. Num galope incansável, correu com seu alazão por

cerca de cinco léguas e trouxe o médico. Já era final da tarde do segundo dia em que Maria

sofria dores. A casa se enchera da vizinhança agitada a espera do pior. Muitos já rezavam

encomendando a alma de Maria e do “anjinho” que ela esperava.

No quarto ao fundo, o médico, a parteira e o marido lutaram até as sete da manhã do

terceiro dia, quando enfim, o médico conseguiu virar a menina. A mãe, que não tinha mais

forças, obrigou o médico a puxar o bebê com o uso de diversos instrumentos, o que a

maltratou ainda mais e rendeu à menina marcas no rosto. Por pouco, mãe e filha não

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morreram, o que frustrou a sentinela do cadáver que muitos já faziam, como era de costume

em partos como aquele.

O sucesso do parto rendeu o cumprimento da promessa da avó Esmerina a São

Francisco das Chagas, dando à menina o nome do santo. Após o alívio e a felicidade do

nascimento da primeira filha do casal, veio a conta do médico e a constatação de que não

havia meios para pagá-la. Raimundo então não viu outra opção: trabalhar no Rio de Janeiro

parecia ser o mais óbvio, tendo em vista que já havia outros parentes morando lá e com

emprego garantido. Aliás, emprego não deveria faltar, pois canteiros de obras era o que

mais parecia haver naquela cidade, e disposição para o trabalho nunca lhe faltara.

Ao partir em um ônibus sucateado, prometeu o retorno tão logo concluísse o

pagamento. Além disso, enviaria mensalmente uma quantia para sua mulher, que não temeu

a solidão, afinal seria algo passageiro e havia fartura de criações. Não haveria fome.

No início de 1958 constata-se uma das mais dramáticas secas da história do sertão

nordestino. Maria e a filha Francisca passam pelo flagelo da fome. As criações começam a

morrer, falta água e a desidratação atinge a menina. Parece que não há outra opção: fugir da

fome e ir ao encontro do marido, repetindo assim sua epopéia. Ao subir no “pau-de-arara”

Maria não sabia que seria uma viagem de mudança de vida.

Ao reencontrar o marido, após 15 dias sentada nos bancos do caminhão, a

felicidade. Novamente a família se une. No entanto, nem tudo é alegria, a apreensão em

relação ao desconhecido, o medo do novo lugar se manifesta na reclusão dentro do barraco

na Rocinha. A “cidade maravilhosa” para esta jovem família é a favela. Pouco a pouco,

porém, isso será quebrado. Uma nova territorialidade terá lugar em suas vidas, e será

constituída entre um retorno e mais uma imigração deste casal.

Após um ano juntos morando na Rocinha, Raimundo, Maria e a pequena Francisca,

marcam a volta ao Ceará. A saudade, reforçada pelas economias feitas no Rio

impulsionaram-nos ao retorno. As notícias davam que a seca já era passado e que a fartura

era abundante. Duas passagens reservadas no navio que partiria do armazém 13 os levaria

de volta ao saudoso Ceará. O suplício de uma viagem no porão, reservado à terceira classe

valia a pena tendo em vista a garantia de voltar à terra natal.

No Ceará, de novo pelas bandas de Reriutaba, Raimundo monta um negócio com o

sogro, levando mulas do sertão para a serra da Ibiapaba carregadas de estrume, produto

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escasso neste lugar, e trazendo, no sentido contrário, rapaduras e frutas para comercializar,

produtos de igual raridade no sertão.

O negócio não foi para frente porque negociar não era o forte do chefe da família,

coisa que Maria fazia com destreza. Além disso, uma rixa com um vizinho motivada pela

destruição da cerca pela cabra que alimentava Francisca, estimulou a família a imigrar para

o Rio novamente. Esta foi a mais duradoura, adiando o sonho do retorno para a velhice.

A constituição deste novo território, no entanto, não parece borrar a lembrança do

seu território de origem. Para manter vivas as lembranças, as práticas cotidianas vividas

nele dão ritmo a constituição do novo território. O desejo de voltar aos lugares da

lembrança se cristalizou e agora, no amadurecer desta família, foi realizado.

Anos depois, apesar de visitas freqüentes ao seu sertão cearense, não havia a

possibilidade concreta do retorno. Mas o empenho dos dois, facilitado pelas economias

feitas por Maria através de seus dotes comerciais os levaram, enfim, a construção da tão

sonhada casa no Ceará, lá na serra, onde guardam seus mais belos sonhos. E, ao falar de

retorno, não estamos considerando visitas esporádicas, mas uma volta com a intenção de

reconstruir os vínculos com o território de origem que foram deixados um dia para trás.

* * *

A história dos meus pais não é incomum em centros metropolitanos como Rio de

Janeiro e São Paulo e nas bordas da capital federal, Brasília. Ao apresentá-la, intenciono

mostrar um panorama da migração de retorno dos cearenses, panorama que espero

transcender a um rápido olhar.

A constituição do retornado (este indivíduo que regressa aos lugares de origem) se

dá por meio desse ir e vir, das lembranças cortadas, dos projetos adiados e das infinitas

possibilidades de relação presentes entre o indivíduo e seu antigo território de origem.

Diante disso, entendo que em um lar que nasce diante deste conjunto de histórias, seus

indivíduos viverão em um contexto espacial urbano, moderno e sofisticado, permeado por

elementos rurais, tradicionais e simples, que os remetem a todo mometo a um território

anterior, quase mítico. Sujeitos no entre-tempo e no entre-lugar, indivíduos que não

dissociam o território em que vivem da territorialidade trazida por seus pais.

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Esta experiência já está manifestada na escrita deste trabalho. Escrevo percebendo a

sensação de quem se vê tanto um pesquisador-sujeito como um estudante-objeto, ou seja,

vejo-me como aquele que busca entender os processos externos a mim, mas que para

entendê-los deve olhar também para sua posição, que é interna ao processo. Assim começo

este trabalho, que nunca é individual (por isso sempre escrito no plural), dentro desta

situação dialética.

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INTRODUÇÃO

O movimento, aparentemente, não é uma tendência do ser humano, mas sempre que

as dificuldades assolam a vida humana uma possibilidade quase sempre presente é a fuga

do lugar que as apresenta. Tal afirmação parece ser universal, tendo em vista que, ainda

hoje, o sonho de deixar a pobreza, a calamidade, as recorrentes privações levaram e levam

muitas pessoas a deixar seus lugares de origem. Num mundo onde as comunicações e os

transportes, cada dia mais velozes, levam pessoas e discursos a circular o mundo

rapidamente, percebemos, por meio de um contraste cada vez menos matizado, as

diferenças econômicas e sociais. Ilhas de luxo e prosperidade emergem em mares de

miséria. Regiões inteiras são identificadas pela calamidade e pela ausência, algumas

tornam-se símbolos destes adjetivos.

O Nordeste, como símbolo, constitui-se ao longo de sua história como o locus

natural da seca, conseqüentemente lugar de vida dificultada pelas condições naturais,

portanto, um pólo emissor de migrantes. Discurso que naturaliza a miséria e reafirma a

necessidade da migração. A imagem dos retirantes da seca foi, então, cristalizada como a

marca dessa região. Diversas obras artísticas ajudaram a selar esta imagem, quadros como o

de Portinari, Os retirantes, livros como as de Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos,

respectivamente, O Quinze e Vidas Secas, e até mesmo as composições de Humberto

Teixeira e Luiz Gonzaga, dentre elas Asa Branca, são algumas das obras que dão o tom do

que viria a se tornar a imagem central do Nordeste na mentalidade da nação brasileira.

Imagens criadas a partir de vínculos tanto com a cultura subalterna como com a cultura

dominante (Ianni, 1992), esta última por sinal muito vinculada à elite formadora de opinião

brasileira. Podemos dizer então que o sonho de migrar muitas vezes é criado não

necessariamente a partir da calamidade, das recorrentes privações ou da pobreza crônica do

lugar, mas a partir das imagens criadas e projetadas sobre este lugar.

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A experiência da imigração nordestina ao “Sul”, provocada pela fuga da seca foi

uma realidade muito presente na formação do que conhecemos por “povo brasileiro”. A

experiência de conviver em uma família onde a experiência migratória é marcante prova

esta afirmação. Quando trazemos à memória as mesas postas onde os temas de longas

“prosas” eram a evocação de espaços-tempos passados, prosas essas que tratavam dos

dramas e das privações ocorridas no lugar de origem, os primeiros anos de re-

territorialização, as dificuldades em se habituar a esse novo lugar, assim como de habitá-lo,

e também do desejo de retornar sempre presente, percebemos que o próprio migrante,

especialmente o nordestino sertanejo, vê a si mesmo como “antes de tudo um forte”, como

dizia Euclides da Cunha, visão reforçada pela elite dominante, conforme diz Ianni: “(...) Em

geral, a cultura dominante, burguesa, concebe largos setores da sociedade como população,

isto é, uma coletividade de trabalhadores” (p.150), evidenciado pelos migrantes.

A imagem da seca construiu na mentalidade dos poderes públicos e da elite

burguesa a noção de uma região onde a necessidade é perpétua, constituindo,

conseqüentemente, uma idéia de ausência absoluta, onde não há nenhuma elemento fixador,

nada que motive os idivíduos a desejarem permanecer em seus lugares de origem. Observe-

se como isso é traçado pelas elites governamentais do recém surgido Nordeste, comparado

à antiga divisão regional brasileira Norte-Sul, de acordo com Durval Albuquerque Jr.

O discurso da seca, traçando “quadros de horrores”, vai ser um dos responsáveis pela progressiva unificação dos interesses regionais e um detonador de práticas políticas e econômicas que envolvem todos “os Estados sujeitos a este fenômeno climático”. A descrição das “misérias e horrores do flagelo” tenta compor a imagem de uma região “abandonada, marginalizada pelos poderes públicos”. Este discurso faz da seca a principal arma para colocar em âmbito nacional o que chama de interesses dos Estados do Norte, compondo a imagem de uma área “miserável, sofrida e pedinte”. Este discurso da seca vai traçando assim uma zona de solidariedade entre todos aqueles que se colocam como porta-vozes deste espaço sofredor. Aproxima os grandes proprietários da Zona da Mata dos comerciantes das cidades, e estes dos grandes produtores de algodão ou criadores de gado. Forma o que Freyre vai chamar de “elite regional”, capaz de sobreviver, durante décadas, com estes mesmos argumentos. (Albuquerque Jr, 1999: 59).

O que mais impressiona é que esse argumento da necessidade permanente e da

exaltação do sertanejo nordestino como um forte acaba sendo repetido pelo próprio

migrante, não percebendo que esta afirmação sugere que seu caráter resistente pode ser

empregado para trabalhos que exijam força e nenhuma qualificação (Póvoa Neto, 1994) e

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reforça na mentalidade do sertanejo que há possibilidades reais de um emprego para sua

força.

Impossível dissociar, diante desta afirmação, a experiência de Raimundo, um

migrante quando veio para o Rio de Janeiro em 1957, onde foi empregado para trabalhar na

fundação de um edifício em Ipanema, e por ser habituado ao trabalho braçal, foi destacado

para um buraco de grande profundidade, destruindo uma rocha que impedia a construção.

Conta orgulhoso que diversas vezes lascas da rocha voavam em seu pé e mesmo sangrando

muito continuava trabalhando como se nada tivesse acontecido.

Parece necessário entender, antes de tudo, que os lugares de origem da população

migrante nordestina, para além de ambientes de miséria e carências, constituem territórios

onde pessoas com territorialidades muito distintas das metropolitanas, vivem e almejam a

felicidade, logo são espaços também de esperança e agregação, e não só desespero e

decepção. Tendo estas afirmações como premissa fica mais compreensível a motivação

deste trabalho: os migrantes retornados. São estas pessoas porta-vozes de um fenômeno que

tem sido crescente ao longo das últimas décadas, o retorno de migrantes aos lugares de

origem, provenientes das metrópoles nacionais, conforme os últimos censos têm assinalado.

Todavia, não basta reconhecer o processo, entendê-lo é necessário, logo, ouvir estes porta-

vozes tornou-se fundamental.

Mas porque realizar um trabalho utilizando como metodologia a própria fala dos

nossos “objetos” de estudo? Ora, tentamos mostrar que para além da dicotomia

sujeito/objeto, nossos objetos são os protagonistas principais de suas territorialidades.

Percebemos que de nada vale querer compreender o fenômeno das migrações nordestinas

quando antes não dimensionamos a teia de relações que permeia o cotidiano dos sujeitos do

processo (no nosso caso, o retornado), mais ainda, quando não tentamos ao menos nos

posicionar enunciativamente de maneira que procuremos levar em consideração a

perspectiva desses indivíduos. Ou, usando palavras de Edward Thompson, criticando os

que não valorizam a experiência como método: não buscar essa posição é

(...) uma ilusão muito característica dos intelectuais, que supõem que os comuns mortais são estúpidos (afinal de contas) a experiência surge espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais, e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo (...) (Thompson, 1981: 16, grifos do autor).

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Ao ouvir as vozes sempre silenciadas de sujeitos pouco visíveis como os retornados,

esperamos compreender melhor os fenômenos territoriais que lhes são comuns.

Entendemos que enquanto esses indivíduos são desconsiderados nas análises mais

consistentes, construíram territorialidades que possivelmente divergem das pre-concepções

ditadas pela elite burguesa dominante. Para aqueles que vivenciam de perto a realidade de

migrantes nordestinos e retornados, a constituição de novas territorialidades divergentes do

estereótipo nordestino nas metrópoles do “Sul” parece ser tão expressiva que nos levou a

crença de que alguma mudança significativa estaria ocorrendo nos seus lugares de origem.

Desta forma, percebemos que só compreenderíamos melhor o fenômeno do retorno se o

analisássemos à luz das experiências dos migrantes. E isto nos levou a uma pergunta: como

os migrantes retornados se reterritorializam em seus lugares de origem?

Devido a proximidade que temos com pessoas que vivem a condição de migrantes

nordestinos na metrópole do Rio de Janeiro, percebemos que o retorno gera conseqüências

territoriais, e os retornados, como agentes deste processo, parecem ser protagonistas de uma

territorialidade nordestina, no mínimo, diferente da que nos habituamos a conhecer, a

flagelado. Partindo da idéia de que esses sujeitos causam, aparentemente, transformação

espacial nos seus lugares de origem, a pergunta suscitada norteou a discussão que ora

propomos e a busca de alguns objetivos.

Sem uma hierarquização prestabelecida, poderíamos dizer que o nosso principal

intento é identificar e apontar algumas implicações que o processo de retorno gera nas

territorialidades dos retornados. Contudo, não nos restringiremos a estes objetivos.

Também esperamos identificar elementos que motivam a migração e, posteriormente, o

retorno, averiguando as relações entre estes dois fenômenos. Um outro objetivo seria

mostrar que o peso simbólico para o retorno assume cada vez mais importância frente aos

estímulos migratórios. Também pretendemos analisar com que força se dá a apropriação e o

uso, por parte dos retornados, da identidade nordestina e da identidade com o Ceará;

O presente trabalho não tem a pretensão de responder a esta questão, na escala de

toda a região Nordeste, mas apenas em uma área representativa de um dos estados que a

compõe. Ao longo do nosso estudo, visitamos alguns municípios do Ceará, sem uma

hierarquização específica. Na verdade, por motivos logísticos, não tivemos a oportunidade

de escolhê-los com base em uma metodologia estatística ou outra mais criteriosa, mas a

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escolha se deu, sobretudo, graças aos contatos que mantivemos, especialmente com os

familiares nos municípios do noroeste do estado e com os Sindicatos de Trabalhadores e

Trabalhadoras Rurais (STTR), nos municípios restantes. Os municípios visitados estão

relacionados a seguir: Guaraciaba do Norte, São Benedito, Ubajara, Reriutaba e Varjota,

todos no noroeste do estado, sendo os quatro primeiros na Serra da Ibiapaba e os dois

últimos no sertão, que por motivos que apresentaremos, enviaram e ainda enviam grande

contingente de migrantes ao Sudeste, especialmente para o Rio de Janeiro e São Paulo, e

também Canindé e Quixadá, no sertão central do estado, além de Abaiara, no extremo sul,

estes últimos com migração mais voltada para São Paulo.

Retornados cearenses: municípios pesquisados1

Partindo de uma tentativa de classificação, que não retrata totalmente a realidade,

mas ajudam a dimensioná-la, tentaremos compreender como se dá a reterritorialização dos 1 Agradecemos a Clarisse Paranhos que gentilmente elaborou e construiu este mapa.

1

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retornados e os impactos em suas territorialidades de origem. No lastro desta discussão

mostraremos alguns elementos que levam as pessoas à migração, bem como alguns que os

levam ao retorno.

Para além de sujeitos, percebemos os retornados cearenses como agentes territoriais

que guardam especificidades de muita importância para a compreensão da questão

migratória na atualidade. O retorno é hoje mais que uma ação individual, é um processo no

qual os cearenses e demais nordestinos, assim como migrantes internacionais, começam a

constituir, fruto das rápidas mudanças que nosso tempo tráz. Logo, entender o processo, ou

o fenômeno do retorno, à luz das experiências dos retornados, é algo primordial, mas para

isso precisamos vê-lo inserido na questão migratória como um todo.

A compreensão das razões do processo migratório passa por um óbvio

esclarecimento que Fajardo (2002) faz e que diversas vezes esquecemos ao tratarmos deste

assunto:

Viaja-se ao estrangeiro por prazer, para ampliar os estudos ou para conhecer terra e pessoas novas. No entanto, se emigra por necessidade (...) O que emigra tem uma sensação de ruptura e a integração pode pressupor um desenraizamento. A sociedade de destino é considerada mais uma sociedade de chegada que de acolhida, percebe-se logo que o Norte é mais uma sociedade de consumo que de bem estar. O retorno se converte então em um mito: não se pode regressar com as mãos vazias (Fajardo, 2002: 2. Grifo nosso, tradução livre).2

Embora tratando de um tema que possui diferenças – migrações internacionais –

podemos perfeitamente aplicar sua observação ao nosso estudo, pois as razões que levam

uma pessoa a se locomover de seu território para outro, levando consigo apenas sua força

de trabalho e suas experiência de vida, muitas vezes se cruzam tanto na escala regional

como na internacional (ainda mais em um país de proporções continentais e com desnível

regional tão brutal como o Brasil). E o que parece óbvio é o que surpreende, pois sendo do

conhecimento de todos a noção de que não se migra simplesmente pelo prazer de viajar,

apesar da mobilidade quase sempre passar por uma decisão do migrante (na verdade uma

indução, de acordo com Guademar, 1977), poucos percebem que, de igual modo, o retorno

2 “Se viaja al extranjero por gusto, por ampliar estudios o por conocer tierras y personas nuevas. Pero se emigra por necesidad. (...). El que emigra tiene una sensación de ruptura y la integración puede suponer un desarraigo. La sociedad de destino se considera una sociedad de llegada más que una sociedad de acogida, mientras que se descubre que el Norte es una sociedad de consumo más que del bienestar. El retorno se convierte en un mito: no se puede regresar con las manos vacías”.

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não se apresenta para o migrante da mesma maneira que a um viajante, não é apenas uma

questão de tempo. O retorno é para a maioria quase um sonho, pois não se pode chegar da

mesma maneira como se partiu, “com as mãos vazias”. A chegada deve ser marcante e isso

faz com que os esforços de muitos dos que partem sejam direcionados apenas à acumulação

de bens nos lugares de imigração. É importante ressaltar também que a produção e a

reprodução do espaço do migrante são afetadas diretamente na medida que o sentimento em

relação àquele território (o da “sociedade de chegada”) expressa em muitos casos uma

completa ausência de identificação.

Trazer alguma luz ao que muitas vezes é escondido pelo senso comum é o objetivo

comum aos trabalhos acadêmicos. No nosso caso, o estudo das migrações é nosso mote

central. O fenômeno migratório, que parece ser tão antigo quanto a humanidade, apesar da

antigüidade de sua existência continua a suscitar novidades nas relações humanas. Talvez

este seja seu caráter mais importante: o contato entre os diferentes que proporciona a

entrada do novo no mundo, como diz Salman Rushdie (apud Hall, 2003a: 92).

Se podemos entender que o fenômeno migratório está prenhe de novidades,

resolvemos então investigar uma faceta dele, que é o retorno, como já ficou evidenciado.

Ora, se no âmbito da Geografia observamos poucos trabalhos a respeito dos processos

migratórios, menos ainda quando se trata das migrações de retorno. Por esta razão

empreendemos esta pesquisa. Pouco se produz acerca dos retornados e dos seus impactos

territoriais, o que se sabe provém de estudos de outras disciplinas ou de geógrafos de outros

países. Interessante é perceber que, mesmo em outros países, o estudo dos retornados, pela

Geografia, tem adquirido importância somente nos últimos anos, especialmente nos países

que antes eram de emigração e hoje, inversamente, vêem o retorno de seus patrícios ou a

chegada dos filhos destes, tais como Itália e Espanha, ou seja, mais uma vez podemos dizer

que o estudo sobre o retorno de imigrantes é um fruto de nosso tempo.

Cremos que este movimento intelectual segue a mobilidade dos retornados que se

incrementa cada vez mais devido ao amplo desenvolvimento e difusão dos meios de

transporte e comunicação (neste tempo de contatos globais). Também cremos que o debate

tem se ampliado, sobretudo, porque somente agora começam a aparecer condições mais

atraentes de reterritorialização para os migrantes, nos seus lugares de origem, tradicionais

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pólos de emigração. Inspirados neste movimento é que escrevemos este texto, certos que

nossa empresa não será em vão.

Para isso, reservamos o primeiro capítulo à descoberta do retornado. Quem é ele e

como é concebido pelo pensamento acadêmico, em duas vertentes: uma mais reducionista e

outra mais complexa, além de suas implicações territoriais. Esta última, que concede a

geograficidade deste trabalho, tentará mostrar que a territorialidade do retornado é gerada a

partir de sua identidade com o território de origem e sua relação com a identidade regional.

Em seguida, no capítulo dois, buscaremos mostrar nossos objetos-sujeitos, discutir o seu

processo de des-reterritorialização e, a partir de dois tipos característicos, apresentar as

sutilezas e diferenças presentes entre os retornados, sempre partindo daquilo que

presenciamos e constatamos no contato realizado nos trabalhos de campo. O último

capítulo reservamos para a discussão específica sobre a reterritorialização do retornado,

mostrando, por meio de suas experiências territoriais nos lugares de origem, como se

processa a reterritorialização e de que instrumentos se valem para tal objetivo. Por fim, a

conclusão daquilo que esperamos ser uma contribuição geográfica inicial aos estudos sobre

a migração de retorno.

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1. A CONSTITUIÇÃO DO RETORNADO

Sair do lugar de criação, onde os laços e a história foram constituídos, para muitos,

não é tarefa das mais fáceis. É certo que ao falarmos de uma saída, ir embora pode

significar a concretização também de um sonho, no entanto, quando observamos o

fenômeno das migrações e dos migrantes normalmente não é o que se vê. O desejo por

retornar, para muitos é pulsante. É certo que devemos ressaltar a postura oposta a esta

afirmação por parte de alguns migrantes, mas o que percebemos com as pesquisas de

campo foi que na maioria das vezes os migrantes anseiam pelo retorno. Tal anseio pode se

concretizar num retorno “definitivo” ou em uma visita esporádica. Para outros, o retorno

pode ser, em um primeiro momento, definitivo, mas com o passar dos tempos, as diversas

situações podem transformar este status definitivo do retorno em retorno provisório.

É necessário que entendamos este duplo sentido do retorno antes mesmo de

iniciarmos a discussão acerca do tema. O retorno se dá sempre neste binômio,

passageiro/definitivo, esporádito/permanente, provisório/durável. O que pode parecer

durável, tanto a migração quanto o retorno, pode se transformar, a despeito das

circunstâncias, em um momento provisório. Esta aparente instabilidade no ser/estar do

migrante gera transformações em sua territorialidade e no seu território. Do que se

depreende então que inerente ao processo de migração estão os processos de

desterritorialização e reterritorialização, em conseqüência, para tratarmos do retorno

necessariamente falaremos destes processos.

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O cotidiano de muitos migrantes nas metrópoles é mesclado de situações que trazem

a memória o território de origem. Situações essas que podem ser definidas como momentos

em que se manifestam atitudes e comportamentos comuns nos lugares de origem, porém

diferentes das atitudes e comportamentos comuns dos lugares metropolitanos. Estes

elementos, constituintes do cotidiano de qualquer indivíduo, delineiam muitas vezes a

identificação de um nordestino. As atitudes e os comportamentos marcam, muitas vezes, o

modo como construímos o nosso território. Desta forma, também o migrante tenta

reconstruir o seu território na metrópole partindo de seus modos de agir e se comportar

constituídos no território de origem. Portanto, entendemos que, no caso dos migrantes, há

um território e, por conseqüência, uma territorialidade que aparentemente foi perdida ou

deixada de lado na migração. Contudo, não desaparece ou de imediato transforma-se, há

um processo de modificação que irá ocorrer em medidas diferentes e graus variados de

acordo com cada um, a partir das suas experiências individuais. Esse processo de des-re-

territorialização gera mudanças significativas no espaço em que está ocorrendo, no nosso

caso, tanto a metrópole quanto o lugar de origem.

O que envolve, na vida das pessoas e da sociedade de uma maneira geral, os

processos de des-re-territorialização? Como a vida social pode ser transformada a partir de

situações que levem a uma des-reterritorialização? Se talvez fosse possível uma única

resposta, esse trabalho nem sequer teria razão de ser iniciado, portanto, ter a pretensão de

mostrar aqui como este processo tão múltiplo e amplo atinge a sociedade contemporânea

em todas as suas dimensões exigiria esforço demasiado e não obteríamos êxito. Sendo

assim, esperamos abordar uma pequena faceta dele, que assume importância à medida que

atinge em um dado momento e lugar uma parcela de nossa população, além disto, os

cmovimentos populacionais são processos des-re-territorializantes cujos efeitos não podem

ser tomados como insiginificantes diante do panorama das relações sociais nos últimos

anos.

A migração parece-nos a ação mais significativa, no plano do real concreto, que

leva à des-reterritorialização (por isso o uso do termo no início do texto). Ela transtorna e

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transforma em alguma medida os migrantes, de tal forma que muitas vezes sua psique sofre

com a perda dos referenciais do primeiro território.3

As alterações no indivíduo migrante não se manifestam simplesmente em seus

corpos físicos ou em alterações psicológicas, mas se expressam também na sua relação com

o espaço. A depender desta relação, o agente se apresentará nos campos sociais. Embora,

conforme já enfatizado, nem este trabalho, tampouco esta pequena introdução, tenham por

objetivo desvendar a identidade do sujeito migrante, cremos que apresentar ao leitor o

processo geracional, que é a des-reterritorialização, nos levará a mostrar o nosso agente,

que não é o migrante, como indivíduo des-reterritorializado na sua ida, na fuga, no desterro

ou no seu desenraizamento, conforme o leitor achar melhor, mas o migrante no ato de seu

retorno ao território de origem.

Faz-se necessário, portanto, iniciarmos a discussão buscando complexificar um

pouco mais o debate acerca das migrações, especialmente as de retorno. Tal retorno ao

território de origem tem se multiplicado nestes tempos de compressão espaço-tempo.

Certamente o desenvolvimento e o acesso, por mais difícil que seja, aos meios de

comunicação e transporte tem proporcionado uma facilidade maior na volta de migrantes.

Mas a leitura que se faz normalmente deste retorno parece tratá-lo de modo bastante

simplificado, quando não é considerada apenas sob uma perspectiva quantitativa, sem

considerar as contingências que permeiam as trajetórias individuais, pois parece que

exatamente por não se levar em conta tais contingências, os territórios de retorno estão

sempre à margem dos estudos.

Entendemos, no entanto, que para uma compreensão mais abrangente desse

movimento devemos brevemente retomar a questão migratória, num panorama mais amplo,

com vistas a nos situarmos dentro do amplo debate acerca desta questão.

1.1 Os debates sobre a migração

O estudo das migrações tornou-se muito importante à medida que proporcionou

inúmeras possibilidades ao Estado de intervir nos caminhos que as populações foram 3A despeito das “marcas” que o processo de migração pode deixar no psíquico de uma pessoa ver Ferreira (1999 e 2005).

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delineando ao longo de suas respectivas histórias. As histórias de vida mais do que nunca

hoje são influenciadas pelo poder estatal, e aparentemente a força da decisão individual

hoje é menor do que antes do advento do Estado-nação. Tanto no Estado socialista como no

capitalista, o entendimento dos rumos dos vetores populacionais foi sempre muito

importante para determinar políticas migratórias, mesmo quando estas não eram declaradas.

Tais políticas foram estimuladas por teorias, assim como foram na mesma medida

estimuladoras de novas teorias. Mas, segundo Gomes (2003),

Somente a partir dos anos 80 é que as abordagens teóricas formuladas pelos cientistas políticos começaram a se impor no campo da análise das migrações internacionais. O estudo da imigração passa a se direcionar, a partir de então, para a análise de uma política pública que compreende tanto o controle sobre o fluxo de entrada e saída de estrangeiros do território nacional, como suas ramificações: as políticas de integração, de asilo e de naturalização de estrangeiros (p.01).

No período citado, o autor menciona a importância das teorias provenientes de

cientistas políticos, reduzindo a predominância do pensamento sócio-econômico na

definição de teorias migratórias. Um caminho novo para o pensamento social. Neste

sentido, cabe mencionar que no âmbito da economia Jean-Paul de Gaudemar, no final dos

anos 1970, talvez tenha sido o principal pensador a contribuir de maneira inovadora às

teorias migratórias, ao menos se considerarmos uma abordagem mais progressista do

pensamento marxista.

Um importante esclarecimento que este autor faz é mostrar que na teoria clássica, o

fenômeno das migrações sequer era visto como um fenômeno particular. As migrações

nada seriam além do trabalho em movimento. As teorias sobre a mobilidade do trabalho,

segundo Gaudemar, foram defendidas especialmente por Walras e Pareto, com base nas

teorias da economia clássica e nas contribuições dos fisiocratas, e pregavam como um fato

normal a mobilidade de pessoas em busca de melhores oportunidades. A economia

necessitava desta regulação, e isso era um mecanismo de grande eficácia para manter o

equilíbrio entre a oferta de empregos e o valor dos salários. O migrante visto apenas como

trabalho móvel facilitava a observação tanto da economia quanto do próprio migrante,

perspectiva que serviu para que Walras elaborasse a teoria da raridade, onde a escassez de

trabalhador faria com que os salários aumentassem, da mesma maneira que os preços de

uma mercadoria qualquer.

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Eis então, por virtude da axiomática da raridade, o trabalho entronizado como mercadoria; ei-lo finalmente liberto de qualquer conotação metafísica (...) É como mercadoria que ele entrará no modelo generalizado (...).Que comportamento vai ter esta mercadoria que, no entanto, se mantém particular, que continua a ser o serviço deste capital particular que é o homem?Aí também, Walras, preocupado em não ceder a qualquer sentimentalismo afastado do rigor indispensável à economia pura, trata-o como qualquer outra mercadoria: o trabalho será submetido às regras do mercado de serviços tanto quanto à sua oferta, e procura, como quanto ao seu preço. O trabalho deve então submeter o seu comportamento a estas regras deduzidas de dois princípios referidos mais atrás, o da raridade e o da livre concorrência (Gaudemar, 1977: 112).

O importantíssimo trabalho de Gaudemar buscou, entre outras coisas, mostrar a

concepção burguesa de mobilidade do trabalho, contrapondo-a com uma concepção

alternativa, onde o trabalhador é visto como sujeito de sua mobilidade. Obviamente, por

escrever na esfera da economia, não desenvolve aspectos mais relacionados a outros

campos das ciências humanas, como a tendência humana à imobilidade, cuja menção é

feita, apesar de não desenvolvê-la. No entanto, para o interesse desse trabalho, é preciso ver

a migração para além da dicotomia burguesia – proletariado.

Para fugir do enfoque sócio-econômico, houve no campo dos estudos migratórios, a

partir dos anos oitenta do século passado, uma valorização da produção intelectual da

Sociologia e da Ciência Política. Gomes (2003) nos mostra duas linhas que dicotomizaram

este debate, os soberanistas e os liberais. O primeiro grupo defende o princípio da soberania

que garante aos Estados o controle das migrações, enquanto o segundo grupo privilegia, em

sua análise, a incapacidade estatal de controlar os fluxos migratórios devido ao liberalismo

econômico que viabiliza a oferta de empregos a baixos salários.

O debate entre as duas abordagens possibilita a seguinte reflexão acerca da

migração de retorno:

1) as políticas estatais promovem o retorno, visando à redução da pressão exercida

pelo excedente de trabalhadores desempregados e sub-empregados sobre os trabalhadores

registrados; e possibilitando a implementação de políticas populistas que assumem um

discurso benevolente em relação aos migrantes, evitando transgredir os seus direitos,

enquanto ganha votos dos seus eleitores locais.

2) apesar dos esforços do Estado em evitar a mobilidade e devolver os migrantes

aos seus lugares de origem, o retorno não impede uma nova emigração assim como não

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desmancha as redes e cadeias que a estimulam, evidenciando seu caráter supra-estatal e o

peso da decisão individual no ato de migrar (isto reforça o papel que os migrantes assumem

como sujeitos do processo, evidenciado em nossa análise).

Os esclarecimento apresentados por Gomes são especialmente importantes à medida

que nos mostram o duelo entre o a regulação e a emancipação social, pilares da

modernidade segundo Santos (2004 b), algo que este autor já anunciava como um marco de

um modelo racional ao qual chama de razão indolente (Santos 2004 a), presentes cada vez

mais na atualidade, dada as ações de governos proporcionando o retorno de migrantes,

como veremos adiante, versus os subterfúgios, as ações de solidariedade e de estímulo à

migração realizados pelas redes e cadeias migratórias.

Podemos entender que cada vez mais as instâncias reguladoras se preocupam com o

processo migratório, afinal o migrante pode trazer mudanças consideráveis nas relações

sociais de um determinado lugar. Por isso o interesse em promover o retorno dos mesmos.

No entanto, mais do que um simples elemento do processo manipulado pelo Estado e pelas

empresas, o migrante parece ser também um criador de situações que constrangem os

agentes desestimuladores da migração.

Vendo-o desta forma, o retornado deixa de ser considerado como um personagem

no teatro das relações sociais. Um personagem sem território, sofrido, infeliz, ignorante e

desterrado. Um “desterritorializado”, vivendo de lembranças de um ser-estar que não volta

mais. Também deixa de ser visto como um indivíduo que apesar do flagelo da metrópole,

soube se “reterritorializar”, voltando melhor do que partiu e agora é um herói em seu

território de origem. Em nossa perspectiva, afirmar estas concepções tantas vezes

reforçadas é, simplesmente, abrir mão da oportunidade de desvendar este agente social e

seu processo constituidor. Portanto, buscaremos vê-lo como um agente que pode se

enquadrar nas características de territorialização mencionadas acima, mas que também

pode possuir a multiterritorialidade como um elemento esclarecedor de sua produção

espacial.

Vejamos então em que medida a relação do migrante com seu território de origem

influencia seu retorno. Como isso se apresenta diante de um mundo onde a identidade

territorial tem se mostrado algumas vezes, como um elemento até de sobrevivência, e como

isto é visualizado no caso do nordestino cearense. Esperamos a partir de um diálogo

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intrínseco com a vida destes agentes territoriais, encontrar perspectivas de entendimento da

situação dos retornados na atualidade, ultrapassando os olhares mais reducionistas, em

busca de uma abordagem mais complexa e abrangente.

1.2 As concepções de retornado e suas implicações

Para que se possa iniciar a discussão em torno das concepções de retornado e suas

conseqüências territoriais, é necessário que se faça uma síntese do que encontramos acerca

do assunto. Conforme veremos mais adiante, não é um tema cuja repercussão tenha

promovido uma grande produção acadêmica (algo que não deveria acontecer tendo em vista

que algumas migrações presumem o retorno, ao menos do ponto de vista dos migrantes).

Mas, mesmo assim, discutiremos, buscando uma postura crítica, levar em consideração

sempre as contribuições dessas produções.

Partindo desta posição, apresentaremos também o que nos incomodou no confronto teórico

entre a revisão bibliográfica e a análise feita nos trabalhos de campo. Neste sentido, vale

salientar a importância que demos ao trabalho de campo como um recurso metodológico.

Com base nisto é que procuraremos mostrar, a partir de nossa experiência e na de autores

nos quais nos baseamos que no estudo das migrações, especialmente às de retorno, é

possível fazê-las levando-se em consideração um modelo mais recorrente e outro, em nosso

entender, mais sofisticado.

1.2.1 Os retornados numa perspectiva mais recorrente

Considerando a vasta gama de estudos sociais publicados sobre os mais variados

temas, percebemos que em número ainda reduzido (dada a importância do tema) são

publicados trabalhos sobre migrações. Em menor número ainda são aqueles que tratam

sobre a questão do retorno de migrantes. No âmbito da Geografia, creio que este tema é

ainda pouco conhecido, no entanto, seus reflexos mexem com aspectos muito relevantes

para os estudos desta disciplina, e chega a ser curioso não haver trabalhos geográficos neste

âmbito.

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As alterações espaciais provocadas por retornados em seus territórios de origem,

assim como a possível volta ao processo migratório realimentando a rede migratória, são

apenas algumas das conseqüências visíveis que se oferecem como tema de estudo

geográfico. No entanto, parece que o estudo da população de uma maneira geral, foi

deixado em segundo plano pelos geógrafos, em comparação ao amplo desenvolvimento dos

estudos agrários e urbanos, é o que pode ser percebido se observarmos a pouca contribuição

da Geografia de População para os estudos populacionais. Todavia, outros cientistas sociais

abraçaram este campo de estudo e desenvolveram importantes teorias concernentes a este

conhecimento, em especial às migrações. O pensamento compartimentado positivista

parece que relegou especialmente à Demografia tal campo de pesquisa, dado, inclusive, o

significado literal do nome desta disciplina. Contudo parece-nos que um objeto de estudo

como a população, mesmo levando-se em consideração o método e toda a vasta experiência

da Demografia, não pode ter como fonte de produção teórica suficiente unicamente esta

disciplina. Por isso nos parece que a Geografia, bem como outras disciplinas das ciências

humanas, deixa em segundo plano os estudos populacionais como se a Demografia fosse

capaz de abarcar sozinha todos os seus ângulos.

A compartimentação do conhecimento em áreas específicas – a cada dia mais

específicas – tem levado não só os estudos populacionais, mais diversas outras áreas de

conhecimento a um empobrecimento, o que reforça a necessidade da ascensão de uma nova

episteme científica, de modo que os indivíduos constituintes dos fenômenos populacionais

sejam percebidos como sujeitos históricos e geograficamente contextualizados a partir de

múltiplos ângulos.

Quem teoriza sobre um determinado assunto, o faz com as ferramentas conceituais

disponíveis. Logo, a metodologia surgida, terá por objetivo suprir a necessidade daquele

que teoriza. Partindo desse pressuposto, entendemos que a Demografia, ao teorizar sobre a

migração de retorno, poucas vezes leva em consideração aspectos que ultrapassam as

quantidades mensuráveis pelas estatísticas e as conseqüentes deduções lógicas destas

medidas. Há, no entanto, elementos qualitativos que, por enquanto, nenhum questionário do

censo é capaz de detectar. O censo é uma “fotografia” dos fenômenos populacionais, não é

possível, por esse meio, perceber a dinâmica incessante dos movimentos, por isso nos

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parece incompleta a análise que leva em consideração apenas esta metodologia para

entender os fenômenos migratórios, especialmente o de retorno.

Mesmo na análise de um autor que busca uma nova proposta metodológica da

migração de retorno, como Ribeiro (1997), aparentemente há avanços em direção a uma

abordagem mais complexa deste fenômeno. No entanto, nota-se que na sua definição de

retornado que seu enfoque é ainda bastante objetivo: “No presente estudo, são definidos

como migrantes de retorno, os naturais da UF que, tendo dela emigrado, a ela retornam

durante a década de estudo” (p.02). Também faz uma distinção entre as possibilidades de

uma análise “sociológica” e uma “economicista”, mas ressalta que somente a partir dos

dados censitários seria possível avaliar a importância do impacto dos retornados.

O fenômeno do retorno nordestino pode ser analisado, por um lado, numa ótica sociológica, isto é, representaria um retorno aos lugares de origem, onde a rede de relações e conhecimentos facilitaria sobreviver durante os anos de crise. Do ponto de vista econômico, e numa interpretação complementar mais otimista, o retorno pode estar ligado ao fato de que, durante a década de oitenta, o Nordeste teria manifestado sinais positivos, por exemplo, uma administração pública mais eficaz, a abertura de novas fontes de trabalho etc., fatos estes que teriam alentado o retorno (...) Assim, uma visão global, da importância e impacto da migração de retorno na Região, só é possível através dos dados censitários (p.1 e 2).

Parece-nos que o trabalho mencionado buscou apresentar uma metodologia mais

clara com relação a definição dos migrantes retornados ao analisar o caso nordestino (até

porque faz críticas à metodologia anterior, nos servindo de referencial ao longo da

pesquisa). Ainda assim, o autor insiste na importância do censo como única possibilidade

de se observar o impacto da migração a análise do censo. É certo que para se ter uma visão

global da importância das migrações, os dados censitários são a ferramenta por excelência,

mas o impacto das migrações podem ser visualizado por meio de outras metodologias.

Além disso, não resolveu um problema: a necessidade de se buscar respostas qualitativas

para as questões relacionadas aos impactos dos retornados. Não nos parece que haja

resposta quando se busca com ferramentas quantitativas. Uma possível solução parece ser

apresentada pelos geógrafos. Tendo em vista sua formação cruzada pelo debate entre os

conhecimentos nomotéticos e idiográficos, este profissional acaba sendo constituído de

aspectos inerentes a um conhecimento que permite ir do nível mais amplo ao nível mais

específico, ao passo que também, por força de uma capacitação técnico-instrumental, acaba

sendo capaz de dialogar com as ciências exatas e da natureza.

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Valverde, geógrafo-pesquisador espanhol, deu um importante passo neste sentido ao

analisar o caso dos retornados de seu país. Observando seu trabalho (2004), concluímos

que ele buscou realizar uma ponte entre os métodos e instrumentos da Demografia e os

métodos geográficos. Seu trabalho intentou

(...) responder a diversas questões sobre as migrações internas de retorno na Espanha durante a primeira metade da década de 1990, a partir de questões como a estrutura demográfica, o impacto territorial, a intensidade do fenômeno e a distribuição regional, segundo áreas de origem e destino do fenômeno (Valverde, 2004:01-02, tradução livre).4

Mas apesar de um reconhecido esforço, pareceu-nos que não conseguiu fugir do

mesmo “quantitativismo” comum à muitos trabalhos publicados no âmbito da Demografia.

Quantitativismo este que é, sem dúvida, parte das atribuições desta área, mas que, sendo

vista como única forma de análise, empobrece muito as possibilidades de conhecimento do

fenômeno.

Valverde possivelmente não obteve exatamente os objetivos que almejava, talvez,

por padecer de problemas muito parecidos com os que passamos em nossas pesquisas:

Na numerosa e desigual contribuição bibliográfica que o tema das migrações de retorno tem gerado, cujo comentário supera as dimensões deste trabalho, não existe bibliografia que contribua para uma análise comparativa da dimensão regional e demográfica do fenômeno. Atualmente, não podemos oferecer respostas à perguntas do tipo: os andaluzes retornam mais que os galegos? Qual é a comunidade autônoma que tem uma intensidade de retorno mais elevada? Qual faixa etária é a que mais retorna? (Idem, 2004:01-02, tradução livre. Grifos nossos).

É possível que um dos motivos que o faz notar a falta de bibliografia comparativa

seja o fato de o retorno, como movimento ocorrido em grandes proporções no mundo, ser

um fenômeno recente. A Espanha, até bem pouco tempo, era um país de emigração. Sua

inserção na União Européia deu-lhe possibilidades econômicas até antes não cogitadas.

Com o Nordeste brasileiro aconteceu algo parecido. As novas possibilidades econômicas

4 “En la numerosa y desigual aportación bibliográfica que ha generado el tema de las migraciones de retorno, cuyo comentario excede las dimensiones de este trabalho, não existe bibliografia que aporte un análisis comparativo de la dimensión regional y demográfica del fenómeno. En la actualidad, no podemos ofrecer respuestas a preguntas del tipo: ¿Retornam más andaluces que los gallegos?, ¿Cuál es la Comunidad Autónoma que tiene una intensidad de retorno más elevada?, ¿Cuál coletivo de edades es el que más retorna? Este artículo, que presenta de forma muy resumida algunas de las conclusiones de los proyetos mencionados en la nota 1, intenta responder a diversas cuestiones sobre las migraciones internas de retorno na España durante la primera mitad de la década de los noventa a partir de cuestiones como la estructura demográfica, el impacto territorial, la intensidad del fenómeno y la distribuicón regional según áreas de origen y destino del fenómeno”.

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surgidas na década de 1990, também estimularam o retorno do ponto de vista econômico,

conforme comentaremos no capítulo 2. Neste sentido, podemos notar semelhanças com o

caso espanhol que Valverde identifica. A novidade dos fatos trazidos a partir do final da

década de 1980 e início da de 1990, em escala global, tem proporcionado razões e meios

que estimulam o retorno a áreas historicamente de emigração. É possível que seja por isso

que há tão poucas bibliografias sobre o tema.

Interessante observar que apesar de buscar uma bibliografia comparativa da

“dimensão regional e demográfica”, as questões por ele levantadas são relacionadas mais às

problematizações demográficas que geográficas propriamente ditas. Ou seja, suas questões

não estão diretamente interessadas em responder problemas ocasionados pela relação

retornado – lugar de origem. Contudo, esta observação não reduz a importância das

questões e das conclusões do autor.

Se fossem feitas no Brasil, as perguntas elencadas encontrariam resposta com

menor esforço graças ao amplo desenvolvimento da estatística e das mensurações

populacionais empreendidas pelo IBGE. Apesar disto, ainda carecemos de dados mais

aprofundados que nos levem a entender não somente a faixa etária, o sexo, a classe social,

mas todo o processo indutor da migração e do retorno, ou seja, carecemos de informações

que extrapolem os aspectos citados.

Ao observar este cenário, buscando suas razões, constatamos que o motivo pelo

qual ocorre essa falta de dados reside na ausência de análise de alguns vetores. Isto se

evidencia quando observamos o questionário do censo. Não há perguntas específicas sobre

o retorno. O que há são perguntas que

(...) conjugada(s) com a de lugar de nascimento permite indicação sobre a migração de retorno, apesar da pergunta não abordar diretamente esta situação. Se o indivíduo nasceu no local pesquisado e a residência anterior declarada for diferente daquela em que foi recenseado, é possível que este seja um migrante de retorno (Albuquerque, 2001: 26, grifos nossos).

A afirmação dada pelo pesquisador Fernando Albuquerque é a base de onde o IBGE

extrai os alicerces de sua metodologia atual de questionário e análise do censo. O problema

desta metodologia não está nas questões que são apresentadas, mas nas que não são. A

partir das questões 4.15 a 4.27 do questionário do censo 2000 do IBGE é possível obter a

“indicação” sobre o retorno: 4.18 – “Nasceu nesta unidade da federação?”; 4.23 – “Qual é a

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unidade da federação ou país estrangeiro de residência anterior?”. Tais perguntas trazem

comprovação de questões que no senso comum já foram respondidas, mas dificilmente

identificam situações novas que estejam ocorrendo no seio da população. Todavia, deve ser

valorizado o fato de estas questões aparecerem no questionário (algo que nos últimos

censos não era considerado, só aparecendo como questão no censo de 2000). Parece que

somente agora o retorno começou a incomodar os gestores da população, por isso passou a

ter importância sua mensuração. Mas que tipo de incômodo é este? Será que o retorno torna

de alguma forma inviável determinadas políticas populacionais, ou será que as beneficia?

Tais questões só podem ser respondidas se considerarmos a perspectiva migrante e seus

lugares de origem, que no retorno se transformam em lugares de retorno, tendo em vista

que já não são mais os mesmos da origem.

Na verdade o retorno sempre existiu, pois sempre foi elemento de desejo de grande

parte dos migrantes, logo, é certo que, nos diversos fluxos migratórios da humanidade, uma

parcela destes indivíduos ao longo da história conseguiu retornar. Não fosse isso, trabalhos

como os de Schutz (1974 [1945]) que tratam do “forasteiro” não teriam sentido de existir.

Convém, então, que façamos um breve comentário acerca do “forasteiro” de Schutz. O

autor diz que o termo “(...) indicará uma pessoa adulta, pertencente a nossa época e

civilização, que busca ser definitivamente aceita, ou ao menos tolerada, pelo grupo ao qual

se aproxima” (Schutz, 1974a: 95, tradução livre)5. O retornado, algumas vezes, é visto

como este “forasteiro”, alguém que não mais pertence àquele lugar. Desta forma, a análise

do forasteiro se aproxima do retornado, afinal, ambos são vistos em alguma medida como

desterritorializados. Procuraremos mais à frente discutir um pouco mais esta questão.

No Brasil, a tarefa de fornecer dados sobre migrantes coube ao IBGE, que, por ser

um órgão estatal originalmente fundamentado numa lógica positivista, não viu a

necessidade de incluir nos seus questionários questões que considerassem aspectos da

subjetividade dos indivíduos recenseados, afinal nenhum dado poderia ser ininteligível aos

olhos dos demógrafos. Esta pode ser uma explicação plausível à ausência de determinadas

questões no censo (diga-se de passagem que no próprio nome do Instituto considera-se

5 “Para nuestros fines, el término “forastero” indicará una persona adulta, perteneciente a nuestra época y civilización, que trata de ser definitivamente aceptada, ou ao menos tolerada, por el grupo al que se aproxima”.

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outra área de conhecimento que é menos desenvolvida nele, a Geografia; o interesse em

produzir um conhecimento direcionado aos interesses do Estado fica, portanto, evidente).

A lógica positivista faz parte de um paradigma que proporcionou a alcunha por

Boaventura Santos de “razão indolente” (Santos, 2004b). Tal razão, recebeu esta alcunha

devido, dentre outras coisas, à sua indiferença frente a outras formas de produção de

conhecimento. Por este motivo, a lógica positivista se adequou tão facilmente ao Estado,

refletida no modo como o IBGE percebeu o movimento migratório, privilegiando sempre

uma abordagem quantitativa em detrimento das abordagens que visavam mais aspectos

qualitativos. Repare que a tabela a seguir nos faz concluir que o entendimento do fenômeno

migratório teria ficado muito mais amplo se outras abordagens tivessem sido consideradas.

Teorias migratórias e as disciplinas

Disciplinas Questão(ões) Pesquisada(s)

Níveis/Unidades de Análise

Teoria Dominante Hipótese Experimentada

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Antropologia Como os efeitos culturais das migrações afetam e transformam a identidade étnica

Muito micro / indivíduos, residências, grupos

Relacional ou estruturalista e transnacional

Redes sociais ajudam a manter a diferença cultural.

Demografia Como a migração afeta as mudanças populacionais

Mais macro / Populações

Racionalista (muito influenciado pela economia)

A imigração aumenta a taxa de natalidade.

Economia O que explica o estímulo às migrações e Quais são seus efeitos?

Mais micro/indivíduos Racionalista: custo-benefício e atração-repulsão

A inserção depende do capital humano dos imigrantes.

História Como entendemos a experiência do imigrante

Mais micro/indivíduos e grupos

Teorias de fuga e método hipotético

Não aplicável

Direito Como as leis influenciam as migrações

Macro e micro/ sistema legal e político

Institucionalista e racionalista (influenciado por todas as ciências sociais)

A criação de leis e direitos incentiva a fixação de migrantes.

Ciência Política Por que os estados têm dificuldade de controlar as migrações?

Mais macro/política e sistemas internacionais

Institucionalista e racionalista

Os estados são freqüentemente reféns de interesses a favor de imigrantes.

Sociologia Como se explica a inserção do imigrante?

Mais macro/grupos étnicos e classe social

Estruturalista e/ou funcionalista

A inserção do imigrante é dependente do capital social.

(Holifield, 2000: 03, tradução livre – original no anexo 1)

Caberia neste trabalho perfeitamente um complemento à tabela de Holifield, um

anexo incluindo o lugar da Geografia nesse debate.

Geografia Como o movimento e a territorialização dos migrantes transformam o espaço?

Micro, médio e macro/dependente da escala de análise

Racionalista ou estruturalista, influenciados respectivamente pelas ciências exatas e sociais.

Os movimentos populacionais podem alterar o espaço fortemente.

Com base neste breve esquema de entendimento da Geografia acerca da questão

migratória, foi que elaboramos o trabalho que agora se desenrola. Esperamos, então, fazer

com que ele não seja mais um refém da fragmentação acadêmica das ciências, reforçando

as pesquisas isoladas – no plano teórico-metodológico – sobre a questão migratória, mas

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que, ao contrário, dentro de sua especificidade, seja capaz de dialogar de maneira

construtiva com outros ramos do conhecimento trazendo uma contribuição a esta questão.

O estudo sobre migrantes de retorno deve utilizar métodos comuns à Demografia ou

de qualquer outra área, mas deve ultrapassar os limites de uma única disciplina, mesclando,

se possível, métodos de outras, em busca de um conhecimento mais complexo sobre estes

agentes sociais. Os retornados são mais que números e devem ser vistos para além de

vetores estatísticos com vistas à elaboração de políticas populacionais. Devido à

dificuldade em utilizar outros métodos para o estudo de migrantes, especialmente

retornados, temos uma enorme defasagem de estudos sobre esta temática e,

conseqüentemente, pouco se sabe sobre as pessoas que vivem esta condição. Somente

agora é que se descobrem estes agentes, tanto pela academia quanto pela mídia6.

Reservamos a próxima parte para discutirmos o que seria uma proposta mais

avançada de entendimento da questão do migrante, em especial do retornado, na busca de

uma superação da postura quantitativa dos estudos sobre os migrantes e,

conseqüentemente, sobre os retornados.

1.2.2 Os retornados em uma perspectiva mais sofisticada

A busca de uma perspectiva um pouco mais avançada para o entendimento da

questão migratória (em especial o caso do retorno e seus agentes, os retornados) passa, sem

dúvida, pela consideração da experiência temporal destes indivíduos. Que espaço-tempo é

esse, o do retornado? Será que podemos considerar como retornados de uma mesma forma

todos os que migram e retornam em meses e os que migram e retornam após anos? Será

que o lugar de origem pode ser considerado ainda lugar de origem quando o migrante

retorna? Dificilmente teremos capacidade, neste momento, para responder a estas questões,

contudo, levá-las em consideração na investigação do retornado e do retorno, parece-nos

fundamental.

6 Na semana de 15 a 22 de maio de 2005, com um adicional em 15 de junho, o jornal “O Globo”, publicou uma série de reportagens intitulada “vida severina” onde relatava a trajetória dos migrantes que saem do Nordeste (especialmente Paraíba e Ceará) em direção ao Rio de Janeiro. Embora trazendo importantes dados e baseado em uma pesquisa de campo confiável, a reportagem mantinha uma postura por vezes tradicional de constatação das afirmações comumente divulgadas pelo senso comum.

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Muitas vezes no cotidiano dos migrantes, tanto os recentes quanto os antigos, é

possível perceber as diversas situações onde se manifestam nostalgicamente as lembranças

do lugar de origem, quando não o desejo do próprio retorno. Na busca de uma forma de se

perceber as migrações de retorno mais qualitativamente, encontramos autores que há muito

vêm buscando analisar tal questão sem se fixar tão avidamente nos aspectos quantitativos

que ela traz em si mesma. Os intelectuais que vivenciam a condição de migrante, por

diversas vezes, a partir da perspectiva em que se encontram, manifestam em seus escritos

algum sentimento sobre a possibilidade do retorno. Abdelmalek Sayad e Stuart Hall são

exemplos de intelectuais que vivem esta condição e expressam seus sentimentos em relação

a isso. Aliás, não desvinculam sua produção do contexto de suas vidas. Além deles, autores

clássicos que escreveram sobre o migrante, como Georg Simmel e Alfred Schutz,

espelhavam em suas produções intelectuais o tema com o qual se confrontavam

diariamente: a condição de estrangeiro. Ambos, a partir de suas histórias pessoais,

instigaram a investigar a situação deste agente analogamente à situação do homem moderno

(Mariz, 1988).

Estes dois últimos sociólogos, embora façam um apanhado do conceito de

estrangeiro e não de retornado, dão importantes pistas a nossa investigação. Aliás, Schutz

(1974) mergulha um pouco mais nos aspectos relacionados ao retorno. Os dois autores vêm

ao encontro de nossos interesses porque fogem das análises puramente positivistas que

criticamos anteriormente. Ambos lançaram mão largamente de métodos que em muito se

diferenciavam do positivismo. Schutz, por ter produzido teoricamente após o método

fenomenológico de Husserl ter sido amplamente divulgado, é, dentre os dois, o que mais

dele se apropria. Logo, uma abordagem que parta deste método parece estar mais de acordo

com aquilo que visualizamos como necessário a este trabalho.

A condição de migrante, por diversas vezes, remete o indivíduo à posição de

“estrangeiro”. Em muitas ocasiões este estrangeiro é levado, não somente por fatores

econômicos, mas também e, em muitas ocasiões como elemento principal, por fatores

identitários e até mesmo psicológicos, a imaginar o retorno como solução mais viável para

se resguardar do preconceito, do desemprego e de condições muitas vezes humilhantes a

sua condição de humano. O retorno, desse modo, é, muitas vezes, uma necessidade

pulsante, que paulatinamente passa a ser buscada por muitos. Não podemos, no entanto,

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generalizar. Muitos migrantes não retornam, ou quando o fazem, retornam para passear,

relembrar antigos lugares e, desse modo, “alimentar o espírito”. Há casos inclusive de

alguns que chegam a ter ojeriza do lugar de origem, ou ainda se reterritorializam criando no

lugar de imigração um espaço de recordação do antigo território, aproveitando assim aquilo

que lhe oferece o novo território, sem deixar de lado seu “apego” à terra natal. Caso

exemplar pode ser o dos gaúchos no cerrado baiano (Haesbaert, 1997).

Podemos afirmar, então, que o anseio pelo retorno é um fenômeno comum, mas não

geral a todos os migrantes, e isto é um pressuposto neste trabalho. Stuart Hall afirma que

“as pessoas se encontram onde se encontram para escapar de outro lugar” (1998: 24). Fugir

de algo que gera aflições no lugar de origem parece ser a marca comum dos que migram,

aflições estas que hoje parecem ter outra conotação além daquela que nos leva a vê-las

como sinônimo literais de dores e amarguras, mas aflições ligadas à ausência de bens,

posses e outras necessidades criadas pela modernidade.

Sayad, um dos principais intelectuais da questão migratória, expõe sua percepção do

estrangeiro numa condição de desterritorialização no que se refere a sua identidade cultural

e simbólica. Apresenta como fator que denigre ainda mais a situação do migrante o fato de

ver-se e ser visto como um estrangeiro, ou seja, aquele que não conhece e nem deve

conhecer o lugar para onde migrou.

Na medida em que a presença do imigrante é uma presença estrangeira ou que é percebida como tal, as “ilusões” que a ela estão associadas e que até mesmo a constituem podem ser enunciadas como segue: são, para começar, a ilusão de uma presença necessariamente provisória (e, correlativamente, se nos colocamos do ponto de vista da emigração, ilusão de uma ausência igualmente provisória), mesmo quando essa presença (ou essa ausência), provisória do direito, verifica-se, nos fatos e sempre a posteriori – e apenas a posteriori (não podemos deixar de insistir no caráter retrospectivo dessa “descoberta” e na necessidade prática do retardamento dessa descoberta, ou seja, da dissipação da ilusão) – como uma presença durável, quando não definitiva (fato que não se pode confessar nem mesmo confessar a si mesmo, pois na maior parte dos casos tal coisa é impossível nacionalmente, quando não ontologicamente falando); ilusão, sendo que esta é governada por aquela, de que essa presença é totalmente justificável pela razão ou pelo álibi que se encontra em seu princípio e que é o trabalho ao qual ela está ou deveria estar, logicamente, totalmente subordinada; e, por fim, ilusão da neutralidade política, não só neutralidade que se exige do imigrante mas tal como ela se impõe ao próprio fenômeno da imigração (e da emigração), cuja natureza intrinsecamente política é mascarada, quando não é negada, em proveito de sua única função econômica”(Sayad, 2000: 19, grifos do autor).

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Há que se ter em mente, sempre que se trata da questão do migrante, que o retorno é

sempre um possível desejo ao que não se reterritorializa no plano simbólico, ou no plano

das relações sociais. Hall (1998) nos diz que são duas as questões as quais os migrantes

sempre depararão: por que o migrante está aqui? E quando é que retorna? No que responde

a esta última questão da seguinte forma: “Nenhum migrante jamais sabe a resposta para a

segunda pergunta até que diretamente perguntado. Só então o indivíduo se dará conta de

que, na realidade, no fundo, não irá voltar nunca. A migração é uma viagem de ida (...)”

(p.24).

Para muitos, que nunca se identificaram com o lugar para o qual migraram, o

retorno é mais que uma opção, é quase uma necessidade não suprida:

Um pesquisador-investigador recebeu uma resposta muito procedente de um dos seus entrevistados, antigo trabalhador imigrante, a quem, em seu local de trabalho, ele havia perguntado: “Você quer retornar para a sua terra, para seu país?” A resposta foi: “É o mesmo que perguntar a um cego se ele quer a luz!”(Sayad, 2001: 19).

Podemos perceber então que se olharmos o migrante sob uma perspectiva mais

benevolente possivelmente o veremos como um indivíduo que passou muitos anos distante

do seu território de origem e que almeja voltar o quanto antes. Vale ressaltar que diversas

políticas para o migrante são elaboradas sob esta visão7. No senso comum, e mesmo para

muitos migrantes, o retorno é algo mais que necessário, todavia, muitos à beira do retorno é

que percebem o grau de territorialização que construíram no lugar de migração. O período

de estada no lugar da migração, muitas vezes, foi suficientemente longo para haver a

constituição de laços sócio-territoriais. O que torna necessária uma diferenciação dos

retornados que passam muito tempo no lugar de migração e outros que logo retornam.

O fato de um indivíduo sair de um lugar rumo a outro, passando por uma decisão

pessoal mesmo que esta tenha sido induzida, condicionada ou, até mesmo obrigada, não o

torna necessariamente um indivíduo desterritorializado, pois, de acordo com Haesbaert

(2005), a migração não pode ser vista sempre como sinônimo de desterritorialização porque

este processo ocorre em diferentes planos e em graus variados, conforme discutiremos mais

adiante. Esta afirmação, que foi feita no âmbitos dos migrantes (na ida), pode ser aplicada

7 O jornal “O Globo”, de 15 de junho de 2005, p.26, traz uma nota com a seguinte chamada: “aprovado projeto que ajuda migrante a voltar”, onde mostra que a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto de retorno que visa apenas devolver migrantes na intenção de reduzir o aumento das favelas, visto que os migrantes nordestinos compõem grande parte da população destas comunidades.

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sem dano algum ao caso dos retornados. Não há necessariamente um vínculo entre retorno

e desterritorialização, apesar dela ocorrer em diversos casos. Contudo, o que normalmente

se percebe, especialmente no discurso do senso comum, é que o retorno é sempre uma

espécie de reterritorialização. O que induz nosso olhar à uma certa benevolência quando se

verifica um processo de retorno e quando se observa os retornados.

Olhar o retorno como algo necessariamente benévolo ou necessariamente ruim, não

revelará a complexidade deste fenômeno. Em nosso entender, para que possamos vê-lo em

uma perspectiva mais avançada, devemos considerar as diversas reflexões, assim como a

fala dos sujeitos do processo.

Muito do que se produziu acerca da migração de retorno (e não só sobre este tema) é

imaginado em dois níveis: um que pensa o objeto, o retornado, e outro que pensa o

processo: o retorno. No caso deste trabalho, esperamos trazer contribuições que, por ter

sido gestado no âmbito da Geografia – uma disciplina que tem como característica

marcante a tentativa de transitar livremente entre processos e objetos – ultrapassem a

dicotomia sujeito/objeto. Para isso nos servimos de diversos autores que trouxeram

contribuições importantíssimas a partir de seus lugares de enunciação – lugares neste caso

entendidos como posições enunciativas e geográficas dos agentes (Mignolo, 2003).

Diante da intenção de reduzir esta dicotomia, vale mencionar que o que desestimula,

muitas vezes, o retorno são as conquistas pessoais e materiais no lugar de migração, tais

como família e bens, casos que nos remetem a nossa experiência pessoal. Por outro lado,

observamos casos (estes em maior número) que mostram estas conquistas como elementos

estimuladores da migração. Ou seja, o desejo de mantê-las fazia com que migrantes

retornassem. Neste sentido, convém que vejamos com mais profundidade esta perspectiva.

Sayad, conforme exposto anteriormente, é um pensador que vive a condição de

migrante, sendo assim, pode falar como poucos a partir de uma posição enunciativa que

permite ver-se como objeto e pensar a questão a partir de sua condição. Este autor analisa o

objeto e a questão simultaneamente, assim como os outros autores anteriormente citados

(metodologia essa que esperamos dar espaço neste trabalho), tendo em vista que uma das

nossas críticas ao modelo mais recorrente de análise da questão do retorno é exatamente

esta: a ausência da perspectiva do agente do processo.

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Sayad vê que a nostalgia, ou o popular mal dos migrantes, conhecido como banzo,

como parte dos motivos que levam os migrantes a retornar. Esta nostalgia não é

solucionada com a ação do retorno simplesmente porque os momentos e os lugares não

retornam.

Em verdade, a nostalgia não é o mal do retorno, pois, uma vez realizado, descobre-se que ele não é a solução: não existe verdadeiramente retorno (ao idêntico). Se de um lado, pode-se voltar ao ponto de partida, o espaço se presta bem a esse ir e vir, de outro lado, não se pode voltar ao tempo de partida, tornar-se novamente aquele que se era nesse momento, nem reencontrar a mesma situação, os lugares e os homens que se deixou, qual se deixou (Sayad, idem: 12, grifos nossos).

Levando-se em conta esta perspectiva, Schutz (1974) já assinalava que o retorno

nunca é, nem nunca será nos moldes que o retornado espera, simplesmente pelo fato de que

o espaço, dotado de significação, está sempre em movimento. Cabe aqui uma observação

quanto a perspectiva espacial de Schutz e Sayad: este último apresenta implicitamente na

última citação, de forma interessante, uma diferença entre espaço e lugar. Segundo ele, o

espaço serve como um substrato físico para o retorno, por isso é possível retornar, já os

lugares estão dotados de significado logo se transformam. O lugar, de igual modo para

Schutz, está e em constante movimento, por isso não se mantém inalterado. Este último

autor também assinala a importância do lugar para aquele que retorna, prevendo inclusive

que o que volta ao lugar regressa

(...) a um ambiente do qual sempre teve e acredita continuar tendo um conhecimento íntimo, e que basta pressupor para orientar-se dentro dele. O forasteiro que se aproxima de um grupo deve prever, de modo mais ou menos vago, o que encontrará; ao que volta ao lugar, basta apenas recorrer às suas recordações. Isso ele acredita, e por assim crer, sofrerá a típica comoção que descreve Homero (Schutz, 1974b: 109, tradução livre).8

Hoje, com a revolução das comunicações e dos transportes, bem sabemos que não é

possível generalizar as situações de retorno como no momento em que Schutz escreveu este

texto, mas este fato não reduz a importância de suas palavras tendo em vista que o descrito

acima ainda ocorre em larga escala. Outro interesse presente aqui é não somente avaliar o

8 “El que vulve al hogar, en cambio, prevé su regreso a un ambiente del cual siempre tuvo y cree seguir teniendo un conocimiento íntimo, y que le basta presuponer para orientarse dentro de él. El forastero que se aproxima al grupo debe antecipar, de manera más o menos vacía, lo que encontrará; al que vuelve ao hogar le basta con recurrir a sus recuerdos. Eso cree, y por creerlo sufrirá la típica conmoción que describe Homero”. O autor faz, no início do texto, uma citação de “A Odisséia” de Homero, onde mostra que Ulisses, após anos de agruras tentando retornar, quando o faz se decepciona profundamente, pois seu lugar estava totalmente diferente.

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grau de satisfação ou decepção do retornado em seu território de origem, mas sim

identificar que retornado é este, diante da multiplicidade de situações e possibilidades de

identidades territoriais possíveis atualmente. Portanto, o personagem social que aqui está

sendo considerado é o migrante retornado. Ele é o agente privilegiado nesta análise e as

experiências territoriais geradas pelo processo de retorno serão valorizadas

metodologicamente neste estudo.

O retornado cearense, assim como outros retornados nordestinos, poderia ser visto

inicialmente em dois grandes grupos mais ou menos distintos: um primeiro grupo, que

migrou para o Sudeste brasileiro a partir das políticas desenvolvimentistas implementadas

com mais ênfase no período JK e, seguida sob outro viés ideológico, pelos militares, ou

seja, pelas ações institucionais (estatais e privadas). Tais migrantes se enquadram bem no

estereótipo dos retirantes que estamos acostumados a ver nas imagens sobre os sertanejos

da caatinga. Muitos foram para as metrópoles do Sudeste em “paus-de-arara” sob

condições muito degradantes, analfabetos e destinados a trabalhar na construção civil ou no

ramo dos serviços, que naquela ocasião se expandia, em funções mais simples. O outro

grupo de retornados pode ser caracterizado da seguinte forma: jovens ou indivíduos

maduros, mas ainda em idade economicamente ativa, ou seja que migraram para o Sudeste

a partir do fim da década de 1970 em diante, passando um ou alguns períodos nas

metrópoles, engrossando a rede migratória estabelecida anteriormente. O fato, porém, de

retornarem ao território de origem não significa que se fixarão, alguns ainda farão o

movimento de ida e volta diversas vezes.

Reafirmando o que dissemos, para que tenhamos um entendimento mais

aprofundado destes agentes, faz-se necessário que sejam levadas em conta algumas

especificidades que nos darão pistas de características que os números não captam. Para

isso sua identidade deverá ser levada em consideração prioritariamente. É conveniente

então que nos debrucemos no que entendemos por migrante retornado.

Um dos primeiros trabalhos centrados na figura do “retornado” produzido no Brasil

foi o de José Vicente Tavares dos Santos (1983), tratando dos migrantes gaúchos que

voltavam às suas cidades após uma experiência frustrada de migração para o Norte do

Brasil. Experiência proporcionada pela migração dirigida pelo governo a estas áreas, mas

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que, frustrada devido o abandono dos migrantes naquela região, estimulou um retorno

traumático, pois muitos dos que para o Norte foram, se destituíram de seus bens.

O termo retornado, portanto, visa a definir aquele que regressa ao seu território de

origem, buscando resgatar ou reconstruir o que deixou para trás, construir algo novo

utilizando os recursos alcançados no seu período migratório, ou ainda iniciar um “meio de

vida” que ainda não experimentou. Esta definição coaduna com aquilo que Pedone (2002:

224) vê como “metodologias adequadas para construir uma perspectiva que permita

analisar a formação, articulação e dinâmica dos projetos migratórios (...)”. Que, embora,

estejam baseadas em ferramentas da Antropologia Social e da “Micro História”,

aproximam-se muito do que entendemos por uma maneira mais sofisticada de análise do

retornado.

Os cearenses, assim como outros nordestinos, estabeleceram e estabelecem, entre o

território de origem e o território de imigração, um elo permeado por símbolos e

significados que moldam a ponte entre estes dois espaços, constituindo assim a rede

migratória.

As redes e as cadeias mantêm o vínculo entre o território de origem e o de destino.

É o que reforça os vínculos simbólicos entre o indivíduo distante e seu território e o que

reaviva a chama da saudade e da esperança do retorno. Logo daremos especial ênfase a

estes elementos, mas diante de nossa abordagem metodológica parece-nos mais adequado

dar especial atenção às cadeias migratórias.

Na tentativa de se estabelecerem relações entre uma abordagem teórica assentada

em uma perspectiva mais qualitativa e outra com um viés calcado em uma visão mais

quantitativa, percebemos que seria necessário não menosprezar os aspectos positivos que

estas abordagens trouxeram ao entendimento da questão migratória. Desse modo, vimos

que é impossível tratar dos movimentos migratórios sem definir o que os mantêm existindo.

Este elemento é constituído, sobretudo, pelas as redes migratórias.

Em trabalho anterior (Souza, 2004), percebemos a importância das redes na

constituição do movimento migratório do Ceará para o Centro-Sul, especialmente para o

Rio de Janeiro. Observe a tabela a seguir9:

9 Agradecemos a importantíssima ajuda da profª. Neide Patarra na obtenção e tratamento dos dados do IBGE/Censo 2000.

4

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Tabela 1: Retornados segundo municípios metropolitanos, incluindo Brasília, por município de retorno

Fonte: Tabela elaborada pelo autor adaptado do Censo demográfico 2000 Migração – resultado da amostra, IBGE.

Constatamos que muitos municípios do noroeste do Ceará expressavam uma forte

tendência migratória para o Rio de Janeiro, de modo que, ao observarmos as migrações

provenientes deste estado, nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo, e também em

Brasília, percebemos que, destes três lugares, somente no Rio é que os migrantes

provenientes de cinco municípios especificados na tabela (todos no noroeste do estado),

extrapolavam os limites da “cidade-pólo” da região metropolitana.

Quando observamos os números de retornados provenientes do estado do Rio de

Janeiro, constatamos que de um total (que não está inserido na tabela) de 2290, 1307, ou

seja, cerca de 57% vieram de municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro. Os que

provêm do estado de São Paulo, nos municípios cearenses estudados, são, em números

absolutos, bem menos que no Rio, totalizando 682, sendo que deste número, 321 são

provenientes da cidade de São Paulo, ou seja, cerca de 47%. Provenientes do Distrito

Federal em números absolutos retornaram um total de 634, sendo que destes,

4

Mun icíp ios de im igração T o t al M unicíp ios de im igração T o t al Mun icípios de im igração T ot al

Nit eró i 19Rio de Janeiro 420

Nilópolis 8Nit eró i 43

Nova Iguaçu 33Rio de Janeiro 67São Gonçalo 20

São João do M erit i 12Duque de Caxias 8

Rio de Janeiro 279

Duque de Caxias 42Rio de Janeiro 30

Rio de Janeiro 305São Gonçalo 21

Distrito Federal

72

Brasília

Brasília

Brasília

Varjot a

Reriut aba

Ubajara

Municípios de origem dos retornados

Guaraciaba do Nort e

São Benedit o

São Paulo

São P aulo

54

109

47

São P aulo

São P aulo

102

Brasília

111

13 386

% de ret ornado s pela pop. dos

m unicíp ios

1,4

1,2

1

2,2

T ot al

513

468

285

Regiões metropolitanas - retornados segundo municípios de imigração

São P aulo 56 283 1,344

20São P aulo Brasília

Rio de Janeiro

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especificamente de Brasília, vieram 297, ou, em números relativos a quantidade equivalente

também a 47% do total. Isto indica que a emigração dos municípios de Guaraciaba do

Norte, Reriutaba, São Benedito, Ubajara e Varjota para o Rio de Janeiro é mais antiga

(acentuando o papel das redes migratórias), ou é onde os migrantes percebem melhores

oportunidades dentre as três localidades evidenciadas (o que reforçaria as teorias mais

liberais).

Tanto em uma ou outra possibilidade, o que chama à atenção é o fato de a fixação

ter extrapolado os limites do próprio município do Rio, o nó da região metropolitana, coisa

que não ocorreu em São Paulo e Brasília10.

Como explicar, porém, o direcionamento de pessoas de um determinado local, como

esses cinco municípios cearenses assinalados, especificamente para outro (Rio de Janeiro)?

Entendemos que a única resposta possível é a rede migratória que se estabeleceu entre estes

dois lugares11. Todavia, há mais um elemento marcante nesta investigação que merece

muita atenção, que é a cadeia migratória. E podemos defini-las, rede e cadeia migratórias,

da seguinte forma:

(...) cadeia migratória se refere a transferência de informação e apoios materiais que familiares, amigos ou conterrâneos oferecem aos potenciais migrantes para decidir, ou eventualmente, concretizar sua viagem. As cadeias facilitam o processo de saída e chegada, podem providenciar documentos ou emprego e conseguir moradia para o que chega. Também são nelas que se produzem um intercâmbio de informação sobre os aspectos econômicos, sociais e políticos da sociedade de chegada ... As cadeias formam parte de uma estrutura maior: as redes migratórias, as quais são mais extensas e estão relativamente seguras, desenvolvem uma dinâmica própria, que inclusive pode se desprender dos estímulos e desestímulos da sociedade de destino. As redes diferem em função segundo se tratem de redes internas ou internacionais (Pedone, 2002: 224, tradução livre).12

10Brasília merece uma atenção especial no que se refere aos retornados. Utilizamos como critério na investigação anterior (Souza, 2004) o retorno proveniente das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, no entanto, Brasília não possui uma região metropolitana, mas sim uma área metropolitana organizada por regiões administrativas, que compreendem as antigas cidades-satélites, mas não se organizam na forma de municipalidades. Deste modo, até mesmo nas entrevistas não foi possível identificar se os que de lá retornavam provinham de Brasília ou de suas cidades-satélites, haja vista que não sabíamos desta diferença entre esta cidade e as outras regiões metropolitanas na ocasião das entrevistas.

11 É importante ressaltar que em relação aos outros municípios com os quais tivemos contato (Canindé, Quixadá e Abaiara) não conseguimos obter estes dados devido à problemas logísticos, no entanto, pudemos verificar por meio da ida à campo que as redes migratórias se dirigem para a metrópole paulista, com exceção de Abaiara, onde o fluxo migratório se direciona para Limeira, no interior de São Paulo. Cabe a informação que Abaiara faz parte dos municípios do Cariri cearense, importante pólo de produção açucareira do estado. A imigração para Limeira, em grande parte, dirige-se aos canaviais na época da safra.12 “(...) cadena migratoria se refiere a la transferencia de información y apoyos materiales que familiares, amigos o paisanos ofrecen a los potenciales migrantes para decidir, o eventualmente, concetrar su viaje. Las

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O fato de existir uma rede migratória do Ceará para o Centro-Sul não parece ser

novidade, de igual modo as cadeias agem estabelecendo meios para que os recém-chegados

se estabeleçam. Isto também não parece ser novo. O que aparentemente se apresenta como

novidade nestes últimos anos é que as cadeias migratórias parecem não estar dando conta

do fluxo da rede, ou seja, há uma rede migratória que estimula a mobilidade de muitos

moradores dos municípios cearenses, mas a cadeia migratória que é o que dá suporte infra-

estrutural aos imigrantes nas metrópoles do Centro-Sul, parece não conseguir suportar a

demanda de imigrantes. Isto faz com que muitos que migram, não consigam o mínimo de

garantias para que permaneçam. Chamamos de garantias os elementos econômicos e

estruturais que fixam uma pessoa em um lugar: habitação e renda, oferecidos

predominantemente pelas cadeias migratórias. A ausência destes elementos parece

estimular a migração de retorno, como vem ocorrendo nos últimos anos no sentido Centro-

Sul – Ceará. Mas este possível rompimento da cadeia não acontece de modo generalizado,

parece ocorrer de modo não coordenado e com grupos específicos de migrantes. Também

não seria coerente resumir as motivações do retorno apenas aos aspectos funcionais do

território. Veremos, mais adiante, que mesmo a funcionalidade territorial, muitas vezes,

reveste-se de conteúdos simbólicos e até políticos.

Assinalamos na parte anterior que poderíamos, de maneira bastante genérica, dividir

os migrantes retornados em dois grupos: os mais jovens, em idade economicamente ativa, e

os mais maduros, aposentados ou prestes a se tornar. Ambos possuem maneiras diferentes

de experimentar seu território de origem, logo, possuem territorialidades diferenciadas.

Reservamos um trecho específico deste trabalho para discutir a territorialidade dos

retornados, mas cabe aqui comentarmos determinadas diferenças entre as faixas etárias dos

migrantes que estimulam a quebra da cadeia migratória. Para isso, assim como Pedone

(2000a), cremos ser necessário o uso de ferramentas teórico-metodológicas elaboradas pela

Antropologia Social e pela Micro-História, tais como a reconstrução da história individual

dos migrantes. O que nos permitirá descobrir as fases de um processo que, no atual

cadenas facilitan el proceso de salida y llegada, pueden financiar en parte el viaje, gestionar documentación o empleo y conseguir vivenda. También en ellas se produce un intercanmbio de información sobre los aspectos econômicos, sociales y políticos de la sociedad de llegada ... Las cadenas forman parte de una estructura mayor: las redes migratorias, las cuales son más extendidas y están afianzadas, desarrollan una dinâmica propia, que incluso puede desprenderse de los estímulos y desentímulos de la sociedad de destino. Las redes diferen en función según se traten de redes internas o internacionales(...)”.

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momento da globalização, adquire conotações específicas e perpetua outras herdadas de

antigas estruturas políticas e sócio-econômicas (Pedone, 2000a: 225).

Os migrantes que retornam atualmente para o Ceará têm apresentado, de acordo

com as entrevistas, motivações diferentes para este movimento. Tais motivações envolvem

o modo como se dá a territorialização no lugar de destino. Dependendo dela, o migrante

poderá ver como fator de fixação ou expulsão as experiências comuns aos migrantes

laborais em seus territórios de imigração. Porém, algo marcante é o fato de que muito mais

do que os argumentos comuns utilizados por pesquisadores, especialmente os que estão

mais vinculados com uma perspectiva quantitativista, de que o retorno tem ocorrido apenas

por conta do desemprego estrutural comum nos grandes centros urbanos e pelo aumento do

emprego nas cidades de origem – o que é também uma verdade – tem ocorrido em uma

proporção nunca antes percebida uma valorização do conteúdo simbólico das migrações,

manifestando-se de maneira muitas vezes contundente na decisão de retornar.

Como medir a saudade, como quantificar a solidão, como avaliar o que pesa mais

entre o salário ou o aconchego familiar. Neste sentido é que entendemos que as cadeias

migratórias não estão dando conta do fluxo na rede migratória. Ou seja, não basta ver como

elemento reterritorializador o suprimento das carências materiais, os aspectos simbólicos

também devem ser considerados. Por isso, muitas vezes, as cadeiras migratórias não

sustentam o fluxo da rede. O incentivo à migração, no entanto, continua à medida que a

rede migratória existe, mas aquilo que dá sustento à rede, que são as cadeias, parece não

estar, atualmente, compensando o valor simbólico do território.

É comum observarmos diversas conclusões acerca das redes migratórias feitas

somente a partir da análise dos dados do censo, ou outros dados de órgãos administrativos,

financeiros, burocráticos etc., adquiridos junto a instituições privadas e governamentais. O

que é um tipo de abordagem da maior importância. Contudo, reiterando afirmações

anteriores, não podemos ter estes métodos como únicos, é preciso que utilizemos métodos

que nos aproximem mais dos objetos. É preciso ouvir suas vozes, ver mais de perto sua

mobilidade, o que torna necessário a análise em uma escala mais micro, típica da cadeias

migratórias, diferentemente da análise das redes.

O estudo das cadeias exige a ida a campo e uma metodologia mais próxima do

objeto (Pedone, 2000a). Diante disto, o trabalho de campo como recurso metodológico

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tende a priorizar uma postura intelectual e epistêmica muito mais qualitativa que

quantitativa. Pedone, por ter esbarrado neste dilema (qualidade/quantidade), ajudou-nos a

perceber melhor esta aparente dicotomia – um debate que é recorrente na ciência moderna

postulado pelo aparente antagonismo entre ciências idiográficas e nomotéticas.

Aparentemente não é possível realizar um trabalho abordando dados quantitativos

tendo uma perspectiva qualitativa de análise, isto porque como nos mostra Hammersley (in

Pedone, 2000a: 03 [tradução livre, versão original ver anexo 2]), há antagonismos

extremos.

Dualismos identificados entre os métodos qualitativos e quantitativos

Métodos qualitativos

Dados qualitativos

Ambiente natural

Busca de conhecimento

Recusa às ciências naturais

Aproximações indutivas

Identificação de padrões culturais

Perspectiva idealista

Entrevistas qualitativas

Mostra de pequeno tamanho

Entrevistas extensas

Amostragem não-aleatória

Métodos quantitativos

Dados quantitativos

Cenário experimental

Identificação de comportamento

Adoção dos métodos das ciências naturais

Aproximações dedutivas

Busca de leis científicas

Perspectiva realista

Medições quantitativas (questionário)

Mostra de tamanho amplo

Medições pequenas

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Amostragem aleatória

Os antagonismos apresentados têm razão de existir. A partir do neopositivismo dos

anos 1950-60, que vislumbrava como aspecto fundamental da produção científica a

quantificação, o conhecimento sobre as populações passou a ser baseada quase

integralmente na constatação de hipóteses formuladas em escritórios privados e/ou

governamentais.

A busca de uma perspectiva genuinamente qualitativa, na esfera da Geografia,

apresentou-se na década de 1970 a partir da chamada Geografia Humanista, baseada nos

preceitos e métodos da fenomenologia. Esta busca foi sem dúvida uma guinada importante

na produção do conhecimento sobre as populações porque apresentou uma nova

metodologia, fugindo do padrão já desgastado de análise demográfica, todavia também não

conseguiu avançar muito em um entendimento mais complexo deste objeto. O que nos leva

a constatar que esta dicotomia está ultrapassada, haja vista que nem uma nem outra

abordagem levada ao extremo sozinha conduziu a um entendimento mais completo sobre o

tema.

A oposição absoluta, entre os métodos qualitativos e quantitativos, é uma falsa disputa. Frente a ela, defendemos uma complementaridade, porém com mais igualdade, posto que a comparação e verificação para provar a validade de nossas investigações, devem ser propostas por nós mesmos, em cada caso específico, não priorizando nem o método quantitativo nem o qualitativo (Pedone, 2000: 05, tradução livre).13

O estudo das migrações, especialmente as de retorno – que é o nosso interesse,

precisa abordar de maneira mais pormenorizada aqueles que passam diretamente pela

condição de migrante. Seria humanamente impossível contatar todos os retornados tendo

com cada um o contato necessário a ponto de fornecerem uma descrição densa, que

ultrapassasse o limite do questionário direcionado. Por isso a amplitude da pesquisa

envolve uma escala menos ampla, de maior aproximação. E por isso também faz-se

necessário usar como recurso metodológico os trabalhos de campo.

13 “La oposición absoluta, entre los métodos cualitativos y cuantitativos, es una falsa disputa. Frente a ella, abogamos por una complementariedad, pero en mayores términos de igualdad, puesto que la contrastación y verificación para probar la validez de nuestras investigaciones, deben ser propuestas por nosotros mismos, en cada caso específico, no quedando reservada ni a lo cuantitativo ni a lo cualitativo”.

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Os estudos qualitativos são investigações intensivas numa escala muito pequena, nas quais se explora a experiência cotidiana das pessoas e de suas comunidades em diferentes tempos e espaços. Nestes trabalhos, a posição do investigador, suas experiências, suas perspectivas e suas opiniões são aspectos significativos no desenvolvimento e nos resultados da investigação (Pedone, 2000: 07, tradução livre).14

O trabalho de campo percebido como um recurso metodológico deve estar pautado

em parâmetros diferentes daqueles que visam apenas a uma quantificação (vide o quadro

anterior) do objeto ao qual se pretende estudar. Nestes termos podemos entendê-lo como

metodologia que deve ultrapassar a simples tentativa de comprovação de teorias e também

nossa rápida apreensão daquilo que percebemos no espaço.

Coadunando com aquilo que Pedone percebe como necessário a uma investigação

qualitativa eficaz, onde os meios de obtenção de informação levem em conta a observação

participante; a entrevista em profundidade; a entrevista semi-estruturada e/ou as discussões

em grupos focalizados, foi que realizamos nossos trabalhos de campo. Para tanto, buscar os

retornados apenas em seus territórios de origem no lugar e no momento onde podem já ser

considerados retornados, não nos parecia suficiente para destrinchar o conteúdo deste

agente social. Buscamos também alguns lugares onde existem potenciais retornados, isto é,

lugares onde se corporificam as cadeias migratórias, em especial as que se ligam a rede

cearense. Cabe ressaltar que buscamos estes lugares no Rio de Janeiro porque é o lugar da

produção deste trabalho, logo, do ponto de vista logístico, haveria menor complexidade

sem, contudo, interferir no resultado da pesquisa. Diante disso, podemos destacar, portanto,

as comunidades do Rio das Pedras e da Rocinha, na metrópole carioca como loci de

potenciais retornados.

A observação dos hábitos locais, dos sotaques, a vista da disposição e da forma das

residências, enfim, a configuração destes lugares nos remetem em muitos momentos aos

lugares de origem dos migrantes. Tudo é híbrido. Ícones sofisticados originados

territorialmente no espaço metropolitano mesclam-se aos diversos símbolos dos espaços

nordestinos. Aí está um primeiro aspecto que já nos desperta os sentidos, e que só pode ser

percebido no trabalho de campo.

14 “Los estudios cualitativos son investigaciones intensivas a muy pequeña escala, en las cuales se explora la experiencia cotidiana de la gente y sus comunidades en diferentes tiempos y espacios. En estos trabajos, la posición del investigador, sus experiencias, sus perspectivas y sus prejuicios son aspectos significativos en el desarollo y los resultados de la investigación.”

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A realização deste tipo de metodologia no lugar onde o migrante se fixa é a melhor

forma de se perceber como o território de origem é percebido por ele, e suspeitamos que a

partir daí possamos identificar elementos motivadores para o retorno, bem como seus

impactos nestes territórios. De igual modo, trabalhos de campo realizados nos lugares de

origem/retorno são necessários a um entendimento mais amplo deste movimento. Sendo

assim, convém uma breve exposição dos trabalhos de campo realizados nos lugares de

origem/retorno e nos lugares de imigração. Exporemos segundo a ordem cronológica de

realização, tanto aqueles realizados no Ceará quanto os no Rio de Janeiro.

• 1º Trabalho de campo, Ceará, julho – 2003

A viagem ao Ceará que despertou o interesse pela investigação do retornado, data de

2002. Os vínculos familiares e o contato com a parentela fez com que o tema das migrações

e, conseqüentemente, do retorno fossem elementos fundamentais a elaboração deste

trabalho. Contudo, o primeiro trabalho de campo, onde havia um roteiro de lugares a serem

visitados e entrevistas, só ocorreu em julho do ano seguinte.

Esta ida à campo tinha como finalidade coletar informações e dados para um

trabalho de conclusão de curso, cujos resultados desembocaram nesta pesquisa. Ficou

estabelecido um itinerário de seis municípios no noroeste do Ceará, com a possibilidade da

inclusão de mais alguns. A escolha destas localidades se deu em virtude dos vínculos

familiares e de contatos estabelecidos na viagem de 2002. Também o trajeto de ida até o

Ceará a partir do Rio de Janeiro em um ônibus foi um elemento metodológico importante,

tendo em vista que o itinerário de 52 horas em média estimulou a criação de vínculos

sociais, resultando em alguns contatos importantes.

Os municípios escolhidos para a pesquisa (Varjota, Reriutaba, Guaraciaba do Norte,

São Benedito, Ubajara), possuem relações comerciais de tal importância que uma economia

se vincula a outra, de modo que as feiras livres são realizadas em dias alternados em cada

um dos municípios, além disso há um ônibus que ajuda a integração socioeconômica destas

populações. Além disso, constatamos, por meio das entrevistas com migrantes e

autoridades municipais, uma hipótese de que estes municipios estabeleciam uma rede

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migratória, principalmente para o Rio de Janeiro, que fornecia mão-de-obra específica para

o setor de restaurantes sobretudo. Por todos estes motivos escolhemos estas localidades.

No decorrer do trabalho de campo, vislumbrou-se a possibilidade de se conhecer

outras áreas do Ceará por meio da rede de sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais

(STTR) deste estado. Devido aos contatos estabelecidos entre um e outro sindicato, tivemos

a oportunidade de conhecer os municípios de Canindé, Quixadá, no chamado Sertão

Central, e Abaiara, no Cariri cearense, e neles realizar entrevistas que nos serviram de base

para algumas constatações, por exemplo que a migração para o Rio de Janeiro é mais

concentrada nos municípios do noroeste do estado e que em alguns lugares, como Abaiara,

a migração laboral fornece apenas um tipo de mão-de-obra (“bóias-frias”) para uma única

localidade (Limeira – São Paulo).

• 2º Trabalho de campo, Rio de Janeiro, Rio das Pedras, junho – 2005

Rio das Pedras foi escolhida com base em contatos familiares, confirmados

posteriormente por meio de dados do IPP (Instituto Pereira Passos), que mostravam esta

comunidade como uma das que mais recebiam migrantes oriundos do Ceará e da Paraíba no

Rio de Janeiro.

Uma das características mais marcantes desta comunidade é o fato de não haver

tráfico de drogas. Devido a um verdadeiro “serviço de inteligência” mantido por um

influente líder comunitário de origem nordestina, não há este tipo de prática neste lugar, o

que serve de argumento para os nordestinos que se auto-proclamam defensores do trabalho

honesto, manterem posição contrária aos que praticam o tráfico de drogas, considerados

como “vagabundos”. Tamanha ordem é imposta pelo líder local por meio de punições

severas a quem for pego praticando ou estimulando a prática do tráfico.

Este trabalho teve dois objetivos principais: reconhecer a configuração do espaço

migrante na metrópole e fornecer entrevistas que nos desse subsídios para entender a

territorialidade do migrante, assim como motivações para o seu retorno. Cremos que

alcançamos os objetivos propostos mas, sobretudo, contatos foram realizados e laços foram

estreitados, de modo que permitirão posteriormente conhecer um pouco mais o sujeito

migrante.

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• 3º Trabalho de campo, Rio de Janeiro, Rocinha, junho – 2005

Com os mesmos propósitos que o trabalho anterior, realizamos a pesquisa de campo

na Rocinha, porém, com o diferencial de vermos a prática explícita do tráfico de drogas

como elemento influenciador da territorialidade do migrante. Em virtude, inclusive, do

receio quanto à represálias do tráfico, foi bastante difícil realizar entrevistas, apesar de

terem ocorrido, porém em menor número que em Rio das Pedras.

Os contatos familiares também facilitaram a ida á esta favela. Pudemos perceber

também que há uma forte relação entre as duas comunidades pesquisadas, havendo, até

mesmo, linhas de vans exclusiva interligando-as.

Também há uma grande quantidade de migrantes nordestinos na Rocinha, muitos

deles saíram para iniciar a ocupação de Rio das Pedras. As falas dos entrevistados,

especialmente do Sr. João (citado algumas vezes mais adiante) foram bastante reveladoras

no que se refere ao pensamento de muitos migrantes acerca dos que retornam.

• 4º Trabalho de campo Ceará, julho – 2005

A realização deste trabalho de campo, deu-se sob muita dificuldade. Diversos

aspectos contribuíam para uma frustração, especialmente o curto espaço de tempo para sua

preparação e cumprimento. Enquanto o trabalho anterior teve duração de um mês, este teria

de apenas dez dias. Todavia, apesar do tempo curto, foi possível realizá-lo obtendo êxito

nas propostas levantadas.

Todas as entrevistas agendadas foram realizadas e outras não previstas também

ocorreram. Infelizmente, o tempo não esteve sempre a favor, logo, só houve a possibilidade

de realizar entrevistas.

• Trabalho de campo Ceará, janeiro – 2006

A finalidade deste trabalho era coletar mais algumas entrevistas consideradas

importantes, tendo em vista que os entrevistados eram retornados em situações muito

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especiais: movimentos de migração e retorno realizados diversas vezes, migração para mais

de um lugar, investimentos em uma variedade grande de ramos entre outras características.

Além do mais, muitos deles eram pessoas relativamente próximas (parentes, conhecidos

etc.) e também havia o fato de a pesquisa estar um pouco mais madura, logo algumas

perguntas foram adicionadas, outras excluídas, de modo que estas entrevistas tenderiam a

ser mais proveitosas.

A duração deste trabalho seria de vinte e oito dias, considerando-se os dois dias e

meio de viagem de ônibus. Neste sentido, deve-se considerar que o trajeto de ida de ônibus,

apesar de desconfortável em alguns momentos, é de extrema importância para o

estabelecimento de contatos e reconhecimento de hábitos nordestinos.

Outro aspecto importante neste campo foi o fato de, pela primeira vez, poder contar

com uma residência inteiramente à disposição em um dos municípios pesquisados, de

maneira a servir de base para toda a movimentação entre as localidades sem causar

incômodo a ninguém. Com base nos resultados, cremos que este foi o trabalho de campo

mais proveitoso do ponto de vista das entrevistas, o que nos proporcionou a possibilidade

de observar com mais cuidado o papel dos retornados em seus lugares de retorno, sem

deixar de lado a importância de suas decisões na constituição de suas histórias pessoais.

1.3 Os retornados e a des-reterritorialização

Entender o que é o indivíduo retornado é também, em alguma medida, entender os

processos de desterritorialização e reterritorialização, afinal são estes processos que

determinam a migração será exporádica ou duradoura. As redes e cadeias migratórias

influenciam fortemente, conforme já vimos, a mobilidade, mas o que faz o indivíduo

permanecer no território, muitas vezes, não é somente o suporte de infra-estruturas e

garantias proporcionado pelas cadeias migratórias, mas o nível de territorialização deste

indivíduo, na verdade o suporte de infra-estruturas e garantias é parte do que conhecemos

como aspecto funcional da territorialização. José de Souza Martins (1986) já afirmava que

quando o imigrante enfim traz a festa ao lugar de imigração é porque este não volta mais. A

festa, a celebração, é um importante indicador da territorialização do indivíduo. Partindo

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desse pressuposto, não seria errôneo afirmar que o retornado numa dimensão simbólica não

é um indivíduo totalmente territorializado na metrópole. Mas o que significa ser/estar

territorializado?

Entender a des-reterritorialização é uma necessidade para o estudo que ora

empreendemos. Mas para isso devemos passear pelas concepções de território, de modo

que possamos, então, definir ou, ao menos, dimensionar o nível de desterritorialização que

envolve nossos protagonistas: os retornados.

1.3.2.2O território

Ao longo deste trabalho tentamos verificar por que algumas categorias da Geografia

não permaneceram no patamar de destaque que estiveram em outros tempos na história

desta disciplina. Percebemos, contudo, que o território foi uma categoria que no final do

milênio, mesmo com a proclamação dos “fins” de diversas linhas de pensamento e

correntes teóricas (e, conseqüentemente, de conceitos) manteve-se de pé. Melhor dizendo,

o território atingiu uma importância muito maior do que a que já tivera, mesmo sendo

apontado como um conceito em crise, em busca de uma nova leitura (Badie, 1995). Vemos

que mais do que conceito, que remete a idéia a uma reflexão, o território é uma categoria

em emergência, ou seja, é utilizada com freqüência pelo senso comum em proporções,

cremos, incomparáveis em outros tempos.

Por que está havendo esta ascensão do território no atual momento histórico? A

resposta não parece ser simples, todavia, uma indicação de resposta passa exatamente pela

emergência da importância dos lugares na dinâmica do capitalismo global. Aquilo que é ao

mesmo tempo o grande trunfo do capitalismo, a homogeneização dos lugares, dos gostos,

das necessidades, também é a sua fraqueza, conforme se vê com a explosão de uma

diversidade de conflitos entre as lógicas locais e os processos hegemônicos vigentes.

Por esta razão o lugar, apesar do declínio teórico como conceito, tem se reerguido

no atual momento da humanidade. Para isso a compreensão do território torna-se

fundamental. Doreen Massey faz esse elo entre lugar e território ao apontar a necessidade

de identificação das fronteiras existentes nos lugares.

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(...) os lugares não têm de ter fronteiras no sentido de divisões demarcatórias. É evidente que as “fronteiras” podem ser necessárias, por exemplo, para as intenções de certos tipos de estudos, mas elas não são necessárias para a conceituação de um lugar em si. A definição neste sentido, não deve ser feita por meio da simples contraposição ao exterior; ela pode vir, em parte, precisamente por meio da particularidade da ligação com aquele “exterior” que, portanto, faz parte do que constitui o lugar (Massey, 2000:184).

Há neste momento uma situação nova em relação à noção de lugar: uma redução da

sua importância (ou menor evidência) em discussões dentro das instituições de Geografia.

O que tem aparentemente acontecido é uma substituição do lugar pelo território, pois muito

se fala da importância do território como elemento constituidor de uma identificação

espacial, enquanto o lugar que, em nosso entender, possuía essa função deixou de sê-lo.

Aquele lugar identificado pela Geografia Humanista atualmente parece ter sido em parte

absorvido pelo conceito de território. O que não se tem levado em consideração quando se

substitui o lugar por território é o fato de o lugar ter uma dimensão dialética, relacional,

intrínseca a sua constituição conceitual.

O surgimento da necessidade de se buscar um sentido mais abrangente do lugar (e

também da região, como veremos mais a frente) tem levado alguns autores a refletirem

sobre a questão do território e da territorialidade. O território estabelece o espaço dos

lugares e das regiões, daí a sua necessidade. Diante disso, como pensar então o território?

Há algumas concepções que desde o surgimento da Geografia têm dado o tom do que se

entende por território. Uma delas é a abordagem que apresenta o território como um espaço

de controle, proposto por Sack (1986) e, de modo distinto, Gottman (in Claval, 1999: 08).

Claval, ao expor a concepção de Gottman de território ligado à idéia de soberania,

afirma que “para que uma entidade política possa ter a experiência do caráter absoluto do

poder, é preciso que ela não tenha concorrente, e que exerça um monopólio total sobre

espaço dado; ela é então soberana. A idéia de território está assim ligada à de controle, e a

justifica”. Vemos, portanto, que o território, neste sentido – talvez um dos mais comuns –

ainda é abordado sem aflorar sua dimensão simbólica, subjetiva, identitária. Algo que

aparece freqüentemente nos discussões que envolvem os lugares.

Lugar, por sua vez, aparenta não ter como princípio definidor (pelo menos

historicamente) a estratégia do controle. Desde a antigüidade o lugar tem sido utilizado

como noção que se limita a localização das coisas. Sabemos, no entanto, que lugar é mais

que isso. Massey (2000) tem a intrepidez de tentar quebrar com esses olhares mais

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retrógrados que comportam o lugar em padrões preestabelecidos, por meio da resposta às

seguintes questões, “(...) Não é possível pensar nosso sentido do lugar? Não é possível que

o sentido do lugar seja progressista? (...) Um sentido do lugar que se adapte a essa era de

compressão de tempo-espaço?” (p. 178).

A globalização (na economia, na cultura ou em qualquer outra coisa) não acarreta simplesmente a homogeneização. Ao contrário, a globalização das relações sociais é uma outra fonte (da reprodução) do desenvolvimento geográfico desigual e, assim, da singularidade do lugar. Há a especificidade do lugar que deriva do fato de que cada lugar é o centro de uma mistura distinta das relações sociais mais amplas com as mais locais (Massey, p. 185, grifo da autora).

A autora busca um caminho para tentar mostrar que o lugar hoje, necessariamente,

precisa de um entendimento mais amplo do que aquele em que se lhe percebe como

contraponto ao global, para que possa dar conta do atual momento da humanidade; o lugar

também manifesta o global, o exterior também lhe constitui.

Lugar, na concepção da Geografia Humanista, tende a valorizar o vivido, o

experienciado, aquilo que advém das experiências cotidianas dos habitantes de uma dada

área. Tal conceito tem, portanto, um uso que ultrapassa a mera localização de coisas no

mundo, agrega em si o aspecto simbólico que a acepção de lugar, proveniente de Descartes

e dos físicos, não dá conta.

O lugar é o cotidiano, é o espaço do dia-a-dia, a rotina. Podemos, então, concordar

com Jacques Levy (publicado em Beaud, 1999) quando afirma que “o lugar é o espaço

onde a distância é nula”. Como conseqüência esta categoria espacial é o espaço do contato

com o outro. É, então, uma categoria espacial onde se manifesta a dialética relação eu-

outro. Logo, diante dessa constatação, vê-se que a globalização da economia neste período,

para alguns, pós-moderno fez com que os lugares tomassem um vulto maior, pois o caráter

simbólico do espaço personificado no lugar, aflora mostrando a heterogeneidade do espaço

mundial.

O Lugar revela e realiza o mundo numa atividade empírica, dando-lhe consistência histórica e geográfica. Mas, como os Lugares são o mundo (globais), são também singulares, pois ao reproduzirem o mundo eles o fazem de maneiras muito específicas, individuais e diversas, conferindo a si um fundamental papel de resistência frente aos processos de globalização (Nogueira, 2004:01).

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Ao passo que o lugar processa a globalização, negando-a, a globalização transforma

os lugares, numa relação constante de negação/aceitação da homogeneização dos lugares, o

que ressalta as diferenças. Talvez por isso, resgatar a proposta da Geografia Humanista,

trazendo à pauta dos debates o emblema do espaço vivido, nunca foi tão urgente. Mas é

urgente porque no atual momento de reelaboração paradigmática, um elemento que o

conceito de lugar da modernidade, o lugar sob uma perspectiva de localização, não

contempla e que nem o da Geografia Humanista, o lugar mônada, o lugar da experiências

efêmeras, dá conta é a emergência das identidades dentro do contexto de homogeneização

global.

É nesse encontro entre a perspectiva conceitual de lugar como localização e como

espaço vivido que se concentra a importância do território neste trabalho, pois ele por sua

relação com o Poder pode estabelecer o que está dentro e o que está fora, a diferença,

característica ímpar das discussões identitárias.

Dentre as abordagens que consideramos nesta reflexão acerca do território,

certamente a de Souza (1995) deve ser mencionada. Segundo o autor os territórios “são no

fundo antes relações sociais projetadas no espaço que espaços concretos” (p.87). Essa

afirmação nos oferece a dimensão social do espaço que as perspectivas clássicas de

território não apresentam ao isolarem o aspecto físico ou político. Partindo do pont de vista

de Souza podemos associar a perspectiva de Paul Claval (1999) que junta território à

identidade:

O sentimento identitário permite que se sinta plenamente membro de um grupo, dotá-lo de uma base espacial ancorada na realidade (...) Vê-se, então, por que os problemas do território e a questão da identidade estão indissociavelmente ligados: a construção das representações que fazem certas porções do espaço humanizado dos territórios é inseparável da construção das identidades (p.16).

O território é, portanto, o conceito que tem conseguido mover-se com maior

facilidade dentro do terreno espinhoso e, talvez por isso tão amplamente solicitado, da

identidade dentro do atual discurso das ciências sociais. Conceito fundamental que

discutiremos com maior profundidade mais adiante. Mas cabe aqui brevemente

apresentarmos o que entendemos por identidade, de modo que possamos esclarecer o que

entendemos por território.

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No memento atual, chamado algumas vezes de pós-moderno, a busca capitalista por

novos mercados e produtos, estimulando o efêmero e padronizando tudo através da moda,

trouxe à tona a diversidade dos lugares e a diferença entre as culturas do mundo, como

mostramos anteriormente. O outro – o não moderno – é então identificado na sua diferença

e, não raras vezes, constitui-se aglomerados de exclusão, exilado dos iguais.

Passa a ser uma necessidade fundamental entendermos que a identidade não existe

sem a diferença, mais do que isso, a diferença cria a identidade. Silva ([2000] 2004: 75 e

76) nos mostra essa relação dialética de uma forma bastante clara:

É fácil compreender (...) que identidade e diferença estão em uma relação de estreita dependência. A forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder esta relação (...) Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido (...) Da mesma forma, as afirmações sobre a diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade (...) Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são pois inseparáveis. Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença (...) Numa visão mais radical, entretanto, seria possível dizer que, contraditoriamente à primeira perspectiva, é a diferença que vem em primeiro lugar. Para isso seria preciso considerar a diferença não simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferença (compreendida, aqui, como processo) são produzidas (grifos do autor).

A partir do entendimento deste processo é possível concluirmos que a identidade

analisada numa perspectiva geográfica passará pela questão do território, afinal é nele, e às

vezes por sua causa, que se manifestam muitas das questões envolvendo a identidade.

Território este aflorado hoje a partir da emergência dos lugares. Para tanto urge

considerarmos o território sob um enfoque mais abrangente e diante desta necessidade

Haesbaert dá uma definição que vai ao encontro de nossa proposta:

O território envolve sempre, ao mesmo tempo mas em diferentes graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de “controle simbólico” sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos (Haesbaert, 1997: 42).

O conceito de território em uma perspectiva mais condizente com a realidade do

mundo necessita deste envolvimento com a dimensão simbólica do espaço. Esta dimensão

apresenta-se em uma de suas faces por intermédio da identidade territorial. Não é o

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objetivo definir este conceito cujo próprio Haesbaert é um dos principais pensadores, mas

vale dizer como Castells (1999b) que na intenção de mostrar sua perspectiva de identidade

territorial frente aos atuais processos globalitários diz que “(...) as pessoas resistem ao

processo de individualização e atomização, tendendo a agrupar-se em organizações

comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última

análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal” (p. 79).

Especificamente para o nosso propósito, compreender a importância da identidade,

bem como seus processos de elaboração dentro do entendimento do território é uma

necessidade para quem busca compreender a dinâmica populacional neste início de

milênio. No nosso caso, para analisar a dimensão geográfica da migração de retorno, torna-

se fundamental entender que o espaço para o migrante retornado tem uma força ainda

pouco dimensionada, mas ultrapassa a noção simplista de substrato físico, ou da mera

funcionalidade. O lugar do retorno é um referencial de extrema importância, para o bem ou

para o mal do indivíduo retornado e, neste sentido, a identidade e/ou a diferença se

manifestam simbolicamente no seu território também, e muitas vezes, sobretudo, através

dele.

A nossa intenção nunca foi de morar lá no Rio de Janeiro. Não tenho vontade de ficar naquele lugar, a não ser que eu chegue lá e morra lá na hora que chegar [risos] ... Se eu não gosto do lugar para morar, não gosto e não gosto. É questão de gosto. E tem mais: muitas e muitas pessoas não vêm embora pra cá porque não têm condições, mas vontade tem. [Por outro lado] têm pessoas que são desamorosas ao lugar. Não tem amor ao lugar (D. Teresinha, 75 anos, retornada madura15 do Rio de Janeiro, moradora de Varjota – entrevista em janeiro de 2006).

Nesta entrevista a retornada comentara que um cunhado que também migrou para o

Rio de Janeiro nunca mais retornou e não pretende voltar, logo ele estaria na condição de

“desamor” a qual ela cita, ou seja, condição de menor identidade com o território de

origem. Foi estabelecido, portanto, um nivelamento identitário com o lugar de origem entre

ela e seu cunhado, prova de que a identidade, para alguns e em alguma medida, é

definidora da territorialidade do retornado.

O migrante é o sujeito privilegiado nos processos de identidade territorial. É por

meio dele, feliz ou infelizmente, que se manifestam as atitudes que nos fazem ver a

15 Quanto à diferenciação entre os retornados jovens e maduros, bem como uma discussão acerca desta classificação reservamos o item 2.3..

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importância da identidade territorial: guetificação, migração em massa, centro de tradições,

diásporas, atos de repressão às migrações, xenofobias etc. O que é comum aos exemplos de

eventos dados é que independentemente de serem benéficos ou não, são todos efeitos

percebidos no lugar, todos remetendo à questão da identidade territorial.

1.3.2 A identidade territorial constituinte do migrante retornado

A produção do espaço implica sempre ações humanas, ações estas que

necessariamente são geográficas porque não existe ação humana que não seja geográfica!

Desse modo, esta produção, que é fruto do trabalho, é o mesmo que o processo de

constituição da vida humana (Santos, 1988: 88).

A vida humana então está permeada por uma infinita geografização que, em

concordância com perspectiva de Raffestin16, faz-nos vê-la como um processo contínuo de

territorialização. Logo, está prenhe de situações de identificação e diferenciação,

promovendo sempre uma relação com o território que não se restringe aos aspectos

funcional e econômico, mas também, e principalmente nos dias atuais, o seu aspecto

simbólico.

Pensar em uma relação com o território onde este tenha sua dimensão simbólica

privilegiada, significa pensá-lo à luz dos processos de identificação. É, de fato, impossível

imaginarmos estudar o processo do retorno e, na mesma medida, o migrante retornado

atualmente sem que passemos pela constituição de sua identidade.

(...) Mas quando nós partimos daqui a gente fica com o coração partido. É durante os anos que a gente vive lá, nós nos lembramos de cada vereda que nós andamos, cada lugar que a gente nasceu e se criou aqui, correndo com a natureza. Quando a gente “tá” lá, naquela cidade grande, que a gente vê aqueles ônibus cheios, lotados, aquela correria, aquele desespero, você tem vontade de voltar. Acho que se tivesse asas saia de lá na mesma hora. (Maria Nilma, 40 anos, retornada jovem do Rio de Janeiro, atualmente funcionária do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Reriutaba – entrevista em julho de 2003).

No relato da retornada há uma visível rememoração do território de origem no

período em que era uma migrante na metrópole, curiosamente ela acentua o aspecto

relacionado à funcionalidade dos dois territórios, as “veredas” e os “ônibus cheios”, mas

envolve-os em um clima de sentimentalismo onde expressa claramente sua preferência

16 “O território (...) é um espaço onde se projetou um trabalho”(Raffestin, 1993: 144).

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entre os dois lugares, mesmo que o seu território de origem se apresente em termos

econômicos muito menos desenvolvido que o de onde ela procedeu no retorno. Evidencia-

se, neste caso a importância da identidade com o lugar de origem e não com o de

procedência. Cabe, portanto, tentar explicitar o que entendemos por identidade.

1.3.2.2Delineando a identidade do retornado

No terreno espinhoso dos discursos que marcam a diferença como elemento de

reivindicação de direitos, esbarramos com a questão dos migrantes. Ocorrem diariamente

pelo mundo fatos envolvendo a busca de reconhecimento dos migrantes em suas diferenças

em relação ao território de imigração. Esse movimento tem sido gerado à medida que

engrossam as restrições ao fluxo de migrantes nos países centrais e ampliam-se as

penalidades ao movimento que, contraditoriamente, o modelo econômico destes países

estimula.

A diferença como discurso tem sido constantemente trazida à tona com vistas à

preservação de hábitos e territórios importantes a determinados grupos. No caso dos

migrantes nordestinos no Rio de Janeiro, não podemos dizer que haja grupos organizados

buscando o direito à diferença, mas a força da hibridação dos costumes nordestinos nos

hábitos da metrópole dão força – do setor de entretenimento principalmente – a uma

diferenciação e à valorização desta diferença. Podemos citar, por exemplo, o crescimento

dos restaurantes de comidas nordestinas e casas de shows de música e dança com artistas

populares nordestinos. No entanto, há uma manutenção dos processos de exclusão nos

planos que extrapolam este setor econômico. Ainda ocorre, do ponto de vista do emprego,

uma acentuada oferta de emprego em serviços que historicamente estão reservados às

camadas mais precariamente incluídas na sociedade de consumo. Observe o gráfico a

seguir:

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Gráfico 1: As Profissões dos migrantes no Rio de Janeiro

Fonte: IBGE, publicado no jornal “O Globo”, 19/05/05.

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0

2.000

4.000

6.000

8.000

10.000

12.000

14.000

16.000

Empregados N.º Absolutos

Diarista, empregadadoméstica, arrumadeira,faxineira

Balconista, auxiliar devendas, vendedor

Pedreiro em geral

Faxineiro, auxiliar delimpeza, gari

Peão (construção civil),trabalhador braçal

Garçon, barman, ajudantede bar, copa ou lanchonete

Ambulante, comerciantepor conta própria

Porteiro, vigia, auxiliar deportaria

Cozinheira, merendeira

Babá, crecheira

Biscateiro, auxiliar deserviços gerais, flanelinha

Caixa de bar, lanchonete,restaurante, supermercado

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A metrópole, locus prioritário da modernidade, acolhe o nordestino nos âmbitos que

lhe interessa. Mas os indivíduos que se aventuram nesta acolhida põem em questão suas

identidades. Como isso pode ocorrer? Stuart Hall nos ajudo a entender melhor.

Os grandes centros para onde grande parte dos migrantes no mundo se dirigem

experimentam a chamada “pós-modernidade”: “um tipo diferente de mudança estrutural

que atingiu as sociedades modernas no final do século XX” (Hall, 2003a: 09). Acrescenta-

se que não somente os centros vivem esta mudança, mas todos os lugares nos quais os

processos de metropolização/periferização se irradiam. E este momento está também

trazendo mudanças às identidades pessoais e abalando os alicerces identitários dos

indivíduos. Logo os migrantes não fogem aos efeitos deste processo.

Se aspectos que envolvem a subjetividade dos indivíduos, como as identidades, são

abalados vivemos então um tempo onde as identidades fixas, compactas e coerentes já não

são à prova de dúvidas. Logo, “(...) naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso

mundo pós-moderno, nós somos também ‘pós’ relativamente a qualquer concepção

essencialista ou fixa de identidade” (Idem: 10).

Podemos dizer que é possível diferenciar a identidade dos migrantes retornados,

aparentemente, a partir da classificação genérica que apresentamos anteriormente. Partimos

do pressuposto que as identidades atualmente não são fixas, mas móveis, no entanto parece-

nos que a mobilidade da identidade territorial nordestina está menos determinada àqueles

que migraram por ocasião das ações do Estado, como no período JK, do que os que

migraram para o Sudeste por conta da atração que esta área exercia sobre suas gerações nos

territórios de origem dos migrantes, independentemente do estímulo estatal direto17.

Reservaremos o item 2.3 do trabalho especificamente para discutir este assunto tendo em

vista que isto é um elemento constituinte da multiterritorialidade, mas por enquanto basta

que o citemos.

A migração dos nordestinos para o Sudeste pode ser caracterizada plenamente como

migração de mão-de-obra que estabeleceu uma rede e organizou cadeias migratórias que

propiciaram a migração de outras gerações de migrantes para o mesmo destino. O que deve

17 Há que se considerar que o fato de não haver um estímulo estatal declarado, não significa que o Estado deixou de realizar ações de incentivo às migrações. Na verdade sua influência no âmbito da mobilidade populacional se dá de diversas formas dependendo da situação, podendo ser mais ou menos aparente, usando este ou aquele meio. Quando mencionamos a ausência de estímulo estatal, fazemos referência a um estímulo declarado.

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ser levado em consideração neste momento é o fato de que o processo de globalização

acelerou os movimentos migratórios para as metrópoles, produzindo identidades plurais,

como discutiremos no próximo item (identidade regional), mas também identidades

contestadas geradas em processos de grandes desigualdades (Woodward, 2004: 21).

A migração é um processo de desigualdade em termos de desenvolvimento. Nesse processo, o fator de “expulsão” dos países pobres é mais forte do que o fator de “atração” das sociedades pós-industriais e tecnologicamente avançadas. O movimento global do capital é geralmente muito mais livre que a mobilidade do trabalho.

O caso que se apresenta como instigante para quem pretende discutir a questão da

identidade a partir da questão migratória é o fato de que contrariamente ao que a autora

revela, diferentemente do caso dos migrantes internacionais que têm o fator de expulsão,

ainda hoje, mais forte que os de atração, os migrantes nordestinos estão em retorno, mesmo

quando os fatores de atração econômicos ainda são visivelmente mais fortes. Por isso é

necessário evidenciar que uma nova atração está sendo constituída e parece-nos que este

fator está vinculado a um forte conteúdo simbólico relacionado com a identidade. Entender

a identidade do migrante significa, então, entender a relação deste agente com o lugar de

origem.

Conforme Massey (2000) afirma, lugar é um “fenômeno social”, e como tal cremos

que pode estabelecer relações territoriais. Relações estas consideradas como

territorialidade, cuja concepção é definida segundo Sack (in Haesbaert, 2004: 87) como “a

tentativa, por um indivíduo ou grupo, de atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas,

fenômenos e relacionamentos, pela delimitação e afirmação do controle sobre uma área

geográfica. Esta área é chamada território”.

No caso do migrante, é nítido a idealização de um território, o lugar de origem, que,

muitas vezes, no retorno, destitui-se do caráter de território em função do pouco ou

nenhum domínio sobre a área constitutiva do seu lugar de origem, e por isso mesmo, não

mais lugar de origem e sim lugar de retorno.

Le Bossé (2004: 173) diz que “como referência identitária, o território define tanto

aquilo que lhe pertence como aquilo que ele exclui”. O que é facilmente verificável nas

entrevistas com retornados: o processo de retorno está por diversas vezes vinculado ao

contraste obtido entre o território de destino e o de procedência. Ou seja, aparentemente

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ocorre, em muitos casos a territorialização na sua dimensão econômica, precariamente –

diga-se de passagem – mas, muitas vezes, não ocorre na sua dimensão simbólica. Por

exemplo: a mesma moradora de Reriutaba, citada anteriormente, quando vivia no Rio,

estava empregada, assim como seu marido, mas ambos trabalhavam no Centro do Rio e

residiam em Tribobó, um bairro distante do município de São Gonçalo, considerado por

muitos uma cidade dormitório. Esta migrante encontrava-se em termos econômicos

aparentemente melhor que vivendo em Reriutaba, pois estava empregada, tanto ela quanto

seu marido, e havia perspectiva de melhora econômica, mas em seu depoimento, mostra o

quanto sentia-se abalada emocionalmente vivendo no Rio, especialmente por estar longe

dos familiares e por ver seu filho sendo criado em um ambiente metropolitano, inferior

(sic), do ponto de vista das relações sociais, ao ambiente do sertão cearense.

A territorialidade desta retornada parece determinar o grau de desterritorialização

do lugar de origem, e concomitantemente o grau de reterritorialização no lugar de destino.

O recrudescimento do debate acerca da identidade tem provado constantemente que a

globalização apesar de ter trazido uma super valorização das relações de consumo e da

importância do dinheiro, trás também um retorno aos territórios simbólicos onde os ícones

desse momento perdem a força, sobretudo para aqueles que sempre foram desprovido

deles.

Paulo, morador de Varjota, é um caso muito interessante, apesar de não ser único.

Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, não se considera carioca, pois seus pais,

migrantes desta mesma cidade foram para o Rio de Janeiro e São Paulo várias vezes,

retornando sempre na intenção de reiniciar a vida no lugar de origem. Numa destas

migrações para o Rio, Paulo nasceu acompanhando os pais a sua cidade de residência aos

sete anos. Em Varjota viveu o fim de sua infância e adolescência até os dezesseis anos,

quando migrou sozinho para o Rio à procura de trabalho.

Do seu exemplo tirar algumas conclusões, mas destacaremos duas. A primeira diz

respeito a discussão que propusemos no início deste capítulo, de que os atuais métodos

demográfico/estatísticos já não dão conta da complexidade da questão migratória, já que

esta há muito deixou de ser apenas uma questão quantitativa. O jovem citado apesar de ter

nascido no Rio de Janeiro, não se considera carioca porque sua trajetória individual não lhe

permite ser considerado como tal, identifica-se com tudo que é da cidade de Varjota, e

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tendo por base sua história e o modo como prefere ser visto – um varjotense – tendemos a

lhe considerar um migrante retornado, mesmo que o discurso estatístico não lhe outorgue o

“título” de cearense. “(...) Eu gosto muito daqui, eu sou fanático pelo Ceará, pela Varjota,

então ... eu tenho até mais amor por aqui que minha própria terra natal que foi o Rio. Então

me considero mais cearense de que carioca” (Paulo, retornado jovem do Rio e de São

Paulo, morador de Varjota – entrevista em janeiro de 2006).

A outra conclusão que fazemos deste exemplo é uma conseqüência da primeira. Se

devemos lhe considerar um retornado porque ele se identifica com o lugar onde foi criado

e se territorializou, logo podemos depreender que também existem aqueles que estão numa

situação de nascimento similar a de Paulo, mas que ao contrário dele, identificam-se com o

lugar de nascimento, ou usam-no como uma estratégia identitária.

Outro exemplo interessante é o do filho de uma retornada. Francisca, retornada do

Rio de Janeiro, moradora de Guaraciaba do Norte, disse que seu filho, assim como Paulo,

nasceu no Rio e se criou no Ceará, porém, por força das necessidades, ele migrou para o

Rio em busca de trabalho. Lá chegando, montou uma banca de camelô em Macaé. Para

fugir da alcunha de “ceará” que o perturbava, mostrou seu documento de identidade

provando que era carioca e finalizando a chacota. Isso mostra que a questão da identidade,

que passa pelo território, deve ser analisada à luz das estratégias de territorialização dos

sujeitos. Especificamente ao caso de Paulo, retornaremos no capítulo três.

Haesbaert (2005) nos mostra que é possível investigar o território (e supomos que

também a identidade territorial) por meio de dois “tipos ideais”: um mais funcional e outro

mais simbólico. Como “tipos ideais” nunca se manifestam de maneira pura, servem de

maneira teórica para mostram a importância maior de uma ou de outra acepção. No caso de

Maria Nilma, percebemos na sua fala que há uma clara evidência da força simbólica do

território de origem na sua decisão de retornar. Mas sabemos que não são em todos os

casos que isso se manifesta. No mesmo texto, Haesbaert nos mostra um quadro que

apresenta as características dos tipos ideais. Convém que o reproduzamos para melhor

expor nosso argumento:

“Território funcional”Processos de Dominação

“Territórios da desigualdade”Território sem territorialidade(empiricamente impossível)

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Princípio da exclusividade(no seu extremo: unifuncionalidade)

Território como recurso, valor de troca(controle físico, produção, lucro)

“Território simbólico”Processos de Apropriação

(Lefebvre)

“Territórios da diferença”Territorialidade sem território

(ex.: “Terra Prometida” dos judeus)Princípio da multiplicidade

(no seu extremo: múltiplas identidades)Território como símbolo, valor simbólico

(“abrigo”, “lar”, segurança afetiva)

Levando-se em consideração que a identidade territorial “é uma identidade social

definida fundamentalmente através do território” (Haesbaert, 1999: 02), devemos ressaltar

que o migrante nordestino de um modo geral, quando chega no “Sul”, tem uma relação com

este território muito mais funcional, enquanto a percepção do seu território de origem é

muito mais simbólica. O retorno, em muitos casos que investigamos, deu-se porque o peso

simbólico foi maior que o funcional e isto é o que pretendemos mostrar neste trabalho.

Por outro lado, os retornados já se modificaram a partir do contato com os territórios

que, ao menos funcionalmente, diferenciam-se do seu território de origem. E levam estas

mudanças aos seus lugares quando retornam. Mostrar estas mudanças também é um dos

nossos objetivos.

Castells (1999b: 79) percebe em sua investigação sobre a identidade no final do

século XX a importância destes contatos na construção de perspectivas alternativas,

mostrando que

As pessoas se socializam e interagem em seu ambiente local, seja ele a vila, a cidade, o subúrbio, formando redes sociais entre vizinhos. Por outro lado, identidades locais entram em interseção com outras fontes de significado e reconhecimento social, seguindo um padrão altamente diversificado que dá margem a interpretações alternativas.

As interpretações alternativas das quais Castells fala, mostram uma diversidade de

pensamentos interpretativos acerca do papel dos lugares e dos territórios (em seus sentidos

funcional e simbólico) no mundo atual, pensamentos que vão desde o ressurgimento das

comunidades numa escala local, até os territórios-rede das “cidades flutuantes móveis”

(Haesbaert, 2004: 300) ou do narcotráfico carioca (Souza, 1995: 94). Cabe perguntar se o

mais adequado para pensarmos uma identidade dos retornados não seria vê-la à luz da

hibridização de territorialidades, onde a territorialidade mais funcional do Rio de Janeiro ou

São Paulo se mesclaria a territorialidade mais simbólica vivenciada no território de origem.

Se pensarmos que os territórios e as territorialidades, especialmente se os virmos sob o viés

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ambivalente funcional/simbólico, se dão, antes de tudo em lugares, podemos crer que

Massey (2000: 184) responde a essa pergunta ao nos mostrar um novo sentido do lugar:

(...) o que dá ao lugar sua especificidade não é uma história longa e internalizada, mas o fato de que ele se constrói a partir de uma constelação particular de relações sociais, que se encontram num locus particular (...) Trata-se na verdade de um lugar de encontro. Assim, em vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se imaginá-los como momentos articulados em redes de relações e entendimentos sociais, mas onde uma grande proporção dessas relações, experiências e entendimentos sociais se constroem numa escala muito maior do que costumávamos definir para esse momento como o lugar em si, seja uma rua, uma região ou um continente. Isso, por sua vez, permite um sentido do lugar que é extrovertido, que inclui uma consciência de suas ligações com o mundo mais amplo, que integra de forma positiva o global e o local (grifos da autora).

Pensando dessa maneira, cremos que os retornados vivenciam essa “ambigüidade

espacial” de modo espontâneo e, embora dêem mais valor aos territórios de origem, ora ao

seu aspecto funcional, ora ao seu aspecto simbólico, é no território de procedência ou de

destino, ou seja, o território para onde migrara, que se processa a hibridização de sua

identidade, mesclando o rural cearense ao urbano/suburbano metropolitano. Quando se

observa uma residência de qualquer migrante no Rio, ou em outro lugar típico de migração

nordestina do Centro-Sul, percebe-se símbolos e atitudes comuns dos lugares de origem. Da

mesma forma no lugar de origem, os retornados apresentam em seu cotidiano os frutos

híbridos do período de migração: roupas, falas, alimentos, gostos musicais, ambientes

construídos etc.

Desse hibridismo os cearenses adotam uma nova identidade territorial, mais uma a

ser agregada as outras: a do nordestino. Conforme veremos adiante.

1.3.2.2A questão da região e da identidade regional para os migrantes cearenses

Falar da migração de cearenses é necessariamente falar de uma especificidade. Ao

tratarmos do fenômeno migratório no mundo, podemos achar muitos pontos de

coincidência, muitos pontos de convergência com outros eixos migratórios, podendo,

inclusive em muitos momentos fazer analogias, mas a migração de cearenses possui uma

singularidade, uma especificidade inerente à sua constituição que outros eixos migratórios

não possuem. Esta característica singular é a constatação e o surgimento da identificação

com a noção de região Nordeste. Por outro lado, esta singularidade deixa de existir quando

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mencionamos eixos migratórios que liguem metrópoles do Centro-Sul brasileiro às outras

áreas da caatinga para além do Ceará.

Impossível é falar da migração de cearenses ou outros nordestinos, sem mencionar a

questão da região que lhes dá nome. O Nordeste, para muitos, inclusive em rodas letradas e

formadoras de opinião, soa como algo mítico, quase uma religião ou, como diria Francisco

de Oliveira (1977), uma re(li)gião.

O Nordeste, no entanto, é realmente esse elemento merecedor de tanta sacralidade?

Achamos que não. Mas não basta, em um trabalho que se pretende acadêmico, uma opinião

lançada de maneira rápida e sem muitos esclarecimentos. Evidentemente, não podemos

discorrer profundamente sobre esta resposta, pois isto requereria esforço demasiado para

uma dissertação que não trata sobre este tema, mas cremos que a partir do entendimento do

conceito de região, do surgimento do Nordeste (já mencionado no início deste trabalho) e

de como a noção desta região é utilizada no discurso dos retornados, conseguiremos

esclarecer nossa resposta e, sobretudo, ajudar a esclarecer um pouco mais o processo de

retorno e o migrante retornado.

O discurso de fim da História abraçado por muitos deu subsídios suficientes para a

invocação do “fim” de diversos conceitos e matrizes de pensamento, como já dissemos.

Não é possível identificar quais os maiores beneficiados com este discurso, mas já se nota

alguns efeitos negativos na Geografia. Um deles é certamente o fim do lugar e da região. O

primeiro, como vimos, passa por uma re-significação. Já este último coube um “limbo”

epistemológico, que o fez parecer totalmente sem utilidade dentro desta disciplina

acadêmica, a não ser para fazer menção a um período ultrapassado na Geografia, para

localizar uma determinada área ou para fins de dominação política. Curiosamente, Lacoste

(1993) nos mostra que sua crítica ao uso do conceito de região continua muito atual na

medida em que é utilizado pelos movimentos regionalistas, afinal, a região pode gerar uma

identidade territorial em muitas pessoas, o que dá respaldo ao seu uso como discurso

político. Discurso este envolvido mais em uma retórica com a finalidade de defender

aristocracias, do que com vistas a defesa dos direitos e deveres dos cidadãos. Nestes termos

a crítica de Lacoste é pertinente e deve ser defendida. Segundo ele a região “é um dos

obstáculos capitais que impedem de colocar os problemas da espacialidade diferencial, pois

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admite-se, sem discussão, que só existe uma forma de dividir o espaço” (p.62). Afirma

ainda que

Essa maneira de recortar a priori o espaço num certo número de “regiões”, das quais só se deve constatar a existência, essa forma de ocultar todas as demais configurações espaciais, às vezes bastante usuais, foram difundidas, com um enorme sucesso na opinião, através de manuais escolares e também pela literatura e pela mídia. Esse sucesso, bastando ver a importância dos argumentos geográficos utilizados nos movimentos “regionalistas”, é talvez uma espécie de reação inconsciente que vai ao encontro da superposição das representações espaciais provocadas pelo desenvolvimento da espacialidade diferencial: a região “vidaliana”, imaginada como o fruto de uma sutil e lenta combinação de forças da Natureza e do Passado, apresentada como a expressão de uma permanência, de uma autenticidade é, sem dúvida, para a maioria das pessoas, um meio de “aí se encontrar” dentro da confusão de outras organizações espaciais, de maior ou menor envergadura (p.64, grifos do autor).

O que é intrigante, porém, é o fato de que no atual momento do mundo, onde o

modelo capitalista atinge sua forma mais abstrata e, por isso, mais eficiente, a prática

geográfica assume cada vez mais, em relação ao conceito de região, um posicionamento de

desuso, quando não, até mesmo de aniquilamento. É certo que a crítica de Lacoste tem

fundamental importância para que entendamos a retórica dos “geografismos”. Desse modo

podemos até endereçá-la aos meios de comunicação, especialmente o jornalismo (que

utiliza de maneira abusiva a noção de região), mas não podemos abandonar, de maneira

nenhuma este conceito, apesar de termos clareza que a “região-personagem” é um conceito-

obstáculo na medida em que o discurso que se faz dela, valoriza-a excessivamente dando-a

o status de matriz epistemológica. Todavia, a crítica de Lacoste ainda possui um elemento

que não podemos deixar de mencionar: as diversas outras “configurações espaciais”. O

espaço tornado elemento do geógrafo, especialmente a partir do uso da região lablacheana

(ou vidaliana, no dizer de Lacoste) como método geográfico, escureceu outras

espacialidades que não fossem aquelas surgidas na mentalidade do geógrafo.

(...) Os geógrafos, de algum modo, acabaram por naturalizar as idéias de região: não falam eles das regiões calcáreas, de regiões gramíticas, de regiões frias, de regiões florestais? Eles utilizam a noção de região, que é fundamentalmente política, para designar todas as espécies de conjuntos espaciais, quer sejam topográficos, geológicos, climáticos, botânicos, demográficos, econômicos ou culturais(p.65, grifo do autor).

A crítica de Lacoste é procedente e nos leva a uma reflexão sobre o uso inadequado

do conceito, porém para tratarmos da questão migratória envolvendo nordestinos, é mister

que se use o conceito. Então como podemos usá-lo sem que a crítica deste autor no s

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abarque? Antes de tudo cabe observar que este autor não deixa claro como considera o

elemento cultural dentro da constituição de uma região. Neste sentido Haesbaert talvez

aponte para uma possibilidade de solução. Segundo ele uma região deve ser

Um espaço (não institucionalizado como Estado-nação) de identidade cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco “regional” de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução (Haesbaert,1997[1988]: 51).

Dessa maneira, Haesbaert, diferentemente de Lacoste, nos mostra que a região para

se constituir como um espaço político, até mesmo para se afirmar como tal, necessita

sempre de um aspecto cultural muito importante: a identidade.

Para além da crítica de Lacoste, Haesbaert, em outra circunstância (2001), mostra

que outro momento de queda do conceito de região ocorreu com a ascensão da corrente que

vê o surgimento de uma “sociedade em rede” (Castells, 1999a) e da hibridização do

mundo, da relação incessante entre conexão global e fragmentação. Ressaltando a

importância dos lugares no mundo pós-moderno. Parece então que começa a haver relação

entre aquilo que apresentamos sobre o lugar no item anterior e agora sobre a região. Ou

seja, aparentemente há uma noção de que a sociedade em rede, que daria margem a uma

ascensão dos lugares, destruiria a noção de região. De um certo ponto de vista, sim (visão

dos geógrafos governamentais), mas o que testemunhamos com os retornados nos prova o

contrário.

O lugar, desse modo, está vinculado à região segundo os processos de configuração

dos lugares e de relação entre eles a partir dos seus respectivos territórios. A região

conjugada ao lugar da Geografia Humanista é apreendida aqui como a espacialidade que

compõe o espaço vivido. Uma espacialidade que abarca uma escala mais ampla, portanto

com uma influência mais branda que a do lugar no cotidiano. Para melhor compreendermos

convém observar o esquema de Moles e Rohner (apud Frémont, 1981):

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Apesar de a região e de o lugar sofrerem este processo de extinção conceitual no

atual momento da modernidade, o lugar reconfigura-se frente à imposição do modelo

econômico global. Essa reconfiguração se dá por meio da superação da noção de “espaço

vivido” proposto pela Geografia Humanista, e por essa razão dissemos que o lugar, apesar

da sua emergência em termos práticos, tem sofrido um declínio teórico na Geografia,

especialmente na brasileira. É válido que se questione se realmente essa noção não deve ser

retomada ulteriormente, de preferência com base em reflexões teóricas mais aprofundadas

– parece-nos que os trabalhos de Santos ([1996] 2002), Carlos (1996) entre outros já

apontam para esta necessidade.

Esta necessidade torna-se proeminente ao vermos que a noção de identidade é

elaborada antes de tudo no lugar do cotidiano, do espaço vivido. E isto acaba por desaguar

na necessidade de novas abordagens do conceito de região, pois a emergência dos lugares

no período da globalização parece dar origem também a uma nova perspectiva da região,

como um conjunto de lugares de uma determinada cultura, dando origem a uma identidade

regional.

O caso dos migrantes cearenses é exemplar. A saída de muitos cearenses de sua

cidade no interior, em muitos casos, diretamente da zona rural destas pequenas cidades a

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caminho da metrópole, choca e transforma o indivíduo. A desterritorialização se manifesta

muitas vezes na sua dimensão simbólica, por meio de um “estranhamento” do novo lugar, e

também se manifesta no nível mais concreto, quando estes são reclusos em áreas onde vão

reconstruir seus lugares e territorialidades de origem, áreas onde os integrantes das cadeias

migratórias se estabeleceram, no caso da metrópole carioca, a Rocinha, Rio das Pedras e

em alguns bairros periféricos dos municípios de São Gonçalo, Niterói, Itaboraí, Duque de

Caxias e Nova Iguaçu.

É no contato com o novo território, expresso no lugar, que os migrantes se

reconhecem como diferentes dos “nativos” e daí surge sua identificação com a região, que

antes era remota em suas mentalidades agora é uma necessidade. O espaço vivido do

retornado, torna necessária acionar uma identidade até antes pouco ou nunca acionada: a

identidade regional. Tal identidade para os migrantes cearenses e, cremos, outros migrantes

dos estados do Nordeste no Centro-Sul, não vem pronta, preestabelecida. É no decorrer de

sua reterritorialização no novo lugar que se dará a formação da identidade regional. É no

“Sul” que o cearense do interior, da zona rural, torna-se nordestino, pois é lá que ele será

rotulado como “paraíba” ou “baiano”, “cabeça-chata”, “ceará” etc.

O cearense das cidades pesquisadas vivem um “espaço vivido” muito próximo

daquilo que o esquema anterior mostra, mas ao contrário do esquema, o espaço regional só

é considerado pelo indivíduo a partir de fora, ou seja, diferentemente de uma esporádica

visita aos outros lugares que compõem sua região natal, o migrante cearense em muitos

casos não tem sequer a noção da região a qual seu estado está inserido. Mas é no local de

imigração, no contato com migrantes de outros lugares no interior desta região,

condicionados às mesmas circunstâncias sociais de subserviência e, também, por meio

daquilo a que são identificados, que surge uma nova identidade territorial, não mais restrita

ao seu lugar de origem, mas abrangendo toda uma vastidão territorial que muitas vezes o

migrante só conhece por ouvir falar, a região Nordeste.

O migrante retornado então expressa a sua “nordestinidade” na maneira como se

identifica no lugar de origem com todo o Nordeste, deixa de ser somente o cearense e passa

a ser também o nordestino. Esta nova identidade está relacionada às influências simbólicas

do lugar para o qual houve a migração, a maneira como o retornado, enquanto migrante,

era visto e ao que era relacionado. “Nordeste, terra do frevo, dos verdes-mares, das belas

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praias, das mulheres cor-de-jambo”, características que muitos dos retornados com quem

conversamos nunca viveram porque não existem nos seus lugares de origem, mas que ainda

assim se identificam.

O afloramento da identidade regional é, em suma, mais uma marca do processo de

reterritorialização do migrante no Centro-Sul e tal identidade é mais um ingrediente na sua

relação com o território de origem quando este retorna, pois intensifica a relação dos

migrantes nos lugares de imigração com os que voltam aos lugares de origem. Ou seja, cria

mais vínculos entre os lugares, complexificando a rede regional.

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2. QUEM SÃO OS RETORNADOS CEARENSES?

No capítulo anterior tentamos dar um panorama dos aspectos que entendemos como

pertinentes ao estudo da questão migratória no que se refere, especificamente, ao estudo

dos retornados cearenses. No entanto, não mostramos efetivamente quem são estes agentes

e como influenciam e/ou transformam seus lugares de destino de modo relevante.

Os retornados nos levam à percepção da vivência de múltiplos territórios.

Indivíduos como os retornados experimentam mais de um território, o que os leva a

experimentar a multiterritorialidade. Mas será isto, a multiterritorialidade do retornado,

algo possível? Se pensarmos que a experiência de viver em mais de um território de

maneira sucessiva, mas manifestando suas características de forma simultânea é uma

“marca” da multiterritorialidade, não seria o migrante um dos agentes multiterritoriais mais

emblemáticos em nosso tempo? Cremos que sim, afinal, carregam consigo experiências

territoriais de outros lugares, que diversas vezes se manifestam no novo território. Isso por

si já não seria uma experiência multiterritorial?

O retorno, no entanto, indica muitas vezes algum vínculo com o passado: o resgate

de um tempo-espaço, uma reconstrução, uma fuga ou ainda o cumprimento de uma

promessa. Todas estas possibilidades nos levam a imaginar o retornado como um indivíduo

que de algum modo, não aceita com facilidade os processos de multiterritorialização. Os

trabalhos de campo têm nos mostrado que há verdade neste pressuposto, mas que também

ocorre o contrário.

No capítulo anterior também intentamos mostrar que a Estatística, apesar de

importantíssima para os estudos populacionais e para as ações governamentais, não foi

capaz de, sozinha, apresentar uma proposta precisa para obtenção de informações sobre

retornados. Como alternativa, baseamo-nos em Cláudia Pedone para mostrar que trabalhos

de campo pautados em metodologias da Micro-História e da Antropologia, podem e devem

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ser usados como recursos metodológicos capazes de apresentar resultados substanciais,

desde que sejam aplicados em uma pequena escala.

Além disso, os trabalhos de campo permitem uma perspectiva mais abrangente às

verdadeiras causas e conseqüências do fenômeno estudado, tendo em vista que os agentes

do processo passam a ter voz, o que muitas vezes muda o pensar do pesquisador e, em

diversas ocasiões, altera os rumos da pesquisa.

Pensando assim, vemos que os retornados não podem ser enquadrados

genericamente como têm sido em um grupo homogêneo e totalmente indistinto entre seus

indivíduos. Aliás, a diferenciação talvez seja uma das características mais marcantes no que

se refere aos migrantes retornados.

O Ceará e também toda a região Nordeste tem a migração como um dos seus

principais símbolos, e entendemos que o componente simbólico deve ser valorizado no

estudo migratório, tendo em vista que o lugar se manifesta na mente do migrante como um

espaço muitas vezes de significado quase sagrado (em alguns casos podemos considerar

essa afirmação de maneira literal). O Nordeste, desde seu surgimento como um discurso, de

uma maneira geral sempre foi pólo emissor de migrantes. Como fica evidente em algumas

obras artísticas já citadas aqui. Tais obras mostram que a migração sempre foi uma

característica desta região, dado que a Estatística respaldou.

As tabelas a seguir nos dão uma perspectiva do contingente populacional que o

Nordeste perdeu. Isto significou, em termos funcionais, mão-de-obra menor e menos

qualificada, redução do mercado consumidor, cidades pouco interligadas com grandes

centros, menor escolaridade etc.

Praticamente todos os estados do Nordeste perderam população para as outras

regiões, excetuando-se alguns poucos casos, como os que tiveram um saldo migratório

positivo para Santa Catarina e Rio Grande do Sul, como nos mostra o censo de 1980, e o

Maranhão que também teve um saldo positivo para toda a região Sul, segundo o censo de

1991, além de mais alguns casos menos significativos. Isto nos leva a confirmar o que os

artistas já apontavam.

É, porém, interessante notar que houve uma redução considerável da imigração

nordestina de um censo para o outro, verificou-se que cerca de 600.000 pessoas deixaram

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de migrar na comparação dos dois censos. Isto já é um indicador importante de que está

havendo uma modificação do perfil migratório da população nordestina.

Tabela 2: Saldo migratórios inter-regionais por Unidade Federativa de origem e Unidade Federativa e regiões de destino 1970/80

Estados deDestino

Estados de OrigemMA PI CE RG PB PE AL SE BA TOTAL

N -112165 -21473 -51119 -5840 -7386 -11442 -4416 -2184 -36822 -252847

MG+ES -2515 -2860 -7647 -7247 -5775 15366 6134 14975 -47848 -37418

RJ -24046 -9630 -60109 -27753 -100238 -67522 -11761 -6365 -18662 -326085

SP -18767 -53880 -163839 -49091 -108911 -320595 -100424 -38062 -398017 -1251585

SC+RS 1804 545 3721 5349 7799 10520 2076 2774 17826 52416

PR 1740 303 -9246 1495 -2538 -6336 -6646 -78 -43 -21347

MS+MT+GO

-34893 -17032 31567 -13134 -13105 -18957 -8656 -3947 -56973 -198263

DF -324380 -36245 -41497 -11575 -23257 -13687 -2082 -1432 -31265 -193479

TOTAL -221280 -140270 -361302 -107796 -253411 -412653 -125775 -34319 -571804 -2228608

RESUMO DOS SALDOS MIGRATÓRIOS INTER-REGIONAIS DO

NORDESTE COM AS GRANDES REGIÕESN -112165 -21473 -51119 -5840 -7386 -11442 -4416 -2184 -36822 -252847

SE -45329 -66369 -231595 -84091 -214924 -372751 -106050 -29453 -464527 -1615089

S 3545 848 -5525 6845 5262 4184 -4569 2696 17783 31069

CO -67331 -53277 -73064 -24709 -36362 -32644 -10738 -5379 -88239 -391743

TOTAL -221280 -140271 -361303 -107795 -253410 -412653 -125773 -34320 -571805 -2228610

Fonte: IBGE, censo demográfico de 1980, in Ribeiro (1997:26).

Tabela 3: Saldo migratórios inter-regionais por Unidade Federativa de origem e Unidade Federativa e regiões de destino 1980/91

Estados deDestino

Estados de OrigemMA PI CE RG PB PE AL SE BA TOTAL

N -159577 -26336 -44281 -651 -9286 -10104 -4079 -1737 -45187 -301238

MG+ES 1025 -1625 -8652 -3685 -5399 -7190 -2249 -540 -13525 -41840

RJ -5314 -3453 -16748 4381 -22005 -15897 -383 4454 1357 -53608

SP -16374 -50120 -101950 -16133 -69222 -186580 -57267 -8681 -252551 -758878

SC+RS 242 -238 -2083 119 37 -642 971 133 3234 1773

PR 215 -1027 -3199 -623 -1948 -5113 -1852 -396 -3067 -17010

MS+MT+GO -52502 -30737 -39752 -8547 -18967 -22221 -8467 -3224 -71796 -256213

DF -17384 -28529 -17786 -3117 -13595 -5881 -306 1088 -26037 -111547

TOTAL -249669 -142065 -234451 -28256 -140385 -253628 -73632 -8903 -407572 -1538561

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RESUMO DOS SALDOS MIGRATÓRIOS INTER-REGIONAIS DO

NORDESTE COM AS GRANDES REGIÕES – 91N -159577 -26336 -44281 -651 -9286 -10104 -4079 -1737 -45187 -301238

SE -20662 -55198 -127350 -15437 -96627 -209666 -59899 -4767 -264720 -854326

S 457 -1265 -5281 -503 -1911 -5756 -881 -263 167 -15236

CO -69886 -59266 -57538 -11665 -32562 -28102 -8772 -2136 -97833 -367760

TOTAL -249668 -142065 -234450 -28256 -140386 -253628 -73631 -8903 -407573 -1538560

Fonte: IBGE, censo demográfico de 1991, in Ribeiro (1997:29).

Pode-se notar que o saldo migratório do Nordeste é negativo em mais de 200.000

habitantes, considerando-se apenas o fluxo inter-regional, na década de 1970. Ao ser

considerado o fluxo intra-regional o saldo passa a ser negativo em mais de 2.000.000 de

habitantes na mesma década, evidenciando a importância das redes migratórias para outras

regiões, em especial para o Sudeste.

Ao observarmos as mesmas informações referentes à década seguinte (período

1980/91) notamos uma redução do fluxo, mas ainda um acentuado saldo negativo no

Nordeste, o que indicaria uma diminuição das migrações mas não um retorno significativo.

No entanto, não podemos esquecer que o retorno também está presente. Porém os métodos

estatísticos, até então, não conseguem apresentá-lo. Apesar de as tabelas não evidenciarem

claramente, elas são um dos indicadores de que o retorno já ocorria desde a década referida

e tem ocorrido em proporções cada vez maiores.

O Ceará, de modo semelhante à toda a região, mostra-se como pólo de emigração,

mantendo o saldo migratório nas duas décadas analisadas como negativo. Na tabela

seguinte, podemos observar o fluxo migratório cearense por idades ao longo da década de

1980. No primeiro qüinqüênio, os dados são estimados com base nas informações do censo.

No segundo, porém, a informação foi coletada pela contagem da população.

Tabela 4: CEARÁ – 1980/90: Saldo migratório da década de oitenta estimado a partir da informação da data fixa

Grupos Etários

Saldo Migratório

do Segundo

Saldo Migratório do

Primeiro Qüinqüênio

Saldo Migratório da

DécadaSaldo Migratório Direto (Infor. Direta) Saldo Migratório Direto (Estimado) Saldo Migratório Direto (Infor. Direta)

Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total86/91 86/91 86/91 81/86 81/86 81/86 81/91 81/91 81/91

5 a 9 -3715 -3307 -7022 -3753 -3384 -7137 -7468 -6691 -1415910 a 14 -3520 -3951 -7471 -3425 -4016 -7441 -6945 -7967 -1491215 a 19 -12140 -10827 -22967 -11428 -10491 -21918 -23568 -21318 -4488520 a 24 -25424 -19368 -44792 -23215 -17322 -40537 -48639 -36690 -8532925 a 29 -11280 -11050 -22330 -10460 -9880 -20341 -21740 -20930 -4267130 a 34 -3495 -3542 -7037 -3405 -3353 -6758 -6900 -6895 -13795

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35 a 39 -1198 -1169 -2367 -1209 -1145 -2355 -2407 -2314 -472240 a 44 -926 -1414 -2340 -843 -1257 -2100 -1769 -2671 -444045 a 49 -786 -904 -1690 -691 -812 -1503 -1477 -1716 -319350 a 54 -609 -1135 -1744 -524 -990 -1514 -1133 -2125 -325855 a 59 -591 -442 -1033 -465 -363 -828 -1056 -805 -186160 a 64 -336 -375 -711 -280 -361 -641 -616 -736 -135265 a 69 -70 -178 -248 -38 -101 -139 -108 -279 -38770 a 74 -108 78 -30 -59 44 -15 -167 122 -4575 e + -129 -347 -476 -70 -196 -266 -199 -543 -742TOTAL -64327 -57931 -122258 -59865 -53627 -113493 -124192 -111558 -235750Fonte: IBGE, censo demográfico de 1991, in Ribeiro (1997: anexo: tabela II-181).

É interessante quando observamos que em todas as idades, a partir dos cinco anos,

tanto homens como mulheres, o saldo é negativo. Isto vem de encontro às afirmações que

sugerem como únicos elementos motivadores da migração fatores naturais internos. O que

percebemos é uma rede migratória estabelecida e bem consolidada capaz de manter a

migração mesmo quando não há calamidade aviltada pelas secas, contrariando o mito de

uma região que, por ser castigada pela natureza, “expulsa” sua população.

Outro dado interessante é o fato de que as mulheres, na maioria dos casos, migram

em menor número que os homens, com exceção da faixa acima de 40 anos, sugerindo uma

independência maior do sexo feminino após uma determinada idade. Afinal, a sociedade

nordestina ainda é, de um modo geral, machista, conforme fica evidente no papel das

mulheres nos lugares de origem, como observamos, enfatizada também por um migrante

retornado.18 Porém, o que nos chamou mais à atenção e que aponta para a problemática que

ora pesquisamos, foram os números relativamente muito maiores de migrantes no início da

idade economicamente ativa. A constatação destas informações nos fazem crer que estes

migrantes lidam com os espaços de imigração de um modo mais intenso, à ponto de

engrossar a rede migratória (repare que a migração fica menos intensa à medida que a idade

diminui, um forte indicativo da migração laboral), poderíamos, inclusive, afirmar que os

jovens são os principais mantenedores da rede migratória e isto se relaciona com a

definição de retornado que tentaremos fazer mais a frente.

Retornando às tabelas, percebemos que, curiosamente, este saldo sofre uma reversão

a partir da segunda metade dos anos 1990. Ribeiro mostra evidências que permitem

(...) a formulação de hipótese segundo a qual, estaria havendo um declínio da perda líquida de população, se não em termos absolutos pelo menos em termos relativos (TLM – taxa líquida de migração). Este declínio poderia estar ocorrendo pela diminuição da

18 Eudes, retornado do Rio de Janeiro. Citação no item 3.1.

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saída de nordestinos, e/ou pelo aumento da imigração para o Nordeste, incluindo aí um fluxo migratório de retorno de naturais desta região. (p.06)

Dentre as evidências deste retorno estaria uma taxa de crescimento econômico do

Nordeste maior que a taxa do país durante as duas últimas décadas e pelo crescimento da

população entre 20 e 39 anos. Com base em Martine e Wong (1994), Ribeiro afirma que se

o Nordeste tivesse apresentando seus tradicionais padrões emigratórios, a faixa etária

mencionada teria tido um crescimento menor durante a década de 1980, porém este grupo

teve um crescimento comparativamente maior (p. 06).

Além dos dados apresentados, uma reportagem do jornal “Folha de São Paulo”, com

o título “Nordestinos deixam SP e migram de volta”, expressa de modo sintético o que as

tabelas estão apontando. Segundo a repórter Luciana Constantino, com base nos estudos do

pesquisador Herton Araújo, do IPEA, de São Paulo teriam saído aproximadamente 457 mil

pessoas, enquanto o estado recebera cerca de 400 mil da região Nordeste, ou seja, pela

primeira vez, há um saldo negativo no estado em relação a esta região. Tais dados foram

extraídos do Pnad de 2004, a última divulgada pelo IBGE19.

A partir destas informações, torna-se claro que a população do Nordeste e

especialmente o Ceará têm sofrido uma transformação. Ocorrem fatos que demonstram o

retorno, mas ainda assim pouco se sabe destes retornados. Diferentemente das inferências

feitas pela Estatística a partir dos dados censitários, procuraremos desvendar um pouco

mais do sujeito retornado e seu processo de reterritorialização, dando-lhe voz. Ou seja,

optaremos por uma metodologia que permita que as pessoas por detrás dos números

possam aparecer.

2.1 Migração: primeiro mo(vi)mento de des-re-territorialização

É pertinente lembramos que um movimento migratório é sempre um processo em

alguma medida desterritorializante (Haesbaert, 2005b:35). Mas devemos esclarecer que

quando falamos do migração de retorno, falamos implicitamente de dois mo(vi)mentos de

des-reterritorialização. Um primeiro momento de des-reterritorialização ocorre quando o

migrante deixa seu território de origem e se fixa (ou não) no território de imigração, ou

19 Jornal “Folha de São Paulo”, 26/04/2006, p. 16.

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seja, ocorre o que estamos chamando de des-reterritorialização de saída. O segundo

momento de des-reterritorialização ocorre quando o migrante deixa o território de

imigração, rumo ao seu território de origem, ou seja, ocorre a des-reterritorialização de

retorno. Levando em consideração estas afirmações, tentaremos expor como se dá este

processo nestes dois momentos para assim compreendermos melhor como ele interfere na

territorialidade dos retornados.

Entendemos que a desterritorialização, apenas de modo analítico, pode se dar em

diversos planos, logo, o migrante pode não estar desterritorializado em uma dimensão

específica, mas poderá estar em outra. Reafirmamos que esta divisão da desterritorialização

em dimensões só é possível de modo analítico porque a territorialidade do indivíduo, na

prática, tem suas dimensões indissociáveis, de maneira que uma opera na outra, muitas

vezes mesclando-se uma na outra. Considerando esta perspectiva da noção de

desterritorialização, podemos apresentar as quatro noções de desterritorialização que

Haesbaert (2005b: 35) sistematizou. Segundo ele, a noção de desterritorialização pode ser

ancorada em quatro concepções diferentes de território: uma que parte da dimensão físico-

econômica, outra que o percebe segundo um ordenamento político, a terceira ancorada na

dimensão cultural e, por fim, a mais totalizadora que vê o território como uma experiência

integrada do espaço. De acordo com esta organização, o migrante seria percebido de

maneiras diferentes segundo cada uma das abordagens de desterritorialização.

Podemos afirmar que muitos migrantes nos lugares de imigração estão

desterritorializados, no mínimo, em sua dimensão política (limitando esta dimensão apenas

à questão do domicílio eleitoral). No mínimo, não porque seja a menos importante, mas

porque talvez seja a mais “manipulável”. Os migrantes que não transferem seus domicílios

eleitorais para os lugares onde residem estão certamente desprovido de opinar, segundo

nosso modelo eleitoral, acerca dos governantes que legislarão e executarão medidas que

vão exercer influência, muitas vezes de modo contundente, em suas vidas (a não

transferência do domicílio eleitoral é uma indicação de que a intenção do migrante é de ser

breve no lugar de imigração). Neste sentido é que afirmamos que, no mínimo no plano

político, muitos migrantes na metrópoles estão desterritorializados. Sayad também percebe

a destituição do direito de eleger seus representantes como uma das ilusões do migrante.

(Nunca é demais ressaltar que este autor investiga migrantes internacionais, que vivem uma

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situação de desterritorialização muito mais atenuada, tendo em vista as muitas diferenças

internacionais de cultura, leis etc., no entanto, podemos traçar um paralelo com os

migrantes regionais, como o caso dos cearenses, ressaltando-se esta importante diferença

entre eles). Uma das ilusões do migrante seria a da neutralidade política, ilusão na qual a

natureza eminentemente política da emigração é mascarada, ou às vezes negada, em

benefício de sua única função econômica. Neutralidade esta relacionada tanto ao papel

político do próprio migrante quanto ao papel das migrações.

Nossa argumentação, contudo, pode dar a entender que estamos reduzindo a noção

de política ao considerar como desterritorialização política o fato dos migrantes não

elegerem seus representantes, mas Haesbaert (1997) nos mostra que os migrantes – como

matriz identitária – podem e têm força que em muitos casos geram-lhes poder, como é o

caso dos gaúchos no oeste baiano, por outro lado também fica explícito que não há uma

determinação dos migrantes à uma neutralidade política, como nos mostra a eleição de

Luíza Erundina, levada à prefeitura de São Paulo praticamente pelo voto dos migrantes

nordestinos e seus descendentes. Mas devemos ressaltar que no caso dos cearenses

pesquisados, não há uma preocupação clara com as questão política do ponto de vista

eleitoral nos lugares de imigração.

Se observarmos o caso das eleições no Brasil isso fica evidente. Milhares de

migrantes deixam de votar simplesmente pelo fato de estarem a muitos quilômetros de

distância de seus domicílios eleitorais, a maioria das vezes seus territórios de origem. A

postura satisfeita de muitos deles frente à obrigatória abstenção do voto pode ser visto

como um indicador da ausência de posicionamento crítico diante da condição, na maioria

das vezes econômica, que o fez migrar e conseqüentemente abrir mão desse direito, o que

mostra que os migrantes são facilmente manipulados por interesses políticos20. Neste

sentido, o caso da disputa entre os programas de retorno de migrantes promovido pelo

20 De 2004 a 2006, o autor teve a oportunidade de ser membro da mesa de uma seção eleitoral no município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, importante pólo de moradia de migrantes cearenses. Tal experiência fez com que o autor afirmasse a “postura satisfeita” dos migrantes frente a abstenção. Há que se considerar que a maior parte da procura de eleitores na seção foi para justificar a ausência aos seus domicílios eleitorais, leia-se Nordeste, especialmente o Ceará.

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governo do estado do Rio de Janeiro e o projeto de lei da Alerj que visava ao mesmo

propósito é emblemático21.

A desterritorialização política é marcante na trajetória dos migrantes nos lugares

para onde migram, mas, por si só, não o torna um “total desterritorializado”22.

Os cearenses no Rio de Janeiro (região metropolitana – nossa principal base de

pesquisa de onde partem para o retorno) encontram-se desterritorializados, muitas vezes, do

ponto de vista político, em outros casos, no âmbito econômico, ou cultural (simbólico), ou

ainda, nos três aspectos citados, o que seria a perda de uma “experiência total” ou integrada

do espaço. Isso nos levaria a crer que o migrante que passa por esta última estaria mais

desterritorializado, porém uma simples análise nos levaria a um falso entendimento do que

é a desterritorialização para um cearense no Rio de Janeiro, e para qualquer outro migrante

em qualquer outro lugar, pois, conforme nos mostra Haesbaert (2005b: 38), para falarmos

em desterritorialização do migrantes devemos levar em consideração as diferenças que se

apresentam segundo:

a. as classes sociais e os grupos culturais a que estão referidas;

b. os níveis de desvinculação com o território no sentido de:

b1. presença de uma base física minimamente estável para a sobrevivência do

grupo social, o que inclui seu acesso à infra-estrutura básica;

b2. acesso aos direitos básicos de cidadania, garantidos, ainda hoje, sobretudo

no interior do território estatal-nacional onde o migrante esteja situado;

b3. referenciais espaciais que compõem uma identidade sociocultural.

Ou seja, é preciso, no dizer do autor, que se reveja o significado da noção de

“experiência total”, proposta inicialmente por Chivallon, mas que está vinculada a um

21 Os governos do município do Rio de Janeiro e do estado do Rio de Janeiro possuem, cada um, um programa de retorno de imigrantes, o “De volta à terra natal” e “De volta ao meu aconchego” respectivamente. Além destes, a Alerj aprovou um projeto de lei com o objetivo de tornar o retorno obrigação do estado, mas foi barrado pela governadora Rosinha Matheus sob a alegação de que o governo do estado já possui um programa com essa finalidade. (O Globo, 13/07/2005).22

É um pressuposto o fato de não existir ninguém totalmente desterritorializado. Há sempre um plano mínimo de territorialização a depender das situações a que são submetidas os indivíduos, no nosso caso os migrantes. Mesmo quando há uma territorialização forçada poderíamos falar em um plano mínimo, talvez o funcional, de territorialidade (sobre este tema ver Haesbaert, R. Muros, “campos” e reservas: os processos de reclusão e “exclusão” territorial. No prelo).

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espaço contínuo e estático, em função de uma “experiência integradora do espaço”

(Haesbaert, 2004:341).

Sem essas considerações torna-se impossível a análise mais profunda dos migrantes,

especialmente dos retornados, com vistas ao entendimento do(s) processo(s) de

desterritorialização. Afinal, surgem motivos diferenciados para o retorno quando se

considera os aspectos citados acima na história individual de cada migrante. Muitos desses

motivos os remetem ao que chamamos anteriormente de garantias mínimas. Exemplo disso

pode ser apresentado ao compararmos o caso do Sr. Francisco Rego, empresário, dono de

uma rede de restaurantes finos no Rio de Janeiro. Após se tornar um empresário de sucesso,

retornou a São Benedito, um dos municípios investigados, para residir, no entanto, mantém

também residência no Rio de Janeiro, onde estão seus negócios. Este retornado certamente

não viveu, ao menos depois de se tornar empresário, o mesmo nível de desterritorialização

do Sr. José de Arimatéia, que retornou para o município vizinho, Guaraciaba, e que

trabalhou também no ramo de restaurantes no Rio de Janeiro:

No Rio de Janeiro, passei dois anos trabalhando num restaurante. As panelas “cabiam eu” dentro ... passei dois anos. Com dois anos que eu estava lá, eu vim. Aí eu plantei horta, não deu certo, eu voltei de novo para o Rio. Aí nessa vez que eu sofri ... na segunda vez eu tinha vinte e três [anos], na primeira vez eu tinha dezenove, né? [Na primeira vez, não juntei] nem uma bala! Vim pra cá só com a roupa mesmo e uma “mixariazinha”. Na segunda vez que eu fui, não juntei nada também ... Lá no Rio de Janeiro pra mim, só foi ilusão (José de Arimatéia, morador de Guaraciaba do Norte – entrevista em julho de 2003).

Podemos dizer que, neste caso, o elemento mais relevante a ser considerado para

diferenciarmos estes retornados é o da classe, mas todos os aspectos que Haesbaert

apresentou devem ser considerados na análise da reterritorialização dos retornados. A

classe, contudo, deve ser um aspecto primordial a ser considerado quando tratamos do

retornados. A depender deste elemento podemos notar uma desterritorialização mais ou

menos aviltada, nos territórios de destino, tendo em vista que a dimensão econômica é

sempre um elemento muito importante (apara não dizer o principal) na des-

reterritorialização. E por isto muitos vêem no retorno uma maneira de reverter um

“insucesso” econômico à qual foram submetidos ao chegarem a lugar de imigração.

Há casos e casos. Evidentemente existem cearenses que deixam seus territórios de

origem, por não possuírem as mínimas condições de se manter nele. Isso é comum nas

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imagens-símbolo do Nordeste: o flagelado, faminto, sedento e subnutrido. Mas há que se

considerar que, devido, em grande parte, aos projetos governamentais (como os perímetros

irrigados já citados e as bolsas-auxílio do governo federal), o flagelo absoluto

proporcionado pelas secas está mais atenuada. Além disto, a influência da rede migratória

nos lugares de origem, começaram a surtir algum efeito, como fica evidente, mesmo

reconhecendo excessos, na fala do retornado a seguir:

Não tinha [nenhum parente]. Não ia ninguém “pra” lá [Sudeste]... [19]51, [19]52, [19]53 já começou a ir homens. Já botaram os “paus-de-arara” e já começou “irem” gente de todo jeito. E os homens começaram a levar mulheres, depois entrou essas empresas de ônibus, asfaltaram as estradas, que não tinha asfalto em lugar nenhum, tudo chão de terra, da Fortaleza até o Rio de Janeiro onde a gente chegava. E começaram a se organizar e ficou esse “intrecâmbio”, e o Nordeste todo melhorou ... porque as famílias começaram a ir e virou esse tráfego de gente. ‘Pra” lá e “prá” cá, vai mulher, vai homem, vai e volta e virou essa bagunça que “tá” hoje. Melhorou muito “prá” quem ficou e melhorou “prá” quem foi: empregou-se e ganhou um dinheiro e melhorou, e quem ficou melhorou com o recurso deles. Com esse povo que fica por lá trabalhando em casa de família, arruma muita roupa, muito calçado velho, mandando “prá” eles aqui, de “maneiras” que ficou todo mundo bem vestido, ninguém conhece mais ninguém por roupa. Se tem alguma coisa ou se não tem nada. Porque naquele tempo a gente via pessoas, via uma pessoa bem vestida, que era criado daqui, dizia: essa pessoa vive bem ... mas hoje não, acabou-se isso ... Todo mundo vive bem vestido e é (tanta) roupa que fazem é instruir ... o pobre andava semi-nu (Seu Massilon, 76 anos, retornado maduro do Rio de Janeiro, morador de São Benedito – entrevista em janeiro de 2006).

Seu Massilon acentua a importância dos migrantes no envio de remessas e produtos

da metrópole para os lugares de origem, alterando de maneira significativa a aparência dos

lugares. Obviamente, sua fala está repleta de exageros, os quais ressaltamos com grifos,

mas temos que considerar que o aspecto de miséria era realmente muito mais evidente nos

anos em que tiveram início as migrações motivadas pelo Estado (a partir da década de

1950), do que posteriormente, de acordo com as falas de outros retornados.

O que percebemos, no entanto, ao menos nos lugares onde estivemos durante os

trabalhos de campo, foi uma espécie de migração que nas décadas mais recentes não foram

motivadas claramente pelo rigor climático, como no caso das secas, mas impulsionada por

uma rede migratória bem estabelecida, vinculada ao imaginário mítico do “Sul”. Gerando

uma falsa impressão que a migração mais recente foi desejada e planejada. Não foi por uma

extrema necessidade, mas, sobretudo, por vontade.

Além da desterritorialização política, da qual já discorremos um pouco, o migrante

passa a viver no lugar de destino, uma desterritorialização econômica quando não consegue

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o emprego e a renda necessários e sua condição material se precariza. Observemos o que

fala este migrante:

Aqui é melhor [estar desempregado] do que lá [no “Sul”] com certeza. Aqui é perto da família e quando você não está empregado em trabalho certo, você vai fazer alguma coisa pra você mesmo, plantar alguma coisa e aí se vai levando (...) A gente aqui nunca fica parado não (...) (Sérgio, 26 anos, retornado jovem do Rio de Janeiro, morador de Guaraciaba do Norte – entrevista em julho de 2003).

Na série de reportagens do jornal “O Globo” intitulada “Vida Severina” os

repórteres Paulo Marqueiro e Selma Schmidt narram as histórias de diversos migrantes.

Alguns deles, que não encontram emprego, confirmam o que Sérgio, o entrevistado

anterior, mostra em sua fala: é melhor estar desempregado no lugar de origem do que no

lugar de imigração, pois há certamente mais meios de sustento, mais familiares próximos

do que aquilo que a cadeia migratória (e seus elos) podem proporcionar.

Por outro lado, a dimensão cultural ou simbólica da desterritorialização, traz-nos a

idéia de uma perda apenas em aspectos pouco ou nada palpáveis, imateriais, subjetivos, e

por isso menos importantes. Isso não é verdade. As entrevistas trouxeram à tona os

sentimentos presentes no imaginário do imigrante que, em muitos casos, estimulam

fortemente o retorno. A dimensão simbólica da desterritorialização proporciona, em nosso

entender, uma desterritorialização que está muito próxima daquela concepção integrada do

espaço, abarcando todas as outras, afinal de contas, é por causa, muitas vezes, das privações

econômicas, da invisibilidade e da segregação aos quais são submetidos os migrantes que

se manifesta simbolicamente a necessidade do retorno. Para sermos mais claros, o desejo

do retorno que seria motivada pela saudade unicamente, ou seja, uma motivação

característica da dimensão simbólica, é na verdade uma conjunção de aspectos

desterritorializantes referentes aos planos políticos, econômicos e também simbólicos. A

desterritorialização, para ocorrer, necessita que um ou todos os aspectos sejam afetados,

mas quando isto ocorre os seus discursos refletem como elementos principais motivadores

aqueles relacionados apenas ao aspecto simbólico.

Na reportagem citada anteriormente também é apresentada a história de Queila, 16

anos, casada, moradora de Hidrolândia (Ceará) que decide ir ao encontro do marido que

está no Rio de Janeiro. Ao final de dois meses, está determinada a retornar. Na reportagem

ela afirma que sente saudade de sua mãe e avó. Se levássemos em conta somente essa

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afirmação, poderíamos crer que seu desejo de retorno é motivado pelo aspecto simbólico da

desterritorialização, mas na verdade é mais do que isso: confinada em um quarto na favela

Rio das Pedras, começou a tecer redes de pesca mas parou porque seus pulsos incharam,

depois passou a fazer salgadinhos para vendê-los nos fins de semana, e pelo que a

reportagem mostra, seu cotidiano se resumia a isso (O Globo, 22/05/2005). Logo, a

desterritorialização que aparentava ser apenas fundamentada em seu aspecto simbólico,

agora mescla-se também ao econômico e à precariedade da sua condição.

Em alguns momentos das pesquisas de campo, percebemos que o argumento

simbólico se manifestava para justificar o retorno. A Sra. Teresinha é um exemplo. A

retornada madura, cuja menção já foi feita no item 1.2.1, ao nos responder a pergunta: “por

que retornou?” afirmou que retornara por que quisera, pois “seu lugar era no Ceará”, mas

durante a entrevista também disse que retornava quando “os meios de vida ficavam mais

difíceis lá [no Rio]”, posteriormente com os relatos de seu filho, Paulo, também

entrevistado, e com os relatos já feitos, notamos que o elemento motivador do retorno, no

fundo, era econômico. Suas idas ao Rio de Janeiro, deram-se por motivos eminentemente

econômicos, apesar de afirmar que retornara porque quisera, evidenciando um elemento

simbólico.

Constatamos que a dimensão simbólica no lugar de imigração está mais presente do

que imaginávamos na decisão de retornar. Ademir Ferreira já comprovara o que agora

afirmamos no seu estudo sobre migrantes nordestinos em manicômios (Ferreira, 1999). A

perda dos laços diretos com o território de origem causa ao migrante muitas vezes danos

emocionais e afetivos a ponto de levar alguns a quadros psicóticos. Entre uma

desterritorialização dolorosa, vendo o território segundo uma perspectiva totalizante, e uma

reterritorialização conflitiva, instala-se uma crise. Ferreira mostra essa argumentação ao

citar Begag e Chaouite. Estes autores

Entendem esse tempo como sendo o tempo de uma experiência traumática, que envolve o temor da perda definitiva dos objetos que ficaram para trás e a estranha incerteza com a qual ele se defronta. Esses temores vão tomando uma conotação persecutória, levando a uma atitude de desconfiança generalizada e a um sentimento de inquietude. Neste estado o sujeito sente-se comprimido e invadido por um espaço intrusivo e ameaçante. O temor despersonalizante se mistura com o fascínio da experiência desrealizante, onde o eu se vê engolfado pelo espaço circundante. Este espectro de estranheza provoca um desdobramento do eu, onde se perde os limites com o outro. Esta experiência de

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despersonalização poderá resultar na explosão psicótica, na qual o eu se vê tomado pelo outro... (Ferreira, 1999: 52. Grifo do autor).

A constatação do autor referido torna clara a importância que assume o conteúdo

simbólico na reterritorialização do migrante no lugar para onde migrou. Quando as diversas

experiências territoriais não coadunam para uma territorialização totalizante, aparentemente é

no aspecto simbólico que se manifesta a desterritorialização, como no caso de Queila e outros

que entrevistamos e serão apresentados mais a frente.

Desterritorialização, na perspectiva de Deleuze e Guatari (1996) é vista até de um

modo positivo, no entanto, para os grupos sociais que vivem uma situação de migração,

conforme já delineamos, ela não tem necessariamente uma conotação positiva. Haesbaert

(2004: 312) diz que

Desterritorialização, se é possível utilizar a concepção de uma forma coerente, nunca “total” ou desvinculada dos processos de (re)territorialização, deve ser aplicada a fenômenos de efetiva instabilidade ou fragilização territorial, principalmente entre grupos socialmente mais excluídos e/ou profundamente segregados e, como tal, de fato impossibilitados de construir e exercer efetivo controle sobre seus territórios, seja no sentido de dominação político-econômica, seja no sentido de apropriação simbólico-cultural.

É muito difícil usar o termo desterritorialização para explicar tanto a experiência de

um migrante bem sucedido economicamente no lugar de imigração quanto de um morador de

favela, de cortiços no centro ou do subúrbio, em condições sócio-econômicas tão diferentes

um do outro. Neste sentido, a noção de desterritorialização usada de modo pouco preciso

pode ser comparada à de exclusão quando é utilizada com a mesma imprecisão (Castel, 2000:

18). Procurando ser mais coerente com esta noção e com a conceituação que Haesbaert se

empenha em traçar, a desterritorialização do migrante está muito relacionada à privação, ou

ausência de algo que a territorialização anterior lhe proporcionava. Logo, concordamos com o

sentido que Haesbaert, mais a frente, apresenta.

(...) Desterritorialização, aqui, é vista em seu sentido “forte”, ou aquele que podemos considerar o mais estrito, a desterritorialização como exclusão, privação e/ou precarização do território enquanto “recurso” ou “apropriação” (material e simbólica) indispensável à nossa participação efetiva como membros de uma sociedade (Haesbaert, 2004:315. Grifos do autor).

E é nesse momento que se evidencia mais uma noção trazida por este autor e que se

aplica perfeitamente à realidade dos migrantes: os aglomerados de exclusão. Não

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imaginando os “aglomerados” somente como lugares exatos, mas também como condição

e processo imposto por lugares de ‘condição social extremamente precarizada, onde a

construção de territórios (...) se torna muito difícil, ou completamente subordinada a

interesses alheios à população que ali se reproduz (Haesbaert, 2004: 327). Muitos

migrantes encontram-se tanto numa situação desterritorializante quando deixam seus

lugares de origem como quando, muitas vezes, fixam-se territorialmente em alguma favela,

sob condições precárias. Afinal, não é necessariamente o fato de se porem em movimento

que os coloca numa territorialização em rede.

O imobilismo (e a exclusão) social pode assim ser gerado tanto pela imobilidade (física) extrema quanto pela quase completa imobilização no espaço (...) uma situação de intensa mobilidade não é, obrigatoriamente, definidora da condição de desterritorialização. Deste modo, podemos ter aglomerados de exclusão tanto numa mobilidade atroz e sem direção definida quanto na quase completa imobilidade...(Haesbaert, 2004:329).

O próprio Arimatéia, citado anteriormente, mostra que apesar de ter se deslocado, o

movimento não significou uma reterritorialização no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, no

sentido funcional, de alguma forma houve uma reterritorialização, à medida que logo que

chegou arranjou um emprego e moradia, mesmo precária (na segunda vez que veio ao Rio,

chegou a morar no restaurante onde trabalhava). Cabe também entendermos os

“aglomerados de exclusão” como lugares que expressam uma condição que significa

desterritorialização tanto no movimento migratório como na sua reterritorialização física,

aliás, o que Haesbaert (2004) com base no conceito de inclusão precária de José de Souza

Martins, prefere chamar de territorialização precária.

É exatamente a condição de exclusão imposta nesses aglomerados, onde muitos

migrantes se encontram, que os leva ao retorno, mesmo quando muitas vezes a motivação

declarada não venha a ser esta. Tanto a intensa mobilidade, em geral uma mobilidade

desterritorializada, na metrópole quanto o confinamento ou a reclusão em lugares para o

pernoite, que também não significam uma reterritorialização, reverte-se, no mínimo no

desejo do movimento de volta ao território de origem, no limite ocorrendo o retorno.

É interessante lembrarmos que Haesbaert (2004: 334) ainda faz uma importante

diferenciação na noção de “aglomerado de exclusão”. Baseando-se em Castel (2000), diz

ele que há três tipos de aglomerados: um primeiro que envolve processos de exclusão e

barbárie, ou seja, o que chamou de “etnização dos territórios”. O segundo tipo de

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“aglomerado” é o que se apresenta como lugar de confinamento, onde o controle é

exercido pelos que estão fora e, por fim um terceiro tipo, denominado de “aglomerado de

massa”que seria aquele que melhor incluiria os atores dos processos migratórios, uma vez

que estariam numa situação de crise territorial constante, mesclando territorialidades

referentes à territórios-rede e territórios-zona. O autor cita inclusive dois exemplos que

cabem perfeitamente em nossa análise, o de grupos populacionais miseráveis no interior do

sertão nordestino e nas favelas das grandes metrópoles. Ambos os grupos desenvolvem

importantes vínculos identitários com estes territórios que do ponto de vista funcional são

muito precários (2004: 335).

Muitos migrantes que vivem uma situação de desterritorialização, tanto na des-

reterritorialização de saída quanto na des-reterritorialização de retorno, esbarram na

condição de aglomerado de exclusão, mas isto não cria empecilhos para que seus laços

identitários sejam mantidos e até mesmo reforçados, ao contrário, como dissemos,

aparentemente a dimensão simbólica da sua territorialidade de origem se manifesta com

mais força. Na série de reportagens do jornal “O Globo”, citada anteriormente, a

reportagem inicial traz como manchete a seguinte mensagem: “Da miséria do sertão à

realidade da favela”, nela os repórteres procuram mostrar a relação direta existente entre

estes dois espaços, o que, em nosso ponto de vista, são espaços de inclusão precária,

gerando “aglomerados de exclusão”:

Um estudo recém-concluído pelo pesquisador Fernando Albuquerque, gerente do projeto componentes da Dinâmica Demográfica, do IBGE, revela que 40% (39.504) dos 98.808 nordestinos que migraram para o município do Rio, entre 1995 e 2000 (ano do último censo), moram em favelas. Dependendo do estado de origem, esse percentual pode ser ainda maior. Dos que chegaram do Ceará, por exemplo, 50% foram para as favelas (...) A demanda entre cidades do Nordeste é tanta que já existem linhas fazendo a ponte sertão-favela. A cada mês, pelo menos dois ônibus da Viação Itapemirim partem para o Nordeste (um para o Ceará e outro para a Paraíba) com destino às favelas da Rocinha e de Rio das Pedras (O Globo, 15/05/2005).

A primeira des-reterritorialização, podemos afirmar então, ocorre a partir dos

efeitos deste terceiro “aglomerado”, que evidencia o caráter excludente da sociedade de

chegada. O migrante é obrigado a se reterritorializar funcionalmente o mais rápido

possível, em meio a um grande apelo ao consumo, comum às sociedades de chegada,

enquanto as possibilidades reais de realização dos “desejos” lhes são negadas. Essa crise –

que gera efeitos até psicológicos (apresentada de modo mais aprofundado por Ferreira,

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1999) leva-o, por vezes, a retornar ao lugar de origem pois este lhe dá uma sustentação

territorial simbólica que o lugar da imigração não dá, mesmo quando o lugar de origem não

passa de um aglomerado de exclusão, levando o retornado a imigrar novamente.

Mais uma vez insistimos na importância que o aspecto simbólico da

territorialização assume nos dias atuais. Veremos no item 2.3 a trajetória de alguns

migrantes que expressam claramente esta afirmação na decisão de retornar aos lugares de

origem. No entanto, discutiremos, por ora, os processos que levam os retornados a se

reterritorializarem, ou não, nos seus territórios de origem, num segundo momento de des-

reterritorialização, de modo que possamos compreender melhor o sujeito retornado.

2.2 O retorno: segundo mo(vi)mento de desterritorialização

Retomando o que dissemos no início do item anterior, a des-reterritorialização para

o migrante retornado envolve dois momentos. Ao primeiro foi reservado o item anterior,

onde procuramos mostrar que o processo de des-reterritorialização para o migrante, nos

lugares de imigração, apresenta-se muito vinculado a fatores econômicos e por este motivo

levando-o, muitas vezes, a vivenciar condições de “aglomerados de exclusão”. Isto quando

a migração não se dá exatamente ligando um “aglomerado” ao outro. Tal condição leva o

migrante, em muitos casos, a optar (por falta de opção!) pelo retorno, embora não possamos

generalizar, afinal, como já dissemos, a multiplicidade de possibilidades para o retorno nos

impede de fazermos afirmações genéricas.

A transformação e a difusão dos meios de transportes e comunicações facilitou em

muito o retorno do ponto de vista dos meios, num nível que os migrantes estrangeiros que

vieram para o Brasil no início do século XX jamais poderiam vislumbrar. Logo, o retorno

assume uma posição tão importante nos dias atuais que Sayad (2000: 12) sugere que a

noção de retorno estaria no centro de uma Antropologia Total e diz que isso ocorre,

sobretudo, porque esse movimento incorpora a noção de tempo e de espaço. Vemos que

apesar de ser sociólogo, e de não mencionar explicitamente, este autor percebe que a

dimensão territorial é importante no ato migratório.

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Dessa dedução questionamos por que somente agora o retorno se manifesta como

um movimento realmente significativo? Em trabalho anterior procuramos responder a esta

questão de modo breve:

Cabe perguntar, porém, porque isso (o retorno de nordestinos) está acontecendo somente agora e não antes na década de 1970, quando o fluxo para o Sudeste era mais intenso, decorrente do “milagre brasileiro”? Parece-nos coerente afirmar que o boom desenvolvimentista empreendido no Brasil na década de 1970 e início da década de 1980, consolidou o fluxo migratório direcionado do Nordeste para o Sudeste, especificamente para as regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo, visando suprir a oferta de empregos nos setores de construção civil, metalurgia e serviços como bares, restaurantes e portarias de edifícios. A manutenção destes empregos por boa parte dos migrantes nordestinos, a constituição de famílias e criação de filhos no território dos grandes centros leva a constituição de uma “classe” nordestina neste período, fazendo com que os migrantes estabelecidos não planejem, pelo menos em curto prazo, retornar. Isso é o que ocorre com boa parte dos migrantes. O sonho do retorno, todavia, é sempre alimentado, mas a situação econômica muda fazendo com que praticamente toda a década de 1980 e até meados da década de 1990, a superinflação, em primeiro lugar, e em seguida, o desemprego, frustrem o sonho dos migrantes já estabelecidos e dos que ainda migravam (Souza, 2004:30).

Quando concluímos o trabalho do qual extraímos estas palavras, tínhamos uma

percepção menor da que temos atualmente sobre a questão do retornado cearense, mesmo

porque o trabalho não exigia o aprofundamento que modestamente tentamos empreender

agora, tendo em vista que tinha a pretensão de ser apenas uma monografia sobre o tema.

Por isso, não mencionamos o trânsito intermitente que muitos migrantes realizam entre o

lugar de imigração e o de origem antes de se estabelecerem de modo mais permanente em

um emprego, criando, assim, vínculos territoriais mais fixadores na metrópole. Apesar

destas considerações que visam a tornar mais claras as observações citadas, as inferências

são pertinentes no que se refere ao motivo que fez com que muitos retornassem a ponto de

consolidar este movimento. A maior estabilidade econômica experimentada no Brasil a

partir de meados da década de 1990, aliada a uma crescente taxa de desemprego nas

metrópoles, propiciaram a muitos migrantes fixados na metrópole o retorno. Por outro lado,

muitos jovens migrantes, cuja característica mais marcante é exatamente a indefinição

quanto ao território de fixação – como veremos mais adiante, engrossaram o fluxo de

retorno, tornando-o tão significativo.

É importante ressaltar a importância do tempo de permanência na metrópole.

Notamos a demanda para este aspecto da migração de retorno ao verificar que muitos

migrantes retornam, como dissemos logo acima, de forma intermitente. Há uma relação

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entre o retorno e o tempo de permanência dos migrantes na metrópole. Também

verificamos que há diferenças entre os retornados de acordo com o tempo de permanência

na metrópole. Contudo, não tivemos condições de investigar esta questão, apenas constatá-

la, o que, por hora, será suficiente.

A partir destas considerações, vemos o retorno como um processo de

reterritorialização que pode se dar de modo mais significativo nas suas dimensões política,

funcional e/ou simbólico. Deixando claro que todas se manifestam de modo simultâneo

interferindo mutuamente uma na outra. No entanto tentaremos analisar as possibilidades de

reterritorialização dando ênfase separadamente a cada uma delas.

Uma substancial diferença que muitos migrantes percebem nos lugares de imigração

é a alienação ao processo eleitoral. O que não significa, como vimos, que todos os

migrantes em qualquer tempo ou lugar não se mobilizem partidariamente nas eleições,

porém esta foi a constatação que fizemos quando comparamos com a mobilização política

nos lugares de origem. Muitos retornados, assim como muitos moradores locais que nunca

saíram do lugar de origem, não se afastam das campanhas. Podemos dizer então que para os

retornados, embora não se diferenciem qualitativamente do envolvimento político que

tinham nos lugares de origem, diferenciam-se em relação ao grau de envolvimento, ou seja,

ao nível de dedicação às questões político-eleitorais. Para exemplificar, podemos citar o

caso de Guaraciaba do Norte, onde as correntes políticas se diferenciam entre os

Marreteiros e os Carnaúbas. As divergências políticas não chegam a ter vinculações com

as ideologias partidárias, tanto é que aparentemente é inexistente debates relacionados a

fidelidade aos partidos e as legendas servem apenas como sustentação burocrática das

candidaturas, as divergências estão no âmbito das relações entre os políticos e os eleitores,

configurando um quadro comum no Nordeste: o da compra de votos.

Próximo das eleições, a campanha se intensifica e toda a cidade é envolvida em uma

atmosfera sentimental de defesa dos candidatos. Neste sentido, as eleições são um evento

social que envolve Guaraciaba e, sem exageros, repete-se em todos os municípios que

visitamos no Ceará. Mesmo considerando que esse envolvimento é desprovido de

consciência política (agora no sentido mais social do termo), é este um aspecto importante

que percebemos entre alguns retornados quando falam do que sentiam falta nos lugares de

imigração. Para o migrante não territorializado no lugar de imigração, há muita diferença a

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eleição neste lugar, tendo em vista sua quase total alienação ao processo eleitoral, daquela à

qual estava habituado a lidar nos lugares de origem.

A reterritorialização do retornado, no âmbito político, envolve um retorno à maneira

de escolher seus líderes que, independente da consciência política, é um parâmetro que

ajuda a delimitar a identidade dos naturais do lugar. Essa participação política, ao qual nos

referimos acima, é uma particularidade dos lugares onde a ausência de infra-estruturas e

garantias sociais ainda é uma marca muito forte. O contato dos retornados com lugares

onde esta ausência é encoberta pela proximidade de lugares sofisticados, como nas

metrópoles, faz com que muitos exijam dos candidatos nos seus projetos somente a

realização de ações que não geram transformação das estruturas sociais, como o calçamento

de ruas, eletrificação de áreas sem energia, esgoto etc. A disputa política em torno destas

questões envolve toda a população, e há muitos retornados que sentem falta desta euforia.

O que não significa que nas metrópoles não haja situações idênticas, mas nas cidades

pesquisadas, devido aos seus tamanhos reduzidos, a proximidade dos candidatos é muito

maior, levando os moradores a um envolvimento nas eleições muito mais sentimental. É

bem certo também lembrar que, não raras vezes, na metrópole também ocorrem situações

semelhantes, contudo a proximidade que as cidades do interior proporcionam à intimidade

dos candidatos e a ausência de variadas atividades fazem com que a relação dos moradores

com as campanhas tornem-se mais sentimentais do que normalmente é vista nas grandes

cidades.

Do ponto de vista funcional, o retornado vê o território de origem muitas vezes

como o “porto seguro”, o local no qual encontrará segurança econômica, o que muitas

vezes, o território de imigração não proporcionou. Além disso, a cadeia migratória, por sua

vez, que seria o primeiro suporte de territorialização em “território estranho”, também não

tem dado conta desta função. Cabe, portanto, discutirmos o atual papel das cadeias

migratórias neste processo, tendo em vista que este seria o seu principal papel.

As cadeias migratórias, conforme apresentamos numa citação de Claudia Pedone,

no item 1.2.2, referem-se à assistência dada por conterrâneos, parentes e/ou amigos dos

potenciais migrantes nos lugares de imigração, propiciando a realização da migração e um

período de sustentabilidade até que o migrante consiga se manter por meios próprios, ou

seja, elas seriam o principal elemento de reterritorialização do migrante no território de

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chegada. Esse papel das cadeias está em cheque, ao menos no que se refere aos migrantes

nordestinos. E não é porque as cadeias não provêem mais as condições mínimas para o

migrante, mas é, sobretudo, porque o período de duração desta estada tem se estendido

mais do que aquela que a cadeia é capaz de sustentar. Enfim, o que estamos afirmando não

é que as cadeias migratórias são menos capazes de prover os migrantes, na verdade a

capacidade aparentemente continua a mesma do período da migração que ocorria durante o

“milagre brasileiro”, mas que o desemprego prolongado dos migrantes também tem

proporcionado o retorno precoce.

Logo, funcionalmente, o retorno muitas vezes é mais uma estratégia que um desejo.

Isso, por si só, já explicaria porque tantos migrantes vão e voltam mais de duas vezes.

Contudo, o território de origem manifesta-se como a possibilidade concreta de manutenção

da existência e essa manutenção está diretamente vinculada às percepções, inclusive

simbólicas, deste território. Conforme dissemos anteriormente, apesar de um discurso que

muitas vezes leva a uma valorização quase única da dimensão simbólica da

desterritorialização, o migrante é levado ao retorno muitas vezes por que as condições

funcionais no lugar de imigração não proporcionaram meios de se manter mais nele. É o

que confirma o trecho da reportagem a seguir:

(...) Com uma escolaridade média de 7,1 anos – bem abaixo dos migrantes de outros estados e dos paulistas – os nordestinos que vivem em São Paulo nos últimos cinco anos enfrentam taxa de desemprego de 18,3%, praticamente o dobro da média nacional. O índice é maior até que os 12,5% entre os residentes no Nordeste vindos de São Paulo (Folha de São Paulo, 23/04/2006).

O território de origem é mais uma possibilidade de não passar por grandes privações

e de ainda contar com a ajuda dos parentes mais próximos (pais e irmãos). Apesar de não

ser o local que lhes permite uma ampla liberdade de ação, o lugar de origem/retorno é o

local que muitas vezes oferece uma condição territorial ao retornado mais abrangente do

que no lugar de imigração. Nesta perspectiva, a reterritorialização no lugar de retorno

parece óbvia. Mas porque ocorrem outras vezes a imigração? Em que se firma a relação dos

migrantes com seus lugares de origem? Ao mesmo tempo podemos perguntar: em que se

baseia a relação dos migrantes com seus lugares de destino/imigração? Será que somente

pelo viés funcional poderíamos responder a estas perguntas? Cremos que não.

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Gaudemar (1977) fez uma brilhante obra com a intenção de desmistificar o discurso

neoliberal que se levantava em prol de uma mobilidade do trabalho livre, onde cada um

pudesse vender sua força de acordo com as “leis” do mercado. Evidentemente não teve a

intenção de acentuar o aspecto simbólico que envolve os deslocamentos humanos, mas

ainda assim o faz quando cita o Traité marxiste d’économie politique23: “Nas condições

capitalistas atuais, a mobilidade de mão-de-obra significa, na realidade, despedimentos,

desclassificações, desenraizamentos freqüentemente dolorosos (...)” (p.390, grifos nossos).

Qualquer deslocamento humano, por mais curto que seja, vai sempre implicar

situações que levarão a algum tipo de perda. Essa constatação, dentre outras, leva-o a

vislumbrar com seu trabalho, como deixa claro em sua conclusão, a elaboração de “uma

crítica definitiva das políticas capitalistas de mobilidade forçada e, para a sociedade de

amanhã, uma estratégia de imobilidade” (p.404).

Ao buscarmos neste autor estas palavras, tentamos mostrar que, mesmo em um

autor economista, francês, fundamentado numa perspectiva marxista, onde a mobilidade

humana é prioritariamente vista como mobilidade do trabalho, há a percepção de uma “dor”

que o deslocamento forçado traz. Esta mesma “dor” é o que está no cerne da Antropologia

Total que o estudo do retorno de migrantes sugere, como nos mostra Sayad (2000: 12). É a

dor da separação, da perda dos referenciais territoriais que explicaria o surgimento de um

ramo do conhecimento que busque dar conta da totalidade da experiência do ser-estar,

tendo como sujeito fundamental aquele que retorna ao lugar de origem. Logo, a perspectiva

econômica/funcional do retorno não explica tudo, apesar de explicar, como vimos, algumas

questões importantes.

Curiosamente, alguns migrantes fixados em seus territórios de destino, apresentam

uma concepção um pouco diferenciada da perspectiva privilegiada por alguns retornados na

decisão de voltar. Observe a fala deste migrante:

Os meus irmãos estão todos aqui ... Eu vim e fiquei, mas tem pessoas que vieram aí (dizem): “ah, eu não quero ficar aqui, vou ver como é que tá no Ceará, vou passar um tempo aqui no Ceará.” Mas ele chega lá, acostumado a ganhar um dinheiro melhor aqui [Rio de Janeiro], ele chega lá e vai ficando assim. Aqueles comerciantes que estão lá eles perseveram naquela “coisinha”, eles estão acostumados com “coisinha” pouca, aquele “lucrozinho” pouco (...) Aquela pessoa que vem de lá hoje, de repente ele pode ser um bom motorista, um bom garçom, ele pode ser o que for, mas ele chega aqui, vai ter

23 Partido Comunista Francês. Traité marxiste d’économie politique. Éditions Sociales, 2 tomos, 1971.

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sempre uma dificuldade pra arrumar [emprego] (...) Hoje, a pessoa que vem lá do Nordeste deixa a família pra ganhar um salário mínimo, essa pessoa vai fazer o quê? Vai pagar aluguel, comer e vestir daquilo ali e mandar para casa, é melhor que ele esteja lá. É o que eu falo sempre (...) Eu estive lá agora em janeiro (2005). O negócio lá tá bom porque depois que eles criaram lá o perímetro24 ... pô, aquilo ali tem muita coisa e deu bastante... Criou muita vaga para o emprego (...) Lá você acorda de manhã tranqüilo, vai pro seu trabalho volta à tarde, à noite “cê tá” em casa com sua família. Não trabalha sábado nem domingo, ainda traz frutas pra casa. Não é muita coisa, mas sete reais lá valem mais que sete reais aqui. “Tá” entendendo?! O custo de vida lá “tá” melhor que aqui. Lá a pessoa tem a opção de criar um frango, uma galinha, um porco é bem diferente daqui. Aqui se você não tiver o dinheiro você não come, não bebe nem vai pra canto nenhum. É melhor que a pessoa “teja” lá ganhando cinco ou sete reais por dia, do que ele estar aqui ganhando dois salários mínimos e ter que pagar aluguel, ter que cuidar da família e ter que pagar passagem (Seu João, natural de Varjota e morador da Rocinha desde 1979 – entrevista em junho de 2005).

Os argumentos de seu João mostram que o retornado tem uma vínculo com o

território de origem basicamente funcional. Parece que toma por base sua própria

experiência, o modo como ele vê seu território de origem, afinal ele mesmo com freqüência

vai à terra natal para “matar as saudades”, e nada mais. Não pensa em retornar

definitivamente. Neste ponto reside a principal diferença entre os que ficam e os que

retornam: o nível de reterritorialização ao qual estão submetidos. Algo não mensurável mas

perceptível. Na sua fala, o Sr. João, primeiramente, ressalta a dificuldade de retornar devido

aos aspectos econômicos que uma reterritorialização naquele lugar suscita. Em seguida,

desestimula qualquer um a sair de lá, dando a entender que, para quem está acostumado, o

lugar de origem é muito melhor que a metrópole. Na verdade, as necessidades econômicas

nos lugares de origem não supridas pelas cadeias migratórias, como ressaltamos

anteriormente, leva muitos retornados a argumentarem que o motivo que os fez retornar foi

a “saudade da terrinha”, o que nos leva a perceber que o argumento simbólico assume uma

força preponderante em relação ao argumento econômico. Isso por ser mais fácil assumir 24

Os Perímetros Irrigados são uma experiência que alguns governos de estados nordestinos, em convênio com o DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra Secas), aplicaram utilizando verbas da SUDENE, em alguns municípios próximos aos grandes açudes e, por esta razão, localizados no sertão, área mais atingida pelas secas, pela fome e a miséria. Consiste em irrigar terras próximas aos açudes, partilhando estas terras em pequenas propriedades e vendendo-as a preços baixos para colonos que queiram investir em agricultura comercial. O projeto tem o amparo técnico da Embrapa e busca a auto-sustentabilidade. No caso do Perímetro Araras Norte, no município de Varjota, há uma produção considerável de uva, coco, maracujá, banana, algumas outras culturas em fase ainda de estudo e, principalmente, o mamão do tipo formosa, que chega a produzir 220 toneladas/hectare durante o ciclo de produção (Diário do Nordeste, 25/07/03). Iniciado em 1987, este projeto desapropriou diversas famílias da zona rural, realojando-os no perímetro urbano das cidades mais próximas e foi quase totalmente abandonado em sua fase inicial. Há cerca de oito anos foi retomado e está hoje em atividade, porém produzindo menos da metade de seu potencial e com o aparato técnico bastante sucateado.

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um desejo de rever a parentela do que um insucesso econômico. Neste caso, em nosso

entender, o argumento simbólico mistura-se ao argumento econômico, comprovando que

um determinado nível de des-reterritorialização é sempre fruto da simultaneidade das suas

diversas dimensões agindo cada uma nunca unicamente, mas sempre concomitantemente

todas, de uma forma que dificilmente se percebe claramente onde acaba ou começa o

domínio de uma determinada dimensão.

Dias (2000), a partir da experiência dos retornados caboverdianos, nos traz

importantes contribuições. A primeira delas é relembrar Schutz, que, conforme já citamos,

afirma que o que retorna ao lar espera e deseja voltar ao ambiente que sempre conheceu,

com a mesma intimidade que mantivera com as pessoas e, portanto, a mesma relação

territorial que um dia possuiu com aquele lugar. Por outro lado, a vida naquele lugar, o seu

lar, já não está à sua disposição. Criou regras que o nosso sujeito desconhece. A autora

mostra então que o distanciamento prolongado leva a uma perda do grau de intimidade

anterior. Para o que se foi, as experiências territoriais foram congeladas e substituídas por

memórias sócio-territoriais que levam-no a uma tipificação, por sua vez o que ficou e agora

reencontra o migrante retornado também vivencia uma outra tipificação, pois as

experiências do retornado também lhes são desconhecidas, obrigando este último a tipificar

acerca destas experiências.

A tipificação, dos dois lados, é a condição que permite a interação entre as duas partes nestas circunstâncias. Porém, ela também significa a impossibilidade do restabelecimento da vida no lar, o que implicaria a existência de um relacionamento primário onde os participantes vivenciam um ao outro como personalidades únicas em presente vívido (Dias, 2000: 68).

A tipificação de ambos os lados é o meio pelo qual ocorre o envolvimento entre o

que ficou e o que retorna e é isto mesmo que impede que a reterritorialização do retornado,

sob todas as dimensões possíveis, ocorra nos moldes de uma territorialidade anterior, afinal,

nada pode ser exatamente como antes.

O retornado nestas condições buscará prover sua subsistência e se realizar

emocionalmente a partir de um ser-estar híbrido de que ele próprio se constitui. Da mesma

maneira, a relação daquele que ficou no seu território também será modificada a partir do

momento em que o retornado é um agente territorial transformador e as transformações por

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ele realizadas mostram-se explicitamente aos que nunca migraram, obrigando-os a se

adaptar ao território agora transformado. Isso não é um efeito particular dos retornados

cearenses somente, mas aparentemente é algo comum nos lugares de retorno. Dias (2000)

identifica isto na relação dos caboverdianos com seus conterrâneos retornados.

...Aquele que retorna é para os que não emigraram, aquele que conseguiu, no exterior, alcançar melhores condições de vida e ter acesso às vantagens da modernidade e que, de volta a Cabo Verde, procura a todo custo mostrar seu sucesso através de roupas, jóias, carros e uma série de outros símbolos que reforçam sua posição social (2000: 72).

Mais à frente ela adiciona uma expectativa dos que ficam no lugar de origem em

relação ao retornado:

(...) há uma certa expectativa em relação às pessoas que partem para outros países. Espera-se delas que, ao voltar, apresentem uma atitude diferente, informada pelas novas idéias e valores com os quais tiveram contato. Não se espera ver em um emigrante retornado o mesmo homem de antes da partida (idem:78).

Estas observações também ocorrem em relação aos retornados cearenses (nunca é

demais ressaltar que existem várias diferenças entre uma imigração regional, como é o caso

dos cearenses para o Sudeste, e uma imigração internacional, como o caso dos

caboverdianos, mas para no sentido que a citação apresenta, há pouca diferença entre estes

dois sujeitos). É sempre esperado do retornado que este traga uma certa quantia de dinheiro

que o faça mudar de vida. Isso justificaria sua emigração. Por este motivo, os que nunca

saíram se vêem com certo heroísmo, foram capazes de suportar as agruras do sertão. É o

que pensava este antigo morador de Varjota, falecido no período da pesquisa: “...nunca

dependi de ‘peste’ de Rio de Janeiro pra ‘vivê’, sempre criei minhas vaquinhas, plantei

minha roça, mas num pensei em ir pro Sul. Trabalhei da manhã à noite e num precisei ir pro

Rio. Aquilo ‘num’ é lugar ‘di’ gente...” (Sebastião Alves, 93 anos).

Nas palavras deste senhor há um certo rancor pelo “Sul” tendo em vista que sete dos

seus nove filhos estão espalhados entre o Rio de Janeiro e São Paulo, mas subentendido em

suas palavras está mais que rancor, está também a expressão de alguém que viu pessoas

deixarem seu território, com tudo que este conceito carrega, em busca do suprimento de

necessidades em territórios distantes que em seu entender já seriam supridas no território de

origem.

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Dias (2000) acrescenta algo importante em relação aos que retornam e não

conseguem alcançar seus objetivos financeiros:

O emigrante retornado é acusado de uma certa irresponsabilidade no gerenciamento do seu dinheiro, sendo muitas vezes apontado como aquele que, no exterior, mora em barracos e enfrenta diversas dificuldades, economizando para esbanjar roupas novas e “desfilar” em um BMW ao retornar para Cabo Verde. Neste sentido, o termo “emigrante” pode ser mesmo entendido como uma categoria de acusação, que também responsabiliza aquele que retorna pela criação de um mundo ilusório do sucesso na emigração, o qual, aliás, fundamenta seu próprio prestígio (p.75).

Mais à frente ela ainda afirma:

(...) Parece-me fundamental aqui que os próprios caboverdianos esperam e cobram dos emigrantes a manutenção de vínculos com o exterior. A expectativa é de que eles tenham um papel ativo na manutenção de um fluxo entre países, levando para Cabo Verde novidades, tanto em termos de mercadorias quanto em idéias e valores. Quando alguém que retorna não corresponde a esta expectativa, é duramente criticado (p.77).

Com relação aos retornados cearenses, e, poder-se-ia até mesmo dizer com os

retornados nordestinos, é esperada uma postura de sucesso econômico no “Sul”, ou ao

menos de uma vida de muito trabalho neste lugar que o leve a uma vida menos estressante

no seu lugar de origem. Quando isso não ocorre, o movimento migratório é duramente

criticado pelos que ficam:

Esse povo que migra daqui pra o Sul, “vão” à procura de trabalho, não é isso? O que eu vejo, eu particularmente, alguns até que vão para trabalhar, outros vão só por folia. Eles vão, até enganar os pais que vão pra trabalhar e, em questão de quinze, vinte dias tão de volta...até porque a prefeitura que abre as portas e passagens pra ajudar os filhos daqui a procurar uma fonte de renda em outros locais e o que acontece?!!! Eu acho é isso, pela facilidade de adquirir recursos pra ir ao Sul, eles estão brincando de vai e vem dessa maneira.(Batista Aragão, Diretor de Turismo de Guaraciaba do Norte – entrevista em julho de 2003)25

Sabemos que existem motivações variadas para a migração, de igual modo para o

retorno. Todavia, há uma expectativa muito grande de que no ato do retorno os migrantes

apresentem os frutos de seu trabalho, evidenciando que a motivação predominante para a

migração é o trabalho (como mostra o senhor Batista Aragão), o que não reduz a

importância de outras motivações, mas ressalta a precariedade do lugar de origem. Porém, a

necessidade da apresentação dos resultados da migração vale não só para os que ficaram, 25 Sr. Batista Aragão é empresário no município, já foi eleito vereador e nunca precisou migrar.

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mas também para grande parte dos migrantes retornados. É por meio dessa expectativa que

se manifesta a tipificação que Dias apresenta.

Quando a expectativa da migração se concretiza podemos de modo generalizado

dizer que o retornado dificilmente volta a migrar, reterritorializando-se política, econômica

e simbolicamente, transformando o lugar de retorno, em geral tentando suprir a

precariedade ou as ausências do lugar de retorno, como analisaremos mais adiante. Mas em

muitos casos essa expectativa é frustrada. Frustração que se manifesta no plano territorial à

medida que o território também já não é mais o mesmo de quando o migrante se foi.

Tentaremos daqui em diante problematizar mais esta questão mostrando as faces empíricas

desta des-reterritorialização diretamente com os retornados.

2.3 Migrantes retornados cearenses: categoria de difícil generalização

Ao longo do trabalho tentamos muitas vezes deixar claro que não é possível fazer

uma delimitação precisa de grupos diferentes de retornados, haja vista que todos possuem

singularidades que tornam impossível um agrupamento que leve em conta todas elas.

Todavia, é necessário que tentemos buscar algum tipo de generalização. Além disso, não

temos condições de agir tratando individualmente a todos aqueles que tivemos contato ao

longo do período de estudo, embora nosso intento seja exatamente levar em conta, o

máximo possível, suas singularidades. Apesar da diversidade de experiências que cada um

vivencia, fazendo de cada um indivíduo singular, existem alguns pontos de coincidência no

que se refere as suas características.

Quando iniciamos o trabalho, tínhamos em mente que os que retornavam eram

pessoas que apenas desejaram, em um momento específico da vida, voltar ao seu lugar de

origem. Obviamente sabíamos das inúmeras dificuldades para o retorno, mas críamos que

o retorno se pautava unicamente por um desejo. É certo que Schutz está correto quando faz

esta afirmação, contudo há outras variáveis que influenciam fortemente na decisão de

migrar e também na de retornar. Tentamos anteriormente mostrar que o desejo do retorno

passa pela consideração da condição de vida do migrante, abrangendo aspectos funcionais,

políticos e simbólicos, mas ao chegarmos no campo não fazíamos estas considerações.

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Chegamos nos lugares de origem/retorno com este pensamento ingênuo, não

atentando para o fato de que um dos estímulos ao trabalho foi que alguns de nossos

parentes, muitos bem jovens ainda, mantinham uma espécie de rede, que fazia com que,

“volta e meia”, algum familiar que ainda não era conhecido “pelas bandas do Sul”, se desse

a conhecer. Apesar de termos percebido que havia um movimento que não se restringia

somente à vinda de migrantes, mas também ao retorno, o que motivou a pesquisa, não

atentamos que os migrantes e, conseqüentemente, os retornados, guardavam diferenças

entre eles.

No primeiro trabalho de campo realizado, uma viagem efetuada em 2002, que teve o

caráter de sondagem, já percebemos a importância de diferenciar os que retornavam, e esta

diferença (que foi flagrante) estava visível, em primeiro lugar, nas faixas etárias que

realizavam o movimento.

Notamos que havia um grupo de retornados mais maduros que estiveram no Rio de

Janeiro, São Paulo ou Brasília, ou ainda nas três cidades e/ou regiões metropolitanas das

duas primeiras, e que já tinham retornado havia um tempo considerável, anos ou até

décadas. Enquanto isto, um outro grupo de retornados voltara há pouco tempo, alguns

estavam há apenas alguns meses, outros há alguns poucos anos e que estiveram nas

metrópoles do “Sul” no mínimo uma vez, mas que deixaram alinhavado um possível

retorno.

A percepção destes dois grupos não foi algo novo do ponto de vista metodológico.

Valverde (2003) percebe também esta diferença em relação aos migrantes retornados

espanhóis.

(...) As taxas por sexo e idade da migração de retorno distinguem dois grupos de migrantes de retorno: o primeiro grupo, é mais numeroso, está localizado entre os 25 e 35 anos, correspondendo a imigrantes jovens das antigas regiões emigratórias que regressam a elas quando a conjuntura econômica se modifica e seus contratos de determinada duração se esgotam (...); o segundo grupo de retorno se situa nas idades próximas ao fim do tempo de serviço, trata-se da população de mais de 55 anos constituída por antigos emigrantes que retornam às suas regiões de origem desde as regiões anteriormente imigratórias. Estes dois fluxos de retorno de jovens e de migrantes próximos à idade de aposentadoria controlam a dinâmica demográfica dos retornos na Espanha (p.05, tradução livre)26.

26 “(...)Las tasas por sexo y edad de la migración de retorno distinguen dos grupos de migrantes de retorno: el primero grupo, el más numeroso, está localizado entre los 25 y 35 años, correspondiendo a inmigrantes jóvenes de las antiguas regiones emigratorias que regresan a ellas cuando la conyuntura económica cambia o sus contratos de duración determinada se agotan (...); el segundo grupo de retorno se sitúa en las edades

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De modo muito semelhante ao nosso, apesar de não emitir nenhuma opinião sobre

as limitações da linha metodológica que escolheu, o autor sabe que este modus operandi

não esgota as particularidades das regiões por ele estudadas, como ele próprio reconhece,

trata-se de uma média que generaliza os movimentos de retorno entre as regiões

espanholas: “Este modelo geral dispõe de variantes regionais muito marcantes ...”27

(Valverde, 2003: 05, tradução livre).

Notamos que no período migratório, suas diferenças variavam dentro de alguns

âmbitos: os retornados trabalharam em ramos de atividades tradicionais aos migrantes

(como as que apresentamos na página 47), moraram em bairros populares, como já citamos

em alguns pontos do trabalho, e provinham de lugares geralmente próximos, bem como

realizavam atividades econômicas semelhantes nos lugares de origem, apesar disto, há

diversas particularidades que tornam muito difíceis as classificações. No entanto, o que nos

chamou mais a atenção foi o período no qual migraram. Esse período, determinado por

épocas em que ocorreram grandes deslocamentos de imigrantes nordestinos em direção a

metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, determinou o que chamamos de retornados

maduros e retornados jovens. Seguindo uma divisão etária muito próxima da que Valverde

apresenta.

São esses dois grupos genéricos que identificamos e pretendemos delineá-los

dando-lhes contornos mais consistentes. Contudo, não nos isentamos da possibilidade de

críticas, mesmo porque reconhecemos que toda generalização leva a uma redução do nível

de detalhamento e, conseqüentemente, à diminuição da percepção de aspectos singulares de

qualquer objeto. É nesse inevitável “fio da navalha” que pretendemos caminhar no item que

segue: generalizando, mas buscando a todo o momento não suplantar as especificidades que

sejam relevantes ao entendimento dos retornados e do processo que os constitui.

2.3.1Os retornados maduros

próximas a la salida de actividad, se trata de población de más de 55 años constituida por antiguos emigrantes que retornan a sus regiones de origen desde las regiones anteriormente inmigratorias. Estos dos flujos de retorno de jóvenes y de migrantes próximos a la edad de jubilación controlan la dinámica demográfica de los retornos en España”.

27 “Este modelo general disne de variantes regionales muy acusadas ...”

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O primeiro grupo de migrantes que vamos descrever é aquele cuja principal

característica é a faixa etária mais elevada. É evidente que a época da vida mais propícia e,

por isso, mais comum para se migrar, num deslocamento impulsionado pelo trabalho, é a da

juventude, onde o vigor físico e o impulso “aventureiro” são maiores e os vínculos sócio-

territoriais menos arraigados (ausência de vínculos matrimoniais, filhos, emprego etc.).

Entendemos, portanto, que este primeiro migrou ainda jovem para a metrópole e somente na

maturidade é que resolveu retornar. Tentaremos mostrar que isso não é uma lei geral, mas

ocorre com bastante intensidade.

Evidentemente sua característica marcante se vincula a dois fatores, um interno aos

territórios de origem dos migrantes e um externo: o primeiro, interno, pode se assinalado pela

seca de 1958, que desorganizou as atividades produtivas do sertão e expulsou um enorme

contingente populacional, criando ou reativando redes migratórias para os grandes centros

(Albuquerque, 2001: 18). O segundo fator, externo ao território de origem, que contribuiu

ainda mais para o fortalecimento da rede migratória foi o período do chamado “milagre

brasileiro”, nos governos militares. Essa migração durou até fins da década de oitenta. O

boom desenvolvimentista empreendido nesta época recrudesceu o fluxo migratório

direcionado do Nordeste para o Sudeste, especificamente para as regiões metropolitanas

citadas anteriormente, visando suprir a oferta de empregos nos setores de construção civil e

metalurgia, num primeiro momento, direcionando-se em seguida também para o ramo de

serviços como bares, restaurantes e similares, além de portarias de edifícios (como mostra o

gráfico da página 47). A condição econômica favorecia uma reterritorialização no lugar de

imigração de modo que fosse possível a constituição de laços cada vez mais fortes. A partir

de meados da década de 1980 em diante, ocorrem mudanças econômicas que interferem na

condição mais favorável à chegada de migrantes.

Na entrevista do Sr. João há um trecho em que ele assinala a diferença de condições

econômicas: “o primeiro emprego, quando eu cheguei aqui, eu fui trabalhar numa obra. Essa

pessoa que eu fui pra casa dele, se chama João Cruz. Ele trabalhava na obra, então ele era

carpinteiro, tinha muito conhecimento e naquele tempo tinha muita facilidade” (Sr. João, 46

anos, migrante de Varjota, morador da Rocinha).

Migrantes como o Sr. João, constituem o padrão de migrantes mais maduros aos quais

nos referimos. Migrantes que se reterritorializaram nos seus lugares de imigração,

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constituindo família, ou trazendo laços da sua família já constituída que o acompanhou, e que

agora retornam. Migrantes que voltam ao Ceará com uma concepção do lugar de origem que

expressa claramente a tipificação que mencionamos anteriormente. Ao passo que eles

próprios também já não são os mesmos, estão prenhes das transformações ocorridas na

metrópole.

Eu saí porque era novo, tinha a idade de 18 anos, aí sempre o pessoal daqui tem a vontade de ir pra lá, aí fiquei lá. [Fui] porque [aqui] era ruim e aí também tem a onda, né?[1ª migração] Quando a gente é jovem a gente quer sair (...) a gente, quando se é novo não quer ficar parado num lugar só, sempre tem vontade de andar(...). Aí eu passei, mais ou menos, uns dois anos, aí vim embora pra cá, né? [1º retorno]Aí passei dez anos aqui, na terrinha nossa (...) e voltei pra lá de novo, [2ª migração]e continuei trabalhando (...) Aí fiquei lá esse tempo todo (passei) mais ou menos, um ano, aí vim embora pra cá [2º retorno]. Aí depois voltei novamente (...) [para o Rio – 3ª migração], aí não gostei e vim de novo [3º retorno] aí passei mais dez anos aqui, voltei [4ª migração]. Aí fui trabalhar no “Bigodão”, na praia de São Francisco (...) aí passei oito meses, aí vim embora [4º retorno], aí nunca mais (...) O Rio de Janeiro pra mim, eu acho que não dá mais, primeiro porque eu tô velho, né (risos)? (...) Agora se eu fosse da sua idade eu gostaria de estar lá(...) (Otacílio, 51 anos, retornado maduro, morador de Varjota – entrevista em julho de 2003).

Otacílio diz que se fosse jovem estaria no Rio, ou seja, o lugar de migração traz a

memória de uma jovialidade e vigor anterior. Isto porque a migração laboral, conforme

dissemos, está quase sempre vinculada à capacidade física para suportar qualquer rotina de

trabalho. No entanto, o que mais chama a atenção neste trecho são as suas idas e vindas.

Podemos destacar, utilizando apenas o caso de Otacílio, a necessidade e a dificuldade de

criarmos uma generalização. É nítido que as diversas migrações estão relacionadas a um

contexto econômico nacional que propiciava uma re-inserção no mercado de trabalho na

metrópole, mesmo em funções que exigiam pouca, ou nenhuma, qualificação. Por outro lado,

o motivo pessoal que o levava a retornar, segundo o que nos informou, eram as terras e gado

que seu pai havia lhe deixado de herança no município de Varjota. Sabendo que ninguém,

além dele, cuidaria, via-se obrigado a retornar para zelar por suas posses. Ainda hoje,

beneficia-se destas posses como complemento da renda.

Otacílio é exemplar no sentido de nos mostrar como o migrante está inserido, ao

mesmo tempo em uma estrutura que o leva a migrar, mas seu movimento também se inscreve

em circunstâncias que extrapolam a macro-economia, relacionando-se a questões pessoais de

cunho, inclusive, simbólico. Por isso há migrantes retornados maduros que já retornaram há

tanto tempo que não se diferenciam dos que nunca migraram (notemos que na fala de

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Otacílio, entre a 3º retorno e a 4ª migração, permanecera dez anos, tempo aparentemente

suficiente para haver uma reterritorialização mais estabilizada).

A partir de então, é necessário que especificar esta diferenciação. Há migrantes que

estão inseridos no grupo dos retornados maduros, mas que, por terem retornado após passar

um tempo curto, ou alguns períodos breves na metrópole, devido a uma territorialização

precária, têm, por sua vez, no seu lugar de origem uma territorialização que beira, ou em

nada se diferencia, daquela de quem nunca imigrou. Por outro lado, aquele que imigrou nos

períodos citados, mas encontrou um campo fértil para uma reterritorialização menos ou

pouco precária na metrópole, e retorna aposentado ou no fim da idade economicamente

ativa, possui uma territorialidade em muitos aspectos diferente do tipo de retornado citado

anteriormente. Logo o processo de territorialização do retornado maduro que volta no fim

da idade economicamente ativa será diferente deste que também consideramos retornado

maduro, mas que voltou há tempo suficiente para se reterritorializar no lugar de origem nos

moldes locais, pouco se diferenciando dos que nunca migraram.

O entendimento da migração de retorno na perspectiva aqui apresentada leva-nos a

uma questão muito importante percebida em campo: a questão da identidade territorial do

retornado (como já fora assinalado no item 1.3.2). O retornado maduro, diferentemente do

retornado jovem, tem a oportunidade de forjar no território de imigração uma identidade

territorial que mescla sua territorialidade de origem à territorialidade de outros migrantes.

Constroem-se relações entre migrantes de diferentes lugares do Nordeste. Logo, a percepção

de sua identidade territorial pode se ampliar deixando de se manifestar apenas com o

território de origem para ser também uma identidade regional. Podemos dizer que os

migrantes deixam de ser só cearenses e tornam-se também nordestinos. Da mesma maneira,

respeitada a mudança de escala, podemos fazer uma analogia com os barbadianos em

Londres que Stuart Hall cita (2003b: 26-27):

(...) Na situação de diáspora, as identidades se tornam múltiplas. Junto com os elos que as ligam a uma ilha de origem específica, há outras forças centrípetas: há a qualidade de “ser caribenho” [West-Indianness] que eles compartilham com outros migrantes do Caribe. (George Lamming afirmou uma vez que sua geração – e, incidentalmente, a minha – tornou-se “caribenha”, não no Caribe, mas em Londres!)

O que surpreende é que a identidade territorial, agora, mais que uma identidade local,

é uma identidade regional. Expressa ao menos de modo significativo durante as entrevistas.

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“Nós nordestinos” foi uma expressão presente em muitas entrevistas. Stuart Hall, ao falar dos

caribenhos, percebe que os barbadianos passam a se identificar com o Caribe somente no

lugar de imigração. No caso dos retornados cearenses, entendemos, à luz das entrevistas, que

a identidade nordestina se apresenta também nos lugares de origem de modo mais

significativo.’

Não é algo novo o fato dos cearenses, paraibanos, piauienses e outros naturais dos

estados do Nordeste, descobrirem-se como nordestinos nas metrópoles do Sudeste, haja vista,

como aponta Póvoa Neto (1994) a força da migração na produção desta perspectiva

identitária.

No item 1.3.2.1 afirmamos que a mobilidade das identidades atinge atualmente uma

instabilidade que acompanha as mudanças tecnológicas do nosso tempo; no entanto, há um

grupo de migrantes que está menos propenso a esta mobilidade. Tais migrantes são aqueles

que migraram por ocasião das ações do Estado, conforme citamos no item que 1.1.2, por sua

vez, seriam os que denominamos agora de retornados maduros.

Esta afirmação não quer dizer que estes migrantes estariam alheios às mudanças

estruturais às quais são submetidos todos os indivíduos “naturais” da metrópole, mas que, por

força da complexificação das relações que nela se estabelecem, adquiridas em função do

tempo que permanecem nestes lugares, algumas mudanças que levariam a uma transformação

no comportamento são minimizadas. Ou seja, os migrantes na metrópole, buscam meios de se

estabelecer territorialmente de modo que sua territorialidade de origem seja mantida e não

simplesmente substituída por outra. Contraditoriamente, elementos da modernidade como

bens de consumo duráveis (casa, veículos, eletrodomésticos de maior porte) são buscados

como modo de afirmar a reterritorialização na metrópole e, no caso dos retornados, um modo

de afirmar o sucesso na imigração. Em termos práticos, estes bens são um capital importante

que os retornados levam consigo.

Com relação aos migrantes nos lugares de destino, podemos acrescentar o fato de que

por força da rede migratória, há uma espécie de reconstituição dos territórios de origem, o

que leva o indivíduo a uma maior identificação com suas origens culturais. De forma similar

este processo ocorre com os barbadianos. Hall (2003b: 26) citando Chamberlain, diz:

Os barbadianos (...) têm mantido vivo no exílio um forte senso do que é a “terra de origem” e tentando preservar uma “identidade cultural” barbadiana. Esse quadro é

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confirmado por pesquisas realizadas entre os migrantes caribenhos em geral no Reino Unido, o que sugere que, entre as chamadas minorias étnicas na Grã-Bretanha, aquilo que poderíamos denominar “identificação associativa” com as culturas de origem permanece forte, mesmo na segunda ou terceira geração, embora os locais de origem não sejam mais a única fonte de identificação.

Tal como os barbadianos, os nordestinos no “exílio”, assim se descobrem porque são

submetidos às mesmas condições na metrópole e são desta maneira identificados, passando a

se identificar como um único grupo. Curiosamente, identificam-se também a partir da

conservação de valores regionais e tradicionais em contraste aos do Sul, como já ocorria no

Manifesto Regionalista de 1926 (Penna, 1992: 25). Vale lembrar, assim como Hall mostra,

que os locais de origem não são mais a única fonte de identificação, apontando para a

hibridização de territorialidades. Observemos o que o Sr. João afirmou em relação à força que

o tráfico de drogas tem no aliciamento de jovens nordestinos ou descendentes diretos na

Rocinha:

Você sabe que eu nunca tive medo disso [tráfico]? Porque a gente vem criando os meninos desde pequenos assim: estudando. Você acostuma, conversa com ele. “Ah, eu quero ir ali”. Não, não vai. “Ta” dentro de casa, porque dentro de casa está mais seguro. Aí a criança vai se adaptando àquilo. Você leva pra casa de Deus [são evangélicos], né? Também está sempre andando no caminho reto, que é Jesus. Você ensina sempre que a criança tem que fazer o bem, tem que andar nos caminhos do Senhor. Cabô! Então entra aquela obediência e a criança de pequenininho ele já vai sabendo que aquilo ali é o caminho errado, né? Então ela já sabe que se algum dia ele partir pra aquilo ali, ele sabe que é uma coisa totalmente ao contrário do que aprendeu (entrevista em junho de 2005).

A valorização de hábitos tradicionais também propicia a reconstituição do território de

origem no lugar da imigração, como pudemos verificar em campo (no nosso caso a metrópole

do Rio de Janeiro: as favelas da Rocinha e Rio das Pedras, na cidade do Rio de Janeiro, e

bairros dos municípios da região metropolitana, como São Gonçalo e Niterói). Na fala

anterior também podemos verificar que um importante elemento para a manutenção ou

reconstituição de uma territorialidade é a religiosidade. Apesar de ser evangélica, toda a

família do Sr. João mantém um traço marcante da cultura nordestina e das áreas periféricas da

metrópole: a religiosidade como elemento fundamental na identidade territorial, levada a

cabo de maneira intensa. Sua fala deixa evidente que o vínculo religioso é um elemento

determinante para a manutenção da boa conduta de seus filhos e, conseqüentemente, do

afastamento do tráfico de drogas.

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Além do que já afirmamos, podemos dizer ainda que o discurso regionalista que deu

origem ao Nordeste, tornou-o um referencial simbólico relevante para os nordestinos na

metrópole, bem retratado pelos artistas nordestinos, como já assinalamos.

(...) No nível do senso comum, o Nordeste é hoje um “dado” que, permitindo a cada um se localizar espacial e socialmente, auxilia a dar sentido ao mundo e às experiências de vida... Suas significações podem sofrer variações, conforme o momento histórico e o espaço de referência (por exemplo, quando é visto a partir do Sul), ou ainda individualmente, de acordo com a vivência ou o grau de escolaridade e informação de cada um, entre outros fatores (Penna, 1992: 47).

São esses referenciais simbólicos que estimulam a identificação dos nordestinos por

parte dos “naturais” do “Sul”, ao passo que também reforçam a identidade dos próprios

nordestinos. Penna (1992: 50) nos ajuda a entender este movimento dialético quando

pergunta: “e quem eram os nordestinos?” Tentando responder à questão, ela identifica

quatro hipóteses de elementos geradores da identidade nordestina: a naturalidade, a

vivência, a cultura e auto-atribuição.

É possível perceber na análise dos retornados, estas quatro “identidades

nordestinas”, mas aquela que privilegiamos no estudo dos retornados maduros

simplesmente por conta da maior regularidade é a que corresponde à hipótese da

naturalidade. Os cearenses de Varjota encontram-se com os paraibanos de Pedra Branca, ou

com piauienses de Pedro II etc., levando-os a identificar-se com um recorte espacial que

permite agrupar suas diferenças sob uma bandeira: a da região.

As diversas demarcações espaciais permitem, portanto, “interpretar” uma mesma naturalidade através de várias identidades, mobilizadas conforme as necessidades das práticas e das lutas sociais. Como foi visto no regionalismo, a construção de uma identidade nordestina sobrepuja as referências distintivas relativas aos estados ou localidades, e, embora subordinando a região à nação, expressa um projeto político-administrativo alternativo à centralização vigente (Penna, 1992: 52).

A naturalidade nordestina fornece o “status” de indivíduo capaz de apresentar uma

lógica diferente aos padrões de comportamento predominantes nas metrópoles “sulinas”, no

que se refere tanto aos padrões do centro quanto os de periferia. Padrões que não são

distinguidos no senso comum nordestino, mas que, apesar disto, são refutados pois

simbolizam padrões negativos que o nordestino não possui (conforme a última citação do

Sr. João). Logo, quando o retornado maduro chega em seu lugar de origem procura não

valorizar estes padrões considerados metropolitanos.

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Uma observação importante, da qual falaremos um pouco mais adiante, é o fato de

que os retornados podem ser originários tanto de áreas rurais quanto de áreas urbanas (neste

caso, urbano se refere às sedes dos municípios que, muitas vezes, apresentam

peculiaridades da paisagem rural). Como parte considerável da economia dos municípios se

baseia na agropecuária, é muito comum que retornados tenham trabalhado, antes de migrar,

na lavoura. Muitos deles retornam após passar longo tempo na metrópole, não conseguindo

se adaptar em um ofício comum deste espaço (garçom, porteiro, pedreiro, carpinteiro etc.).

Por isso, o retorno, muitas vezes, objetiva buscar a aposentadoria no antigo trabalho da

lavoura. Nestes casos, a desinformação tem gerado uma série de transtornos, pois o

FunRural, exige ao menos doze anos de trabalho agropastoril registrado nos sindicatos de

trabalhadores rurais, para aposentar um agricultor. Ou seja, o retornado maduro que volta

para o trabalho na lavoura com a intenção de se aposentar não consegue pois passou um

longo período de trabalho registrado na metrópole de modo que não atinge os doze anos

mínimos de trabalho na lavoura. O retorno acaba por gerar um impacto social negativo nos

municípios de retorno.

Conversamos com diversos membros dos sindicatos de trabalhadores e

trabalhadoras rurais (STTR) de todos os municípios pesquisados e houve uma unanimidade

no que tange a este problema. No caso do STTR de Guaraciaba do Norte, o seu presidente,

Sr. Deusdete, também retornado, afirmou que diariamente ocorre ao menos um caso de

trabalhador rural que perde o direito à requisição da aposentadoria rural por haver passado

um longo período no “Sul”. A solicitação acaba sendo feita quando já não há mais a

antecedência de doze anos até que se complete a idade de 60 anos para as mulheres e 65

para os homens, o que leva muitos a viverem do trabalho rural até a velhice.

Os retornados maduros que voltaram há muito tempo aos seus lugares de origem,

tendo passado um período curto nas metrópoles, como o Sr. Deusdete, tiveram a

oportunidade de se reterritorializar na agropecuária, de modo que um problema burocrático

deste tipo não os aflige.

Entendemos que essas observações refletem a diferença peculiar aos retornados

mais maduros, diferenças estas marcadas especialmente pela idade destes retornados, que

influenciam significativamente o modo como estes retornados se reterritorializam.

Contudo, apesar do nosso esforço em tentar delimitar as diferenças internas percebidas

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neste grupo, não temos a pretensão de achar que esgotamos a questão. Todavia, esperamos

ter dado um panorama desta categoria de retornado. Tentaremos a seguir mostrar as

peculiaridades do outro grupo de retornados, os retornados jovens.

2.3.2Os retornados jovens

Reservamos este trecho para tentar delimitar o que entendemos por retornados

cearenses jovens. O modelo de Valverde (2004: 04) apresenta os jovens como sendo o

grupo que estariam numa faixa entre 20 a 35 anos, agrupando-os de acordo com a

proporção dos dados estatísticos. No nosso caso identificamos este grupo como aquele que

estaria numa faixa etária um pouco acima daquela identificada pelo autor porque alguns

entrevistados, cujas idades ultrapassavam essa faixa etária, reterritorializam-se de modo

semelhante aos jovens na idade proposta pelo autor. Logo, achamos pertinente ampliarmos

a faixa etária, indo até os 45 anos.

Gráfico 2: Proporção de migrações de retorno por sexo e idade entre as migrações inter-regionais (1988-1995) (Valverde, 2004:04).

Infelizmente no Brasil ainda não dispomos de publicações no âmbito demográfico,

ou mesmo de outras áreas, que dêem a mesma visibilidade como a que Valverde apresenta

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em relação à migração de retorno inter-regional na Espanha. De qualquer maneira,

podemos tomar como realidade também brasileira o fato de que os retornados jovens são

aqueles que tornam o retorno mais expressivo. Fazemos esta afirmação com base na

entrevistas que fizemos e na expressiva quantidade de retornados jovens que encontramos

nos ônibus quando realizávamos a trajetória até os municípios pesquisados nos trabalhos de

campo. Além disto, Valverde, a partir de suas conclusões acerca de seus retornados, fez-nos

levar em consideração mais um motivo que desembocaria em um outro argumento para

justificar esta expressiva maioria de jovens entre os retornados: “Entre os jovens, a elevada

intensidade de retorno está muito relacionada com as migrações múltiplas realizadas

durante o período analisado. Trata-se de migrantes entre os quais a duração da residência na

região de destino é reduzida” 28 (Valverde, 2004: 05, grifos nossos, tradução livre).

O jornal “Folha de São Paulo”, em reportagem mencionada anteriormente, também

faz uma menção importante à questão da faixa etária dos retornados, o que vem corroborar

aquilo que estamos afirmando.

... a maior parte [dos retornados] tem até 45 anos (...) 67% ganham até um salário mínimo, hoje em R$ 350. A conseqüência disso é a volta para a região de origem de chefes de família com seus filhos e cônjuges, sendo a maioria jovens. “Ao invés do que se imagina, não são os idosos, mas sim os jovens que estão voltando. É claramente um problema de inserção no mercado de trabalho”, diz o pesquisador Herton Ellery Araújo, do IPEA (...) responsável por esmiuçar os dados (Folha de São Paulo, 23/04/2006, p. 16).

Da mesma maneira como Valverde detectou na Espanha (como aparece em seu

gráfico) os jovens retornados estão em número muito superior aos maduros, apesar de haver

uma elevação na curva na faixa entre 65 e 69 anos, um evidente retorno de aposentados, o

que não significa uma elevação considerável. O número de retorno de jovens e adultos

jovens é de fato muito maior.

Uma migração motivada pela atração do mercado de trabalho também pode levar a

uma repulsão quando o mercado está saturado, como nos mostra a fala do pesquisador na

reportagem. Isto é notório nas grandes metrópoles não só do Brasil, afinal as migrações

laborais já se configuram como um problema estrutural das metrópoles contemporâneas.

No entanto, no caso brasileiro, o retorno não era um fenômeno populacional consistente

28 “Entre los jóvenes, la elevada intensidad de retorno está muy relacionada com las migraciones múltiples realizadas durante el período analizado. Se trata de migrantes entre los que la duración de residencia en la región de destino es reducida”(tradução livre).

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simplesmente porque as políticas desenvolvimentistas levaram as metrópoles nacionais a se

expandir muito, ampliando em larga escala sua demanda por mão-de-obra qualificada e

também pouco qualificada. A partir dos anos oitenta, esta demanda começa a cessar,

atingindo seu ápice nos anos noventa, com uma drástica redução da oferta de empregos. É

então neste contexto que os migrantes jovens começam a retornar em grande quantidade de

modo que os censos de 1991 e 2000 apontam para este fenômeno.

O retorno de jovens migrantes não é uma especificidade do nosso momento, haja

vista que, como vimos, idas e vindas marcam trajetórias individuais. Todos os migrantes

maduros com os quais mantivemos contato chegaram a retornar ao menos uma vez com o

intuito de reterritorializar-se em seus lugares de origem. O que se mostra diferente no

momento atual é que os migrantes jovens não encontram logo que chegam “meios de vida”

de modo que se mantenham sem o apoio da cadeia migratória, tendo em vista que sua

migração não é estimulada pela ação do Estado. À luz do que discutimos anteriormente, as

cadeias migratórias, no momento atual, não mais dão conta de um fluxo tão numeroso de

migrantes, contrastando com outras épocas. Além disto, os migrantes já fixados nas

metrópoles, que são aqueles que personificam as cadeias, em geral recebem baixos salários,

incapacitando-os a se sustentarem juntamente com seus conterrâneos ou parentes

desempregados.

Outro elemento a ser considerado é a facilidade com que se consegue uma passagem

para realizar o retorno. Ultimamente tem surgido uma série de possibilidades para que a

viagem para o Ceará seja realizada. Desde a década de 1990 as empresas de ônibus

souberam aproveitar bem a demanda de retorno que aumentava, tanto que não só linhas

como a Ipu-Rio passaram a ser diária, como ainda passou a ser realizada pela viação

Gontijo, deixando de ser exclusividade da Itapemirim (a primeira utilizando a BR-116 e a

segunda a BR-101). Podemos ainda mencionar a linha Rocinha-Ipu, liga o sertão

diretamente à favela, saindo uma vez por mês. Além de serem oferecidas a preços

acessíveis, as passagens terrestres começam hoje a sofrer a concorrência das passagens

aéreas, com a instituição de vôos a preços populares, o que traz uma nova possibilidade

para o retorno.

Sob o aspecto econômico-funcional, tanto a incapacidade das cadeias migratórias

em dar suporte ao fluxo da rede como as facilidades de transportes, tornam o retorno algo

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possível. No entanto, como vimos no item 2.2, o indivíduo que retorna, em diversas

ocasiões volta porque se sente “desgarrado”. No lugar de imigração, tem uma rotina que

pouco ou nada se assemelha à de seu lugar de origem, exatamente porque essa rotina está

totalmente ligada à necessidade de criar condições de subsistência, o que afetará sua

percepção funcional do lugar de imigração, em uma primeira instância. Logo, o efeito desta

percepção repercute também num anseio pelo retorno suscitado pela condição de vida

menos sacrificante dos lugares de origem, ou pela identificação simbólica com este lugar,

intrinsecamente ligada à percepção funcional do lugar.

O que me chamou mais à atenção, vou ser sincero, foi a forma como a gente ganha dinheiro lá, mas também a forma, “pra” gente que vai daqui, a liberdade que a gente não tem. É que você fica preso ao trabalho, trabalho em restaurante, às vezes trabalhando dia e noite (...) o que a gente vê na família desse pessoal do “Norte” é que é totalmente diferente da afinidade lá entre o pessoal do “Sul” tem entre a família, você não vê união entre eles (...) Eu “pra” ser sincero, falar a verdade, eu acho que você “tando” aqui, você não consegue nem imaginar o que você sente, você só consegue imaginar, quando você perde o direito de estar aqui. Já tive a oportunidade de ir “pro” Rio, né? Já fui “pra” Brasília também. Aí, quando tu chega lá, que tu vê que isso aqui tudo ficou, a liberdade ficou. Cansei de chorar, chorei muito. Choro quando me lembro do que passei lá, eu fico emocionado (Francisco de Assis, 29 anos, retornado jovem, morador de Varjorta – entrevista em julho de 2005).

Tentamos mostrar que o Nordeste, e particularmente, o Ceará, não são constituídos

de lugares de “desterro”. No passado, com o flagelo das secas mais aviltados devido a

completa ausência de infra-estruturas, até poderiam ser considerados desta maneira, o que

deu margem ao surgimento do discurso regionalista, mas atualmente são lugares que

merecem ser vistos para além do discurso centro-periferia, do discurso da “auto-piedade”.

O retorno, no caso de Francisco de Assis e de muitos outros, é uma “fuga” sim, mas da

miséria, da violência da favela e, em muitos casos, uma fuga dos empregos semi-

escravizantes, especialmente nos restaurantes, ao contrário do que se proclama

normalmente naquilo que se refere ao motivo de sua imigração para o Sudeste. Logo,

entendemos que suas carências ultrapassam uma percepção do território de origem

puramente funcional, da mesma maneira que o retorno está longe de ser motivado apenas

por uma percepção simbólica, no sentido mais romantizado do território de origem, mas

encontra-se num cruzamento entre estas duas formas mais presentes de desterritorialização

que se retroalimentam.

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O indivíduo jovem que retorna, por outro lado, vivenciou experiências que o

tornaram pelo menos um pouco diferente daquele que partiu, desse modo, o jovem mostra

no lugar de origem os efeitos desta transformação. Os hábitos locais se transformaram em

comparação àqueles dos tempos da migração dos retornados maduros. Isso por vezes é

motivo de estranhamento e preocupação destes retornados e da população local, que vêem

suas pacatas vidas serem “sacudidas” com as mudanças metropolitanas, de certa forma

trazidas pelos retornados mais jovens.

Dentre as mudanças, estão novas territorialidades no que se refere às práticas

econômicas. Discutiremos com mais profundidade a reterritorialização dos retornados no

capítulo seguinte, mas apresentaremos, de modo sucinto, algumas práticas econômicas

tanto dos retornados jovens como também dos maduros.

Para começar, podemos mencionar o crescente investimento dos retornados jovens

em transportes alternativos. Há uma carência grande de transportes entre os municípios do

interior, propiciando uma demanda capaz de estimular este investimento. No entanto, assim

como nas metrópoles, começa a se formar uma espécie de “máfia” imitando os moldes

metropolitanos, onde os novos “investidores”, para realizar seus objetivos, entram em

confronto, muitas vezes violentos, com os já estabelecidos. Também incluímos aí as

diversas bancas de camelôs vendendo artigos “pirateados” como tênis e CDs, que tomam

conta das calçadas nos centros das pacatas cidades pesquisadas.29

Nem todos os retornados jovens, porém, investem em atividades ilegais. Há

retornados que abrem bares, lanchonetes, lojas de artigos domésticos, enfim, atividades

dentro do comércio formal. Geralmente, aplicam aí os conhecimentos adquiridos na

metrópole. Não é difícil encontrar donos de restaurantes nestas cidades que trabalharam no

Rio de Janeiro, nos restaurantes dos bairros da Zona Sul carioca ou dos bairros sofisticados

da região metropolitana. Nestes casos, é possível verificar tanto retornados jovens como os

maduros que retornaram há tempo suficiente para estarem plenamente reterritorializados.

29 É importante mencionar que, mesmo em lojas propriamente ditas especializadas em CDs, não foi encontrado nenhum destes objetos em versão original. Em todos os casos os CDs eram cópias sem nenhum disfarce, vendidos a um preço popular negociável com o cliente.

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Alguns também, deve-se mencionar, voltam para o trabalho na lavoura, plantando

“roça” (como é chamada a mandioca e sua lavoura, nos municípios do interior), feijão,

milho e outros gêneros além da criação de animais. Para este ramo, basicamente,

direcionam-se retornados jovens entrando na maturidade30, que não conseguiram se fixar na

metrópole, em busca de recuperar as atividades anteriores.

As diferenças de atividade, no entanto, marcam um elemento importante que

geralmente não é considerado em relação aos retornados: a sua origem locacional, se seu

território de origem compreende o espaço urbano ou o rural. Chega a ser estranho imaginar

a possibilidade de falar em urbanidade quando se trata de municípios tão interioranos, mas

esta diferença é marcante. As atividades ligadas ao terciário, formal ou informal,

empreendidas pelos retornados, são realizadas prioritariamente por retornados jovens

provenientes do ambiente urbano: centro das cidades e bairros circunvizinhos. Por outro

lado, os que retornam para atividades agropastoris, são os que têm residência nas zonas

rurais destes municípios. Geralmente, dentre os migrantes, são os que têm menor

escolaridade e experimentaram as atividades mais desgastantes na metrópole.

Como fizemos esta diferença, é importante mencionar que migrantes maduros e

aqueles que não migraram têm salientado que muitos que retornam à área urbana trazem

“maus hábitos’ adquiridos na favela, ou nas comunidades por onde passaram. Ou seja,

houve um aumento do consumo de drogas e conseqüentemente uma maior exposição ao

tráfico de entorpecentes, alguns chegam a afirmar que foram os retornados que levaram o

tráfico para esses lugares, o que teria propiciado um aumento da violência. Diversos

migrantes maduros relataram este fato, ainda reafirmado pela série de reportagens do jornal

“O Globo” já citadas. O envolvimento de muitos migrantes com o tráfico de drogas é tão

presente na realidade das favelas cariocas que o “Bem-te-vi”, chefe do tráfico na favela da

Rocinha, falecido em confronto com a polícia em 2005, era migrante oriundo do Ipu,

município vizinho à Guaraciaba do Norte, um dos pesquisados. Porém, reservaremos o

último capítulo para falarmos sobre este aspecto da reterritorialização do retornado.

30 Não intencionamos criar um novo tipo de retornado, mas cabe aqui a explicação. “Retornados entrando na maturidade” são retornados já não tão jovens assim, mas que, devido ao período que mantiveram a mobilidade entre um lugar e outro e a forma como se reterritorializam, não poderiam ser considerados maduros, conforme mencionamos no início deste item. Estes geralmente estão na faixa dos 40 anos, são chefes de família e possuem pouca escolaridade, como a maior parte.

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Todas as modificações comportamentais da população de retornados jovens

observadas em campo e mencionadas anteriormente, refletem-se em novas territorialidades

constituídas em relação ao território de origem. Territorialidades que mesclam suas

dimensões funcional e simbólica: ora é o local que, antes de tudo, possibilita investir aquilo

que se conquistou no “Sul” e ser bem sucedido, ora é o local que, sobretudo, resgata a

segurança familiar e o convívio com os entes queridos. Nesta condição é que reside uma

importante característica desta categoria de retornado muito clara na afirmação de Paulo

(retornado jovem do Rio de Janeiro e morador de Varjota): “se não der certo, eu volto pro

Rio”.

O jogo das des-reterritorializações às quais estão submetidos os retornados, em

especial os jovens, vai ao encontro daquilo que leva um indivíduo a uma

multiterritorialização. É sabidamente impossível vivenciar novamente o mesmo território

da infância, ou da adolescência, uma vez que esta territorialidade ficou para trás na

memória e nas marcas espaciais. No entanto, como vimos, o processo de des-

reterritorialização leva o migrante a realizar um processo de intensa hibridização territorial.

Para isso, as estratégias identitárias e as múltiplas identidades territoriais que o migrante

vivencia, descobre e/ou inventa, levam-no, quando retorna ao lugar de origem, a

experimentar aí algumas destas estratégias vivenciadas na própria metrópole. Isso não é um

privilégio apenas dos migrantes jovens.

Os migrantes maduros também experimentam nos territórios de origem situações de

efetiva multiterritorialização, mas suas experiências territoriais na metrópole, em geral,

foram de tal modo introjetadas que alguns hábitos e comportamentos refletem a

hibridização. Podemos dizer então que o retornado maduro, que voltou recentemente, em

relação à territorialidade, parece se diferenciar muito dos habitantes locais, dos retornados

maduros que regressaram há bastante tempo e dos próprios retornados jovens, que ora

retornam. Isto, porque suas práticas espaciais estão muito relacionadas às práticas

metropolitanas. Diferentemente dos retornados jovens que, em muitos casos, imitam os

comportamentos metropolitanos com vistas a se tornarem mais visíveis socialmente. Isso dá

a impressão de que o migrante maduro, ao menos aquele que cria maiores vínculos na

metrópole, só retorna após uma certa estabilidade financeira e, como vimos, isso nem

sempre acontece.

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Os retornados, portanto, vivenciam o que Haesbaert (2004: 349) percebe como uma

multiterritorialidade nas grandes metrópoles. As experiências vivenciadas na metrópole,

diferentemente daqueles que vivem uma territorialidade múltipla, nivelada a partir da

inserção na rede de circulação econômica global, levam os migrantes na metrópoles a

serem submetidos em alguns casos ao “confinamento” da favela, do cortiço ou dos bairros

pobres do subúrbio. Quando saem desta espécie de confinamento, saem rumo aos seus

trabalhos, quase sempre em cargas horárias muito desgastantes (mais de dez horas por dia),

mantendo em termos práticos uma “alienação espacial” que quase nunca o liberta – como

veremos mais adiante na fala de Lourenço. No entanto, mesmo uma territorialização,

aparentemente, tão alienante cria novos laços, inclusive simbólicos, que levam o migrante a

viver também uma territorialidade múltipla, porém muito diferente daquela nos moldes dos

que efetivamente participam da rede econômica global.

Todo migrante é em alguma medida multiterritorial, mas a experiência

multiterritorial dos retornados nos leva a constatação de este indivíduo necessariamente

experimenta uma multiterritorialidade mais incrementada, fruto de uma maior experiência

com territórios distintos – o território de origem, o território de destino e o território de

retorno. E esta multiterritorialidade intrínseca aos retornados os coloca no cerne do debate

dos agentes recriadores do espaço “pós-moderno”. Intentando analisar um pouco mais esta

experiência, é que pretendemos desdobrar o próximo capítulo.

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3. RETORNADOS CEARENSES: MULTITERRITORIALIDADE

E RETERRITORIALIZAÇÃO.

O migrante retornado se encontra numa posição bastante singular: deixou família, casa,

amigos em busca de um objetivo (ou por falta dele) num lugar muito distante de tudo que

sempre reconheceu como parte de sua identidade. Após um determinado período retorna

para este lugar e nota que muitas coisas ao seu redor estão diferentes de quando as deixou.

Na verdade, conforme afirmamos no primeiro capítulo deste trabalho, o próprio retornado

já não é mais o mesmo, seu olhar já está encoberto pelo “óculos” que o lugar de destino lhe

fez usar, tornou-se um híbrido. Neste sentido, nem ele, nem o lugar de origem são mais os

mesmos. Há, ainda que pouco nítido, algum estranhamento entre o retornado, que se

transformou no lugar de destino, e o lugar de origem, que também sofreu transformações à

medida que a sociedade local continuou seu curso de produção do espaço.

No caminhar deste múltiplo processo de transformação percebemos que o nosso

olhar estava mais direcionado para o retornado, logo ele tornou-se mais importante na nossa

observação que o retorno em si. Contribuiu muito para isto o fato de que o retorno como

processo não torna tão visíveis as experiências de vida, tão presentes quando buscamos

tratar diretamente do indivíduo. Analisando o processo, as experiências individuais se

perderiam dentro dos quadros generalistas que os modelos científicos nos impõem. Mas

não é isto mesmo um dos questionamentos que levantamos? Contudo, não desejamos dizer

que não é possível analisar o processo ao valorizar as experiências migrantes, pois eles

encontram-se permanentemente imbricados. Portanto, o que pretendemos averiguar neste

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trecho do trabalho são as experiências do retornado aliadas aos impactos na sua

territorialidade e no território de retorno, crendo que desta forma nos será apresentada a

resposta que queremos dar a nossa questão inicial: como se dá a reterritorialização do

retornado.

As experiências do retornado são, de alguma forma, sedutoras pois causam

naqueles, como nós, que desejamos investigá-los – mas que estamos tão próximos deles –

uma sensação de respeito e ao mesmo tempo de encantamento, piedade e admiração. A

experiência se inicia na motivação para a migração que vai desde a vontade de realizar um

projeto de vida até a carência extrema de condições de subsistência no lugar de origem.

Estas motivações o levam a enfrentar muitas vezes dissabores no lugar de destino. Seus

dramas, bem como suas ações corajosas nos remetem ao que Haesbaert, citando Gualandi

que, por sua vez, mencionava a filosofia de Deleuze, nos conclama a praticar: “amor por

tudo aquilo que existe” (Haesbaert, 2004: 369). As múltiplas vivências, prenhes de

experiências territoriais, dado que são imanentes à existência do homem, tornam a análise

do retornado tremendamente rica. Afinal, sua existência, por si só, já nos leva à prática do

“amor a tudo que existe”.

“Amor por tudo aquilo que existe” é muito provavelmente o que deveria estar no centro de nossos processos de territorialização, pela construção de territórios que não fossem simples territórios funcionais de re-produção (exploração) econômica e dominação política, mas efetivamente espaços de apropriação e identificação social, em cuja transformação nos sentíssemos efetivamente identificados e comprometidos (Haesbaert, 2004:369, grifos do autor).

Neste sentido, tornou-se mais interessante aos nossos olhos o retornado que o

retorno. Vimos que ao privilegiarmos o retornado estaríamos contribuindo para o

entendimento dos territórios construído por estes sujeitos, que não são simples territórios

funcionais de re-produção, mas territórios de construção do novo.

Durante a investigação do retornado, buscamos entender como se dá seu processo

de des-reterritorialização. Na tentativa de achar a resposta, esbarramos na questão da

multiterritorialidade, proposta por Haesbaert inicialmente em O mito da

desterritorialização (2004), haja vista que esclarecia muitos processos observados dentre os

retornados, assumindo, portanto, uma importância central no trabalho. Logo, uma questão

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derivada surgiu desta observação: em que medida os retornados podem ser considerados

sujeitos multiterritoriais?

A concepção de Haesbaert de multiterritorialidade (2004, 2005a e no prelo) fez-nos

refletir acerca da importância de vermos tais migrantes como alguns dos principais agentes

do processo de multiterritorialização em andamento no mundo. Para tornar mais nítida

nossa intenção, façamos uma breve retrospectiva do que tratamos até aqui.

No início do trabalho, intentamos apresentar uma breve crítica à postura como vem

sendo tratada pelas ciências humanas a questão migratória, em especial no que se refere à

migração de retorno e ao sujeito retornado, deixando claro que entendemos que esta postura

é dada pelo modelo de ciência que nos é imposto pelo paradigma moderno dominante.

Objetivamos, com isto, mostrar que uma análise que busque perceber o retornado numa

perspectiva mais complexa deve levar em consideração uma metodologia que assegure a

própria fala destes sujeitos sociais. Junto a isso, notamos que o discurso científico

dominante não dá conta da complexidade dos processos sociais, dentre eles, as migrações.

O retorno de migrantes aos seus lugares de origem da maneira significativa como ocorre

atualmente não vem acompanhada de uma mudança substancial dos “modelos”

interpretativos, tendo em vista que os modelos vigentes não conseguem dimensionar o

retorno a não ser predominantemente sob a perspectiva quantitativa. Por este motivo, urge

que se estabeleça um novo caminho epistemológico. Todavia, como não temos a presunção

de criar tais caminhos, buscamos colaborar usando uma metodologia mais livre para o

alcance de nossos objetivos, de modo que possamos perceber os retornados de uma maneira

mais integradora a partir da sua relação com o próprio território.

No capítulo seguinte, procuramos mostrar quem são aqueles que privilegiamos no

nosso estudo: os retornados cearenses. A despeito de toda dificuldade de generalização,

fizemos uma classificação em dois grupos que chamamos de retornados maduros e

retornados jovens e procuramos estabelecer as diferenças mais marcantes nestes sujeitos,

mostrando inclusive que há diferenciações muito marcantes no interior destes grupos. Para

tanto, procuramos reforçar nossas impressões com as palavras dos próprios migrantes em

seus lugares de origem e destino.

No capítulo que ora se inicia, no entanto, pretendemos mostrar, efetivamente, como

se dá a reterritorialização do retornado. Como veremos, a noção de multiterritorialidade

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parece ajudar a explicar a reterritorialização dos retornados, entendendo-se que estes

migrantes são agentes que renovam a territorialidade no lugar de origem. Em coerência

com o que Haesbaert concebe por território (como citamos no item 1.2.1), torna-se mais

claro o motivo de vermos os retornados como agentes multiterritoriais. Segundo ele

... percebemos que essa “necessidade territorial” ou de controle e apropriação do espaço pode estender-se desde um nível mais físico ou biológico (enquanto seres com necessidades básicas como água, ar, alimento, abrigo para repousar), até um nível mais imaterial ou simbólico (enquanto seres dotados do poder da representação e da imaginação e que a todo instante re-significam e se apropriam simbolicamente do seu meio), incluindo todas as distinções de classe socioeconômica, gênero, grupo etário, etnia, religião etc (Haesbaert, 2004:340).

No capítulo anterior também evidenciamos que os retornados nos lugares de

imigração se desterritorializam. No entanto, como o autor citado mostra, na verdade esta

aparente desterritorialização é a primeira parte de uma reterritorialização em novas bases.

Nem “fim da espacialidade”, inerente à existência do mundo, nem “fim da territorialidade”, inerente à condição humana, a desterritorialização é simplesmente a outra face, sempre ambivalente, da construção de territórios (...) Des-territorialização (sempre hifenizada), tal como a multiterritorialização do nosso tempo, carrega sempre a própria multivalência, o múltiplo, o sincrético ou, se quisermos, para usar o termo da moda, uma “condição híbrida” (2004: 365).

Na metrópole, os migrantes cearenses (mas não somente os que provêm do Ceará)

chocam-se com outras condições econômicas, políticas e simbólicas. Este confronto com a

alteridade gera conseqüências imediatas.

... Eu me sentia muito inferior. O pessoal, assim, lá do Rio e eu sendo do Norte, Nordeste, estas coisas. Eu não era muito de me envolver (...) e era muito ruim, solidão, só. E eu ficava pensando: o que que eu “tô” fazendo aqui, rapaz, sozinho? E minha família toda lá (...) Se ao menos compensasse, eu ganhasse o bastante (...) mas era só aquela coisinha, só dava pra viver lá bem, tal, mas não dava pra fazer uma coisa melhor pra chegar aqui e fazer algo. Era só aquela coisa mesmo (...) Isso que eu ia falar pra você [sobre o que os naturais do Rio lhe diziam]: poxa, tu veio de quê? Tu vai transportado numa mala, num caixote (...) e a maneira de falar?! Aqui (no Ceará) você sabe que é diferente, também o sotaque. Por exemplo: aqui é mangar, aí dizem: onde é que “tá” a manga, que lá é encarnar, “zoar”. Poxa, aquilo ali também (...) eu entrava num chororô. E os caras “pegavam no pé”. Realmente a gente falava muito errado eram as palavras totalmente ao contrário ... (Eudes, 29 anos, retornado jovem do Rio de Janeiro e São Paulo, morador de Varjota – entrevista em janeiro de 2006)

Como vimos anteriormente, a dimensão simbólica da desterritorialização não se

manifesta sozinha, mesmo porque as dimensões do território constituem-se uma através da

outra, mas manifesta-se muitas vezes com mais força quando a condição econômica, ou

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política não é favorável ao migrante. Podemos notar que a diferenciação cultural, feita

pelos cariocas, que marcou a trajetória de Eudes, reverteu-se em saudade do lugar de

origem, onde estavam aqueles com quem se identificava. Possivelmente esta

diferenciação/identificação seria menos evidente se Eudes fosse um empresário bem

sucedido financeiramente. Ou seja, a diferença de classe é sempre um elemento marcante

na questão da territorialização.

Podemos afirmar que no retorno o indivíduo “processa” as experiências territoriais

vividas no território de imigração com aquelas que ele territorialmente reconhece e, ainda,

com aquelas que estranha no território de origem. Esse reconhecimento/estranhamento leva

os retornados a criarem ou aplicarem estratégias que são influenciadas pelas experiências

adquiridas nas suas múltiplas territorialidades. Neste momento é que percebemos o

surgimento de uma nova territorialidade, agora múltipla, pois mescla as influências

territoriais vividas por estes indivíduos.

Mais do que “território” unitário como estado ou condição clara e estaticamente definida, devemos priorizar assim a dinâmica combinada de múltiplos territórios ou “multiterritorialidade”, melhor expressa pelas concepções de territorialização e desterritorialização, principalmente agora que a(s) mobilidade(s) domina(m) nossas relações com o espaço ... No caso de um indivíduo e/ou grupo social mais coeso, podemos dizer que eles constróem seus (multi) territórios integrando, de alguma forma, num mesmo conjunto, sua experiência cultural, econômica e política em relação ao espaço (Haesbaert, 2004: 341).

Interessante é ver que a lógica capitalista, quase sempre privilegia o aspecto

funcional do território, ou então, dissocia o funcional do simbólico e do político.

(...) Lefebvre distingue apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”), o primeiro sendo um processo muito mais simbólico, carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso, o segundo mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca (...) é interessante observar que, enquanto “espaço-tempo vivido”, o território é sempre múltiplo, “diverso e complexo”, ao contrário do território “unifuncional” proposto pela lógica capitalista.Podemos então afirmar que o território, imerso em relações de dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço, “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’... Segundo Lefebvre, dominação e apropriação deveriam caminhar juntas, ou melhor, esta última deveria prevalecer sobre a primeira, mas a dinâmica de acumulação capitalista fez com que a primeira sobrepujasse quase completamente a segunda, sufocando as possibilidades de uma efetiva “reapropriação” dos espaços, dominados pelo aparato estatal-empresarial e/ou completamente transformados em mercadoria (Haesbaert, 2005:1-2).

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Ao contrário do que nos leva a crer, a aparente desterritorialização proporcionada

pela dominação dos espaços em detrimento da sua apropriação, mascara a construção de

uma nova territorialidade, como tentamos descrever logo acima, uma territorialidade

híbrida que nem mesmo os próprios migrantes percebem de imediato. O retorno, e a

vivência no território de origem é que propicia a real percepção do quanto o território de

imigração contribuiu na construção de uma territorialidade múltipla. A fala que segue

expressa a percepção de uma mudança comportamental de uma retornada notada no

retorno.

É muito importante também quando você tem um convívio com pessoas educadas, o fato de você chegar: “bom dia, por favor, com licença, posso entrar”. Aqui não existe isso, é uma realidade... O convívio com as pessoas acaba te lapidando um pouco, acaba lhe dando características que não são suas, mas que passaram a ser... (Andréia, 22 anos, retornada do Rio de Janeiro, moradora de Quixadá – entrevista em julho de 2005).

A retornada mencionada, apesar de mostrar um discurso bastante conservador no que

se refere à percepção da educação dos seus conterrâneos, demonstra que ocorre uma

mudança considerável na maneira como passa a se relacionar com as pessoas depois de

passar uma temporada no Rio de Janeiro. Ainda reforça a percepção de um sentimento de

inferioridade em relação aos cariocas, indo ao encontro da fala de Eudes, citada

anteriormente. A imagem de um lugar onde se pressupõe haver pessoas melhor instruídas,

torna a mudança comportamental uma “pista” da mudança no envolvimento com o território

de origem. Na verdade esta é uma característica relevante para uma investigação sobre a

territorialidade do retornado. A mudança na percepção do seu território, as ações sobre o

lugar de origem e a mudança no seu próprio modo de ser, mostram para os outros o quanto a

migração valeu, ou não, a pena. Em outras palavras, os retornados mostram, por meio de

uma reterritorialização com maior ou menor influência da metrópole, o quanto a migração é

válida e esta apresentação é fundamental na manutenção das redes migratórias. Neste caso a

multiterritorialidade assume um importante papel na explicação da reterritorialização do

retornado.

Podemos afirmar, porém, que nem todos os retornados vivenciam da mesma forma a

multiterritorialidade. Quanto a isto, acrescentamos que todo indivíduo é multiterritorial

(Haesbaert, 2004: 349), no entanto, vale ressaltar que a multiterritorialidade dos retornados é

acionada como estratégia espacial durante a reterritorialização no território de origem.

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Sendo assim, os retornados apresentam diferentes formas de reterritorialização frente à

realidade dos municípios para onde regressam.

Durante as pesquisas de campo, questionávamos os retornados sobre as principais

diferenças, inclusive na relação com o território, que percebiam entre eles e os naturais

daquele lugar, que nunca migraram. Uma das respostas foi a que expusemos logo acima, na

fala de Andréia, mas a fala a seguir traz outros elementos:

(...) Eu costumo falar, às vezes eu faço comparações com relação às pessoas que moram na minha cidade e não tiveram a oportunidade de conhecer um grande centro, ou serem escravizadas pelos portugueses de alguma forma no Rio de Janeiro, o nosso cérebro, das pessoas que saem daqui e conhecem o país em geral... se for relacionar o tamanho do cérebro dele com o tamanho do cérebro das pessoas que nascem e crescem aqui na nossa cidade ... mas se ele não teve a oportunidade de conhecer lugares diferentes ... É como se você comparasse um grande coco-da-praia com uma laranja bem pequenininha... Tem que querer chegar no Rio de Janeiro e expandir seu cérebro, senão, se quiser também fica atrofiadinho ( Lourenço, 32 anos, retornado jovem do Rio de Janeiro, morador de Guaraciaba do Norte – entrevista em janeiro de 2006).

A fala de Lourenço ilustra o que entendemos por diferentes níveis de vivência dos

territórios de imigração. Este é um elemento claramente singular em cada migrante. Cada

um, partindo das diferentes possibilidades que a metrópole oferece e da inserção dos

migrantes neste universo de alternativas, experimenta situações que contribuem na

conformação de sua territorialidade.

Lourenço apresenta sua percepção acerca da diferença entre os níveis de vivência

dos múltiplos territórios possíveis que a metrópole oferece. Níveis que se manifestam

também em função da época em que houve a migração, ou seja, há diferenças de

experiências territoriais entre os retornados jovens e maduros, níveis que dependem das

peculiaridades individuais, como já mencionamos e também, de modo muito presente, da

condição de classe em que estão inseridos. Lourenço, por exemplo, saiu de Guaraciaba aos

18 anos e experimentou uma vida no Rio de Janeiro repleta de dificuldades: trabalhou em

um bar (em Copacabana) enquanto morava na favela (morro do Pavãozinho), depois

arranjou um emprego numa padaria onde ficou até retornar. Nesta padaria, trabalhou e

morou por cerca de quinze anos, até quando concluiu a licenciatura em matemática por

uma universidade pública da cidade.

Apesar de diferenciar-se dos outros retornados por ter concluído um curso superior,

com relação às dificuldades vividas, teve uma estada no Rio de Janeiro típica dos migrantes

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nordestino numa grande metrópole. Seus vínculos com o território de imigração, porém,

tornaram-se muito mais intensos na medida em que passou a usufruir mais dos atributos

metropolitanos, tais como uma boa universidade, ao contrário do que ocorre com outros

migrantes, como a Sra. Maria do Socorro, paraibana, moradora do Rio das Pedras e

analfabeta. Para esta a metrópole se apresenta na sua forma mais cruel, a exclusão dos

mesmos atributos dos quais Lourenço usufruiu.

Em relato apresentado pelo jornal “O Globo”, na série de reportagens já

mencionada, esta senhora, decepcionada com a cidade, sonha em tornar realidade seu

retorno (“O Globo”, 18/05/2005, p. 15). Para pessoas como ela, a exclusão espacial acaba

por ser mais uma face do processo de desterritorialização, o que seria um aspecto negativo

em relação à percepção do território de imigração. Também poderíamos perceber esta

forma de se territorializar na metrópole mais como um confinamento, ou reclusão, devido à

condição em que vive. Logo, as oportunidades de experiências na metrópole que Lourenço,

que cursou uma universidade, e a Sra. Maria do Socorro, que nunca estudou, podem ser

muito diferenciadas.

A comparação entre o caso da Sra. Maria do Socorro e de Lourenço, confirmam o

que Haesbaert, ao se apresentar como exemplo, fala sobre a multiterritorialidade

metropolitana:

Para usufruir toda essa multiterritorialidade, preciso de muitos cartões, chaves e senhas, ou seja, tanto ciberconexões (como no caso do computador) quanto “permissões” para ser admitido nessas zonas ou relais (...) Estamos num grande labirinto de ins e outs, desterritorializações e reterritorializações. Este movimento significa possibilidades, acesso, abertura, mas também, ao mesmo tempo, significa exclusão, grandes exclusões espaciais de vastas áreas e, assim, de mobilidade e relacionamento humano através da cidade (Haesbaert, 2004: 351-352, grifos do autor).

Na mesma reportagem, vemos se concretizar o que Haesbaert mostra como a

necessidade de “cartões, chaves e senhas” ou ainda “permissões” para usufruir dos

múltiplos ambientes da metrópole:

Silvaneide Rodrigues da Silva, 26 anos, moradora da Favela da Maré (...) desembarcou no Rio, há cinco meses, vinda de Serra Branca, para encontrar o marido (...) que trabalha como entregador de bebidas (...) Trabalhando como auxiliar de limpeza numa ONG da Maré, Silvaneide se emociona ao lembrar o dia em que precisou testar 30 chaves para abrir uma porta: ela não sabia ler as etiquetas que identificavam as chaves. No Rio ela só conhece a Favela da Maré. A falta de instrução faz com que ela se sinta estrangeira numa

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cidade de 5,8 milhões de moradores com taxa de analfabetismo de 5,2%, uma das menores do país (“O Globo”, idem:16)31

A experiência desta migrante no Rio de Janeiro é, infelizmente, a mesma de

milhares de migrantes que, devido às suas condições limitadas de escolaridade, tornam-se

excluídos das possibilidades de usufruir de uma multiterritorialidade, vivendo em

“territórios mínimos” da metrópole, territórios estes que se caracterizam pela escassez e

pela instabilidade. Mas, apesar destas características pouco atraentes, a criatividade

humana consegue inserir estes “territórios mínimos” em territórios-rede mais amplos. Ou

seja, as populações migrantes, especialmente as que se aproximam do que é conceituado

como “diáspora”32, transformam essa pequena porção espacial conquistada na metrópole,

numa parte do território-rede “diaspórico”. É o que podemos dizer de lugares como a

Rocinha, Rio das Pedras, Nova Holanda e outras mais, para citar apenas a cidade do Rio de

Janeiro.

...Como você sabe, a Rocinha é um lugar que tem fama de perigoso, mas apesar daquilo (...) eu gostava muito mais da Rocinha do que onde eu morei na Baixada [Cabuçu, Nova Iguaçu], porque muitos colegas daqui eu conheci a gente se deparava assim (...) passeava no shopping (...) era legal demais, aí já foi outro lado muito bom (Eudes, retornado, morador de Varjota – entrevista em janeiro de 2006).

Não pretendemos nos ater a essa observação, contudo, cremos que ela reflete o que

os níveis de participação na metrópole podem gerar em termos de reterritorialização – este

pode ser um caminho para um trabalho futuro.

Retomando o caso de Lourenço, podemos dizer que sua reterritorialização foi de tal

modo intensa que ele afirma: “costumo dizer que eu não gosto nem de ouvir falar mal do

Rio de Janeiro (risos)”. Intensa no sentido de se observar diversos vínculos funcionais com

o território durante seu período de imigração, tais como a construção de residências para

aluguel no Morro do Vidigal, e vínculos simbólicos como a manutenção de laços de

amizade com diversos habitantes naturais do Rio. Esta particularidade reflete a constante

ampliação do território-rede do migrante. Notemos que o investimento que realizou no Rio

de Janeiro, foi em um lugar onde há a presença forte de migrantes nordestinos e onde seu 31 Vale ressaltar que o uso das experiências de migrantes oriundos de outros estados nordestinos, como a reportagem apresenta, não invalida o exemplo à medida que estas experiências podem ser estendidas aos migrantes cearenses.

32 Neste caso, servindo-nos dos critérios que Haesbaert (1997) usou para classificar a rede gaúcha no Nordeste como uma “diáspora”, poderíamos falar numa “diáspora” nordestina (sempre entre aspas).

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lugar de origem pode ser, em certa medida, revivido graças à presença forte de migrantes

nordestinos, especialmente cearenses. Ao ser questionado sobre o motivo de ter feito seu

investimento no Morro do Vidigal (tendo em vista que ele não residiu lá e sim no Morro do

Pavãozinho), respondeu: “porque lá (no Morro do Vidigal) eu tinha conterrâneos e muitos

amigos”.

Arimatéia, ao contrário do que disse Lourenço acerca do Rio de Janeiro, registrado

no início do item 2.1, não guarda boas lembranças do Rio, todavia, seus discursos tornam-

se semelhantes quando se trata de Brasília. Sua gratidão é explícita, inclusive afirmando

que, num caso de necessidade, migraria novamente para Brasília e, jamais para o Rio de

Janeiro novamente. Aliás, mais uma indicação da importância da multiterritorialidade do

retornado no que se refere a sua experiência migratória: a ida para mais de uma metrópole,

algo que também não pode ser desenvolvido neste trabalho.

Mais do que gratidão, as experiências territoriais dos migrantes na metrópole lhes

imprimem novas maneiras de perceber e produzir o espaço. E todos eles vêem essa

mudança de modo positivo, mesmo que isto esteja implícito nos seus discursos. Podemos

fazer esta afirmação quando notamos que nenhum migrante retornado dentre os 52

entrevistados, mostrou-se totalmente avesso à idéia de uma volta à metrópole, no caso de

uma necessidade extrema. Muito menos os que estão no início da chamada idade

economicamente ativa, os quais consideramos como retornados jovens, como definimos no

capítulo anterior.

Cabe ressaltar aqui que estes migrantes unem duas realidades muito distintas: a de

uma cidade interiorana, por vezes, intimamente ligada ao meio rural, ou seja, um urbano

repleto de ruralidades, à de uma metrópole, onde a paisagem urbana se apresenta de modo

muito mais denso e complexo.

As pessoas da zona rural continuam, mais ainda que o pessoal da cidade, com esse sonho de correr atrás do moderno, da cultura da cidade, “pra” São Paulo, “pro” Rio (...) Metade (dos que retornam) vão “pro” campo, agora a outra metade fica na cidade, talvez a metade que está indo “pro” campo esteja mais satisfeita do que os que “tão” ficando na cidade, porque as cidades estão numa correria danada, estão inchando às cidades (...) emprego não existe mais (...) o campo não continua mais uma opção, ele é, realmente, a alternativa (Eronilton, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Quixadá – entrevista em julho de 2003).

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O contato entre o campo e a cidade na pessoa do retornado produz um híbrido e é

nisto que reside um outro sentido em que percebemos a territorialidade do migrante como

uma multiterritorialidade. Uma territorialidade que mescla aspectos da sua territorialidade

rural, ou de uma cidade pequena, com uma territorialidade urbana, fruto do contato do

migrante com a metrópole. Estas experiências territoriais produzem possibilidades de re-

territorialização totalmente novas, geralmente relacionados a carências funcionais do

território de origem que o retornado poderia sanar a partir de seu know-how na metrópole.

Ou seja, o retornado, especialmente o jovem, vê uma demanda, no lugar de origem, que

pode ser suprida com sua experiência. O retornado maduro, por sua vez, compactua com o

“empreendedorismo” do jovem, pois parece entender que isto traz progresso ao lugar,

aproximando este retornado de uma territorialidade vivenciada no espaço metropolitano.

A fala de Eronilton, que nunca migrou, enfatiza o meio rural como a única

alternativa do retornado, fato que verificamos ser parcialmente verdadeiro. É certo que o

campo não é a única alternativa do que regressa, mas é um importante espaço de

reterritorialização (como veremos adiante).

O retornado, portanto, é como se fizesse o feedback do contato campo-cidade,

trazendo tudo aquilo que se processou entre duas realidades tão distintas. Realidades que

ultrapassam os aspectos visíveis da paisagem, presentes, acima de tudo, nas relações, nos

hábitos, nos dizeres, nos sons, nos gostos etc. Enfim, realidades que se tornam híbridas no

retornado. Deste modo, podemos perceber o surgimento de uma nova forma de leitura de

mundo, de novos modos de vida que parecem transformar os espaços nos quais se

reterritorializam.

3.1 Retornados, indivíduos multiterritoriais.

Dissemos na introdução deste capítulo, quando citamos a fala de Lourenço, que o

retornado é o que realiza o feedback entre as duas territorialidades: a constituída na

metrópole e a territorialidade anterior do lugar de origem. Este feedback é percebido pelo

próprio migrante através do quanto ele se mostra capaz de hibridizar a duas

territorialidades.

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A multiterritorialidade, enfim, pode ser percebida como um elemento imanente ao

migrante. Na condição em que se encontra o migrante retornado, as múltiplas

territorialidades vêm à tona, pois o lugar de origem já não é mais o mesmo, assim como a

sua experiência. Novas territorialidades são constituídas na articulação de com múltiplas

territorialidades pretéritas. O retorno é então, a despeito de todas as possibilidades que o

possam ter causado, um “acionador” de esperanças, vinculadas diretamente à estas

múltiplas territorialidades. É importante notar que junto a este movimento territorial a

esperança está sempre presente. É no território de origem que a multiplicidade de

experiências acumuladas no território de imigração será materializada, o que sempre

colabora para a motivação e a esperança do retornado. Por este motivo a inevitável

multiterritorialidade – por menor que seja a intensidade desse “multi” – estará densamente

povoada das esperanças que poderão ser realizadas ou frustadas.

Ao esbarrarmos neste ponto, somos levados a refletir também sobre as ilusões do

retornado. Que não seja entendido como pretensão nossa fazer uma análise das suas ilusões

(e frustrações), o que buscamos, contudo, é comentar a importância geográfica dessas

experiências que muitas vezes não se realizam, ou, em outras ocasiões, a própria realização

resulta em uma nova migração.

Podemos observar o caso de Cristiano para melhor evidenciar a influência das

frustrações na configuração de territorialidades. Morador de Guaraciaba do Norte,

entrevistado em julho de 2005, afirmou-nos que, entre duas viagens de imigração para o

Rio, respectivamente para Rio das Pedras e Jacarepaguá, “‘teja’ bom ou ruim, é o jeito

ficar” no Ceará. O que esta afirmação nos suscita é uma certa resignação quanto ao lugar de

reterritorialização, demonstrando uma certa frustração que se concretiza na sua

territorialidade.

Em sua primeira viagem, empregou-se vendendo picolés, porém a dificuldade em se

manter levou-o ao primeiro retorno, disse-nos que voltou para “juntar terra com os pés”, ou

seja, para trabalhar na lavoura, e na segunda vez em que migrou, empregou-se como

zelador de um restaurante, desta vez retornou para reconstruir o telhado de sua casa que era

de palha. Entre as duas migrações ao Rio, foi também para Parnaíba, no Piauí, onde se

empregou em quiosques na praia, afirmando que este lugar ele “achava mais melhor para

trabalhar”, mas apesar disto, retornou ao Ceará porque, segundo ele, “seu lugar é lá”. Por

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não ter “arrumado recursos”, ou seja, por não ter trabalhado de carteira assinada, decidiu

voltar e atualmente trabalha na roça, mas deseja voltar ao Rio assim que tiver

possibilidade33.

Notamos na sua fala uma certa frustração por não ter conseguido um emprego de

carteira assinada no Rio, o que o teria impedido de realizar seus planos, fazendo-o voltar. É

importante ressaltar a valorização dada aos aspectos formais do emprego, afinal, o trabalho

não-formal é um traço comum no seu lugar de origem. Isto trouxe implicações diretas à sua

territorialidade metropolitana. De igual modo, sua resignação em ficar em Guaraciaba,

estando “bom ou ruim”, juntamente com uma certa despeita em relação a uma das irmãs

que conseguiram se estabelecer no Rio, demonstram que a vivência de múltiplos territórios,

independente dos motivos que movem o migrante, contribuem para a complexificação da

sua multiterritorialidade. Se suas idas e vindas tivessem concretizado seus projetos,

Cristiano, possivelmente, teria acionada sua multiterritorialidade efetivamente, de modo

que sua fala não mostrasse a resignação quanto às condições que vivencia no território de

origem.

Como dissemos logo acima, a esperança permeia todos os retornados, e essa

esperança é motivada pelas possibilidades geradas pelas experiências e pelos recursos

adquiridos na metrópole, juntamente com as oportunidades apresentadas pelos lugares de

origem.

A expectativa dos migrantes em relação ao retorno ao território de origem é um

forte indício de que a multiterritorialização do retornado é um processo ativo e em

constante transformação, pois, obviamente, a multiterritorialidade se faz na transformação e

na atividade constante, pois é por meio do movimento que as múltiplas territorialidades são

“alimentadas”. A este respeito, Haesbaert não afirma claramente, mas nos permite concluir

quando cita os casos da multiterritorialidade individual nas metrópoles e a das diásporas.

Em ambos os casos, o movimento é uma marca, e é neste movimento que as relações que

constróem os territórios se constituem, apesar de deixar claro que movimento não é

sinônimo de velocidade, pois partilha da opinião de Virilio ao dizer que quando se vai

33A possibilidade à qual se refere, diz respeito aos cuidados dispendidos com o pai idoso e doente no Ceará. Vale lembrar que suas irmãs, moradoras do Rio de Janeiro, apóiam sua volta a esta cidade (entrevista em julho de 2005).

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depressa demais, somos inteiramente despojados de nós mesmos, tornando-nos

completamente alienados (Haesbaert, 2004: 370).

A multiterritorialidade do retornado poderia ser vista, analiticamente, sob o seu

aspecto simbólico, político e funcional; ao dois últimos, reservamos o próximo item para

discussão. Quanto ao aspecto simbólico, podemos apresentar algumas falas que ilustram o

fato do migrante ter deixado seu lugar com um certo “estigma” de inferioridade e quando

retorna já não se percebe mais dessa forma: “... o nordestino, em si, tem um espírito de

inferioridade muito grande (...) às vezes uma simples palavra a pessoa já fica assim

desmotivada ...”(João, migrante, morador da Rocinha).

(...) Eu pensava no que ia falar, medo ... A gente tem mesmo medo de abrir a boca e falar errado, o sotaque. Quando me casei, encontrei muita dificuldade. Eu fui trabalhar num setor mais um rapaz e ele dizia assim “pra” mim: você é muito bonitinha, mas de boca fechada. Aí eu disse assim: por que? Que eu falo errado? ... Aí ele disse assim: ah, esse seu sotaque cantando parece assim, segundo eu ouvi falar, é na Amazônia que tem esse sotaque (...) Queria dizer que eram os bichos quando se reúnem, sabe?!! À noite, principalmente à noite! Queria tirar onda com a minha cara, “né”? (Francisca, moradora de Guaraciaba, retornada jovem do Rio de Janeiro – entrevista em janeiro de 2006).

(...) Isso é notório [a diferença dos retornados em relação aos que nunca migraram] apesar de eu não ter estudo mas (...) se eu não tivesse saído, à vista dos que estão aqui ... a gente abre mais a mente, a gente (muda) também na maneira de falar, a gente é bem mais desenvolvido do que os que nunca saíram. Eu tenho exemplo (...) dos meus irmãos que nunca saíram. Eles são mais diferentes (...) no sentido de falar, no sentido de raciocinar, de resolver questões. Porque, você sabe, que o nordestino, por natureza é machista (...) já eu, que já tive experiência (...) digo: não gente, não é bem assim (...) no sofrimento aprendi coisas boas (Eudes, morador de Varjota, retornado jovem do Rio de Janeiro e São Paulo, grifos nossos – entrevista em janeiro de 2006).

No processo de reterritorialização, o retornado se percebe diferente em relação aos

seus conterrâneos sempre em termos simbólicos, mas nem sempre no aspecto financeiro.

Ou seja, as mudanças financeiras, que o levaram a migrar, podem até não ocorrer durante a

migração, mas sua percepção simbólica do mundo, certamente, sofrerá transformações. Isto

por vezes gera um estranhamento entre os que nunca migraram e os que retornaram. De

maneira semelhante vemos ocorrer com os caboverdianos analisados por Dias.

(...) há uma certa expectativa em relação às pessoas que partem para outros países. Espera-se delas que, ao voltar, apresentem uma atitude diferente, informada pelas novas idéias e valores com os quais tiveram contato. Não se espera ver em um emigrante retornado o mesmo homem de antes da partida (2000: 78).

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A reterritorialização na metrópole, em muitos casos, imprime no migrante a

superação de condições adversas, fazendo-o, muitas vezes, suplantar a timidez e o

sentimento de inferioridade por um empreendedorismo vigoroso e destemido, ou seja, uma

capacidade de transformar limitações como o medo e a vergonha em virtudes que

promovam sua ascensão social. Evidentemente, não podemos ver isto como uma regra, haja

vista o trecho da reportagem do jornal “O Globo”, citada anteriormente, quando mostra o

caso da Sra. Maria do Socorro, mas devemos considerar as ações individuais na superação

das adversidades.

Eudes, um dos retornados citados anteriormente, em sua segunda viagem ao Rio de

Janeiro, passou por muitas dificuldades por não conseguir um emprego. Após quatro meses,

tendo seus recursos acabado, o que impedia sua procura por trabalho, sua tia – com quem

residia – deu-lhe três reais. Caminhou até o CEASA, comprou um saco grande de limões e

fez pequenos sacos desta fruta cuja venda, em um carrinho de mão, rendeu-lhe dezessete

reais, destes passou a vender milho verde e aipim. Com a renda, cerca de cem reais, passou

a vender refrigerantes e outros produtos até ter uma margem de lucro de mais de cem reais,

o que lhe deu a oportunidade de procurar um trabalho formal novamente.

Sua experiência o levou a uma transformação pessoal, e isto foi afirmado por ele

mesmo. Contudo, por ser a experiência migratória de algum modo transformadora, é que,

muitas vezes, os naturais do lugar que nunca migraram revelam o já mencionado

estranhamento frente a estes retornados, agora indivíduos multiterritoriais:

...Quando você chega do Rio de Janeiro (...) você pode ir (...) e voltar nordestino do mesmo jeito sem ter adquirido nenhuma cultura... Eu acredito que [muitos] voltem um pouco “cariocas”, metidos a bestas, meio tatuado, cheio de gíria, tatuado, cordão de prata... Quando você chega num lugar como esse aqui, você tem que ter muito cuidado ao se expressar porque se não você vai estar ofendendo a maior autoridade da tua cidade. Porque essas pessoas vão te chamar de besta, porque você aprendeu a falar, você aprendeu a questionar tudo aquilo que gira em torno de você: a política, a educação, a saúde, o carro (...) do cara. Porque, às vezes, o cara na minha cidade, por exemplo, ele não tem nada, ele não tem cultura, ele não tem nada, mas ele tem um carrão, ele tem uma casa boa. Então ele sente que é superior a todo mundo, mas ele nunca parou para ler um livro de Paulo Freire (...) Vigotsky, sobre Piaget, sobre Fanon, sobre Rubem Alves (...) Ele é ali um coitado andando... mais um que acha que é alguma coisa por ter bens materiais (Lourenço, 32 anos, retornado jovem do Rio de Janeiro, morador de Guaraciaba do Norte – entrevista em janeiro de 2006)

O que Lourenço tornou explícito foi aquilo que já havíamos tentado comunicar

quando, falando da tipificação que ocorre tanto para o migrante retornado, quanto para

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aquele que ficou e reencontrou o migrante, buscamos mostrar o quanto há de estranhamento

entre estes dois que se expressa até mesmo numa resistência dos locais. Embora partilhem

de uma mesma identidade territorial, suas identificações com o lugar variam segundo as

experiências “congeladas” do retornado acerca do lugar de origem e as experiências

dinâmicas e atuais dos que ficaram no lugar. A citação de Dias (2000), apresentada na

página 85, mostra-nos que o espaço vívido é aquele experimentado por quem não deixou o

território de origem, enquanto para o retornado esse espaço é tipificado. Dias ainda nos

mostra que neste jogo de identificação com o lugar está a manipulação das múltiplas

identidades, ou ainda, podemos acrescentar, das múltiplas territorialidades:

O emigrante que se afirma definitivamente como francês e é assim visto pelos outros perde seu lugar dentro da sociedade cabo-verdiana. Se, por outro lado, define-se exclusivamente como cabo-verdiano, abre mão do que caracteriza o encanto e o prestígio dos emigrantes, que é justamente sua capacidade de estar ao mesmo tempo próximo e distante (2000: 79, grifos nossos).

Lourenço expressa a reação de quem experimentou a metrópole e usufruiu o

múltiplo peculiar das grandes cidades, mas como ele mesmo nos ressaltou anteriormente,

este usufruto decorre das oportunidades e objetivos individuais e, fundamentalmente, das

possibilidades a que são submetidos os migrantes.

É comum o fato de alguns retornados terem buscado um aperfeiçoamento

profissional na metrópole e, ao retornar, aplicarem seu conhecimento no lugar de origem.

Na verdade, isso foi recorrente em nossa pesquisa. Apesar de termos reservado o último

trecho deste capítulo para falarmos especificamente deste assunto, convém que façamos

uma observação: o investimento do retornado é outro fator indicativo de uma

multiterritorialidade. Neste caso, mais direcionado ao aspecto funcional, todavia, integrante

da identidade do migrante, gerador de um impacto territorial.

Ao tentarmos fazer um inventário da multiterritorialidade do migrante cearense,

questionamo-nos se a condição da sua existência não seria explicada exatamente pela

capacidade humana única de vivenciar múltiplos territórios. Haesbaert afirma isto ao citar

Yves Barel:

(...) o homem, por ser um animal político e um animal social, é também um animal territorializador [poderia ter dito também “territorial”, pois não há homem sem território]. Diferentemente, talvez, de outras espécies animais, seu trabalho de territorialização apresenta, contudo, uma particularidade marcante: a relação entre o indivíduo ou o grupo

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humano e o território não é uma relação biunívoca. Isto significa que nada impede este indivíduo ou este grupo de produzir e de “habitar” mais de um território. (...) é raro que apenas um território seja suficiente para assumir corretamente todas as dimensões de uma vida individual ou de um grupo. O indivíduo, por exemplo, vive ao mesmo tempo ao seu “nível”, ao nível de sua família, de um grupo, de uma nação. Existe portanto multipertencimento territorial (Barel, Y. Apud. Haesbaert, R. 2006:16).

É, pois, esta uma afirmação difícil de ser contestada, logo, torna-se quase

impossível manter o discurso da desterritorialização sem que se leve em conta a

multiterritorialização. No entanto, há sempre um território de referência. A este vincula-se

a principal marca identitária, ou sua referência maior de territorialidade. A condição de

multiterritorialidade pode também ser permeada pela capacidade de se identificar com o

movimento “interterritorial”, mas quando se trata de analisar este fenômeno à luz da

questão migratória, parece que a fixação fala mais alto que a mobilidade.

Em diversos momentos da coleta e análise dos dados, percebemos que muitos

retornados, apesar das intensas idas e vindas, buscavam se fixar em um dos lugares onde

criavam alguma territorialidade.

Quando víamos que a maioria dos migrantes entrevistados tinha realizado ao menos

dois movimentos migratórios para o Sudeste, ou ainda para localidades de outras regiões,

tínhamos uma primeira impressão de que o migrante se territorializava na verdade na

mobilidade e não na fixação. Porém, um olhar mais cuidadoso nos mostrou o contrário.

Nós já moramos no Rio de Janeiro há muitos tempos. Nós “tamos” acostumados a ir no Rio de Janeiro morar lá. Passa dois anos, passa três anos, passa quatro anos. A primeira vez [1958] passamos quatro anos, a segunda vez passamos três anos, a terceira vez moramos dois anos, e as outras vezes todas eu só ia à passeio (...) e as outras vezes ele [o marido, seu Manezinho] ia muitas vezes, mas só trabalhar... Ele ia passava meses lá, três quatro meses e eu ficava. Ele ia só trabalhar (Dona Teresinha, 75 anos, retornada madura do Rio de Janeiro, moradora de Varjota – entrevista em julho de 2005).

... Eu saí daqui atrás de uma melhora lá. O negócio não foi para conhecer, que sabe que quem viaja daqui para lá (...) a gente padece um pouco. A primeira [viagem ao Rio] foi fácil, passei um mês, arrumei um emprego, mas a segunda já foi muito difícil... Dessa vez, que eu fui [para o Rio], eu fui morar na Rocinha. A última vez, voltei novamente. Aí eu digo assim: agora vai dar certo. Disse papai: “poxa” meu filho, você já tentou um bocado de vezes, não deu certo. É ilusão você só vai é sofrer. Dar preocupação à gente. Foi uma viagem que foi até mais marcante que a primeira, não sei por quê. Agora você vê, foi uma choradeira geral dos meus familiares, mas eu digo: eu vou tentar mais uma vez (...) vai dar certo!(Eudes, entrevista em janeiro de 2006).

Numa rápida observação destas falas, podemos concluir que o retornado é um

indivíduo que tem na multiterritorialidade uma de suas características mais marcantes, mas

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tal condição se expressa no movimento que fazem de um lugar ao outro, e que esta

constância no movimento, ou seja, a mudança sem cessar é o que leva o retornado à uma

maior ênfase na sua condição multiterritorial. É como se criasse um território múltiplo, que

se reafirmasse no movimento entre um território-zona e outro. No entanto, as entrevistas

nos levaram a uma outra reflexão: o que realmente parece é que o constante movimento

cria uma situação de “estresse”, um incômodo pela falta de estabilidade: “foi só essa

vontade boba da gente ir, na intenção de ficar lá. A gente não se deu lá mesmo, nosso lugar

certo é aqui mesmo” (Dona Teresinha). O grifo que fizemos tenta assinalar a diferença

percebida entre alguns migrantes ao modo de vida metropolitano. No item 1.3.2, vimos que

Maria Nilma, em sua fala, expressa o que estamos entendendo por “situação de estresse”, o

“caos” urbano, identificado por ela como “aqueles ônibus cheios, lotados, aquela correria,

aquele desespero”, caracteriza a percepção da diferença entre o território de origem e o de

imigração e, conseqüentemente a identidade territorial com o primeiro. Esta diferença de

percepção também parece se mostrar singularmente entre homens e mulheres, mas por ora

não entraremos nesta discussão.

Por outro lado, a “opção” por um ou outro território dependerá das condições

proporcionadas pela migração. Não depende somente do fato de haver ou não uma

identificação com o lugar. Aliás, muitos retornados maduros só retornam na maturidade

por que as condições funcionais de subsistência não permitiram um retorno definitivo na

juventude. É o que percebemos na fala a seguir:

Saí em busca de recursos, e consegui. Minha expectativa lá era arrumar recursos para viver aqui no Ceará (...) não tinha intenção de ficar lá no Sul não, era só arrumar, digamos, um meio de vida, para viver aqui (...) Se precisar eu volto, se não der “pra” eu ficar aqui, eu volto (...) Se eu chegar “pra” ficar lá hoje, eu não voltaria mais não, porque eu acho o seguinte: eu não vou ficar nessa alternativa a vida toda, lá e cá, lá e cá. Ou aqui, ou lá. Se eu for “pra” lá hoje é “pra” ficar. A gente vai ficando velho, passando o tempo, então ninguém pode ficar nesse negócio (Genival, 31 anos, retornado jovem do Rio de Janeiro, morador de Varjota – entrevista em julho de 2003).

Pareceu-nos que, para os retornados, a fixação em um local é o que permite a

concretização dos planos e é isto que mantém a esperança, contrariamente, a não-

concretização leva à frustração pessoal e estimula a nova migração. Notemos que na fala

anterior de Eudes está a reafirmação da esperança: “agora vai dar certo!” Quando fez esta

última viagem, já tinha planos de se casar, havia deixado uma noiva no Ceará e prometido

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o retorno para o casamento e a fixação no lugar de origem. De modo semelhante, Genival

afirma que não “pode ficar nesse negócio” de ir e vir indefinidamente. Em nosso

entendimento, quando isso acontece (vale lembrar que é muito comum estas idas e vindas

entre os migrantes jovens) parece que não é simplesmente pelo fato de se identificarem

com o movimento, mas sim porque seus objetivos ainda não foram atingidos.

Dentre as últimas entrevistas, Paulo, 31 anos, retornado jovem do Rio de Janeiro e

São Paulo, morador de Varjota, devolveu a pergunta que lhe fora feita, invertendo os

lugares: “você conseguiria viver aqui, deixando o Rio de Janeiro?” Ao ouvir a resposta

negativa de minha parte, disse-me: “Não seria este mesmo motivo que me fez querer voltar

para cá?” O motivo que ele menciona, se refere à territorialização naquele lugar. Na minha

resposta lhe fora dito que diversos motivos, dentre eles a questão econômica e, sobretudo,

simbólica, impediam-me de morar no Ceará.

Sua iniciativa nos levou a duas conclusões bem objetivas: uma coaduna com o que

dissemos no início deste capítulo, em consonância com o início do trabalho: precisamos

ver os retornados para além da dicotomia sujeito-objeto, dando-lhes voz, pois trata-se de

uma pessoa que possui razão e pensamento, sentimentos e emoções, e não somente

necessidades básicas.

A segunda conclusão, porém, veio da reflexão que fizemos quanto ao comentário

do retornado acerca de nossa resposta a sua pergunta. Constatamos que o retornado é

também responsável, em alguma medida, por suas ações, buscando seus desejos com

determinação e não somente vivendo a mercê dos fluxos de mercado e da macro-economia,

apesar destes serem, do ponto de vista funcional, importantes elementos na constituição de

sua territorialidade. Portanto, o sujeito retornado vive o real também como protagonista de

sua existência, sem desconsiderarmos, contudo, o papel dos agentes como o Estado e os

fluxos de capitais. Afinal, o retornado não é só moderno, é “tradicional” também. É urbano

e é rural simultaneamente. Homi Bhabha nos ajuda a entender melhor esse agente/sujeito.

Este autor faz uma linda reflexão sobre a emergência de um pensamento fundamentado nas

experiências que estes agentes (novos sujeitos) trazem neste momento:

A contingência do sujeito como agente é articulada em uma dupla dimensão, uma ação dramática. O significado é distanciado; o entre-tempo resultante descerra o espaço entre o léxico e o gramático, entre a enunciação e o enunciado, no intervalo do ancoramento dos significantes. Então, de repente, esta dimensão espacial intervalar, este distanciar-se,

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converte-se na temporalidade do “lançar” que iterativamente (re)torna o sujeito como momento de conclusão e controle: um sujeito histórica e contextualmente específico. Como poderemos pensar o controle ou a conclusão no contexto da contingência?Precisamos, o que não nos surpreende, invocar ambos os significados de contingência e depois repetir a diferença de um no outro. Lembrem-se de minha sugestão de que para interromper a estereotomia ocidental – dentro/fora, espaço/tempo – é preciso pensar, fora da sentença, simultaneamente de modo muito cultural e muito selvagem. O contingente é contigüidade, metonímia, tocar as fronteiras espaciais pela tangente, e ao mesmo tempo, o contingente é a temporalidade do indeterminado e do indecidível (...) (Bhabha, 2003:259, grifos do autor).

A contingência ou a não-repetição das experiências do retorno faz destes sujeitos,

agentes que, pela sua condição de estarem no entre-tempo resultante de suas experiências

(e por que não dizer, por estarem num “entre-lugar”), inauguram uma nova linguagem,

expressa na sua forma de falar, de lidar com o espaço, afinal a contingência não é só a

“temporalidade do indeterminado” é também a espacialidade deste indeterminado e deste

indecidível, uma forma diferente de viver o cotidiano.

Ora, mesmo observando que Varjota não é o local ideal para o investimento de

baixo capital, segundo as leis mais “smithianas” de condução econômica, Paulo nos dá

prova de que sua territorialidade primeira, aquela vinculada ao território de origem, fala

mais alto, refutando qualquer teoria que dê como única razão da migração as condições

econômicas. Paulo simplesmente prefere seu lugar de origem ao Rio de Janeiro ou São

Paulo, por isso retorna. Conforme havia lhe respondido. No entanto, nas ocasiões em que

migrou sua situação econômica estava fragilizada e seu lugar de origem não oferecia meios

para permanecer, porém seus objetivos sempre estiveram voltados à uma fixação no lugar

de origem, desse modo, tão logo pôde, tentou se reterritorializar em seu lugar de origem,

mesmo considerando que é um lugar pobre e muito menos dinâmico que a metrópole. Mas

pareceu-nos que nisto reside um importante aspecto de sua identidade territorial: o tempo

mais lento e um espaço menos fluido do seu lugar de origem em relação à metrópole.

Não queremos, contudo, retirar a importância do fator econômico no ato do retorno,

tampouco afirmar que a migração só tem como motivador a ação individual, os impulsos

do migrante. A crítica marxista da teoria liberal é rica no sentido de mostrar que os

migrantes, como portadores de trabalho, são levados pelos fluxos econômicos a buscar as

áreas de maior acúmulo de capital e se submeterem à ordem capitalista da acumulação.

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Entretanto, estes trabalhadores possuem capacidade de decisão pessoal que os transforma

em “sujeitos de suas ações”, retirando-lhe a posição equivocada de vítima.

Paulo fez-nos ver que o peso do território de origem, para muitos migrantes, é de tal

forma importante que é preferível abrir mão dos benefícios e das garantias34 econômicas

do trabalho metropolitano e da própria metrópole por uma territorialidade primeira, agora

já hibridizada ou, no dizer de Bhabha, agora na forma de um entre-tempo, e transformando

seu território de origem em um (por que não?) entre-lugar. Então, podemos dizer que os

retornados vivem uma multiterritorialidade capaz de fazê-los se reterritorializar com mais

facilidade nos lugares de origem, de modo que possam usufruir os benefícios

experimentados na metrópole num tempo-espaço não tão “veloz” e fluído.

3.2 A reterritorialização do retornado no Ceará

A experiência com os retornados foi para nós transformadora, não por ser deveras

importante (apesar de crermos que ela seja!), mas por nos dar a oportunidade de conhecer

um pouco mais o sujeito territorial retornado, o que nos possibilitou desvendar um mundo

que se apresenta maior que o conhecimento científico “tradicional” nos mostraria. Suas

territorialidades criam novas possibilidades espaço-temporais, dada sua multiplicidade,

combinações de territorialidades distintas que, por força das migrações laborais, cruzaram-

se e se reproduziram. Multiterritorialidades que, pela própria denominação, denotam uma

constituição múltipla de referências territoriais, ora mais voltadas para a funcionalidade do

território, ora mais voltadas para os aspectos simbólicos, ou ainda políticos, mas todos em

total interação, ainda que em intensidades diferentes, dependendo do indivíduo.

Dessa maneira, para compreendermos um pouco melhor tal multiplicidade,

propomos observar com maior acuidade, a partir das experiências migratórias, como se dá a

reterritorialização do retornado em seu lugar de origem – ou como já dissemos, em seu

34 Mencionar o termo “garantias” do migrante nos remete ao item 1.2.2, onde mostramos que muitos migrantes não conseguem o mínimo para subsistir nas metrópoles sendo este um dos motivos para o retorno. Contudo, há migrantes que conseguem garantir de forma satisfatória seus objetivos econômicos na metrópole e mesmo assim abrem mão de uma territorialização metropolitana em prol de um retorno ao território de origem. Portanto, quando nos referimos as garantias que o migrante procura, vinculamos esta noção a dimensão econômico/funcional da vida.

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lugar de retorno – e, conseqüentemente, como se processa a multiterritorialização – ou de

que forma a multiterritorialidade do retornado é acionada no território de origem.

Nos municípios pesquisados notamos uma considerável influência das metrópoles

do Sudeste, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. Esta influência se estende desde

nomes de estabelecimentos até modas no vestuário lançadas por novelas produzidas nestas

cidades. Apesar de estarmos conscientes que neste último caso a influência nada tem a ver

com os retornados, sabemos que sua presença, repleta de valores e comportamentos

metropolitanos, reforça o papel da mídia. Podemos dizer, então, que parte desta influência

nesses municípios e, por que não, em todos os lugares de emigração, é dada pelos

retornados, especialmente pelos jovens. Estes, principalmente por apresentarem para a

comunidade local uma série de novidades comportamentais, antes não tão marcantes.

Agregam-se a isso os investimentos que muitos destes retornados fazem na busca de

constituírem hábitos metropolitanos. Hábitos que, em muitos casos, foram-lhes atribuídos

por trabalharem em empregos que os estimulavam, como veremos no caso de Paulo, o

retornado citado anteriormente.

No âmbito econômico, os retornados influenciam no seu espaço de re-

territorialização de diversas formas, uma delas certamente é na esfera comercial,

entendendo-se esta como aquela que vai dos bens de consumo não-duráveis, como

alimentos, até vendas de eletrodomésticos, veículos, peças etc.. Inclusive na maioria das

cidades pesquisadas, é comum vermos pequenos comércios, conhecidos com bodegas35 (as

tradicionais mercearias), que vendem todo tipo de produtos domésticos sendo mantidas por

retornados. Esta variedade comercial é quase uma regra entre aqueles que retornaram e

foram bem sucedidos36. Dizemos “quase” porque nem todos os retornados que trazem

recursos, voltam determinados a investir no comércio, como veremos mais a frente, há

outras iniciativas.

35 Acerca das bodegas é importante dizer que muitas se localizam mais afastados do centro comercial, servindo mais à população da periferia.

36 Obviamente, ser bem sucedido na migração é algo relativo. No entanto, quando especificamos a expressão “bem sucedido” tentamos fazer uma dedução, a partir das entrevistas, daquilo que os retornados transpareceram sobre esta noção. Ser “bem sucedido” é ter, no retorno, uma melhora de vida, ou seja, é retornar com recursos ou com experiência que não obrigue o retornado a trabalhar na tarefa que deixou de lhe oferecer recursos, fazendo-o imigrar.

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Muitos dos investimentos comerciais legais foram iniciados com uma banca de

“camelô”, fazendo do comerciante um migrante pendular entre sua cidade natal e o “Sul”.

Francisca, a retornada já citada, iniciou seu trabalho no comércio em Guaraciaba do Norte

como “camelô”, e graças à sua prosperidade, conseguiu montar uma loja de roupas. Apesar

de ter deixado de lado o “pêndulo” entre o Ceará e o Rio de Janeiro e São Paulo, vai duas

vezes por semana a Fortaleza, buscar mais produtos percorrendo um trajeto de mais de

seiscentos quilômetros entre a ida e o retorno a Guaraciaba do Norte. Ela afirma que um

dos motivos que a levou a deixar a “camelotagem” foi a idéia de não querer que seus filhos

passassem pelas dificuldades desta profissão. A motivação para Francisca deixar o

comércio informal aparece de modo muito pessoal, no entanto sabemos que é possível que

outros retornados que vivem a condição de camelôs pensem o mesmo, apesar de não

conseguirem deixar este “meio de vida”.

Tabela 5: Participação dos retornados no comércio legal

Fonte: Câmara dos dirigentes lojistas destes municípios - 2003

O comércio é de tal modo um investimento do retornado que as CDLs (Câmaras de

Dirigentes Lojistas) são fundadas e administradas, em muitos casos, pelos próprios

retornados.37 No nosso contato com estas câmaras, verificamos que a variedade comercial

dos municípios é expressão, em muitos casos, das experiências migratórias. No caso de 37 Não são todos os municípios pesquisados que possuem CDLs, somente nos municípios da Serra da Ibiapaba, Quixadá e Canindé foram encontradas – talvez por possuírem um comércio mais dinâmico e uma estrutura urbana mais complexa. Nestas entidades boa parte dos associados é de empresários retornados (ver tabela 4). Os dados, bem como as informações prestadas, foram-nos gentilmente fornecidas de modo verbal pelos funcionários das CDLs. referidas na tabela, com base no cadastro dos associados.

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Municípios Nº de associados % aproximado de associados retornados

Guaraciaba do Norte 43 50

São Benedito 32 30

Ubajara 48 20

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alguns retornados comerciantes pudemos verificar este fato. O Sr. Júlio é natural de Niterói,

no Rio de Janeiro, mas casou-se com Maria, migrante de Guaraciaba que trabalhava com

ele numa loja de artigos esportivos naquela cidade, resolveram montar um bar na cidade

natal da esposa por influência dela. Segundo o marido, ela dizia que a qualidade de vida era

muito melhor e o ambiente era mais propício à criação dos filhos, algo que ele comprovara.

O bar faliu, mas o comércio parecia ser o melhor caminho para o “sucesso financeiro” e

agora ambos têm uma loja de calçados e artigos esportivos, na mesma cidade que, segundo

o proprietário, vai muito bem (entrevista realizada em julho de 2003).

Assim como o casal citado, outros vivenciam a mesma situação. Paulo, o retornado

que citamos anteriormente, vive da venda de salgados, mas ao contrário do Sr. Júlio e sua

esposa, sua atividade é informal. Faz salgados em sua casa e distribui em diversos bares e

lanchonetes de Varjota logo cedo por meio de uma moto que adquiriu assim que retornou

da última migração. Este migrante já esteve no Rio de Janeiro três vezes e em São Paulo

duas. Nestes lugares, sempre se empregou em bares e lanchonetes, mas foi em São Paulo

que aprendeu uma profissão.

(...) [Me empreguei] na ZX Lanches38... Eu comecei como ajudante, descascando cebola e trabalhei três anos. Então quando eu saí, já tinha um cargo na firma: já era lancheiro. Já sabia fazer todo tipo de lanche, que é o que consegue me manter hoje (...) mas aprendi lá em São Paulo (Entrevista em janeiro de 2006).

Na terceira imigração, que foi direcionada para São Paulo, ele aprendeu a profissão

de lancheiro e ainda aprendeu a fazer pizza. Quando retornou direcionou-se para o

comércio: “(No terceiro retorno) trabalhei numa pizzaria aqui na Varjota, entregava pizza

de moto (...) e também fazia as pizzas, pizzaollo, eu fazia e entregava (...) não deu porque

pagava muito pouco”. O que Paulo expõe, em consenso com outros retornados, é a

diferença de rendimentos. Nas metrópoles, apesar do custo de vida ser alto, os rendimentos

são maiores e isto é um elemento motivador da migração. No caso de Paulo, mesmo

empregado, abriu mão do emprego na sua cidade de origem e novamente imigrou, agora

pela quarta vez, porém direcionando-se para o Rio de Janeiro, mas, como era possível

prever, não se fixou, apesar de haver oferta de emprego, afinal de contas, sua intenção na

38 ZX Lanches, nome fictício do estabelecimento.

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migração era aumentar seus rendimentos, como o custo de vida nas metrópoles é alto ele

retornou:

(...) o melhor emprego que eu consegui na vida todinha foi esse, que foi em prédio [como porteiro] (...) como lancheiro é bom porque aprende a profissão, mas não dá dinheiro (...) fui mandado embora [do emprego de porteiro] quando eu “tava” indo “pra” rodoviária [comprar a passagem de volta] eu passei em Niterói, na “Biarritz”, tinha uma placa: “Precisa-se de lancheiro”. Eu perguntei à mulher quanto ela “tava” pagando, ela disse: uma faixa de quatrocentos, quinhentos. Eu não quis, vim-me embora. Mesmo sabendo que era um negócio que podia chegar e no mesmo dia trabalhar, eu não quis mais (...) eu queria vir embora mesmo e o pouco que eu tinha juntado nesse ano dava ‘pra” eu vir “pra” cá e botar meu negócio (...) É a segunda fabricazinha que eu boto e as vezes que eu botei só não desenvolveu mais porque eu não tinha aquele capital de giro.

Reparemos que na fala de Paulo havia já a pretensão de um retorno, tendo em vista

que já não era a primeira vez que tentaria investir no ramo que aprendeu na migração.

Como nos disse, um pouco mais à frente, a informalidade do negócio seria porque não há

comércio legalizado no município – a única atividade privada legalizada seria uma fábrica

de “jeans” de médio porte que emprega a maior parte da população com emprego formal –

e porque sua atividade seria muito pequena a ponto de “não incomodar ninguém”.39

Os retornados mencionados mostram que do ponto de vista econômico, ocorre uma

reterritorialização nos lugares de origem baseada no comércio, de modo que lhes permita

uma fixação nestes lugares. No entanto, suas falas ressaltam sempre motivações pessoais,

dando a entender que a motivação para o investimento neste ramo foram seus cuidados com

a família (Sra. Francisca), seu tino comercial (Sr. Júlio e esposa) e/ou, unicamente, seu

desejo de se fixar no lugar de origem (Paulo). É claro que estas são motivações relevantes e

devem ser consideradas – como tem sido aqui defendido desde o início do trabalho – mas o

atual contexto socioeconômico das metrópoles, como o desemprego estrutural, tem sido um

motivador preponderante para o retorno, como ressaltamos a partir das afirmações

apresentadas pelo jornal “Folha de São Paulo” de 23/04/06 (p. 16).

O que percebemos, contudo, nos casos que vimos e nos que veremos a seguir é a

constituição da multiterritorialidade no processo de reterritorialização do retornado.

Haesbaert (2004) identifica pelo menos duas leituras da multiterritorialização: “aquela que

39 Próximo do fim do trabalho de campo, numa conversa informal com Francisco de Assis, um retornado já citado, que também inicia um negócio, soubemos que as atividades comerciais em todos os municípios são regulamentadas pela Secretaria de Fazenda do Estado do Ceará, logo, o município não fiscaliza, nem tributa qualquer atividade comercial e sim o estado.

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diz respeito a uma multiterritorialidade ‘moderna’, zonal ou de territórios de redes,

embrionária, e a que se refere à multiterritorialidade ‘pós-moderna’, reticular ou de

territórios-rede propriamente ditos, ou seja, a multiterritorialidade em sentido estrito”

(2004: 348). Neste sentido, poderíamos nos referir a multiterritorialidade do retornado

como esta a qual Haesbaert chama de “pós-moderna”, pois condiciona-se, sobretudo, ao

papel das redes na sua configuração.

As redes, especialmente as redes informacionais ou virtuais, possibilitam – dependendo da classe e do grupo social – um jogo territorial inédito, onde existe a potencialidade, a todo momento de recombinar (e “descombinar”) territórios em uma nova multiterritorialidade (2004: 348).

É bom lembrar que apesar de haver “um jogo territorial inédito” com o advento das

redes informacionais, as redes de transportes possuem, juntamente com essas redes,

importância crescente, na medida que criam novas possibilidades de jogos territoriais. Cabe

ressaltar que na citação há a menção à redes informacionais “dependendo da classe e do

grupo social”. Obviamente, migrantes laborais, nas condições dos cearenses nas metrópoles

do Sudeste, têm menos chances de participar das redes informacionais ou virtuais, porém,

cremos que, neste caso, as redes de transportes tem uma importância proeminente no que se

refere à complexificação da multiterritorialidade “pós-moderna” destes migrantes, como

deixa subentendido o Sr. Massilon no trecho de sua entrevista mencionado no capítulo

anterior.

A multiterritorialidade do retornado é que possibilita uma reterritorialização com

maior chance de sucesso, ou seja, uma reterritorialização que não o obrigue a migrar

novamente. Conforme ocorre atualmente com Lourenço que, como mencionamos, após ter

concluído seu ensino secundário e a graduação na metrópole carioca, teve a possibilidade

de trabalhar em cargos públicos em seu município de origem, o que lhe proporciona renda

suficiente para “optar” por uma fixação neste lugar, viajando para o Rio apenas para tirar

férias – como na ocasião em que nos conhecemos.

A potencialidade destas redes se torna presente também no âmbito das atividades

econômicas informais, como o caso de Paulo, mas existe ainda um outro grupo de

retornados que direciona seus capitais para um ramo do qual o Ceará é extremamente

carente e que, por sinal, se vincula ao aspecto mais concreto das redes, que é o setor de

transportes.

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Para haver locomoção entre municípios próximos, ou mesmo entre distritos dentro

de um mesmo município, a população depende quase que exclusivamente do transporte

alternativo. Isso explica em parte o isolamento a que são submetidos alguns pequenos

povoados relativamente próximos do centro urbano local. Apesar de estarem separados por

alguns quilômetros do centro estão isolados devido à ausência de linhas de transporte

regular. Para se ter uma idéia, as próprias linhas de ônibus que cobrem grandes extensões,

como as que ligam o Rio de Janeiro ao Ipu, ou São Paulo a Quixadá, fazem no interior do

Nordeste, inclusive no interior do Ceará, o papel de transporte local, muitas vezes lotando o

veículo de passageiros locais que vão de um distrito até o centro urbano local.

O transporte de qualquer mercadoria e pessoas é feito através de pick-ups com a

carroceria coberta e vans, surpreendendo os forasteiros devido a quantidade de carga

transportada, que é geralmente superior à capacidade normal dos veículos. Estes meio de

transporte é muito comum (ver foto 1), tornando-se um hábito da população local, que por

sua vez não reivindica melhores condições de transporte. As pick-ups são abundantes, em

virtude da forte demanda, e da ausência de fiscalização ou controle sobre este serviço. Este

é um destino certo dos recursos de boa parte dos retornados.

As pick’ups D10 e D20 da GM não são mais fabricadas, sendo mais valorizados,

obviamente, os modelos mais recentes, porém, por não serem mais fabricadas e por serem

específicas para o transporte de carga, o proprietário fica sujeito ao transporte numa área

restrita cobrando valores menores pelas passagens. Seu uso parece substituir, ao menos no

âmbito local, o papel dos “paus-de-arara” do passado.

As vans, contudo, são mais caras e indicam o status do retornado à medida que

somente aqueles que obtiveram maior “sucesso” migratório podem adquirir uma. Tais

veículos, ao contrário das pick’ups, servem exclusivamente para o transporte de passageiros

(o que não impede o ingresso de cargas consideráveis!), possuem ar condicionado e fazem

trajetos mais extensos, o que aumenta de forma significativa o valor das passagens.

O ramo dos transportes alternativos, de um modo geral, é dominado por migrantes

retornados que em muitos casos fizeram a viagem de regresso nos próprios veículos

comprados na metrópole, fazendo de sua viagem de retorno também a primeira “lotada”.

Genival, por exemplo, um dos nossos entrevistados, realizou o retorno em sua van lotada de

outros retornados e migrantes em férias.

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Apesar desta “opção” por trabalhar no ramo dos transportes, tendo em vista que há

demanda nos municípios pesquisados, podemos afirmar que os retornados não se prendem

a um tipo de atividade unicamente, podendo mudar de ramo, ou, até mesmo, voltar a migrar

caso o atual investimento não dê certo. “(...) Eu vim pra cá trabalhar no transporte

alternativo, esse é meu serviço aqui (...) por enquanto (o trabalho) é duradouro (...) até

agora “tá’ dando certo (...) Se não der eu vou partir “pro” ramo do comércio”, diz Genival,

retornado do Rio, morador de Varjota.

Como é possível perceber, o comércio é uma alternativa àqueles que não obtém

sucesso no investimento no ramo dos transportes. Na verdade, o fracasso neste ramo não é

incomum já que a concorrência é grande e já há retornados e não-migrantes que se fixaram

no ramo há mais tempo e sentem-se os legítimos “proprietários” das linhas. A rivalidade é

tanta que um destes donos de vans afirmou-nos que a maioria deles anda armada.

Foto 1: Pick-up típica nas cidades do interior do Ceará. Devido à falta de uma rede de transportes bem estruturada, muitos retornados investem suas economias nestes veículos, tendo em vista a potencial lucratividade (Foto do autor / julho - 2003).

Numa dessas viagens intermunicipais tivemos a oportunidade de entrevistar

Raimundo, um retornado do Rio de Janeiro, especificamente da Rocinha, que pode ser

considerado um retornado maduro, pois se estabeleceu nesta cidade em 1977, quando ainda

tinha 17 anos. Deixou a cidade há 10 anos, tendo ficado em uma única vez 19 anos.

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Diferentemente de outros retornados, só foi uma vez, permanecendo lá por todo esse tempo.

Trabalhava como porteiro em São Conrado e ao longo da estada no Rio de Janeiro,

construiu um pequeno prédio na favela citada, que está atualmente totalmente alugado. De

lá ele tira o reforço de seu orçamento, mas trabalha diariamente fazendo a linha Guaraciaba

– São Benedito numa dessas pick’ ups mencionadas. Sua decisão de retornar baseou-se na

falta de condições que a cidade oferecia para a criação dos seus filhos. Segundo ele, a

violência urbana não deixaria seus filhos livres da oferta do tráfico de drogas,

especialmente porque a Rocinha é um lugar privilegiado para esse tipo de negócio.

É importante ressaltar que, assim como Raimundo, Maria Nilma, retornada do Rio

de Janeiro, moradora de Reriutaba, retornou com seu marido e seu filho por causa da

violência da metrópole e do apelo forte do tráfico. Outros retornados também destacaram a

violência como, no mínimo, um grande transtorno metropolitano. Podemos, portanto,

ressaltar também a violência urbana como um importante motivador do retorno que

juntamente com a precarização das condições econômicas na metrópole, têm estimulado

fortemente o retorno. Por outro lado, alguns migrantes retornam fortemente influenciados

pelas experiências vividas junto ao tráfico de drogas, o que altera bastante a sua “primeira”

territorialidade, vinculada ao seu lugar de origem. Porém trataremos desta questão um

pouco mais adiante.

De volta à questão do transporte, em alguns dos municípios pesquisados,

especificamente os que estão a Noroeste do estado, apenas uma única empresa de ônibus

com linha regular é responsável pela interligação de sete municípios. Cobrando uma tarifa

relativamente baixa, comparada às distâncias percorridas (R$ 7,00), passa apenas três vezes

por dia e em horários muito próximos: pela manhã. Existem também, como dissemos,

algumas linhas interestaduais que trafegam pelos municípios semanalmente cumprindo

também a função de interligar os municípios e também a linha da viação Horizonte que vai

para Fortaleza, sendo muito importante já que liga cidades distantes como Guaraciaba do

Norte à metrópole Fortaleza, mas que não tem a mesma importância do ponto de vista do

intercâmbio entre estes municípios, pois só circula em alguns deles. Assim a demanda para

o transporte alternativo é grande.

Ainda relacionado ao transporte alternativo, não se pode deixar de mencionar a

grande circulação de motocicletas de aluguel. Neste sentido, as motos de pouca potência

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são um alvo preferencial dos retornados que, além de as comprarem com os recursos

acumulados no local de imigração, ainda as utilizam como um transporte de locação,

fazendo-as de “meios de vida”, são as conhecidas motos-táxi. De modo semelhante às vans

e pick’ups, a concorrência é muito grande – como fica explícito na foto 2 – e é comum

histórias de violência entre retornados que tentam se fixar neste ramo e os “donos” dos

pontos. O desgaste do veículo junto ao problema da violência entre os envolvidos neste

negócio, além dos freqüentes roubos, tornam esta atividade um tanto quanto arriscada para

o investimento.

Foto 2: Ponto de moto-táxi em Guaraciaba do Norte (Foto do autor / julho de 2003).

No município de Canindé conhecemos José Augusto, um retornado jovem,

proveniente de São Paulo que abriu mão de um trabalho como vendedor e motorista numa

firma de roupas de cama, mesa e banho para retornar ao seu lugar de origem e se sustentar

como moto-taxista neste município.

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Na verdade é como eu sempre digo: aqui eu me divirto mais do que lá (...) Lá eu era preso dentro de casa, aqui eu tenho mais liberdade. Meu trabalho aí, é um trabalho que eu posso trabalhar na hora que eu quero, entendeu? Posso me divertir mais, posso sair “pra” onde eu quiser, se eu não quiser trabalhar hoje eu não trabalho é assim. E lá eu trabalhava “pra” outras pessoas aí sabe como é (...) O moto-táxi o ganho não é o mesmo, mas, é como eu falei, compensa pelo fato de você estar livre (José Augusto, morador de Canindé, retornado jovem de São Paulo – entrevista em julho de 2003).

É interessante notar que há uma íntima relação entre este tipo de trabalho e os

nordestinos, não sabemos dizer onde surgiu primeiro, se nos lugares de imigração ou nos

lugares de origem, mas o fato é que onde há uma concentração de nordestinos nos lugares

de imigração nota-se a proliferação desta atividade. Podemos perceber isto em algumas

favelas do Rio de Janeiro, no subúrbio e nos municípios da região metropolitana deste

estado, como São Gonçalo e Itaboraí, para citar apenas alguns casos que nos são mais

próximos.

Outra atividade que atrai retornados, especialmente os mais maduros, é a

agropecuária. Muitos migrantes cearenses ao retornarem, não conseguem se estabelecer em

outro ramo que não seja aquele que deixaram ao emigrar. Em todos os casos de retornados

que trabalhavam na agricultura verificou-se que a atividade anterior bem como a moradia

se dera no ambiente rural. Ou seja, não houve uma mudança de domicílio e nem de

atividade econômica da urbana para rural, na verdade, como ressaltamos no início deste

capítulo, ocorre o contrário, o migrante, em muitos casos, deixa a área rural na imigração e

ao retornar passa a residir no espaço urbano dos municípios de origem inclusive

trabalhando em atividades de comércio e serviços. Porém, desejamos comentar agora esta

outra forma de se reterritorializar no território de origem. É importante dizer que,

diferentemente dos ramos do comércio e do transporte, a agropecuária não deixa tão

explícito o “nível” de multiterritorialização do retornado, tendo em vista que retorna para a

atividade que deixou antes de migrar. De qualquer modo, isto não descarta uma

multiterritorialidade do retornado, que poderia se manifestar em outras esferas da vida além

da econômica.

A agricultura é sem dúvida uma atividade econômica muito presente na vida dos

municípios do interior do Ceará, em todos aqueles que pesquisamos esta atividade era

minimamente organizada, diferentemente das atividades comerciais que em poucos

municípios tinha uma organização formalizada. Os sindicatos de trabalhadores rurais são

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muito procurados por retornados que não tiveram um aprendizado profissional, não tiveram

a oportunidade ou ainda, não têm outra alternativa que não seja a de investir na atividade

econômica que deixaram para trás na migração. Tais sindicatos têm como função principal

garantir direitos, oferecer benefícios de saúde e educação e serem ainda porta-vozes

políticos dos trabalhadores rurais. Esta última função, por sinal, parece reforçada quando

percebemos que a vinculação com o sindicato leva alguns líderes a cargos políticos

públicos ou, ainda, leva a uma reflexão da condição social em que vivem. Percebemos que

alguns municípios, especialmente os que sofrem mais com o rigor das longas estiagens, têm

sindicatos mais combativos e, até mesmo, socialmente mais justos, com vistas a uma

reforma agrária (citamos os casos de Quixadá, Canindé e Reriutaba). Ao contrário de

municípios onde o clima é mais ameno (casos como os de Guaraciaba do Norte, Ubajara,

São Benedito e Varjota). Vale ressaltar que, apesar da afirmação, não buscamos aqui

alinhar nosso discurso ao determinismo geográfico, até porque entendemos que em todas

estas localidades predomina historicamente a concentração de terras e relações de trabalho,

via de regra, tradicionais. Contudo, acreditamos que nos lugares que apresentam um clima

mais ameno a população tende a se conformar com as condições em virtude do ambiente

proporcionar uma diversidade maior para o trabalho agrícola, de modo que o choque com

os proprietários, quando considerado, é sempre postergado. Nestes municípios, por haver

concentração de terras, a produção é sempre para a comercialização, com vistas ao

suprimento da demanda para outros municípios e não para a subsistência. Mas como esta

fórmula traz a oferta de empregos, os movimentos sociais, especialmente os sindicatos,

ficam desmobilizados.

A agricultura hoje dá o retorno financeiro bom, você trabalhando com organização, você consegue ter um retorno bom. Principalmente nesta área que sustenta a nossa Guaraciaba, que “é” (sic) as hortaliças. Guaraciaba é responsável por 70% das hortaliças consumidas no estado do Ceará. É o maior produtor de hortaliças do estado... Eu planto mais especificamente tomate (...) graças a Deus, quando a gente acerta numa “hortazinha” de tomate dá o que um vereador não tira nos quatro anos de mandato (Sr. Deusdete, retornado maduro do Rio de Janeiro, morador de Guaraciaba do Norte e presidente do Sind. Trab. Rurais deste município – entrevista em janeiro de 2006).

Em alguns municípios a agricultura é uma atividade muito lucrativa, conforme

verificamos na fala do Sr. Deusdete que também foi vereador no seu município por três

mandatos pelo PSDB. Em toda sua entrevista não há um apelo à reforma agrária, apesar de

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se tratar do presidente do sindicato da classe trabalhadora e de ser do conhecimento de

todos que as terras do município estão concentradas nas mãos de poucos agricultores.

Neste sentido, o Perímetro Irrigado Araras Norte (investimento do DNOCS

apresentado e comentado no item 2.2) é um outro elemento que contribui para uma

reterritorialização, ao menos do ponto de vista econômico, no lugar de origem. Vejamos o

que diz a respeito dele um alto funcionário da prefeitura de Varjota: “(...) Tem muitos que

moraram no Sul muitos anos, não deu certo, voltaram, ficaram por aqui, levando uma

vidinha, aí se engajaram lá dentro [do Perímetro]” (Sr. Auricélio, Secretário de

administração de Varjota).

O Perímetro Irrigado Araras Norte tem uma importante função dentro do município

de Varjota e também de Reriutaba – tendo em vista que se localiza ao longo da estrada

entre os municípios – além de ser um importantíssimo injetor de capital, é um dos meios de

reterritorialização dos retornados nestes lugares. Alguns retornados com quem conversamos

já haviam se empregado, por pouco tempo, nas lavouras de frutas cultivadas em Varjota, no

entanto as haviam deixado devido ao rigor do trabalho e às longas distâncias percorridas

para se chegar aos locais de cultivo.40 Contudo, há a possibilidade de se atingir a um

sucesso financeiro neste empreendimento. Valdir, um retornado jovem que trabalhou como

garçom na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, é um destes casos. Ele nos disse, em uma

conversa informal, que era um dos proprietários de terras no Perímetro. Comprou a gleba

com os recursos acumulados na imigração e tem vivido de modo confortável com o

trabalho na agricultura. Segundo ele, há freqüentes prejuízos mas a terra é muito boa e a

água do açude propicia as safras mesmo no período do verão.

Nos municípios da serra da Ibiapaba, graças ao clima, menos rigoroso que no sertão,

e ao melhor acesso à água, a agricultura é um destino muito comum. O caso do Sr.

Deusdete, citado anteriormente, é um dos exemplos de Guaraciaba do Norte daqueles que

investem comercialmente na agricultura, mas na serra como um todo, esta atividade,

mesmo para aqueles que não lidam diretamente nela, mostra-se como uma alternativa

40 Só para se ter uma idéia do esforço físico, Jenete, um retornado maduro proveniente do Rio de Janeiro, quando trabalhou no Perímetro, tinha que encher um caminhão de cocos sozinho todos os dias. Quanto às distâncias, Eudes, retornado já mencionado, disse que percorria de bicicleta cerca de cinco quilômetros para chegar à lavoura e, após um dia inteiro de trabalho braçal, tinha que retornar, exausto, os mesmos cinco quilômetros da ida.

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econômica (ver o caso de Sérgio no item 2.1). Em São Benedito também há investimentos

de retornados na agricultura conforme pudemos perceber pelo discurso de uma autoridade

pública:

(...) voltam às vezes, aqueles que conseguem adquirir um capital, um pouco de dinheiro, eles investem no comércio (...) na agricultura e no comércio. (...) O cara foi para o Rio, por exemplo, ou São Paulo, e lá ele conseguiu ganhar um bom dinheiro, então ele chega, e como ele tem uma visão mais voltada para a agricultura e para o comércio, e também da renda que tendo daquele comércio, ele investe na agricultura na época do ‘inverno’, e também no período da seca quando tem condições de irrigar (Sr. João Bitub, Secretário de Agricultura de São Benedito).

Robson é um caso muito peculiar. Nascido em Jundiaí, São Paulo, conheceu sua

esposa quando trabalhava como locutor de uma rádio evangélica na sua cidade. Ela, por ser

sua fã, buscou contatá-lo e o resultado disto foi o casamento. Após alguns anos de

dificuldades naquela cidade, resolveram morar na cidade natal da esposa (São Benedito).

Sônia, por sua vez, fora para Jundiaí acompanhando o pai, Seu Josa, em uma de suas

migrações. Lá, trabalhou de babá e de balconista em uma pastelaria. Retornou já casada

com Robson.

Após um período na casa do sogro – um sítio a dez quilômetros do perímetro

urbano – Robson não se adaptou ao trabalho na agricultura e resolveu voltar a São Paulo

sozinho, refazendo inversamente o papel do migrante cearense. Aliás, na sua viagem

transitou por diversos lugares: Teresina, Itabuna, Campinas e Niterói. Durante este período

ele trabalhava como vendedor e cantor em igrejas. Ao retornar para o Ceará decidiu se fixar

trabalhando com sua família na agricultura com seu sogro, produzindo e vendendo

hortaliças. Sônia, sua esposa, trabalha com ele na lavoura, vivendo com uma pequena renda

e valendo-se da ajuda do governo federal (Bolsa Família).

Em Ubajara, por sua vez, verificamos que a produção de flores voltada inclusive

para exportação e a produção industrial de sucos faz com que a agricultura se imponha

como uma alternativa capaz de empregar boa parte da mão-de-obra do município. Cabe

ressaltar que, segundo a observação dos próprios retornados e autoridades locais, a

agricultura em ascensão tem, até mesmo, evitado que a imigração ocorra, especialmente

nos municípios da serra da Ibiapaba.

A nova política do governo, já “tá” chegando aqui, já “tá” refletindo no pequeno agricultor (...) é uma maneira dele se sustentar (...) não querer mais ir embora “pro” Rio

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(...) porque “tá” jogando na agricultura, no tomate, no pimentão e vem depois o retorno [financeiro], então seria uma maneira de sustentabilidade (Sr. Julimar, Secretário de Agricultura de Ubajara).

O Rio de Janeiro hoje (...) não é mais o Rio de Janeiro de antigamente onde saia muitas pessoas daqui (...) e conseguiu lá fazer a vida, ganhar dinheiro, montar restaurante, crescer. Hoje não dá, mal dá “pra” sobreviver... Eu sempre oriento (...) é bobagem vocês irem para o Rio de Janeiro “pra” irem trabalhar numa cozinha ganhar um salário mínimo porque hoje aqui vocês já “tão” tirando quase um salário mínimo e é livre: o pessoal lá da zona rural tão tirando duzentos e sessenta reais por mês (...) com o domingo livre, após às dezesseis horas é livre, sem aquela escravidão. Porque você lá no Rio de Janeiro você é um escravo do trabalho, do trânsito, do chefe. Aqui não! Tem as tolerâncias, a amizade. Tanto é que a gente presencia, hoje poucos jovens vão para o Rio de Janeiro, coisa que há alguns tempos atrás era demais, o pensamento do povo era completar dezoito anos e irem para o Rio de Janeiro (Deusdete, presidente do Sind. Trab. Rurais Guaraciaba do Norte e retornado).

A ação pontual do governo no nível federal e as práticas agrícolas mais recentes têm

levado alguns municípios a verem na agricultura um forte mantenedor econômico. Neste

sentido, também é um caminho possível para a reterritorialização econômica de alguns

retornados. Todavia, além do aspecto econômico, retomando o que deixamos em aberto

logo atrás, há um elemento político importante. Nos municípios onde a agricultura tem

subsídios e dá resultados positivos para o mercado, o Sindicato de Trabalhadores Rurais

serve também como um degrau político. Como vimos, o Sr. Deusdete é um dos casos, além

dele tivemos a oportunidade de conversar com o Sr. Assis Nonato que também é vereador

pelo PP e é um retornado maduro do Rio de Janeiro. Este, interessou-se pela política após

se filiar ao Sindicato do qual é secretário geral.

A partir dos casos citados, poderíamos afirmar que existe uma relação entre o

retorno e uma maior participação política. Deste ponto de vista poderíamos considerar que

a multiterritorialidade do retornado é presente, pois encara seu lugar de origem sob a

perspectiva de quem experimentou uma metrópole e, ao menos, percebeu alguns elementos

que considera “necessários” no seu lugar. Logo, a participação em um movimento social

bem organizado, como o dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, parece ser a oportunidade

de aplicar seus projetos41. Porém, isto não significa necessariamente uma maior reflexão

política, variando em nível de participação e profundidade das reflexões dependendo dos

41 Em todos os municípios pesquisados, os STTR (Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais) são as entidades não-governamentais mais bem estruturadas, quando não são as únicas entidades desse caráter nos municípios. Vale lembrar que todos os STTRs. são interrelacionados e possuem vínculos com entidades maiores desta categoria, como o MST.

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municípios. Nos municípios onde a agricultura tem maior peso econômico, os projetos, ao

menos o que nos foi apresentado nas entrevistas, sempre estavam vinculados às

necessidades mais urgentes, ou seja, projetos de curto prazo, ou voltados às necessidades

dos produtores de maior porte.

Nos municípios onde há, ao contrário, uma agricultura menos “competitiva” o

discurso político é mais apoiado nas questões sociais. O discurso de Eronilton, o presidente

do STTR de Quixadá, é voltado para a crítica político-social e todos os funcionários são

muito envolvidos nas questões sindicais, o que torna o discurso do presidente um discurso

do próprio sindicato. Declaradamente, não há o apelo político-partidário, mas o Sindicato

de Quixadá tem uma forte relação com a prefeitura, atualmente governada pelo PT. A

Influência do STTR na vida dos agricultores e tão grande que é capaz de mobilizá-los a

participarem de manifestações populares que alteram o cotidiano da cidade (ver foto 3).

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Foto 3: Mobilização dos trabalhadores rurais de Quixadá em prol de melhores condições de trabalho e de reforma agrária no dia nacional dos trabalhadores rurais – 25/07/05 (Foto do autor).

A agricultura, portanto configura-se como um importante elemento de re-

territorialização. Muitos retornados que não conseguiram obter recursos no Sudeste, voltam

para a agricultura buscando se aposentar pelo FunRural42, abandonando todos os laços

empregatícios com a metrópole em busca de uma melhoria econômica.

Por fim, como último aspecto de reterritorialização do retornado, ou como mais um

elemento multiterritorializador, devemos considerar a influência metropolitana do tráfico de

drogas e a cultura da violência. Em diversos momentos de nossas pesquisas de campo

tivemos a oportunidade de verificar, nos discursos dos entrevistados, a relação entre

retornados e aumento da criminalidade.“(...) Tem uns [retornados] até que caíram na

marginalização, aprenderam o movimento do crime. Outros até pela própria ingenuidade,

saíram daqui, era uma vida mais pura, e acha que ficou mais esperto...” (Sr. Auricélio,

secretário de Administração de Varjota). “[O retornado] quando volta já vem diferente,

não volta mais conforme foi, a intenção dele é ‘outras coisas’ (...) tem assalto, tem roubo,

[aqui] tem tudo, está contaminado (...) drogas também (...) e a maioria é desse pessoal que

vai pra lá (...) (Sr. José Carlos, presidente do STTR de Varjota)”.

Muitos aprendem até coisas boas, muitos aprendem coisas ruins e por lá se acabam mesmo (...) e muitos voltam fazendo mal às pessoas (...) Mataram um comerciante, dois rapazes, os pais são daqui do Ceará e moram no Rio e vieram no propósito de viverem de vida fácil(...), e mataram um comerciante (...) nosso vizinho. Isso foi um horror no lugar, coisa que nunca tinha acontecido (...) Eles eram três (...) um ficou (...) e ele confessou que ele que é daqui, mas andou ensinando os outros aonde é que estava a coisa! (Seu Massilon, retornado maduro do Rio de Janeiro, morador de São Benedito – entrevista em janeiro/2006).

42 O governo federal concede os benefícios àqueles que trabalharem no campo no mínimo 12 anos. Muitos retornados, que não foram bem sucedidos na migração, voltam na intenção de se aposentar como lavradores, mas, por terem deixado o trabalho do campo e obtido registros em firmas urbanas, não conseguem o benefício, o que é motivo de muita frustração levando-os, algumas vezes, a uma nova migração.

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Além das afirmações que por si só já são conclusivas, percebemos durante nossas

estadas que os locais aparentemente sofreram um aumento da violência, ao menos a

percepção de violência é já uma realidade. Em saídas noturnas, solicita-se que não se vá de

moto para lugares afastados, e mesmo em veículos grandes como pick’ups, pois há

constantes assaltos seguidos de violência física (em um deles, Otacílio, um dos nossos

entrevistados, foi agredido e quase perdeu seu veículo).

Segundo alguns depoimentos locais, grande parte destes atos é praticada por

migrantes retornados do Rio de Janeiro ou São Paulo. No trabalho de campo de julho de

2005, chegamos a ver o desfecho infeliz de um assalto frustrado, no qual o assaltante,

retornado do Rio e com passagens pela polícia local, fora assassinado pelo morador da casa

que ele tentara invadir. Também durante a ida ao Ceará em 2003, conhecemos um

retornado no ônibus, direcionando-se para Ibiapina (município da serra de Ibiapaba) que

nos relatou sua experiência de “aviãozinho” no tráfico da Rocinha. Além disto, não é fato

isolado a participação de nordestinos no tráfico de drogas.43 Há que se considerar que as

drogas nestes lugares não foram levadas pelos retornados, tendo em vista que estão no eixo

entre o chamado “Polígono da Maconha” e capitais como Fortaleza e Teresina, apesar de

sofrerem um incremento com a participação destes.

A associação de nordestinos ao tráfico de drogas nas metrópoles do Centro-Sul tem

levado à criação de uma estigmatização do retornado, sobretudo o jovem, nos seus lugares

de retorno, visto, muitas vezes, como aquele que traz a violência e, conseqüentemente,

corrompe as mentalidades locais, recheando de aspectos negativos da metrópole estes

lugares.44

43 Conforme já relatamos no capítulo anterior, no ano de 2005, a polícia carioca matou o bandido “Bem-te-vi”, chefe do tráfico de drogas na Rocinha. O traficante nascera no Ipu, município vizinho à Guaraciaba do Norte, e dava emprego a diversos conterrâneos, segundo moradores locais.

44 De modo semelhante ao que ocorre com os “regressados” angolanos em Luanda, ao retornarem do Congo, após o fim da guerra civil em Angola, conforme nos relata Pereira (1999): “Os regressados foram associados ao mercado paralelo, portanto, ao comércio ilegal, ao contrabando, à extorsão e à delinqüência. Deparando-se com a desagregação dos serviços públicos e a generalização da corrupção em todos os setores da vida social, a sociedade luandense responsabiliza os regressados por introduzirem a pequena corrupção e os métodos do ‘desenrasacar-se’ que, cedo ou tarde, tornaram-se prática comum em Luanda” (Pereira, 1999: 123). Entendemos, contudo, que o caso angolano é muito mais radical e envolve elementos (como questões étnico-nacionalistas) que tornariam a analogia inviável.

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Podemos concluir, portanto, que o tráfico de drogas e a criminalidade, como meios

econômicos de subsistência, são elementos, muitas vezes, reforçados pela presença dos

retornados, uma face mais cruel da multiterritorialidade que o contato com as metrópoles

ajuda a constituir através dos retornados. Tais territorialidades são forjadas na vivência de

territórios de “baixa intensidade”.

Baixa intensidade, podemos dizer, porque eles não implicam grandes transformações espaciais, nem mesmo, na maioria das vezes, alterações físicas mais visíveis nas “formas” da cidade. Estão relacionados à construção territorial que fazemos através das funções que desempenhamos e das significações que propomos através de nossos movimentos no interior dos espaços urbanos (Haesbaert, 2004: 350).

Dessa maneira, podemos entender que os retornados cearenses estão sujeitos a

vivenciar uma multiterritorialidade comum às diásporas, como a vivência de territórios-

rede (como tentamos apresentar quando discutimos a importância das redes e cadeias

migratórias), mas também estão suscetíveis a experiências individuais

multiterritorializantes, muito comuns nas grandes metrópoles. Experiências que levam os

migrantes, algumas vezes, a viverem situações muito positivas, como o contato com

universidades (caso de Lourenço) ou muito negativas (como às que mencionamos acima).

Esta tentativa de análise da reterritorialização do retornado cearense está certamente

incompleta. Também seria impossível dar conta de um processo que está prenhe de

possibilidades, no qual a multiplicidade e a instabilidade são suas principais características.

Seria muita pretensão nossa desvendá-la em sua complexa “totalidade”.

Vimos, porém, que, apesar das possibilidades de vivências do múltiplo, o que indica

uma maior velocidade e uma maior mistura de experiências, a ligação com o passado e com

identidades mais fixas, logo mais “lentas”, também conduzem muitos migrantes ao seu

território de origem, transformando-o num retornado, bem diferente daquele que saiu, é

verdade, mas ainda esperançoso por uma nova vivência no seu lugar de origem, em busca

de uma territorialidade anterior, que não voltará, mas que o ajuda a construir novas e

múltiplas formas de produção do espaço.

[Retornei] porque, você sabe, o lugar que a gente nasce e se cria, o torrão da gente, o cara roda, roda, nunca se esquece do torrão que o cara nasceu e se criou. Nasci e me criei, toda vida, neste trecho aqui (...) a gente não se esquece da terra da gente, não (...) Menino meu, peleja “pra” eu ir passear lá [em São Paulo] mas eu não tenho vontade não. Que uma pessoa que “tá” numa idade que eu “tô” aqui (...) o cara vai pro lugar (...) vai ficar só

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travado, trancado todo o tempo”(Seu “Nêgo”, retornado maduro proveniente do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, morador de Abaiara).

Seu “Nêgo”, define seu lugar de origem como um lugar de liberdade, afinal

contrasta com o “travamento” e o “trancamento” ao qual estaria submetido em São Paulo,

logo, seu lugar, para uma pessoa na sua idade, como ressalta, é o lugar ideal. Contudo,

vimos que o retorno não tem se dado só com pessoas idosas como Seu “Nêgo”, mas com

jovens também. Então como definir o retorno? Cremos que ao longo do trabalho, enquanto

tentávamos mostrar como o retornado se reterritorializa, delineamos alguns caminhos para

uma definição do retorno. Talvez uma fuga, uma promessa, um resgate. Quem sabe? O que

podemos claramente afirmar, é que a vida daqueles que o realizam é transformada para

sempre e com ela o espaço ao seu redor. Estes dois agentes, retornados e espaço, no retorno

se hibridizam, multiterritorializando-se, trazendo o novo para o mundo.

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CONCLUSÃO

Não pretendendo apresentar “conclusões” em um trabalho que aponta muitos

desdobramentos, faremos aqui, apenas algumas considerações acerca de um tema em que

uma das características mais marcantes é a diversidade de experiências por parte dos

sujeitos do processo. Logo, cabe tentar dar um fecho ao projeto, sem ter a pretensão de

esgotá-lo.

A migração de retorno é um movimento tão comum às populações que têm

historicamente migrado, que parece banal, para os retornados, achar uma resposta para seu

movimento. Não queremos, contudo, afirmar que o retorno como processo é algo antigo, ao

contrário, no decorrer deste trabalho mostramos que têm ocorrido condições para que o

retorno de migrantes ocorra em escala global atualmente, porém, desde que o homem

começou seus movimentos migratórios, ocorre, mesmo que em número muito reduzido, o

retorno destes migrantes aos lugares de origem.

Nosso interesse pelo assunto, como dissemos na introdução, surgiu por meio da

percepção de que havia uma intenção dos migrantes cearenses em seus lugares de destino

de retornar aos seus lugares de origem (a proximidade com migrantes dada nossa

experiência familiar nos levou a tal percepção). Porém, notávamos que este desejo de

retorno, ao menos nos migrantes mais próximos, aparecia como uma maneira de fugir de

uma reterritorialização precária no lugar de destino. As informações veiculadas pela mídia

impressa, sobretudo, confirmadas por dados de pesquisadores das áreas da Estatística e

Demografia, levou-nos a crer que a intenção do retorno dos migrantes cearenses estava se

dando de um modo cada vez mais constante.

Com o decorrer da pesquisa, a partir de entrevistas em trabalhos de campo, também

notamos que o retorno muitas vezes parecia ser o reflexo de uma territorialidade mais

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voltada à mobilidade que a fixidez. As inúmeras idas e vindas, aparentemente sem um

propósito muito definido, levava-nos a crer que os migrantes eram impulsionados por um

“espírito aventureiro” que os mantinha em constante movimento. Contudo, com o

amadurecimento da pesquisa percebemos que a territorialidade do retornado não pode ser

vista simplesmente como móvel ou estática, mas sim como uma territorialidade múltipla,

ou multiterritorialidade, constituída, sobretudo, por este ir e vir em busca de melhores

condições de vida. Condições estas compreendidas não somente pela esfera econômica,

mas por todas que o constituem ser humano, ressaltando-se aí a simbólica.

A busca pelo entendimento do processo de reterritorialização dos retornados nos

levaria a vê-los como os principais “objetos” a serem analisados. Com o aporte geográfico

que trazíamos, tornava-se difícil pensar no tema sem vê-lo sob o prisma da Geografia.

Desta forma, poderíamos dar ênfase a este sujeito, sem, contudo, deixar de lado a

importância do processo de retorno.

A dúvida que levantamos nos fez iniciar o trabalho questionando o papel do método

científico mais tradicionalmente difundido na explicação dos fenômenos da realidade.

Focamos especificamente nossa crítica à visão que valoriza como única fonte de

conhecimento (ou a única a ser valorizada) sobre os migrantes aquela que deriva da

Demografia e seu método. Tentamos mostrar que este ramo de conhecimento, assim como

tantos outros, impregnados que estão pelo modelo científico quantitativista, tendem a

priorizar as generalizações, o que é muito útil para diversas finalidades, sobretudo as ações

governamentais, mas que ainda valoriza pouco os atores do processo e como o fenômeno

interfere diretamente em suas vidas. Os estudos e reflexões de Pedone (2000a e b) nos

foram de fundamental importância para implementarmos nos trabalhos de campo uma

perspectiva pautada em métodos que, segundo ela, estão fundamentados na Antropologia

Cultural e na Micro-História, e que procuram levar em conta as experiências dos sujeitos do

processo. O aporte metodológico, baseado em parte na Fenomenologia que Cláudia Pedone

nos apresenta, serve para percebermos que somente ouvindo os retornados é que podemos

ter uma dimensão mais complexa deste sujeito, assim como do processo.

Os retornados, assim como diversos outros sujeitos, possuem, ou desejam possuir,

um controle sobre seus territórios de retorno, controle este que não se dá somente na esfera

político-funcional, reconhecendo, aproveitando ou criando os fluxos que por eles passam,

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mas, antes de tudo, buscam no território de retorno, um reconhecimento simbólico, algo

perceptível subjetivamente por cada retornado, mas que o leva a buscar uma reconstituição

da territorialidade de origem, só que agora impregnada pela territorialidade metropolitana.

A identidade territorial do retornado é múltipla, devido, principalmente, ao contato

com o lugar de imigração. E é de volta ao lugar de origem que o retornado mostra,

normalmente de modo espontâneo, o fruto dessa hibridização. A mistura de hábitos revela

uma verdadeira “multiculturalização”. É no bojo desse processo que se dá a constituição da

identidade nordestina.

O estudo identificou que ao migrar o cearense não se percebe, ou não se intitula,

como nordestino. Para muitos que saem, a imigração é a primeira experiência de

distanciamento do território de origem. Logo, não há ainda, de modo bem formulado, uma

noção de pertencimento a uma escala espacial que extrapola aquela do lugar de origem. É

no local de imigração que o cearense se descobre, ao menos de modo mais prático, que

também é nordestino. O encontro com migrantes de outros lugares do mesmo estado ou de

outros estados componentes do Nordeste, além da segregação sócio-espacial a que são

submetidos todos os indivíduos com perfil físico e cultural dos estados desta região, faz

com que os migrantes cearenses se percebam também com uma identidade territorial nova,

a identidade nordestina. Nova não no sentido da novidade de um primeiro contato com a

noção de Nordeste, mas nova na experiência de vivenciar uma territorialidade que une

indivíduos com experiências diferenciadas nos lugares de origem, mas que acabam

constituindo uma identificação comum nos lugares de imigração.

Reservamos o segundo capítulo para discutir a des-reterritorialização do retornado,

buscando apresentar causas e conseqüências diretas deste processo. Analisar as alternativas

de reterritorialização do retornado e seus efeitos sobre os não-imigrantes foi nosso interesse

principal desde o início do trabalho. Neste sentido, Haesbaert proporcionou uma discussão

teórica que nos ajudou a compreender um pouco mais os processos de des-

reterritorialização. Contudo, o aporte teórico não teria sentido se não evidenciássemos

fenômenos que os esclarecessem. Procuramos, então, apresentar de modo mais detalhado

como se dá os dois momentos de des-reterritorialização, o primeiro que chamamos de des-

reterritorialização de saída e o segundo, ao qual denominamos de des-reterritorialização de

retorno.

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A discussão mais aprofundada sobre estes dois momentos do processo maior,

chamado por Raffestin (1993) de T-D-R (territorialização-desterritorialização-

reterritorialização) levou-nos a perceber como a territorialidade do retornado é alterada a

partir do processo de migração. Logo, o conceito de multiterritorialidade, desenvolvido por

Haesbaert (2004 e 2005a), ajudou-nos a compreender melhor como o processo de TDR

contribui para a formação de uma territorialidade múltipla, a partir da vivência de múltiplos

territórios de modo sucessivo.

A situação de carência muitas vezes extrema nas comunidades para onde geralmente

se direcionam os migrantes nas grandes metrópoles, configuram o que Haesbaert chamou

de “aglomerados de exclusão” que, para além de lugares de exclusão, são, na verdade,

condições de inclusão precária onde os migrantes, desterritorializados que estão, buscam

maneiras particulares e instáveis de recriar seus lugares de origem, ou suas “geografias

imaginárias”, e a condição do migrante nos lugares de imigração contribuirá muito para sua

reterritorialização,enquanto retornado, no lugar de origem.

Ao longo do estudo, fez-se necessário ressaltar algumas diferenças no heterogêneo

grupo dos retornados, de modo que pudéssemos melhor analisá-los. Sem ter a pretensão de

esgotar as possibilidades de análise dos mesmos, de dar conta exaustivamente do fenômeno

ou de criar classificações definitivas, tentamos separá-los em, pelo menos, dois grupos

distintos com base na faixa etária em que migraram e naquela em que retornaram,

relacionados, portanto, aos momentos históricos do processo imigratório.

Os retornados com os quais tivemos contato, em geral pertencentes a uma mesma

classe social, apresentaram-se, assim, dentro de suas especificidades, pelo menos em dois

grupos básicos: o primeiro refere-se aos retornados maduros, determinados em função da

migração realizada num período de maior intervenção do Estado, especificamente no período

conhecido como “desenvolvimentismo” ou do chamado “milagre brasileiro”. Na verdade, não

optamos por definir datas exatas porque entendemos que este fluxo migratório manteve-se

mesmo após este período, o que estendeu a faixa etária com que percebemos estes migrantes,

abarcando pessoas que estavam em torno dos 50 anos em diante. O segundo grupo diz

respeito aos retornados jovens, definidos em função da idade mais jovem, que hoje ainda

mantêm o fluxo migratório Nordeste/Sudeste. Muitos partem ainda antes da maioridade e,

geralmente, retornam por pouco tempo. Alguns retornam crendo que tornarão a migrar, o que

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fazem pouco tempo depois, enquanto outros mostram-se desanimados com a migração e

decidem não mais voltar, o que, muitas vezes, não se concretiza. Apesar do desânimo, a

esperança de “progresso”, em muitos casos, empurra-os à nova migração, resultando, a

posteriori, em um novo retorno.

Nas idas e vindas dos retornados, os lugares de origem vão sendo transformados. Mas

constatamos que a presença dos jovens retornados tem um papel mais contundente nestes

lugares. Neste sentido, os retornados que hoje são maduros, em muitos casos, retornaram

ainda na juventude, trazendo já naquele momento transformações aos lugares de origem.

Alguns se reterritorializaram ainda jovens, e hoje já estão espacialmente tão vinculados ao

lugar de origem que pouco se diferenciam daqueles que nunca migraram, a não ser pelo fato

de aconselharem os jovens desses lugares à não migrar, sugerindo que não vale a pena.

Outros retornados maduros que retornam com o intuito de melhor aproveitar a aposentadoria,

também trouxeram transformações quando iam e vinham antes de se fixar definitivamente em

um território, principalmente no que se refere ao estímulo à migração daqueles que ainda

nunca tinham migrado, além de trazerem também bens de consumo que não eram comuns

naquele momento (leia-se década de 1960 a 1980).

É importante ressaltar, portanto, uma diferença marcante entre os retornados maduros:

os recentes e os antigos. Os seja, os que retornam atualmente já prestes a se aposentar, ou já

aposentados, e os que retornaram já há muito tempo, ainda naquele momento de fluxo

migratório forte para a metrópole. Mesmo reconhecendo esta diferença não tivemos

possibilidades de ampliar a discussão, o que pretendemos realizar em trabalhos futuros. Hoje,

os que retornam maduros recentes trazem elementos de uma territorialidade que envolve o

estilo “moderno-metropolitano” de vida, capaz de contribuir para uma sensível mudança na

territorialidade “original” no lugar de origem.

Com os retornados jovens parece ser comum, assim como foi com os migrantes

maduros no passado, esta indefinição quanto ao lugar a ser estabelecido para uma

territorialização mais estável. Pareceu-nos peculiar que durante a juventude, os migrantes não

consigam definir um local mais estável para uma reterritorialização, mas devemos levar em

consideração que o momento histórico-econômico atual do país é bem diferente das décadas

de 1960 a 1980.

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Temos consciência que a diferenciação dos retornados que priorizamos encontra

limitações no que tange às especificidades de cada grupo. Percebemos, por exemplo, que, em

alguns casos, os retornados na faixa dos quarenta anos apresentam uma territorialidade

similar à dos retornados maduros, no que se refere à estabilidade territorial; logo, não podem

ser simplesmente comparados a um grupo que tem como uma de suas características a maior

instabilidade. Tais limitações implicam na continuidade da pesquisa em trabalhos futuros.

A reterritorialização do retornado no seu lugar de origem é permeada pela

multiplicidade, o que indicaria que sua territorialidade é uma imbricação de territorialidades

múltiplas experimentadas no decorrer de suas idas e vindas. É a mistura da territorialidade

“original” com territorialidades “secundárias”, fruto da vivência de múltiplos territórios nas

metrópoles. Nesta vivência metropolitana, o retornado experimenta novas possibilidades

territoriais e de significação do mundo, transformando sua territorialidade “original”. Sua

identificação com o mundo é, portanto, consideravelmente modificada.

Vemos nesta mistura de territorialidades o surgimento do que Haesbaert chamou de

multiterritorialidade, uma multiterritorialidade que se manifesta muitas vezes no plano

individual (2004: 349), mas que, nem por isso, deixa de estar vinculada a uma

multiterritorialidade mais ampla ligada às redes, por exemplo, como nos mostra ao citar o

caso das grandes diásporas (p. 354). Vale lembrar que a multiterritorialidade não se torna

visível apenas no retorno. O período da migração já leva os migrantes a experimentar uma

multiterritorialidade. Por mais reclusos que estes permaneçam na metrópole, sempre ocorre

experiências que permitem criar estratégias para dar significado ao espaço experimentado, e

são estas experiências que estimulam, ou não, o retorno.

Reforçando uma condição geral da sociedade, o migrante quando retorna é, portanto,

multiterritorial, mas assinalamos esta característica para mostrar que sua multiterritorialidade

será estratégica na reterritorialização no lugar de origem, de modo que acaba por ser uma

espécie de “trunfo” à sua disposição, ainda que ele não volte a migrar.

A questão se fixa então na forma como se dá sua reterritorialização. Neste sentido, foi

possível observar em campo que os retornados, especialmente os jovens, utilizam-se do

conhecimento que adquiriram na imigração para transformar seus espaços locais em prol de

sua reprodução econômica. É o caso de muitos comerciantes locais que trabalharam como

funcionários no ramo em que agora se dedicam no lugar de origem: restaurantes, bares e

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lanchonetes (sobretudo), lojas de calçados e roupas, farmácias etc. Ainda no comércio,

também investem na camelotagem, geralmente fazendo constantes viagens ao Rio ou São

Paulo para trazer mercadorias.

Também observamos o forte investimento de retornados no setor de transportes, neste

caso aproveitando a forte demanda destes lugares no ramo dos transportes. Aí, notamos um

investimento tanto em pick’ups e vans, para transporte de maior número de passageiros e

mercadorias, como em motocicletas (principal meio de transporte nestes lugares, diga-se de

passagem) para o aluguel e para transformá-las em moto-táxis. Neste último caso, vemos que

há, nos lugares onde existem migrantes em grande número, nas metrópoles, o coincidente

investimento neste tipo de serviço. Não soubemos, no entanto, identificar o local em que o

processo teve início, mas por ora, isto não é importante, o relevante é o fato de haver

atividades coincidentes tanto na metrópole quanto nos lugares de origem, o que reforça a

própria multiterritorialidade dos retornados.

Além do comércio e transportes já mencionados, deve-se ressaltar o setor agrícola

como um importante ramo de investimentos especialmente dos retornados maduros que

chegam em situação de maior dificuldade econômica e que tiveram com alternativa o retorno

à sua atividade original. Nesta perspectiva, procuramos mostrar que os Sindicatos de

Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais contribuem para uma inserção social e, sobretudo,

política destes sujeitos nas suas localidades.

Todos os aspectos da reterritorialização levantados estavam de um modo geral ligados

a aspectos positivos da multiterritorialidade, mas notamos que a condição multiterritorial

pode trazer também aspectos negativos. Observamos que a violência comum nas grandes

metrópoles, também atinge os municípios de origem dos retornados. Evidentemente devem

ser guardadas as devidas proporções, mas, segundo a percepção de alguns retornados e a

nossa própria constatação, esta violência estaria ligada ao retorno de alguns migrantes que

tiveram na sua vivência metropolitana participação no submundo do tráfico de drogas e da

criminalidade. O que começa a gerar um certo “estigma” de que o retornado leva a violência

aos lugares de origem.

Apesar de nosso esforço em apresentar as diversas formas de reterritorialização do

retornado, percebemos formas mais sutis que estariam ligadas a diferentes tipos de

multiterritorialidade, como a multiterritorialidade “simultânea” e a “sucessiva”, cujas

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delimitações teóricas e relações com os retornados merece um maior aprofundamento. Outros

aspectos que percebemos como temáticas para desdobramentos futuros envolvem a própria

relação dos retornados com a atividade turística, em crescimento acelerado em certas áreas do

Nordeste (em especial no Ceará).

Outra questão que implica em desdobramentos relaciona-se ao entendimento da

maneira que os níveis diferenciados de mobilidade do migrante na metrópole geram

diferenças de “multiterritorialidades” dos retornados. Relacionado a esta questão está também

a multiterritorialidade surgida na relação dos migrantes que estiveram em duas ou mais

metrópoles com seus lugares de origem. Logo, é necessário entender se os níveis de

mobilidade se equivalem ou se diferenciam dos níveis de instabilidade dos migrantes na

configuração de suas multiterritorialidades.

A pesquisa também nos levou a constatar diferenças de gênero nas motivações para o

retorno e nas formas de reterritorialização, no entanto, este pode ser mais um desdobramento

tendo em vista que não foi possível abordar esta questão.

Para finalizar, gostaríamos de afirmar que a reterritorialização dos retornados nos seus

lugares de origem tem, prioritariamente, um entendimento mais claro se levarmos em

consideração sua multiterritorialidade, tornada mais complexa a partir do contato dos

migrantes com as metrópoles, unindo concepções e vivências de mundo diferenciadas que, de

um modo geralmente positivo, constituem “trunfos” nos processo subseqüentes de

reterritorialização.

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ANEXO 1:Table 1: MIGRATION THEORIES ACROSS DISCIPLINES

Disciplines Research Question(s)

Levels/Units of Analisis

Dominant Theories Sample Hypothesis

Anthopology How dos migration effect cultural change and affect ethnic identity?

More micro/ individuals, households, groups

Relational or structuralist and transnational

Social networks help maintain cultural difference.

Demography How doesw migration affect population change?

More macro/ population

Rationalist (brorrows heavily fron economics)

Immigration increases the birth rate.

Economics What explain the propensity to migrate and its effects?

More micro/ individuals

Rationalist: cost-benefit and push-pull

Incorparation depends on the human capital of immigrants.

History How do we understand the immigrant experience?

More micro/ individuals and groups

Eschews theory and hypothesis testing

Not applicable

Law How does the law influence migration?

Macro and micro/ the political and legal system

Institutionalist and racionalist (borrows form all the social sciences)

Rights create incentive structures for migrants.

Political Science Why do states have difficulty controlling migration?

More macro/ political and international systems

Institutuinalist and racionalist

States are often captured by proimmigrant interest.

Sociology What explains immigrant incorporation?

More macro/ ethnic groups and social class

Structuralist and/or functionalist

Immigrant incorporation is dependent on social capital.

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ANEXO 2:

Dualismos identificados entre métodos cualitativos y cuantitativos por

Hammersley

Métodos Cualitativos

Datos cualitativos

Escenarios naturales

Búsqueda de conocimiento

Rechazo a la ciencia natural

Aproximaciones inductivas

Identificación de patrones culturales

Perspectiva idealista

Entrevistas cualitativas

Muestra de tamaño pequeño

Entrevistas extensas

Muestreos no-aleatorios

Métodos Cuantitativos

Datos cuantitativos

Escenarios experimentales

Identificación de comportamiento

Adopción de la ciencia natural

Aproximación deductivas

Consecución de leyes científicas

Perspectiva realista

Mediciones cuantitativas (cuestionarios)

Muestra de tamaño amplio

Mediciones pequeñas

Muestreo aleatorio

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