theotonio dos santos, homenaje a furtado

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1 THEOTONIO DOS SANTOS DESENVOLVIMENTO E CIVILIZAÇÃO HOMENAGEM A CELSO FURTADO

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    THEOTONIO DOS SANTOS

    DESENVOLVIMENTO E

    CIVILIZAO

    HOMENAGEM A CELSO FURTADO

  • 2

    DESENVOLVIMENTO E CIVILIZAO

    NDICE

    PRLOGO

    INTRODUO

    1. Uma homenagem a Celso Furtado.

    2. Civilizao e Desenvolvimento.

    3. Desenvolvimento e Civilizao.

    PRIMEIRA PARTE: A RECONSTRUO DA TEORIA DO

    DESENVOLVIMENTO

    I. TESES SOBRE A HERANA NEOLIBERAL

    1. Introduo;

    2. Primeira tese;

    3. Segunda tese;

    4. Terceira tese;

    5. Quarta tese;

    6. Quinta tese;

    7. Sexta tese;

    8. Stima tese;

    9. Oitava tese;

    10. Nona tese;

    11. Dcima tese;

    12. Dcima primeira tese.

    II. A TEORIA DA DEPENDNCIA E A DESCOBERTA DO SISTEMA MUNDO

    1. Introduo: as origens;

    2. A teoria da dependncia e a descoberta do sistema mundo;

    3. As estruturas internas e a dependncia;

    4. As corporaes multinacionais;

    5. A ampliao do enfoque;

    6. Elementos do sistema econmico mundial;

    7. Sistema mundial e o processo civilizatrio.

    III. A RECONSTRUO DA TEORIA DO DESENVOLVIMENTO

  • 3

    1. Introduo;

    2. Uma breve digresso comprobatria da fora do modelo que empregamos;

    3. Retornando da digresso;

    4. Desenvolvimento e economia mundial;

    5. Neodesenvolvimentismo;

    6. Por que no crescemos?

    7. Desenvolvimento e abertura econmica;

    8. O consenso de Washington em debate;

    9. A nova etapa do capitalismo de Estado;

    10. O que fazer com tanto dinheiro?

    11. O avano do capitalismo de Estado.

    IV. GLOBALIZAO, INOVAO E CRESCIMENTO: GEOPOLTICA E

    INTEGRAO

    1. Introduo;

    2. O perodo da Revoluo Cientfico-Tcnica;

    3. Tecnologia, concentrao econmica e capitalismo de Estado;

    4. A destruio criadora: inovao e ciclos econmicos;

    5. Inovao, transformaes tecnolgicas e a fora de trabalho: viso econmica;

    6. Inovao, transformaes tecnolgicas e desemprego;

    7. Viso poltica;

    8. Integrao e geopoltica;

    9. O exemplo do Mercosul;

    10. Concluses.

    SEGUNDA PARTE: DESENVOLVIMENTO E GEOPOLTICA

    V. UNIPOLARIDADE OU HEGEMONIA COMPARTILHADA

    1. Em busca de um esquema interpretativo;

    2. Os casos brasileiro e francs de luta pela reduo da jornada de trabalho;

    3. A procura de um novo centro hegemnico e de uma Nova Ordem Mundial;

    4. A hegemonia compartilhada dos Estados Unidos;

    5. Japo: do poder exclusivo no Pacfico expanso no continente asitico;

    6. A integrao europeia, o Leste Europeu e o papel da Alemanha unificada;

    7. A Unio Sovitica: um cachorro morto?

    8. O Terceiro Mundo ainda existe?

    9. necessrio e possvel governar um mundo to complexo e contraditrio?

    VI. A GLOBALIZAO, O FUTURO DO CAPITALISMO E DAS POTNCIAS

    EMERGENTES

    1. As potncias emergentes e o futuro do capitalismo;

  • 4

    2. Crise ideolgica e a opinio pblica mundial;

    3. A questo da hegemonia;

    4. Desenvolvimento e economia mundial;

    5. As novas relaes Sul-Sul;

    6. O renascer do Terceiro Mundo;

    7. Os BRICAS;

    8. Ainda sobre os BRICAS.

    9. Grupo dos 7, dos 8, dos 13 ou dos 20+?

    VII. A EMERGNCIA DA CHINA NA ECONOMIA MUNDIAL

    1. Introduo: questes tericas;

    2. Reflexes sobre a China;

    3. A crise asitica e a economia mundial;

    4. Perspectivas da economia asitica depois da crise;

    5. A crise asitica e a consolidao das exportaes chinesas;

    6. O consenso de Pequim.

    VIII. A AMRICA LATINA NA ENCRUZILHADA

    1. Desenvolvimento e integrao;

    2. Bolvar ou Monroe uma vez mais?

    3. Efeitos diplomticos mais gerais;

    4. A crise Argentina e o esgotamento das polticas neoliberais;

    5. As encruzilhadas diante das crises do neoliberalismo;

    6. A crise chega Amrica Latina;

    7. Estudo de caso: a contabilidade da dvida brasileira;

    8. Graves decises;

    9. Mercosul: um projeto histrico;

    10. Ainda existe Amrica Latina?

    11. Mudanas vista.

    TERCEIRA PARTE: DIREITOS HUMANOS, DIREITO DOS POVOS E

    A PAZ MUNDIAL

    IX. DIREITOS HUMANOS, DIREITOS DOS POVOS E A PAZ MUNDIAL

    1. O combate pacfico pela sobrevivncia;

    2. Os direitos humanos e o direito dos povos na busca pela paz mundial;

    3. O direito dos povos e sua repercusso;

    4. O ps-guerra e os desafios do amanh.

  • 5

    X. HIPTESES SOBRE A ECONOMIA MUNDIAL, A GUERRA E A PAZ

    1. Introduo: natureza e poltica;

    2. Iniciando o novo milnio;

    3. O plano militar;

    4. O crepsculo do neoliberalismo;

    5. Tragdia e razo;

    6. Guerra e informao.

    QUARTA PARTE: CRISE, DESENVOLVIMENTO, NOVOS SUJEITOS

    SOCIAIS E CIVILIZAO PLANETRIA

    XI. CRISE ESTRUTURAL E CRISE CONJUNTURAL NO CAPITALISMO

    CONTEMPORNEO

    1. Crise estrutural e longa durao;

    2. Os mecanismos de adaptao gerados pelas contradies internas do sistema so

    sempre precrios;

    3. A trilogia sobre o capitalismo contemporneo, a crise e a teoria social;

    4. Da crise estrutural crise da conjuntura 2008-2012.

    XII. A EMERGNCIA DE UM PROGRAMA ALTERNATIVO DOS MOVIMENTOS

    SOCIAIS

    1. As origens: da influncia anarquista Terceira Internacional;

    2. O populismo e as lutas nacional-democrticas;

    3. A autonomia dos movimentos sociais e as novas formas de resistncia;

    4. A globalizao das lutas sociais.

    CONCLUSES

    BIBLIOGAFIA

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    Prlogo

    Em 1988, por ocasio do Congresso da Associao Internacional de Estudos sobre a Paz (IPRA,

    sigla em ingls), realizado no Brasil, Cristvo Buarque, ento reitor da Universidade de

    Braslia, dedicou um nmero da revista Humanidades1 ao tema da Paz. Neste nmero especial

    eu publiquei um artigo sobre o combate pacfico pela sobrevivncia no qual situava a questo

    da paz no contexto da luta por uma civilizao planetria. Nele, eu afirmava:

    A questo da paz passa a ser, em conseqncia, a primeira e mxima questo do

    nosso tempo, a que determina todas as demais. Com ela, elaboram-se um conjunto

    de temas que comea pelas possibilidades e necessidades de criao de uma

    civilizao planetria, como marco comum dessa nova era de convivncia mundial

    inevitvel. Que caractersticas ter esta civilizao? Ela no pode ser concebida

    maneira da Ilustrao: como uma supresso das civilizaes anteriores. Esta

    vontade imperialista, que se refletia na concepo de razo da Ilustrao, teve que

    ceder lugar nos nossos dias a uma concepo mais dialtica do Universo imposta

    pela emergncia do Terceiro Mundo, suas culturas e tradies milenrias, suas

    matrizes civilizacionais alternativas.

    A civilizao planetria ser pluralista, tolerante e mltipla ou no ser! (p. 57).

    Eu no era o nico a me sensibilizar por estas tendncias objetivas e subjetivas do processo

    histrico que levariam a choques e incompreenses que transformaram os ltimos vinte anos do

    sculo XX num caldeiro de confuses ideolgicas sob o domnio de um pensamento

    reacionrio que tentava fazer regressar a humanidade ao sculo XVIII. Fomos muitos os que

    resistimos, mas no conseguimos espao nos meios de comunicao que refletissem esse

    esforo crtico e analtico.

    O livro que ora apresento aos leitores reflete muito dessa firmeza crtica que finalmente pode ser

    compreendida no momento atual, quando o pensamento humano comea a romper esta casca de

    1 Theotonio dos Santos, O combate pacfico pela sobrevivncia, Humanidades 18, ano V, 1988.

    Brasilia, pp. 54-62.

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    falsidades e de posturas confusas e pragmticas. Por essa razo quis dedicar este livro a um

    pensador do Brasil, da Europa, dos Estados Unidos e da Frana e do chamado Terceiro Mundo

    que soube manter este esprito crtico e produzir novos conhecimentos que nos permitissem

    avanar apesar das condies to desfavorveis. Celso Furtado foi seguramente um dos mais

    eminentes defensores dos princpios ticos que tanto faltaram queles que terminaram

    capitulando diante da ofensiva reacionria. Manter uma postura cientfica sem concesses

    nestes anos era sem dvida uma qualidade fundamental. Salve Celso Furtado!

    Neste prlogo quero assinalar que os intelectuais comprometidos com o rigor terico e a

    profundidade analtica no foram tanto uma minoria nfima. Seu desaparecimento dos meios

    de comunicao simplesmente revela que fomos sim objeto de uma excluso contra a qual se

    lutou bravamente, utilizando todos os meios de comunicao, em particular os novos

    instrumentos virtuais que se encontravam ainda abertos.

    Alm de Celso Furtado, quero registrar entre estes lutadores j desaparecidos a figura de meu

    querido amigo Darcy Ribeiro que conseguiu romper em parte este ostracismo. Mas, me sinto na

    necessidade de nomear tantos outros amigos e companheiros desaparecidos em pleno processo

    produtivo, como Ruy Mauro Marini (vtima de um boicote sistemtico no Brasil), Milton

    Santos, Herbert de Souza (Betinho), Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Andre Gunder Frank,

    Giovanni Arrighi, Eric Hobsbawn, Guerreiro Ramos, Paulo Freire, Anouar Abdel-Malek,

    Miroslav Pekujlic, lvaro Vieira Pinto, Pedro Paz, Agustn Cueva, Ernest Mandel, Kiva

    Maidanik, Paul Sweezy, Harry Magdoff, Lelio Basso, Adolfo Snchez Vasquez, Jos Albertino

    Rodrigues, Perseu Abramo, Armando Crdova, Jos Luis Cecea, Pedro Vuscovic, Ren

    Zavaleta Mercado, Antnio Garcia, Enzo Faletto, Ren Dreyfuss, Maza Zavala, Gerard de

    Bernis, Jos Agustn Silva Michelena, Gregorio Selser, Clodomiro Almeida, Fernando

    Carmona, Francisco Mieres, Toms Vasconi, scar Pino-Santos, Gonzalo Arroyo, Manuel

    Maldonado-Denis, Leopoldo Zea, Otto Kreye, Jos Nilo Tavares, Fernando Fajnzylber, e tantos

    outros que me falha a memria.

    No devemos deixar de assinalar que grande parte do grupo de intelectuais que sustentou este

    esforo terico e analtico est ainda viva e em pleno processo de produo enquanto os

    processos polticos apontam para um encontro cada vez mais frtil entre a teoria e a prtica.

    Ambos passam por renovaes extremamente significativas que nos induziram preparao

    deste livro. Ao chegar ao final deste esforo sinto ainda um vazio profundo. Faltam muitos

    aspectos a serem estudados e cobertos que tenho que deixar para trabalhos posteriores. Espero,

    contudo, que os avanos que logrei registrar at agora possam ajudar a realizar novos passos

    tericos e analticos, alm de novas prticas sociopolticas. A tendncia de que o ponto de vista

    solidrio, emancipatrio e socialista esteja ganhando mais apoio a cada dia que passa, enquanto

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    as fantasias consumistas e hedonistas que a ideologia burguesa semeou provocam decepes

    cada vez mais frustrantes, nos ajuda a manter as linhas bsicas de nossos esforos tericos e

    prticos.

    No decorrer da leitura deste livro os leitores que resistam a este esforo talvez se sintam

    recompensados, mas seguramente sentiro tambm o quanto falta para que nos sintamos

    satisfeitos. Mas talvez esta seja a atitude correta. A postura dialtica que nos inspira sugere que

    sempre ser assim...

    Devo agradecer muito particularmente a Carlos Alberto Serrano Ferreira por sua assessoria

    editorial que, em alguns momentos, chegou a constituir uma contribuio substancial para o

    livro. Agradeo tambm com muito carinho o apoio institucional do Centro Internacional Celso

    Furtado atravs de Rosa Furtado dAguiar e de Pedro de Souza que se esforaram em viabilizar

    a finalizao deste trabalho. Como vimos, a elaborao do mesmo faz parte de um esforo

    coletivo de mais de uma gerao de cientistas sociais que entregaram suas vidas a esta tarefa to

    vital, mas to complexa e esgotadora.

    Os cursos, os seminrios, os congressos, os grupos de leitura, os trabalhos de pesquisa,

    individuais ou coletivos, as assembleias, os debates polticos, os enfrentamentos abertos ou

    clandestinos, as confrontaes com as foras da represso, as aproximaes com as

    possibilidades de polticas concretas de transformao social so todas formas mltiplas que

    assume o processo de conhecimento, esta acumulao de saberes que ajuda a humanidade a

    distinguir-se das outras espcies animais e colocar-se esta tarefa colossal de ser a construtora

    racional de seu prprio destino.

    Rio de Janeiro, 23 de Novembro de 2012.

  • 9

    Introduo

    1 UMA HOMENAGEM A CELSO FURTADO

    A maior parte dos estudos sobre desenvolvimento se concentrou nos aspectos econmicos, isto

    , no aumento da produtividade, da renda, particularmente da renda per capita, do emprego,

    etc.. Claro que esta aparente excluso da problemtica cultural no deixava de supor, contudo,

    uma ideia central: a emergncia econmica da Europa, continuada pelos EUA, se explicava em

    grande parte por caractersticas prprias do que se chamava Civilizao Crist Ocidental. Por

    mais volta que se d neste assunto persiste esta pretenso de apresentar a experincia histrica

    destes pases como um modelo abstrato na direo do qual evolui a humanidade.

    Muitas foram as modalidades de questionamento desta postura ideolgica apresentada como um

    modelo de cientificidade. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial ficou cada vez mais

    difcil ignorar a existncia de um sistema mundial desigual e combinado, tendo por centro,

    desde o final desta guerra, a potncia dos EUA, que pretendia dar continuidade a estas

    conquistas alcanadas pela modernidade, consideradas insuperveis.

    As revolues coloniais que se afirmaram no ps II Guerra Mundial como fruto do

    debilitamento da Europa, destruda em grande parte pela guerra, foram minando esta

    interpretao da histria: a libertao da ndia em 1947; a vitria do Exrcito Vermelho na

    China, em 1949; o fracasso da guerra contra a Coreia, reconhecido em 1953; a independncia

    da Indonsia (declarada em 1945 e reconhecida em 1949); o fracasso em 1954 da tentativa

    ocidental francesa de destruir o governo vietcongue eleito de Ho Chi Mihn (1945), seguido pela

    derrota da invaso norte-americana para manter o Vietn do Sul (1973), apesar da enorme

    mobilizao militar realizada por esse pas; o surgimento das foras armadas nacionalistas e do

    pan-arabismo socialista Baath. Tudo isto representava a emergncia da vida econmica,

    poltica, social e cultural de poderosos Estados nacionais herdeiros de fortes tradies culturais

    e civilizatrias.

    assim que, em 1955, a Conferncia de Bandung consagra a reivindicao afro-asitica de um

    no-alinhamento destas novas potncias com a diviso do mundo imposta pelos EUA e

    Inglaterra entre a Civilizao Crist Ocidental e o Totalitarismo Ateu-sovitico. Apesar de

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    algumas vacilaes de certas tendncias do pensamento socialista marxista em reconhecer a

    importncia histrica, econmica, poltica, social, civilizacional e at mesmo epistemolgica,

    desta tomada de posio, a fora dos acontecimentos histricos obrigou a um aprofundamento

    da crtica marxista e socialista da modernidade.

    A revoluo histrica conduzida pela burguesia europeia contra as estruturas feudais no podia

    ser identificada necessariamente como um modelo a ser seguido pelo resto da humanidade. As

    incurses de Marx e Engels na questo colonial j indicavam que a no se reproduzia o

    processo europeu, mas, pelo contrrio, a situao colonial era j um produto do processo de

    expanso capitalista mundial e no podia ser apresentada como uma realidade pr-capitalista. A

    teoria do imperialismo de Lnin, Bukhrin e outras contribuies importantes para um enfoque

    integral da expanso do capitalismo como economia e poltica mundial, j indicavam que este

    modo de produo se expandia sob formas diferenciadas em todo o planeta. A rebeldia desses

    povos conquistados pela fora no poderia ser, portanto, um fenmeno secundrio. Ela obrigava

    a repensar o processo de modernizao como um fenmeno diversificado, que dependia da

    posio das vrias unidades nacionais, regionais ou mesmo locais dentro da economia e poltica

    mundiais.

    assim que, a partir do chamamento de Bandung, inicia-se uma crtica cada vez mais radical

    pretenso de organizar o mundo imagem e semelhana das formaes sociais imperialistas.

    Durante os anos cinquenta e sessenta vai se configurando um embate econmico, social, poltico

    e cultural planetrio. Na dcada de 70, emerge com toda a fora a luta contra os resultados da

    explorao do mundo segundo os princpios capitalistas da plena realizao da acumulao

    indefinida do capital.

    As organizaes internacionais criadas para gerir o complexo processo que se apresentava ao

    final da Segunda Guerra Mundial, sob a hegemonia norte-americana, imposta inclusive a uma

    Europa profundamente debilitada, se veem na necessidade de refletir de alguma forma a

    existncia deste vasto mundo ignorado pela ordem econmica e poltica do ps-guerra. A

    apario de um novo sujeito histrico que representava a maior parte da populao do mundo e

    as civilizaes mais antigas que acumularam conhecimentos de grande valor civilizatrio era

    um fenmeno novo de impacto colossal.

    Os defensores da superioridade radical da civilizao ocidental, de maneira prepotente,

    consideravam estes conhecimentos totalmente ultrapassados e subestimavam a possibilidade e a

    probabilidade de que estes novos sujeitos da economia, da poltica e da cultura mundial

    pudessem organizar estruturas estatais relativamente independentes capazes de alcanar

    resultados fundamentais. Eles ignoravam tambm o quanto estes novos poderes poderiam

  • 11

    questionar os projetos do centro do sistema mundial, e at que ponto eles colocavam

    definitivamente em xeque a ordem mundial existente. assim que o debate sobre o

    desenvolvimento e o estudo da problemtica do desenvolvimento comea a ser questionado na

    sua formulao original tal como foi realizada desde o centro do sistema.

    So muitas as manifestaes de crtica a esta sobrevalorizao e at divinizao, se podemos

    diz-lo assim, do mundo euro-americano. Abre-se ento uma crescente discusso sobre as

    construes ideolgicas e culturais que sustentavam esta realidade em deteriorao. O

    pensamento social brasileiro demonstrou uma capacidade crescente de criticar a submisso

    ideolgica da nossa classe dominante condio de produtora de matrias-primas e produtos

    agrcolas para uma economia mundial em processos revolucionrios de expanso e

    transformao.

    No aqui o lugar para fazer um histrico detalhado deste processo crtico, que tem dimenses

    complexas e diversificadas. Porm, nos cabe chamar a ateno para a existncia do Instituto

    Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em 1955 no mesmo momento da afirmao afro-asitica

    expressada na Conferncia de Bandung. O ISEB traduzia para a situao brasileira avanos

    tericos e conceituais que ocorriam no plano internacional. Entre eles estava a atividade da

    Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL) que, desde 1949, depois de contrariar a

    pretenso norte-americana de que uma comisso regional das Naes Unidas teria que ser pan-

    americana e no latino-americana, tambm vai aprofundar o reconhecimento da especificidade

    da experincia econmica desta regio diante de uma ordem econmica mundial consagrada

    reproduo de um sistema onde claramente se definia um centro e uma periferia. Seu diretor,

    Ral Prebish, j apontava para a necessidade de uma crtica a alguns teoremas centrais do

    pensamento econmico, organizado em torno da ortodoxia neoclssica.

    Celso Furtado participou intensamente desse debate, alm de haver integrado em seu universo

    terico trs heranas que tendiam a ser convergentes neste processo crtico: os estudos

    histricos da escola dos Annales foram conhecidos amplamente por ele durante seu perodo de

    estudos doutorais na Frana; segundo, o marxismo que no ps-guerra inundava os campos mais

    crticos das Cincias Sociais; e, em terceiro, o keynesianismo que consagrava as polticas

    liberais do New Deal como as bases de uma proposta de economia de Bem-Estar na Europa e

    outras partes do mundo.

    A recuperao econmica do ps-guerra criava a iluso de uma incorporao das classes

    subordinadas e dos povos colonizados num processo geral de democracia, reformas sociais e

    crescimento econmico. O alerta da CEPAL, os estudos do prprio Celso sobre a maldio do

    petrleo na Venezuela e vrios esforos tericos e empricos que foram realizados ou

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    incorporados pela CEPAL indicavam a existncia de problemas mais complexos para a

    realizao desta promessa idealizada sobre os benefcios decorrentes necessariamente da

    expanso mundial da civilizao industrial.

    A dificuldade de sustentar as mudanas desenhadas pelas propostas fantasiosas das cincias

    sociais ocidentais e seus seguidores, dentro das sociedades caracterizadas pela dependncia,

    deram origem a uma interveno crescente do centro do sistema nas zonas perifricas. A

    percepo militar do confronto mundial entre civilizaes e sistemas sociais e polticos

    distintos levou aos processos poltico-militares guiados pela doutrina da contra-insurreio.

    Estes se transformaram numa sucesso de golpes de Estado a partir da dcada de 60 que

    demonstravam e faziam compreender os limites do consenso surgido depois da Segunda Guerra

    Mundial.

    O golpe de Estado de 1964 lanou uma gerao de pensadores brasileiros e latino-americanos

    na busca de explicao das dinmicas socioeconmicas, polticas e culturais que conduziam a

    estas frmulas de autoritarismo que se expandiam para vrias regies do mundo, mas em

    particular para a Amrica Latina. No deixa de ser positivo ver o desabrochar de uma

    conscincia crtica cada vez mais ampla, cada vez mais complexa, a partir dessa experincia

    dramtica, porm, enriquecedora.

    Por sua formao, Celso Furtado foi um dos que mais se sensibilizaram por essa problemtica e

    aproveitou sua experincia nos EUA, na Universidade de Princeton, que o permitiu penetrar

    mais profundamente na complexidade do processo de diferenciao entre a experincia histrica

    norte-americana e latino-americana, do sculo XIX para c. Ao mesmo tempo, o conhecimento

    mais direto do funcionamento e da expanso das corporaes multinacionais o conduziu a uma

    perspectiva nova que conduzia a um enfoque baseado no papel central da economia mundial,

    vista j como referncia fundamental para as polticas econmicas das naes a elas

    subordinadas. Ele incorporou mesmo o conceito de capitalismo dependente enquanto uma

    formao social especfica.

    A presena de Celso no Chile da Democracia Crist, no Instituto de Estudos Internacionais,

    recm-criado pela Universidade do Chile, lhe permitiu analisar aquela que representava a

    proposta mais avanada e exemplar da USAID (United States Agency for International

    Development) e do projeto de Aliana para o Progresso. Esta anlise permitiu-lhe compreender

    na prtica os limites desta proposta. Foi exatamente a compreenso pelo povo chileno destes

    limites que conduziu formao da Unidade Popular. O Chile havia se convertido num

    caldeiro de experincias frustradas de toda a Amrica Latina e na ponta de lana do

    desenvolvimento de um pensamento crtico que colocava em xeque a potncia ideolgica

  • 13

    colossal articulada pelos EUA o qual buscava herdar a vitria contra o nazismo (ocultando o

    papel fundamental da URSS, transformada em inimiga principal). Nesses anos, foram muitos os

    trabalhos produzidos, os quais busco resumir no captulo segundo deste livro. Estes continuam

    exercendo uma grande atrao, sobretudo com o fracasso da proposta do pensamento nico

    neoliberal que eu analiso no primeiro captulo.

    Cabe aqui destacar as vrias iniciativas que vo se desenvolvendo internacionalmente para

    canalizar este processo intelectual, poltico e cultural que vai se desdobrando durante as dcadas

    de 70 e 80. O meu encontro com Celso no Chile, quando ele era pesquisador do Instituto de

    Relaes Internacionais da Universidade do Chile e eu dirigia as pesquisas no Centro de

    Estudos Socioeconmicos desta mesma universidade, permitiu j que muitos pontos de vista

    comuns fossem se afinando. Na dcada de 70 estivemos tambm juntos na criao da

    Associao Internacional de Economistas do Terceiro Mundo, cujo primeiro congresso realizou-

    se na Arglia em fevereiro de 1976. Neste momento Celso buscava analisar criticamente as

    reunies Norte-Sul e a tentativa de criar a Nova Ordem Econmica Internacional sem levar at o

    fim a necessidade de reformas estruturais2. Esta Associao reconhecia a especificidade do

    fenmeno da dependncia e buscava desenvolver um pensamento econmico capaz de articular

    o ponto de vista e os interesses do chamado Terceiro Mundo.

    Ral Prebish j reconhecia essa problemtica quando propunha a criao da UNCTAD no

    comeo da dcada de 603. E, depois, ao mesmo tempo, se desenvolve a aliana dos Estados ps-

    coloniais com os Estados mais progressistas da Amrica Latina, que vai dar origem

    organizao formal do Movimento dos No-Alinhados, sendo a Associao de Economistas do

    Terceiro Mundo um think tank para este novo movimento.

    A Universidade das Naes Unidas (UNU) foi criada em dezembro de 19734 e sob a inspirao

    de seu vice-reitor Kinhide Mushakoji iniciou um conjunto de estudos sobre a economia mundial

    e a poltica mundial e o processo de transformao global. Coube a Anouar Abdel-Malek dirigir

    o projeto da UNU sobre Alternativas para o Desenvolvimento Sociocultural num Mundo em

    2 Ver Celso Furtado, El nuevo orden econmico mundial e Alvaro Briones e Theotonio dos Santos, La

    coyuntura internacional y sus efectos en Amrica Latina, ambos em Investigacin econmica, n1, nova poca, Revista da Faculdade de Economia da Universidade Nacional Autnoma do Mxico (UNAM),

    Mxico, D.F., janeiro-maro de 1977. Nesta mesma revista h uma srie de documentos sobre o Primeiro

    Congresso de Economistas do Terceiro Mundo. Lembre-se que nessa poca Celso Furtado publica sua

    crtica teoria do desenvolvimento: O mito do desenvolvimento econmico, Rio de Janeiro: Paz e Terra,

    1974. 3 A Conferncia das Naes Unidas sobre o Comrcio e Desenvolvimento (UNCTAD) foi fundada em

    1964 com o objetivo de colaborar na promoo do desenvolvimento e da integrao econmica dos pases

    em desenvolvimento. A criao do Sistema Econmico Latino-americano (SELA) por iniciativa do

    governo mexicano foi outro passo importante nesta direo. 4 O incio das discusses em torno sua constituio comeou j em 1969.

  • 14

    Transio. A reconstruo da teoria do desenvolvimento estava em marcha e as experincias

    polticas mais progressistas comeavam a apresentar como vivel essa reconstruo em novas

    bases, como vemos no captulo 3. Ao mesmo tempo, a problemtica da globalizao, do papel

    da inovao e da possvel retomada do crescimento em novas bases impulsionou um avano

    mais profundo na crtica aos limites da cincia econmica, temas que tratamos em parte no

    captulo 4 deste livro.

    Celso Furtado foi chamado a participar desse programa, no qual tambm tive o prazer de

    colaborar. Em 1984, o grande socilogo mexicano, Pablo Gonzlez Casanova, foi encarregado

    de coordenar a segunda reunio do projeto sobre criatividade cultural endgena que se realizou

    no Instituto de Investigaciones Sociales da UNAM. Segundo Abdel-Malek,

    A filosofia de nosso projeto, j amplamente exposta em documentos, mostra que

    seu impulso bsico ajudar a recolocar a problemtica do desenvolvimento

    humano e social, e suas vises e posies, diferentes e convergentes, de grande

    importncia na civilizao e na cultura. Estas vises e posies se obtm em nosso

    mundo no momento de sua transformao global, da emergncia de uma nova

    ordem internacional 5.

    A contribuio de Celso Furtado para o volume Cultura y Creacin Cultural en Amrica

    Latina o ponto de partida para a total incorporao de suas reflexes no campo do grande

    processo crtico contra o eurocentrismo e contra o economicismo que prevaleceu nas Cincias

    Sociais at muito recentemente6. Esta problemtica recolhida em grande parte no captulo

    oitavo deste livro, o qual trata sobre a Amrica Latina na encruzilhada. Os captulos sexto e

    stimo aprofundam a crtica ao eurocentrismo atravs da anlise das situaes concretas por que

    passa a globalizao, a qual comea a reelaborar-se mais radicalmente em funo da emergncia

    da China e da sia na economia mundial.

    Celso se colocava assim numa posio de vanguarda na nova fase do pensamento latino-

    americano iniciada com a Teoria da Dependncia e articulada posteriormente no grande

    movimento de ideais sobre o Sistema Mundial. Ao apresentar este debate, o vice-reitor da UNU,

    5 Extrado de Anouar Abdel-Malek. Cultura y creacin intelectual. Cultura y creacin intelectual en

    Amrica Latina, coord. Pablo Gonzlez Casanova. Mxico, D.F.; Madrid; Buenos Aires e Bogot: Siglo

    XXI / Instituto de Investigaciones Sociales de la UNAM / UNU, 1984. pp. XIV-XVII. Citao da pgina

    XIV. 6 Ver Celso Furtado, Creatividad cultural y desarrollo dependiente, no livro citado na nota anterior, pp.

    122-129. Uma verso posterior foi incorporada no artigo Quem somos? no livro de Rosa Freire dAguiar Furtado (org.), Ensaios sobre cultura e o Ministrio da Cultura, Rio de Janeiro: Contraponto;

    Centro Internacional Celso Furtado, 2012, pp. 29-41, como as primeiras reflexes de Celso Furtado sobre

    a relao cultura e desenvolvimento. Na mesma ocasio, eu publicava no mesmo livro organizado por

    Pablo Gonzlez Casanova o artigo Cultura y Dependencia en Amrica Latina: algunos apuntes metodolgicos e histricos, pp. 159-168.

  • 15

    Kinhide Mushakoji, reconhecia esta posio de vanguarda latino-americana ao justificar a

    realizao do Encontro sobre a Cultura e a Criao Intelectual na Amrica Latina:

    A contribuio dos intelectuais latino-americanos de especial importncia

    devido a sua condio de vanguarda dos intelectuais do Terceiro Mundo. Eles

    atuam num lugar histrico-geogrfico prximo ao Ocidente e ao mundo

    noratlntico, e os afeta diretamente a estrutura centro-periferia e a necessidade de

    superar e transcender o modelo noratlntico.

    No foi sem razo, portanto, que Celso Furtado foi apontado por duas vezes para reitor da

    Universidade das Naes Unidas. Indicao que, infelizmente, no pde se realizar durante a

    ditadura militar. O contedo internacional das reflexes de Celso foi recolhido pela UNESCO

    quando o convidou para participar como membro da Comisso Mundial sobre Cultura e

    Desenvolvimento.

    Em novembro de 1991, a Conferncia Geral da UNESCO aprovou uma resoluo que requeria

    ao seu Diretor-Geral, em cooperao com o Secretrio-Geral da ONU, estabelecer uma

    Comisso Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento, que foi constituda em dezembro de 1992.

    Ela foi criada nos marcos de uma mudana de concepo sobre o desenvolvimento, que j vinha

    se processando no Sistema das Naes Unidas, com particular referncia no PNUD (mas no

    s) e que pensava numa concepo mais ampla e menos economicista, centrada nos aspectos

    humanos, nos direitos e na qualidade de vida das populaes. Tratamos mais amplamente desta

    temtica nos captulo nove e dez deste livro. o estabelecimento do conceito de

    desenvolvimento humano onde, segundo Federico Mayor,

    A Cultura estava implicada nesta noo, mas no estava explicitamente. Foi, no

    entanto, cada vez mais evocada por vrios grupos distintos: a Comisso Brandt, a

    Comisso Sul, a Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a

    Comisso sobre Governana Global.

    A criao da comisso objetivava exatamente o estabelecimento efetivo da relao entre cultura

    e desenvolvimento:

    Construir perspectivas culturais em estratgias mais amplas de desenvolvimento,

    bem como uma agenda prtica mais efetiva, tinham que ser os prximos passos no

  • 16

    repensar do desenvolvimento. Este o desafio formidvel que a nossa Comisso

    teve de enfrentar. 7.

    Este carter da Comisso como um momento de um processo maior de transformao reflexiva

    fica ainda mais demonstrado por ela ser parte de uma iniciativa mais ampla da UNESCO, a

    Dcada Mundial para o Desenvolvimento Cultural (1988-1997), onde os seus pases-membros

    eram instados a refletir, adotar polticas e empreender atividades para assegurar o

    desenvolvimento integrado de suas sociedades 8.

    Para a presidncia da Comisso foi apontado Javier Prez de Cullar, ex-Secretrio-Geral das

    Naes Unidas, diplomata peruano, ex-embaixador na Sua, URSS e Venezuela, e membro do

    Institut de France (Academia de Moral e Cincia Poltica). Compuseram a comisso,

    intelectuais de diversas reas, como economistas, antroplogos, cientistas polticos, romancistas

    e poetas, bem como prmios Nobel, como da Paz e de Qumica. Foi uma comisso de alto nvel

    e de grande representatividade, tanto intelectual e cultural, como geogrfica.

    Como resultado de vrias reunies e de um dilogo intelectual mundial foi publicado em 1995,

    como produto de seu trabalho, o informe Our Creative Diversity9, do qual participou muito

    intensamente Celso Furtado, incorporando alm de suas reflexes tericas e histricas a sua

    experincia como Ministro da Cultura no Brasil.

    Esse informe produziu efeitos no debate internacional, tais como, dez anos depois, a

    solidificao dessa concepo da importncia da cultura para o desenvolvimento e da inter-

    relao profunda dessas duas dimenses na Conveno da UNESCO sobre a Proteo e

    Promoo da Diversidade das Expresses Culturais, que na letra (f) de seu primeiro artigo

    coloca como um dos objetivos da mesma reafirmar a importncia do vnculo entre cultura e

    desenvolvimento para todos os pases, especialmente para pases em desenvolvimento, e

    encorajar as aes empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconhea o

    autntico valor desse vnculo. Uma das consequncias diretas dessa Comisso foi tambm a

    publicao dos World Culture Reports10

    .

    7 Estas citaes de Federico Mayor foram extradas do Presidents Foreward, do relatrio da World

    Commission on Culture and Development, Our Creative Diversity: Report of the World Commission on

    Culture and Development, Paris: UNESCO, 1995. 8 Informao extrada do portal da UNESCO (www.unesco.org).

    9 Citado na nota 7.

    10 Saram edies em castelhano dos mesmos. Ver UNESCO, Informe Mundial sobre la Cultura: cultura,

    creatividad y mercados, Madrid: UNESCO / Acento / Fundacin Santa Mara, 1999 e Informe Mundial

    sobre la Cultura: diversidad cultural, conflicto y pluralismo, Madrid: UNESCO / Mundi-Prensa, 2001.

    Os relatrios foram disponibilizados quase em sua integralidade em verso on-line pelo Centro Regional

    de Investigaciones Multidisciplinarias (CRIM) da UNAM, estando o de 1999 disponvel em

  • 17

    Apesar de que a contribuio de Celso no foi individualizada no texto, por sua condio de

    membro do Conselho da pesquisa, seu artigo publicado na Folha de So Paulo, em 3 de

    novembro de 1995, sobre Cultura e Desenvolvimento, se refere ao papel dessa Comisso, no

    qual ele conclui ressaltando a importncia da mesma:

    Em sntese a nossa Civilizao somente sobreviver se lograr aprofundar os

    vnculos de solidariedade entre povos e culturas, num sistema de convivncia

    internacional cada vez menos tutelado e mais participativo11.

    Neste momento Celso Furtado j tinha passado pelo cargo de Ministro da Cultura entre 1986-

    1988, o que lhe permitiu colocar essa problemtica terica no campo das polticas pblicas.

    Nesta homenagem, gostaria de assinalar a interao entre esta experincia poltica de Celso e a

    figura de Darcy Ribeiro como secretrio de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Ambos

    destacaram os limites impostos ao desenvolvimento cultural pela oligarquia dominante dos

    pases capitalistas dependentes, particularmente no Brasil, diante da impressionante criatividade

    popular.

    Ento, a colaborao nossa com Celso Furtado se aproximou cada vez mais e ele teve um papel

    muito importante na consolidao da Ctedra e Rede em Economia Global e Desenvolvimento

    Sustentvel (REGGEN) sob a minha direo, que foi criada em 1997 pela UNESCO e pela

    UNU a partir de um encontro realizado em Helsinki, Finlndia, em 1996. Em 2000, a REGGEN

    colaborou muito diretamente com a organizao do encontro internacional coordenado por

    Francisco Lpez Segrera e Daniel Filmus sobre Amrica Latina 2020 cenrios, alternativas e

    estratgias, ocorrido no Rio de Janeiro. Nesta oportunidade ele pronunciou umas palavras de

    abertura que alm de chamar retomada do crescimento econmico, terminava com o seguinte

    pargrafo:

    O processo de globalizao interrompeu esse avano na conquista da autonomia

    na tomada de decises estratgicas. Se submergirmos na dolarizao, estaremos

    regredindo ao estatuto semicolonial. Com efeito, se prosseguirmos no caminho que

    estamos trilhando desde 1994, buscando a sada fcil do crescente endividamento

    externo e o do setor pblico interno, o Passivo Brasil a que fizemos referncia ter

    crescido ao final do prximo decnio absorvendo a totalidade da riqueza nacional.

    http://132.248.35.1/cultura/informe/ e o de 2001 disponvel em

    http://132.248.35.1/cultura/informe/informe%20mund2/INDICEinforme2.html. 11

    Extrado de Celso Furtado, Cultura e Desenvolvimento, do livro de Rosa Freire dAguiar Furtado (org.), Ensaios sobre cultura e o Ministrio da Cultura, citado na nota 5, pp. 113-116. Citao da pgina

    116.

  • 18

    O sonho de construir um pas tropical capaz de influir no destino da humanidade

    ter-se- desvanecido. 12

    Esta temtica est tratada neste livro, em grande parte, nos captulo onze e doze.

    Em 2003, realizamos talvez o mais importante encontro organizado pela REGGEN. Celso

    Furtado outra vez abriu nosso encontro, quando suas advertncias expressas na sua interveno

    anteriormente citada j estavam em plena concretizao. Suas advertncias continuavam

    fundamentais, claras e decisivas. Assim termina ele sua saudao:

    Agora que fazer? As portas para as sadas falsas esto fechadas. Liquidar o pouco

    que resta do patrimnio nacional? Apelar novamente para a inflao, forma

    insidiosa de punir a populao pobre? J no resta dvida de que, para sair do

    impasse atual que o obriga a concentrar a renda a fim de satisfazer a sempre

    crescente propenso ao consumo do segmento de privilegiados, o Brasil ter de se

    submeter a importantes reformas estruturais que exigiro persistncia de propsitos

    e apoio de amplo movimento de opinio pblica. A reconstruo estrutural

    requerida obra que exige esforo persistente de mais de uma gerao. So

    problemas que se acumulam desde a poca colonial e em parte resultam da

    dimenso continental do pas. Todos esto conscientes de que as relaes

    internacionais tendem a sofrer modificaes de grande monta, e o Brasil ter de

    enfrent-las antes que o quadro internacional restrinja ainda mais nossa capacidade

    de exercer a soberania. Os debates que tero lugar neste seminrio certamente nos

    ajudaro a encontrar o caminho de sada nessa difcil conjuntura. Aos

    organizadores deste seminrio, iniciativa do meu velho companheiro de lutas,

    Theotonio dos Santos, meus calorosos agradecimentos. 13

    Neste encontro, que contou com uma centena de importantes pensadores de todo o mundo e

    uma assistncia de cerca de seiscentos ouvintes, lanamos a candidatura de Celso Furtado para

    Prmio Nobel de Economia, com uma enorme repercusso. Em seguida, apresentei esta

    candidatura para o Encontro Internacional sobre Globalizao e Desenvolvimento organizado

    pela Associao de Economistas da Amrica Latina (AEAL) e realizado em Cuba nesse mesmo

    ano, com a aprovao unnime de um Auditrio de 500 economistas de todo o mundo. Por mais

    12 Extrado de Celso Furtado, Brasil: para retomar o crescimento, do livro de Francisco Lpez Segrera e

    Daniel Filmus (coord.), Amrica Latina 2020: cenrios, alternativas e estratgias, So Paulo:

    Viramundo, 2000, pp. 21-23. Citao da pgina 23. 13

    Extrado de Celso Furtado, Prefcio O desafio brasileiro, do livro de Theotonio dos Santos (coord.), Carlos Eduardo Martins, Fernando S e Mnica Bruckmann (orgs.), Globalizao e Integrao das

    Amricas, volume 4 da coleo Hegemonia e Contra-hegemonia, Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; So

    Paulo: Loyola, 2005, pp. 23-25. Citao da pgina 25.

  • 19

    que seu nome fosse aceito e recomendado por grandes figuras do pensamento econmico

    contemporneo, os jurados do prmio Nobel de economia no atenderam este clamor. Eles

    continuam premiando o economicismo conservador e uma cincia econmica totalmente

    separada das Cincias Sociais.

    Vemos assim que o presente livro deve muito a esta colaborao com este grande economista

    brasileiro de expresso universal. Estou seguro que Celso Furtado se vivo ainda estaria de

    acordo com grande parte das teses defendidas neste livro. necessrio preitear sua enorme

    contribuio para o mesmo.

    2 CIVILIZAO E DESENVOLVIMENTO

    O conceito de civilizao surge como tal no sculo XVIII. inclusive um verbete da

    Enciclopdia dos Iluministas. A ideia de civilizao se associava ento constituio de uma

    sociedade civil dos cidados, que se diferenciava das formas polticas anteriores e que gerava

    uma organizao social especfica que pretendia corresponder a uma moral mais adequada

    natureza humana. Nesse momento, se consagra a ideia do indivduo como fundador da

    sociedade e como criador de produtos que eram fruto de seu trabalho. Pode-se compreender,

    portanto, como a economia poltica clssica chegou noo de valor. Apesar do grande passo

    que isso significava para a busca de compreenso dos avanos sociais trazidos pelo aumento

    colossal de produtividade, que foi possvel alcanar como consequncia basicamente do

    desenvolvimento das manufaturas e posteriormente da Revoluo Industrial. Logo, era natural

    que no norte da Europa, particularmente na Inglaterra, onde se concentrava esta revoluo, se

    gerasse uma premonio de que o grande desenvolvimento das foras produtivas que se

    consolidava nestas regies e das formas sociais que se associavam a este processo produzisse a

    ideia de um estgio superior da sociedade humana que se caracterizaria por gerar uma forma

    social que foi se associando cada vez mais ao conceito de civilizao.

    Durante o sculo XIX foi-se depurando esta ideia. Saint Simon nos fala de uma sociedade

    industrial que corresponderia ao futuro da humanidade. Comte, seu discpulo, vai sistematizar

    esta noo de uma nova sociedade com a ideia de progresso. Associava-se assim certa

    concepo de sociedade ao processo evolutivo apoiado no conhecimento cientfico e nas formas

    de produo modernas, que se manifestavam na Revoluo Industrial. Hegel inclusive tinha na

    Fenomenologia do Esprito14

    mostrado o carter necessrio desta evoluo da humanidade na

    direo de uma sociedade livre apoiada na introduo e generalizao da industrializao, do

    14 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fenomenologia do Esprito, Petrpolis: Vozes, 2007. 4 edio.

  • 20

    uso da razo e da ao econmica organizada e sistematizada. No final do sculo XIX, a viso

    neopositivista de inspirao kantiana vai resgatar essa nova noo de progresso como um roteiro

    necessrio e como um produto do desenvolvimento da capacidade cultural humana. A estrutura

    de percepo assegurava ao Homem um pleno desenvolvimento da sua diferenciao do reino

    animal. Era lgico, portanto que aquelas sociedades que desenvolveram essa especificidade do

    humano se transformassem numa espcie de modelo para todas as outras. Tudo indicava

    poranto que a humanidade chegava, como o havia concebido Hegel, ao fim da histria.

    Marx e Engels buscaram compeender esta especificidade do humano, no como um dado da

    natureza humana mas sim como resultado da acumulao e evoluo da conscincia humana,

    embutida nas sucessivas formas de relaes sociais que pomove historicamente este pleno

    desenvolvimento da humanidade. Em consequncia, Marx e Engels desenvolvem um mtodo

    dialtico que lhes permite encontrar a universalidade do concreto, isto , o elemento mais

    abstrato de formaes sociais historicamente dadas. assim que ele se prope a realizar a crtica

    da economia poltica ao identificar na proposta terica do liberalismo e da economia poltica

    clssica uma tentativa de transformar as leis de funcionamento de um concreto histrico em leis

    gerais da sociedade humana em abstrato.

    A crtica da economia poltica era assim a crtica da tentativa da ideologia burguesa de

    transformar a sociedade e as relaes econmicas capitalistas numa forma ideal da sociedade

    humana. Este esforo terico de Marx permitia encontrar novas formas de organizao social

    que emergiam da prpria evoluo da sociedade capitalista e que serviam de fundamento para a

    ao poltica das classes sociais geradas pelas relaes capitalistas de produo. Surgiam assim,

    dentro do avano da revoluo industrial, as novas relaes sociais, particularmente as classes

    sociais que se identificavam com o avano destas novas bases materiais. A conjuno destas

    classes sociais se realizava num processo de luta que, de um lado, alterava o modo de

    funcionamento da prpria economia e sociedade capitalista e, de outro lado, colocava as

    condies e possibilidades de uma sociedade superior.

    O fenmeno da evoluo no terminava com a sociedade capitalista existente, mas pelo

    contrrio, apontava para uma transformao histrica permanente da humanidade e do ser

    humano como indivduo. O marxismo se convertia num movimento social que articulava uma

    viso do mundo, um mtodo de anlise e sntese e uma estrutura de organizao poltica que

    pareciam se materializar atravs do fenmeno impressionante da emergncia do movimento

    socialista internacional, na Comuna de Paris, na Primeira e na Segunda Internacionais.

    O pensamento comprometido com a ordem social, poltica e moral que brotava e se ampliava

    com a expanso material da sociedade burguesa exigia uma resposta terica, conceitual, mais

  • 21

    sofisticada. Os tericos burgueses de ponta, de vanguarda, no tinham mais por tarefa criticar as

    sociedades pr-capitalistas e sim defender o carter eterno e absoluto da sociedade existente.

    No deixa de ser impressionante ver o esforo terico de um Max Weber, de um Durkheim, de

    uma economia poltica austraca, para transformar em conhecimento cientfico a abstrao das

    relaes capitalistas de produo e do liberalismo, no como um fenmeno histrico concreto e

    particular e sim como a formao social e poltica em si. Tratava-se de transformar a sociedade

    existente na expresso mais avanada da economia e da poltica em geral. A materializao

    destas formas sociais abstratas seriam a forma final de organizao da sociedade humana. Eis a

    a origem da relao aparentemente harmoniosa entre o surgimento e a sistematizao das

    cincias sociais e a afirmao histrica do modo de produo capitalista.

    Se tomarmos em considerao que a formao do modo de produo capitalista historicamente

    se faz atravs de um sistema de relaes econmicas, sociais e polticas em escala mundial

    uma hiptese bastante arbitrria pretender que os processos que se deram nas regies que

    ocuparam um papel central na criao do sistema econmico mundial moderno correspondam a

    uma forma final e superior da histria humana. A partir disto que vamos fazer uma sntese das

    principais tentativas de apresentar a histria humana neste contexto terico conceitual, pois no

    comeo do sculo XX o sistema mundial capitalista apresenta o fenmeno da Primeira Guerra

    Mundial. Como explicar que a sociedade perfeita tenha levado a humanidade destruio

    mutua? Era necessrio encontrar as razes da guerra no competio inter-capitaista mas ao

    nacionalismo, por exemplo ou a elementos intrnsicos a toda sociedade.

    Vemos assim as vrias contribuies tericas como tentativas importantes de buscar estas

    causas independentemente das relaes de produo prprias deste modo de produo. Tratava-

    se de buscar os mecanismos pelos quais se alguns povos se liberaram das limiaes impostas ao

    pleno funcionamento da natureza humana prmitindo que se impusesse historicamente as

    relaes econmicas naturais que cabia cincia econmica descobrir. Tratou-se de afirmar,

    de um lado, com Oswald Spengler que a decadncia era uma parte necessria do prprio

    processo civilizatrio. Ela no se explicava por razes econmicas mas sim por limites

    culturais. Tese que ele defende no seu livro A decadncia do Ocidente15

    . Por outro lado,

    Pitirim A. Sorokin16

    , diante da ameaa que representa a Revoluo Russa para essa ordem social

    perfeita vai nos conduzir a uma tentativa de transformar num fenmeno biolgico o

    surgimento, o crescimento, a afirmao, o auge e a decadncia das civilizaes.

    15 Em portugus h Oswald Spengler, A decadncia do Ocidente: esboo de uma morfologia da histria

    universal, Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1982. 16

    Ver Piritim A. Sorokin, Social and Cultural Dynamics, Nova York; Cincinnati; Chicago; Boston;

    Atlanta; Dallas; So Francisco: American Book Company, 1937. 4 vols. O ltimo volume de 1941.

  • 22

    Estamos assim diante de uma crtica ao otimismo histrico do liberalismo, que entrava em

    eroso diante das evidncias histricas que vivia a sociedade burguesa. J no final da Primeira

    Guerra vamos assistir um dos esforos mais importantes para tentar reconstruir o quadro e o

    tecido da viso liberal.

    Desde uma postura que poderamos chamar de esquerda, nos deparamos com o gigantesco

    esforo de H.G. Wells para encontrar uma razo positiva orientando a evoluo da humanidade.

    Seu livro The Outline of History Being a plain history of life and mankind17, publicado

    originalmente em 1920 e revisado em 1932, lhe impe consideraes metodolgicas e

    ideolgicas. Diante da evidncia da parcialidade do seu prprio enfoque H.G. Wells tenta

    corrigi-lo em parte. Segundo ele:

    De incio o autor pretendeu apenas uma reviso geral da unidade europeia, uma

    espcie de sumrio da ascenso e queda do sistema romano, da obstinada

    sobrevivncia da ideia de Imprio na Europa e dos vrios projetos para a unificao

    da Cristandade que haviam sido propostos em diferentes ocasies (p. 4).

    Contudo, a evidncia dos fatos histricos o obriga a dar um passo adiante:

    Mas depressa (o autor) verificou no haver nenhum real comeo em Roma, ou na

    Judia, e ser impossvel confinar a histria ao mundo ocidental. Este no era seno

    o ltimo ato de muito maior drama. Os seus estudos o levaram, por um lado, at os

    primrdios arianos nas florestas e plancies da Europa e da sia ocidental, e, por

    outro lado, at os primeiros passos da civilizao no Egito, na Mesopotmia e nas

    terras agora submersas da bacia do Mediterrneo onde, parece, viveu e prosperou

    outrora uma populao humana primordial (p. 4).

    O autor busca suprir a falta de informao e conhecimento histrico da sua poca, mas

    compreende claramente as intervenes arbitrrias realizadas pelo pensamento pretensamente

    universal e cientfico a favor do reconhecimento do papel histrico excepcional e definitivo que

    a Europa apresentava:

    Comeou a compreender quanto os historiadores europeus haviam, drasticamente,

    diminudo a participao das culturas dos planaltos centrais da sia, da Prsia, da

    ndia e da China no drama da humanidade (p. 4).

    17 H uma edio em portugus H. G. Wells, Historia Universal, So Paulo; Rio de Janeiro; Recife e

    Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1942. 3 vols. As citaes se referiro esta edio.

  • 23

    Ele reconhecia ento, nesta operao de ocultao histrica, um contedo de interveno na

    problemtica do seu prprio tempo. Compreendendo o fenmeno que mais tarde Fernand

    Braudel chamaria de longa durao, ele afirmava:

    Comeou a ver, mais e mais claramente, como ainda se achava vivo, em nossas

    vidas e instituies, esse remoto passado, e como pouco o que podemos

    compreender dos problemas polticos, religiosos ou sociais de hoje, se no

    compreendermos os primeiros estgios da associao humana. E como

    compreender esses primeiros estgios, sem algum conhecimento das origens

    humanas? (p. 4).

    significativo ver como seu livro que teve uma divulgao excepcional no conseguiu tambm

    superar estes limites. Ele centra sua anlise histrica no mundo antigo na Europa, no

    mediterrneo e seu vale, e analisa as primeiras civilizaes como experincias separadas,

    envolvendo os cultivadores nmades primitivos transformados em camponeses, artesos,

    religiosos e militares a partir da revoluo agrcola que Gordon Childe18

    tomou como elemento

    central da transformao das foras produtivas e dos regimes sociais que se tornaram possveis e

    complexos a partir dela.

    Eles nos chama ao estudo dos sumerianos, do imprio de Sargo I, Hamurabi, os Assrios, os

    Caldeus, o Egito, a ndia e a China. Vemos como elementos comuns destas primeiras

    civilizaes no somente o domnio da natureza com a produo agrcola como o

    desenvolvimento de um pensamento primitivo, de uma diferenciao racial e lingustica, os

    povos martimos e os povos comerciantes, a escrita, a astrologia. Assistimos a emergncia da

    gesta de Alexandre, o Grande, que ele no pode deixar de considerar como o augrio do imprio

    mundial. O esforo de H.G.Wells, por mais que aspirasse a um enfoque universal, manteve no

    fundo a ideia de predestinao da Europa em converter-se em lder do processo civilizatrio

    mundial.

    Arnold Toynbee nos oferece um esforo colossal no seu Um estudo da histria19

    , publicado

    originalmente em 1972 como uma sntese atualizada dos doze volumes que publicara de 1927 a

    1939, s vsperas, portanto, da Segunda Guerra Mundial. Nessa verso mais repousada, vinte e

    sete anos aps a Segunda Guerra Mundial, Toynbee tenta dar um fundamento terico mais

    complexo do que adotou no seu esforo inicial.

    18 Ver Gordon Childe, O homem faz-se a si prprio: o progresso da humanidade desde as suas origens

    at o fim do Imprio Romano, Lisboa: Cosmos, 1947. Traduo feita por Vitorino Magalhes Godinho e

    Jorge Borges de Macedo do livro originalmente publicado em ingls Man makes himself, Londres: Watts,

    1936. 19

    Arnold Joseph Toynbee, Um estudo da histria, Braslia: Editora da Universidade de Braslia; So

    Paulo: Martins Fontes, 1987.

  • 24

    Na primeira parte, ao tentar uma morfologia da histria, Toynbee nos coloca:

    Comeo meu trabalho buscando uma unidade de estudo histrico que seja de certo

    modo independente e, portanto, mais ou menos inteligvel, isoladamente, em

    relao ao resto da histria. Rejeito o hbito contemporneo de estudar a histria

    em termos de estados nacionais; estes parecem ser fragmentos de algo maior: uma

    civilizao. Visto que o homem necessita classificar a informao antes de a

    interpretar, tal unidade de maior amplitude se me afigura menos deturpadora do

    que uma de menor espectro. Aps definir minha unidade de trabalho, ao observar

    as sociedades pr-civilizadas, procuro estabelecer um modelo para a histria das

    civilizaes, tomando como rumo os cursos das histrias helnica, chinesa e

    judaica. Ao combinar seus principais aspectos, proponho um modelo composto

    que, aparentemente, aplicvel s histrias da maioria das civilizaes que

    conhecemos. Concluo por elaborar uma lista das civilizaes, passadas e presentes

    (p. 15).

    O esforo de Toynbee realmente muito impressionante, sobretudo na medida em que ele busca

    encontrar os elementos que compem essas civilizaes, distinguindo inclusive as sociedades de

    transio e buscando um estudo comparativo das civilizaes. V-se, contudo, um certo limite

    de enfoque ao tomar os modelos helnico, chins e judaico como centrais. De fato, ao terminar

    sua morfologia ele apresenta uma tbua de civilizaes desenvolvidas e civilizaes abortadas.

    Outra vez seu esforo terico se v limitado no s pela perspectiva histrica eurocntrica,

    como tambm pela falta de estudos empricos suficientes, sobretudo sobre as regies do mundo

    que no fazem parte do imaginrio eurocntrico. Entre as civilizaes independentes no h

    dvida que ele s as pode encontrar dos anos 100-200 a.C. para c. claro, por exemplo, sua

    ideia de que a civilizao andina no teria relao com outras. Como veremos posteriormente o

    mundo andino j estava articulado numa regio relativamente grande em torno do stio

    arqueolgico de Caral desde 3.000 a.C. .

    Existe, portanto, um vazio tanto arqueolgico como histrico e terico que permita explicar o

    verdadeiro papel das Amricas no processo de desenvolvimento das civilizaes. Talvez

    pudssemos colocar entre parnteses todo o esforo interpretativo desenvolvido nos ltimos

    duzentos anos, a partir sobretudo dos centros acadmicos ocidentais, para reconstruir uma

    verdadeira histria das civilizaes. A partir dessa operao de parnteses, imitando a verso

    Guerreiro Ramos da reduo filosfica de Husserl, atravs de uma reduo sociolgica20

    ,

    20 Ver Alberto Guerreiro Ramos, A reduo sociolgica : introduo ao estudo da razo sociolgica, Rio

    de Janeiro: ISEB, 1958. H uma edio mais recente publicada pela editora da UFRJ em 1996.

  • 25

    reordenando essas experincias histricas com hipteses mais amplas que permitam desenhar

    um panorama novo desta epopeia humana.

    No o objetivo deste trabalho realizar esta tarefa que exige uma equipe ou mesmo vrias

    equipes muito amplas. Talvez seja j tempo de refazer a histria das civilizaes sem desprezar,

    evidentemente, estes esforos anteriores de compreenso da histria humana. interessante

    considerar que Toynbee, nesta sua verso mais ampla e mais moderna, j se sente na obrigao

    de resistir a esse enfoque eurocntrico, mas no nada claro que ele tenha conseguido superar

    esta limitao21

    .

    interessante notar o impacto deste esforo de Toynbee num Japo que estava recm

    recuperando sua fora histrica diante da civilizao ocidental, particularmente seu centro norte-

    americano, que lhe imps uma derrota definitiva na Segunda Guerra Mundial. Umesao Tadao,

    diretor do Museu de Osaka, escreve na dcada de 70 um conjunto de trabalhos que busca

    responder ao esforo de Toynbee. Em seu livro O Japo na Era Planetria22

    , traduzido ao

    francs por Ren Siffert, e publicado em Paris em 1983, ele tenta apresentar uma concepo

    ecolgica das civilizaes, que comea por criticar a diviso entre Ocidente e Oriente e,

    particularmente, identificar o Japo com a cultura oriental. Sua argumentao o conduz a uma

    afirmao bastante inquietante. Ele coloca:

    A velha concepo evolutiva da histria via a evoluo como uma progresso em

    linha reta sobre uma rota nica na qual passe o que passe todo o mundo atingir,

    cedo ou tarde, o mesmo objetivo. As diferenas no estado atual so consideradas

    como simples diferenas de nveis de desenvolvimento sobre a via do objetivo

    final. A verdadeira evoluo dos seres viventes no tem, evidentemente, nada a ver

    com isso, mas o enfoque evolutivo adaptado histria da humanidade chegou a

    esta maneira de ver simplista. Se admitir-se o ponto de vista ecolgico, por outro

    lado, muitas vias se oferecem segundo os casos, no pois surpreendente que nas

    primeiras e segundas zonas do mundo euroasitico, distinguidas por ele cada

    sociedade desenvolveu seu modo de vida prprio (p. 22).

    Ele insiste no caso japons e afirma:

    21 A cada dia maior o nmero de acadmicos europeus e norte-americanos que aceitam a ideia de que h

    uma viso eurocntrica, particularmente no que respeita ao conceito de uma civilizao ocidental.

    Poderamos citar a Niall Ferguson como um exitoso expositor dessa autocrtica limitada. Recomendamos

    como um exemplo bastante amplo deste enfoque o seu livro Civilizacin: Occidente y el resto, Barcelona:

    Random House Mondadori, 2012. Atravs deste livro pode-se tambm encontrar uma bibliografia

    bastante completa dos autores ligados a esta corrente. Outro esforo que pode chamar a ateno seria

    Norbert Elias, O Processo Civilizador, 2 v., Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 22

    Umesao Tadao, Le Japon lre planetire, Paris: Publications Orientalistes de France, 1983, de onde

    as citaes seguintes so retiradas.

  • 26

    Todo discurso sobre a cultura japonesa que no integra estes fatos que do a

    especificidade do caso japons na sua reflexo uma falta de sentido pura e

    simples. De outro lado, no se pode conceber toda a transformao na direo de

    um progresso da civilizao. Pois, a civilizao nosso ponto de apoio, nossa

    tradio, que ns devemos de toda maneira preservar (p.14).

    Desta maneira se chega a uma negao totalmente radical da viso eurocntrica que pretende

    estabelecer um modelo civilizatrio, inclusive a partir de especificidades da cultura europeia.

    Ele continua:

    Isto no tem nada a ver com o fato que o Japo seja um pas de capitalismo de alto

    nvel. Nem todo pas capitalista atinge forosamente um alto nvel de civilizao e

    impossvel afirmar que nenhum pas de alto nvel de civilizao tal como o Japo

    no se tornar jamais um pas socialista. (p. 14)

    E, ele ento amplia sua observao histrica:

    Para tomar as coisas concretamente, contudo, foroso constatar que no mundo

    antigo os pases que conseguiram criar uma situao de fato parecida, qualquer que

    seja o seu regime, so ainda menos numerosos. No existem aqueles que

    pareceram haver se aproximado dessa condio, mas somente o Japo e alguns

    pases da Europa Ocidental, que se encontram na outra extremidade do continente

    se transformaram na sua globalidade como pases de alto nvel de civilizao. Com

    os outros, China, Sudeste asitico, ndia, Rssia, pases islmicos, Europa Oriental

    subsiste ao menos vrios graus de diferenas. (pp. 14-15).

    Continuando com o caso japons Umesao vai questionar toda a interpretao de que a

    modernizao do Japo comea com a dinastia Meiji:

    Da minha parte, eu veria mais bem a relao entre a civilizao moderna do

    Japo, depois de Meiji, e a civilizao europeia moderna como uma espcie de

    progresso paralela. Num primeiro tempo, o Japo se encontrava em retardo, e era

    necessrio importar uma quantidade importante de elementos europeus para traar

    o seu avano nessas grandes linhas. Logo depois a mquina comeou a mover. No

    podia ser a questo contentar-se com comparar-se com a Europa Ocidental. Cada

    vez que aparecia um elemento novo o conjunto do sistema era revisado e ampliado.

    Estes elementos novos eram, segundo o caso, tirados da Europa, ou colocados pelo

    prprio Japo. Na Europa, por sinal, as coisas se passavam da mesma maneira. O

    automvel ou a televiso no existiam l desde o princpio. Cada vez que aparecia

  • 27

    um ingrediente novo como esses o antigo sistema era revisado e sem cessar

    ampliado (p. 15).

    E conclui, polemicamente: Qualquer que seja o caso, o Japo jamais teve por objetivo sua

    europeizao. E, isto continua uma verdade. Para o Japo o objetivo era o Japo (p. 16).

    Vemos assim que a forma mesma da qual se partia para organizar a histria das civilizaes e os

    fenmenos interculturais era questionada radicalmente por povos e naes que no aceitavam

    jogar fora sua identidade como condio de uma mudana social profunda.

    Inegavelmente, um momento de amadurecimento desta conscincia se coloca nos anos do ps-

    guerra, particularmente na Frana no debate sobre a reestruturao do ensino da Histria

    Universal. Fernand Braudel apresenta em 1963 um manual de histria das civilizaes23

    que

    comea a abrir caminho para uma tentativa de reinterpretao da histria desde um ponto de

    vista que busca ser realmente universal e interdisciplinar. Afinal, a intelectualidade francesa

    tinha que colocar-se diante da questo colonial num plano no puramente acadmico, mas

    geopoltico e militar. O enfrentamento contra a tentativa de se impor sobre a Indochina,

    fracassada nos anos 50, e a derrota da estratgia contrainsurrecional na Arglia obrigavam a

    repensar seriamente estas questes.

    Sem dvida, o problema do papel secundrio da Frana na reestruturao europeia tambm

    exigia uma maior profundidade do debate que haveria que ser travado em torno da questo

    civilizatria, da questo colonial e da questo do processo de modernizao. Num excelente

    texto de prefcio ao livro de Fernand Braudel Gramtica das Civilizaes, escrito pelo

    historiador Maurice Aymard, que dirigiu at recentemente a Maison des Sciences de lHomme,

    criada por Braudel, nos diz:

    F. Braudel freqentemente fez sua e uma ltima vez na introduo de LIdentit

    de la France, a afirmao de Marc Bloch: No existe histria da Frana. Existe

    apenas uma histria da Europa, mas apressando-se em acrescentar: No existe

    histria da Europa, existe uma histria do mundo. No teve tempo de levar a cabo

    essa histria da Frana, que era, como ele bem sabia, seu derradeiro desafio. No

    fez mais que esboar, pelo cinema e pelo texto (LEurope, Paris, Arts et Mtiers

    Graphiques, 1982), essa histria da Europa que se anunciava em Mditerrane.

    Deu-nos ele com Civilization matrielle, conomie et capitalisme, uma histria do

    mundo que desaguava, diferentemente de Mditerrane, numa interrogao sobre o

    presente e o futuro prximo (pp.11-12).

    23 Fernand Braudel, Gramtica das Civilizaes, So Paulo: Martins Fontes, 2004. As citaes seguintes

    so retiradas deste livro.

  • 28

    Maurice Aymard nos afirma com razo que o livro de Braudel Gramtica das Civilizaes

    prepara e completa este esforo colossal. Este livro tenta explicar os caminhos da formao

    primria, secundria e universitria de uma Frana que estava j regida por Mitterrand e pelas

    aspiraes de um Partido Socialista que tinha ainda pretenses universais. Braudel nos introduz

    na problemtica civilizatria ao demonstrar a relao profunda que existe entre a histria e o

    presente. Ele afirma:

    Esses acontecimentos de ontem explicam e no explicam, por si ss, o universo

    atual. De fato, em graus diversos, a atualidade prolonga outras experincias muito

    mais afastadas no tempo. Ela se nutre de sculos transcorridos, e mesmo de toda

    evoluo histrica vivida pela humanidade at nossos dias. O fato de o presente

    implicar semelhante dimenso de tempo vivido no deve parecer-lhes absurdo,

    muito embora todos ns tendamos espontaneamente a considerar o mundo que nos

    circunda apenas na brevssima durao de nossa prpria existncia e a ver sua

    histria como um filme acelerado em que tudo se sucede ou se atropela: guerras,

    batalhas, conferncias de cpula, crises polticas, jornadas revolucionrias,

    revolues, desordens econmicas, idias, modas intelectuais, artsticas... (p.18).

    Esto aqui as bases para a ideia da longa durao na compreenso dos fenmenos estruturais e

    at mesmo nas conjunturas, desde que vistas no contexto dessa longa durao. assim que

    Braudel nos conduz a uma histria mltipla, onde as civilizaes cumprem um papel

    fundamental. Na sua explicao da formao do conceito de civilizao, Braudel chama a

    ateno para a sua construo inicial como negao da barbrie, discute os limites da tentativa

    de diferenciar radicalmente civilizao de cultura e nos adverte para o aparecimento em 1919 do

    conceito de civilizaes no plural. Ele afirma:

    Na verdade, o plural que prevalece na mentalidade de um homem do sculo XX;

    e, mais que o singular, ele diretamente acessvel s nossas experincias pessoais.

    Os museus nos desambientam no tempo, mergulhando-nos mais ou menos

    completamente em civilizaes passadas. As desambientaes so ainda mais

    ntidas no espao: passar o Reno ou a Mancha, chegar ao Mediterrneo vindo do

    Norte so experincias inolvidveis e claras que sublinham a realidade do plural da

    nossa palavra. Existem, inegavelmente, civilizaes (p. 28).

    Braudel radicaliza ainda mais a sua proposio, quando afirma:

    Ento, se nos pedirem para definir a civilizao, sem dvida nos mostraremos

    mais hesitantes. De fato, o emprego do plural corresponde ao desaparecimento de

    certo conceito, supresso progressiva da ideia, peculiar ao sculo XVIII, de uma

  • 29

    civilizao confundida com o progresso em si e que seria reservada a uns poucos

    povos privilegiados ou mesmo a determinados grupos humanos, elite.

    Felizmente, o sculo XX se desembaraou de certo nmero de juzos de valor e, na

    verdade, no saberia definir em nome de que critrios? a melhor das

    civilizaes (pp. 28-29).

    Dessa maneira a histria das civilizaes tem, para Braudel, que se apoiar na diversidade das

    cincias humanas. E ele ilumina as vrias dimenses dessa diversidade: para ele as civilizaes

    so espaos, terras, relevos, climas, vegetaes, espcies animais, vantagens dadas ou

    adquiridas (p.31). Ele insiste, inclusive contestando a Toynbee, de que a tese deste sobre os

    reptos, desafio e resposta, no seria correta se pretende que quanto maior seja o desafio da

    natureza mais forte ser a resposta do homem:

    o homem civilizado do sculo XX aceitou o desafio insolente dos desertos, das

    regies polares ou equatoriais. Pois bem, apesar dos interesses indiscutveis (ouro e

    petrleo), at agora ele no conseguiu se multiplicar ali, criar verdadeiras

    civilizaes. Portanto, desafio sim, resposta sim, civilizao no necessariamente

    (p. 33).

    As civilizaes so tambm cultura, para Braudel, mas elas so antes de tudo sociedades. Ele

    afirma mesmo que a sociedade nunca pode ser separada da civilizao (e reciprocamente): as

    duas noes concernem a uma mesma realidade (p.47). Ele no deixa evidentemente de

    encarar o papel da economia, inclusive a incidncia das flutuaes econmicas, a importncia

    da criao dos excedentes e de sua gesto. Por fim, ele coloca muito claramente o papel das

    mentalidades coletivas o que no nos permite esquecer o papel das religies na construo das

    civilizaes.

    assim que sua Gramtica das Civilizaes vai apresentar um enfoque sobre as grandes

    civilizaes que comea pelo Isl e o mundo muulmano. J naquele momento o papel histrico

    do Isl indicava a sua resistncia assimilao pela civilizao ocidental. O continente negro, a

    frica subsaariana sobretudo, aparece com menos fora mas no se pode esquecer que o

    fenmeno da escravido trouxe os povos negros para a Amrica, criando uma interao afro-

    americana que tem, como veremos, uma proposta de identidade civilizatria comum entre

    frica e Amrica, pelo menos do Atlntico, incluindo claro o Caribe, onde essa populao se

    sobreps inclusive, bastante fortemente, aos povos originrios. A ndia tomada como outra

    vertente civilizacional, nunca nos esquecendo de que h uma parte importante da ndia

    dominada pelos muulmanos. Se h realmente uma civilizao com uma profunda identidade e

    especificidade talvez seja realmente a civilizao indiana.

  • 30

    interessante que Braudel vai vincular o extremo-oriente martimo com a Indochina, a

    Indonsia, as Filipinas, a Coreia e o Japo. Como vimos anteriormente, Umesao Tadao

    representa uma reivindicao de uma grande diferenciao do Japo com esses outros pases. A

    ideia de que o Japo se identificou com a civilizao chinesa a partir do sculo VIII uma fonte

    de discrdia muito importante na regio e debilita a tese japonesa de sua importncia quase que

    paralela evoluo da civilizao ocidental.

    S depois de examinar essas civilizaes no-europeias que Braudel parte para uma tentativa

    de caracterizao da Europa como uma vertente civilizatria na qual cristianismo, humanismo e

    pensamento cientfico so apresentados como parte dessa identidade histrica, dessa civilizao.

    Os estudiosos contemporneos da China e do Isl reivindicam uma forte dependncia do

    desenvolvimento cientfico da Europa em relao ao avano cientfico tecnolgico dessas

    civilizaes.

    Por fim, extremamente interessante ver a importncia que Braudel d s Amricas que termina

    por ressaltar o fenmeno do universo ingls. Por fim, Braudel no pode escusar-se de pretender

    situar a civilizao que ele chama da outra Europa, onde estavam a URSS e os pases da Europa

    Oriental. A eliminao ou a autodestruio da URSS obrigaria talvez a refazer esse captulo

    final de seu livro.

    Mas, no se pode esquecer a identidade que existe entre esta regio e o Imprio Mongol. Para

    ilustrar a importncia do Imprio Mongol, apesar da subestimao que certas histrias

    universais fazem do mesmo, apresentamos um quadro das reas que estiveram sob domnio

    mongol, que nos permite aceitar a designao de maior imprio em extenso contnua de terras

    da histria humana, deixando inclusive uma marca gentica:

    Um s homem, que viveu h cerca de mil anos em algum rinco da atual

    Monglia, realizou um feito reprodutivo sem precedentes na histria da

    humanidade: espalhou descendentes masculinos por uma rea que vai do Pacfico

    ao Cspio, gente que responde por 8% dos homens que vivem nas fronteiras do

    antigo Imprio Mongol, ou 12 milhes de pessoas, se as estimativas estiverem

    corretas. Flagrado graas a seu cromossomo Y a marca gentica da

    masculinidade esse pai de multides, dizem geneticistas britnicos, foi muito

    possivelmente Genghis Khan (1162-1227)24.

    24 Reinaldo Jos Lopes. Khan espalhou descendentes do Pacfico ao Cspio. Folha de So Paulo, 2 de

    fevereiro de 2003. Disponvel em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u8334.shtml.

  • 31

    Fonte: Jack Weatherford, Gengis Khan e a formao do Mundo Moderno, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.

    11.

    A antropologia a disciplina das cincias sociais que mais se envolveu com a questo

    civilizatria. De certa forma, a antropologia pretendeu estabelecer princpios de comparao

    entre as vrias manifestaes da sociedade humana. Estas comparaes terminavam por

    estabelecer as respostas mais corretas aos desafios colocados para os seres humanos. Dessa

    forma, se conseguia identificar as caractersticas das economias e sociedades europeia e depois

    norte-americana como uma aplicao sistemtica da racionalidade como forma cultural, como

    princpio ordenador dessas sociedades. Estava a desenhada uma forma histrica sofisticada de

    dividir o mundo entre a civilizao e as formas tradicionais de organizao social.

    Eric R. Wolf inicia uma crtica destas pretenses da antropologia. Ele nos mostra a relao

    profunda entre estas construes cientficas e as formaes sociais que as geraram. Depois de

  • 32

    analisar vrias propostas da antropologia nos oferece a seguinte reflexo em seu livro Europa y

    la gente sin historia25

    :

    Lo cierto es que ni europeos ni norteamericanos habran encontrado jams a estos

    supuestos porteadores de un pasado prstino, si no se hubieran encontrado unos a

    otros, de un modo sangriento, cuando Europa extendi el brazo para apoderarse de

    los recursos y poblaciones de otros continentes. De aqu que se haya dicho, y con

    razn, que la antropologa es hija del imperialismo. Sin imperialismo no habra

    habido antroplogos, pero tampoco habra habido pescadores denes, balubas o

    malayos que estudiar. El supuesto antropolgico tcito de que gente como esta es

    gente sin historia, es tanto como borrar quinientos aos de confrontacin, matanza,

    resurreccin y acomodamiento. Si la sociologa opera con su mitologa de

    Gemeinschaft y Gesellschaft, la antropologa opera con demasiada frecuencia con

    su mitologa de lo primitivo prstino. Ambas perpetan ficciones que niegan los

    hechos de las relaciones y participaciones en marcha (p. 33).

    Este vnculo entre os interesses do imperialismo e a tentativa de afirmar a ideia de que o

    conceito de civilizao corresponde a uma formao social superior a todas as outras uma

    contribuio de Eric Wolf que se completa com suas anlises sobre a violncia epistemolgica

    que cometem as cincias sociais para apoiar e garantir esta pretenso terica. Esta crtica nos

    leva prpria essncia da teoria do conhecimento que ele tenta articular com a contribuio

    terica de Marx ao afirmar o papel negativo da diviso das cincias sociais num conjunto de

    disciplinas isoladas.

    Eric Wolf busca recuperar a fora cognitiva que emana de uma viso totalizadora do processo

    social. Ele define mesmo as dificuldades e deformaes que produz a tentativa de somar

    disciplinas construdas isoladamente, ao afirmar:

    El obstculo mayor para uno desarrollo de uma nueva perspectiva radica en el

    hecho mismo de la especializacin en s (p. 35).

    Em seguida, reivindica a proposta de Marx que segundo ele

    censur a los economistas polticos por tomar como universales lo que para l

    eran las caractersticas de sistemas de produccin historicamente particulares (p.

    35).

    25 Eric R. Wolf, Europa y la gente sin historia, Mxico, D.F.: FCE, 1987. As citaes seguintes so

    retiradas deste livro.

  • 33

    Eric Wolf se coloca claramente na escola de pensamento em que participam Andre Gunder

    Frank e Immanuel Wallerstein:

    Tanto Frank como Wallerstein centraron su atencin en el sistema del mundo

    capitalista y la disposicin de sus partes. Aunque utilizaron los hallazgos de los

    antroplogos y de los historiadores de la regin, el fin principal que persiguieron

    fue entender cmo el centro subyug a la periferia, y no estudiar las reacciones de

    las micropoblaciones que habitualmente investigan los antroplogos. Esta eleccin

    suya del foco los lleva a no considerar la gama y variedad de tales poblaciones, de

    sus modos de existencia antes de la expansin europea y del advenimiento del

    capitalismo, y de la manera en que estos modos fueron penetrados, subordinados,

    destruidos o absorbidos, primeramente por el creciente mercado y luego por el

    capitalismo industrial. Sin un examen as, sin embargo, el concepto de la

    periferia sigue siendo un trmino de ocultacin como el de sociedad

    tradicional (pp. 38-39).

    Como se v, Eric Wolf se alia problemtica da teoria da dependncia ao reivindicar fortemente

    a existncia de formaes sociais anteriores ao capitalismo que sobreviveram um bom perodo

    de sua expanso, e que se relacionaram com ele sob a forma de choques, contradies, guerras e

    levantes. Esse tipo de enfoque o que nos pode explicar como a luta antiimperialista e

    anticolonial alcana, aps a Segunda Guerra Mundial, esta dimenso planetria que coloca em

    xeque definitivamente a ordenao econmica, poltica, social e cultural do mundo, imposta

    pela violenta expanso do capitalismo. Ele nos adverte assim claramente sobre o perigo de

    vincularmos civilizao com o processo de explorao, de expropriao, de destruio e terror

    sobre sociedades inteiras. No ser possvel pensar o processo civilizatrio exatamente como a

    negao destas formas histricas particulares que emergem das prprias contradies que este

    processo carrega, desenvolve e impe?

    Para ajudar a progresso de nossa proposta crtica devemos assinalar tambm a apresentao

    que nos faz Eric Wolf do mundo do sculo XV antes da grande expanso capitalista.

    especialmente interessante tomar em considerao o mapa das rotas comerciais que precedem

    esta expanso. Fica claro neste quadro o quanto o modo de produo capitalista depende de um

    conjunto de relaes econmicas e sociais que j expressavam um desenvolvimento milenar das

    relaes mercantis, isto , de uma economia mundial muito identificada com a rota da seda e

    toda uma histria de relaes econmicas que no podem ser reduzidas aos conceitos de

    relaes tradicionais, atrasadas, brbaras, etc., etc.

  • 34

    Fonte: Eric Wolf, op. cit., p. 44.

    Wolf foi fiel sua constatao da interao entre imperialismo e antropologia e seu livro sobre

    Europa e a gente sem histria vai exatamente trabalhar com sucesso essa relao desse mundo

    at 1400 e o impacto da expanso do modo capitalista de produo. Que ele mostra inclusive ter

    produzido relaes prprias que no pertencem a um capitalismo puro, como o que ele chamou

    de modo tributrio, onde se v o sistema colonial apoiado nessas relaes de expropriao dos

    Estados centrais para com as zonas dependentes. Assim, tambm, se preocupa fortemente com

    as relaes sociais recriadas pela expanso colonial e pela fase imperialista do capitalismo.

    Creio ser importante tomar em considerao a proposta de Darcy Ribeiro na sua obra O

    Processo Civilizatrio26

    . Darcy se v muito compelido a repensar a histria humana como uma

    evoluo e busca introduzir no conceito de civilizao aqueles elementos que permitem captar

    de maneira abstrata as tendncias de evoluo muito ligadas s mudanas tecnolgicas. assim

    que ele prope todo um esquema de evoluo civilizatria que vai desde as tribos de caadores

    e coletores at aquelas formaes sociais muito evidentes na dcada de 70, como o

    imperialismo industrial e o nacionalismo. O primeiro conduzindo a um socialismo evolutivo e o

    segundo a um socialismo revolucionrio. Tudo isto conduzindo a sociedades futuras que ele no

    26 Darcy Ribeiro, O Processo Civilizatrio: etapas da evoluo sociocultural, So Paulo: Companhia das

    Letras / Publifolha, 2000. As citaes seguintes so retiradas deste livro.

  • 35

    se atreve a caracterizar demasiado mas que est influenciado pela viso de Marx e Engels de

    uma tendncia ao comunismo. Para orientar essa proposta, ele a detalha muito audazmente e

    recorre a um esquema conceitual que se expressaria bastante bem na seguinte colocao:

    Concebemos a evoluo sociocultural como o movimento histrico de mudana

    dos modos de ser e de viver dos grupos humanos, desencadeado pelo impacto de

    sucessivas revolues tecnolgicas (Agrcola, Industrial etc.) sobre sociedades

    concretas, tendentes a conduzi-las transio de uma etapa evolutiva a outra, ou de

    uma a outra formao sociocultural (p. 15).

    No item sobre revolues tecnolgicas e processo civilizatrio ele nos prope uma continuidade

    no mecnica das seguintes revolues: a revoluo agrcola, a revoluo urbana e a revoluo

    industrial, e assume como caracterstica fundamental do ps-guerra a revoluo termonuclear.

    evidente que um esforo sinttico to amplo merea crticas. O perodo posterior Segunda

    Guerra Mundial no creio que est ligado a uma revoluo tecnolgica particular, por maior que

    seja seu impacto, mas sim revoluo cientfico-tcnica, isto , a subordinao do processo

    produtivo e tecnolgico ao domnio da cincia. Como os leitores podem ver no captulo quatro.

    O que importa no discurso de Darcy manter-se nessa perspectiva antropolgica que Eric Wolf

    vai apresentar no seu livro de 1982, sendo que o esforo de Darcy publicado em 1978, so

    esforos mais ou menos paralelos. Darcy insiste exatamente nessa complexidade do processo

    evolutivo no qual se apresentam no s situaes de rupturas revolucionrias, como processos

    de difuso cujas contradies so fundamentais, assim como processos de adaptao que

    carregam fortes elementos de imposio cultural, ou mesmo momentos de retrocesso de grande

    dimenso histrica, como ele v o feudalismo. Assim tambm, a sua tentativa de separar as

    civilizaes universalizantes das civilizaes singulares, de forma a permitir pensar o processo

    histrico de uma perspectiva evolutiva, mas no mecanicista. Creio que a seguinte citao,

    apesar de muito ampla, nos ajuda a compreender o escopo fundamental do seu trabalho sobre o

    processo civilizatrio:

  • 36

    A evoluo sociocultural, concebida como uma sucesso de processos

    civilizatrios gerais, tem uma carter progressivo, que se evidencia no movimento

    que conduziu o homem da condio tribal s macrossociedades nacionais

    modernas. Os processos civilizatrios gerais que a compem so tambm

    movimentos evolutivos atravs dos quais se configuram novas formaes

    socioculturais. Os processos civilizatrios singulares so, ao contrrio, movimentos

    histricos concretos de expanso, que vitalizam amplas reas, cristalizando-se em

    diversas civilizaes, cada uma das quais vive sua existncia histrica, alcanando

    o clmax de auto-expresso, para depois mergulhar em longos perodos de atraso.

    As civilizaes sucedem-se, dessa forma, alternando-se com perodos de regresso

    a idades obscuras, mas sempre reconstruindo-se nas mesmas bases, at que um

    novo processo civilizatrio geral se desencadeie, configurando processos

    civilizatrios especficos com os quais emergem novas civilizaes (p. 25).

    Fonte: Darcy Ribeiro, op. cit., p. 35.

    Na verdade, os conhecimentos arqueolgicos da humanidade so ainda bastante precrios para

    construir uma histria das civilizaes. Isto particularmente importante no caso da histria das

    Amricas que esteve aparentemente parte da histria universal at a chegada dos invasores

    europeus. A violncia com a qual se impuseram sobre os povos existentes nas Amricas

  • 37

    impediu organizar um conhecimento sistemtico sob sua trajetria cultural e civilizatria. Toda

    a tradio implantada com a invaso europeia nessa regio colocou em choque a civilizao que

    os europeus representariam e a barbrie ou mesmo patriarcalmente o bom selvagem a que

    foram reduzidos os indgenas.

    Os portugueses e os espanhis no deixaram de atuar no sentido de ocultar a grandeza das

    civilizaes encontradas na regio. As gigantescas catedrais que se construram em geral sobre

    os templos e as praas maiores indgenas mostram sua inteno de se apresentarem como

    superiores. Durante a afirmao americana nos sculos XVIII e XIX, durante os quais

    assistimos a rebelio anticolonial e sua vitria sobre os conquistadores ingleses (Estados

    Unid