texto sobre os burocratas do nível da rua e o caso brasileiro

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Rev. Adm. Pública — Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012 Burocratas da linha de frente: executores e fazedores das políticas públicas Antonio Oliveira Universidade Federal da Bahia A relação entre implementação das políticas, organização e burocracia é relevante porque ela ilumina a face de um problema crucial: o porquê de políticas serem bem-sucedidas ou fracassarem. As análises dessa relação indicam que o poder discricionário dos burocratas do nível da rua é um fator decisivo na distribuição de bens e serviços públicos; portanto, a ação desses agentes é uma variável relevante para o sucesso das políticas. Este artigo pretende discutir a discricionariedade dos burocratas do baixo escalão na aplicação das políticas públicas, usando como referência os argumentos apresentados na literatura especializada da implementação, da burocracia e da organização. A conclusão assinala ques- tões que são importantes para o controle do poder discricionário dos agentes públicos, sublinhando que essa discrição é condição necessária à execução das políticas, mas que ela ameaça a accountability e a responsiveness. P ALAVRAS - CHAVE : implementação de políticas; burocracia da linha de frente; accountability; resposi- veness; discricionariedade. Los burócratas de la línea de frente: ejecutores y los responsables de las políticas públicas La relación entre la ejecución de la política pública, la organización y la burocracia es importante porque ilumina un problema crucial: porqué las políticas tienen éxito o fallan. Los análisis de esta relación indican que la discreción de los burócratas del nível de la calle es un factor crucial en la ejecución de los servicios públicos; por lo tanto la acción de estos agentes es importante para el éxito de la política pública. Este artículo discute la discreción de los burócratas del nível de la calle en la ejecución de la política pública y examina las discusiones en la literatura especializada: ejecución de la política pública, burocracia, organización. La conclusión señala las preguntas que son importantes para el control de la discreción de los agentes, subrayando que esta discreción es condición necesaria a la ejecución de la política pública, pero que él amenaza la accountability y la responsiveness. P ALABRAS CLAVE : ejecución de la política pública; burocracia del nível de la calle; accountability; responsiveness; discreción. * Artigo recebido em 16 out. 2011 e aceito em 12 jul. 2012.

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Artigo: Burocratas da linha de frente: executores e fazedores das políticas públicas, de Antonio OliveiraUniversidade Federal da Bahia

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  • Rev. Adm. Pblica Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012

    Burocratas da linha de frente: executores e fazedores das polticas pblicas

    Antonio OliveiraUniversidade Federal da Bahia

    A relao entre implementao das polticas, organizao e burocracia relevante porque ela ilumina a face de um problema crucial: o porqu de polticas serem bem-sucedidas ou fracassarem. As anlises dessa relao indicam que o poder discricionrio dos burocratas do nvel da rua um fator decisivo na distribuio de bens e servios pblicos; portanto, a ao desses agentes uma varivel relevante para o sucesso das polticas. Este artigo pretende discutir a discricionariedade dos burocratas do baixo escalo na aplicao das polticas pblicas, usando como referncia os argumentos apresentados na literatura especializada da implementao, da burocracia e da organizao. A concluso assinala ques-tes que so importantes para o controle do poder discricionrio dos agentes pblicos, sublinhando que essa discrio condio necessria execuo das polticas, mas que ela ameaa a accountability e a responsiveness.

    Palavras-chave: implementao de polticas; burocracia da linha de frente; accountability; resposi-veness; discricionariedade.

    Los burcratas de la lnea de frente: ejecutores y los responsables de las polticas pblicasLa relacin entre la ejecucin de la poltica pblica, la organizacin y la burocracia es importante porque ilumina un problema crucial: porqu las polticas tienen xito o fallan. Los anlisis de esta relacin indican que la discrecin de los burcratas del nvel de la calle es un factor crucial en la ejecucin de los servicios pblicos; por lo tanto la accin de estos agentes es importante para el xito de la poltica pblica. Este artculo discute la discrecin de los burcratas del nvel de la calle en la ejecucin de la poltica pblica y examina las discusiones en la literatura especializada: ejecucin de la poltica pblica, burocracia, organizacin. La conclusin seala las preguntas que son importantes para el control de la discrecin de los agentes, subrayando que esta discrecin es condicin necesaria a la ejecucin de la poltica pblica, pero que l amenaza la accountability y la responsiveness.

    Palabras clave: ejecucin de la poltica pblica; burocracia del nvel de la calle; accountability; responsiveness; discrecin.

    * Artigo recebido em 16 out. 2011 e aceito em 12 jul. 2012.

  • Rev. Adm. Pblica Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012

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    Street-level bureaucrats: implementers and makers of public policiesThe relation between policy implementation, organization and bureaucracy is relevant because it illuminates the face of a crucial problem: why the policies have success or fail. The analyses of this relation indicate that the discretion of the street-level bureaucrats is a decisive factor in the delivery of the public goods and public services; therefore the action of these agents is important for the success of the policies. This article intends to discuss the discretion of the street-level bureaucrats in the application of the public policy and examines the presented arguments in the specialized literature: implementation, bureaucracy, organization. The conclusion indicates questions that are important to the control of the discretionary power of the public agents, underlining that this dis-cretion is necessary condition to the application of the policies, but that it threat the accountability and the responsiveness.

    Key words: policy implementation; street-level bureaucracies; accountability; responsiveness; dis-cretion.

    1. Introduo

    A relao entre implementao das polticas, organizao e burocracia relevante para o debate acadmico e pblico porque ela ilumina a face de um problema crucial: o porqu de polticas serem bem-sucedidas ou fracassarem. As anlises desta relao indicam que o poder discricionrio dos burocratas do nvel da rua decisivo na distribuio de bens e servios pblicos; portanto, a ao desses agentes uma varivel relevante para o sucesso das polti-cas. A discrio do burocrata da base um importante tema para a gesto pblica, porque a qualidade e a quantidade dos servios prestados dependem dela, logo os esforos para com-preenderem-se seus determinantes e consequncias deveriam ser um objetivo relevante nas pesquisas da administrao pblica.

    Este artigo discute a discricionariedade dos burocratas do baixo escalo na aplicao das polticas pblicas, usando como referncia os argumentos apresentados na literatura especializada da implementao, da burocracia e da organizao. Essa literatura mostra que a anlise da discricionariedade dos burocratas do nvel da rua no pode deixar de lado as ambiguidades e imprecises dos objetivos das polticas pblicas, e esse tema debatido no primeiro item. Na segunda seo, discutem-se a monitorao dos burocratas da linha de frente e os empecilhos a ela, destacando-se as controvrsias sobre a eficincia do emprego de incentivos para promover a regulao. Na terceira, analisam-se algumas caractersticas da organizao policial e as falas de oficiais policiais militares da Bahia para ilustrarem os argumentos apresentados nos tpicos anteriores acerca das dificuldades no controle de bu-rocratas que executam seus misteres na ponta do sistema. A concluso assinala questes que so importantes para o controle do poder discricionrio dos agentes da base, sublinhando que esse poder ao mesmo tempo condio necessria aplicao das polticas e um desa-fio a accountability e a responsiveness.

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    2. As polticas e os burocratas do nvel da rua

    2.1 A impreciso dos objetivos das polticas pblicas

    Desde a publicao do texto de Jeffrey Pressman e Aaron Wildavsky (1973) que o de-bate da implementao se tornou recorrente entre os analistas das polticas pblicas e eles passaram a se preocupar com o que, da perspectiva do cidado, de fato conta: os impactos das polticas para as pessoas e para os problemas a que elas so dirigidas. Mas ainda que essa ateno voltada aos determinantes e s consequncias das polticas tenha iluminado a compreenso do processo poltico, ela ainda no foi suficiente para explicar como os progra-mas aprovados so transformados em servios no interior das agncias, nem, principalmente, oferece explicao para os resultados deles: (...) elas [as pesquisas] nos contam muito pouco sobre a implementao da poltica pblica, porque uma coisa examinar os determinantes das decises polticas e identificar seu impacto ou consequncias, outra prover a explicao para essas consequncias (Van Meter e Van Horn, 1975:447).

    A discusso foi estimulada pelo reconhecimento de que os servios prestados poderiam no ter qualquer impacto sobre o problema que eles supostamente resolveriam e, no decorrer dela, tornou-se cada vez mais evidente a necessidade de incorporar as contribuies produ-zidas pela teoria das organizaes e, desde o texto seminal de Michael Lipsky (1980), pelos estudos das burocracias das ruas. A literatura passou a sublinhar a extenso em que os resulta-dos da implementao so dependentes das burocracias, pois elas desempenham papel capital no s na execuo das polticas que alocam os recursos pblicos como tambm na prpria tomada de deciso sobre quem ganha o qu do governo.

    Os estudos da implementao interessam-se pela razo de as polticas ocorrerem, ou no ocorrerem, do modo como foi intencionado pelos autores, e eles apresentam evidncias de que o desenho das polticas, os recursos devotados a sua execuo e a validade de sua teo-ria causal modelam a aplicao das polticas pblicas e seus resultados (Hill, 2003).

    Outro fator decisivo na implementao a organizao, porque ela influi diretamente nos resultados dos programas governamentais, pois a dinmica da interao entre ela e seus membros afeta o processo de trabalho e, por conta disso, influencia a quantidade e a qualida-de dos servios por ela prestados (Simon, 1997; March e Simon, 1993; Crozier, 1963; Crozier e Friedberg, 1977). A ao dos burocratas da linha de frente mais uma varivel na equao da aplicao das polticas, porque so eles que de fato traduzem os programas em bens e servios concretos, quer dizer, os cidados so beneficiados ou punidos pelo poder pblico por meio dos funcionrios que trabalham nos guichs; nos consultrios; nas salas de aula; nos ptios dos presdios; nas esquinas das ruas. Todavia, o agente da base tem de ir alm da execuo dos programas, porque muitas vezes os formuladores deles no sabem o que querem atingir com eles ou no sabem como alcanar os objetivos deles.

    No debate pblico acerca da implementao no raro se encontra implcita a suposi-o de que os fins das polticas e os meios para sua execuo esto bem definidos. H muito tempo essa suposio foi posta em suspenso pelos pesquisadores e acumularam-se indcios

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    de que frequentemente as polticas tm objetivos e significados vagos, dbios e contradit-rios e que isso ocorre algumas vezes porque os legisladores resolvem as controvrsias que surgem durante o processo decisrio mediante uma linguagem de compromisso e de reti-cncias. Quando a esfera legislativa no consegue solucionar os conflitos entre os objetivos das polticas ou apresentar esses fins de modo claro, ela transfere o problema para a rea administrativa.

    Os programas com propsitos vagos, gerais ou inconsistentes no so raros e frequen-temente, qualquer esforo para torn-los claros resulta na produo verbal sem significado ou na exposio de discordncias profundas (Wilson, 2000:26). Estas evidncias sugerem que os executores das polticas tm de ir alm da deciso de aplic-las ou no e isso inclui o julgamento sobre o que elas significam e que resultados elas almejam. As regras e os procedi-mentos formais da organizao no fornecem a referncia para esse juzo, porque no podem estabelecer ou esclarecer os fins dos programas, ento os aplicadores agem frequentemente de acordo com sua discricionariedade para fixar esses objetivos e, consequentemente, o modo mais adequado para atingi-los, ou seja, alm de outros fatores examinados adiante, a vagueza dos fins na elaborao das polticas exige e amplia a ao discricionria dos executores ime-diatos.

    2.2 A margem de manobra dos burocratas da linha de frente

    As polticas so feitas pelas autoridades eleitas e pelos funcionrios do topo e so executadas pelos atores do baixo escalo. Mas delegar a algum atribuies sempre arriscado porque, embora a designao seja feita a papis, de fato a delegao necessariamente envolve indiv-duos concretos que tm interesses e objetivos que nem sempre coincidem com os do sistema formal (Selznick, 1948:27). Por conta disso, os agentes podem apresentar resistncias s diretrizes que acompanham a delegao e podem se desviar das normas e dos procedimentos formais no cotidiano.

    O debate da burocracia influenciado pelas reflexes de Max Weber, da a relao hie-rrquica entre o topo e a base induzir ao entendimento de que os que se situam embaixo de-veriam executar sine ira et studio as ordens emanadas de cima. Mas as pesquisas mostram que o tipo-ideal weberiano se desvia consideravelmente das burocracias do nvel da rua, porque seus operadores desfrutam de ampla autonomia na deciso sobre quem sero os beneficiados e os punidos pelo governo, ou seja, eles no apenas executam as polticas pblicas (policies), eles fazem tambm a poltica (politics).

    Se as leis prescrevem os comportamentos que devero ser punidos e se as legislaturas determinam a elegibilidade dos que sero afetados pelas polticas, no plano micro a aplicao das leis e a seleo dos que recebero os benefcios so dependentes da discrio dos burocra-tas de linha. Numa situao concreta, que conduta ameaa a ordem pblica? O policial na rua quem deve decidir. O nmero de pessoas que ser atendido nos postos de sade pode de-

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    Rev. Adm. Pblica Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012

    pender largamente das decises dos funcionrios. A administrao do posto pode estabelecer a cota diria, mas no tem como assegurar a qualidade do atendimento na enfermaria ou no consultrio. Os administradores sabem que a adoo de medidas que sofram srias restries dos trabalhadores da base pode provocar uma reao que atinja a qualidade do servio e que ponha os gestores e os polticos sob a luz do pblico.

    No se pode esquecer de que os funcionrios no necessitam violar as regras para no cumprir as ordens oriundas de cima. Ao contrrio, basta que eles se apeguem a elas para jus-tificar sua resistncia. Se a norma obriga, ela protege tambm o agente na ponta do sistema. Como as condies reais de trabalho esto geralmente aqum no s das ideais como das necessrias, legitimamente os atores podem se recusar a trabalhar sob as condies existentes na agncia ou, outro recurso disposio, podem realizar as tarefas de acordo com a letra da lei. a conhecida operao-padro e que os franceses chamam de greve de zelo.

    O texto de Michael Lipsky (1980) sobre a burocracia do nvel da rua (street-level bureau-cracy) tornou-se a referncia no debate da importncia das agncias e dos agentes que concre-tizam o Estado perante o cidado individual, no dia a dia. Mas a relevncia dos atores do bai-xo escalo j havia sido indicada duas dcadas antes. David Mechanic (1962) sublinhou que, nas organizaes complexas, os participantes da base possuem amplo poder e influncia que no esto associados s suas posies formais. Ele argumentou que as organizaes podem ser muito dependentes de seus membros da linha de frente, porque eles podem obter, manter e controlar informaes, pessoas e instrumentos que so importantes para o funcionamento delas e isso d aos agentes poder informal, pois os superiores hierrquicos esto destitudos daqueles recursos e no podem regular o uso deles pelos subalternos, a no ser ao custo de reduzir a eficincia da organizao, o que criaria problemas para eles prprios.

    Todavia coube a Michael Lipsky realizar a primeira anlise sistemtica do que a partir de ento ficaria conhecida como street-level bureaucracy:

    Eu argumento que as decises de burocratas do nvel da rua, as rotinas que eles estabelecem e os artifcios que eles inventam para tratar com as incertezas e as presses do trabalho efetivamente tornam-se as polticas pblicas que eles executam. Eu sustento que a poltica pblica no mais bem compreendida como feita nas legislaturas ou nas sutes dos administradores do alto escalo no ltimo piso. Estas arenas decisrias so relevantes, claro, mas elas no representam o quadro completo. combinao dos lugares onde as polticas so constitudas, devem-se adicionar os escritrios lotados e os encontros dirios dos trabalhadores do nvel da rua (Lipsky, 1980:xiii; nfase no original).

    O Estado torna-se concreto para a maioria dos cidados por meio desses funcionrios, porque das mos deles saem os benefcios ou as punies que aqueles recebem do governo e que delimitam as vidas e as oportunidades deles. E, como ensinado pela teoria das organiza-es, no parece que se possa confiar nas normas e procedimentos formais como garantia de que os agentes pblicos seguiro os objetivos declarados nas polticas e de que atendero s exigncias de accountability, de equidade e de responsiveness na aplicao dos programas. O

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    fator fundamental para essa dvida a ampla discrio de que os atores da base usufruem na execuo de seus misteres.1

    Os burocratas do nvel da rua carecem de tempo, de informao e de outros recursos necessrios a uma apropriada tomada de deciso. Se a escassez desses recursos crucial em qualquer processo decisrio, ela o ainda mais nas burocracias em que os atores tm de tomar decises de pronto em situaes imprevistas e/ou marcadas pela ambiguidade, no calor do momento, sob a presso direta e imediata do pblico e eles tm de decidir o que fazer por si mesmos, sem a ajuda dos supervisores, dos guias de procedimentos ou de precedentes. Os im-perativos da situao ajudam a explicar por que, apesar de os agentes terem pouca autoridade formal, eles dispem de considervel discrio sobre as regras e os procedimentos que sero aplicados e sobre os bens e as sanes que sero distribudos.

    Apesar de o funcionrio da esquina exercer seu ofcio sob o constrangimento das nor-mas e dos procedimentos, ambos proveem dbil limitao e frgeis parmetros para os jul-gamentos na linha de frente: o trabalho ao nvel da rua , ironicamente, saturado de regras, mas no obrigado por elas (Maynard-Mood e Musheno, 2000:334). H fatores que influen-ciam a discricionariedade: as tarefas a serem executadas; o contexto da tomada de deciso; as presses da carga de trabalho; a cultura da organizao; as regras e os constrangimentos; o ambiente externo da organizao (Furlong, 1998; Balla, 2000).

    O exerccio da discrio inevitvel e necessrio, porque as regras formais no podem dar conta de todos os casos concretos e, em geral, os recursos da agncia esto aqum dos ne-cessrios para atender aos cidados, e, devido a isso, o poder discricionrio do agente da base torna-se imprescindvel para que a organizao se amolde realidade, funcione e atenda s pessoas. Mas reconhecer isso no implica negar os problemas que esse poder acarreta para o cidado e para a democracia, porque, nesse regime, os eleitores escolhem as autoridades que devero formular as polticas e listar os elegveis. No entanto, os burocratas do baixo escalo comumente tornam-se os fazedores das polticas, sem que tenham de responder aos concida-dos do mesmo modo que as autoridades eleitas. A ampla margem de manobra deles pe a interrogao sobre seu controle.

    3. A monitorao dos agentes do baixo escalo

    3.1. Os limites dos mecanismos de regulao

    Analisando as discusses acerca do poder discricionrio dos burocratas, James Q. Wil-son sublinhou que no existe um problema da burocracia e sim alguns e que a soluo de cada um deles , em algum grau, incompatvel com as solues de todos os outros:

    1 Para evitar mal-entendidos, deve-se sublinhar que os burocratas da linha de frente no desfrutam todos eles o mesmo grau de discricionariedade, pois ela depende do tipo de servio prestado pela agncia.

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    Primeiro, existe o problema da accountability ou controle fazer com que a burocracia sirva aos objetivos que tm a concordncia nacional. Segundo o problema da equidade fazer com que a burocracia trate de modo igual os casos similares e sob a base de regras claras e conhecidas (...) Quarto o problema da responsiveness induzir os burocratas a irem ao encontro, com disposio e compaixo, dos casos que no podem ser postos numa regra singular e que parecem requerer, pelos padres comuns de justia e benevolncia, que uma exceo seja feita (Wilson, 1967:4-5).

    As dificuldades comeam quando se percebe que esses valores nem sempre so com-patveis entre si. A equidade pode se chocar com a responsiveness, porque essa exige o trata-mento diferenciado, que sejam levadas em conta as necessidades especficas de cada cidado, enquanto aquela postula o tratamento igualitrio. Do mesmo modo, a responsiveness pode se chocar com a accountability, pois se o burocrata deve agir de acordo com as necessidades de cada pessoa, ele talvez tenha de se afastar dos objetivos declarados do programa, porque esses fins formulados no alto no contemplam os casos particulares. Em resumo, em certas circuns-tncias algum desses princpios ter que ser sacrificado em favor dos outros e a deciso sobre quando isso deve ocorrer fica merc sobretudo dos burocratas da linha de frente. Como lembrado por Michael Lipsky (1980), as burocracias do nvel da rua incorporam o paradoxo de ter de realizar estritamente os objetivos que tm origem no processo poltico e, ao mesmo tempo, o trabalho requer improvisao e responsiveness.

    Alm do problema de eventuais choques entre os princpios que norteiam a prestao de servios pblicos numa democracia, o debate da monitorao dos burocratas da base tem de incorporar um elemento definidor de sua ocupao, que o de enfrentar as reaes diretas e imediatas das pessoas s suas decises. Diferente das autoridades polticas e da alta admi-nistrao, os atores na ponta do sistema no veem os cidados como abstraes, mas como indivduos concretos, nos encontros face a face. Como sublinha a literatura, os polticos e os administradores do topo falam da abstrata delinquncia juvenil, o policial tem de confrontar o adolescente armado; eles discorrem abstratamente sobre a dificuldade de aprendizado, o professor tem sua frente o aluno que no consegue acompanhar o curso (Lipsky, 1980; May-nard-Mood e Musheno, 2000).

    Esta situao faz com que os agentes da base enxerguem por vezes seus superiores como elaboradores de programas que so distanciados da realidade e impraticveis e, por conta disso, os burocratas de linha passam a duvidar de que as autoridades estejam realmente preocupadas em solucionar os problemas da sociedade. Essa percepo uma varivel que impe obstculos regulao desses agentes, porque ela abala a legitimidade da hierarquia. No h por que supor que esses trabalhadores duvidem todo o tempo da legitimidade dos gestores, contudo, medida que, aos olhos deles, as diretrizes da hierarquia afastam-se das condies reais de trabalho, ameaam seus interesses privados ou ignoram as caractersticas dos cidados individuais, eles tendem a desobedec-las parcial ou totalmente. Como eles no so vigiados de perto pelos supervisores, eles tm a oportunidade de executar suas tarefas de acordo com suas preferncias e com suas concepes do pblico a que servem.

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    Devido ao poder discricionrio dos burocratas, desde a dcada de 1950 acentuou-se a preocupao com a fiscalizao deles. Grosso modo, podem-se apresentar duas perspectivas que orientam a discusso: a top-down v os formuladores das polticas como os atores princi-pais e concentra sua ateno sobre os fatores que podem ser manipulados ao nvel do topo. A bottom-up enfatiza os grupos-alvo e os prestadores de servio, argumentando que as polticas so feitas tambm na base (Matland, 1995; De Leon, 1999).

    A teoria da agncia muito influente entre os pesquisadores que concentram sua aten-o no alto escalo. De acordo com ela, o comprador de bens ou de servio o principal; o vendedor, o agente (principal-agent model). A aplicao dela tem alguns pressupostos bsicos: a relao entre os lderes eleitos e os burocratas hierrquica; os burocratas esto limitados pelo contrato a servir s autoridades polticas e sua responsabilidade primria implementar a lei. Trata-se de uma relao gerida pelo contrato especificando o que o agente deve fazer e o que o principal tem o direito de receber. O chefe do Executivo e os parlamentares, por exemplo, so os compradores/consumidores, e os burocratas, os vendedores/fornecedores. Assume-se que, com o tempo, os interesses de ambos divergem entre si, mas a situao mais favorvel aos agentes, porque eles tm mais informaes que seus principals, logo estes devem monitorar aqueles de modo a assegurar o controle poltico sobre eles.

    Orientados por esta teoria, pesquisadores concluram que, sendo o controle um assunto econmico envolvendo a manipulao de incentivos ao nvel micro, possvel a regulao po-ltica das burocracias, isto , h como fazer o burocrata responder autoridade poltica (Wood e Waterman, 1991; Waterman et al., 1998). No entanto, os resultados dessas pesquisas tm alcance limitado: o baixo nmero de casos estudados e a pouca variedade de agncias pes-quisadas no autorizam a generalizao (Wood e Waterman, 1991; Waterman et al., 1998; Wilson, 2000; Balla, 2000). Alm disso, h problemas com seus pressupostos analticos.

    A preocupao principal so os mecanismos que possam reduzir a probabilidade de os agentes deixarem de fazer as tarefas que lhes so designadas. O mecanismo preferido o do incentivo econmico, que vinculado ao desempenho da agncia e/ou do ator. De fato, a medida dos resultados da organizao e dos trabalhadores pode ser um fio condutor para regular os ltimos; entretanto, como salientam Simon (1991) e Weisbrod (1989), os sistemas de recompensa so efetivos quando podem medir acuradamente as contribuies individuais e a produo da organizao. Se os ndices para avaliarem os resultados forem inapropriados, seja porque eles no tm como identificar os acrscimos individuais para o produto final seja porque no medem as variveis corretas, ento o sistema de recompensas pode ser ineficiente ou at mesmo contraproducente.

    As pesquisas empregando a teoria da agncia dirigiram-se a organizaes onde, em princpio, os resultados poderiam ser mensurados; entretanto, h agncias em que a medida do resultado no possvel ou onde, como no caso do policiamento ostensivo, o processo mais relevante do que o produto: o modo como o policial restaurou a ordem pblica pode ser mais importante do que a ordem restaurada. O processo s poderia ser avaliado se o fiscal estivesse presente no momento da ao, mas, nesse caso, o problema da regulao no estaria

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    posto, porque o executor estaria sob a superviso imediata e, como regra, o debate do controle refere-se s situaes em que a vigilncia no imediata.

    Alm disso, a falta de clareza dos objetivos contribui para os obstculos impostos ava-liao da performance. A ausncia dessa nitidez no rara na formulao das polticas, como discutido na primeira seo. Quando os fins da organizao e das polticas so imprecisos, o desempenho como um todo e o do agente no so fceis de serem aferidos. A polcia e a escola tm objetivos vagos: assegurar a ordem pblica e educar as crianas. Os valores conflitantes numa sociedade muito heterognea fazem com que haja discordncias entre os cidados acer-ca da definio de ordem pblica e de educao.

    Torna-se difcil monitorar os atores a partir de seu desempenho quando os critrios de sucesso so obscuros. At se podem conhecer os inputs e os outputs do sistema, mas pode-se saber muito pouco sobre o processo de transformao de um em outro, alm do que h efeitos que s podem se manifestar muito depois de o processo ter sido concludo (Bouchard e Carrol, 2002; Friedberg, 1993). A aferio inadequada do desempenho reduz o poder regulador dos resultados, porque os atores podem consider-los invlidos ou injustos e desprez-los. O re-curso para se evitarem as dificuldades da teoria da agncia, o conhecido todas as outras coisas sendo iguais, pode no ser de grande valia porque, como lembra James Q. Wilson, raramente todas as outras coisas permanecem iguais. E ele completa:

    (...) sob as condies de vagueza e de objetivos conflitantes no surpreendente que os econo-mistas no tenham feito muito progresso em encontrar at mesmo soluo terica para o proble-ma do shirking. Surpreendente que os burocratas trabalhem como um todo, apesar de todas as oportunidades que eles tm para no fazerem as tarefas que lhes so assinaladas (Wilson, 2000:156).

    No se deve esquecer de que os incentivos encontram seus limites em outros fatores que tambm influenciam a discrio: a expectativa dos pares e as normas profissionais (Wilson, 2000; Evans, 2011). A expectativa dos pares mais relevante para se compreender o com-portamento dos agentes do que suas atitudes. Os incentivos podem concorrer com as atitudes e venc-las, mas tendem a perder quando se confrontam com as expectativas dos parceiros, isto , h maior probabilidade de os atores preocuparem-se mais com a reao dos colegas ao seu comportamento do que com prmios ou punies. As normas profissionais so outra importante varivel que influencia a discrio. Elas e a expectativa dos pares contribuem para monitorar os agentes, mas reduzem o poder da organizao sobre eles.

    Estas ressalvas dirigidas regulao dos burocratas seguindo-se a teoria da agncia no so para negar que possvel controlar via medio dos resultados e recorrendo-se aos incen-tivos seletivos, mas sim para sublinhar seus limites, sobretudo se se quiser aplic-la s buro-cracias em que o processo de execuo das tarefas pode ser mais importante que os produtos ou cujo resultado final no pode ser atribudo exclusivamente a elas e a seus atores.

    Se essas observaes sobre a fiscalizao na ponta do sistema podem ser vlidas para as burocracias pblicas e privadas, h um fator importante que acentua os obstculos quando se trata das primeiras: o carter involuntrio de seus clientes (Lipsky, 1980; Downs, 1967).

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    As empresas privadas podem receber aviso do mercado quando seus consumidores no esto satisfeitos, porque simplesmente eles desaparecem. No o caso da burocracia pblica, porque ou ela monopoliza os servios, ou a opo para os clientes muito custosa, ou eles no podem optar se querem ou no ser atendidos pelo Estado. No caso do sistema criminal a obviedade do carter involuntrio salta aos olhos, mas isso verdadeiro tambm para outras situaes: o cidado que quiser habilitao para dirigir tem de ir s agncias pblicas, no importa se elas so eficientes ou no; os pais de baixa renda s podem matricular os filhos nas escolas do governo, independente da qualidade delas; os cidados pobres no podem dispen-sar os postos de sade governamentais nem os vrios servios sociais, sofram humilhaes ou no. Independentemente de como o cidado seja tratado, as burocracias pblicas no perde-ro o cliente; logo, a ausncia dele no servir como alerta aos administradores.

    3.2 Os supervisores da ponta do sistema

    Dessas reflexes no deriva a concluso de que a agncia, atravs de seus gerentes e admi-nistradores, no tenha poderes para persuadir e induzir os trabalhadores a caminharem em direo aos objetivos dela, ou seja, de que ela no disponha de recursos para limitar o poder discricionrio dos agentes na aplicao das polticas. A organizao importa quando o tema a regulao da conduta de seus membros. Se for verdade que os funcionrios do baixo escalo tm ampla margem de manobra, eles no atuam, contudo, num vcuo institucional. A organi-zao produz constrangimentos que modelam a discrio deles: se as regras formais no so a determinante primria do comportamento dos burocratas das ruas, elas no so tambm sem efeitos, porque eles no as podem ignorar em suas escolhas do curso de ao a ser adotado, vez que a violao a elas implica punio. As sanes previstas, as formas de aplic-las e o poder real de quem deve aplic-las so variveis relevantes na equao do controle.

    Desde a dcada de 1980, pesquisas tm examinado os modos de regulao dos buro-cratas da base e seu sucesso em influenciar seus comportamentos, mas os saldos acumulados trazem pouca compreenso da importncia das influncias polticas e gerenciais na conduta dos atores (May e Winter, 2007). Apesar dessas dificuldades, as agncias pblicas funcionam e prestam servios variados aos cidados; portanto, os gerentes, sobretudo os que trabalham na ponta do sistema, conseguem assegurar a integrao necessria ao organizada.

    H estudos dos burocratas do topo e da base, mas deixam-se de lado os atores que tm a funo imediata de traduzir as regras, os procedimentos e de esclarecer os objetivos da agncia para os executores finais: os supervisores da linha de frente. Eles tm mais oportunidades de acompanhar o processo de execuo e, portanto, tm mais chances de identificar os erros e de intervir antes de os resultados indesejados ocorrerem. Para tornar o controle efetivo, eles tm sua disposio prmios e punies para distriburem: promoo, local de trabalho, tipo de tarefa, tornar o trabalho mais ou menos desejvel. Como outros sublinharam, os supervisores da ponta do sistema so operadores importantes para a agncia, ainda assim no se tem examinado o pa-pel deles de modo cuidadoso (May e Wood, 2003; Pandey e Wrigth, 2006; Brewer, 2005).

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    Rev. Adm. Pblica Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012

    A relao entre os burocratas da base e os gerentes inerentemente conflituosa, porque ela uma relao de dependncia mtua. Os gerentes precisam que os trabalhadores exe-cutem bem as tarefas, e esses querem evitar as punies e desejam receber as recompensas administradas por aqueles. Porm, se se trata de relao de reciprocidade, ela desigual. Se o desempenho dos supervisores depende de os subalternos se disporem a executar as tarefas acima da eficincia mnima, a performance dos ltimos no muito dependente dos primeiros e, se os subordinados no estiverem interessados nos prmios, eles no necessitam ir alm do mnimo obrigatrio no exerccio de suas funes, o que pode acarretar danos aos cidados que precisam dos servios e que ficam merc de os funcionrios irem alm de suas obrigaes mnimas. No caso de insatisfao do pblico, o alvo da crtica sero os administradores e os gerentes, que sero cobrados pela ineficincia da organizao. Como regra, os atores da base no tm de se preocupar com sua imagem pblica, ao contrrio dos polticos, dos adminis-tradores e dos supervisores intermedirios, e esta situao aumenta os recursos de poder dos servidores do nvel da rua.

    No cenrio de conflitos e compromissos que marcam as interaes no interior das or-ganizaes, os burocratas exercem sua tarefa de prestar servios ao cidado, principalmente ao de baixa renda, assegurando-lhe educao, sade, segurana, renda. Essas tarefas so con-cretizadas, muitas vezes, graas ao poder discricionrio dos agentes da base. Porm, a mesma discricionariedade que favorece os indivduos paira como uma ameaa sobre eles.

    No prximo tpico, para ilustrar alguns argumentos aqui apresentados, analisar-se- uma burocracia do nvel da rua: a organizao policial. A polcia est associada produo de segurana nas democracias, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo que uma garantia do exerccio da liberdade, ela uma potente, e sempre presente, ameaa a essa liberdade, ou seja, ela produtora tambm de insegurana para o cidado. A organizao policial e o poder discricionrio de seus agentes merecem mais ateno analtica.

    4. Os burocratas das esquinas2

    A administrao da aplicao da lei um tipo crtico de administrao pblica. Porm, ain-da que o aparelho policial seja sempre citado no debate da burocracia das ruas, existe uma escassez de literatura dirigida especificamente s organizaes policiais, seja no domnio da administrao pblica seja em pesquisas relacionadas, especialmente na cincia poltica (Ni-cholson-Crotty e OToole Jr. 2004:4). No Brasil, a segurana pblica tornou-se tema poltico relevante nos anos de 1990 e moeda de troca nas eleies. Ainda assim, a instituio policial no se tornou objeto de anlise mais sistemtica sob a tica da organizao e da burocracia.

    2 Todos os dados empricos da PMBA so oriundos de nossa tese de doutorado. As falas selecionadas para ilustrar este artigo foram obtidas atravs de entrevistas semiestruturadas e em profundidade, com 41 oficiais policiais militares de todos os postos (Oliveira, 2005). Deve ser lembrado de que essa polcia responsvel pelo policiamento ostensivo, portanto as anlises que seguem no podem ser transpostas automaticamente para o policiamento investigativo.

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    1562 Antonio Oliveira

    A polcia uma tpica burocracia do nvel da rua, talvez a mais tpica, pois seus agentes traba-lham literalmente nas ruas, 24 horas por dia, longe do olhar dos supervisores e seu trabalho primordialmente o processamento de pessoas.

    Apesar de no pas existirem trabalhos empricos bem qualificados sobre a fora pblica, na academia brasileira o debate em torno dela mais normativo do que emprico, ou seja, dis-corre-se mais sobre o que a polcia deveria ser em vez de tentar compreender as existentes no Brasil as caractersticas organizacionais da agncia, o que seus agentes fazem no cotidiano, como eles fazem isso e por que eles fazem isso do modo que fazem , comparando-as com as de outras democracias. Analisar a polcia como burocracia pode ajudar a entenderem-se mais e melhor suas tarefas concretas, seus recursos reais, seus conflitos internos e os interesses pri-vados de seus membros e, por conseguinte, pode ser mais til para discutirem-se as questes normativas como a de seu controle.

    4.1 A organizao policial e seu mandato

    As burocracias frequentemente favorecem alguns cidados em face de outros e tratam al-gumas pessoas baseadas em esteretipos, ainda que o tratamento igualitrio seja a poltica oficial. Michael Lipsky argumentou que, para entender como e por que as organizaes atuam algumas vezes de modo contrrio s suas regras e a seus objetivos, se necessita saber como as normas so vivenciadas pelos trabalhadores na agncia, que latitude eles desfrutam para agir conforme suas preferncias e que outras presses no trabalho eles experimentam (Lipsky, 1980). Assim, a compreenso da atividade policial demanda melhor conhecimento da organi-zao policial e da situao de trabalho de seus agentes.

    Essa agncia ocupa a ponta do sistema penal, ela lida direta e imediatamente com as ocorrncias que violam, ou parecem violar, a ordem legal. Essa posio favorece a desavena com as outras instncias do sistema criminal, como o Ministrio Pblico e o Judicirio, que entram em ao quando a fase aguda do conflito foi ultrapassada, as evidncias foram colhi-das, o pblico j foi disperso. Para tomarem suas decises, os promotores e juzes dispem de tempo para analisar as evidncias, consultar os colegas, os manuais e os precedentes e no experimentam as ameaas e ofensas dos envolvidos na contenda, quando menos no as viven-ciam na mesma extenso e intensidade que os policiais.

    Essas diferenas produzem uma tenso permanente entre a polcia e as instncias da cadeia penal que tm como tarefa revisar as decises tomadas pelos patrulheiros nas esquinas, porque esses julgam que as decises delas, sobretudo do Judicirio, so morosas e indiferen-tes realidade das ruas e, por conta disso e por vezes, a legitimidade dessas esferas, enquanto reguladoras da atividade policial, posta em dvida pelos guardas. Devido a isso, no muito provvel que as revises judiciais e da promotoria induzam a conduta dos policiais nas ruas, e esta reao deles ignorar o porqu de suas aes terem sido revistas est apoiada na posio que eles ocupam no sistema penal: se o Ministrio Pblico e o Judicirio so funcio-nalmente dependentes da eficincia da polcia, essa, em seu trabalho cotidiano, no to

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    Rev. Adm. Pblica Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012

    dependente daqueles, o que lhe confere, na prtica, ampla autonomia diante das instncias que lhe so superiores e que tm o poder formal de limitar sua discrio.

    Outras observaes sobre a agncia policial so necessrias para que se possa melhor compreender sua relao com o pblico. Ela age na fronteira do Estado com a sociedade e, para efetivar essa mediao, ela pode recorrer violncia e a outros meios de ao no ne-gociveis, isto , meios que no dependem do consentimento dos cidados. O recurso a esses instrumentos gera tenso duradoura na interao entre a agncia e o coletivo social. Os confli-tos entre o pblico e os burocratas da base so crnicos, porque aquele alimenta expectativas que esses no podem atender (Lipsky, 1980). Na burocracia policial esse conflito agravado pelos meios a que seus agentes podem recorrer em seus contatos com os cidados. A polcia um aparelho que suscita reaes e julgamentos contrastados, fortemente influenciados por reaes afetivas mais ou menos conscientes e por preconceitos ideolgicos (Loubet del Bayle, 1981:541).

    A natureza da atividade policial por si s causa constrangimento a uma sociedade que se apresenta como pacificada. Para eliminar a violncia privada como meio tolervel de reso-luo de conflitos que emergem do convvio social, a sociedade moderna criou uma corpora-o cuja especialidade o gerenciamento da fora coerciva que ela mesma abomina e isto faz com que ela apresente seu instrumento de violncia de forma que ele seja assimilvel por seu ideal de pacificao, a exemplo de afirmar que o papel do policial proteger o cidado. As pessoas parecem esquecer que a proteo de algum implica, algumas vezes, a necessidade de agredir fisicamente, at mesmo matar, outro cidado: nada mais enganoso que a distino entre a boa polcia que protege oposta m polcia que reprime (Monjardet, 1996:9), pois a mesma agncia que pratica as duas aes no mesmo movimento, contudo para reconciliar a si prpria com sua polcia, a sociedade moderna a envolve em ocultao e circunlquios que promovem a aparncia de que a polcia alguma outra coisa alm do que ela realmente [um instrumento de distribuio de fora no negocivel] (Klockars, 1991a:541).

    Se a impreciso das leis a serem aplicadas, a natureza da atividade policial e os recursos que se podem empregar na resoluo de conflitos so por si mesmos geradores de problemas na interao da polcia com o pblico, a fluidez do mandato policial manter a ordem p-blica agrava essa situao.

    Os especialistas enfatizam tanto a dificuldade para se definir a funo da polcia P-blico e polcia sofrem da ausncia de uma clara, no ambgua e universal concordncia na declarao do mandato policial em nossa sociedade (Skolnick e Fyfe, 1993:242) como o poder discricionrio de seus agentes police discretion , que seria o determinante primrio do policiamento onde ele realmente conta, isto , nas ruas (Bittner, 2003; Reiss, 1971; Muir, 1977). Eles sublinham que o policiamento no uma prtica que possa ser bem compreendi-da a partir dos cdigos formais que prescrevem a atuao do agente, porque a conduta desse primariamente condicionada por sua interao com o pblico. Anthony Downs (1967) argu-mentou que, quando o meio ambiente muito incerto e cambivel, as organizaes tendem a agir mais sob os procedimentos e as estruturas informais. A incerteza e a mutabilidade so a realidade das ruas, onde os policiais executam seus ofcios.

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    1564 Antonio Oliveira

    Pode-se argumentar que nenhuma ocupao bem compreendida a partir das normas formais para ela prescritas, mas no se deve esquecer de que o trabalho policial marcado pela imprevisibilidade dos eventos, pela falta de contedo prvio das tarefas a serem reali-zadas nas ruas e pela invisibilidade dos encontros entre o agente e as pessoas. Esse conjunto no caracteriza outras atividades, por conta disso o policiamento mais difcil de ser com-preendido a partir das regras institucionais do que outras ocupaes. Como sublinhado por outros autores, isso se deve, sobretudo, fluidez do mandato da agncia preservar a ordem pblica , o que faz com que ela lide com uma variedade de temas que nenhuma teoria pode servir de guia para estabelecer previamente o modo de execuo do ofcio (Monjardet, 1996; Manning, 1997).

    Essa caracterstica do policiamento o contedo malevel no permite hierarquia prescrever o modo como os agentes devem executar as tarefas com que eles se confrontam nas ruas, ela apenas pode emitir formulaes genricas sobre a realizao do ofcio na via pblica, portanto haver obstculos avaliao dos agentes a partir de seu desempenho nos afazeres. Logo, pode-se presumir que a polcia uma burocracia do nvel da rua com srias dificuldades para monitorar seus atores.

    No debate da regulao da fora pblica deve ser lembrado de que ela apresenta uma caracterstica rara entre as organizaes: produzir os prprios agentes. A regra o profissional ser gerado por uma organizao distinta da que ele vai atuar. Mas, na polcia, o processo de socializao do profissional ocorre integralmente dentro da agncia. Outro dado relevante o de a administrao ser constituda exclusivamente pela profisso, o que torna impossvel aos executores imediatos alegarem ingerncia indevida dos leigos quando os supervisores intervierem em suas prticas de trabalho. Em contrapartida, como os gestores experimentam a condio policial, eles podem tender a desqualificar as crticas dirigidas aos seus subordi-nados pelos que no conhecem a realidade do policiamento, ou seja, os agentes da ponta do sistema podem contar com a cumplicidade corporativa da direo. Esse estado de coisas gera um vnculo especial entre os profissionais e a organizao: a profisso s existe dentro dela (fora dela, pode-se ser agente de segurana privada, mas no policial) e sua administrao est exclusivamente nas mos da profisso. Essa caracterstica organizacional uma impor-tante varivel na resistncia dos atores s aes de reformas vindas do exterior e s de reviso externa de sua conduta.

    Apesar das dificuldades para se regular o aparelho policial e que derivam de suas caractersticas organizacionais, seu controle essencial, porque seus agentes esto autoriza-dos a usar o constrangimento fsico e eles interferem direta e imediatamente nas liberdades civis. H o argumento de que a natureza do trabalho na linha de frente especialmente problemtica, porque as decises e as aes ao nvel da rua so guiadas menos por regras formais e treinamentos e mais por crenas e normas informais, que so mais resistentes s mudanas (Maynard-Mood e Musheno, 2000). Os trabalhos empricos sobre a polcia ofere-cem indcios que confirmam essa assero. No entanto, nem os estudos da burocracia, em geral, nem os da fora pblica, em particular, descartam a possibilidade de regulao dos agentes do baixo escalo.

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    Rev. Adm. Pblica Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012

    O debate do controle dos funcionrios que tratam diretamente com os cidados tem que incorporar a concepo que aqueles elaboram de sua interao com estes, ela relevante para se compreenderem as aes na linha de frente (Lipsky, 1980), inclusive as aes dos supervi-sores imediatos, dos que tm a incumbncia de fiscalizar os executores na ponta. No caso da Polcia Militar da Bahia eles so o major, o capito e o tenente.

    4.2 A interao pblico-policial: a viso dos gerentes da ponta do sistema

    Em Salvador, o policiamento ostensivo foi descentralizado durante a dcada de 1990 e pas-sou a ser responsabilidade das companhias. A cidade dividida em vrias reas e em cada uma delas instalada uma companhia. O major, o capito e o tenente trabalham nelas e so incumbidos da superviso das praas os sargentos e os soldados , isto , dos atores que policiam as esquinas da cidade.

    As falas dos oficiais que servem para ilustrar alguns argumentos apresentados tratam de sua percepo do pblico, dos mecanismos de controle e seus empecilhos. Sobre o tipo de policiamento a que o pblico aspira, os oficiais declararam:

    Eu posso dizer esta experincia na prtica, porque j comandei uma companhia, e, neste muni-cpio, ns tnhamos trs ou quatro tipos de clientela: a populao carente, sofrida com a ao dos marginais; tinha a populao de elite, que no queria a polcia por perto; a do comrcio, que queria a polcia perto. Cada clientela desta queria um determinado tipo de policial. Eu j partici-pei de reunies com segmentos da comunidade de determinados bairros que eles pediam pra que ns eliminssemos os marginais: no, a nica coisa que se quer aqui que vocs matem aqueles que so marginais, mais nada. Outros no querem ver a polcia na porta, os condomnios de luxo. Outros querem ver o policiamento l direto, inclusive oferecendo at benefcios. Ento, difcil, porque uma sociedade muito complexa, muito diversificada, principalmente onde eu atuei como comandante (Cap. I).

    Primeiro que a prpria populao no sabe o que quer. Quer dizer, ns sabemos talvez a polcia que no queremos, mas a polcia que queremos, ns no sabemos. Ns queremos uma polcia para os outros. Ento, eu sou permissivo, eu sou at omisso com relao a uma ao mais vio-lenta da polcia se no for contra mim ou contra algumas pessoas ligadas a mim ou a meu grupo social (...) a partir do momento que esta ao de qualquer forma se dirige contra mim, a, a po-lcia j no presta, no bem assim, no pode agir desta forma (Maj. B).

    Nos discursos so relatadas as demandas heterogneas e contraditrias dirigidas pelo pblico agncia do governo. A complexidade da sociedade com seus inmeros grupos de-fendendo interesses que se chocam entre si e a variao das preferncias dos indivduos de acordo com os contextos emergem nessas falas. Segundo os informantes, a depender do in-teresse circunstancial de cada frao do pblico, demandam-se aos policiais prticas que no respeitam o direito.

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    No se trata de particularidade local, fruto do autoritarismo da sociedade brasileira, ou da experincia recente com a democracia, ou do carter militar da agncia em questo. As falas desses atores so similares s de seus pares nos EUA, Inglaterra e Frana. As seme-lhanas no so surpreendentes, porque todas essas corporaes lidam com coletivos sociais que tm variados grupos de interesses e que so atingidos diferentemente pelos problemas da segurana pblica e que, por conta disso, tm concepes distintas acerca da tarefa da agn-cia policial. Entretanto, o mais importante so as provveis consequncias dessas solicitaes contraditrias, pois, quanto mais heterogneos so os sentimentos da coletividade, mais os objetivos da burocracia conflitam entre si (Lipsky, 1980) e, por conseguinte, mais liberdade de ao dada aos trabalhadores na ponta do sistema, o que lhes permite atuar de acordo com suas preferncias.

    Alm disso, as demandas contraditrias podem servir de argumento aos supervisores para justificarem suas dificuldades na monitorao de seus subordinados, porque esses fica-riam numa situao difcil diante das presses diretas das pessoas envolvidas no conflito. Ain-da que os gerentes declarem que os funcionrios devem se comportar de acordo com as regras formais, eles podem acreditar que a situao enfrentada nas ruas no permite interpretao simples sobre a conduta concreta do ator.

    Como analisado anteriormente, uma caracterstica fundamental do burocrata da rua ter de tratar com as reaes diretas e imediatas das pessoas e, muitas vezes, ter de responder a elas de pronto, o que no lhe permite avaliar detidamente as circunstncias. No caso da polcia, essa situao agravada pelo fato de os agentes lidarem com eventos que envolvem sua integridade fsica e a de terceiros. A morosidade da deciso isso pode significar apenas alguns minutos pode acarretar consequncias irreversveis para o pblico e para eles pr-prios. Esse problema inerente ao policiamento potencializado pelas solicitaes de prticas contraditrias, porque, como afirmam alguns autores, esses pedidos aumentam a ambiguida-de do papel do agente e, portanto, obscurecem o tipo de comportamento apropriado e fun-cional para executar as tarefas e isso causa considervel dubiedade para os gerentes mdios (Pandey e Wrigth, 2006).

    Se a percepo dos supervisores de linha for relevante para sua ao concreta, a concep-o que eles apresentaram indica problemas na fiscalizao dos subalternos: como, para eles, as pessoas no sabem o que querem, as queixas contra a conduta indevida podem vir a ser por eles desqualificadas, vez que eles podem interpretar os atos irregulares dos atores como parcialmente resultantes das preferncias conflitantes dos grupos e dos indivduos atendidos. Alm disso, se as reclamaes contra uma ao policial forem formuladas por quem no atingido comumente pelos problemas que geraram a ao, elas correm o risco de ser avaliadas pelos supervisores como queixas de parcela do pblico que no vivencia os dramas de outras fraes sociais. Nestas situaes, o resultado da reviso interna de conduta talvez no venha a ser o esperado pela sociedade.

    Para analisar melhor a tenso entre a polcia e o pblico, deve-se insistir na imagem que os oficiais constroem da sociedade, mais especificamente, como eles concebem e avaliam a imagem pblica da profisso:

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    Rev. Adm. Pblica Rio de Janeiro 46(6):1551-73, nov./dez. 2012

    Na hora que voc coloca a farda e vai pra rua, voc sabe que j t sendo bem-visto por algum e recriminado por outra pessoa, e, a, complicado. Chega o ponto que voc entra no estabeleci-mento comercial, porque voc t com fome e voc quer comprar comida, e as pessoas ficam lhe olhando com desconfiana. Eu fao questo, por exemplo, quando eu t fardado e entro num res-taurante, coisa parecida, eu fao questo de sair com a nota fiscal na mo, bem visvel, porque muito difcil, voc se sente rejeitado, diminudo. Se voc no tiver boa educao domstica, uma base domstica, uma autoconfiana desenvolvida, uma boa estrutura, voc vai se sentir escria, resqucio, resto da sociedade (Cap. A).

    Tem gente que quer desfazer de voc, porque voc policial. A primeira coisa que a pessoa diz : policial no estudou; no estudou, ora, vai ser policial, mas isto hoje diferente. Voc t vendo a concorrncia no vestibular pra se entrar na Academia (Ten. I).

    No fcil, companheiro, passar uma noite de 12 horas trocando tiros, correndo atrs pra dar segurana a uma populao que no reconhece. O cara toma na cara e continua fazendo todo dia, mas se ele no reconhecido por fora, mas ele reconhecido aqui dentro. Ns temos que valorizar nosso soldado, porque, por incrvel que parea, quem trabalha na parte operacional ganha menos, visto como resto pela Instituio. Eu posso falar porque j senti na pele, t ali pra combater: combateu certo, bem; combateu errado, pau (Maj. C).

    De acordo com os discursos, o policial um profissional distinguido de modo negativo pela sociedade. Mas convm sublinhar a fala do capito A quando ele aborda a desconfiana do pblico em relao ao patrulheiro: ele faz questo de exibir que o produto foi adquirido de modo legal e no fruto da corrupo. Se o trabalho do policial assenta-se na suspeio gene-ralizada (Klockars, 1991b), h o reverso da medalha: o fato de ele situar-se nas fronteiras da sociedade e lidar com o mundo do crime faz com que ele seja percebido como suspeito pelo cidado. No adequado associar essa desconfiana ao histrico de corrupo e de uso ex-cessivo de fora de dada corporao, porque a percepo de que os indivduos desconfiam do guarda e da ingratido do pblico alimentada por este profissional independente da agncia em que ele trabalha (Monjardet, 1996; Manning, 1997).

    difcil supor que essa concepo dos agentes no tenha impacto em sua avaliao das denncias que venham da sociedade: se, independentemente de como o policial se comporte, os cidados depreciam-no, querem desfazer dele segundo os oficiais , por que ento o supervisor no suspeitaria de que numa interao concreta entre o agente e seus concidados aquele no foi tratado com animosidade por esses e isso teria provocado a reao do guarda de que o indivduo agora se queixa?

    Os grupos sociais no costumam tratar com seriedade as reclamaes contra algum de seus membros, se eles acharem que o reclamante no mostra a deferncia que para eles seu coletivo merece: nas delegacias comuns, as queixas das mulheres agredidas eram recebidas com desprezo pelos policiais do sexo masculino, porque esses achavam que provavelmente elas no trataram os homens com o respeito que lhes era devido e que, portanto, elas no fo-ram agredidas, elas foram punidas; o mesmo se aplica s denncias de vtimas homossexuais

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    contra agressores heterossexuais. Apesar de esse comportamento desqualificar o queixoso ser comum, sobretudo nos grupos profissionais, convm lembrar que o policial est autori-zado a usar a fora e isto torna a desqualificao do pblico mais grave que em outras ocupa-es, por conta da natureza dos danos que podem ser provocados por esse burocrata do nvel da rua, o que torna mais sria a questo do controle do policial.

    A PMBA tem um mecanismo de reviso interna da conduta: as corregedorias. Todavia, esse modo de regulao interno afastado da rua e, embora necessrio, acionado depois do estrago causado. Portanto, importam mais os mecanismos de inspeo adotados pelos su-pervisores na ponta do sistema. Os oficiais policiais militares reconhecem e aceitam a police discretion. Porm sabe-se que esse poder provoca abusos. Como ele no pode ser extirpado, porque est inscrito na prpria atividade, resta saber o que os oficiais sugerem como forma de evitar ou reduzir os excessos que a margem de liberdade pode gerar:

    Muitas vezes o policial faz como o mdico, ele toma a soluo ali mesmo, lhe d o remdio ali mesmo, o remdio que ele acha que mais apropriado. Por isto, este policial de ponta, este po-licial de rua tem de ser devidamente preparado, ele tem de ser devidamente instrudo e ele tem que ter uma capacidade de entendimento do que t fazendo muito grande pra que ele consiga dar encaminhamento de forma mais correta... Cabe ao policial ter conscincia do que vai fazer, e fazer com que este problema seja passado pra frente s vezes muito mais difcil do que solu-cionar ali. Por isto que muitas vezes ele soluciona pelo lado do bem, com aconselhamento, com apartar de uma briga, com, sei l, uma instruo, uma notificao, e, muitas vezes, ele soluciona com a porrada, com a agresso, com o xingamento, com outras atitudes que no so as mais corretas (Cap. D).

    A dificuldade grande no nvel de quem est no comando, a responsabilidade maior de passar esta misso, de passar aquilo que est dentro de seu pensamento, ou o que ele imagina que a melhor forma de fazer policiamento, de resolver as questes externas, questes l no momento onde elas esto acontecendo. Por isto que eu disse anteriormente sobre o policial pra trabalhar no PO deve ser um homem bem qualificado, bem formado (Maj. B).

    Todas as organizaes operam dentro de zonas de incerteza, e as ruas constituem a principal zona de incerteza da corporao policial, pois a hierarquia pode fazer muito pouco em relao ao controle imediato dos patrulheiros. Controlar os agentes em espaos confinados diferente de regul-los nas esquinas da cidade. Parece ser devido, sobretudo, natureza da atividade de policiamento que os oficiais apostam na qualificao profissional como meio ade-quado para regular a conduta dos agentes. De fato, a profissionalizao pode contribuir para o controle, mas as coisas so mais complexas, como indicado neste artigo. No h espao para argumentar melhor, mas suficiente lembrar que a profisso compete, com vantagem, com a organizao em termos de influenciar a conduta do agente e, embora as associaes profissio-nais declarem o contrrio, esta influncia no se d prioritariamente em benefcio dos clientes nem favorvel interveno do leigo (o pblico) nos afazeres do experto, e os interesses da profisso podem estimular os agentes a desviarem-se dos fins organizacionais.

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    A formao profissional no parece ser suficiente para os supervisores tambm. Isso foi evidenciado quando eles foram interrogados sobre o mecanismo que concebiam como mais eficiente para assegurar a boa conduta dos policiais nas ruas e eles responderam que seria a conscincia dos agentes, porque muito difcil acompanhar o homem a p. Ao fim e ao cabo, apela-se conscincia de um ator que atua isolado e no pode ser acompanhado de perto pelo fiscal, e que se defronta com situaes que os regulamentos no do conta. Como os supervisores so policiais, eles sabem que no podem jogar todas as suas fichas nas regras formais como meio de garantir o bom comportamento do funcionrio nas esquinas; por isso h o recurso sua conscincia.

    Evidente, podem-se recorrer tambm aos incentivos seletivos, mas os limites desses como modo de regulao de conduta so evidenciados no trabalho dos patrulheiros. Como assinala James Wilson, a polcia uma coping organization, isto , um tipo de agncia em que no se podem observar nem o que seu operador-chave est fazendo nem os resultados (outco-mes) da ao. Alm disso, ela se orienta por um objetivo no operacional a ordem pblica , quer dizer, por um fim que visa um estado desejado futuro que no pode ser comparado sem ambiguidades a um estado real ou presente; por causa disso, tambm as medidas de performance, que serviriam de referncia aos incentivos, so prejudicadas (Wilson, 2000). As dificuldades na avaliao dos resultados do policiamento ostensivo so bem conhecidas (U.S. Department of Justice, 1993; Brodeur, 1998). Talvez por conta de todos esses empecilhos, os supervisores recorram conscincia individual.

    Este apelo um recurso em variadas organizaes, mas ele tem particular importncia quando a funo que o agente desempenha no pode ser claramente definida; quando a exe-cuo da tarefa muito dependente dos imperativos da situao; quando se fica merc da iniciativa do agente, porque ele pode selecionar os eventos que merecem sua ateno; quando o processo de trabalho mais importante do que o produto; e, sobretudo, quando os princ-pios e os valores individuais e de grupo jogam papel relevante na execuo do ofcio, pois os policiais lidam com assuntos que agridem a ordem moral, e o modo como tratar os acusados envolve a apreciao subjetiva orientada pelos valores dos burocratas das esquinas. Talvez por causa disso o apelo virtude do agente da linha de frente torne-se essencial e a questo de sua regulao seja to complexa.

    5. Concluso

    O poder discricionrio dos operadores que atuam nos guichs, nas enfermarias, nas salas de aula e nas ruas decisivo na execuo das polticas pblicas. Os recursos oferecidos pela organizao esto em geral aqum dos necessrios para o bom desempenho das tarefas e as regras formais no do conta de todos os casos concretos, o que exige a interveno discri-cionria dos atores do baixo escalo para que a agncia funcione, distribua os bens e preste os servios, ou seja, esta discricionariedade condio necessria para que a poltica pblica

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    seja concretizada. A questo que se pe a de como estabelecer os limites dela, a fim de que a accountability e a responsiveness sejam asseguradas.

    O exame das condies sob as quais a discrio exercida e dos fatores que a influen-ciam pode ajudar a informar a discusso de sua regulao. No caso das burocracias do nvel da rua, as perguntas que mais importam so: em que extenso elas so atenciosas com as demandas e denncias iniciadas pelos indivduos nos contatos do dia a dia; se elas so mais sensveis a certos tipos de solicitaes e a certos pblicos-alvo; que papel os fatores como a carga de trabalho e os recursos concretos desempenham na responsiveness.

    Todas essas questes so empricas, e as solues produzidas a partir das respostas sero difceis de ser generalizadas. Os mecanismos que contriburem para aumentar a responsiveness nas organizaes em que o processo de trabalho pode ser acompanhado e/ou o produto final pode ser mensurado dificilmente sero transpostos sem dificuldades para as agncias onde o processo de trabalho no pode ser seguido e mais relevante do que o produto.

    H tambm a accountability, que no debate pblico muitas vezes apresentada de modo abstrato. A accountability no abstrata, -se accountable perante algum. Quanto mais definida for a autoridade a quem prestar contas e mais claros forem seus poderes reais, mais resultados positivos podem ser obtidos no controle. A multiplicidade de atores a quem prestar satisfao tem impacto negativo na regulao de condutas. Mas, quando se trata de implementao de polticas pblicas, h um problema crnico: no incomum o envolvimento de mais de uma agncia. A governana pode ser importante para ampliar a participao do cidado, mas ela dilui a accountability, por conta dos objetivos e interesses conflitantes dos indivduos, grupos e organizaes nela envolvidos, criando obstculos regulao dos atores. Como apresentado pela literatura, a transposio da accountability governamental para a accountability da gover-nana no resolve os problemas introduzidos pela discrio, como no o fazem tambm outras variaes de accountability: profissional; participativa (Hupe e Hill, 2007).

    Se a organizao, sobretudo por meio de seus gerentes na ponta do sistema, pode agir sobre a discricionariedade dos agentes, essa ao encontra limites nos interesses individuais, profissionais e de grupo dos servidores da base, e no ser suficiente declar-los esprios para que eles desapaream; eles resistiro e sobrevivero. O desafio maior permanece sendo a produo de mecanismos de regulao que no apenas punam os desviantes, mas que de-tenham a conduta indevida, sem que inibam o poder de iniciativa do ator, ou seja, sem que o desestimulem a agir de acordo com seu prprio juzo. Caso contrrio, os impasses gerados pelos conflitos entre accountability, responsiveness e equidade e pela crnica escassez de recur-sos ficaro sem as solues empricas dadas pelo burocrata da linha de frente, e os cidados sero os prejudicados.

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