texto - entrevista

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Paulo Markun: Boa noite. Ele é um importante estudioso da vida digital e das mudanças que as novas tecnologias provocam nas relações humanas. Teórico da cibercultura, da realidade virtual e da inteligência coletiva, alerta que o crescimento da internet pode e deve ser encarado de uma perspectiva mais humanista. O Roda Viva entrevista esta noite o filósofo Pierre Lévy, professor do Departamento de Comunicação da Universidade do Québec, no Canadá. Os estudos de Pierre Lévy têm ampliado debates sobre as transformações que estamos vivendo a partir de um mundo sem fronteiras, onde tudo se conecta a tudo através da internet. Em seus livros, vários deles já publicados aqui no Brasil, ele analisa o que isso significa. O que é ser virtual, o que é inteligência coletiva e que mundo é esse, onde as pessoas trocam informação, conhecimento e por onde correm cada vez mais rapidamente, sempre atrás do dinheiro, é claro. Pierre Lévy considera que um dos futuros possíveis da internet é se transformar numa espécie de supertelevisão, voltada para o consumo e para o espetáculo, mas diz também que se avaliarmos a tempo a importância do que está em jogo, a rede mundial de computadores pode renovar as relações sociais, proporcionando mais fraternidade e ajudando a resolver os problemas que hoje preocupam a humanidade. Para entrevistar o filósofo Pierre Lévy, nós convidamos: o sociólogo Teixeira Coelho, diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP e colaborador do Mais, do Caderno Dois, da revista Bravo, da InterPoesia e da Revista da USP; convidamos ainda o filósofo Rogério da Costa, professor de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC; Carmem Maia, diretora de ensino interativo à distância da Universidade Anhembi Morumbi, de São Paulo; a educadora Nize Pellanda, professora da Unisc- Universidade de Santa Cruz do Sul, do Rio Grande do Sul; Marcelo Tas, apresentador do programa Vitrine, aqui da TV Cultura; o comunicador Max Alvim, diretor da produtora Frami, de São Paulo; e o jornalista Florestan Fernandes Júnior, comentarista do programa Observatório da Imprensa, da TVE do Rio de Janeiro. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Como este programa está sendo gravado, você, infelizmente, não vai poder participar ao vivo, mas, ao mesmo tempo tem a vantagem de ter todas as respostas de Pierre Lévy legendadas para que tenhamos absoluta compreensão do que ele nos disser. Boa noite, Pierre Lévy. Pierre Lévy: Boa noite. Paulo Markun: Os livros que você escreve traduzem ou investigam uma área muito complicada do conhecimento que é a área da revolução causada pelo chamado mundo digital. Tenho certeza de

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Entrevista com o filósofo Pierry Lévy. Ele é um filósofo, e nesta entrevista, realizada dez anos atrás, ele fala sobre como a computação iria se comportar no futuro, e muitas das coisas que ele fala se mostram acontecendo hoje em dia.

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Paulo Markun:Boa noite. Ele um importante estudioso da vida digital e das mudanas que as novas tecnologias provocam nas relaes humanas. Terico da cibercultura, da realidade virtual e da inteligncia coletiva, alerta que o crescimento da internet pode e deve ser encarado de uma perspectiva mais humanista. ORoda Vivaentrevista esta noite o filsofo Pierre Lvy, professor do Departamento de Comunicao da Universidade do Qubec, no Canad. Os estudos de Pierre Lvy tm ampliado debates sobre as transformaes que estamos vivendo a partir de um mundo sem fronteiras, onde tudo se conecta a tudo atravs da internet. Em seus livros, vrios deles j publicados aqui no Brasil, ele analisa o que isso significa. O que ser virtual, o que inteligncia coletiva e que mundo esse, onde as pessoas trocam informao, conhecimento e por onde correm cada vez mais rapidamente, sempre atrs do dinheiro, claro. Pierre Lvy considera que um dos futuros possveis da internet se transformar numa espcie desuperteleviso,voltada para o consumo e para o espetculo, mas diz tambm que se avaliarmos a tempo a importncia do que est em jogo, a rede mundial de computadores pode renovar as relaes sociais, proporcionando mais fraternidade e ajudando a resolver os problemas que hoje preocupam a humanidade. Para entrevistar o filsofo Pierre Lvy, ns convidamos: o socilogo Teixeira Coelho, diretor do Museu de Arte Contempornea da USP e colaborador do Mais, do Caderno Dois, da revistaBravo, da InterPoesia e daRevista da USP; convidamos ainda o filsofo Rogrio da Costa, professor de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da PUC; Carmem Maia, diretora de ensino interativo distncia da Universidade Anhembi Morumbi, de So Paulo; a educadora Nize Pellanda, professora da Unisc-Universidade de Santa Cruz do Sul, do Rio Grande do Sul; Marcelo Tas, apresentador do programaVitrine, aqui da TV Cultura; o comunicador Max Alvim, diretor da produtora Frami, de So Paulo; e o jornalista Florestan Fernandes Jnior, comentarista do programaObservatrio da Imprensa, da TVE do Rio de Janeiro. ORoda Viva transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e tambm para Braslia. Como este programa est sendo gravado, voc, infelizmente, no vai poder participar ao vivo, mas, ao mesmo tempo tem a vantagem de ter todas as respostas de Pierre Lvy legendadas para que tenhamos absoluta compreenso do que ele nos disser. Boa noite, Pierre Lvy.Pierre Lvy: Boa noite.Paulo Markun: Os livros que voc escreve traduzem ou investigam uma rea muito complicada do conhecimento que a rea da revoluo causada pelo chamado mundo digital. Tenho certeza de que esse ser o tema central do nosso programa de hoje. Mas, eu vindo para c, para fazer o programa, do aeroporto at aqui, atravessei, como todos os paulistanos fazem, algumas reas de moradias de favelas enormes, onde me parece que essas questes do mundo digital continuam distantes, continuam completamente margem. H populaes que muitas vezes esto, inclusive, margem da prpria alfabetizao. Ento, eu gostaria de comear colocando essa questo: do limite desse mundo digital. Ao mergulhar nos seus textos, que so escritos de maneira muito clara, d a impresso de que a gente est vivendo esse mundo em que no h mais fronteiras, em que todo mundo se conecta com todo mundo, em que o conhecimento passa a ser baseado no hipertexto e a gente bate o olho numa favela e percebe que h essa questo da enorme desigualdade do mundo. Gostaria de saber, se voc acha que um dia essa desigualdade acaba e se todo esse mundo, inclusive as favelas, s para citar um exemplo, far parte do mundo digital?Pierre Lvy: Primeiro, voc tem razo em mencionar as desigualdades sociais, econmicas e tambm as que se referem ao conhecimento. Em geral, esses tipos de desigualdade caminham juntos. Eu tenho certeza de que, no futuro, talvez no haver menos desigualdades, mas haver, talvez, menos misria e pobreza e, progressivamente, as pessoas participaro, cada vez mais, da inteligncia coletiva da humanidade. Evidentemente, uma perspectiva de longo prazo. preciso lembrar que, no Brasil, a escravido foi abolida apenas h um sculo e que, h dois sculos, talvez fosse inconcebvel imaginar que houvesse o sufrgio universal [direito ao voto pelos indivduos considerados intelectualmente maduros]. Ou, talvez, h trs sculos, no poderamos imaginar que a maioria das pessoas, e uma maioria, saberia ler e escrever. No entanto, hoje, a maioria das pessoas, a maioria dos brasileiros, mais de 50% sabem ler e escrever. A escravido foi abolida, no? O sufrgio universal existe. Portanto, h progressos, mas so progressos extremamente lentos. Portanto, acho que a chegada da internet e dos novos mtodos, dos novos meios de comunicao, que so tambm novas formas do pensamento coletivo, novas formas de acesso ao conhecimento, vo acelerar o processo geral de emancipao. Mas no devemos achar que as coisas vo acontecer de forma mgica e imediata. Ser, certamente, algo lento e que exigir muitos esforos. Mas acho que a internet poder ajudar para esta sada da misria. At pessoas que no podem ter um computador em casa ou se conectar com a internet podero ter acesso ao ciberespao atravs de um computador providenciado, por exemplo, por um organismo comunitrio, ou em um bairro, que possa ser usado por muitos. Poderia ser usado para o correio eletrnico, a busca de informaes sobre a Rede e tudo mais. Portanto, acho que mesmo pessoas que no podem ter seu prprio computador podero tambm ter acesso. E, aos poucos, as coisas vo melhorar. Acho que precisamos imaginar um futuro melhor e os melhores usos possveis das novas tecnologias para que esses usos se concretizem. Se nos concentrarmos apenas nas dificuldades, obstculos, desigualdades e a denncia de tudo isso, infelizmente, no teremos preparado nossa mente para usar esses instrumentos da melhor forma possvel.Paulo Markun: Eu tenho uma questo correlata.Sei que tem colegas aqui querendo perguntar, mas eu queria abusar do meu poder inicial para colocar essa questo. Meu filho, que tem 14 anos, passa de 12 a 14 horas por dia na internet com outros garotos, todos da idade dele e da mesma condio social dele no Brasil. E ele, embora a professora de portugus o considere, com certa razo, um mal-alfabetizado em portugus, porque comete enormes erros de gramtica e de ortografia, como tambm muitas crianas dessa idade, por defeito at da nossa educao, ele tecla com uma rapidez muito grande e tem uma enorme capacidade de comunicar-se nessa lngua que a internet, que se desenvolve e envolve sinais grficos para expressar sentimentos, palavras escritas numa lngua que eu no sei exatamente qual , e nem entendo, expresses em ingls etc... O que eu queria perguntar isso. Essa massa de gente excluda, que hoje no tem acesso internet e tambm no tem acesso cultura tradicional, se tivesse que entrar na cultura tradicional e ser alfabetizada e educada no processo normal, talvez no completasse a sua educao ao longo da vida. possvel imaginar que eles se alfabetizem mais rapidamente e, digamos, adquiram essa cultura da internet mais rapidamente, essa que meu filho domina, digamos assim?Pierre Lvy: Eu diria que a base de tudo a alfabetizao. Isto , saber ler e escrever. Se no sabemos ler e escrever, no podemos ler e escrever no papel, tambm no podemos faz-lo na tela. Portanto, de fato, falar de alfabetizao nas novas tecnologias acho que um pouco de mistificao, porque qualquer criana, diante de um computador, aps uma semana, aprende a se virar e at pode ensinar os adultos. O verdadeiro problema a alfabetizao. E, no futuro, a tendncia ser ler e escrever na internet, esta grande rede de comunicao, ou o que ir substitu-la. Uma vez que as pessoas saibam ler e escrever, depois, cada vez mais, acharo pessoas para orient-las, ensin-las e, provavelmente, sero, cada vez mais, empenhadas em processos de aprendizado coletivo ou cooperativo, em que a socializao e o aprendizado sero intrinsecamente ligados, como no caso do seu filho. Provavelmente, se ele fica conectado 14 horas por dia, porque tem muitos amigos. Portanto, mais uma vez, eu acho, e no canso de repetir, que a base essencial a alfabetizao. Para quem sabe ler e escrever, todas as portas se abrem, especialmente, pela internet. E eu acho que em 10, 20, 30 anos, a escola ser completamente diferente do que ela hoje. E, certamente, ser uma escola virtual, em rede, com o aprendizado cooperativo. Mas ningum poder participar se no souber ler e escrever.Florestan Fernandes Jr.:Eu queria saber do Pierre o seguinte: se ele acha que o avano tecnolgico coloca tambm as ditaduras numa situao praticamente invivel. Por exemplo: nos pases onde hoje ns temos ditadura, como Cuba e Ir, o avano tecnolgico muito pequeno. Voc acha que o avano tecnolgico fora tambm a manuteno da democracia?Pierre Lvy:No exatamente o progresso tecnolgico em geral. Mas acho que h uma correlao muito forte entre o progresso das tcnicas de comunicao, em especial, e a democracia. Esta uma relao muito antiga na histria. No poderiam ter inventado a cidadania e a democracia na Grcia antiga se no houvesse o alfabeto. Isto , uma tcnica de escrita que permite aprender a ler e escrever facilmente. A partir do momento em que isso no mais privilgio dos escribas, graas ao alfabeto, todos podem ler a lei. Portanto, em uma civilizao sem alfabeto, a democracia no poderia ter sido inventada. Por outro lado, se olhamos as transformaes polticas que se seguiram descoberta da impresso na Europa, durante o Renascimento, podemos entender que, sem ela, no existe a imprensa. Sem imprensa, no h opinio pblica e, sem opinio pblica, no pode haver as grandes democracias modernas, como as que apareceram na Inglaterra, na Frana, com a Revoluo Francesa, e na Amrica, com a Revoluo Americana. A noo dos direitos humanos, em geral, a noo moderna, est ligada imprensa e opinio pblica. E tambm possibilidade de saber o que acontece no mundo facilmente, atravs da imprensa. Por outro lado, podemos dizer que a queda dos regimes totalitrios, que ocorreu no fim dos anos 80 e comeo dos 90, est muito ligada televiso por satlite, ao desenvolvimento da rede de telefonia, comunicao por fax e ao comeo da informtica pessoal. Quando h muitas comunicaes transversais numa sociedade, quando a informao circula facilmente e sabemos o que ocorre fora, a mente no pode mais ser controlada por uma ditadura totalitria. E, alis, por esse motivo que, hoje, todos os regimes ditatoriais do planeta tentam, desesperadamente, controlar a internet, pois uma ameaa para eles. E acho que eles esto certos, pois, quando as pessoas podem comunicar-se facilmente, independentemente de estruturas hierrquicas e autoritrias, podem mostrar ao mundo o que acontece em seu pas e sabem o que acontece fora. Os regimes ditatoriais no podem resistir muito tempo. um dos motivos pelos quais sou um grande entusiasta dessas tcnicas de comunicao. No pela proeza tcnica em si, mas porque h uma relao profunda entre o progresso das formas de comunicao e o progresso da democracia, o progresso da emancipao do ser humano.Rogrio da Costa:Pierre, eu recordo que voc foi mesmo convidado por uma comisso europia para fazer um relatrio sobre democracia eletrnica. Voc pode falar sobre isso para a gente?Pierre Lvy:Sim.Muitas vezes as pessoas imaginam a democracia eletrnica como um sistema de votao pela internet. E, para mim, a democracia eletrnica no nada disso. Se h um progresso da democracia graas internet, no porque as pessoas vo responder imediatamente apertando um boto a perguntas de outras, mas porque as pessoas podero, por si, elaborar muito mais seus prprios problemas. E mais. Como sabem, sou filsofo e, portanto, para mim, as perguntas feitas so mais importante que as respostas. As pessoas poderem elaborar suas prprias questes e problemas e, eventualmente, submet-los s autoridade polticas, esta j me parece a maneira pela qual a democracia vai progredir. Uma outra forma de progresso da democracia, acredito que seja a maior transparncia. Com as novas tcnicas de comunicao as pessoas podem, muito facilmente, ter acesso a documentos complexos, ter acessoa informaes que antes pertenciam a uma pequena minoria. Nesse sentido, uma das propostas que fiz Comisso Europia foi a possibilidade de imaginar fazer uma espcie de mundo virtual acessvel pela internet, uma simulao, em trs dimenses, representando os fluxos de dinheiro pblico que circulam por Bruxelas, pela Comisso Europia. Veramos quanto dinheiro enviado pela Alemanha, quanto dinheiro enviado pela Frana, pela Itlia, pela Espanha etc. Com as propores, mas no atravs de colunas numricas, mas, sim, de uma forma visual. E, depois, veramos como o dinheiro utilizado, como ele gasto. Quanto vai para a pesquisa, para a agricultura e, dentro da pesquisa, por exemplo, quanto vai para a pesquisa em Educao, Biologia, Qumica. Portanto, teramos um tipo de visualizao um pouco como um sistema sangneo, como se o dinheiro fosse o sangue. Como o dinheiro bombeado, de onde vem e aonde vai. E, em cada ramificao, em cada ponto de deciso quanto ao destino do dinheiro, as pessoas teriam acesso aos documentos que justificam a escolha de aplicar o dinheiro em um setor em vez de outro. E poderia tambm haver uma conferncia eletrnica que discutisse as escolhas. Acho que, hoje, os cidados precisam saber o destino de seu dinheiro e por que ele gasto desta ou daquela maneira. Precisam de transparncia. Isso visvel no mundo todo, com os escndalos financeiros. A justia perseguindo as pessoas que fraudam, os polticos que fraudam nos escndalos financeiros etc. Vivemos numa poca em que a sociedade, cada vez mais, quer assumir suas prprias questes e em que no se espera mais a salvao dos polticos, mas que eles sejam honestos, bons administradores e que prestem contas. Acho que tal transparncia financeira, que hoje o ciberespao tornou possvel, seria, originalmente, para prestar contas, restabelecer a confiana entre a populao e os polticos. Acho que cabe aos polticos dar o primeiro passo, dizendo: Sim. Somos transparentes. Acho que a rede torna isso possvel. Acabou o reinado do segredo, das decises veladas, dos lobbies que manipulam os polticos nas sombras. Queremos saber tudo, por que e como so tomadas as decises. Hoje, isso possvel. Tecnicamente.Nize Pellanda:No livroInteligncia coletiva, voc descreve a belssima teoria da engenharia do lar social e traz alguns exemplos bblicos. Neste mundo marcado por uma excluso brutal, e, no caso brasileiro, ns temos como poltica governamental a desindustrializao e a no-sustentabilidade que joga, diariamente, na marginalidade muitos brasileiros, fundamental o papel do engenheiro do lar social. Ns temos exemplos comoventes no Brasil, como o Betinho, por exemplo, um socilogo j falecido. E muitos outros que no anonimato tecem redes de solidariedade l onde a rede social mais se esgara. Como ns poderamos estimular e fazer com que ns pudssemos produzir no Brasil e no mundo cada vez mais engenheiros do lar social?Pierre Lvy:[Risos] A idia da engenharia dos laos sociais, no fundo, a de explorar ao mximo todas as riquezas humanas existentes nas populaes. Por exemplo, h pessoas com habilidades, qualificaes que nem sempre so usadas pelos outros ou valorizadas no meio em que vivem. Foi por isso que, junto com um amigo, imaginamos um programa de informtica que permita aos membros de uma coletividade revelar suas qualificaes e suas habilidades de forma que a coletividade possa recorrer a eles. Era o programadas rvores do conhecimento.Foi o nome que demos. Mas acho que algo que est acontecendo atravs da internet. Vocs sabem que as comunidades virtuais so grupos de discusso na internet, nos quais as pessoas trocam perguntas e tentam responder. Algum faz uma pergunta, os integrantes do grupo se questionam a respeito, procuram na internet, localizam a informao, outras pessoas localizam outras informaes e, assim, h um intercmbio entre os membros dessa comunidade virtual. E isso vai criando, progressivamente, uma memria, uma memria coletiva, mas uma memria oriunda da interao das pessoas. E hoje, na internet, existem centenas, milhares, dezenas de milhares de comunidades virtuais com os mais variados temas. E acho que essa noo de comunidades virtuais tem um grande futuro. Hoje, cada vez mais, a sociabilidade vai passar por esses laos sociais, cuja base no mais de alada territorial, mas que cada vez mais so da alada dos processos de inteligncia coletiva, processos de intercmbio de conhecimento, processos de imaginao coletiva. Certo? E cada um poder participar dessas comunidades virtuais de acordo com seus gostos, paixes e interesses. Podemos at dizer que as empresas, cuja organizao feita, hoje, atravs de redes de comunicao, esto se tornando comunidades virtuais. As universidades esto se tornando comunidades virtuais. E, no fundo, os grupos humanos, no futuro,vo se organizar sob a forma de inteligncia coletiva e, cada vez menos, sob um padro formal e hierrquico. Construiremos a sociedade com o aprendizado cooperativo muito mais que com as relaes de poder ou a explorao mtua. E o faremos porque essa forma de organizao ir nos proporcionar mais poder e felicidade.Teixeira Coelho:Eu queria retornar um pouco ao tema da democracia, que foi levantado inicialmente pelo Florestan, e associ-lo questo da diversidade cultural, que, no meu modo de entender, faz parte tambm do processo democrtico mais amplo. Voc j fez uma advertncia de incio que toda essa progresso na construo de uma nova sociedade se far aos poucos, no uma coisa imediata, e que ns temos que esperar. Por outro lado, claro que todos esto um pouco ansiosos para saber o que o futuro reserva. Ento, a gente sempre faz um pouco de profecia e ao mesmo tempo sempre tem um pouco o p no cho, para ver onde ns estamos. Eu queria propor para voc, ouvir de voc, um comentrio sobre um dos aspectos em que aparentemente ns temos o p no cho. No se trata de uma profecia, mas se trata de um dado concreto, ligado com a questo da democracia e diversidade cultural. Se esperava muito que a internet fosse o lugar onde desabrochariam mil flores diferentes, como a cultura dos anos 60 esperava. No sei se voc se recorda: Que desabrochem mil culturas, que desabrochem mil vietnamitas...Era a palavra de ordem do fim dos anos 60. Aos poucos, no entanto, parece que o campo da internet quase como um... [ interrompido].Pierre Lvy:Um falso conceitomaosta.Teixeira Coelho:Sem dvida.Pierre Lvy:Pois, na realidade, os que diziam isso eram os que esmagavam toda a diversidade e mandavam os intelectuais aos campos de concentrao.Teixeira Coelho:Exatamente. Ento, vamos questo da diversidade. Aparentemente a internet, hoje, acaba transformando-se numa espcie de arena humana, onde o vencedor, a grande companhia vencedora, acaba rebatendo tudo e deixando pouca coisa para as alternativas, para a diversidade. Eu tenho acesso a um estudo de um ncleo de pesquisa da companhia Xerox Park, que mostra que 1% dos sites existentes hoje na Rede detm 56% do trfico on-line. O que significa que pouqussima coisa sobra, efetivamente, para a diversidade, para a variao. Eu gostaria de ouvir, ento, de voc, qual a sua expectativa em termos de uma real segurana, no sentido de garantir a diversidade? Digo de passagem que esse dado que a Xerox me transmite lembra muito uma situao que ocorre no Brasil, onde, se eu no estou enganado, 1% da classe dominante detm uma porcentagem mais ou menos semelhante do territrio nacional. A desigualdade de territrio, assim como a desigualdade de renda, grande hoje. E a desigualdade da diversidade na internet, parece ser muito grande. Como voc encara e comenta essa questo?Pierre Lvy:Lamento muito dizer que sua perspectiva me parece totalmente equivocada [risos]. Porque [ interrompido]...Teixeira Coelho:No a minha perspectiva, um dado da Xerox.Pierre Lvy: justamente seu modo de interpretar os dados. Porque, se em 1% dos sites h 50% de conexes, primeiro, preciso saber que os sites que recebem o maior nmero de conexes so os "motores" de busca. Certo? Por exemplo, Yahoo,Altavista etc. Portanto, esses sites remetem a outros. Certo? como se (...) So cruzamentos. Postos de permuta. Portanto, na realidade, como dizer que na consulta enciclopdia todos vo ver o ndice e ningum consulta a enciclopdia como um todo. Entende? Os "motores" de busca so o ndice da enciclopdia. Certo? Portanto, preciso tomar muito cuidado. Por outro lado, h sites que tm muito sucesso, afora os "motores" de busca, e sabemos muito bem quais so esses sites. Trata-se, por exemplo, da Amazon. A Amazon, claro, um site, mas, em relao ao contedo, temos quase todos os volumes disponveis em ingls. Certo? Portanto, h uma diversidade enorme quanto ao contedo. Ou um outro site, o EBay, por exemplo, um enorme mercado-de-pulgas onde podemos encontrar todo tipo de objetos possveis e imaginveis e onde um grande nmero de pessoas vai vender tudo o que tem e comprar o que h disponvel. Certo? Portanto, no contando o nmero de conexes por site que se tem uma idia da diversidade do contedo. Porque a diversidade do contedo o que importa, no? Ento, minha forma de encarar os fatos em relao a uma evoluo histrica de longo prazo e no com dados que so fotografias. Se olharmos a evoluo histricaem longo prazo, a rede mundial apareceu em 1993, isto , h sete anos. E, na poca, havia praticamente s textos em ingls, que s diziam respeito a assuntos cientficos, um pouco fico cientfica. Entre os assuntos cientficos prevaleciam a Fsica e a Informtica, certo? Se olharmos a situao hoje, vemos que h centenas de lnguas, e no s o ingls. H documentos disponveis em todas as disciplinas cientficas, no s na rea cientfica, mas tambm na rea literria etc. Mais tudo que comercial, tudo que governamental, todas as instituies que colocam suas informaes disposio, mais tudo que artstico. Sem falar, no quero omitir o fato, claro, sem falar da pornografia e de todo o resto. Portanto, h uma verdadeira exploso da diversidade. Quem navega pela internet sente essa diversidade, pode mergulhar nela. Em geral, o aumento das interconexes, o aumento de comunicao acompanhado por um aumento da diversidade. Esse um ponto absolutamente capital. Tomo liberdade de desenvolv-lo um pouco, pois, ao refletirmos sobre a civilizao do futuro, a questo da uniformidade cultural absolutamente central. Se eu me reportar Idade Mdia, a maioria das pessoas, 90% das pessoas eram camponeses que viviam em vilarejos. Aquelas pessoas s podiam conhecer pessoas de seu vilarejo e dos vilarejos ao redor. No havia imprensa, nem rdio, nem televiso. No havia supermercados [risos]. s vezes, vinha um vendedor ambulante trazendo notcias. E o que as pessoas podiam conhecer era apenas o que o padre dizia na igreja aos domingos. Era s isso. Certo? Se depois o campons, no sculo 18, fosse cidade, poderia, ento, encontrar mais pessoas, aprender talvez a ler e a escrever, ler os jornais, estar mais a par dos fatos e, no plano comercial, ter acesso a uma maior variedade. Se olharmos as grandes metrpoles do mundo contemporneo, So Paulo, por exemplo, temos a uma variedade ainda maior. Temos acesso s mais diversas gastronomias: indiana, chinesa, japonesa, francesa etc. Podemos ir s bibliotecas e ter acesso a todo tipo de conhecimento possvel. Podemos assistir a 250 canais de TV. E observamos que a humanidade tende para a diversidade. Por qu? Porque a diversidade o aumento de opes. a abertura da mente. Gostamos do aumento de diversidade e o queremos. Em todos os campos. Tanto no comercial, como no cognitivo ou poltico. No h democracia sem escolha, sem pluralismo. Se h um s partido, no uma verdadeira democracia. Ou, se a economia dirigida e no h escolha, no uma livre economia de mercado. Portanto, vamos em direo diversidade, pois isso o que queremos. E seria muito surpreendente a internet no trazer uma diversidade ainda maior. E o que constatamos. A internet, de certa forma, a cidade mundial. No s uma metrpole, como So Paulo, Nova Iorque ou Paris,mas, de certa forma, a metrpole virtual que rene todas as demais com o acesso a uma diversidade ainda maior. Diversidade de pessoas que podemos conhecer. Diversidade de textos, por exemplo, pois as pessoas que l escrevem no passam mais pela censura dos editores ou dos produtores de TV [risos], ou dos responsveis pelos jornais ou revistas. Quem tem algo a dizer pode escrever na internet. Quem tem uma msica que acha interessante pode coloc-la disposio na internet, no precisamos mais passar pelas lojas de discos. Quem fez um vdeo que possa interessar ao pblico pode coloc-lo na internet. Existe, hoje, um sistema de imprensa livre que est se criando. Um sistema de circulao da msica extremamente livre e variado que est se criando. Portanto, hoje, a internet uma diversidade ainda maior. E acho que a idia de que a interconexo e a comunicao universal levam uniformidade no apenas contrria experincia histrica, mas , sobretudo, contrria experincia pessoal, experincia de vida que possamos ter. Hoje, em nossa prpria vida, temos realmente acesso a uma diversidade maior que nossos antepassados. E o sentido geral da evoluo humana.Paulo Markun:No programa de televiso uma das alternativas que as pessoas tm da escolha exatamente o intervalo. [Risos] Ns vamos fazer um rpido intervalo e voltamos j, j.IntervaloPaulo Markun:Ns estamos de volta com oRoda Viva, hoje, entrevistando o filsofo Pierre Lvy. Antes de passar a palavra para os meus colegas, mais uma vez eu abuso aqui. Voc mencionou no bloco anterior a questo das rvores do conhecimento, que um tema que tem me preocupado e ocupado o seu tempo. Eu creio que muita gente no consegue vislumbrar o que seja isso. E eu queria que voc desse uma explicao relativamente curta do que isso.Pierre Lvy:Bem, um programa de informtica que permite aos membros de uma coletividade, que pode ser uma escola, uma empresa, as pessoas de um bairro, uma associao, um grupo comunitrio, que permite a todas essas pessoas informar o conjunto de suas qualificaes, tudo o que elas sabem e a forma, a ordem pela qual aprenderam. O programa toma todos esses conhecimentos e os coloca sob a forma de uma rvore. E a rvore mostra o conjunto de conhecimentos da coletividade. Portanto, uma coletividade aparece como um espao de conhecimentos. E, dentro dele, as pessoas podem se localizar. Podem dizer: Onde estou nessa rvore do conhecimento? Onde esto os outros? O que podem me ensinar? O que posso ensinar? Como podemos nos associar para um projeto? Quais os recursos disponveis de aprendizado?De fato, um tipo de mundo virtual baseado no conhecimento e em como compartilh-lo.Paulo Markun:E essa rvore vira uma floresta?Pierre Lvy:Como?Paulo Markun:Essa rvore, junto com outras rvores, forma uma floresta?Pierre Lvy:Sim. isso. Digamos que podemos consider-la como uma metfora. O que a sociedade? uma grande floresta onde crescem rvores do conhecimento. E essas rvores so as coletividades. Por exemplo, as pessoas da TV tm conhecimentos, os pem em prtica e trabalham juntas. E isso resulta em uma rvore, algo vivo. Em vez de considerar uma coletividade como indivduos enfileirados, tiro uma foto, tem 25 pessoas e pronto... Em vez de consider-los sob a relao do poder, atravs de um organograma, por exemplo: Este o chefe, este o subordinado, posso considerar de outra forma e dizer: Quais os conhecimentos de toda essa gente? Qual o seu poder de conhecimento? a melhor forma de analisar os grupos humanos. Poderamos dizer que, juntos, formamos um tipo de ecologia invisvel na qual as espcies de plantas e animais so os grupos; na qual a terra feita pelos sinais que usamos: nossa linguagem, as imagens, as msicas, os sons; na qual a gua formada pelo dinheiro que circula entre ns e, quando mandamos dinheiro para algum lugar, crescem novas rvores e novas plantas. um tipo de sistema de irrigao ou de grupos que tm muitos conhecimentos e cujas razes podem atrair dinheiro. uma equivalncia entre conhecimento e dinheiro que, na economia do futuro, ser cada vez mais presente entre idias, conhecimentos e riqueza. E, depois, h o ar, o clima dessa ecologia mental o clima de cooperao, do bom entendimento. Se soubermos nos entender, iremos prosperar. Se houver cime, se houver dio, se criarmos empecilhos para os outros, as folhas vo cair, os galhos vo quebrar. E, depois, h o fogo, que seria o quarto elemento. E seria o sol da conscincia, da inteligncia, do saber, que ilumina todos esses grupos humanos. Alguns se voltam para a inteligncia, para a conscincia, e so capazes de colher sua energia e, a, a coisa vai bem. E outros, infelizmente, no se voltam para a inteligncia. Esto mais interessados no domnio, no poder, so mais egostas e, a, a coisa vai mal. uma nova forma. Estou tentando propor uma nova forma de considerar o funcionamento da sociedade, no mais relacionado ao poder, mas ao conhecimento, intercmbio e aprendizado.Carmem Maia:Aproveitando o gancho do conhecimento e do aprendizado, a gente tem visto alguns projetos. Aqui mesmo, no Brasil, est sendo criada a Universidade Virtual Brasileira, uma rede de universidades que esto se formando para estar oferecendo ensino distncia, usando basicamente a internet como plataforma principal. A internet tem sido vista como uma nova esperana para esse ensino distncia, justamente por causa da interatividade. Agora, para no cair naquele "comum" da interatividade, como que poderia se estar pensando em ser realmente interativo, ou utilizar esse recurso da internet, para uma coisa que realmente seja democratizante? Para a aprendizagem mesmo, colaborativa, e no s estar usando como: Ah, interativo. legal ou virtual. Est muito na moda. No estar aproveitando s esse modismo da tecnologia, mas estar aproveitando a ferramenta e a tecnologia para uma coisa realmente de aprendizagem, de uma coisa realmente interessante.Pierre Lvy:Bem. A verdadeira interatividade no absolutamente um conceito tcnico. , no fundo, a conversao, a mais aberta e livre possvel, entre seres humanos, no ? E acho que hoje temos tecnologias que permitem a abertura dessa conversao. Permitem que essa conversao ultrapasse as fronteiras dos pases, as fronteiras das disciplinas e as das instituies. E permitem que pessoas que tm algo a dizer possam entrar em contato, possam se comunicar entre si e aprender.Eu no acho que devemos, digamos, perder muito tempo analisando conceitos tcnicos. Porque a tcnica evolui muito rapidamente. Se criarmos um conceito de universidade virtual baseado em um conceito tcnico evoludo num dado momento, em trs ou cinco anos isso j ser ultrapassado. Portanto, devemos nos concentrar no essencial. E o essencial a liberdade [risos]. Acho que, no fundo, devemos (...) Quais so as pessoas que aprendem mais e mais depressa? So as crianas mais novas. Elas chegam aqui sem saber nada. Elas tm um instinto. O instinto da curiosidade e da explorao. Portanto, preciso colocar as pessoas nessa situao de curiosidade, nessa possibilidade de explorao. No individualmente, no sozinhas, mas juntas, em grupo. Para que tentem se conhecer e conhecer o mundo sua volta. E, uma vez entendido esse princpio de base, todos os meios servem, os meios tcnicos servem. Os meios audiovisuais interativos, os mundos virtuais, os grupos de discusso, tudo o que quisermos. No devemos limitar os processos de aprendizado a categorias estticas, a programas de estudo pr-moldados, mas deixar o aprendizado desenvolver-se como um processo natural e orgnico. E permitir que as pessoas expressem tudo o que sabem e tudo o que aprenderam. E podemos fazer isso hoje. Justamente. Por exemplo, permitir que hoje as pessoas faam suashomepages muito mais importante que submet-las a exames. Ensin-las a se inserir no processo de intercmbio de conhecimentos, sendo originais e ajudando outros a se orientarem, propondo ligaes interessantes com outros sites, mais importante do que conferir se aprenderam um programa criado por um professor. As coisas devem se desenvolver da forma mais livre possvel. O que o trabalho hoje? aprender o tempo todo. transmitir e trocar idias, de forma cooperativa e aberta com os outros. produzir conhecimentos. Trabalho a formao. A formao de clientes, de novatos, entende? Trabalho , cada vez mais, relaes humanas autnticas e transao de conhecimentos. Por isso, o aprendizado e, em especial, o aprendizado universitrio, deve assemelhar-se ao trabalho, ou seja, ser uma transao de conhecimentos e relaes humanas.Marcelo Tas:Pierre, antes de mais nada, eu queria dizer que eu compartilho por uma parte, digamos assim, do seu otimismo quando voc fala de internet. Quando o professor Coelho Teixeira estava dando aquele dado daXerox,1% de sites tm 50% da audincia, eu fiquei me lembrando que, no Brasil, e em muitos pases do mundo, a gente teve durante muito tempo da nossa histria um canal de televiso, tendo muito mais do que 50% da audincia. O que era uma coisa muito mais deformadora, digamos, dos nossos crebros. E hoje a gente v a internet como uma coisa, pelo menos nesse aspecto, muito mais favorecendo essa diversidade. Mas, ao mesmo tempo, ela tem uma coisa que me angustia muito. Eu acho que angustia muito quem usa a internet, que justamente uma de suas virtudes, essa exploso de oferta de coisas para se fazer. Voc mesmo estava falando do aumento das escolhas. Um dos seus livros descreve um cenrio bastante curioso, que eu gostaria que voc tocasse aqui agora, que voc descreve como um dilvio. Que a gente est vivendo uma espcie de dilvio de informaes e faz at uma comparao com o dilvio de No, que resolveu o dilvio com uma arca. Como que ns, hoje, poderemos resolver esse dilvio? [Risos] Voc tem alguma dica, assim, fcil de usar para a gente enfrentar esse volume de informaes e rudos?Pierre Lvy:A liberdade muito angustiante. Eu entendo a sua angstia. Mas imprescindvel aprender a conviver com isso. No livro intituladoCibercultura, eu digo, diante dos dilvios de informaes que nos assolam,podemos ser tentados a dizer: Vamos tentar salvar o essencial, como No, que colocou os animais, um exemplar de cada espcie, na arca. No fundo, na arca de No, havia um resumo do conjunto de animais que ia desaparecer. E uso essa imagem no livro para dizer que, hoje, impossvel fazer um resumo do todo. No podemos mais abraar o todo, porque ele tornou-se uma coisa infinita. Mesmo que em um momento pudssemos cerc-lo, logo em seguida, seria diferente. Portanto, todo esse trabalho teria sido vo. Ento, digo que cada um, cada indivduo, cada grupo deve, por conta prpria, fazer necessariamente uma filtragem, uma organizao, uma seleo, uma hierarquizao. No digo que acabou, no precisamos de hierarquia, de seleo, nem filtragem. absolutamente necessrio. Sem isso, seria impossvel dar um sentido a essas informaes. E o sentido so informaes organizadas de forma a desenhar uma figura, a contar uma histria, no ? Com a totalidade de informaes brutas no h histria, figura, nem sentido. Mas devemos ter conscincia de nossa responsabilidade quanto fabricao do sentido. No cabe mais mdia, no cabe televiso, nem imprensa, no cabe universidade, nem ao partido ou ao Estado. No cabe mais ao Senhor dizer qual o significado das coisas. Cabe a ns assumir a responsabilidade, fazer uma escolha e dizer: isto que nos interessa. o rumo que queremos tomar. E no exigir que os outros sigam o mesmo rumo. A escolha nossa. Somos livres e os outros tambm so. E isso muito difcil porque, desta vez, o sentido depende de ns. Sim. Depende de ns. assim. Mas isso no apareceu com a internet. Neste exato momento posso ter uma infinidade de pensamentos diferentes. Por que tenho um e no outro? Posso me concentrar em seu olho. Posso achar fantstico como funciona a retina, as clulas fotossensveis que ali esto, como isso funciona no sistema nervoso etc. Posso pensar na viso, no ? Posso olhar os cabelos desta senhora, achar que so lindos, que refletem a luz e tudo mais. Posso pensar que estamos na TV, na tcnica, na comunicao... Tudo o que est ao meu redor , de certa forma, um pequeno ponto e, se eu o seguir, h como um hipertexto atrs que se ramifica no infinito. A cada segundo, vivo essa situao. A cada segundo, posso decidir que rumo ir seguir a minha ateno, no ? a situao em que estamos. Ento, a internet a descoberta dessa liberdade, porque a liberdade o infinito, no ? a descoberta da liberdade do ponto de vista social. Por isso, acho que algo por demais importante. E no apenas um novo meio de vender coisason-line. muito mais que isso.Marcelo Tas:Mas essa tarefa de manter o foco ficou bem mais complicada, voc concorda? Os pensamentos ficam muito mais famintos quando voc pode ficar clicando de um lugar para o outro. A possibilidade de se perder, ela fica maior, no fica?Pierre Lvy: claro. E significa que, no fundo, tudo o que pretende ser uma autoridade esmagadora vai dizer: Eu sou a autoridade sem a qual vocs vo se perder. Mas a pessoa ou a instituio que me diz isso, como vou saber se ela no est perdida? Quem detm o privilgio de saber qual rumo tomar? Um poltico mais inteligente do que a maioria das pessoas? De jeito nenhum. So exatamente como ns. E um cientista? Claro, mais competente que eu, mas em matemtica. Em sociologia, no. O socilogo mais competente quanto diviso social, mas, talvez, no em outras reas, certo? Quem vai me dizer qual o bom senso? Ningum individualmente ou, ento, juntos. Temos de tomar conscincia de que, juntos, possumos o conhecimento absoluto. O conhecimento absoluto no vem de nenhuma instituio particular, de nenhuma disciplina ou grupo, muito menos de uma pessoa, claro. Portanto, dentro disso, digo que existe o conhecimento absoluto, que o que produzimos juntos enquanto humanidade. Portanto, um grande orgulho. Mas, ao mesmo tempo, uma grande humildade. Significa que uma nica pessoa nunca poder deter o conhecimento absoluto. E somos obrigados a exercer nossa liberdade sabendo que, como pessoas, no detemos esse conhecimento. a condio humana, s isso. Mas achar que uma instituio possa det-lo em nosso lugar, por medo de exercermos nossa responsabilidade, aqui est o erro.Max Alvim:Pierre, ns, que somos comunicadores, estamos pensando muito hoje no Brasil a questo da convergncia digital. E exatamente essa uma considerao que tem muito a ver com essa nova perspectiva da liberdade que voc est colocando. Certamente, os prprios meios de comunicao tambm vo comear a trabalhar a sua prpria liberdade de comunicar de uma forma diferente. Eu queria que voc falasse um pouco de como que voc imagina que esses meios de comunicao vo se relacionar com os usurios e com as comunidades virtuais de agora para frente.Pierre Lvy:Acho que voc tem razo de falar em convergncia. Hoje em dia as empresas jornalsticas, falo da imprensa tradicional, as mais evoludas na internet, esto comeando a se servir muito de fotos, vdeos e at gravaes sonoras. E vemos que no h mais tanta diferena com a forma pela qual as empresas de TV apresentam-se na internet. Porque uma TV, na internet... Quem acessar o site da CNN, um dos mais conhecidos, poder ver que h textos. Portanto, a TV comea a assemelhar-se imprensa e a imprensa comea a assemelhar-se TV. Essa convergncia muito perceptvel. Por outro lado, algo surpreendente, que talvez os espectadores no saibam, que, hoje, todas as rdios so acessveis em tempo real, ao vivo, pela internet. um fenmeno muito surpreendente. De qualquer lugar do mundo voc pode ouvir as rdios dos pases do mundo todo. Portanto, vemos aqui o aumento da diversidade. algo que eu experimento. No Canad, ouo aRadio Tunis, pelo prazer de ouvir msica rabe, que me lembra a infncia. Eu no podia fazer isso antes, certo? E ouoFrance Culturequando canso daRadio-Canada. Mas, antes, sem a internet, eu no podia [risos]. a idia de que, de qualquer ponto particular, tem-se acesso ao conjunto da diversidade. Isso cria, tambm, situaes de concorrncia muito novas. E obriga as pessoas, as empresas de comunicao, a darem o melhor de si e a serem criativas. Ir mais longe, explorar esse novo meio em direes nunca antes imaginadas. Ento, pessoalmente, acho que a direo mais promissora a direo da comunidade virtual, como eu disse h pouco. Quer dizer que uma empresa de comunicao que no se contente em distribuir informaes, mas que faa participar as pessoas atradas pelo que ela oferece, tem um processo de inteligncia coletiva, real e frutfero, ser certamente mais cotada que aquela que s reproduz o velho esquema de emisso de informao para um grande nmero. As pessoas no tm apenas sede de informao, mas de conversao, de comunicao real, de intercmbio. E tm tambm a necessidade de pertencer a uma comunidade. Como todos ns. E esto, cada vez mais, insatisfeitas com as comunidade clssicas que no as reconhecem como indivduos completos. A empresa, por exemplo, os considera como funcionrios. E no sabe usar seus recursos e suas qualidade humanas. Ou a nao habitual, que s considera cidados que votam a cada 5 anos, quando ela tm sempre algo a dizer. Portanto, se podem pertencer a uma comunidade na qual possam expressar toda a sua riqueza pessoal, elas o faro. Acho que nessa direo que os meios de comunicao tm mais futuro.Florestan Fernandes Jr.:Pierre, uma das coisas que me preocupa, e que eu acho que preocupa a maioria das pessoas hoje, a questo das relaes humanas. O Markun, quando abriu oRoda Vivaaqui, falou que o filho dele fica 14 horas na frente do computador brincando ou conversando atravs da internet. Hoje, possvel voc acessar o seu banco via internet. Hoje, possvel fazer supermercado via internet. possvel fazer, como voc disse, viagens virtuais at a China, ou ouvir uma rdio de Moscou atravs da internet. Como que fica a relao humana nisso? Qual o homem que vai surgir a partir do computador? Um homem solitrio, que capaz de se satisfazer sexualmente, por exemplo, atravs do sexo virtual? [Risos de Levy]Pierre Lvy:Sexo virtual, sim. Bem... [mais risos] Podemos deixar a questo do sexo para depois? Eu queria dizer que o que caracteriza a sociedade contempornea o aumento geral dos contatos e relaes. Contatos e relaes de qualquer natureza. Portanto, claro, mais comunicao distncia, atravs de meios de comunicao ou telecomunicao. Mas, tambm, mais contatos fsicos, mais contatos diretos. Mais uma vez, seria bom no ter o nariz colado na situao contempornea, deixar-se levar pelos prprios fantasmas, e recuar um pouco na histria. A impresso e a caravela, que permitiram o descobrimento do Brasil, apareceram quase na mesma poca. A ferrovia e o telgrafo se desenvolveram juntos. O automvel e o telefone tiveram um crescimento paralelo. Vocs observaro que, sempre que houve expanso das telecomunicaes, houve, ao mesmo tempo, um aumento das redes, maior densidade das redes de transportes fsicos. As viagens nunca foram to fceis como hoje. Nunca tanta gente pegou carro, avio, trem, navio etc. As pessoas nunca se deslocaram tanto no planeta. Portanto, h, ao mesmo tempo, uma circulao maior dos corpos humanos e existe um maior contato entre eles. O fato de a maior parte das pessoas morar na cidade , tambm, um sinal dessa interconexo concreta das pessoas.Florestan Fernandes Jr.:Mas, de qualquer maneira, eles viajam com o computador na mo, com o computador pessoal.Pierre Lvy:Sim. isso.Florestan Fernandes Jr.:Com o celular.Pierre Lvy:Sim.O celular.Florestan Fernandes Jr.:E as relaes sociais no se estabelecem dessa maneira.Pierre Lvy:No, oua... [risos] Est bem. Mas, justamente, a moda do celular, que vai se desenvolver mais ainda, mostra que as pessoas se telecomunicam e se deslocam. Fazem as duas coisas juntas. No creio que as pessoas ficaro imveis, sozinhas, sem se encontrarem. Se voc olhar sua volta, ver que h adolescentes que se deixam tentar s pelas comunicaes virtuais. Quando eu era jovem, meu pai vivia dizendo: Pare de ler o tempo todo. Chega. V l fora brincar com seus amigos. Ele podia pensar que minha relao se limitava a folha de papel e tinta. Mas a minha relao no era essa. Eu me relacionava com mile Zola, Victor Hugo, Cosette, Jean Valjean, com todo um mundo imaginrio, no ? E acho que, hoje, as pessoas que navegam pela internet no esto diante do computador. Elas brincam com outras pessoas. Navegam pelo pensamento e pelo mundo das idias. No podemos olhar s o lado material, mas temos de entender o que acontece dentro das pessoas. Os espaos interiores, onde as pessoas navegam, so cada vez mais amplos. Acho isso positivo. Por outro lado, como eu disse, no acho que os contatos concretos, fsicos entre as pessoas estejam diminuindo. Pelo contrrio. Veja, por exemplo, a moda dos colquios. Nunca houve tantos colquios como hoje. Tantos simpsios, mesas redondas, tantas jornadas de discusso, de encontros. Isso no existia h um ou dois sculos. As pessoas tm muita vontade de se encontrar e o fazem, mas de todas as formas possveis, virtuais e reais.Paulo Markun:Pierre, ns vamos para mais um rpido intervalo e oRoda Vivavolta j, j.IntervaloPaulo Markun:Estamos de volta com oRoda Viva, esta noite entrevistando o filsofo francs Pierre Lvy. Pierre, esse livroO fogo liberador, que me foi enviado junto com as outras obras suas, me causou um enorme espanto. Porque at que eu pousasse os olhos nele, eu tinha imaginado voc como um filsofo interessado nos computadores, na abertura que a revoluo digital pode provocar no processo de conhecimento etc. Mas jamais como uma espcie de guru budista [risos] do comeo do sculo XXI. Falando seriamente, me espanta muito a conexo que possa existir entre essa abordagem que voc faz dos problemas espirituais, das dvidas mais ntimas da pessoa, e que tm muito a ver com essa reflexo oriental, com essa nova tecnologia. Eu queria saber onde que est o ponto de contato, se que existe, entre um pedao e outro do Pierre Lvy?Pierre Lvy:Acho que(...) a filosofia(...) Sou, fundamentalmente(...) Antes, quero deixar claro que no sou um guru. Sou um filsofo. E, desde sempre, a filosofia se interessa por problemas sociais e polticos, problemas de conhecimento, de evoluo histrica, pelo sentido da histria etc. Mas a filosofia tambm se interessa pela sabedoria, pela felicidade. E, para mim, digamos, a continuao do meu trabalho de filsofo. Ento, no fundo, nos trabalhos sobre a revoluo epistemolgica, social e cultural trazida pelas novas tecnologias, trata-se de analisar um tipo de abertura do esprito, expanso do conhecimento e da conscincia em uma esfera exterior, uma esfera concreta, um esfera social. E, com o livroO fogoliberador,no mais a explorao da liberdade exterior, mas a explorao da liberdade interior.Paulo Markun:Sim, mas voc, por exemplo, entre outras coisas, recomenda, e por isso que eu usei a palavra guru, que cada um... que eu respire. Como se isso fosse a nica coisa a ser feita a cada momento. Quer dizer, h uma avaliao. Quer dizer, que eu me concentre nisso e que a partir dessa experincia comece a descobrir um novo caminho para as coisas. Mais ou menos como se dissesse que todas as respostas, para todas as perguntas, esto dentro da pessoa. Nesse sentido que me espanta como isso se conjuga com esse raciocnio social, tecnolgico. Porque me parece algo diferente, uma esfera diferente de preocupao.Pierre Lvy:Bem... [risos] Recomendo que se preste ateno respirao porque, alis, no sou o primeiro, claro, porque acho que esquecemos essa coisa extraordinria. Isto , o fato de que estamos vivos. No fundo, tudo que podemos censurar existncia e que nos deixa infelizes , no fim das contas, to pouco perto desse fato slido, bruto, que, muitas vezes, esquecemos. E repito mais uma vez: ns estamos vivos. Que sorte a nossa. Ns vemos, ouvimos, pensamos, estamos nos relacionando com outros seres humanos. Claro, podemos gostar de alguns e no de outros. Podemos fazer diferenas e tudo mais, mas a coisa mais importante vem antes das diferenas: o fato de existirmos. toda essa riqueza que nos dada a cada segundo. E a vida social est dentro de nossa existncia. As relaes que temos com os outros no esto fora da nossa vida, mas dentro dela. Quando leio um livro, na minha vida que o leio. No o leio fora dela, nem tem sentido. Quando eu opero um computador e navego pela internet, isso acontece dentro da minha experincia. E do ponto de vista de um ser humano vivo. Portanto, temos de tomar conscincia de que nossa conscincia, nossa experincia consciente, rene todos os aspectos da existncia. E no existe oposio entre interioridade e exterioridade. A interioridade engloba tudo, no ? E verdade que tudo est dentro da pessoa. Por que o que h fora?Paulo Markun:As sombras dePlato. [Risos]Pierre Lvy:No h nada fora. Nada. Como posso dizer... A cor das coisas, por exemplo, fabricada pelo nosso sistema nervoso. um produto da nossa mente. No mundo exterior h variaes do campo eletromagntico. E ainda isso produto de nossa cincia, a cincia fabricada pelos seres humanos. Fora do nosso conhecimento, o que h? S podemos conhecer o que conhecemos, no ? Ora, o que conhecemos o que somos. Esta a mensagem do livro. Quem "ns"? Qual a nossa identidade? o que h no interior da epiderme? "Ns" tudo o que h em nossa experincia. E o que h na nossa experincia e no no interior da epiderme. tambm o que h fora da epiderme. Voc faz parte da minha experincia. O cu faz parte dela. O cu no existe fora da minha experincia. As estrelas no existem para um verme dentro da terra, no ? As estrelas s existem para o ser humano. O mundo do significado e da linguagem, o que d sentido ao universo s existe na cultura e na conscincia humana. H uma espcie de coincidncia entre o microcosmo e o macrocosmo. Isso no nada original, o que a sabedoria oriental diz h muito tempo. E no s a sabedoria oriental. Se voc estudarPlatoou os esticos, eles dizem exatamente a mesma coisa. a sabedoria em geral. No sabedoria oriental. H uma nica sabedoria. Ou, ento, poderamos dizer: O que o Oriente? o conhecimento voltado para o interior. E o Ocidente o conhecimento, a liberdade, voltados para o exterior. A contribuio para a histria da humanidade a cincia, a tcnica, a democracia, o livre-mercado etc. E a contribuio oriental a sabedoria, a meditao, o descobrimento da profundeza infinita da conscincia. Mas, na realidade, no h uma diviso entre Oriente e Ocidente. H uma nica humanidade, digamos. E acho que, hoje, estamos compreendendo que os orientais so como ns e que eles tm muita coisa para nos dar. E eles esto compreendendo que queriam ter a democracia, querem a tcnica, o livre-mercado e tudo isso. No fundo, Oriente e Ocidente esto se mesclando. O interior e o exterior esto se mesclando. A humanidade est se unificando. E s vejo um nico processo de unificao: o processo de unificao da espcie humana, que se faz atravs da globalizao, da internet, como tambm o processo de unificao de nossa prpria humanidade interior.Teixeira Coelho:Pierre, vamos voltar um pouco na questo mais dura da cibercultura e da rede, mas pegando um gancho em duas coisas que voc acabou de mencionar na resposta ao Markun, que a questo da unificao da humanidade. E uma outra questo que apareceu no nosso discurso, pela primeira vez na sua fala, que a questo do mercado. E que eu acho que uma questo que estava embutida na primeira pergunta que eu lhe fiz e que ns no tocamos muito. A internet quer alguma coisa de ns, ns queremos alguma coisa da internet, e os governos tambm querem alguma coisa da internet. Ento, vrios pases do mundo esto fazendo os seus livros brancos sobre o que esperam da internet e como esperam regulamentar, tanto quanto possvel, as questes da internet. O Brasil tambm est elaborando um livro branco sobre a internet, e um dos subgrupos propostos para a elaborao do livro branco diz respeito identidade cultural. O governo brasileiro, atravs das suas agncias de pesquisa e dos seus rgos de conhecimento, quer saber como fica a questo da identidade cultural na poca de internet. E essa questo interessante, uma vez que, h dois anos, ns fizemos uma pesquisa entre os estudantes da universidade, aqui em So Paulo, que a maior do Brasil, e para surpresa de muita gente uma das respostas que foi obtida era que os estudantes achavam que a identidade cultural nacional ainda era uma coisa importante a ser trabalhada, a ser elaborada. O que eu gostaria, ento, de ouvir de voc, ouvir um comentrio seu, a respeito da exata necessidade de continuao como projeto de construo de uma identidade cultural nacional ou se isso uma coisa que est definitivamente no passado. Aqui no Brasil ns temos uma discusso polarizada claramente entre dois grupos. De uma maneira um pouco caricata. Eu vou fazer a definio. Um, o grupo que acha que trabalhar em cima dessa questo uma coisa do passado, uma vez que a humanidade vai se unificar. Outro diz que, para que haja, de fato, uma real diversidade, necessrio que aqueles que vo ser diversificados, num primeiro momento, sejam iguais, sejam definidos entre si. Ento, eu gostaria de ouvir de voc um comentrio sobre isso e um comentrio sobre uma outra coisa que aparece nos livros brancos, com enorme insistncia, que a recomendao de que tudo seja feito para que o livre mercado da internet seja estabelecido. A questo que claramente se coloca, ento, : Qual o papel que o mercado e as leis econmicas de mercado tm a representar na questo da internet e na questo da diversidade cultural?Pierre Lvy:H duas perguntas interligadas, claro. Voc se referiu a dois grupos, aos que acham que a identidade cultural nacional coisa do passado e a quem a valoriza em vista at da diversidade cultural. Minha postura extremamente simples. As pessoas fazerem o que querem, isto , se para elas, a identidade cultural nacional algo importante, devem desenvolv-la. E isso pode perfeitamente ser feito na internet. Pode-se fazer comunidades virtuais com base em uma identidade cultural nacional. Pode-se fazer agrupamentos em torno da identidade particular brasileira ou, alis, fazer o mesmo tipo de agrupamento em torno da identidade individual de cada estado, ou at de cada cidade do Brasil. Ou seja, a identidade territorial, absolutamente, no algo que tende a desaparecer. Ao contrrio, algo que pode vir a ser mais importante, pois pode ser assumido de forma mais autnoma diretamente pelas pessoas, em vez de ser delegado a um governo ou apolticos. Portanto, pode haver uma identificao mais natural e mais direta. Mas, para mim, essa identidade cultural com base territorial apenas uma das formas de identidade, uma das formas da variedade. Porque, claro, que uma comunidade virtual com base territorial uma comunidade virtual, mas haver outras que tero por base uma disciplina cientfica ou uma disciplina artstica ou uma paixo ou um projeto ou uma associao ou... entende? Por exemplo, se as questes ecolgicas o interessam, pode trat-las com base local ou com base planetria, no ? Portanto, digo sim para a identidade cultural nacional. Por que no? Sobretudo se as pessoas querem desenvolv-la, mas ser uma das formas de identificao cultural entre um nmero bem grande de outras. E isso que interessante. As pessoas podem participar de vrias identidades culturais ao mesmo tempo. Este o primeiro ponto. O segundo ponto referente ao mercado, acho que, do ponto de vista dos consumidores, um grande passo frente, ligado a um mercado internacional muito mais transparente. Hoje, em muitos setores econmicos, encontram-se na internet sites que comparam qualidade e preos de todos os produtos oferecidos na internet. O fato de o mercado ser bem mais transparente algo muito favorvel ao consumidor. Portanto, pessoalmente, no vejo(...) o que as pessoas querem. E o que muitos produtores ou vendedores, tradicionalmente protegidos por monoplios nacionais, no querem ver, porque os monoplios, ou protees, os livravam da concorrncia, permitindo-lhes impor ao cliente condies no muito favorveis, mas que eram unicamente favorveis ao fabricante ou ao vendedor. E, aqui, a situao torna-se bem mais favorvel ao consumidor. O que, de certa forma, paradoxalmente, diminui o poder das grandes empresas. preciso ver tambm que, ao mesmo tempo, haver, fatalmente, nesse novo meio, mais fuses e junes do que houve at hoje, pois o mercado, unificando-se, a necessidade econmica de grande escala ir produzir megaempresas, digamos. Podemos imaginar que cada grande setor da economia ter trs ou quatro megaempresas multinacionais, consumidores que faro o equilbrio, o balano, e ditaro as regras entre as diferentes megaempresas e uma infinidade de pequenas empresas inovadoras, que vo permitir tornar esse mercado muito mais dinmico. como eu vejo as coisas. E acho que, desta forma, as grandes multinacionais, por serem muito controladas pelos consumidores, devero tornar-se um tipo de servio pblico planetrio. E, se acrescentarmos a isso a tendncia das sociedades por aes populares, um nmero crescente de pessoas possuindo aes de grandes empresas, a propriedade dos meios de produo dever passar, cada vez mais, para o lado da maioria. Portanto, no horizonte, eu vejo um tipo de capitalismo que se transforma em comunismo.Nize Pellanda:O amor, [Lvy suspira e os entrevistadores riem] banido da cincia clssica, como atrapalhador do conhecimento, volta na sua obra, e tambm na de outros cientistas complexos, como categoria cognitiva fundamental. O que voc poderia dizer sobre isso?Pierre Lvy: Nize, agradeo muito por me fazer essa pergunta [risos]. Mais uma vez, temos de recorrer experincia pessoal. impossvel compreender realmente algum, um ser humano que est nossa frente, sem am-lo. Quando amamos algum, tentamos nos colocar em seu lugar, entender seu interior, aproximamos nosso corao do corao dele e o entendemos. H uma profunda relao entre conhecimento e amor. Entre duas pessoas, evidente. Mas, mesmo em termos cientficos, quando vemos a forma pela qual os entomologistas estudam formigas ou abelhas, se eles no as amassem, ser que poderiam passar anos e anos estudando-as? Quando queremos conhecer uma coisa porque a amamos. A relao entre conhecimento e amor muito profunda. Eu diria tambm que, no plano filosfico, algo que iria requerer longas explanaes, mas, no fundo, o que pensamento?Deleuzedizia que h uma forte relao entre pensamento e aprendizado. O pensamento no o reconhecimento de algo que j sabemos. Temos um conceito, vemos uma coisa e, a, tal coisa tal conceito. No nada disso. algo que antes no sabemos, que antes catico e incerto e que, de repente, ns produzimos. Ento, produzimos um conceito, uma representao, que emerge juntamente com a percepo que temos de alguma coisa. E, por isso, temos de nos transformar. Temos, talvez, de abandonar velhos conceitos para produzir algo novo. Somos obrigados a nos tornar outra coisa. O que aprender? abandonar velhos reflexos, abandonar os preconceitos e penetrar em um conhecimento diferente. E isso doloroso. aceitar se transformar, aceitar ir em direo alteridade. Aprender isso. Pensar isso. Ir em direo de outra coisa. transformar-se, no ? Porque ser, pensar, aprender, tornar-se a mesma coisa, no ? Somos o que sabemos, o que experimentamos. Ns nos tornamos o que aprendemos. o movimento de ir em direo ao outro, alteridade. O que o amor? ir em direo ao outro. aproximar-se do outro, sair de si mesmo. Se quisermos ser, estando realmente vivos, temos de sair de ns mesmos ou acolher o mundo em ns, acolher o outro em ns. O amor a mesma coisa. ir em direo ao outro ou acolher o outro em si, tornar-se o outro. Para mim, no somente h uma identificao entre conhecimento e amor, mas, tambm, a identificao entre o conhecimento, o amor e a existncia, a mais intensa e viva.Rogrio da Costa:Ou seja, Pierre, a gente pode perceber que o seu percurso como filsofo, na verdade, muito claro isso. Ele no se atm exatamente s questes da tecnologia, mas ele faz questo de mostrar que voc est trabalhando no plano do conhecimento. Voc est, desde as tecnologias da inteligncia, que voc est pensando na questo do conhecimento, em inteligncia coletiva, na imaginao artificial. E, agora, mais recentemente nos seus ltimos livros, o que voc aborda como sendo conscincia planetria. interessante quando voc cola a questo do amor e do conhecimento. Eu queria perguntar como que voc faz a passagem do amor e do conhecimento, para isso que voc chama, hoje, de uma economia da ateno? Me causou uma certa surpresa nesse seu ltimo livro, voc trabalhando o problema da economia da ateno, ou a economia do conhecimento, como se fosse uma progresso em relao s economias tradicionais: economia de subsistncia, economia da informao, economia do conhecimento e economia da ateno. Eu queria que voc falasse um pouco sobre isso e me falasse um pouco tambm sobre o que(...) Para fechar o seu trabalho, voc tem falado ultimamente sobre a meta-evoluo. [Risos] Voc tem falado sobre aciberculturacomo lugar de uma meta-evoluo.Pierre Lvy:Bem... Quanto falta? Cinco minutos?Paulo Markun:Quatro minutos.Pierre Lvy:Trs minutos? Quatro. Est bem. A economia da ateno algo muito simples. Voc entra em uma livraria, certo? Um livro chama sua ateno. Voc o compra, l, e depois, vai ler outro livro do mesmo autor etc. Quando voc dirige sua ateno para alguma coisa, h mais livros vendidos, h mais livros fabricados por aqueles que chamaram sua ateno. O que chama sua ateno o que hoje fabricado pela economia. Na rede, voc tem um campo enorme possvel de ateno. Ao dirigir sua ateno apara algum lugar, a conexo feita para o site gravada. E, quanto mais conexes forem feitas para esse site, mais dinheiro o site recolhe atravs da publicidade, e maior desenvolvimento ter a informao por ele fabricada. Portanto, podemos tomar conscincia de que nossa ateno dirige e orienta o desenvolvimento da economia em geral. E da economia virtual em que estamos ingressando hoje. E o mercado que vai aparecer na rede, dentro dessa economia virtual, ser cada vez mais dirigido por nossa ateno coletiva. O que significa que devemos ter muito cuidado com a forma pela qual dirigimos nossa ateno, pois isso que fabrica a economia hoje. isso que dirige os fluxos de dinheiro e orienta os conhecimento a serem produzidos, que produtos sero fabricados. Ns fazemos isso. Essa a economia da ateno. Devemos perder essa idia parcialmente verdadeira, mas parcialmente falsa, tambm, de que as grandes multinacionais nos manipulam. Agora, devemos ter conscincia de que ns detemos o poder, pois ns temos a ateno. Agora, essa noo da(...) Nossa ateno, nossa conscincia produtora, existencialista. Ao dirigirmos a ateno para algum lugar, a realidade comea a proliferar na direo para a qual dirigimos nossa ateno. De certa forma, ns fabricamos a realidade atravs do direcionamento da ateno. Agora, essa noo de meta-evoluo... [risos] Acho que, como voc disse, minha filosofia , e sempre foi, uma filosofia da inteligncia coletiva. Uma filosofia que gira em torno do aprendizado social, gira em torno de(...) Ao passo que outras interessam-se mais pelo poder, por exemplo. Eu me interesso mais pelo conhecimento. Alis, acredito que, ao dirigir a ateno para ele, contribuo para a criao de uma realidade na qual o conhecimento importante, no o poder. Ao passo que, se dirigirmos a ateno para o poder, para critic-lo ou por querer mais, criamos uma realidade em que o poder importante. Ento, no fundo, a meta-evoluo a evoluo dos meios de comunicao que permite uma expanso do poder de conhecimento da espcie humana. A espcie humana criada pela linguagem. E, atravs da linguagem, que os animais no tm, e que ns temos, criamos um universo de formas e cultura, um impulso de aprendizado que no existia no mundo vivo antes de ns. E essa fora que a linguagem traz multiplica-se com a escrita. Depois, multiplica-se com o alfabeto. Depois, com a impresso que um tipo de sistema de auto-reproduo da linguagem e, hoje, atinge seu topo contemporneo. Talvez, no futuro, haja outros estados com ciberespao. E o ciberespao um enorme acelerador do poder da linguagem e, portanto, do nosso poder de conhecimento e, portanto, do nosso poder de amar [risos].Paulo Markun: Pierre, infelizmente, o nosso tempo acabou. Eu gostaria de agradecer muito a sua presena aqui. Dizer que, de alguma forma, o que gratifica de fazer este programa que no plano restrito ainda da televiso, em que a interatividade praticamente no existe, em que as opes so menores do que na internet, a gente teve a oportunidade de dedicar uma hora e meiaa questes que normalmente no so abordadas neste veculo. Mais do que isso, tem a alegria de que teve gente em casa que assistiu ao programa durante uma hora e meia, fez essa escolha e, como voc disse, sempre importante lembrar que a fora est na escolha. No caso de uma TV pblica como esta, mais do que nunca, isso vale. Muito obrigado pela sua entrevista. Muito obrigado aos nossos entrevistadores e a voc que est em casa. E oRoda Vivavolta na prxima segunda-feira, sempre s dez e meia da noite. Uma boa noite e at l.