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  • Csar Fiuza

    Panptica, ano 1, n. 2

    125

    POR UMA REDEFINIO DA CONTRATUALIDADE.

    Csar Fiuza Advogado; Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Professor Adjunto de Direito Civil na

    Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC/MG) e na UFMG; Professor Titular de Direito Civil na Universidade da Fundao Mineira de Educao e Cultura (FUMEC); Professor

    convidado no Centro Universitrio UNA e na Faculdade Estcio de S; Professor colaborador na Universidade de Itana.

    Na atualidade, pode-se dizer simplesmente que contratos so negcios jurdicos.

    Por sempre dependerem de pelo menos duas atitudes de pessoas diferentes, pode-

    se classific-los como negcios jurdicos bilaterais ou plurilaterais. Sero negcios

    bilaterais se a atuao das partes for antagnica, como no contrato de compra e

    venda, em que o comprador quer comprar e o vendedor quer vender. Sero

    negcios plurilaterais se a atuao das partes no for antagnica, caminhando, ao

    revs, lado a lado, como no contrato de sociedade, em que os scios tm os

    mesmos interesses, quais sejam, realizar o objeto da sociedade para v-la

    prosperar.

    Seja como for, no celebramos contratos toa. Os contratos so praticados por

    fora de necessidades as mais diversas. Essas necessidades podem ser reais ou

    fabricadas pelo marketing, pela propaganda. nosso livre arbtrio, baseado em

    nossas possibilidades, que ir nos dizer at que ponto a necessidade dever ser

    satisfeita.

    evidente que no basta a necessidade. Para satisfaz-la, mister que declaremos

    nossa vontade. A vontade meio condutor que nos leva realizao de nossas

    necessidades. Assim que os contratos so fruto de uma necessidade, que

    impulsiona nossa vontade satisfao de uma necessidade, seja esta real ou

    fictcia.

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    Imaginar que os contratos seriam fruto de vontade livre e incondicionada, como

    queriam os liberais, nos sculos XVIII e XIX, desdenhar todo o avano das

    cincias que estudam a mente humana, como a psicologia e a psicanlise.

    , portanto, na conveno, calcada numa necessidade, que devemos buscar o

    conceito de contrato. Mas no em qualquer conveno, e sim naquela conforme

    Lei, com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou

    extinguir direitos. Em outras palavras, na conveno, motivada pela necessidade,

    com a finalidade de produzir efeitos jurdicos os mais complexos e dinmicos, que se

    situam os contratos.

    Conveno, para todo efeito, o encontro de duas ou mais pessoas, que convergem

    sua atuao para um objetivo comum. Assim, quando uma pessoa necessita

    comprar e a outra necessita vender um objeto, se ambas convergirem para um

    acerto entre elas, haver conveno e, portanto, contrato. Dizer simplesmente que

    os contratos so fruto de um acordo de vontades, dizer muito pouco, alm de se

    correr o risco de se descambar para um voluntarismo oitocentista cego, que v o

    contrato como um mero fenmeno da vontade. Na verdade, que acordo de vontades

    h, quando uma pessoa toma um nibus urbano, ou requisita a ligao de luz ou

    telefone em sua casa? Seguramente, no h acordo de vontades autnomas, como

    se queria no sculo XIX. H, porm, uma convergncia de atitudes, de aes

    movidas por necessidades. H, pois, conveno.

    O conceito muito amplo, sendo possvel encaixar nele institutos que no so

    essencialmente contratos, pelo menos de carter patrimonial, como o casamento.

    Abrange tambm contratos de Direito Pblico, em que atuam princpios diversos

    daqueles do Direito Privado. Devemos, portanto, buscar definio de Direito Civil

    para o termo contrato.1

    Na busca por definio moderna de contrato, fundamental um breve escorso

    histrico, a fim de constatar que o termo contrato nem sempre quis dizer a mesma

    1 PEREIRA. Instituies de direito civil. 18. ed., v. III, p. 1-4.

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    coisa. Ademais, a viso sistemtica de determinado instituto jurdico no pode

    prescindir de uma abordagem histrica, posto que elementar, sob pena de no

    atingir seus objetivos.

    Por isso, no poderamos estudar os contratos sem a anlise do desenvolvimento da

    teoria contratual.

    Para tanto, tomaremos como ponto de partida o Direito Romano. As razes so

    bvias. Alm da dificuldade de se retrair a pesquisa a pocas mais remotas, o

    Direito Romano a mais importante fonte histrica do Direito nos pases ocidentais,

    e, ainda, a maioria dos institutos e princpios do Direito Civil nos foi legada pelo

    gnio jurdico dos romanos.

    Sabemos, contudo, que o Direito Romano no se apresenta como um todo unitrio,

    mas como a conjugao de vrios sistemas, ou melhor, como um processo evolutivo

    que nasce, desenvolve-se, atinge o apogeu e decai, at compilar-se no Corpus Iuris

    Civilis.5

    H, inclusive, quem afirme que, em razo da constante evoluo daquele sistema,

    no havia um s Direito Romano, mas como que vrios Direitos Romanos, sendo

    que o contrato dos primeiros tempos se apresenta com fisionomia bem diversa da

    que o caracteriza, por exemplo, nos perodos clssico e justinianeu.6

    O termo contrato, no mais antigo Direito Romano, equivalia ao ato pelo qual o credor

    submetia o devedor a seu poder, em virtude do inadimplemento de uma obrigao.7

    Era o ato de contrair (contrahere), no sentido de restringir, apertar.

    Sem adentrar nessas mincias, verifica-se que no sistema romano posterior,

    seguramente a partir de meados da Repblica (perodo que se estende de 510 a.C.

    a 27 a.C.), havia o gnero conventio, no qual se distinguiam as espcies contractus

    e pactum.

    5 AMARAL. Direito civil: introduo. 5. ed., p. 106. 6 CRETELLA JNIOR. Curso de direito romano. 21. ed., p. 245. 7 SERPA LOPES. Curso de direito civil. 7. ed., v. III, p. 14.

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    Os contractus, inicialmente, no podiam existir sem uma exteriorizao de forma, e

    somente trs categorias eram utilizadas: litteris, que exigiam a inscrio material no

    livro do credor; re, que demandavam a tradio efetiva da coisa, e verbis, que se

    validavam com a troca de expresses orais estritamente obrigacionais. Em tais

    categorias, o credor podia exigir o cumprimento da avena atravs de uma ao,

    fator da mais ldima essencialidade, sem o qual no haveria direito, j que este era

    nada, se no fosse munido da faculdade de reclamao em juzo.8 Alis, os

    romanos no concebiam, como ns, a idia de direito subjetivo, mas to-somente a

    de actio. Scialoja muito bem sintetiza esta idia, demonstrando que,

    [...] para los romanos, el concepto del derecho sujetivo, tal como lo entendemos nosotros, no sin grave dificultad de definicin, pero del cual nos servimos a diario, era concepto mucho menos acentuado, mucho menos usual que en el derecho moderno; ellos hablaban mucho ms de acciones y mucho menos de derechos de lo que lo hacemos nosotros. Por ejemplo, nosotros hablamos de los derechos del comprador y de los derechos del vendedor; los romanos, en cambio, hablaban de actio ex empto y de actio ex vendito.9

    Para a formao da obrigao contratual, no bastava o acordo de vontade das

    partes sobre um determinado objeto, era imprescindvel a observncia da forma

    consagrada.

    A razo do formalismo tinha carter religioso e prtico. Os contratos s seriam

    abenoados pelos deuses se seguissem os rituais adequados. Na prtica, porm, as

    razes se deviam pouca e difcil utilizao da escrita, o que levava aos extremados

    rituais orais. Afinal, verba volant, i. e., as simples palavras voam.

    Os pacta, por sua vez, eram celebrados sem qualquer obedincia forma, bastando

    o acordo de vontades. No sendo previstos em lei, no lhes era atribuda a proteo

    da actio, ou seja, se uma das partes no cumpria o prometido, a outra no poderia

    mover-lhe nenhuma ao. As razes para isso, veremos mais adiante.

    8 PEREIRA. Instituies, cit., v. III, p. 3. 9 SCIALOJA. Procedimiento civil romano, p. 98-99.

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    Mais tarde, com a atribuio de ao a quatro pactos de utilizao freqente

    venda, locao, mandato, sociedade , surgiu a categoria dos contratos que se

    celebravam solo consensu, isto , pelo acordo de vontades. Somente existiam esses

    quatro contratos consensuais. Em todos os outros, as partes tinham que observar as

    formalidades previstas.

    Nas palavras de Eugne Petit,

    [...] la regla antigua, que domina an en la poca clsica, y que subsiste an en tiempos de Justiniano, es que el acuerdo de las voluntades, el simple pacto, no basta para crear una obligacin civil. El derecho civil no reconoce este efecto ms que a convenciones acompaadas de ciertas formalidades, cuya ventaja es dar ms fuerza y ms certidumbre al consentimiento de las partes, y disminuir los pleitos encerrando en lmites precisos la manifestacin de voluntad. Consistan, bien en palabras solemnes que deban emplear las partes para formular su acuerdo, bien en menciones escritas; bien, por ltimo, en la remisin de una cosa, hecha por una de las partes a la otra. Estas formalidades llevadas a cabo, venan a ser la causa por la que el derecho civil sancionaba una o varias obligaciones (Ulpiano, L. 7, 4, D., de pactis, II, 14). Sin embargo, se derog esta regla a favor de ciertas convenciones de uso frecuente y de importancia prctica considerable. Fueron aceptadas por el derecho civil, tales como el derecho de gentes las admita, es decir, vlidas por el solo consentimiento de las partes, sin ninguna solemnidad. Cada una de las convenciones as sancionadas por el derecho civil formaba un contrato y estaba designado por un nombre especial. Los contratos en derecho romano son, pues: unas convenciones que estn destinadas a producir obligaciones y que han sido sancionadas y nombradas por el derecho civil. Desde fines de la Repblica, se ha determinado el nmero de los contratos, y se distinguen cuatro clases de ellos, segn las formalidades que deben acompaar a la convencin. 1. Los contratos verbis se forman con la ayuda de palabras solemnes. No citaremos aqu ms que el principal: la estipulacin. 2. El contrato litteris exige menciones escritas. 3. Los contratos re no son perfectos sino por la entrega de una cosa al que viene a hecerse deudor. Son el mutuum o prstamo de consumo, el comodato o prstamo de uso, el depsito y la prenda. 4. Por ltimo, los contratos formados solo consensu, por el solo acuerdo de las partes, son: la venta, el arrendamiento, la sociedad y el mandato. Toda convencin que no figura en esta enumeracin no es un contrato; es un simple pacto que no produce en principio obligacin civil.10

    Sintetizando, os contratos eram convenes que, desde a poca clssica (149-126

    a.C. a 305 d.C.), geravam obrigaes civis por si mesmos, por fora do ius civile. Os

    pactos, por no terem forma prevista em lei, por no fazerem parte da lista de

    contratos, geravam obrigaes naturais, a no ser que fossem acessrios de um

    10 PETIT. Tratado elemental de derecho romano, p. 282.

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    contrato ou recebessem fora do Direito Pretoriano ou de alguma Constituio

    Imperial, quanto a estas, j no perodo ps-clssico (305 a 565).

    Os contratos eram convenes que apenas criavam obrigaes. Para modific-las

    ou extingui-las, celebravam-se pactos. Hoje, denominamos distrato conveno que

    pe fim a um contrato. Alm disso, atribumos-lhe a natureza de contrato. Para os

    romanos, o distrato seria um pacto. O mesmo se diga do que, atualmente,

    chamamos adendos ou aditivos contratuais. Assim, essas convenes, que

    modificavam ou extinguiam obrigaes, eram pactos. Estes pactos eram

    denominados pactos adjetos (pacta adiecta), e a eles que se refere a doutrina, ao

    afirmar que os pactos no geravam aes, mas excees. Ainda hoje, podemos

    afirmar o mesmo. Ora, de regra, um distrato ou um aditivo contratual gera apenas

    exceo. Se celebro um distrato de compra e venda, restituindo a coisa e recebendo

    de volta o sinal, e, mesmo assim, sou acionado pelo vendedor para pagar as

    prestaes restantes, o distrato me servir de base para opor uma exceo contra o

    vendedor. difcil imaginar uma hiptese de ao com base no distrato. O mesmo

    se diga de um aditivo contratual que modifica o vencimento de uma obrigao. Se o

    credor acionar o devedor com base na data antiga, este poder opor uma exceo

    com base no aditivo. Aqui tambm difcil imaginar uma ao a partir desse aditivo

    contratual. Pode-se dizer, portanto, que tanto no Direito Romano quanto no Direito

    atual os pactos (adjetos) s geravam e s geram excees.

    Os pactos adjetos geravam, assim, obrigao civil. Ao lado deles, outros pactos

    tambm geravam obrigaes civis, por assim dizer, principais. Eram os pactos

    legtimos e os pactos pretorianos (pacta legitima/pacta praetoria). Aos pactos

    adjetos, legtimos e pretorianos se dava o nome de pactos vestidos (pacta vestita).

    Um pacto se considerava vestido, gerando obrigao civil, se lhe desse fora o

    pretor (pacta praetoria), se fosse reconhecido por Constituio Imperial (pacta

    legitima) ou se fosse acessrio de um contrato (pacta adiecta). Havia outros pactos,

    chamados nus (nuda pacta), que geravam apenas obrigao natural. Para que

    gerassem obrigao civil era necessrio que se lhes aplicasse a forma de

    estipulao, transformando-os em contrato. A estipulao era uma forma de

    contrato, pela qual uma pessoa se comprometia a pagar certa quantia outra, caso

    o fato, objeto da disputa, se resolvesse a seu favor. O segundo meio de se

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    transformar um pacto nu em contrato, fazendo com que gerasse obrigao civil, era,

    nas convenes de obrigaes bilaterais, uma das partes realizar sua prestao.

    Quando isso ocorria, estava-se diante de contrato real inominado, havendo uma

    prestao adimplida em vista de outra recproca.11 Dessa forma, os pactos nus se

    transformavam em contrato, correspondendo-lhes a devida ao.

    Os outros pactos, os vestidos, geravam obrigao civil, sendo protegidos pela actio,

    se fossem legtimos ou pretorianos, ou pela exceptio, se fossem adjetos.

    Retornando ao tema da forma dos contratos, as concesses ao princpio

    consensualista foram decorrentes das imperiosas necessidades de uma sociedade

    marcadamente mercantil e cresceram a ponto de quase tornar possvel o abandono

    do formalismo. Houve, no entanto, retrocessos, com a rejeio da validade de atos

    puramente abstratos.

    Na Idade Mdia, perduravam as exigncias do Direito Romano. Entretanto, a

    generalizao da prtica dos escribas de fazer constar no instrumento escrito das

    convenes, a pedido dos contratantes, que todas as formalidades tinham sido

    cumpridas, ainda quando no o tivessem sido, desencadeou mudanas. Era a

    abolio indireta da sacramentalidade, pois a simples meno da observncia da

    forma tinha maior importncia que seu cumprimento.12

    Nesse perodo, o contrato comea a se estabelecer como instrumento abstrato, pois

    se confere fora obrigatria s manifestaes de vontade, sem os formalismos

    exagerados do Direito Romano.

    Some-se a isso o costume de se introduzir um juramento, com motivos religiosos, a

    fim de atribuir fora s convenes. Tal prtica valorizou a declarao de vontade e

    o prprio consentimento.

    A Idade Moderna e o incio da Idade Contempornea viram surgir uma nova

    concepo de contrato. O liberalismo congregava a sociedade (economistas, juristas

    11 VAN WETTER. Cours lmentaire de droit romain. 3. ed., t. II, p. 125, 127-128. 12 PEREIRA. Instituies, cit., v. III, p. 8.

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    e polticos) em torno do laissez-faire. O liberalismo no era s doutrina econmica.

    Abrigava fundamentos religiosos (a idia crist do homem como valor supremo,

    dotado de direitos naturais) e fundamentos polticos (oposio ao ancien rgime, por

    demais opressivo).

    A teoria jurdica se assentava sobre alguns dogmas:

    1) oposio entre o indivduo e o Estado, que era um mal necessrio,

    devendo ser reduzido;

    2) princpio moral da autonomia da vontade: a vontade o elemento

    essencial na organizao do Estado, na assuno de obrigaes etc.;

    3) princpio da liberdade econmica;

    4) concepo formalista de liberdade e igualdade, ou seja, a preocupao

    era a de que a liberdade e a igualdade estivessem, genericamente, garantidas em

    lei. No importava muito garantir que elas se efetivassem na prtica.

    Este estado de coisas vem at o final do sculo XIX, incio do sculo XX.

    A exaltao kantiana da vontade criadora do homem fez o Cdigo Civil Francs

    abolir a transcrio e a tradio, passando o simples consenso a ser o meio de

    transmisso da propriedade. Foi tambm por influncia de Kant, segundo Fernando

    Noronha,27 que os pandectistas alemes engendraram a idia de negcio jurdico,

    enquanto manifestao de vontade produtora de efeitos.28

    27 NORONHA. O direito dos contratos e seus princpios fundamentais, p. 63 et seq. 28 Segundo Kant, a razo tem dois usos: um prtico, ligado s aes, e um terico, ligado ao conhecimento. Na Crtica da Razo Pura, Kant demonstra que o uso terico da razo limitado, pois que s pode conhecer o fenmeno no tempo e no espao (esttica), ou seja, o que aparece da coisa e no a coisa em si. A razo prtica , por outro lado, ilimitada, pois que cria suas prprias leis para reger as aes humanas, sejam tais leis morais ou jurdicas. Assim, o objeto da razo prtica conhecido de forma total, uma vez que produzido por ela mesma, enquanto a razo pura nada cria. Da no haver uma esttica transcendental na Crtica da Razo Prtica. Afinal, a Lei no percebida no tempo e no espao, por ser interna, ou seja, criao da vontade ou da razo.

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    Planiol, em 1899, proclamava que a vontade das partes forma obrigao nos

    contratos; a Lei apenas sanciona essa vontade criadora.29

    No final do sculo XIX e no sculo XX, nasce o chamado Estado Social. H muito,

    polticos e economistas haviam abandonado a idia do liberalismo. Os juristas

    continuavam, contudo, apegados idia da autonomia da vontade. No por puro

    conservadorismo, mas por fora do modelo tradicional de contrato, que continuava

    imperando na prtica. Quando a massificao chegou ao campo jurdico-contratual

    que se comeou a rever esses conceitos.

    Assim, temos que o liberalismo e o individualismo resultaram do capitalismo

    mercantilista. Com a Revoluo Industrial, que comea na Inglaterra, j no sculo

    XVIII, a sociedade se transforma. Dois fenmenos importantes ocorrem: a

    urbanizao e a concentrao capitalista, esta conseqncia da concorrncia, da

    racionalizao etc.

    Esses dois fenmenos resultaram na massificao das cidades, das fbricas

    (produo em srie), das comunicaes; das relaes de trabalho e de consumo; da

    prpria responsabilidade civil (do grupo pelo ato de um indivduo) etc.

    A massificao dos contratos , portanto, conseqncia da concentrao industrial e

    comercial, que reduziu o nmero de empresas, aumentando-as em tamanho. Apesar

    disso, a massificao das comunicaes e a crescente globalizao acirraram a

    concorrncia e o consumo, o que obrigou as empresas a racionalizar para reduzir

    custos e acelerar os negcios: da as clusulas contratuais gerais e os contratos de

    adeso.

    Tais inovaes levaram os juristas a um estado de perplexidade. O modelo

    tradicional de contrato estava morrendo, para ceder lugar s novas formas: contratos

    de adeso; contratos regulados, cujo contedo dado pelo legislador; contratos

    necessrios etc.

    29 PLANIOL. Trait lmentaire de droit civil. 3. d., v. II, p. 319-320.

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    Em outras palavras, as pessoas j no contratam como antes. No h mais lugar

    para negociaes e discusses acerca de clusulas contratuais. Os contratos so

    celebrados em massa, j vindo escritos em formulrios impressos.

    Toda essa revoluo mexe com a principiologia do Direito Contratual. Os

    fundamentos da vinculatividade dos contratos no podem mais se centrar

    exclusivamente na vontade, segundo o paradigma liberal individualista. Os contratos

    passam a ser concebidos em termos econmicos e sociais. Nasce a Teoria

    Preceptiva. Segundo esta teoria, as obrigaes oriundas dos contratos valem no

    apenas porque as partes as assumiram, mas porque interessa sociedade a tutela

    da situao objetivamente gerada, por suas conseqncias econmicas e sociais.

    como se a situao se desvinculasse dos sujeitos, nos dizeres de Gino Gorla.30

    Dois outros princpios que buscam fundamentar a obrigatoriedade contratual so o

    princpio da confiana e o da auto-responsabilidade.

    O negcio obrigacional s vincula por ser fenmeno social, realidade objetiva

    tutelada pelo Direito. Os interesses particulares devem estar em harmonia com os

    gerais, como explica a teoria preceptiva.

    O contrato realiza um valor de utilidade social.

    Valores so verdades bsicas, premissas. Segundo Stein e Shand, os valores

    fundamentais da sociedade ocidental seriam trs: ordem (segurana), justia e

    liberdade.31 A eles acrescentamos a dignidade humana. com base nesses valores

    que o contrato intenta promover o bem comum, o progresso econmico e o bem-

    estar social. liberdade, corresponde o princpio da autonomia privada. ordem

    (segurana), o princpio da boa-f. justia, o princpio da justia contratual.

    dignidade do homem, correspondem todos eles e os princpios da dignidade humana

    e da funo social dos contratos. Alguns dos novos princpios so clssicos, que

    receberam nova roupagem. Exemplo o princpio da autonomia privada, que, ao ser

    30 GORLA. Il potere della volont nella promessa come negozio giuridico. In: RODOT, Stefano (a cura di). Il diritto privato nella societ moderna. Bologna: Il Mulino, 1971, passim. 31 NORONHA. O direito dos contratos e seus princpios fundamentais, cit., p. 100-101.

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    relido, adaptado aos tempos modernos, recebe o nome de princpio da autonomia

    privada. Muitos, porm, continuam denominando-o de autonomia da vontade, apesar

    de seu novo perfil.

    O mundo moderno o universo dos contratos. Celebramos contratos desde o

    momento em que nos levantamos at irmos dormir. Se o fenmeno contratual

    deixasse de existir, tambm o deixaria nossa sociedade.

    Nesse universo, destacam-se trs funes primordiais dos contratos: a econmica, a

    pedaggica e, relacionada s outras duas, a funo social.

    A funo econmica dos contratos variada. Os contratos auxiliam no processo de

    circulao da riqueza. por meio de contratos que os produtos circulam pelas vrias

    etapas da produo: da mina fbrica; desta loja, chegando s mos do

    consumidor. Os contratos no s fazem circular as riquezas, mas ajudam a distribuir

    a renda e geram empregos. por meio deles que satisfazemos nossas

    necessidades.

    Tendo em vista a funo pedaggica, contrato meio de civilizao, de educao do

    povo para a vida em sociedade. Aproxima os homens, abate suas diferenas. As

    clusulas contratuais do aos contratantes noo de respeito ao outro e a si

    mesmos, visto que, afinal, empenharam sua prpria palavra. Por meio dos contratos,

    as pessoas adquirem noo do Direito como um todo, pois, em ltima instncia, um

    contrato nada mais do que miniatura do ordenamento jurdico, em que as partes

    estipulam deveres e direitos, atravs de clusulas, que passam a vigorar entre elas.

    Ora, o ordenamento legal nada alm de conjunto de normas abstratas, destinado a

    todo o grupo social. Por meio dos contratos, as pessoas aprendem a lutar pelo

    Direito como um todo, de vez que, lutando por seus direitos contratuais, adquirem a

    viso necessria do funcionamento do ordenamento jurdico.13

    A funo social dos contratos como que uma sntese das duas funes anteriores.

    Os contratos so fenmeno econmico-social. Sua importncia, tanto econmica

    13 JHERING. A luta pelo direito. 10. ed., p. 63.

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    quanto social, salta aos olhos. So meio de circulao de riquezas, de distribuio

    de renda, geram empregos, promovem a dignidade humana, ensinam as pessoas a

    viver em sociedade, dando-lhes noo do ordenamento jurdico em geral, ensinam

    as pessoas a respeitar os direitos dos outros. Esta seria a funo social dos

    contratos: promover o bem-estar e a dignidade dos homens, por todas as razes

    econmicas e pedaggicas acima descritas. A funo no serve apenas para limitar

    o exerccio dos direitos, mas antes de tudo para promover a dignidade humana.

    Diante de tudo isso, no se pode definitivamente definir contrato como simples

    acordo de vontades. No no acordo de vontades que se assenta uma moderna

    definio do fenmeno da contratualidade.

    Assim, podemos dizer que contrato ato jurdico lcito, de repercusso pessoal e scio-econmica, que cria, modifica ou extingue relaes convencionais dinmicas, de carter patrimonial, entre duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperao, visam atender necessidades individuais ou coletivas, em busca da satisfao pessoal, assim promovendo a dignidade humana.

    Tal conveno deve versar sobre matria de cunho patrimonial, econmico. Deve

    revestir carter material, sendo conversvel em dinheiro. Alis, como vimos

    anteriormente, o carter patrimonial da prestao fundamental para o Direito das

    Obrigaes.

    importante frisar, mais uma vez, que a necessidade que impulsiona a vontade

    dos contratantes. Ningum contrata a troco de nada, mesmo que seja para a

    satisfao de necessidade ntima, relacionada caridade, por exemplo. Em outras

    palavras, os contratos no resultam de vontade livre, incondicionada, o que no

    elimina o livre-arbtrio. ele, o livre-arbtrio, que ir distinguir as necessidades reais

    das fictcias e nos levar a contratar ou no, baseados em nossas possibilidades.

    Para que seja regulado pelo Direito Privado, o contrato h de ser celebrado por

    pessoas naturais ou por pessoas jurdicas de Direito Privado; caso contrrio, sairia

    da esfera do Direito Civil e Empresarial, entrando nos domnios do Direito

  • Csar Fiuza

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    Administrativo, que rege os contratos celebrados pelo Estado, contratos estes

    submetidos a princpios um pouco diferentes dos contratos de Direito Privado.

    Tampouco entram em nosso estudo os contratos de trabalho. Embora seja um ramo

    do Direito Privado, o Direito do Trabalho possui princpios prprios, que o afastam do

    Direito Civil e do Direito de Empresa, apesar de recepcionar, com contornos, s

    vezes, prprios, a maioria dos institutos da teoria geral das obrigaes e dos

    contratos.

    Todo contrato deve possuir objetivo jurdico, seja o de adquirir direito, como na

    compra e venda; seja o de resguard-lo, como no seguro; seja o de transferi-lo,

    como na cesso de crdito ou na doao; seja o de conserv-lo, como na renovao

    dos contratos; seja o de modific-lo, como na reviso dos contratos; ou seja,

    finalmente, o de extingui-lo, como no distrato.

    Os direitos e tambm deveres que surgem, se modificam, se resguardam, se

    conservam, se transferem ou se extinguem devem ser visualizados no contexto

    dinmico de uma relao jurdica. Em outras palavras, os contratos so, por

    excelncia, um processo extremamente dinmico, em constante movimento.

    No se deve jamais esquecer o carter dinmico dos contratos, que so fontes de

    relaes obrigacionais que se movimentam, que se transformam no tempo e no

    espao. Sem essa viso de contrato enquanto processo dinmico, no se poderia

    falar em funo social e, muito menos, em funo econmica.

    Alm de dinmica, a relao contratual se processa em cooperao. No se pode

    ver nas partes contratantes inimigos, um desejando destruir o outro. Para o contrato

    chegar a bom termo, deixando todos satisfeitos, fundamental que as partes

    possam exigir cooperao recproca.

    Por fim, vem a Lei dando o necessrio respaldo s partes que tm a segurana de

    que, se contratarem segundo o ordenamento jurdico, tero seus direitos

    assegurados. Afinal, como estudamos, as obrigaes nascem de um fato (no caso,

    um contrato) conjugado com o ordenamento jurdico (norma, Lei).

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    Repetindo, ento, para finalizar, contrato ato jurdico lcito, de repercusso pessoal e scio-econmica, que cria, modifica ou extingue relaes convencionais dinmicas, de carter patrimonial, entre duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperao, visam atender necessidades individuais ou coletivas, em busca da satisfao pessoal, assim promovendo a dignidade humana. BIBLIOGRAFIA AMARAL. Direito civil: introduo. 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar: 2003. CRETELLA JNIOR. Curso de direito romano. 21. ed., So Paulo: 1998. GORLA. Il potere della volont nella promessa come negozio giuridico. In: RODOT, Stefano (a cura di). Il diritto privato nella societ moderna. Bologna: Il Mulino, 1971. JHERING. A luta pelo direito. 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1992. NORONHA. O direito dos contratos e seus princpios fundamentais. So Paulo: Saraiva, 1994. PEREIRA. Instituies de direito civil. 18. ed., v. III, Rio de Janeiro: Forense, 1996. PETIT. Tratado elemental de derecho romano. Buenos Aires: Universidad, 1999. PLANIOL. Trait lmentaire de droit civil. 3. d., v. II, Paris: LGDJ, 1906. SCIALOJA. Procedimiento civil romano. Buenos Aires: Europa-Amrica, 1954. SERPA LOPES. Curso de direito civil. 7. ed., v. III, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. VAN WETTER. Cours lmentaire de droit romain. 3. ed., t. II, Paris: A. Marescq An, 1893.

    Informaes bibliogrficas: FIUZA, Csar. Por uma redefinio da contratualidade. Panptica, Vitria, ano 1, n. 2, out. 2006, p. 125-138. Disponvel em: . Acesso em:

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