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vol. 13 | julho/setembro - 2017Belo Horizonte | p. 1-230 | ISSN 2358-6974

Revista Brasileira de Direito Civil

Revista Brasileira de Direito Civil

RBDCivil

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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO CIVIL

© 2017 Editora Fórum Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecanico, inclusive através de processos xerográficos, de fotocópias ou de gravação, sem permissão por escrito do possuidor dos direitos de cópias (Lei nº 9.610, de 19.02.1998).

Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Luís Cláudio Rodrigues FerreiraPresidente e Editor

Av. Afonso Pena, 2770 – 15º andar – Savassi – CEP 30130-012 – Belo Horizonte/MG – Brasil – Tel.: 0800 704 3737www.editoraforum.com.br / E-mail: [email protected]

Coordenação editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira AraújoCapa: Walter Santos

Impressa no Brasil / Printed in Brazil / Distribuída em todo o Território Nacional

R454 Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. – volume 13, (jul./set. 2017) -. – Belo Horizonte: Fórum, 2017–.

TrimestralISSN 2358-6974

Publicada do v. 1, jul./ set. 2014 ao v. 10, out./ dez. 2016 pelo Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil.

1. Direito Civil. 2. Direito. I. Fórum.

CDD: 342.1 CDU: 347

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Apresentação

A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas no ambito do Direito Civil e de áreas afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e a experiência comparada, que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.

Este volume da RBDCivil é composto das seguintes seções: • Editorial; • Doutrina:

(i) doutrina nacional; (ii) doutrina estrangeira;(iii) jurisprudência comentada; e (iv) parecer;

• Atualidade;• Resenha;• Vídeos e áudios.

Endereço para contato:Rua Primeiro de Março, 23 – 10º andar20010-000 Rio de Janeiro, RJ, BrasilTel.: (55) (21) 2505 3650Fax: (55) (21) 2531 7072E-mail: <[email protected]>.

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DIRETOR

Gustavo TepedinoProfessor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

CONSELHO EDITORIAL

Francisco Infante RuizProfessor Titular de Direito Civil (Direito Privado Comparado) da Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, Espanha.

Gustavo TepedinoProfessor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Luiz Edson FachinProfessor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.

Paulo LôboProfessor Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

Pietro PerlingieriProfessor Emérito da Universita del Sannio, Benevento, Itália. Doutor honoris causa da Universidade do Estado do

Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

COORDENADORAS EDITORIAIS

Aline de Miranda Valverde Terra – Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Professora da Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Ana Carolina Brochado Teixeira - Professora do Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, MG, Brasil.

CONSELHO ASSESSOR

Amanda Guimarães Cordeiro - Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Felipe Schvartzman - Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Francisco de Assis Viégas - Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Lívia Teixeira Leal - Mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Thiago Lins - Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

PARECERISTAS DESTE NÚMERO

Ana Carolina Brochado Teixeira, Centro Universitário UNA, Minas Gerais

César Augusto de Castro Fiuza, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Débora Vanessa Caús Brandão, Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC), São Paulo

Filipe Rodrigues Garcia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Luis Renato Ferreira da Silva, Universidade de São Paulo (USP)

Marilia Pedroso Xavier, Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Suzana Borges Viegas de Lima, Universidade de Brasília (UNB)

Thaís Camara Maia Fernandes Coelho, Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), Minas Gerais

Thamis Ávila Dalsenter Viveiros de Castro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

Wesley de Oliveira Louzada Bernardo, Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim (FDCI), Espírito Santo

Expediente

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Sumário

Editorial ........................................................................................................................ 11

DOUTRINA

DOUTRINA NACIONAL

Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiênciaHeloisa Helena Barboza, Vitor de Azevedo Almeida Junior .................................................17

Introdução ..........................................................................................................181 Da integração a inclusão da pessoa com deficiência ..............................................192 Efeitos da adoção do modelo social de deficiência ................................................243 O reconhecimento como fator indispensável a inclusão ..........................................284 Desafios jurídicos a efetividade da inclusão ..........................................................325 Conclusão ..........................................................................................................36

Para além da “principialização” da função social do contratoCarlos Nelson Konder .......................................................................................................39

1 Introdução ..........................................................................................................392 Pra que serve a função? ......................................................................................403 O modelo da função social da propriedade ............................................................434 A resistência original a função social do contrato...................................................465 A reação de “principialização” da função social do contrato ....................................506 A função social do contrato para além de sua qualificação como princípio ...............557 Conclusão ..........................................................................................................58

A aplicação da suppressio (Verwirkung) no ambito das relações privadasJosé Tadeu Neves Xavier ..................................................................................................61

1 Considerações iniciais: a importancia da tutela da confiança nas relações jurídicas ................................................................................................622 A boa-fé e suas funções no Direito Privado ............................................................633 A suppressio e suas implicações no Direito Negocial .............................................663.1 O conceito de suppressio ....................................................................................663.2 Origem e evolução da aplicação da suppressio nas relações privadas .....................683.3 Pressupostos para a ocorrência da suppressio ......................................................714 A suppressio e figuras jurídicas afins ....................................................................755 A suppressio no Direito Privado brasileiro .............................................................825.1 A supppresio e a cláusula geral do abuso de direito prevista no artigo 187 do Código Civil ....................................................................................................825.2 O artigo 330 do Código Civil como manifestação da suppressio no direito obrigacional ..............................................................................................845.3 A suppressio na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ...............................876 Considerações finais ...........................................................................................90

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Notas sobre a indenização equitativa por danos causados por incapazes: tendência ou excepcionalidade no sistema da responsabilidade civil no Direito brasileiro?Eugênio Facchini Neto, Fábio Siebeneichler de Andrade ....................................................93

Introdução ..........................................................................................................941 Pressupostos para a incidência da responsabilidade civil do incapaz ......................981.1 A figura do incapaz como causador de dano a outrem ............................................981.2 Ausência de meios e de obrigação de reparação por parte dos responsáveis pelo incapaz .....................................................................................................1022 A indenização devida pelo incapaz ......................................................................1062.1 O condicionamento da indenização a vítima pelo dano causado pelo incapaz .........1062.2 O arbitramento equitativo da indenização como exceção ao princípio da reparação integral .............................................................................................109 Considerações finais .........................................................................................113

DOUTRINA ESTRANGEIRA

A responsabilidade civil por dano da morte: uma análise do Direito português e sua (in) aplicabilidade no BrasilCamilla de Araujo Cavalcanti ..........................................................................................119

Introdução ........................................................................................................1201 Epistemologia do dano morte: o direito a vida como fundamento para sua indenizabilidade ..........................................................................................1212 Natureza e titulares do direito a indenização pela perda da vida: uma análise do Direito português ..............................................................................................1282.1 A transmissão da compensação do dano da perda da vida de iuri sucessionis e seus efeitos .................................................................................................1322.2 Companheiros sobrevivos e o direito a indenização .............................................1342.3 A indenização do dano morte aos e dos nascituros ..............................................1363 A indenizabilidade do dano morte no Brasil: um contributo do Direito português ....1374 Conclusão ........................................................................................................138

JURISPRUDÊNCIA COMENTADA

Socioafetividade na filiação: análise da decisão proferida pelo STJ no REsp 1.613.641/MGRicardo Lucas Calderón .................................................................................................141

1 Descrição do caso ............................................................................................1422 Leitura jurídica da afetividade .............................................................................1453 Direito de filiação x direito de conhecimento da ascendência genética ...................1504 Considerações finais .........................................................................................153

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PARECER

Efeitos do inadimplemento em relação triangular coligada entre clube de futebol, patrocinadora e atletas. A responsabilidade post factum finitum e a chamada perda superveniente da causa do contratoAnderson Schreiber ........................................................................................................157

1 Consulta ..........................................................................................................1572 Relação contratual triangular entre clube de futebol, patrocinadora e atletas – Contratos coligados – Interpretação dos instrumentos contratuais – Correspectividade entre a obrigação de pagamento a título de direito de imagem e o direito de participação econômica em operações futuras e eventuais de transferência do jogador ....................................................................................1603 Efeitos do inadimplemento da obrigação de pagamento a título de direito de imagem em relação ao clube. Boa-fé objetiva e responsabilidade post pactum finitum ................................................................................................1664 Inexigibilidade do direito a participação econômica na transferência de jogadores. Proibição de comportamento contraditório e suppressio. Implemento deliberado de condição a luz do art. 129 do Código Civil: alienação que se reputa não verificada .........................................................................................................1715 Perda superveniente de causa do direito a participação da patrocinadora. Assunção pelo clube do custo econômico relativo a remuneração do jogador. Quebra do sinalagma no regramento pluricontratual das partes. Interpretação do contrato de cessão parcial de direitos econômicos ..............................................1766 Responsabilidade civil da patrocinadora. Pressupostos do juízo de responsabilização: conduta culposa, nexo de causalidade e dano. Liquidação dos danos patrimoniais e morais .......................................................................1827 Resposta aos quesitos ......................................................................................188

ATUALIDADE

A cláusula resolutiva expressa ipso facto e a crise da empresa: parametros para exame da legitimidade da resolução do contrato em caso de insolvência do contratanteVictor Willcox ...............................................................................................................197

1 Efeitos da recessão econômica sobre os contratos business-to-business ..............1972 A cláusula resolutiva expressa como instrumento de repartição de riscos entre os contratantes ........................................................................................1993 O risco de insolvência, falência e recuperação judicial ou extrajudicial ...................2054 Possíveis parametros para ponderação dos interesses colidentes ........................2145 Conclusão ........................................................................................................215

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RESENHA

“Multiparentalidade e as novas relações parentais”, de Maria Goreth Macedo ValadaresThais Câmara Maia Fernandes Coelho ............................................................................219

VÍDEOS E ÁUDIOS

Prof. Stefano Rodotà ......................................................................................................225

SUBMISSÃO DE TRABALHOS ....................................................................................227

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11Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 11-13, jul./set. 2017

Editorial

Stefano Rodotà e sua obra imortal

O falecimento do Professor Stefano Rodota, em 23 de junho de 2017, re-presenta perda incalculável não apenas para o direito civil, disciplina da qual foi Professor Emérito da Faculdade de Direito La Sapienza, em Roma. Um dos maio-res intelectuais italianos do seu tempo, humanista, cientista político, filósofo, literato, há 60 anos Rodota produzia, ininterruptamente, contribuições decisivas para a compreensão da evolução do direito e da sociedade contemporanea. Figura humana extraordinária, de simplicidade desconcertante, Rodota preservava sem-pre sua voz gentil, mansa e rouca nos debates mais acalorados que, ao longo de sua vida, o manteve sempre, com coerência impressionante, ao lado dos vulne-ráveis, em busca da igualdade social, da solidariedade e da dignidade humana. Sua obra certamente permanecerá como guia e agenda para muitas gerações de estudiosos.

Rodota foi aluno de Emilio Betti, Iermolo, Asquini e Rosario Nicoló. Leitor voraz, apaixonado por Balzac, escreveu seus textos dogmáticos mais importantes, densos e profundos, dedicados a responsabilidade civil, as fontes de integração contratual e a propriedade, antes dos 30 anos de idade. Dentre tais estudos, des-taca-se sua contribuição seminal Note critiche in tema di proprietà, redigida aos 27 anos, e que integraria a coletanea de escritos sobre a propriedade reunidos em obra clássica por ele intitulada, em fórmula eloquente, Il terribile diritto, publicada em 1981. Nesta obra, ele analisa criticamente a “máquina da propriedade” que corre “a toda velocidade em um mundo construído em uma única dimensão, do mercado como lei natural e da redução a economia de todas as relações sociais”. Em tal perspectiva, considera o individualismo proprietário desproporcional que solapa qualquer “ideia moral de solidariedade”. Demonstra, ainda, que a função social não poderia ser considerada simplesmente como limite externo imposto pelo legislador (dimensão quantitativa), tratando-se de elemento de conformação da propriedade (dimensão qualitativa), capaz de alterar o fundamento de atribui-ção do domínio.

Pode-se dizer que toda a vasta produção científica do Professor Stefano Rodota tem por fio condutor a pessoa humana e sua tutela constitucional, a partir da convicção de que “o direito é sempre um confronto com os dados da realida-de”, a qual incorpora a totalidade das normas, não sendo consentido ao intérprete

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EDITORIAL

apartar o sistema jurídico como corpo técnico em si mesmo justificado. Como anotou Rodota, é grave o equívoco de se considerar a tarefa do jurista afastada das ciências sociais, de tal modo que caberia ao legislador tão somente a tarefa de racionalizar, no corpo normativo, o conjunto de transformações ocorridas na sociedade, cuja análise, no entanto, estaria a cargo dos historiadores, filósofos, economistas e sociólogos. Como se da tempestade da história se chegasse a bonança para, só então, ser convocado o jurista a atuar. Em imagem eficiente, projetou a figura de um legislador que apenas chancela as transformações sociais sem as protagonizar: nada além de um notário da história.

O Professor Rodota foi pioneiro também no estudo das novas tecnologias e de seu impacto para o direito. Publicou diversas obras importantes nesse domí-nio, tendo sido Autorità Garante (Autoridade de Garantia) da privacidade da Itália e, posteriormente, da Europa. São incontáveis as suas contribuições doutrinárias e normativas para a tutela da privacidade em perspectiva dinamica, isto é, não mais como o direito de não ser molestado mas como direito de autogestão das próprias informações pessoais. Em entrevista belíssima publicada pela RTDC (vol. 11), que tive o privilégio de realizar juntamente com Danilo Doneda e Luciana Cabral, Rodota lembrou que, assim como a ética salvou a filosofia, a tecnologia salvou agora o direito civil, obrigando os civilistas e toda a sociedade a darem-se conta das novas exigências regulatórias para a proteção da pessoa humana, cada vez mais exposta a riscos e a danos.

Na esteira de tais reflexões, três temas não poderiam deixar de ser ainda registrados. O primeiro deles, a comovente construção de espaços de liberdade existencial longe da interferência do direito. Tais espaços não significam ausên-cia de direito mas a presença de liberdade genuína, promovida pela legalidade constitucional, que afasta a ingerência legislativa. Liberdade para a construção do próprio destino há de ser assegurada em matérias como uniões afetivas, pla-nejamento familiar e reprodutivo: “Quando se atinge o núcleo duro da existência, a necessidade de respeitar a pessoa humana como tal, estamos diante do inde-cifrável (indecidibile). Nenhuma vontade externa, ainda que fosse aquela consen-sualmente (coralmente) expressa por todos os cidadãos ou pelo Parlamento a unanimidade, pode tomar o lugar da vontade do interessado”.

A segunda temática são os bens comuns, introduzida de modo pioneiro por Rodota no debate no ambito da civil law, e que hoje se encontra na ordem do dia, propugnando modelo oposto a propriedade (pública e privada), pelo qual bens essenciais a efetivação de direitos fundamentais, como a água, as florestas, a saúde, o conhecimento, venham a ser retirados do comércio (lógica proprietária), sendo postos a disposição da sociedade, assim como todo o acervo considera-do patrimônio da humanidade. Finalmente, como desdobramento de sua preo-cupação com a tutela da pessoa constitucionalizada, a solidariedade como elo

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EDITORIAL

axiológico de todo o sistema, tema de seu livro de 2014 (Solidarietà: un’utopia necessaria), em que Rodota proclama: “somente a presença efetiva de sinais da solidariedade permite continuar a definir democrático um sistema. A experiência histórica nos mostra que, se os tempos se tornam difíceis para a solidariedade, se tornam difíceis também para a democracia”.

Das muitas lições que o Professor Rodota nos deixa, encontra-se a inquie-tude que o acompanhou até os 84 anos, e que o manteve permanentemente dis-posto a sair da zona de conforto intelectual para, com ideias precursoras, buscar construir o direito vivo, forjado a partir das necessidades concretas da pessoa humana, em que igualdade e solidariedade sejam os alicerces de transformação social. Oxalá sejamos protagonistas desse movimento do qual Rodota foi o princi-pal artífice, esconjurando-se definitivamente do jurista contemporaneo o papel de notário da história.

G.T.

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17Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017

RECONHECIMENTO E INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

RECOGNITION AND INCLUSION OF DISABLED PEOPLE

Heloisa Helena BarbozaProfessora Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Doutora em Direito pela UERJ. Doutora em Ciências pela ENSP/FIOCRUZ. Advogada. Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (aposentada).

Parecerista e Árbitra em Direito Privado.

Vitor de Azevedo Almeida JuniorDoutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(UERJ). Professor Assistente do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/UFRRJ). Professor dos cursos de especialização

do CEPED-UERJ, PUC-Rio e EMERJ. Advogado.

Resumo: A Constituição da República refere-se em poucos dispositivos as pessoas com deficiência, os quais procuram garantir sua integração a vida comunitária. A partir de 2008 instaurou-se inovador tratamento constitucional da questão, que não só passa a incluir-se dentre os direitos humanos, como a ter como foco a plena e efetiva participação e inclusão dessas pessoas na sociedade, como decorrência da adoção do modelo social de deficiência. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) estabeleceu diversos instrumentos para implementação do processo de inclusão constitucionalmente determinado. Constata-se, porém, que o reconhecimento, como necessidade hu-mana vital, constitui elemento essencial para que se efetive a exigida inclusão social. Cabe ao Direito promover a efetivação desse elemento de inclusão. O presente artigo analisa o reconhecimento sob essa ótica e os desafios jurídicos daí resultantes.

Palavras-chave: Pessoas com deficiência; Reconhecimento; Inclusão; Modelo social.

Sumário: Introdução – 1 Da integração a inclusão da pessoa com deficiência – 2 Efeitos da adoção do modelo social de deficiência – 3 O reconhecimento como fator indispensável a inclusão – 4 Desafios jurídicos a efetividade da inclusão – 5 Conclusão

Abstract: The Brazilian Federal Constitution refers to people with disabilities in only a few Articles, who seek to ensure their integration in the community life. As of 2008, a new constitutional treatment of the issue was introduced, which not only made entire issue formally part of human rights, but also focused specifically on the full and effective participation and inclusion of such group of people in society, as a result of the adoption of the social model of disability. The Statute of the Person with Disabilities (Law n. 13.146/2015) established several norms implementing the constitutionally determined process of social inclusion. Recognition, however, as a vital human need, is an essential element to ensure the required social inclusion. It is due by the competent authorities to promote the effectiveness of this element of inclusion. This article analyzes the recognition from this point of view and the resulting legal challenges.

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HELOISA HELENA BARBOZA, VITOR DE AZEVEDO ALMEIDA JUNIOR

Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017

Keywords: Disabled people; Recognition; Inclusion; Social model.

Summary: Introduction – 1 From integration to the inclusion of the person with disabilities – 2 Effects of adopting the social model of disabilities – 3 Recognition as an indispensable factor for inclusion – 4 Legal challenges to the effectiveness of inclusion – 5 Conclusion

Introdução

A questão da deficiência humana não recebeu atenção maior do legislador constituinte de 1988, não obstante tenha este contemplado algumas situações de vulneração, como as da infancia, adolescência e envelhecimento, conferindo- lhes proteção especial. Os dispositivos dedicados as pessoas com deficiência procuram dar-lhes proteção no trabalho e tem feição assistencialista, voltada a habilitação e reabilitação para fins de sua integração a vida comunitária. Contudo, a incorporação a ordem constitucional brasileira da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, por força do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, revolucionou o tratamento da questão, ao colocá-la no patamar dos direitos humanos e ao adotar o denominado modelo social de deficiência.

Os fortes impactos da Convenção de 2008 no ordenamento jurídico só foram sentidos efetivamente após a edição da Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – também de-nominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD). Destinado expressamen-te a assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cidadania, o EPD cria os instrumentos necessários a efetivação dos di-tames constitucionais, dentre os quais se inclui profunda alteração do regime de capacidade jurídica, previsto no Código Civil, cujas consequências se alastram praticamente por todo ordenamento jurídico.1

Embora tenha o EPD largo alcance, atingindo a um só tempo diversas norma-tivas infraconstitucionais, constata-se que sua efetividade está vinculada ao reco-nhecimento, como concebido por teóricos contemporaneos, como Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. Na verdade, o reconhecimento, nessa perspectiva

1 Sobre o assunto permita-se remeter a BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. A capacidade civil a luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas – Convenção sobre os di-reitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 249-274. Cf., ainda, BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. A (in)capacidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual e o regime das invalidades: primeiras reflexões. In: EHRHARDT JR., Marcos (Org.). Impactos do novo CPC e do EPD no direito civil brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 205-228.

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RECONHECIMENTO E INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017

filosófica, constitui elemento integrante e necessário do processo de inclusão da pessoa com deficiência. Sem o reconhecimento social, as determinações cons-titucionais e sua regulamentação legal correm o risco de se tornarem normas programáticas, o que perverteria o objetivo central do modelo social.

Assim sendo, a interpretação do EPD e, principalmente, sua aplicação devem, sempre que possível, ter função promocional do reconhecimento social. Sob essa perspectiva, muitos são, sem dúvida, os desafios jurídicos a serem enfrentados. A proposta deste trabalho é analisar, ainda que brevemente, o conceito filosófico do reconhecimento em face da trajetória da questão da deficiência no Brasil, para demonstrar sua importancia no processo de inclusão social da pessoa com defici-ência, como forma de contribuir para identificação e enfrentamento dos desafios jurídicos que já estão postos pela Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência.

1 Da integração à inclusão da pessoa com deficiência

Merece sempre releitura e reflexão o constante do Preambulo da Constituição da República,2 no qual resta expresso ser o Brasil um Estado Democrático, des-tinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O mesmo deve ser dito em relação a cidadania e a dignidade da pessoa humana, dois dos fundamentos da República, a teor do seu art.1º, incisos II e III, respectivamente.

Como já assinalou o STF, o Preambulo contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional, devendo a sociedade se organizar com obser-vancia dos mesmos, para consecução dos fins ali preconizados. De acordo com a doutrina, deve o Estado garantir tais valores, não apenas de modo abstrato, mas através de ações em favor de sua efetiva realização, de seu “exercício”, em

2 Desde 1988, indaga-se: o Preambulo faz parte da Constituição da República? Conforme Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, o conjunto de afirmações ali contidas são palavras do constituinte que externam os valores e princípios fundamentais que serão tratados no texto constitucional. Não obstante, de acordo com os mencionados autores, há quem o considere juridicamente irrelevante. O Preambulo constitui “o título de legitimidade da Constituição, quer quanto a sua origem, quer quanto ao seu conteú-do (legitimidade constitucional material)”, segundo José Joaquim Gomes Canotilho, citado pelos autores. Parece inegável sua função de auxiliar na interpretação dos dispositivos constitucionais, embora não pre-valeça sobre os mesmos, os quais como assinalado, retomam e discorrem sobre o ali contido (BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 408-409). Doutrina mais recente igualmente nega força normativa autônoma ao Preambulo, mas igualmente reconhece a possibilidade de ser “empregado como reforço argumentativo ou diretriz her-menêutica” (SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 363).

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direção dos destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico.3

Em uma sociedade pluralista, contudo, a probabilidade de desconhecimento, invisibilidade ou mesmo de desrespeito as diferenças e vulnerabilidades, é fato que não escapou da atenção do legislador constituinte, que contemplou desde logo alguns grupos com normas próprias. Nesse sentido, o elenco dos direitos fundamentais constantes da Lei Maior reafirma serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo vedada qualquer forma de tratamento desumano ou degradante, mas proíbe particularmente qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 5º, III e 6º, XXXI).

As pessoas com deficiência, além dos incisos já citados, receberam trata-mento na Constituição de 1988, no que respeita: a reserva de percentual dos cargos e empregos públicos (art. 37, VIII); a adoção de requisitos e critérios di-ferenciados para a concessão de aposentadoria (art. 40, §4º, I e 201, §1º); a assistência social com o objetivo de habilitação, reabilitação e promoção de sua integração a vida comunitária (art. 203, IV); a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, desde que comprovem não possuir meios de prover a própria ma-nutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (art. 203, V); a garantia de atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208, III); a garantia de acesso adequado a logradouros e edifícios de uso público e a veículos de transporte coletivo, a depender de dispo-sições legais infraconstitucionais (art. 227, §2º e 244).

Não obstante sua inegável importancia, tais disposições têm feição assis-tencial e se encontram voltadas para a integração das pessoas com deficiência a vida comunitária. O exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança e o bem-estar dessas pessoas careciam, porém, de outras medidas mais efetivas para seu pleno desenvolvimento individual.

Mais do que integrar é preciso incluir as pessoas com deficiência na so-ciedade. Essa constatação foi feita desde a década de 1990, especialmente no campo da Educação, no qual as pessoas com deficiência eram designadas como “pessoas com necessidades especiais” (PNE), expressão que traduz a ideia de integração que orientava a época o tratamento da questão.

Como esclarecem José Francisco Chicon e Jane Alves Soares, em meados do século XX (1950), houve um movimento que tendia a aceitar as pessoas, então

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, julg. em 8 mai.2008, publ. 17 out. 2008. Disponível: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/constituicao.asp>. Acesso em: 16 jan. 2017.

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denominadas “portadoras de deficiência”, para integrá-las o “tanto quanto possí-vel” a sociedade. Sob essa ótica, era necessário criar condições de vida para que a pessoa com deficiência se adequasse as condições normais da sociedade em que vivia. Pensada inicialmente para as pessoas com deficiência intelectual ou men-tal, a ideia se expandiu para todas as pessoas com “necessidades especiais”, consagrando-se assim o princípio da normalização, o qual tornaria “acessíveis as pessoas socialmente desvalorizadas condições e modelos de vida análogos aos que são disponíveis de um modo geral ao conjunto de pessoas de um dado meio ou sociedade”.4

Por meio da integração buscava-se o fim da prática de exclusão social que atingiu durante séculos as pessoas com deficiência. A exclusão significava o ba-nimento total dessas pessoas de qualquer atividade social, por serem considera-das inválidas, incapazes de trabalhar, portanto sem utilidade para a sociedade. O processo de integração objetivava incorporar física e socialmente as pessoas com deficiência e oferecer-lhes os instrumentos existentes para o exercício da cidadania. Sem embargo desse objetivo, o qual tinha sem dúvida propósitos bem- intencionados, verifica-se que a integração dependia da capacidade de adaptar-se ao meio, de superar as barreiras físicas, programáticas e atitudinais presentes na sociedade que permanecia inerte.5 Nesta perspectiva, as pessoas com deficiência seriam especiais e deveriam se “normalizar” o quanto possível, vale dizer, se adaptar a “normalidade”. Essa noção transparece do disposto no art. 203, IV, da Constituição da República, acima citado.

Em 1994 houve mudança de perspectiva em matéria de Educação voltada para a inclusão em lugar da integração, assumindo-se que “as diferenças huma-nas são normais e que, em consonancia com a aprendizagem de ser adaptada as necessidades da criança, ao invés de se adaptar a criança as assunções pré- concebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de aprendizagem”.6

A inclusão, embora não seja incompatível com a integração, dela se distin-gue por chamar a sociedade a ação, isto é, por exigir que a sociedade se adapte

4 CHICON, José Francisco; SOARES, Jane Alves. Compreendendo os Conceitos de Integração e Inclusão. Disponível: <http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/links-uteis/acessibilidade-e-inclusao/textos/compreendendo-os-conceitos-de-integracao-e-inclusao/>. Acesso em: 10 jan. 2017.

5 CHICON, José Francisco; SOARES, Jane Alves. Compreendendo os Conceitos de Integração e Inclusão. Disponível: <http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/links-uteis/acessibilidade-e-inclusao/textos/compreendendo-os-conceitos-de-integracao-e-inclusao/>. Acesso em: 10 jan. 2017.

6 Em 1990, aconteceu a Conferência Mundial sobre Educação para Todos e, em junho de 1994, na Espanha, ocorreu a Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade. Nesta conferência reuniram-se mais de 300 representantes de 92 governos e 25 organizações internacionais, sendo firmada a Declaração de Salamanca, sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, sendo assumida nova perspectiva, conforme item 4 da Declaração. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2017.

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para acolher as pessoas com deficiência. De acordo com Romeu Kazumi Sassaki, a inclusão pode ser conceituada como:

(...) o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades es-peciais e, simultaneamente estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos.7

Diferentemente da integração, a inclusão institui a inserção de uma forma mais radical, completa e sistemática, cuja meta primordial é a de não deixar nin-guém no exterior do ensino regular, desde o começo. As necessidades de todos os alunos devem ser atendidas por um sistema educacional que é estruturado em virtude dessas necessidades. “A inclusão causa uma mudança de perspectiva educacional, pois não se limita a ajudar somente os alunos que apresentam difi-culdades na escola, mas apoia a todos: professores, alunos, pessoal administra-tivo, para que obtenham sucesso na corrente educativa geral”.8

Segundo Romeu Kazumi Sassaki, “o pano de fundo do processo de inclusão é o Modelo Social da Deficiência”, que requer se entenda a questão da deficiência por outra ótica. De acordo com o autor, “para incluir todas as pessoas, a socie-dade deve ser modificada a partir do entendimento de que ela é que precisa ser capaz de atender as necessidades de seus membros”.9 Destaca o autor, em fins do século XX, que durante o período de transição entre a integração e a inclusão é inevitável a utilização de ambos os termos, ainda que com sentidos distintos, ou seja, para indicar as diferentes situações por eles designadas.10

A trajetória da integração para a inclusão é bem identificada na área da Educação e muito auxilia a compreensão da mudança de perspectiva no tratamen-to da deficiência. Contudo, o “ponto de mutação” na matéria pode ser identificado na adoção pela Assembleia Geral da ONU, em 13 de dezembro de 2006, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD).11

7 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997, p. 41.8 MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Ser ou estar, eis a questão: explicando o déficit intelectual. Rio de Janeiro:

WVA, 1997, p. 145.9 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos, cit., p. 41.10 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos, cit., p. 43.11 A Convenção foi adotada em 13.12.2006 (A/RES/61/106) e aberta para assinatura em 30.03.2007. Entrou

em vigor em 03.05.2008. Sobre a Convenção ver: <https://www.un.org/development/desa/disabilities/convention-on-the-rights-of-persons-with-disabilities/the-10th-anniversary-of-the-adoption-of-convention-on-the-rights-of-persons-with-disabilities-crpd-crpd-10.html#background>. Acesso em: 12 jan. 2017.

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Trata-se da primeira convenção do século XXI sobre direitos humanos e a oitava da ONU. De início, há três destaques que devem ser feitos em relação a Convenção: a) sua elaboração contou com significativa participação da sociedade civil, no-tadamente de Organizações Não Governamentais (ONGs), e representações de pessoas com deficiência; b) seu propósito é proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente, portanto, inscrever a questão da deficiência na pauta dos direitos humanos; c) a franca adoção do “modelo social” de deficiência, o que altera total e profundamen-te o entendimento e o tratamento legislativo da matéria.

Um dos primeiros reflexos da nova perspectiva adotada se encontra no Manual elaborado em 2007 pelo Ministério do Trabalho e Emprego, anterior a ratificação da Convenção pelo Brasil. Embora tivesse como objetivo facilitar o cumprimento das normas relativas a cotas obrigatórias de trabalhadores com de-ficiência, o Manual visava expressamente a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Em sua apresentação se reconhece expressamente que o processo de exclusão, historicamente imposto as pessoas com deficiência, deve-ria ser superado por intermédio da implementação de políticas afirmativas e “pela conscientização da sociedade acerca das potencialidades desses indivíduos”.12 O Manual, mesmo tendo sido criado na fase de transição e orientado pelo processo de integração, já considerava a sociedade como parte do processo de inclusão.

Indispensável destacar que deficiência não deve ser tratada como uma ques-tão de minorias. De acordo com o relatório mundial sobre deficiência, 15% da po-pulação mundial, cerca de um bilhão de pessoas, tem algum tipo de deficiência.13 Em 2010, no Brasil cerca de 24% da população, algo em torno de 46 milhões de pessoas,14 se enquadravam nessa categoria. Sobre o assunto, bastante significa-tivo o que afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS):

A deficiência é parte da condição humana – quase todos nós estaremos temporária ou permanentemente incapacitados em algum momento da vida, e aqueles que alcançarem uma idade mais avançada experimen-tarão crescentes dificuldades em sua funcionalidade. A deficiência é

12 A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. 2. ed., Brasília: MTE, SIT, 2007.13 Dados que tomam como base as estimativas da população mundial de 2010. Informações extraídas do

Relatório da Organização Mundial de Saúde (WHO) sobre pessoas com deficiência. Tradução disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/RELATORIO_MUNDIAL_COMPLETO.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2015.

14 Disponível: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-06-29/pessoas-com-deficiencia-repre sentam-24-da-populacao-brasileira-mostra-censo>. Acesso em: 10 jan. 2017.

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complexa, e as intervenções para superar as desvantagens associa-das a deficiência são múltiplas e sistêmicas – variando de acordo com o contexto.15

2 Efeitos da adoção do modelo social de deficiência

O Brasil aderiu a Convenção em 2007, a qual foi ratificada pelo Congresso Nacional em 09 de julho de 2008, conforme Decreto Legislativo nº 186, e pro-mulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Já se encontra desde então formalmente incorporada, com força, hierarquia e eficácia constitucionais, ao plano do ordenamento positivo interno do Estado brasileiro, nos termos do art. 5º, §3º, da Constituição Federal.

Como já salientado, a Convenção deve ser considerada um marco histó-rico na evolução do entendimento destinado a deficiência, ao configurá-la sob perspectiva inédita. Convém lembrar que o entendimento da deficiência16 adotou através dos séculos, pelo menos, três modelos distintos. O primeiro, designado “modelo moral”, vigente na antiguidade, foi cunhado sob o viés bíblico, designado por Agustina Palacios de “modelo da prescindibilidade”, o qual se caracteriza por uma justificação religiosa da deficiência e pela percepção de que a pessoa com deficiência nada tem a contribuir para a comunidade, é um indivíduo improdutivo, verdadeira carga a ser arrastada pela família ou pela sociedade. Nessa visão, as causas da deficiência são um castigo dos deuses por uma falha a moral, um pe-cado cometido pelos pais da pessoa com deficiência ou uma advertência quanto a proximidade de uma catástrofe.17

15 Dados que tomam como base as estimativas da população mundial de 2010. Informações extraídas do Relatório da Organização Mundial de Saúde (WHO) sobre pessoas com deficiência. Tradução disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/RELATORIO_MUNDIAL_COMPLETO.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2016.

16 Adota-se aqui o entendimento de SASSAKI, Romeu Kazumi. Deficiência Mental ou Intelectual? Doença ou Transtorno Mental? Atualizações semanticas na inclusão de pessoas. Revista Nacional de Reabilitação, São Paulo, ano IX, n. 43, mar./abr. 2005, p. 9-10. Segundo o autor: “Consideremos, em primeiro lugar, a questão do vocábulo deficiência. Sem dúvida alguma, a tradução correta das palavras (respectivamente, em inglês e espanhol) “disability” e “discapacidad” para o português falado e escrito no Brasil deve ser deficiência. Esta palavra permanece no universo vocabular tanto do movimento das pessoas com deficiência como dos campos da reabilitação e da educação. Trata-se de uma realidade terminológica histórica. Ela denota uma condição da pessoa resultante de um impedimento (“impairment”, em inglês). Exemplos de impedimento: lesão no aparelho visual ou auditivo, falta de uma parte do corpo, déficit intelectual”. Disponível: <http://www.planetaeducacao.com.br/portal/impressao.asp?artigo=1321>. Acesso em: 15 jan. 2017.

17 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Cermi. Madrid: Cinca, 2008, p. 37.

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O segundo, que decorre dos padrões científicos da modernidade, designado “modelo médico”, encara a deficiência como condição patológica, de natureza individual. Desse modo, a pessoa deveria ser tratada através de intervenções médicas, ser “reparada”, para tornar-se o quanto possível “normal”. Esse modelo, denominado “modelo reabilitador”, tem como características principais a substi-tuição da divindade pela ciência e a admissão da possibilidade de algum aporte para a sociedade por parte da pessoa com deficiência, na medida em que sejam “reabilitadas” ou “normalizadas”. A pessoa com deficiência poderia tornar-se “ren-tável” socialmente desde que conseguisse assemelhar-se as demais pessoas vá-lidas e capazes, o máximo possível. As deficiências, a luz da ciência, decorrem de causas naturais e biológicas e são situações modificáveis, havendo possibilidade de melhoramento da qualidade de vida das pessoas afetadas. Nessa perspectiva, desenvolveram-se os meios de prevenção, tratamento e reabilitação, que acaba-ram vinculados a compreensão de integração,18 como, aliás, se vê do art. 203, IV, da Constituição brasileira, acima citado.

Se, por um lado, os tratamentos médicos permitiram melhor qualidade de vida e maior sobrevivência principalmente para as crianças, por outro o foco se voltava para as funções que as pessoas com deficiência não podem realizar, sen-do muito subestimadas suas aptidões. Se isso não ocorresse, muitas pessoas com deficiência estariam plenamente aptas a trabalhar. A subestimação gera uma atitude paternalista, centrada nos déficits dessas pessoas (e não em suas poten-cialidades), consideradas com menos valor do que as demais (válidas e capazes). Em consequência, sua sobrevivência depende da seguridade social e do emprego protegido, que seriam em muitos casos dispensáveis se não houvesse essa dis-criminação pela sociedade. Não obstante a assistência social, as vicissitudes do modelo anterior perduram e muitas pessoas com deficiência se tornam objeto de diversão, como única opção para sobreviver.19

Esse modelo reabilitador, a despeito dos benefícios que pode proporcionar, foi alvo de críticas especialmente na década de 1960, em razão da “obstinação” em realizar intervenções para tornar o indivíduo “normal”. A discriminação, contu-do, na maioria das vezes se mantinha e, principalmente, o ambiente que o cercava permanecia intacto: o problema continuava sendo da pessoa com deficiência e a sociedade se mantinha inerte e imutável.

Este o cenário ainda existente quando da aprovação do EPD em 2015, lei elaborada sob os ditames da CDPD, vale dizer das normas constitucionais sobre os direitos das pessoas com deficiência, e a luz do modelo social estampado em seu Preambulo, segundo o qual:

18 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 67. 19 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 68.

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e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas as atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Nestes expressos termos se inicia a implementação do modelo social no Brasil. Como relata Agustina Palacios, o novo modelo surge em fins da década de 1970, nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde existia ampla tradição de campanhas políticas por direitos civis, como resultado do ativismo das próprias pessoas com deficiência, principalmente as que se encontravam em instituições residenciais, que não mais admitiam serem consideradas como “cidadãos de se-gunda classe”. As atividades dessas pessoas impulsionaram mudanças políticas que reorientaram a atenção para o impacto das barreiras sociais e ambientais, como o transporte, a falta de acesso a prédios, as atitudes discriminatórias e os estereótipos culturais negativos que as tornavam inválidas. A participação política das pessoas com deficiência e suas organizações abriu um novo caminho na área dos direitos civis e de leis antidiscriminação.20

O emergente “movimento de direitos das pessoas com deficiência” ganhou força ao conjugar-se com a luta por direitos civis das pessoas negras e com as ações políticas de massas. Além disso, reproduziu as “pedras angulares” da so-ciedade americana – capitalismo de mercado, independência e liberdade política e econômica – com foco no movimento de “vida independente”. Acentuaram-se, em consequência, o apoio mútuo, a “desmedicalização” e a “desinstitucionali-zação”, que se opunham ao domínio profissional e a provisão burocrática dos serviços sociais e sua escassez, quando se demandavam oportunidades para que as pessoas com deficiência desenvolvessem seus próprios serviços no mercado, que incluíam a reabilitação orientada para e por seus próprios objetivos, métodos e direção. O controle passaria para o consumidor desses serviços, em claro con-traste com os métodos tradicionais dominantes. Paralelamente, no Reino Unido, o movimento se concentrou em mudanças na política social e na legislação de direitos humanos, mobilizando-se inicialmente contra a categorização tradicional como um grupo vulnerável necessitado de proteção.21 O movimento reivindicava, ainda, o direito de definir suas próprias necessidades e serviços prioritários e se proclamava contrário a dominação tradicional dos provedores de serviços. Como assinala Agustina Palacios, a despeito das diferenças relativas a sua origem e

20 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., pp. 106-107. 21 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., pp. 107-108.

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justificação, os modelos inglês e norte-americano apresentavam semelhanças e muito influíram no ambito internacional, podendo o movimento de vida indepen-dente ser considerado o antecedente imediato do modelo social, que seguiu seu próprio rumo.22

O dispositivo do Preambulo da CDPD acima transcrito contém os elementos que configuram o novo modelo. Conforme Romeu Kazumi Sassaki, os problemas das pessoas com deficiência não estão nelas tanto quanto estão na sociedade, que é chamada em razão dos problemas que cria para essas pessoas, “causando- lhes incapacidade (ou desvantagem) no desempenho de papéis sociais” em virtu-de das barreiras que impedem o acesso a serviços, lugares, informações e bens necessários ao desenvolvimento de suas potencialidades.23 Em outras palavras, a deficiência é um problema social, que exige intervenções na sociedade; as causas da deficiência não são religiosas, nem somente médicas – são predominantemen-te sociais. As raízes dos problemas não são as restrições ou faltas (diferenças) individuais, mas as limitações ou impedimentos impostos pela sociedade que não tem os meios/serviços/instrumentos adequados para que essas pessoas sejam consideradas incluídas na sociedade.

O primeiro, se não o mais importante, efeito da adoção do modelo social consiste em promover a inversão da perspectiva na apreciação da deficiência, que deixa de ser uma questão unilateral, do indivíduo, para ser pensada, desenvolvida e trabalhada como relação bilateral, na qual a sociedade torna-se efetivamente protagonista, com deveres jurídicos a cumprir. Na linha da CDPD, fica claro ser a deficiência resultante da interação entre um impedimento pessoal e uma barreira existente na sociedade, como se constata do art. 2º, da Lei 13.146/2015:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedi-

mento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sen-

sorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir

sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condi-

ções com as demais pessoas.

O segundo, e não menos importante efeito, verifica-se na configuração da citada relação bilateral de interação como se vê ao longo do texto legal, de que são exemplos os arts. 1º e 3º. O EPD tem o objetivo expresso de assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades

22 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 108. 23 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos, cit., pp. 44-45.

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fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cidada-nia. Constitui, portanto, o instrumento principal de efetivação do modelo social, ao convocar instituições públicas e privadas para o processo de inclusão.

Do mesmo modo são chamados todos os setores da sociedade, de modo coletivo ou individual. É o que se constata das definições ali estabelecidas para fins de aplicação do EPD, que delineiam os contornos da interação exigida, espe-cialmente considerando como barreiras qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos a acessibilidade, a liberdade de mo-vimento e de expressão, a comunicação, ao acesso a informação, a compreensão, a circulação com segurança (art. 3º, IV). A relação é meramente exemplificativa, cabendo destacar, dentre a classificação constante do referido dispositivo legal, a referência a “barreiras atitudinais”, entendidas como atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas (art. 3º, IV, e).

Como decorrência necessária do primeiro efeito acima mencionado, merece destaque a afirmação da capacidade civil das pessoas com deficiência para o exercício de direitos existenciais, como casar, ter filhos, como prevê o art. 6º, pre-servando o direito ao próprio corpo, a sexualidade, ao matrimônio, a privacidade, a educação, a saúde, ao trabalho e ao voto, mesmo em caso de curatela, que passa a constituir medida extraordinária, a exigir explicitação das razões e motivações na sua definição por sentença (art. 85, §1º).

3 O reconhecimento como fator indispensável à inclusão

O modelo social implica a necessidade de reconhecimento, como concebido por Charles Taylor,24 para quem o “reconhecimento não é somente uma cortesia que devemos as pessoas, ele é uma necessidade humana vital”. Para Taylor, “a negação do reconhecimento não corresponde somente a uma demonstração de desrespeito, pois ela tem uma consequência grave que é a de diminuir a capaci-dade que a pessoa, ou grupo de pessoas, que é objeto dessa negação, tem de construir sua autoestima”.25

24 “O reconhecimento entrou no discurso filosófico na obra de Hegel, mas acabou preterido. Atribui-se a Charles Taylor o resgate do conceito em sua obra The politics of recognition” (ASSY, Bethania; FERES JUNIOR, João. Reconhecimento. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo, RS: Unisinos, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 705-710).

25 TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: Multiculturalism: examining the politics of recognition. New Jersey: Princeton, 1994, p. 25. Disponível em: <http://elplandehiram.org/documentos/JoustingNYC/Politics_of_Recognition.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2016.

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RECONHECIMENTO E INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

De acordo com Charles Taylor, a demanda por reconhecimento em alguns casos é urgente, visto que:

(...) as presumíveis ligações entre o reconhecimento e identidade, designando este último termo algo como o entendimento que as pessoas tem de quem são, de suas características definidoras fun-damentais como um ser humano. A tese é que nossa identidade é parcialmente definida pelo reconhecimento ou sua ausência, frequen-temente pelo falso reconhecimento (misrecognition) dos outros, e as-sim a pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer dano real, deturpação (distortion) efetiva, se as pessoas ou a sociedade que os circunda lhes reflete uma imagem limitada, humilhante ou desprezível deles próprios. O não reconhecimento ou o falso reconhecimento pode in-fligir dano, pode ser uma forma de opressão, encarcerando alguém num falso, distorcido e reduzido modo de ser.26

Como esclarecem Bethania Assy e João Feres Junior, o termo “reconheci-mento”, em sua concepção filosófica é de origem alemã e tem na linguagem atual “sentido estritamente cognitivo: identificação de pessoa, coisa ou característica por saber prévio, seja ele produto de experiência direta ou não”. Destacam os autores que todos os significados de reconhecimento extrapolam o plano mera-mente cognitivo. Assim, reconhecer pode significar desde notar a presença de outra pessoa por sinais corporais, como também quer dizer “honrar alguém por seu valor”, como ocorre com o reconhecimento público de um grande cientista. O conceito filosófico de reconhecer carrega esses significados e não se refere apenas a simples identificação cognitiva de uma pessoa, pois tem como premissa desse ato a “atribuição de um valor positivo a essa pessoa, algo próximo do que entendemos por respeito”.27 Efetivamente, como sintetiza Daniel Sarmento: “o olhar do outro nos constitui”.28

Nessa linha, é cabível afirmar que o “reconhecimento jurídico funciona como proteção social para a dignidade humana”, na medida em que “a dignidade é jus-tamente a concessão efetiva de direitos no qual o sujeito se vê reconhecido como membro de uma sociedade”.29 Desse modo, “nossa auto-realização prática se concebe a partir de um reconhecimento recíproco normativo de nossos parceiros de interação”. Nesse processo, atualmente, o “prestígio social” ou “reputação

26 TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition, cit., p. 25. Tradução livre.27 ASSY, Bethania; FERES JUNIOR, João. Reconhecimento, cit., pp.705-710.28 SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana. Belo Horizonte: Fórum, 2016, pp. 241-278.29 MEAD, George Herbert, apud ASSY, Bethania; FERES JUNIOR, João. Reconhecimento, cit., p. 709.

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social” torna-se a medida do reconhecimento público,30 e acaba por influenciar decisivamente na formação do autorrespeito.

O reconhecimento apoia-se numa visão de sociedade “amigável as diferen-ças”, na qual a “assimilação as normas da maioria ou da cultura dominante não é mais o preço do respeito igualitário”. Nancy Fraser expõe a tensão atualmente existente entre os defensores da linhagem filosófica da redistribuição e do re-conhecimento, ressaltando a polarização em razão da dissociação, em alguns casos, entre as lutas reivindicatórias de ambos os lados. A aparente antítese entre os proponentes da redistribuição e do reconhecimento, amparados em argu-mentos binários como política de classe versus política de identidade e multicultu-ralismo versus igualdade social, são refutados pela autora, para quem a “justiça, hoje, requer tanto redistribuição quanto reconhecimento”. A complementariedade entre igualdade social e reconhecimento da diferença impõe a construção de um conceito amplo de justiça.31

Nancy Fraser propõe, ainda, o rompimento com o modelo padrão de reco-nhecimento, que o identifica com a identidade cultural específica de um grupo. Sustenta, portanto, tratar o “reconhecimento como uma questão de status so-cial”, eis que “o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um grupo, mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na in-teração social”. Nesse sentido e por via de consequência, entende que o não reconhecimento “não significa depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário, ele significa subordinação social no sentido de ser privado de par-ticipar como um igual na vida social”.32 O objetivo desse novo modelo de status preconizado se assenta na premissa de “desinstitucionalizar padrões de valora-ção cultural que impedem a paridade de participação e substituí-los por padrões que a promovam”. A ideia central é superar a subordinação do sujeito vulnerado, tornando-o um “parceiro integral na vida social, capaz de interagir com os outros como um par”.33

Charles Taylor e Axel Honneth compreendem o reconhecimento como um problema relacionado ao campo da ética, ou seja, a negação do reconhecimento induziria a uma “subjetividade prejudicada e a uma auto-identidade danificada”. Nesse ponto, Nancy Fraser diverge dos dois teóricos acima mencionados, pois

30 Axel Honneth identifica a mudança histórica do conceito de honra, que baseava a noção de “estima so-cial”, considerada uma etapa do reconhecimento, para sua variação moderna: o “prestígio social”. A honra passa, desse modo, a esfera privada (Apud ASSY, Bethania; FERES JUNIOR, João. Reconhecimento, cit., p. 709).

31 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, 70, 2007, p. 101-103.32 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 107.33 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 109.

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RECONHECIMENTO E INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

concebe o reconhecimento como uma questão de justiça. Para a autora, “é injusto que, a alguns indivíduos e grupos, seja negada a condição de parceiros integrais na interação social, simplesmente em virtude de padrões institucionalizados de valoração cultural”. Desse modo, a subordinação institucionalizada de status constitui uma “séria violação de justiça”.34

Nessa linha, defende Nancy Fraser que o “não reconhecimento é uma ques-tão de impedimentos, externamente manifestados e publicamente verificáveis, a que certos indivíduos sejam membros integrais da sociedade”.35 A partir disso, adota-se um modelo abrangente e inclusivo de justiça que abarca as dimensões da redistribuição e do reconhecimento, não em um sentido de contrariedade, mas sim de complementariedade, como dito. Segundo a autora, a paridade de partici-pação é o núcleo central do seu modelo formulado, sendo que a “justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade intera-gir uns com os outros como parceiros”.36

Nesses termos, a paridade de participação somente deve satisfazer duas condições, denominadas, por Nancy Fraser, de condição objetiva e condição inter-subjetiva. Em primeiro lugar, a “distribuição dos recursos materiais deve dar-se de modo que assegure a independência e voz dos participantes” – condição objetiva. Em seguida, a paridade participativa requer que “os padrões institucionalizados de valoração cultural expressem igual respeito a todos os participantes e assegurem igual oportunidade para alcançar estima social”.37 Indispensável notar que ambas as condições mencionadas são necessárias para o efetivo alcance da paridade de participação. Por isso, afirma-se que “uma concepção ampla de justiça, orientada pela norma de paridade participativa, inclui tanto redistribuição quanto reconheci-mento, sem reduzir um ao outro”.38

As breves considerações acima permitem constatar que, nesses termos, além de constituir mais uma das fontes de legitimação, o reconhecimento é um fator indispensável, se não determinante, a ser considerado no processo de inclu-são social das pessoas com deficiência. Nesse sentido, o reconhecimento assu-me papel indeclinável no combate a discriminação, entendida no EPD como toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o pro-pósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a

34 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., pp. 111-112.35 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 114.36 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 118.37 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 119.38 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 120.

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recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas (art. 4º, §1º). Conforme já visto, o objetivo primordial do EPD é exatamente assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cida-dania. O art. 1º do diploma protetivo já declina que é a paridade participativa que permite a inclusão social e pleno exercício da cidadania.

4 Desafios jurídicos à efetividade da inclusão

Na trajetória das desigualdades no mundo social, observa-se que as múlti-plas assimetrias contemplam um fenômeno muito mais complexo do que apenas sua dimensão monetária. A compreensão das desigualdades – termo aqui enten-dido no plural – requer um exame de suas múltiplas dimensões, derivadas em razão da origem, raça, sexo, cor, idade ou algum “impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 2º, EPD), entre outras for-mas constatadas. Emerge, desse modo, a especial vulnerabilidade das pessoas com deficiência, que vivenciam situações de descaso, discriminação e exclusão de toda sorte ao longo da história, como já visto.

Sem embargo, as pessoas com deficiência formam um dos grupos social e economicamente mais excluídos39 e vulneráveis, o que se conclui a partir de sua sobrerrepresentação entre as camadas mais pobres da população.40 Aponta-se que a relação entre deficiência e pobreza é biunívoca, “o que revela um círculo vicioso de reprodução entre a pobreza e as deficiências”.41 A associação entre deficiência e mobilidade social descendente e de empobrecimento é recorrente, “sobretudo devido ao preconceito e a discriminação que geram exclusão social”.

39 V., por todos, na literatura internacional: BERESFORD, Peter. Poverty and Disabled People: Challenging Dominant Debates and Policies. In: Disability & Society, v. 11, n. 4, 1996, pp. 553 -567.

40 Durante a 9ª sessão da Conferência dos Estados Partes da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), realizada em 14 de junho de 2016, foi divulgado que alguns “estudos apontam que pessoas com deficiência são mais propensas a experimentar a pobreza e essa condição social também aumenta a incidência de problemas de saúde. Em todo o mundo, 20% das pessoas mais pobres têm algum tipo de deficiência e 80% das pessoas com deficiência vivem em países em desenvolvimento” (Informação disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-inclusao-de-pessoas-com-deficiencia-e-funda-mental-para-a-implementacao-da-agenda-2030/>. Acesso em: 13 dez. 2016).

41 Mais Qualidade de Vida para as Pessoas com Deficiências e Incapacidades – Uma Estratégia para Portugal. Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (CRPG) e Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empre-sa (ISCTE), 2007, p. 23. Disponível em: <http://www.crpg.pt/estudosProjectos/Projectos/modelizacao/Documents/Mais_qualidade_de_vida.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2016.

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Afirma-se, por outro lado, que a pobreza, por si só, é um fator de “produção de deficiências e incapacidades”, em razão das características como o meio onde as pessoas convivem, o déficit informacional, as condições insalubres de habitação, estilos de vida e padrões de consumo que envolva comportamento de risco, incipi-ência de práticas de prevenção e fraca incidência de cuidados de saúde.42

A promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, expressão legal da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência acolhida como emenda consti-tucional em nosso ordenamento, desafia uma cultura ainda vigente no país que é a invisibilidade, na medida em que essas pessoas têm seus direitos sistematica-mente desrespeitados, inclusive pelo próprio Poder Público, que num círculo vicio-so de omissão, mantém esse grupo vulnerado a margem da proteção legalmente estabelecida. Insta consignar que antes da aprovação da Lei Brasileira de Inclusão já vigoravam leis voltadas a tutela dos direitos das pessoas com deficiência, de que são exemplos as Leis nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio as pessoas portadoras de deficiência e sua integração social, e nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que trata da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Observa-se que apesar do manto protetivo das leis citadas, entre outras, ainda em vigor, o que se verifica é o contínuo desrespeito ao disposto nessas normas.

Depreende-se, portanto, que o desafio na tutela integral das pessoas com deficiência reside na ineficácia social das normas que decorre em boa medida de sua invisibilidade e não reconhecimento, eis que desde a década de 1980 já existe legislação específica, mas a situação pouco avançou na defesa dos direitos desse grupo vulnerável. De início, convém ressaltar que a promulgação do EPD possui forte valor simbólico e pedagógico, eis que substitui o modelo da integra-ção pelo paradigma da inclusão social, que visa concretizar a igualdade material, a fim de assegurar, com paridade de oportunidade, o direito a saúde, educação, lazer, transporte, moradia, trabalho, entre outros. Há que se ressaltar ainda que a adoção do modelo social de deficiência, deixando no passado o entendimento patologizante, é um importante passo rumo a efetividade da tutela da pessoa com deficiência, além de colaborar para a mudança de percepção da sociedade em relação a esse grupo populacional.

Apesar dessas considerações, é forçoso reconhecer que a Convenção e o Estatuto apresentam feição repetitiva, por vezes insistente em certos aspectos.

42 Mais Qualidade de Vida para as Pessoas com Deficiências e Incapacidades – Uma Estratégia para Portugal. Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (CRPG) e Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empre-sa (ISCTE), 2007, p. 23 (Disponível em: <http://www.crpg.pt/estudosProjectos/Projectos/modelizacao/Documents/Mais_qualidade_de_vida.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2016).

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Diversos dos princípios e disposições neles estampados já se encontram incluí-dos, de modo expresso ou implícito na Constituição da República e na legislação infraconstitucional, conforme visto. Esta situação de “indiferença” diante de práti-cas que afrontam mandamentos legais, infelizmente muito frequentes no campo da saúde mental, foi bem percebida por Michael L. Perlin,43 no que denominou sanism, que consiste num “preconceito irracional”, da mesma qualidade e caráter de outros preconceitos irracionais que “causam (e estão refletidos em) atitudes sociais predominantes de racismo, sexismo, homofobia, e intolerancia étnica”, baseados predominantemente em estereótipos, mitos, superstições, que se sus-tentam e perpetuam pelo uso da alegação do “senso comum”, numa “reação inconsciente a eventos tanto na vida cotidiana como nos processos legais”.

Serve de exemplo desse tipo de conduta social “indiferente” (e seus efei-tos) o ocorrido durante mais da metade do século passado no manicômio de Barbacena, onde se encontravam em condições subumanas, só comparáveis as dos campos de concentração, crianças, mulheres e homens, com problemas men-tais ou não, submetidos ao abandono, maus-tratos e até tortura.44 Não há qual-quer explicação aceitável para tal fato, salvo a indiferença e invisibilidade em geral mantida pela sociedade em relação as pessoas com deficiência, especialmente os que apresentam deficiência mental.

Situações mais sutis de indiferença e invisibilidade podem ser sentidas, por exemplo, no mercado de trabalho e mesmo na área esportiva. A Lei n. 8.213, de 24 de junho de 1991, denominada de Lei da Previdência Social, estabelece em seu art. 93 o percentual de vagas que devem ser garantidas pelas empresas a beneficiários reabilitados e pessoas com deficiência, habilitadas, chegando a um máximo de 5% caso haja mais de 1.001 funcionários. O dispositivo mencionado ficou conhecido como Lei de Cotas. Apesar do comando legal, observa-se na rea-lidade o seu reiterado descumprimento.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) divulgados em 2016, caso as empresas cumprissem a Lei de Cotas, pelo menos, 827 mil postos de trabalho estariam disponíveis. Entretanto, pouco mais de 381 mil vagas foram criadas. Observa-se ainda que é bastante comum que as empre-sas somente contratem após a imposição de multas pelos órgãos responsáveis. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Ministério da Saúde, demonstra que as pessoas com pelo menos uma deficiência recebem 11,4% a menos do que as sem deficiência.45

43 PERLIN, Michael L. International human rights mental disability law. Oxford: Oxford Univ. Press, 2012, p. 34. 44 V. ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro, São Paulo: Geração Editorial, 2013.45 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/07/lei-de-cotas-para-pessoas-com-

deficiencia-completa-25-anos>. Acesso em: 14 fev. 2017.

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Além disso, estudos ainda comprovam que “as pessoas com deficiência estão sendo subaproveitadas”,46 demonstrando uma realidade repleta de obstáculos para o pleno acesso de pessoa com deficiência ao mercado de trabalho em pari-dade de oportunidades.

A realização de dois grandes eventos esportivos na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2016 demonstrou, mais uma vez, a indiferença em relação as pessoas com deficiência. Nos Jogos Paralímpicos, diferente das Olimpíadas, foi grande a dificuldade para a venda de bilhetes – apesar de mais baratos – e a obtenção de patrocínios.47

Diante desse quadro, realça-se a função promocional48 do EPD e da Con-venção, na medida em que a promulgação de uma lei geral sobre os direitos da pessoa com deficiência, que reflete normas constitucionais incorporadas após a internalização do CPDP, desafia intérpretes e operadores do direito, bem como as instituições competentes, a transformarem a atual “cultura de indiferença” causada pela invisibilidade e exclusão das pessoas com deficiência em nossa sociedade. Para tanto, é preciso celebrar as diferenças e valorizar a diversidade humana, de modo a beneficiar toda a sociedade que passa a conviver com dife-rentes visões de mundo.

Nesse sentido, indispensável promover a autonomia da pessoa com defi-ciência para decidir sobre sua própria vida e para isso se centrar na elimina-ção de qualquer tipo de barreira, para que haja uma adequada equiparação de oportunidades. Isso provoca o empoderamento da pessoa com deficiência que passa a tomar suas próprias decisões e assumir o controle do seu projeto de vida. Entretanto, para que essa independência seja viável e real, é imprescindível a implementação de políticas públicas, programas sociais e serviços adaptados que permitam a superação das barreiras, mas que, em muitos casos, encontrará limite na reserva do possível em razão da necessidade do aporte de recursos financeiros para a efetiva e plena fruição dos direitos assegurados as pessoas com deficiência, como a adaptação arquitetônica de imóveis, adaptação de veícu-los utilizados no transporte coletivo, adaptação de material didático nas escolas, contratação de intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais), entre outros.

46 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Pessoas com deficiência no trabalho – Criando Valor pela Inclusão. Disponível em: <http://www.pessoacom-deficiencia.sp.gov.br/Content/uploads/20131210182610_CartilhaPessoascomdeficiencianotrabalho.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2017.

47 Disponível em: <http://esporte.ig.com.br/olimpiadas/2016-08-31/jogos-paralimpicos-patrocinio-conta.html>. Acesso em: 14 fev. 2017.

48 Cf. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. Barueri: Manole, 2007, passim.

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Tal cenário, contudo, não pode ser, mais uma vez, fator para a perpetuação da indiferença e inobservancia dos direitos conquistados.

Considerado o modelo social, o maior desafio, no entanto, a ser enfrentado reside no reconhecimento das pessoas com deficiência como parte da diversida-de humana e principalmente na conscientização do muito que podem acrescer a sociedade, pois como destacou Agustina Palacios:

(...) partiendo de la premisa de que toda vida humana es igualmente digna, desde el modelo social se sostiene que lo que puedan aportar a la sociedad las personas con discapacidad se encuentra íntima-mente relacionado con la inclusión y la aceptación de la diferencia.49

Nesse sentido, indispensável que a sociedade reconheça as pessoas com deficiência como iguais em respeito e consideração, sujeitos independentes e com voz para interação com outros parceiros na sociedade, em simetria de opor-tunidade, para alcançar a estima social desejada e desenvolverem livremente sua personalidade de acordo com seu projeto pessoal de plena realização existencial.

5 Conclusão

A adoção do modelo social para compreender o fenômeno da deficiência é uma das grandes conquistas promovidas pela Convenção e pelo EPD, que têm como premissas a inclusão plena da pessoa com deficiência e o dever do Poder Público e da sociedade de tornar o meio em que vivemos um lugar viável para a convivência entre todas as pessoas – com ou sem deficiência – e em condições de exercerem seus direitos, satisfazerem suas necessidades e desenvolverem suas potencialidades. Deve-se, de uma vez por todas, abandonar o comportamento social que nem considera ter como presentes as pessoas com deficiência, de modo a romper com a indiferença e invisibilidade que rotulam há tempos esse grupo vulnerado.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, na linha da Convenção dos Direitos da Pessoa com deficiência, de envergadura constitucional, substituiu o paradigma da integração social pelo modelo social, que se traduz na inclusão radical e plena, que exige efetiva participação da sociedade nesse processo e que essa se mo-difique, para atender as necessidades de todos seus integrantes. Para alcançar o objetivo central do EPD, é essencial que as pessoas com deficiência sejam

49 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 104.

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RECONHECIMENTO E INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

reconhecidas como pessoas humanas de igual valor e competência para contribuir para o desenvolvimento social, com independência e voz para atuar em igualdade de condições na vida de relações.

Revela-se, por conseguinte, de fundamental importancia a função promo-cional do atual marco normativo voltado a tutela dos direitos da pessoa com deficiência, na medida em que, além de assegurar o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais, promove radicalmente a mudança da cultura de indife-rença e invisibilidade, estabelecendo comportamentos socialmente desejáveis e exigíveis que podem resultar no reconhecimento das pessoas com deficiência. Este talvez seja o maior desafio posto a Lei de Inclusão.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017.

Recebido em: 03.03.2017

Artigo publicado a convite

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PARA ALÉM DA “PRINCIPIALIZAÇÃO” DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

BEYOND THE “PRINCIPIALIZATION” OF THE SOCIAL FUNCTION OF THE CONTRACT

Carlos Nelson KonderProfessor Adjunto do Departamento de Direito Civil da UERJ. Professor do

Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Especialista em Direito Civil pela Universita di Camerino (Itália).

Resumo: O artigo aborda a trajetória percorrida pela função social do contrato, comparando-a com a função social da propriedade, e examinando as vantagens e desvantagens de sua qualificação como princípio de direito contratual, de maneira a defender que o desenvolvimento de todas as suas pos-sibilidades interpretativas envolve a superação dessa qualificação, identificando-a como postulado metodológico-hermenêutico.

Palavras-chave: Função social do contrato; Função social da propriedade; Princípio.

Sumário: 1 Introdução – 2 Pra que serve a função? – 3 O modelo da função social da propriedade – 4 A resistência original a função social do contrato – 5 A reação de “principialização” da função social do contrato – 6 A função social do contrato para além de sua qualificação como princípio – 7 Conclusão

Abstract: The article discusses the trajectory of the “social function of the contract”, comparing it to the “social function of property”, and examining the advantages and disadvantages of their qualification as a principle of contract law. This study defends that the development of all its interpretative possibilities involves overcoming this qualification, identifying the social function of contract as a methodologic-hermeneutic postulate.

Keywords: Social contract function; Social function of property; Principle.

Summary: 1 Introduction – 2 What is the purpose of the function? – 3 The model of the social function of property – 4 The original resistance to the social function of the contract – 5 The reaction of “principialization” of the social function of the contract – 6 The social function of the contract beyond its qualification as a principle – 7 Conclusion

1 Introdução

A cada vez mais recorrente utilização da técnica legislativa das cláusulas gerais e o reconhecimento da força normativa dos princípios têm gerado gran-de inquietude no meio jurídico, em razão da liberdade conferida ao intérprete na fundamentação das decisões baseadas nessas estruturas normativas. A reação é ainda mais intensa quando tais normas, de alguma forma, colocam em xeque

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a primazia de que desfrutavam certas prerrogativas liberais clássicas, como a autonomia privada e o direito de propriedade.

O objeto do presente estudo é a peculiar trajetória da “função social do contrato”, inaugurada legislativamente com o Código Civil de 2002. Um paralelo com a mais consolidada figura da função social da propriedade revela distinções entre o percurso das duas, em especial em razão de a função social do contrato ter sofrido um processo de “principialização”, isto é, ter sido entendida como um novo princípio de direito contratual. As singularidades desse fato, além de suas vantagens e desvantagens hermenêuticas, merecem ser objeto de exame mais atento, agora que essa trajetória já completa quase quinze anos de duração. Para tanto, a partir de esclarecimentos semanticos iniciais e de uma comparação com a função social da propriedade, pretende-se examinar as diversas correntes que buscaram dar sentido ao disposto no art. 421 do Código Civil.

2 Pra que serve a função?

O exame da função social do contrato pressupõe alguns esclarecimentos sobre conceitos que lhe servem de base, mas que com ela não se confundem. A principiar pelo próprio conceito de “função”, que se tornou fundamental na ciência do direito contemporaneo. A ideia de função, importada das ciências naturais, revela um caráter fisiológico: conduz diretamente aos efeitos, focaliza uma “con-sequência de determinada espécie, determinável e esperada teoricamente e/ou empiricamente observável ou inferível, e observada ou inferida”.1 Função, assim, remete a finalidades, objetivos, utilidade, repercussões.

O conceito de função contrapõe-se e, ao mesmo tempo, conjuga-se com o de estrutura. A estrutura descreve os elementos que compõem um determinado corpo, sua morfologia, enquanto a função refere a como tais elementos atuam, o que eles fazem. Nesse sentido, sintetiza Pietro Perlingieri: enquanto a estrutura reflete o instituto “como é”, a função indica “para que serve”.2 Dessa forma, a es-trutura de uma cadeira é composta por pés, assento e espaldar, mas sua função é permitir sentar-se, a estrutura dos olhos é composta por córnea, cristalino, corpo vítreo, nervo ótico, etc., mas sua função é captar estímulos visuais.

Mesmo fora do Direito, se percebe então que um estudo preso exclusiva-mente as estruturas será sempre insuficiente, pois não será capaz de captar a

1 EISTER, Allan W. Função. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1986, p. 500.

2 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 94.

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dinamica efetiva dos acontecimentos. No caso do Direito, é ainda mais grave, pois um modelo de pensamento jurídico que se prenda excessivamente ao estudo da estrutura dos institutos tende a desconsiderar as repercussões sociais da aplica-ção desse instituto, e hoje parte-se do pressuposto de que o Direito existe para atender a sociedade.

Em outros momentos, o objetivo de garantir certa pureza metodológica e autonomia científica ao Direito conduziu a um estudo focado nas estruturas, que seria supostamente neutro, independente de questões sociais, culturais ou histó-ricas. Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma que o positivismo jurídico, sob uma perspectiva dogmática, priorizava a análise estrutural dos institutos como forma de “salvaguardar a pesquisa teórica contra a infiltração de juízos de valores e de evitar a confusão entre direito positivo, o único objeto possível de uma teoria científica do direito, e o direito ideal”.3

Hoje, reconhecendo que a interdisciplinaridade contribui mais do que ameaça a ciência do direito, qualquer reflexão jurídica pressupõe também um conhecimen-to de outras ciências e uma atenção especial ao contexto histórico-social a que se dirige aquele direito. Em razão disso, a perspectiva se inverteu: a prioridade agora deve ser do exame da função dos institutos – o chamado “perfil funcional”. O olhar do jurista passa a compreender as repercussões da aplicação de uma norma, os interesses jurídicos em jogo, os fins que ela visa atingir, a ratio que a alimenta. Assim, o intérprete deixa de lado aquela postura supostamente neutra e asséptica para assumir o papel – e a responsabilidade daí decorrente – de intervenção na realidade social a que o direito se destina.

A atividade interpretativa necessariamente envolve valores, o intérprete está sempre guiado por certos fins, objetivos, indicados pelo próprio direito, que de-vem ser buscados. Portanto, considerando que isso é inevitável, é preferível que o intérprete assuma e explicite esses fins, para que eles possam ser debatidos democraticamente, do que ocultá-los sob o manto de uma suposta neutralidade na atribuição de significado aos enunciados normativos. Nesse sentido, a ideia de função dos institutos jurídicos é central: quando discutimos para que eles servem, estamos trabalhando não para diminuir, mas para aumentar a segurança jurídica na sua aplicação, dando uma baliza objetiva, uma diretriz, para o intérprete.

Daqui nasce um segundo conceito fundamental: o de “funcionalização” dos institutos de direito civil. Como explica Luis Renato Ferreira da Silva:

Ao supor-se que um determinado instituto jurídico esteja funciona-lizado, atribui-se a ele uma determinada finalidade a ser cumprida,

3 BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzione. Milano: Edizioni di Comunita, 1977, p. 65.

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restando estabelecido pela ordem jurídica que há uma relação de dependência entre o reconhecimento jurídico do instituto e o cumpri-mento da função.4

Assim, se todo instituto tem uma função, se a identificação dessa função é central para a atividade do intérprete, e se disso decorre a instrumentalidade do instituto para a realização desses fins – sua funcionalização – resta a questão de como identificar a função do instituto, os objetivos que sua aplicação deve buscar, o valor jurídico que o justifica.

A prioridade do perfil funcional dos institutos sobre o perfil estrutural, assim como a sua consequente funcionalização, é premissa metodológica adotada por diversas escolas, inclusive pelo chamado “direito civil-constitucional”.5 A peculiari-dade dessa metodologia, todavia, está no entendimento de que a função do insti-tuto, envolvendo os valores que justificam a sua tutela por parte do ordenamento, se encontra necessariamente nos preceitos constitucionais, em virtude de sua superioridade hierárquica no ordenamento.6 A supremacia do texto constitucional impõe que todas as normas inferiores lhe devam obediência, não apenas em termos formais, mas também no conteúdo que enunciam, de forma que todo instituto de direito civil somente se justifica como instrumento para a realização das normas constitucionais.

Reconhecendo que os institutos devem ser aplicados priorizando-se sua fun-ção, e que essa função deita raízes no texto constitucional, os institutos de direito civil devem ser compreendidos como instrumentos de realização do projeto cons-titucional, ou seja, funcionalizados a satisfação dos princípios constitucionais.7 Como exemplo, pode-se falar em uma funcionalização da família e do casamento. As entidades familiares deixam de ser instituições a serem protegidas em si mes-mas para servirem como instrumentos para o desenvolvimento da personalidade de seus membros.8 A proteção da paz doméstica, da coesão formal do grupo familiar e da integridade do vínculo conjugal eram consideradas merecedoras em si de tutela, ainda que em detrimento da realização pessoal dos seus integrantes, porque se conferia uma proteção estrutural aqueles institutos. Na medida em que

4 SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 134.

5 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, passim.6 SOUZA, Eduardo Nunes. Função negocial e função social do contrato: subsídios para um estudo compara-

tivo. Revista de Direito Privado, vol. 54. São Paulo, abr. 2013, p. 65.7 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 671.8 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In: Temas de direito civil. 4. ed.

Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 395 e ss.

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se funcionaliza a família e o matrimônio, a hostilidade com relação a dissolução do vínculo conjugal – seja por meio de seu impedimento, seja com a imputação de culpa a uma das partes – ou com relação a entidades familiares não calcadas no casamento heterossexual perde sua razão de ser. Na medida em que a família e o casamento servem a função do livre desenvolvimento da personalidade dos seus integrantes, serão tutelados apenas enquanto estejam efetivamente atingin-do sua função; do mesmo modo, outras instituições que sirvam a esta mesma função também serão acolhidas por parte do ordenamento jurídico.

3 O modelo da função social da propriedade

O grande modelo de funcionalização de um instituto é a função social da propriedade, já que a propriedade privada foi, durante toda a era moderna, o paradigma de direito subjetivo, individual e patrimonial, refratário a qualquer ins-trumentalização. Assim, naturalmente, tornou-se o exemplo mais significativo de um direito cujo exercício descontrolado, guiado exclusivamente pela vontade de seu titular, poderia tornar-se incompatível com exigências mínimas decorrentes da convivência social.

Assim, naturalmente, foi contra a propriedade privada que se dirigiram os movimentos sociais ao longo do século XIX e, no plano do direito, as correntes jusfilosóficas solidaristas e socializantes. As teorias negativistas da existência de um direito subjetivo do proprietário, das quais a versão de Duguit tornou-se mais popular, representavam o extremo desse movimento: a propriedade deixava de ser um direito para tornar-se uma função imposta ao detentor de riquezas, que passa a ter o poder e a obrigação de empregar seus bens na satisfação de suas necessidades e, também, no dever de satisfazer a finalidade coletiva.9

Embora essa visão mais radical não tenha prevalecido, o reconhecimento de que a normatização da propriedade privada não se limitava a atribuição de um direito subjetivo individual, mas envolvia também o atendimento de uma função social, consolidou-se no meio jurídico. Posições mais reticentes buscaram miti-gar o impacto dessa perspectiva, mas o seu efeito transformador foi, afinal, am-plamente reconhecido: tratava-se, não apenas, de uma releitura das tradicionais limitações ao exercício do direito de propriedade, mas do próprio conceito e da legitimação do direito de propriedade. Como explica Bercovici:

9 SZANIAWSKI, Elimar. Aspectos da propriedade imobiliária contemporanea e sua função social. Revista de Direito Privado, vol. 3. São Paulo: jul./set. 2000, p. 134.

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A função social é mais do que uma limitação. Trata-se de uma con-cepção que se consubstancia no fundamento, razão e justificação da propriedade. A função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito próprio do regime capitalista, que legitima o lucro e a propriedade privada dos bens de produção, ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro de certos parametros constitucionais, como exercida dentro do interes-se geral. A função social passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e legitimando-a.10

Dessa forma, acabou por ser superada a concepção de que o livre exercício do direito subjetivo de propriedade seria a regra e a função social da proprieda-de traduziria as excepcionais limitações, prevalecendo o entendimento de que, em maior ou menor medida, o reconhecimento da função social da propriedade acabava por implicar uma ressignificação da propriedade individual que, embora não fosse suprimida pela pretensão socializante, teria sua tutela condicionada ao atendimento de certos imperativos sociais.11

Assim, em certa medida, a função social da propriedade, na forma em que se consolidou nos diversos ordenamentos ocidentais, não funciona como um ataque a propriedade privada, mas como uma forma de defendê-la. No entanto, essa defesa, ao refundamentar sua tutela, condiciona seu exercício internamente, oferecendo não apenas prerrogativas ao titular, mas impondo-lhe também deve-res, negativos ou mesmo positivos. Nas palavras de Paulo Ferreira da Cunha, “a propriedade continua a ser, por um lado, um dos auxiliares do livre desenvolvi-mento da personalidade de cada homem, que dela necessita para empreender”, reduzindo-se a questão a sua justificação, que passa a residir na função social.12 Novamente, o privilégio do perfil funcional (para que serve) e a funcionalização (reconhecimento de que o instituto deve ser instrumental a realização de certos fins) modificam a forma de conceber e aplicar o instituto. Nesse caso, a tutela da propriedade passa a ser condicionada ao atendimento de fins ditos sociais, isto é, fins que transcendem a esfera do proprietário para se inserirem na coletividade.

Esse condicionamento da tutela da propriedade ao atendimento de impera-tivos coletivos implica a fragmentação do tratamento normativo da propriedade.

10 BERCOVICI, Gilberto. A constituição de 1988 e a função social da propriedade. Revista de Direito Privado, vol. 7. São Paulo, jul./set. 2001, p. 77.

11 ORLEANS, Helen Cristina Leite de Lima. Não basta ser proprietário, tem que participar: Algumas notas sobre a função social da propriedade imobiliária no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, vol. 46. São Paulo, abr./jun. 2011, p. 117.

12 CUNHA, Paulo Ferreira da. Propriedade e função social. Revista de Direito Imobiliário, vol. 56. São Paulo, jan./jun. 2004, p. 120.

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A tradicional concepção abstrata da propriedade como direito real absoluto que garante ao seu titular um poder tendencialmente pleno e de exclusão dos demais no usar, fruir e dispor de um bem, cujos limites seriam externos e de aspecto puramente negativo, dá lugar ao reconhecimento de uma noção pluralística de dis-tintos estatutos proprietários, os quais teriam em comum – sob uma configuração flexível – a relevancia, para a tutela da senhoria sobre o bem, de interesses não proprietários.13 Elimar Szaniawski destaca que, nesse sentido, afirma-se, sob a inspiração de Pugliatti, a existência de uma multiplicidade de propriedades.14

Assim, como destaca Celso Antônio Bandeira de Mello, ainda que no or-denamento brasileiro há muito ocorresse condicionamentos da propriedade para atendimento de conveniências sociais, como as disposições urbanísticas para as colônias hispano-americanas ou o instituto do comisso nas concessões de ses-marias e cartas de data, no Brasil Colônia, o significado pleno da função social da propriedade é um fenômeno bem mais recente.15 O grande salto nesse movimento entre nós veio com a Constituição de 1988, que não se limitou a reconhecer a função social da propriedade, mas determinou parametros para sua aplicação a certas propriedades, como a propriedade urbana, que deve atender as exigências fundamentais da ordenação da cidade, expressas no plano diretor, como a pro-priedade rural, mediante seu aproveitamento racional e pela utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e da preservação do meio ambiente.16 Ou seja, o constituinte especificou os fins a serem atendidos por certos tipos de proprieda-de, fazendo com que sua tutela seja vinculada ao atendimento desses fins.

Outros tipos de propriedade, como a autoral, a industrial e a empresarial não foram regulamentadas com a mesma especificidade pelo texto constitucional. Deve-se partir, portanto, das premissas estabelecidas: (i) a referência a função social da propriedade impõe que a proteção de qualquer propriedade seja funcio-nalizada a satisfação de interesses coletivos; (ii) a escolha de tais interesses não fica ao alvedrio do intérprete, devendo ser fundamentados no ordenamento. Tais premissas indicam, assim, que tais propriedades restarão funcionalizadas a bens jurídicos eleitos pelo texto constitucional sob a forma de princípios que regem as atividades em que aquelas propriedades se inserem, como a cultura, a saúde, a educação, a habitação, o pleno emprego etc.

13 TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. Temas de direito civil, cit., p. 303 e ss.

14 SZANIAWSKI, Elimar. Aspectos da propriedade imobiliária contemporanea e sua função social. Revista de Direito Privado, vol. 3. São Paulo: jul./set. 2000, p. 136.

15 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito Público – RDP, vol. 84/39. São Paulo, out./dez. 1987, p. 935.

16 SZANIAWSKI, Elimar. Aspectos da propriedade imobiliária contemporanea e sua função social, cit., p. 142.

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Resta claro que a forma e o grau de condicionamento do exercício do direito de propriedade ao atendimento de tais fins será controverso e objeto de inter-pretação argumentativa devidamente fundamentada. No entanto, para os fins da presente análise, é importante reconhecer como a função social da propriedade sempre foi tomada como um condicionamento ao atendimento de fins (jurídicos) coletivos alheios ao titular do direito de propriedade. Portanto, um postulado me-todológico-hermenêutico que remete a uma ponderação entre os interesses do titular do direito e esses interesses da coletividade. Cabe comparar esse percurso com o trajeto dado entre nós a função social do contrato.

4 A resistência original à função social do contrato

A função social do contrato não se beneficiou dessa longa trajetória histórica de que desfrutou a função social da propriedade, tampouco de uma referência expressa no texto constitucional, com a indicação de parametros para sua aplica-ção. Nenhuma Constituição brasileira fez expressa referência a função social do contrato, nem a de 1988, tampouco estabeleceu critérios de efetivação. Mesmo em doutrina, até o advento do Código de 2002, eram raríssimas as reflexões no ambito do direito a respeito da função social do contrato.17

Isso não significa, todavia, que ela não fosse importante. Se a funcionaliza-ção de todos os institutos de direito civil é fundamental, no que tange ao direi-to contratual a funcionalização tem especial relevancia. Isto porque a liberdade contratual, como manifestação da autonomia privada, em princípio permite aos particulares escolher os efeitos jurídicos que desejam produzir, as normas que irão reger suas relações interprivadas. Assim, enquanto a propriedade já traz seu conteúdo normativo previsto na lei, limitando-se o titular do direito a decidir como exercê-lo, o conteúdo normativo do contrato é produzido pelo próprio titular da liberdade contratual. Assim, neste ambito, diante da miríade de possibilidades que surgem, é especialmente importante ao intérprete fazer atenção ao perfil funcional do negócio realizado. Deve-se ter em vista os efeitos buscados, a função perseguida, naquele negócio concreto, de forma a aferir mais cuidadosamente se há compatibilidade com aqueles interesses em razão dos quais a própria liberda-de de contratar é tutelada. Isso viabiliza um adequado controle não apenas de licitude formal, mas também de abusividade e merecimento de tutela.18

17 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de Direito Civil, Imobiliá-rio, Agrário e Empresarial, n. 45. São Paulo, jul./set. 1988, pp. 141-152.

18 SOUZA, Eduardo Nunes. Função negocial e função social do contrato, cit., pp. 65-87.

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No entanto, a previsão legal da função social do contrato encontrou uma resistência em certo ponto similar aquela que historicamente foi enfrentada pela função social da propriedade, vinculada ao receio de invasão pelo Estado de espa-ços exclusivos dos particulares. Todavia, enquanto, como observado, a resistência as possibilidades interpretativas da função social da propriedade se manifestaram em esforços para a delimitação dos seus efeitos, aquela relativa a função social do contrato produziu tendência de esvaziamento do próprio significado autônomo da previsão legal: no fundo, interpretada da forma sugerida, a disposição legal, na verdade, não produziria qualquer efeito.

O percurso inicial da previsão legal demonstra isso. Na primeira versão do anteprojeto de Código Civil, o dispositivo que viria a se tornar o artigo 421 enuncia-va que “a liberdade de contratar somente será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. A inclusão do vocábulo “somente” foi muito criticada, pois se temia que fizesse com que o enunciado fosse interpretado de forma a exigir que a única função que o contrato pudesse ter fosse a social, em oposição a função que ele teria apenas para as partes.19 Assim, receava-se que as partes pudessem ficar adstritas a abdicar de seus próprios interesses para, ao contratar, servir somente a coletividade.

O receio vincula-se a um embate mais amplo, que diz respeito ao próprio pa-pel do ato de autonomia no sistema. Trata-se de um esforço para a convergência entre a perspectiva individual, própria do ato, e a geral, própria do ordenamento, a relação entre a liberdade dos privados e a autoridade do direito. Enfim, significa indicar quando o ato de vontade poderá desfrutar da eficácia jurídica própria das normas do ordenamento, ou, sob outra formulação – e sob outra perspectiva – in-dicar quando é legítimo que o Estado intervenha sobre a eficácia dos negócios en-tre particulares.20 Entre as perspectivas extremas de um Estado mínimo, no qual a autonomia privada foi concebida como um espaço quase ilimitado e praticamente imune a qualquer intervenção exterior, e um Estado autoritário, no qual ocorria a total submissão dos interesses particulares a supostos interesses públicos, em algum meio termo disso deveria estar a função social do contrato. O ponto de equilíbrio é que gera a controvérsia.

As críticas a redação inicial fizeram com que o termo “somente” fosse supri-mido e o dispositivo ganhasse a redação com que foi promulgado: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. No

19 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Entrevista concedida a Revista Trimestral de Direito Civil, n. 34. Rio de Janeiro, abr.-jun. 2008, p. 305.

20 KONDER, Carlos Nelson. Causa do contrato x função social do contrato: Estudo comparativo sobre o con-trole da autonomia negocial. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 43. Rio de Janeiro, jul./set. 2010, pp. 33-75.

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entanto, o receio quanto as potencialidades do dispositivo persistiram, agora com relação a expressão “em razão de”: a liberdade de contratar deve ser exercida em razão de sua função social. Este movimento de reticência ao dispositivo, que se poderia chamar “antifuncionalista”, afirmava que a função social só poderia servir como limite, mas não se poderia exigir que ela fosse razão da tutela do contrato.

Assim, a função social do contrato somente poderia ser invocada em casos extremos, descritos em doutrina como “só a deformidade, o absurdo, e o tera-tológico exercício do direito de contratar”21 e na jurisprudência afirma-se que “a ingerência do poder judiciário só resta autorizada em hipóteses excepcionais”.22 Sob outra perspectiva, foi sustentado que a função social do contrato é a circula-ção de bens e serviços e outra interpretação implicaria a adoção de um paradigma paternalista.23

O receio que se colocou quanto a função social do contrato, em virtude da ausência de uma evolução histórica do conceito e, principalmente, na falta de bali-zas do constituinte e do legislador acerca de sua aplicação, foi a ameaça de certo autoritarismo judicial, de invasão estatal das relações intersubjetivas, através de um mecanismo de controle da autonomia. Era necessário evitar que a abertura da cláusula geral do art. 421 não implicasse uma fórmula vazia que franqueia tal julgamento ao mero arbítrio do juiz.

Esse cenário deu origem a posições e decisões tímidas na aplicação do dispositivo, que se limitam a fazer uso da função social do contrato de forma apenas retórica, referindo-a em situações de tutela de interesses das partes, no mais das vezes já resguardados por outros institutos específicos. Assim, no que se convencionou chamar de uma eficácia interna ou normatividade endógena da função social do contrato, ela foi citada para fundamentar a proibição de contratos injustos ou desequilibrados, em casos já resolvidos por institutos como a lesão, a onerosidade excessiva e a vedação de cláusulas abusivas.24 Na jurisprudência, seguiu-se esta linha, sob a afirmação de que, buscando a compatibilização entre os interesses econômicos das partes e os interesses sociais, a “tendência hodier-na em reconhecer a função social do contrato não implica em [sic] socialização das relações jurídicas, mas reconhecimento no sentido de que o contrato deve ser

21 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no Código Civil Brasileiro. Revista Forense, n. 364. Rio de Janeiro, nov./dez. 2002, p. 9.

22 TJDFT, 1ª T. C., Ap. Cív. 20020111044353, Rel. Des. Flavio Rostirola, julg. 11.6.2008.23 TIMM, Luciano Benetti. Função social do direito contratual no código civil brasileiro: justiça distributiva

vs. eficiência econômica. Revista dos Tribunais, vol. 876. São Paulo, out. 2008, pp. 11-28. Nesta linha também SZTAJN, Rachel. Propriedade e contrato: função social. Revista de Direito Empresarial, vol. 9. São Paulo: maio/jun. 2015, pp. 453-459.

24 FERREIRA, Carlos Alberto Goulart. Contrato: da função social. Revista Jurídica, n. 247. Porto Alegre, maio 1998, p. 11; TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos. São Paulo: Método, 2007, p. 270 e ss.

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PARA ALÉM DA “PRINCIPIALIZAÇÃO” DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

concebido como instrumento materializado que objetive, precipuamente, a promo-ção de maior justiça nas trocas econômicas, sem descurar, todavia, da segurança jurídica, decorrente da observancia do pacta sunt servanda”.25

Assim foram suprimidas por violação a função social do contrato condições de reajuste que oneram excessivamente o consumidor,26 cláusulas impeditivas de res-tituição do valor pago,27 negativa de renovação automática de contrato mantido por mais de dez anos,28 multa excessiva em relação de consumo que afronta os dispo-sitivos consumeristas,29 dispositivo proibitivo de purgação da mora pelo devedor,30 cláusula abusiva de renúncia a indenização das benfeitorias,31 desligamento com-pulsório de empreendimento cooperativo.32 Na mesma linha, a possibilidade de revisão judicial dos termos do contrato, quando desequilibrados, encontrou amparo reiteradamente na exigência de atendimento a sua função social.33

É importante observar que na maior parte destas decisões a função social do contrato vem invocada junto com outros princípios, o que corrobora a constatação de que essa interpretação acaba esvaziando a função social de qualquer utilidade autônoma, de qualquer repercussão prática que já não seja atendida por outros meios. É curioso observar, por rápida consulta no sítio do STJ, que dos 100 acór-dãos que fazem menção a função social do contrato desde que o Código de 2002 entrou em vigor, em 62 ela é citada junto com o princípio da boa-fé, em 3 junto com um “princípio de eticidade” e em 10 junto com a vedação ao enriquecimento sem causa. Isso sem contar as diversas vezes em que a função social do contrato é invocada apenas como fundamento axiológico de um outro instituto, que é o que se aplica diretamente ao caso, como a redução da cláusula penal e a proibição de cláusulas abusivas.

Por isso se afirma que essa postura interpretativa frente a função social do contrato é, na verdade, uma resistência a sua própria existência, uma vez que a

25 TJRS, 8ª C.C., Ap. Cív. 70017926536, Rel. Des. Pedro Celso Dal Pra, julg. 15.2.2007. Indicam que este tipo de referência a função social do contrato antecede a expressa previsão do Código Civil de 2002, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Daniel Queiroz Pereira (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; PEREIRA, Daniel Queiroz. Função social no direito privado e constituição. In: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Função social no direito civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 79-80).

26 TJRS, 5ª C.C., Ap. Cív. 70025660218, Rel. Des. Romeu Marques Ribeiro Filho, julg. 15.10.2008.27 TJRS, 9ª C.C., Ap. Cív. 70025542754, Rel. Des. Léo Romi Pilau Júnior, julg. 8.10.2008.28 TJRS, 2ª T.R.C., Recurso Cível n. 71001565050, Rel. Des. Afif Jorge Simões Neto, julg. 10.9.2008.29 TJRS, 2ª T.R.C., Recurso Cível n. 71000693143, Rel. Des. Mylene Maria Michel, julg. 17.5.2006.30 TJRJ, 2ª C.C., Ag. Instr. 2008.002.33382, Rel. Des. Paulo Sergio Prestes, julg. 13.10.2008; TJRJ, 15ª

C.C., Ag. Instr. 2008.002.15589, Rel. Des. Jose Carlos Paes, julg. 28.5.2008.31 TJSP, 4ª C.D.P., Ap. com revisão 1613954100, Rel. Des. Maia da Cunha, julg. 20.10.2005.32 TJDFT, 3ª T.C., Ap. Cív. 20060110408947, Rel. Des. Humberto Adjuto Ulhôa, julg. 12.3.2008.33 TJRJ, 16ª C.C., Ap. Cív. 2008.001.49662, Rel. Des. Marco Aurelio Bezerra de Melo, julg. 14.10.2008; TJMG,

Ap. Cív. 1.0701.06.170086-3/001(1), Rel. Des. Valdez Leite Machado, julg. 24.7.2008; TJSP, 14ª C.D.P., Ap. Cív. 1311473700, Rel. Des. Ligia Araújo Bisogni, julg. 27.9.2008, julg. 27.9.2008; TJRS, 14ª C.C., Ap. Cív. 70025542754, Rel. Des. Dorval Bráulio Marques, julg. 14.8.2008.

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leva a não ter qualquer relevancia normativa, priva-a de qualquer conteúdo autô-nomo e de qualquer efeito prático. A melhor doutrina alerta que ela produz uma invocação banal e sem conteúdo da função social do contrato, que serve apenas a esvaziar suas potencialidades, em vez de auxiliar na individualização da sua eficácia jurídica própria.34 Como explica Gustavo Tepedino:

A primeira delas [corrente] sustenta que a função social do contrato não é dotada de eficácia jurídica autônoma, sendo uma espécie de orientação de política legislativa constitucional, que revela sua impor-tancia e eficácia não em si mesma mas em diversos institutos que, como expressão da função social, autorizam ou justificam soluções normativas específicas, tais como a resolução por excessiva onero-sidade (CC, art. 478), a lesão (CC, art. 157), a conversão do negócio jurídico (CC, art. 170), a simulação como causa de nulidade (CC, art. 167), e assim por diante. [...] tal posição acaba por esvaziar a im-portancia da função social, vez que esta se expressaria por meio de institutos já positivados, presentes de forma difusa no ordenamento, prescindindo, por isso mesmo, de eficácia jurídica autônoma.35

5 A reação de “principialização” da função social do contrato

Em reação a esse esvaziamento de conteúdo autônomo da função social do contrato, nasceu a sua concepção como novo princípio de direito contratual. Sob essa perspectiva, a função social do contrato seria um princípio que ponderaria o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, fazendo com que, em certas situações em que a ponderação feita pelo intérprete assim entendesse, a tutela do contrato iria além dos contratantes, no que se convencionou tratar como uma eficácia externa (ultra partes) da função social do contrato.36

34 RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In: MORAES, M. C. B. de. Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 287-288. Por isso, diversos autores preferem reservar estes efeitos aos princípios da boa-fé e do equilíbrio econô-mico, atribuindo a função social somente a chamada eficácia externa: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 31; SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 127-150; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 99-126.

35 TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporaneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 396-397.

36 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 110 e 131; NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro. Revista de Direito Privado n. 12. São Paulo, out./dez. 2002, p. 56.

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A fundamentação arduamente construída para vencer a resistência inicial está centrada na ideia de que, uma vez que a lei passa a ser o fundamento da obrigatoriedade do contrato e, portanto, o poder jurígeno deixa de surgir da vonta-de autônoma e passa a ser derivado e funcionalizado a finalidades heterônomas, o exame da função do contrato permite, em certas hipóteses atingir os chamados terceiros, dado que ele visa a satisfação de finalidades que não se restringem mais ao interesse particular.37 De maneira similar ao ocorrido quanto a proprie-dade, a função social conduz aqui a distinção de efeitos normativos entre os diversos contratos conforme a sua função, o que implicou a heterogeneização do conceito de terceiro, pois impõe que não se submeta ao mesmo regime jurídico – a indiferença – todos aqueles que não são partes formais da relação obrigacional constituída.38 Cumpre verificar, no caso concreto, a função daquele contrato, de maneira a perceber as implicações que ele pode ter para com aquele sujeito que não fez parte de sua celebração.39

Nesta linha de proteção aos relevantes interesses de terceiros temos, por exemplo, as decisões que autorizam a desistência do participante do contrato de consórcio nas hipóteses em que o seu afastamento não prejudique os demais integrantes.40 Ou ainda as hipóteses de contratos conexos com partes diferentes, quando dois contratos encontram-se de tal maneira vinculados que aquele que é parte em um deles mas terceiro com relação ao outro deve, mesmo quanto a esse, receber um tratamento jurídico especial, que não seja o mesmo que todos os demais indivíduos que com ele não mantêm vínculo.41

Os efeitos perante terceiros costumam ser divididos em duas subesferas: de um lado, as hipóteses em que a função do contrato não é alcançada por causa de uma das partes e isso fere relevante interesse de terceiro (vítima), o qual teria ação direta em face do contratante inadimplente; a segunda, mais controversa, diz respeito aos casos em que a função do contrato não é alcançada por causa da in-tervenção indevida do terceiro (ofensor), caso em que este será responsabilizado por ato ilícito perante o contratante vítima do inadimplemento.42

37 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 223-224, e, também nesta linha, SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 138.

38 KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 70.

39 COSTA, Pedro de Oliveira. Apontamentos para uma visão abrangente da função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Obrigações: Estudos sob a perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 16.

40 TJDFT, 1ª T.R., Ap. Cív. 20060110991482, Rel. Hector Valverde Santana, julg. 14.8.2007.41 KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados.

Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 245 e ss.42 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 229 e ss.

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No tocante a tutela do interesse do terceiro vitimado pelo inadimplemento do contrato, o raciocínio é de que o interesse na execução do contrato não se restringe as partes que o celebraram, pois há um interesse social no cumpri-mento do pactuado tendo em vista que aquele contrato é um instrumento para a realização de uma finalidade superior, protegida pelo ordenamento, e, no caso, esse interesse social se combina com o legítimo interesse de um terceiro que, embora não tenha participado da celebração do acordo, será beneficiado pelo seu adimplemento – ou será prejudicado pelo seu inadimplemento.43

Legislativamente, alguns dispositivos específicos teriam consagrado esta vertente da função social, como é o caso da tutela do consumidor, que permite a ele interpelar outros membros da cadeia de contratos com os quais não teve relações diretas. Assim, por exemplo, a jurisprudência admite que pessoa presen-teada com celular tenha legitimidade para acionar a empresa por dificuldade em efetuar as ligações:

Dessa forma, privilegiando a função social do contrato, tenho que devam ser mitigados os requisitos dos negócios jurídicos, devendo ser reconhecido o vínculo contratual, por extensão, existente entre o fornecedor e o seu efetivo usuário do serviço tido como defeituoso.44

Igualmente, a jurisprudência do STJ destacou este fundamento no dispositivo do Código que autoriza o fracionamento da hipoteca e que teria, portanto, aplica-bilidade imediata:

O art. 1.488 do CC/02 consubstancia um dos exemplos de materiali-zação do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a ideia que está por traz dessa dis-posição é a de proteger terceiros que, de boa fé, adquirem imóveis cuja construção – ou loteamento – fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestações para a aquisição de imóvel – pagamentos esses, muitas vezes, feitos as custas de enorme esforço financeiro – são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem em função da inadimplência da construtora perante o agente financeiro. [...] Nos autos, está fartamente comprovada a existência

43 KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 40.

44 TJRS, 6ª C.C., Ap. Cív. 70013514468, Rel. Des. Artur Arnildo Ludwig, julg. 31.8.2006.

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de inúmeras ações, propostas em face da recorrente por terceiros que, tendo pago todas as prestações do financiamento dos imóveis que adquiriram, pretendem ver reconhecido seu direito a transmissão do bem por escritura pública. Trata-se de uma questão que apresenta um reflexo social considerável e que traz, tanto a recorrente como a esses terceiros, um prejuízo considerável.45

Fora das hipóteses previstas em lei, a jurisprudência também contribuiu para criar novas hipóteses de ação direta do terceiro lesado frente ao contratante. Na mesma linha do dispositivo supracitado, afirmou-se que a instituição financeira não pode executar a hipoteca de unidade imobiliária que garantia o financiamento concedido para a construção do imóvel porque o comprador do imóvel já havia quitado sua obrigação de pagamento perante a construtora que o vendeu.46 Ou ainda o reconhecimento da possibilidade de “a vítima em acidente de veículos propor ação de indenização diretamente, também, contra a seguradora, sendo irrelevante que o contrato envolva, apenas, o segurado, causador do acidente, que se nega a usar a cobertura do seguro”.47 De fato, em que pese a opinião dos doutrinadores que identificam nesta decisão o mero reconhecimento de uma estipulação em favor de terceiro, não se pode deixar de constatar que a própria qualificação do contrato neste sentido encontra respaldo na sua função social, como se identifica na fundamentação de diversas decisões.48 Em tais hipóteses não há ligação contratual direta entre a vítima e a seguradora, entre o comprador da unidade e a instituição financeira, mas a função social dos contratos autorizou que tais pessoas jurídicas não fossem consideradas terceiros indiferentes a rela-ção contratual existente.

De outro lado, temos a hipótese do terceiro ofensor, isto é, do sujeito que tem interesse na não execução do pactuado, no desrespeito ao contrato, e inter-fere naquela relação jurídica de maneira a prejudicar o adimplemento contratual.

45 STJ, 3ª T., EREsp 691.738, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 12.5.2005. Em comentário a decisão, v. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. A função social dos contratos e dos direitos reais e o art. 2035 do Código Civil brasileiro: Um acórdão do Superior Tribunal de Justiça. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporaneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 359-368.

46 STJ, 2ª S., EREsp 187.940, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, julg. 22.9.2004.47 STJ, 3ª T., REsp. 228.840, Rel. Min. Ari Pargendler, Rel. p/ acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito,

julg. 26.6.2000. V. tb. STJ, 4ª T., REsp 401.718, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 3.9.2002; STJ, 4ª T., REsp 294.057, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julg. 28.6.2001; STJ, 4ª T., REsp 97.590, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julg. 15.10.1996; e especialmente STJ, 3ª T., REsp 444.716, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 11.5.2004.

48 TJSP, 35ª C.D.P., Ap. Cív. 1071021000, Rel. Des. Mendes Gomes, julg. 26.11.2007; TJDFT, 3ª T.R.C., Ap. Cív. 20060610085403, Rel. Des. Alfeu Machado, julg. 1.10.2008; TJRS, 1ª T.R.C., Recurso. Cível 71001737865, Rel. Des. Ricardo Torres Hermann, julg. 9.10.2008.

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Aqui a função social do contrato é invocada para respaldar a chamada tutela ex-terna do crédito, ou responsabilidade pela violação do direito de crédito.49 Embora amplamente difundida, é bastante controversa a utilização da função social do contrato para respaldar aquilo que em outros ordenamentos foi fundamentado pela ideia de oponibilidade ou eficácia indireta ou reflexa do contrato.50 A ligação estaria no fato de, uma vez que o contrato desempenhe uma relevante função social, será merecedor de proteção também perante terceiros. Esta concepção, to-davia, é criticada por prestigiosa doutrina que afirma que, nos casos excepcionais nos quais se pode impor a responsabilidade ao terceiro pela lesão ao crédito, o seu fundamento seria a boa-fé.51

É curioso observar que, a despeito de ter enfrentado também enormes resis-tências, não se tem notícia de a função social da propriedade ter sido concebida, em algum momento, como princípio, como ocorreu com a função social do con-trato. Persistindo na comparação, a principialização da função social do contrato parece ter funcionado como uma estratégia compromissória para atribuir-lhe al-gum efeito, frente as resistências oferecidas, mas um espaço bastante restrito e delimitado. Isso permitiu, em um primeiro momento, a grande conquista de permitir-lhe algum nível de eficácia autônoma, mas, ao final, sua aplicação estaria disputando espaço com outros princípios no processo de ponderação.

Domesticada dessa forma, a função social do contrato conduziria apenas a tutela de interesses de terceiros específicos cuja relevancia social permitiria que, em certas situações, pudessem prevalecer em face dos interesses dos próprios contratantes. Dessa forma, a concepção da função social do contrato como princí-pio acaba fazendo com que ela, na disputa com outros princípios, acabe por não prevalecer, e aí teríamos contratos lícitos e eficazes que, contudo, não devem obedecer a função social. Diante da insuficiência desse modelo, desenha-se uma terceira corrente ou fase na concepção da função social do contrato.

49 Sobre o tema, v. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, n. 750. São Paulo, abr. 1998, pp. 113-120; CARDOSO, Patrícia Silva. Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera com o devedor na violação do pacto contratual. Revista Trimestral de Direito Civil, n. 20. Rio de Janeiro, out.-dez. 2004, pp. 125-150; COSTA, Pedro de Oliveira. Apontamentos para uma visão abrangente da função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Obrigações: Estudos sob a perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 66; e, fora da doutrina nacional, SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito. Coimbra: Almedina, 2003, passim.

50 Sobre o tema, v. DÍEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial, vol. I. 5. ed. Madrid: Civitas, 1996, p. 427 e ss.

51 TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporaneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 398.

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6 A função social do contrato para além de sua qualificação como princípio

Resgatando as premissas iniciais de perfil funcional e funcionalização dos institutos, conduz-se ao entendimento de que a autonomia privada, em especial a liberdade de contratar, nunca é um valor em si, ela só será protegida enquanto corresponder a um interesse digno de tutela pelo ordenamento.52 Assim, enquanto no modelo liberal clássico a intervenção legislativa seria entendida como um obs-táculo ou restrição a autonomia privada, hoje se reconhece que, em sociedades desiguais, é a atuação do legislador e do poder público que garantem a efetiva liberdade da pessoa humana. É na expressão dessas condições e requisitos para a tutela jurídica da atividade negocial, na concretização destes limites – mais internos do que externos – sobre o poder normatizador do particular, que se deve encontrar o lócus de atuação da função social do contrato.

Afirma-se, assim, que a função social do contrato implica o condicionamento da tutela da liberdade de contratar a interesses da coletividade. Trata-se da proi-bição de contratos que repercutam negativamente sobre a comunidade e da con-servação ou tratamento diferenciado de contratos que repercutam positivamente junto a sociedade. Nesta terceira série de efeitos, já se enfatiza mais o caráter “social” da função que guia a normatização do contrato. A função do contrato tem que estar de acordo com certos interesses que são independentes das partes, afirmando-se assim que “a liberdade de contratar está limitada não só pela su-premacia da ordem pública, mas também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais”.53

A referência genérica a interesses sociais ou coletivos, contudo, não fica ao alvedrio do intérprete, que poderia impor um descabido viés assistencialista a ativi-dade contratual. Não são quaisquer interesses do grupo que devem ser atendidos, mas aqueles interesses positivados pelo direito como merecedores de tutela.54 O regulamento negocialmente estabelecido deve ser condizente com certos valores reputados socialmente relevantes, quais sejam, aqueles que se encontram posi-tivados no ordenamento por meio dos princípios constitucionais.55 Nesse sentido,

52 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 279.53 TJSP, 11ª C.D.Publ., Ap. Cív. 7248535000, Rel. Des. Francisco Vicente Rossi, julg. 24.4.2008. 54 O alerta é de que a expressão função social no direito privado “pôde ser utilizada por diversas teorias

econômicas para justificar inumeráveis ações estatais limitadoras das liberdades individuais. Do socialismo ao fascismo, a exigência de uma conduta privada na conformidade com o coletivo espalhava-se com relativa aceitação nas sociedades européias da segunda década do século XX” (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social no direito privado e constituição. In: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Função social no direito civil, 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 19).

55 LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. Revista de Direito do Consumidor, n. 42. São Paulo, p. 191.

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como foi destacado quanto as diversas formas de propriedade, também para as diversas formas de contrato podem ser encontrados, no texto constitucional, os fins que devem ser alcançado para o merecimento de tutela, tais como a valoriza-ção do trabalho humano, a livre iniciativa, a dignidade humana, a justiça social, a soberania nacional, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a proteção ao meio ambiente, o pleno emprego, a proteção das microempresas etc.56

Eventualmente, como já foi destacado, isto pode significar proteger uma das partes também, por exemplo, quando o contrato se contrapõe a dignidade huma-na, pode ser a dignidade de uma das partes que esteja sendo lesada e que vai ser protegida pela extinção do contrato.57 Mas nestes casos o interesse tutelado é coletivo porque vai além do interesse das partes, podendo, em certos casos, até mesmo se contrapor a vontade de ambos os contratantes. Assim, a violação da função social do contrato ocorreria na hipótese de restarem atingidos pelos efeitos do contrato interesses metaindividuais juridicamente relevantes, como se destaca também na jurisprudência:

Não ofende o princípio da função social do contrato a cláusula que prevê o pagamento de multa caso o contratante empregue um dos ex-funcionários ou representantes da contratada durante a vigência do acordo ou após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua extin-ção, porquanto não existe proibição a tal contratação, encontrando-se ausente qualquer interesse metaindividual, seja coletivo ou difuso.58

A consequência da proteção aos interesses da coletividade pode ser não ape-nas a privação de efeitos dos negócios que afrontam tais interesses, mas tam-bém a conservação ou o tratamento jurídico diferenciado de um contrato que tenha grande repercussão no atendimento de um interesse socialmente relevante. Na jurisprudência, podem ser identificadas decisões que, seguindo esta linha, invocam a função social do contrato para conferir tratamento jurídico diferenciado aos chama-dos “contratos de gaveta” no ambito do Sistema Financeiro Habitacional (SFH) de modo a assegurar o acesso popular a moradia,59 para interpretar ampliativamente

56 Incluem-se ainda nesta lista “o respeito a cultura, ao desenvolvimento do ensino científico e do desporto, além do meio ambiente” (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social no direito privado e constituição, cit., p. 35).

57 Assim, GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social no direito privado e constituição, cit., p. 32, para quem “o intérprete, ao realizar sua atividade de concretizar cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, deve considerar os direitos fundamentais previstos no texto constitucional sem que, por isso, o litígio deixe de ser de natureza intersubjetiva (privada), mesmo que informado pelos valores e princípios constitucionais”.

58 TJDFT, 4ª T. C., Ap. Cív. 20070111078052, Rel. Des. Maria Beatriz Parrilha, julg. 2.7.2008.59 STJ, 3ª T., REsp 811.670, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 16.11.2006; TJRS, 9ª C.C., Ap. Cív.

70022284731, Rel. Des. Odone Sanguiné, julg. 16.4.2008; TJSP, 9ª C.D.P., Ag. Instr. 5245314900, Rel.

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PARA ALÉM DA “PRINCIPIALIZAÇÃO” DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

a cobertura do contrato de seguro-saúde de modo a assegurar o direito a saúde,60 para determinar o parcelamento de débito de usuário de serviço de fornecimento de eletricidade evitando, assim, que ocorra a sua interrupção, em nome da pro-teção a dignidade humana,61 ou para condenar o fiador a manter-se garantidor da locação na prorrogação automática do contrato por seu afastamento, generica-mente, “ofender interesses sociais previstos na Constituição”.62

É importante destacar que nesta esfera de efeitos já se ressalta a relevancia da função específica daquele contrato para determinar sua compatibilidade com a função social que lhe garante juridicidade.63 Os efeitos aqui cominados, seja no tocante a privação de eficácia por incompatibilidade com interesses metain-dividuais, seja no tocante ao tratamento diferenciado por atendimento aqueles interesses, só são determinados em virtude da comparação da finalidade daquele contrato individualizado com relação aos interesses coletivos.64

Em doutrina se indica o tratamento especial dado pela lei a assunção de débito hipotecário,65 com consentimento presumido em razão da relevancia so-cial deste tipo de dívida e o direito de preferência nos contratos agrários.66 Na jurisprudência, por exemplo, na análise do merecimento de tutela da cláusula penal de um contrato de prestação de serviços, a fundamentação se diferencia na medida em que se trata da prestação de serviço educacional e, em virtude desta especificidade, a “limitação da multa moratória incidente sobre mensalidades es-colares determinada na origem encontra amparo na função social do contrato”.67 Na mesma linha, a ruptura de um contrato de seguro é reputada especialmente injustificada por tratar-se o segurado de pessoa idosa.68

Des. Grava Brazil, julg. 25.9.2007. No caso específico de atribuição de legitimidade para a cessionária do financiamento, STJ, 1ª T., REsp 627.424, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 6.3.2007.

60 TJRS, 5ª C.C., Ap. Cív. 70026788521, Rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, julg. 15.10.2008; TJRS, 5ª C.C., Ag. Instr. 70026516435, Rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, julg. 15.10.2008; TJRJ, 15ª C.C., Ap. Cív. 2008.001.42010, Rel. Des. Helda Lima Meireles, julg. 1.7.2008; TJSP, 4ª T.C., Recurso Inominado 11449, Rel. Des. Maria do Carmo Honorio, julg. 8.7.2008; TJDF, 1ª T. C., Ag. Instr. 20080020101970, Rel. Des. Natanael Caetano, julg. 24.9.2008.

61 TJRJ, 2ª C.C., Ap. Cív. 2008.001.47220, Rel. Des. Carlos Eduardo Passos, julg. 10.9.2008.62 STJ, 3ª S., EDcl nos EREsp 791.077, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julg. 23.4.2008. 63 Sobre a importancia de considerar as distinções entre os contratos ao aplicar a função social, v. GAMA,

Guilherme Calmon Nogueira da. Direito contratual contemporaneo: a função social do contrato. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporaneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 369-393.

64 TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporaneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 402.

65 CAVALIERI FILHO, Sérgio. O novo Código Civil e o Código do Consumidor: convergências ou antinomias. Revista da EMERJ, v. 5, n. 20. Rio de Janeiro, 2002, p. 110.

66 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de Direito Civil, Imobiliá-rio, Agrário e Empresarial, n. 45. São Paulo, jul./set. 1988, p. 138.

67 STJ, 3ª T., REsp 476.649, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 20.11.2003. 68 TAPR, Ap. Cív. 263.725-6, Rel. Des. Wilde de Lima Pugliese, publ. 10.9.2004.

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CARLOS NELSON KONDER

Mesmo hipóteses que se poderiam considerar enquadradas na esfera de efeitos de mera tutela de interesse das partes encontram justificativa em interes-ses coletivos na medida em que a razão da intervenção reequilibradora passa a ser uma especificidade funcional do contrato em exame. Por exemplo, a cláusula resolutiva que priva o devedor do direito a purgar a mora é especialmente abusiva por se tratar de um contrato de financiamento habitacional: “Isto porque o contra-to, na modalidade apontada, contempla manifesto interesse social – obtenção de moradia”.69

Esse panorama revela que, sob essa última perspectiva, a função social do contrato é aplicada de forma mais análoga a função social da propriedade, como um postulado metodológico-hermenêutico que leva o intérprete a submeter a tu-tela do direito individual ao atendimento de interesses coletivos. Contrapõe-se, em certa medida, a possibilidade de concebê-la como princípio, já que ela não é ponderada ou superada por outros princípios, não valora ou reprova condutas específicas, não se limita a impor sanções. Trata-se muito mais de uma exigência interpretativa que remete a tutela do contrato ao atendimento de bens jurídicos coletivos para além dos bens individuais.

7 Conclusão

A trajetória até aqui percorrida revela certa dificuldade na interpretação e aplicação da função social do contrato no ordenamento brasileiro. Esse fato pode ser tributado a falta do longo trajeto histórico de debates de que desfrutou a função social da propriedade, cujas conquistas culminaram não apenas no seu reconhecimento expresso nos textos constitucionais, mas na indicação de pa-rametros específicos, na Carta de 1988, para sua aplicação conforme o tipo de propriedade em jogo (urbana ou rural), indicando-se assim a pluralidade normativa dos estatutos proprietários.

Ao contrário, a função social do contrato teve primeira aparição legislativa no Código Civil de 2002, com parcas referências doutrinárias antes disso, e sua posi-tivação e aplicação efetiva sofreu e ainda sofre enormes resistências. Atribuiu-se a isso, neste estudo, a estratégia compromissória de considerá-la um princípio de direito contratual, de eficácia externa, no sentido de, ponderada com princí-pios clássicos, poder eventualmente permitir a repercussão do contrato perante terceiros.

69 TJSP, Ap. Cív. 4500574100, Rel. Elcio Trujillo, publ. 25.9.2006.

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PARA ALÉM DA “PRINCIPIALIZAÇÃO” DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Em que pese esse enquadramento ter permitido algumas conquistas, entre as quais o reconhecimento de um conteúdo autônomo a função social do contrato, defendeu-se aqui que esse entendimento termina por subestimar as suas po-tencialidades interpretativas no nosso ordenamento. Impõe-se, portanto, ir além dessa “principialização” do conceito, para reconhecer na função social do contra-to, tal qual a função social da propriedade, mais do que um princípio, já que ela não é ponderada com outros princípios, mas sim remete a quais interesses são relevantes para a ponderação. Assim, tratar-se-ia de um postulado hermenêutico- metodológico, que condiciona internamente a legitimidade do exercício da liberda-de contratual ao atendimento de interesses coletivos extracontratuais positivados constitucionalmente.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

KONDER, Carlos Nelson. Para além da “principialização” da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 39-59, jul./set. 2017.

Recebido em: 10.6.2017

1º parecer em: 17.6.2017

2º parecer em: 23.6.2017

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A APLICAÇÃO DA SUPPRESSIO (VERWIRKUNG) NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PRIVADAS

THE APPLICATION OF SUPPRESSIO (VERWIRKUNG) IN THE SCOPE OF PRIVATE LAW RELATIONS

José Tadeu Neves XavierDoutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Professor e Coordenador de Cursos de Pós-Graduação da Faculdade IDC. Professor do Curso de Graduação e Mestrado em Direito da Faculdade Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP. Professor da Escola da Magistratura do

Trabalho do Rio Grande do Sul – FEMARGS. Advogado da União.

Resumo: A boa-fé exerce diversas funções no contexto das relações jurídicas de direito privado, atuan-do como instrumento indispensável para a tutela da confiança. Dentre estas funções se destaca a sua atuação como mecanismo de controle do exercício de direitos subjetivos, em que, por influência da doutrina germanica, surge a figura da suppressio (Verwirkung). A aplicação da suppressio gera o reconhecimento da ineficácia de determinado direito que não se mostra operante frente ao transcurso de um período de tempo considerável, propiciando a contraparte a crença no sentido de perda de interesse do titular em exercê-lo.

Palavras-chave: Confiança; Boa-fé; Suppressio; Verwirkung; Abuso de Direito.

Sumário: 1 Considerações iniciais: a importancia da tutela da confiança nas relações jurídicas – 2 A boa- fé objetiva e suas funções no direito privado – 3 A suppressio e suas implicações no Direito Negocial – 4 A suppressio e figuras jurídicas afins – 5 A suppressio no Direito Privado brasileiro – 6 Considerações finais

Abstract: Good faith exercises several functions in the context of legal relations of private law, acting as an indispensable instrument for the protection of trust. Among these functions, it stands out as a mechanism for controlling the exercise of subjective rights, where, through the influence of Germanic doctrine, the figure of suppressio (Verwirkung) arises. The application of the suppressio generates the recognition of the inefficacy of a right that does not appear operative in the course of a considerable period of time, giving the counterpart the belief that the holder’s interest in exercising it is lost.

Keywords: Trust; Good Faith; Suppressio; Verwirkung; Abuse of Rights.

Summary: 1 Initial considerations: the importance of safeguarding trust in legal relations – 2 Good faith and its functions in private law – 3 Suppressio and its implications in Private Law – 4 Suppressio and related legal figures – 5 Suppressio in Brazilian Private Law – 6 Final considerations

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JOSÉ TADEU NEVES XAVIER

1 Considerações iniciais: a importância da tutela da confiança nas relações jurídicas

O pensamento jurídico deve estar em constante compasso com a evolução das relações sociais, pois este é o ambiente em que ele se realiza. A sociedade atual vive uma fase de intensas mudanças, marcadas pelo chamado sentimento pós-moderno, o que inevitavelmente se reflete no Direito, exigindo a busca de no-vos paradigmas que possam lhe servir de bússola neste trajeto ainda desconheci-do. A complexidade, típica do contexto social em que vivemos, impõe a renovação do pensamento jurídico civilista, trazendo novos valores, aptos a auxiliar o sujeito de direito no tráfico de suas relações negociais. Neste sentido, a narrativa pós- moderna vale-se da redescoberta e valorização mais intensa de sobreprincípios, que auxiliam na manutenção da coerência interna do ordenamento, reduzindo com isso a sua complexidade e propiciando a efetiva inserção da pessoa no diálogo ju-rídico, ao mesmo tempo em que mantém o Direito como um ambiente aberto, apto a receber as inovações que lhe são apresentadas, em decorrência das mudanças de comportamento social.

Dentre os sobreprincípios que são chamados para experimentarem a releitura pós-moderna, certamente merece destaque aquele comprometido com a promo-ção da proteção das expectativas legítimas e da lealdade negocial, ou seja, o prin-cípio da tutela da confiança. As céleres e profundas mudanças comportamentais que o sentimento pós-moderno proporciona mostram-se capazes de desarticular as regras de convívio, pondo em risco o ideal de estabilidade e de segurança jurí-dica nas relações sociais. Desta forma, a valorização e salvaguarda da confiança acabam por representar um instrumento indispensável para manter coesas as regras de convívio social e, assim, viabilizar a continuidade das relações jurídicas, afastando-as das sequelas negativas da complexidade pós-moderna.

Como reflexo inevitável da subserviência ao sobreprincípio da promoção da confiança, e talvez como a sua forma de materialização mais mercante, encon-tramos o postulado da boa-fé, que se insere nos diálogos jurídicos, assumindo diversas funções, como canone hermenêutico, criador de deveres de conduta nas relações negociais ou funcionando como mecanismo de dosagem limitadora do exercício de direitos subjetivos.

Neste ensaio, o foco será centralizado na atuação da boa-fé no controle do exercício de direitos subjetivos e, mais pontualmente, na modalidade da suppressio,1 como uma das formas de expressão deste importante postulado do direito dos negócios.

1 Não há uniformidade no meio acadêmico sobre a adequada grafia a ser atribuída a esta expressão. Em consideração a doutrina de António Meneses Cordeiro, grande responsável pela sua utilização no direito luso-brasileiro, optamos pela forma suppressio, em detrimento de supressio.

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A APLICAÇÃO DA SUPPRESSIO (VERWIRKUNG) NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PRIVADAS

2 A boa-fé e suas funções no Direito Privado

A boa-fé tem assumido nos últimos tempos o papel de especial destaque no ambito do Direto Privado, estando presente em todos os momentos da relação ne-gocial. Reinhard Zimmermann e Simon Whittaker chegam a afirmar que a boa-fé, em seu sentido amplo, está potencialmente relacionada a todas (ou pelo menos a maioria) as doutrinas do direito dos contratos na atualidade.2 No sistema jurídico postulado, este princípio, além de representar uma das linhas de orientação da legislação consumerista, delineando vários de seus institutos, também se faz presente de forma bastante marcante no Código Civil, em diversos momentos desta codificação.

De acordo com o entendimento preponderante na doutrina, a boa-fé pode ser chamada para exercer diferentes funções dentro do tráfico jurídico, atuando como canone hermenêutico integrativo dos contratos, por decorrência da atribuição que lhe é confiada pelo artigo 113 do Código Civil,3 como norma de criação dos deve-res jurídicos, como os deveres de proteção, lealdade, informação e cooperação (art. 422 do Código Civil) e, ainda, como limitadora do exercício dos direitos sub-jetivos (função de controle).

Esta última tarefa outorgada a boa-fé é encontrada no artigo 187 do Código Civil,4 e no microssistema consumerista, em que funciona como critério identifi-cador das cláusulas abusivas, semelhante ao que ocorre no Direito germanico.5 Nesta função, o postulado da boa-fé estabelece limitações de atuação dos par-ceiros contratuais, definindo condutas e controlando a transferência de riscos profissionais e, até mesmo, proporcionado a liberação do devedor face a não

2 ZIMMERMANN, Reinhard; WHITTAKER Simon. Good Faith in European Contratct Law, New York: Cambridge University Press, 2008, p. 678.

3 Código Civil, art. 113: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. A importancia da utilização do princípio da boa-fé como camon hermenêutio é referendada por Cláudia Lima Marques, que ensina: “a melhor linha de interpretação de um contrato ou de uma relação de consumo deve ser a do princípio da boa-fé, o qual permite uma visão total e real contrato em exame” (MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação? Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 22, 2002, p. 51).

4 Código Civil, art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede mani-festamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

5 Vera Maria Jabob de Fradera, ao abordar o tema no Direito alemão, explica que neste modelo “o controle do exercício da autonomia da vontade é realizado de maneira ampla pelo juiz, valendo lembrar aqui a teoria do abuso de direito, nascida da ‘exceptio doli generalis’ ressuscitada pela jurisprudência do fim do século passado. Esta construção foi vinculada ao parágrafo 242, onde se prevê a execução de boa-fé das convenções. Esta construção é peculiar ao direito alemão, se bem sejam as duas noções indissociáveis, na maioria dos sistemas jurídicos. Foi também com base na boa-fé objetiva que o juiz alemão controlou a edição de cláusulas abusivas nos contratos de consumo, antes mesmo da publicação da AGBG, de 1976” (FRADERA, Vera Maria Jacob. A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato. Revista Brasileira de Direito Comparado, nº 24, jan./junho de 2003, p. 147).

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JOSÉ TADEU NEVES XAVIER

razoabilidade da conduta do outro contratante.6 Dessa forma, a boa-fé ganha um aspecto objetivo, genérico, num patamar de conduta do homem médio, possi-bilitando ao julgador, em cada caso concreto que lhe é apresentado, decidir se o comportamento do contratante ultrapassou ou não os limites impostos pela razoabilidade.7 Neste sentido, Ricardo Seibel de Freitas Lima, ao analisar a poten-cialidade da boa-fé como limite ao exercício de direitos subjetivos, observa que tal função impõe um arquétipo exemplar de conduta, cuja construção decorre da experiência e de sua aplicação em casos concretos, com posterior sistematização científica, permitindo sua definição e redefinição contínuas, especialmente quan-do concebida em um modelo jurídico aberto.8

A construção doutrinária sobre a boa-fé, como critério a ser observado no exercício de direito, construiu quatro formas de limitações de comportamento a serem observados na concretização da cláusula geral do abuso de direito: o venire contra factum proprium, o tu quoque, a surrectio e a suppressio.9

O venire contra factum proprium representa o exercício de posição jurídica em contradição com o comportamento anteriormente assumido pelo seu titular. Como leciona António Menezes Cordeiro esta figura pressupõe dois comporta-mentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum proprium), porém, contrariado pelo segundo,10 acrescentando que, devido

6 Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?, cit., p. 50-51.

7 MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?, cit., p. 57.

8 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Pautas para a interpretação do artigo 187 do novo Código Civil, Revista dos Tribunais, v. 838, agosto de 2005, p. 29. O autor explica mais detalhadamente a sua afirmação: “com isso, a norma contida no art. 187 do Código Civil de 2002 somente se concretizará e obterá seu maior alcance com a atividade judicial criadora que lhe dê aplicação nos casos concretos, além do esforço dou-trinário no sentido de sistematizar as hipóteses típicas em torno de uma unidade conceitual. Os preceitos éticos do art. 187 não têm uma definição rígida e pré-concebida, mas permitem, como referido, a entrada de elementos externos ao Código, exigindo uma delimitação em concreto. Isso não significa dizer que são totalmente indeterminados a priori, pois, na medida que seu significado vai sendo construído em uma série de casos concretos, a luz das circunstancias da vida social, é possível a elaboração de sistematiza-ções que orientem os operadores jurídicos para novas aplicações. Trata-se de uma aplicação que segue, portanto, o ‘novo pensamento sistemático’, conjugação dos pensamentos tópico e sistemático” (p. 31).

9 Neste sentido o enunciado nº 412 da V Jornada de Direito Civil: “Art. 187: As diversas hipóteses de exer-cício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como suppressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva”.

10 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra: Almedina, 1984, p. 745. O autor esclarece: “a pessoa que manifeste a intenção de não praticar determinado acto e, depois, o pratique, pode ser condenada, em certas circunstancias, ainda quando o ato em causa seja permitido, por integrar o conteúdo de um direito subjetivo. Pode ordenar-se a vasta casuística existente em três grupos. Num primeiro, o titular-exercente manifesta a intenção de não exercer um direito potestativo, mas o exerce (...) no segundo, o titular-exercente indicia não ir exercer um direito subjetivo comum, mas exerce-o (...) no terceiro, finalmente, a pessoa age ao abrigo de uma permissão genérica de actuação, por exemplo – declara não ir tomar determinada atitude, mas acaba por assumi-la. Esta hipótese de ‘venire contra factum proprium’ não tem sido suficientemente esclarecida pela doutrina e pela jurisprudência” (p. 747-748).

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A APLICAÇÃO DA SUPPRESSIO (VERWIRKUNG) NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PRIVADAS

a sua carga ética, psicológica e sociológica, o venire contra factum proprium aten-ta necessariamente contra a boa-fé, em especial por ser expressão da confiança, ambito de vedação de comportamentos desprovidos da devida coerência.11

A fórmula do tu quoque traduz a regra pela qual uma pessoa que viole uma norma jurídica, ao exercer a situação jurídica que essa norma lhe atribua, estará atuando num exercício inadmissível de posição jurídica, ficando desprovido de tutela em relação a eventual pretensão que tenha origem nesta mesma relação jurídica. Como explica António Menezes Cordeiro, fere as sensibilidades primárias, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um contrato e, depois, vir a exigir a outrem o seu acatamento.12 Dessa forma, no tu quoque contratual há um excesso no recurso as potencialidades regulativas de um negócio que o próprio titular já violara, em síntese, o exercício de posições jurídicas em cuja base tenha havido condutas incorretas fere o postulado da boa-fé obrigacional.

A surrectio (Ervirkung) atua como instrumento de reconhecimento de um novo direito subjetivo, originário do exercício continuado de uma situação jurídica, ao arrepio do ordenamento legal ou da conversão firmada entre os sujeitos de direito. Ela é aplicada como mecanismo de estabilização de uma relação para o futuro, mas que já se encontra consolidada na realidade fática.

A suppressio, por sua vez, está relacionada a impossibilidade do exercício de direitos ou prerrogativas contratuais, em decorrência da verificação de diversos fatores associados ao transcurso do tempo e a inação titular de certo direito em exercê-lo. A expressividade da suppressio na realidade das relações sociais aca-bou por colocá-la em destaque em relação aos demais postulados relacionados ao princípio da boa-fé, a ponto de Reinhard Zimmermann e Simon Whittaker terem referido que esta decorrência da boa-fé acabou por adquirir vida própria, sendo elevada a categoria de doutrina autônoma.13

11 Cf. CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 753-754. O autor, entretanto, informa: “a recondução laboriosa do ‘venire contra factum proprium’ a doutrina da confiança e ao princípio da boa-fé não é pacífica. Na base da sua natureza, coloca-se um problema de regime, com questões deste tipo pode um incapaz ‘venire contra factum proprium’? E se houver simulação ou coação física, erro, dolo, coação moral ou incapacidade acidental, quando da produção do ‘factum proprium’? A doutrina é uniforme em tomar a previsão de ‘venire contra factum proprium’ por meramente objetiva; não se requer culpa, por parte do titular exercente, na ocorrência de contradição. Não se pode, contudo, ir tão longe nesta via que, ao ‘factum proprium’ se dê mais consistência do que ao próprio negócio jurídico: também este, afinal e por maioria de razão, suscita, no espaço jurídico, confiança digna de protecção e, não obstante, cede perante vetores que, em casos determinados, se apresentem com peso maior” (p. 761).

12 Cf. CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 837. O autor traz a colação os ensina-mentos de Gunther Teubner, segundo o qual o tu quoque contratual teria sido imputado a um dos seguin-tes oito princípios: “a retaliação, a regra da integridade, a recusa de protecção jurídica, a compensação de culpas, ao recurso ao próprio não direito, aos comportamentos contraditórios, a renúncia a sanções e a proporcionalidade contratual” (p. 840).

13 ZIMMERMANN, Reinhard; WHITTAKER Simon. Good Faith in European Contratct Law, cit., p. 32. Acredita-mos que na análise da atuação da boa-fé como orientadora e limitadora do exercício de direitos subjetivos

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JOSÉ TADEU NEVES XAVIER

3 A suppressio e suas implicações no Direito Negocial

3.1 O conceito de suppressio

A expressão suppressio foi a escolhida por António Menezes Cordeiro para representar na linguagem jurídica portuguesa, aquilo que a doutrina germanica de-signa de Verwirkung, significando: “a situação de direito que, não tendo sido, em certas circunstancias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não pos-sa mais sê-lo, de outra forma, se contrariar a boa-fé”.14 Certamente a realização de mera tradução do termo da linguagem jurídica germanica não se mostraria sa-tisfatório, pois causaria confusão com figuras jurídicas tradicionais e que já alcan-çaram significação própria e exclusiva em nossos diálogos jurídicos. Expressões próximas a Verwirkung¸ como prescrição, decadência, caducidade, preclusão, não se mostram adequadas para trasladar para o direito luso-brasileiro o significado alcançado e as funções que a palavra alemã assumiu no contexto das relações jurídicas. Como arremata António Menezes Cordeiro “para o progresso de uma Ciência, há que, a realidades autónomas, atribuir expressões próprias e a concei-tos novos, nominações novas, sem confusão com factores já existentes”.15

A partir das lições deste jurista, a suppressio assumiu papel de destaque no estudo das relações jurídicas travadas no ambito do Direito Privado luso-brasileiro, sendo categoricamente relacionada a tutela da confiança e da boa-fé.

No direito espanhol, com mais ênfase na concepção de abuso de direito, o jurista Diez-Picazo definiu a suppressio (Verwirkung) como:

el abuso del derecho consistente en un ejercicio del derecho realizado con retraso desleal (illoyal verspäteste Rechtsausübung). Un derecho

também há espaço para a inserção da figura do sistema jurídico da Common Law, conhecida como duty to mitigate the loss. Esta orientação parece ter sido adotada no enunciado nº 169 da III Jornada de Direito Civil, dispondo: “Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.

14 Cf. CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 797. O autor informa que “na doutrina portuguesa já foram utilizados, com esse efeito, os termos caducidade e exercício inadmissível de direito. Mas sem razão: ‘caducidade’ é a extinção de uma posição jurídica pelo decurso de um prazo a que este esteja sujeito e que, nada tendo a ver com a boa fé, goza de regime explícito – art. 328º ss.; ‘exercício inadmissível do direito’ é expressão consagrada para, no domínio da doutrina da segunda codificação, designar o que em França se diz ‘abuso de direito’, embora em termos mais amplos. Poderiam ser feitas outras tentativas: ‘decadência’, ‘inibição’, ‘paralisação’, ‘preclusão’ ou ‘perda’. Porém, a ‘decadência’ é usada por AA. brasileiros como sentido de caducidade, a ‘inibição’ implica uma ideia de não possibilidade transitória de exercício, tendo conotações técnicas com setores específicos, como ocorre com a inibição ao exercício do poder paternal, a inibição de exercício de advocacia ou a inibição do direito de conduzir, p. ex., a ‘paralisação’ associa-se ao funcionar de uma excepção de Direito material, podendo ser usada apenas em termos descritivos, a ‘preclusão’ liga-se ao efeito emergente do decurso do prazo ou a outros efeitos igualmente impeditivos, mas sempre determinados e a ‘perda’ para além de já ter um sentido técnico específico nos direitos reais”.

15 Cf. CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 798.

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subjetivo o una pretensión no pueden ejercitarse cuando el titular no sólo no se ha preocupado durante mucho tiempo de hacerlos valer, sino que incluso ha dado lugar, con su actitud omisiva, a que el adversário de la pretensión pueda esperar objetivamente que ya no ejercitará el derecho.16

Pela aplicação deste desdobramento do postulado da boa-fé, embora de-terminado direito subjetivo seja de indiscutível existência, fundando-se inclusive sobre base normativa expressa e de plena vigência, a inércia prolongada de seu exercício, acabará por acarretar ao seu titular a inviabilidade de colocá-lo em prá-tica, sob pena de atentar contra a segurança jurídica e, por consequência, violar o sobreprincípio da confiança. A suppressio, portanto, opera com eficácia nega-tiva, impedindo que um direito se realize, embora subsista segundo as normas legais,17 de forma que o abandono aparente de um direito acaba por paralisá-lo.18

Judith Martins-Costa prefere pôr em destaque o caráter sancionador da suppressio, ressaltando o seu efeito de “tolhimento do exercício de um direito como meio sancionatório da deslealdade e da torpeza”.19 Temos, no entanto, certa reserva em relação a vinculação da suppressio com o caráter de sanção, pois, conforme será tratado mais adiante, acreditamos que o seu cerne deve estar relacionado a noção de preservação e promoção das expectativas legítimas, como forma de valorização da tutela da confiança, sendo o aspecto punitivo efeito secundário e inevitável.

Em síntese, a suppressio pode ser reconhecida como um fator que acarreta a perda ou supressão de um determinado direito, como causa de impedimento do exercício de direitos e faculdades contratuais, como motivo gerador de preclusão de direitos20 ou ainda como paralisação do exercício de um direito,21 sempre com-binando os elementos tempo, inatividade injustificada (sitting on one’s rights) e a

16 Apud SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 185-186.

17 Cf. BOHMER, Gustav. El derecho a través de la jurisprudencia: su aplicación y creación. Trad. Puig Brutau. Barcelona: Bosch, 1959, p. 247.

18 Na visão de Canaris, citado por CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 823, “na suppressio não está em jogo a extinção gratuita do direito do titular não-exercente, mas antes o benefício reconhecido a contraparte”.

19 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 648. Temos certa reserva em relação a vinculação da suppressio com o caráter de sanção, pois, conforme será tratado mais adiante, acreditamos que o seu cerne deve estar relacionado a noção de preservação e promoção das expectativas legítimas, como forma de valorização da tutela da confiança, sendo o aspecto punitivo efeito secundário e inevitável.

20 FRAZÃO, Ana de Oliveira. Breve panorama da jurisprudência brasileira a respeito da boa-fé objetiva no seu desdobramento da “supressio”. Revista de Direito Privado (São Paulo), v. 44, 2010, p. 31.

21 Expressão utilizada por MARTINS-COSTA, Jutith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium. Revista Forense, vol. 376, p. 109-129.

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tutela da confiança.22 Na precisa síntese de Judith Martins-Costa, por decorrência da suppressio o direito subjetivo ou a faculdade não são negados ou extintos, apenas ficam em estado latente.23

Preferimos ver a suppressio como uma figura jurídica relacionada ao plano da eficácia, ou seja, uma situação capaz de gerar a ineficácia de determinado direito que não se mostra operante frente ao transcurso de um período de tempo considerável, capaz de propiciar a contraparte a crença no sentido de perda de interesse do titular em exercê-lo. É a ineficácia decorrente do abandono do direito pelo seu titular.

3.2 Origem e evolução da aplicação da suppressio nas relações privadas

A suppressio tem origem na jurisprudência tedesca. António Menezes Cordeiro aponta que é possível a verificação de três momentos distintos da sua evolução nas relações privadas:

(a) inicialmente é possível encontrar a ideia do que hoje conhece-mos por suppressio em decisões do final do século XIX, proferidas pelo Reichsoberhandelsgericht, em torno da faculdade atribuída ao vendedor na compra e venda mercantil, que em decorrência da mora do comprador no levantamento da coisa, poderia realizar a venda de ofício, restando-lhe o direito em relação a diferença do preço. Como não havia prazo para o exercício desta pretensão, esta poderia vir a ocorrer após o decurso de longo lapso temporal, frustrando, desta forma, a expectativa do comprador, no sentido de que não mais ocorreria o exercício de tal pretensão. Nas palavras do mestre português entendia-se haver, em certas circunstancias, uma demora desleal no exercício do direito, contrária a boa-fé.24

22 Nas palavras de MIRANDA, José Gustavo Souza, “a suppressio retira, suprime, a possibilidade de exercício de tal direito por parte de seu titular, porque estaria sendo ferido o princípio da boa-fé e da confiança” (A proteção da confiança nas relações obrigacionais. Revista de Informação Legislativa, v. 38, nº 153, jan./março de 2002, p. 145).

23 MARTINS-COSTA, Jutith. A Boa-fé no Direto Privado: critérios para a sua aplicação, cit., p. 648.24 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 799. O autor informa que: “Uma primeira

decisão do ROHG, de 8.-Abr.-1873, que representa um caso claro de suppressio, não se reporta, no entanto, ao tema das vendas de ofício. Discutia-se a situação emergente dos factos seguintes: num contrato de fornecimento, o comprador queixa-se da má qualidade do produto: o vendedor envia-lhe uma carta pedindo provas concretas dos defeitos alegados e afirmando que, até ter uma resposta, suspendia os fornecimentos; o comprador não responde; dois anos volvidos, exige o cumprimento do contrato, nos termos acordados; o ROHG decidiu que ‘um tal procedimento é totalmente inconciliável com a boa fé, tal como é requerida no tráfego negocial’”.

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(b) posteriormente a suppressio passa por uma nova fase de aplicação nas questões que resultam das perturbações econômicas decorrentes da primeira grande guerra, influenciadas, em especial, pelos altos índices inflacionários. Neste sentido, esta figura jurídica passa a ser utilizada como mecanismo apto a restabelecer o equilíbrio econômico dos pactos e a necessidade de apurar o efeito que, nesse equilíbrio, tem o decurso do tempo. Anderson Schreiber explica que a excessiva inflação deste período na economia germanica gerou a superdesvalori-zação do marco alemão, de forma que a diferença de dias no exercício do direito a correção monetária poderia levar a multiplicação do valor do débito. Portanto, passou-se a exigir que o credor informasse o mais rapidamente possível o devedor acerca da sua pretensão.25 Esse autor traz a colação, para exemplificar esta situa-ção, o célebre Caso Goldina, julgado em 1925, pelo Poder Judiciário alemão, rela-tivo a uma ação de impugnação ao uso de determinada marca industrial, em que:

o autor da ação havia depositado, em 1906, junto ao órgão público competente a marca Goldina para um complexo de produtos laticínios, que incluía manteiga, leite condensado e margarina, dos quais somen-te a margarina veio a comercializar. O réu havia depositado em 1896, a mesma marca Goldina para identificar a sua produção de cacau e chocolate, que acabou tendo um grande desenvolvimento nos anos seguintes, ampliando-se, a partir de 1918, para abranger também manteiga e leite condensado. Em 1921, também o autor decidiu ini-ciar a produção de manteiga e leite condensado, valendo-se da marca Goldina, depositada, e já conhecida por parte de uma ampla campa-nha publicitária promovida pelo réu. Concomitantemente, propôs ação para que o réu fosse impedido de usar a marca para tais produtos, com base na prioridade de registro. O tribunal alemão rejeitou a ação, concluindo ser inadmissível o exercício tardio deste direto.26

(c) ainda, sobre os alicerces das lições de António Menezes Cordeiro, visua-liza-se uma terceira fase de consagração da suppressio, em que a Verwirkung vai, gradativamente, se aproximando da noção de boa-fé, em especial, no postulado do venire contra factum proprium. O titular de um direito reconhecido, ao abster-se

25 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit., p. 186. O autor ainda informa: “avançando nesta orientação, em 5 de julho de 1923, o Reichsgericht decretou, pela primeira vez, a ‘perda’ do direito a correção monetária por parte de um empreiteiro que havia retardado por mais de dois meses a comunicação ao seu cliente da pretensão de correção do preço”.

26 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit., p. 187.

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do exercício da pretensão dele resultante, por um considerável lapso de tempo, cria na contraparte a representação de que este direito não mais seria atuado, de modo que, no momento em que venha a agir, entra em contradição. Na síntese desse jurista lusitano, a suppressio torna-se uma forma de exercício inadmissível de direitos.27

A terceira onda jurisprudencial acabou por definir a posição assumida pela suppressio no pensamento jusprivatista, servindo como um dos instrumentos de efetivação do postulado do venire contra factum proprium, e, por consequência, forma de atuação da boa-fé como limitadora do exercício de direitos reconhecidos e tutora das expectativas legítimas.28

Entretanto, tal posicionamento não se firmou indene a críticas. Autores du-vidaram do posicionamento da suppressio como expressão da vedação de com-portamento contraditório, na medida em que o caráter marcante deste postulado estaria posicionado exatamente na presença da inércia, e não no desempenho de um comportamento ativo. Estes questionamentos, porém, não resistiram ao tempo e a consagração teórica da suppressio como forma expressiva da boa-fé. António Menezes Cordeiro, autoridade maior sobre o tema, lecionou com precisão sobre este debate:

desde o momento em que o venire contra factum proprium opere não na base da alegada vinculação voluntária ao comportamento inicial, mas por força da situação de confiança suscitada na contraparte, que o Direito entenda dever proteger, desaparece a necessidade de, no factum proprium, ler um comportamento próprio do titular exercente. Factum proprium pode, afinal, ser qualquer eventualidade que, cons-tituindo a base de imputação, a uma pessoa, de certas conseqüên-cias, lhe seja própria. A não actuação de um direito subjectivo e, pois, facto próprio do seu titular. A realidade social da suppressio, que o Direito procura orientar, está na ruptura das expectativas de continui-dade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito,

27 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 810.28 Neste sentido a lição de SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da

confiança e venire contra factum proprium, cit., p. 188: “Embora já se tenha procurado sustentar a asso-ciação da Verwirkung ao instituto da renúncia tácita, a figura foi gradativamente se desprendendo de con-siderações subjetivistas e vestes negociais, e caminhando em direção a sua inserção no ambito da boa-fé objetiva. Pouco a pouco, percebeu-se que a deslealdade, que se perquiria, não estava no retardamento em si, mas em relação as normais expectativas daquele que acreditava não mais e exercitável o direito. A própria exigência de que o retardatário tivesse conhecimento do direito que deixava de exigir – tão comum nas décadas de 20 e 30 – foi pouco a pouco perdendo importancia ou se objetivando, como fruto da ne-cessidade de se proteger a confiança de terceiros, sendo certo que a tutela da confiança é hoje apontada por toda parte como real fundamento da Verwirkung”.

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o estado gerado. É precisamente o que se viu ocorrer no venire contra factum proprium.29

No mesmo sentido argumenta-se, ainda, que é inaceitável a alegação de que a suppressio pressupõe o decurso de considerável lapso temporal, o que não assume caráter de pressuposto essencial para o venire contra factum proprium. O tempo também é elemento deste segundo postulado da boa-fé, pois a identifica-ção de um comportamento contraditório somente poderá ser realizada levando-se em consideração uma situação que lhe serve de antecedente e também de pa-radigma. A conduta atualmente desenvolvida pelo agente se mostra incompatível com determinada ação ou omissão anterior, mesmo que esta atuação omissiva tenha se constituído paulatinamente, com a sua perseverança, no decorrer do tempo. O nemo potest venire contra factum proprium, portanto, poderá ser verifi-cado tanto em relação a determinada atitude, quando em casos de omissão, ou decorrer de uma situação consolidada, por força da recalcitrante inércia do titular do direito ou prerrogativa, capaz de proporcionar expectativa legítima de preserva-ção deste status quo.30

Assim é comum, entre os autores que se dedicam ao tema, o entendimento no sentido de posicionar a suppressio como subespécie de venire contra factum proprium, ao lado das figuras da surrectio e do tu quoque.

Entretanto, acreditamos que esta não é a melhor forma de compreensão desta instigante figura, pois apesar das indiscutíveis semelhanças, a suppressio é desenhada de forma autônoma em relação ao postulado do venire contra factum proprium, conforme buscamos demonstrar no curso deste ensaio.

3.3 Pressupostos para a ocorrência da suppressio

Como referido anteriormente, a suppressio é assunto que já vem atraindo os olhares de muitos estudiosos do Direito nas últimas décadas, do que se pode

29 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 813.30 É neste sentido que se coloca a lição de SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditó-

rio: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit. p. 190, ao posicionar a suppressio como su-bespécie de venire contra factum proprium: “também o tempo não pode ser entendido como um elemento efetivamente diferenciador. Primeiro, porque, também no venire, entre a conduta inicial e a contraditória há geralmente um lapso temporal, e ao menos entre as suas repercussões sobre terceiros há um lapso temporal necessário. Segundo, porque a importancia de um longo decurso do tempo não deriva de ser a extensão do intervalo temporal um requisito essencial da Verwirkung, mas o fato de que, na maior parte das situações concretas, tal extensão temporal é necessária a formação de uma confiança legítima do não-exercício, ressalvada a concorrência de outras circunstancias quer atribuam este poder gerador de confiança ao comportamento omissivo em lapso temporal mais exíguo”.

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depreender a existência de diversos enfoques em relação aos elementos que se colocam como indispensáveis para a sua caracterização. Cada autor imprime a sua ótica e desenha esta figura jurídica atribuindo-lhe viés próprio. No entanto, quanto a alguns pontos parece haver concílio entre os juristas: (a) a suppressio pressupõe a ocorrência de uma situação de fato que indique a inércia, por parte do titular de certo direito, do interesse de ainda vir a exercê-lo, (b) associada a passagem de um determinado período de tempo e (c) a necessidade de verifica-ção de indícios objetivos no sentido de que esse direito não seria mais exercido, de forma a criar para a outra parte a expectativa legítima de que este não seria mais colocado em prática.

Desta forma, passamos a análise destes pressupostos:

(a) situação de fato que indique a inércia, por parte do titular de certo direito, do interesse de ainda vir a exercê-lo

Conforme vem sendo destacado no decorrer do presente ensaio, a aplicação da suppressio como instrumento de controle do exercício de direitos subjetivos visa atingir um objeto maior, relacionado a tutela da confiança nas relações jurídi-cas. Portanto, o raciocínio de justificação de sua aplicação implica na realização de uma análise tópica do caso concreto, ponderando as suas peculiaridades e verificando a aptidão da conduta em questão para produzir confiança legítima.

Como destaca Julio Gonzaga Andrade Neves é a inércia exatamente o marco distintivo da suppressio diante das demais figuras reconduzidas a vedação de comportamento contraditório e a tutela da confiança.31 Por óbvio que a inércia em questão deve ser integralmente voluntária e, portanto, de fácil percepção, o que leva alguns autores a se referirem a inércia ostensiva.32

(b) decurso de razoável período de tempoO tempo assume posição marcante para a configuração da suppressio. É um

de seus protagonistas. Nessa linha, Ana de Oliveira Frazão ressalta que a caracte-rística principal da suppressio é exatamente o decurso do tempo, visto aqui como fator de estabilização de expectativas de comportamento e de situações legítimas de confiança que devem ser tuteladas, concluindo: “é a proeminência do tempo que diferencia a supressio de outros subprincípios decorrentes da boa-fé”.33 Nas palavras de François Ost: “revelador do direito, o tempo faz nomeadamente surgir o lugar central da confiança (boa-fé, lealdade) na raiz de todos os compromissos

31 NEVES, Julio Gonzaga Andrade. A suppressio (Verwirkung) no Direito Civil. São Paulo: Almedina, 2016, p. 102.32 Idem, p. 105.33 FRAZÃO, Ana de Oliveira. Breve panorama da jurisprudência brasileira a respeito da boa-fé objetiva no seu

desdobramento da “supressio”, cit., p. 28-57.

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jurídicos”, ou seja, “um direito concebido mais como processo de ‘ajustamento’ contínuo do que como sucessão irregular de actos jurídicos instantaneos”.34

Apesar do largo reconhecimento pela práxis, a atuação do tempo como elemento de construção da suppressio não permite a identificação de um lapso temporal fixo de inação da parte para que se possa determinar a aplicação des-ta figura jurídica. Há consenso entre os autores no sentido de que o interregno temporal em questão deve ser relativamente longo, a ponto de assumir a posição de requisito matriz para a realização da Verwirkung, fazendo com que o reconheci-mento da preclusão ou paralisação do direito represente solução justa e de acordo com os ditames da proteção da segurança jurídica.

Neste sentido, voltando as lições de Ana de Oliveira Frazão, reforçando a im-portancia do fator tempo na matéria da suppressio, que deve “ser interpretada em conformidade com as regras de prescrição e decadência, seja para afastar a sua aplicação quando verificadas as causas voluntárias interruptivas da prescrição, seja para realçar a vocação do instituto especialmente para os casos de longos prazos de prescrição”.35 Desta forma, não se pode deixar de reconhecer o aspecto excepcional que a suppressio acaba por assumir, em especial em ordenamentos jurídicos como o brasileiro, em que os prazos de prescrição e decadência, bem como as causas que obstam ou interrompem a sua contagem são bem definidas na legislação.

Para António Menezes Cordeiro a análise do elemento tempo na aplicação da suppressio inevitavelmente nos leva a conclusão de que este é eminentemente variável, consoante as circunstancias.36

(c) verificação de indícios objetivos no sentido de que o direito não mais viria a ser exercido

Conforme já salientado, a suppressio está diretamente comprometida com a tutela da confiança, protegendo, assim, as expectativas legítimas que defluem das relações sociais e jurídicas. Tal confiança legítima foi definida Jorge Cesa Ferreira da Silva, como “a que se tem por ocorrível a qualquer pessoa (seguindo-se

34 OST, François. O tempo do Direito. Tradução Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 19-20.

35 FRAZÃO, Ana de Oliveira. Breve panorama da jurisprudência brasileira a respeito da boa-fé objetiva no seu desdobramento da “supressio”, cit., p. 28-57. António Menezes Cordeiro também aponta observação no mesmo sentido, explicando que “a suppressio é prejudicada pela ocorrência dos factores voluntários que interrompem ou suspendem o decurso dos prazos de prescrição ou de caducidade, uma vez que eles destroem a figuração, por parte do interessado, de que o direito não mais seria exercido” (CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 812).

36 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 810.

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um padrão médio), posta nas condições da parte específica e diante da conduta da parte contrária”.37

Como ressalta António Menezes Cordeiro: “a chave da suppressio está, pois, na alteração registrada na esfera da contraparte, perante o não-exercício. Protege-se a confiança desta, em que não há mais exercícios, a bitola pode ser procurada no sentido que o destinatário normal daria ao não exercício”.38

Não há, portanto, a necessidade de se verificar, na hipótese concreta, a presença de elementos subjetivos, sendo suficiente a constatação de que não mais interessava a parte o exercício de determinada prerrogativa levando-se em considerações as regras de experiência das práticas negociais.

Ao analisar os requisitos necessários para o reconhecimento da adequação da utilização da suppressio ao caso concreto, é possível que alguns destes re-quisitos geralmente indicados como componentes desta figura jurídica possam faltar, desde que os restantes assumam uma intensidade tal que supram a sua ausência.39 Portanto, é possível afirmar-se que a suppressio integra um sistema móvel, característica típica da noção geral da boa-fé.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Ana de Oliveira Frazão ressalta que a impossibilidade da perfeita delimitação teórica e dos requisitos da aplica-ção da suppressio geram receio de que a sua utilização excessivamente flexível possa gerar resultados indesejáveis do ponto de vista da autonomia de vontade, da segurança jurídica e do equilíbrio negocial, concluindo que a sua densificação dependerá essencialmente das circunstancias do caso concreto, e que a sua utilização deve ser utilizada com cautela e parcimônia.40

Ainda na análise dos requisitos autorizadores da implementação da suppressio, é oportuno salientar que algumas peculiaridades do caso específico, em que se objetiva a sua realização, podem se posicionar como indiferentes, em nada influenciando em sua realização.

Inicialmente, cabe apontar a irrelevancia do elemento “culpa”, ou de qual-quer outro elemento subjetivo, por parte do titular de direito que se mantém inerte, para a verificação da ocorrência da suppressio. A situação objetiva, capaz de proporcionar a expectativa legítima de que o direito em questão não seria mais exercido, já se mostra suficiente.

37 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 243.

38 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 820.39 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 824.40 FRAZÃO, Ana de Oliveira. Breve panorama da jurisprudência brasileira a respeito da boa-fé objetiva no seu

desdobramento da “supressio”, cit., p. 30-31.

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No mesmo sentido, eventual desconhecimento da existência de determina-do direito subjetivo, por seu titular, não se mostra, por si só, como motivo sufi-ciente para o afastamento da suppressio, uma vez que esta figura jurídica está correlacionada com a finalidade de proteção da confiança – boa-fé, expectativa legítima – por parte daquele em relação a quem o direito em questão poderia ter sido exercido. Houve a confiança de que o direito não mais seria colocado em prática. No entanto, Guilherme Magalhães Martins observa que “tal conclusão não é absoluta, eis que o conhecimento pelo titular do direito, normalmente passível de verificação pela outra parte, reforça a confiança desta, que pode reputar que o titular, em tal situação, não pretendia exercer seu desiderato”.41

Não se pode olvidar, ainda, o caráter subsidiário que a suppressio exerce, na medida em que não terá cabimento nos casos em que o ordenamento jurídico já apresenta solução específica, em geral decorrente da previsão normativa da caducidade ou da prescrição. Neste sentido é a lição de António Menezes Cordeiro “no que toca ao seu relacionamento com outros remédios jurídicos, a suppressio é, por fim, apontada como saída extraordinária, insusceptível de aplicação sempre que a ordem jurídica prescreva outra solução”.42

4 A suppressio e figuras jurídicas afins

As peculiaridades que delineiam a suppressio a tornam muito específica, de modo a evitar que esta venha a se confundir com outras situações jurídicas de caráter semelhante, vinculadas a boa-fé. No entanto, isso não evita que, cons-tantemente, se verifique o uso indiscriminado destas formas jurídicas. Assim, se mostra oportuno uma breve comparação da suppressio com outras figuras que lhe fazem vizinhança.

Inicialmente, é de se reafirmar que a suppressio, em seus relacionamentos com outras figuras jurídicas afins, tem natureza subsidiária, ou seja, somente terá aplicabilidade quando não se verificar no ordenamento jurídico a presença de medida mais específica, prescrevendo a incidência de postulado diverso. A excepcionalidade do instituto encontra explicação no fato de que os valores que ela comporta, segundo António Menezes Cordeiro, não se fazem presentes na ge-neralidade das situações jurídicas. Ocorre exatamente o contrário: seus requisitos

41 MARTINS, Guilherme Magalhães. A suppressio e suas implicações. Revista Trimestral de Direito Civil – RDTC, ano 8, vol. 32, out-dez, 2007, p. 145.

42 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 812.

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surgem apenas em condições especiais, afastando valores genéricos evidente-mente ligados a existência dos direitos devidamente constituídos, verificando-se, segundo a casuística, a individualização da boa-fé em função do caso concreto.43

Levando em consideração as peculiaridades que delineiam a suppressio, e buscando afinar a compreensão sobre a sua natureza e função, mostra-se opor-tuno o seu cotejo com as importantes figuras jurídicas da renúncia tácita, da prescrição e decadência, e do venire contra factum proprium, surectio e tu quoque. Vejamos:

(a) Suppressio e a renúncia tácitaA proximidade entre os resultados práticos decorrentes da verificação da

suppressio e da renúncia tácita tem patrocinado certa confusão entre estas duas relevantes figuras no ambito obrigacional.

Conforme se vem trilhando no curso deste estudo, a suppressio encontra-se diretamente relacionada com o ideal de proteção da confiança legítima que acom-panha as relações jurídicas de direto privado em geral, tendo seu fundamento no postulado maior da boa-fé. Já a renúncia abdicativa de certo direito, como a ex-pressão já encerra, decorre de uma específica manifestação de vontade, que por meio da forma expressa ou tácita, concretiza-se em determinado caso concreto. É, portanto, e inevitavelmente, decorrente de vontade específica, de forma que esta é elemento indispensável para a sua caracterização. Sem vontade não há renúncia. Logo, se na situação concreta a parte demonstrar a ausência de vontade de renunciar ao exercício de determinado direito, ou que a sua manifestação de vontade foi realizada com a presença de algum vício invalidante – v.g., dolo ou coação – esta se mostrará juridicamente insuficiente ou ineficaz.

Na renúncia tácita o sistema pressupõe a existência de uma vontade, o que decorre do comportamento da parte que realiza a abdicante. Nesta espécie há, portanto, uma efetiva ficção sobre a existência do intuito da parte, uma vez que a vontade é elemento essencial do suporte fático correspondente ao ato de renúncia. Neste aspecto, calha trazer a colação as palavras de Elena de Carvalho Gomes, ao afirmar que:

diferentemente da renúncia tácita, de que se tem feito utilização imo-derada, de modo a projetar, a partir da inatividade do titular, algo que nem sempre dela se pode extrair: a intenção do titular no sentido de abdicar de seu direito. De sorte que o grande mérito da Verwirkung

43 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 818.

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consiste em tratar de forma clara o problema do abuso de direito, sem o recurso a ficções de declaração de vontade, que muitos incon-venientes suscitam.44

Outra distinção digna de nota entre a suppressio e a renúncia tácita abdicati-va de direito pode ser focada no fato da validade desta última depender da ciência do renunciante em relação ao direito que estaria abdicando, característica que não necessita estar presente nos casos de suppressio.

(b) A suppressio e as figuras jurídicas da prescrição e decadênciaO fato de a suppressio ter, dentre os seus elementos constitutivos, o pres-

suposto da passagem do tempo, traz a tona a necessidade de realização de seu cotejamento com as figuras da prescrição e da decadência, na medida em que estas representam as formas mais tradicionais de repercussão do tempo nas relações jurídicas.

Tanto a prescrição como a suppressio atacam a pretensão de exercício de direitos subjetivos, como decorrência de seu não exercício em certo decurso de tempo, e neste aspecto se aproximam a ponto de não raramente virem a serem confundidos, levando alguns autores a se referirem a suppressio como forma de prescrição de fato.45

A prescrição é definida como a perda da pretensão que acompanha determi-nado direito subjetivo, em função do decurso do tempo previsto em lei para o seu exercício. Portanto, é figura jurídica diretamente decorrente de previsão normativa.

A decadência também guarda vinculação com o decurso do tempo, mas, neste caso, se tem a inércia em relação ao exercício de um direito potestativo ou formativo, que caducou pela inexistência de realização no prazo previsto em lei ou no contrato.

Em ambos os casos se está frente a situações genéricas, objetivas, com prazos específicos, que de certa forma atingem a esfera jurídica do titular como decorrência tão somente da inércia deste. Passado o prazo, mantendo-se inerte o titular da pretensão ou do direito, a prescrição e a decadência se impõem. São sanções ao titular de certo direito que em nada dialogam com a boa-fé.46

44 GOMES, Elena de Carvalho. Abuso de direito, Verwirkung e Direitos das Obrigações: reflexões a propósito de um estudo de caso. In: O Direito da Empresa e das Obrigações e o Novo Código Civil Brasileiro. Coord. Alexandre dos Santos Cunha. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 80.

45 Francisco José Ferreira Muniz ao enfrentar o assunto, afirma que “o exercício da pretensão vem, assim, paralisado pela Verwirkung, por ser considerado desleal e abusivo, muito embora não haja transcorrido o prazo legal da prescrição significa aplicar-lhe na realidade uma espécie de prescrição de fato” (MUNIZ, Francisco José Ferreira. O princípio geral da boa-fé como regra de comportamento contratual. In: Textos de Direto Civil. Curitiba: Juruá, 1998, p. 45-46).

46 Nas palavras de AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil. vol. VI, tomo II. Da extinção do contrato, Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 106: “enquanto a prescrição encobre a pretensão

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A suppressio exige mais do que apenas a inércia do titular de um determinado direito subjetivo, deixando de assumir a mera forma de sanção. Ela é desprovida de caráter punitivo, encontrando a sua fundamentação na proteção da confiança, logo é criada com a finalidade de proteger aquele que acredita que a inércia do titu-lar do direito irá se perpetuar. Protege-se mais a parte contrária do que se pune o titular do direito. Neste sentido é a lição trazida por Guilherme Magalhães Martins: “mais do que procurar sancionar a uma inércia do titular do direito não-exercido, o objetivo da suppressio, além como do venire contra factum proprium em geral, é o de proteger a legitima confiança despertada em terceiros”.47

Assim, enquanto a suppressio é fundada na proteção da confiança, compro-metida com a efetivação do ideal de justiça no caso concreto,48 a prescrição e a decadência são erigidas sob o ideal de segurança jurídica.

Por outro lado, tanto a prescrição, como a decadência, dependem da verifi-cação do exaurimento de prazos determinados por lei ou de forma convencional. Os prazos de prescrição de determinada pretensão são sempre decorrentes de determinação normativa – arts. 205 e 206 do Código Civil – e os de caducidade previstos em lei ou fixados por convenção das partes. Seja como for, tratam-se de prazos certos e como tal tratados pelo sistema jurídico. A suppressio, por sua vez, não está a depender da verificação de prazos fixos, exigindo a ponderação em cada caso concreto em que é chamada a ser aplicada, em que se verifique circunstancias nas quais o exercício retardado de um direito se mostre inadmis-sível. São prazos altamente variáveis, oscilando de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Como observa Wagner Mota de Souza, na Verwirkung os prazos são indeterminados e deverão ser aferidos pelo juiz em face de circunstancias particulares.49 Neste sentido, inclusive, calha trazer a colação a ponderação de Anderson Schreiber, ao afirmar que se pode dizer mesmo que a principal função da Verwirkung, nos ordenamentos que a admitem, é justamente a temperança

pela só fluência do tempo, a suppressio exige, para ser reconhecida, a demonstração de que o cumpri-mento da outra parte era inadmissível, segundo o princípio da boa-fé”.

47 MARTINS, Guilherme Magalhães. A suppressio e suas implicações. Revista Trimestral de Direito Civil – RDTC, ano 8, vol. 32, out.-dez. 2007, p. 154. Neste mesmo sentido posiciona-se Anderson Schreiber, afirmando: “É certo que o venire contra factum proprium omissivo não se confunde com tais figuras, ao contrário de procurar sancionar uma inércia do titular do direito não exercido, destina-se a proteger a legítima confiança despertada em terceiro” (SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contra-ditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit., p.190-191).

48 Neste sentido argumenta Ana de Oliveira Frazão, de que a suppressio não pode ser vista como mera decorrência do tempo, mas sobretudo como “resposta do ordenamento jurídico para a deslealdade ou a inatividade abusiva do credor, funcionando ao mesmo tempo como verdadeiro mecanismo de implementa-ção de justiça ado caso concreto” (FRAZÃO, Ana de Oliveira. Breve panorama da jurisprudência brasileira a respeito da boa-fé objetiva no seu desdobramento da “supressio”, cit., p. 34).

49 SOUZA, Wagner Mota de. A teoria dos atos próprios: da proibição de venire contra factum proprium. Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 71-72.

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do rigor dos prazos legais, em geral longos, porque integrantes decodificações promulgadas ou concebidas em épocas de menor dinamismo e celeridade.50

Considerando-se, ainda, as peculiaridades da prescrição e da decadência, nota-se que estas são marcadas pela generalidade, em especial quando decorren-tes de previsão normativa. Já a suppressio, conforme já ressaltado, tem caráter excepcional, casual, tópico.

Anderson Schreiber apresenta o questionamento sobre o possível confronto, em determinado caso específico, ente os prazos legais – de prescrição ou de decadência, e neste caso mesmo os prazos convencionais – e a incidência da suppressio. Este tensionamento ganha sentido na medida em que ficaria de certa forma fragilizado o requisito mais marcante da suppressio, que é exatamente a expectativa da contraparte no sentido de que o direito em questão não seria mais exercido. Se há um prazo de prescrição ou caducidade em decurso, enquanto este não se esvaísse, estaria inviabilizada a criação de tal expectativa legítima fundada no não exercício do direito ou da prerrogativa. No entanto, esse autor traz a seguinte ponderação:

parece, todavia, razoável admitir que, neste confronto com os prazos legais (prescricionais ou decadenciais), o valor da segurança que os inspira ceda em favor da tutela da confiança naquelas hipóteses em que ao simples decurso do tempo se somem comportamentos do ti-tular do direito – caso em que o venire contra factum deixa, a rigor, de ser omissivo e adquire sua feição mais comum – ou circunstancias de fato, imputáveis a ele ou não, que justifiquem uma tutela da boa-fé objetiva independentemente e acima dos prazos fixados em lei, em uma espécie de prescrição de fato.51

O Tribunal de Justiça de São Paulo foi provocado a enfrentar o cotejamento da vigência de prazo legal frente a ocorrência de situação ensejadora da aplicação da suppressio. Foi trazida a Corte, lide em que determinado maquinário industrial foi entregue a conserto sem haver reclamação da empresa proprietária por quase cinco anos. Em voto conduzido pelo Des. Relator Hugo Crepaldi, o Tribunal adotou

50 SOUZA, Wagner Mota de. A teoria dos atos próprios: da proibição de venire contra factum proprium, cit., p. 191.

51 O autor complementa sua explicação: “assim, nas hipóteses de (i) omissão somada a comportamento comissivo inspirador da confiança; ou de (ii) omissão qualificada por circunstancias que na ausência de qualquer comportamento do titular, sejam capazes de gerar a confiança de terceiros, pode se tornar aceitável a aplicação do ‘nemo potest venire contra factum proprium’ inclusive sob a modalidade de Verwirkung, mesmo na pendência de um prazo legal fixo. A efetiva ponderação, todavia, somente poderá ser feita em cada caso concreto” (SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit., p. 192-193).

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a tese da ocorrência da suppressio em prejuízo da observancia do prazo legal de reclamação do direito, afirmando:

por quase cinco anos a máquina esteve a disposição da autora para retirada. Sem exercer esse direito, gerou legítima expectativa de que ele não mais seria exercido, seja no que se refere ao pedido de de-volução, seja com relação a pretensão indenizatória, e, concluindo: é certo que a pretensão indenizatória ainda estava acobertada pelo prazo prescricional. Não obstante, revela a doutrina que as circuns-tancias do caso concreto permitem que, mesmo que ainda podendo ser ajuizada a ação, a pretensão seja obstada pela incidência da suppressio, em prol da preservação da boa-fé objetiva.52

De outra banda, não há como se deixar de reconhecer a grande proximidade destas figuras jurídicas. O que reforça a conclusão sobre a possibilidade de apli-cação a suppressio das causas voluntárias que de alguma forma atuam sobre a prescrição – ou, eventualmente a decadência, conforme o caso e nas hipóteses que o ordenamento autoriza – interrompendo ou impedindo a sua implementação. Nestas hipóteses, de regra, restaria afastada a aparência de que o direito não seria mais exercido.53

(c) Suppressio e a proibição de venire contra factum proprium, a surrectio e a tu quoque

Parte considerável da doutrina, que se dedica ao estudo da boa-fé, considera a suppressio como uma das formas de manifestação do venire contra factum proprium, ao lado da tu quoque e da surrectio. Nesta linha encontramos no ce-nário acadêmico brasileiro a doutrina de Anderson Schreiber, afirmando que a Verwirkung seria “subespécie de venire contra factum proprium caracterizada pelo fato de a conduta inicial ser um comportamento omissivo, um não exercício de uma situação jurídica subjetiva”.54

52 TJSP, Ap. cível nº 0140119-41.2005.8.26.0000, 27ª Camara de Direito Privado, Relator Desembargador Hugo Crepaldi, julg. 03.5.2011. O acórdão recebeu a seguinte ementa: “Apelação – Ação indenizatória – Pedido de ressarcimento por ausência de devolução de máquina deixada no estabelecimento do réu para conserto – Autora que não procurou retirar o bem por cerca de cinco anos – Suppressio – Recurso improvido”.

53 Neste sentido, Ana de Oliveira Frazão defende que a suppressio venha a ser interpretada em consonancia com a prescrição e a decadência “seja para afastar a sua aplicação quando verificadas as causas voluntárias interruptivas da prescrição, seja, para realçar a vocação do instituto especialmente para os casos de longos prazos prescricionais” (FRAZÃO, Ana de Oliveira. Breve panorama da jurisprudência brasileira a respeito da boa-fé objetiva no seu desdobramento da “supressio”, cit., p. 35).

54 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit., p. 79.

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Acreditamos, no entanto, que as particularidades que circundam a sup-pressio acabam por afastá-la da condição e subespécie do venire contra factum proprium, atribuindo-lhe status de figura autônoma, em que pese a inequívoca existência de elementos de conexão entre estas duas situações, o que decorre de estarem vinculadas ao mesmo tronco, que é o princípio da boa-fé e a proteção da confiança legítima. De fato, não há como deixar de reconhecer a presença, na suppressio, de um comportamento contraditório, contendo, na perspicaz ano-tação de Judith Martins-Costa certa dose de contradição,55 consistente no agir em desconformidade com a confiança legítima de que não viesse mais a exercer determinado direito subjetivo ou faculdade. No entanto, a suppressio é alçada a condição e figura autônoma na medida em que assume a função de instrumento específico de tutela da confiança na estabilidade da relação ou situação.

Ainda, é de notar que a suppressio possui como elemento essencial o decur-so de lapso de tempo razoavelmente longo, o que não necessita estar presente nos casos em que tem aplicação o postulado do venire contra factum proprium, que irão se contentar com a verificação de sucessão de condutas contraditórias entre si, independentemente da existência de um lapso temporal significativo.56 Na verdade, o lapso temporal, nesta situação, atua com fator de enfraquecimento da proibição de comportamento contraditório, pois quanto menor for o período de tempo entre as condutas incoerentes, mais visível se mostrará a necessidade de aplicação das consequências da proibição de venire contra factum proprium.

A tu quoque está relacionada a noção de que a parte que deixa de realizar certo ato que lhe é atribuído, não poderá exigir da outra certo comportamento, correspondente a relação em questão. Assim, um contratante não poderá exigir de seu parceiro negocial um determinando comportamento que ele próprio des-cumpriu. Esta espécie também encontra a sua fundamentação no ideal de tutela da confiança, mas, como pode ser facilmente constatado, não se confunde com a

55 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação, cit., p. 650. Nas pala-vras da autora: “reitere-se que o comportamento ensejador da invocação da ‘suppressio’ contém também uma dose de contradição. Esta consiste na falta do agir ou no retardo em agir, quando, legitimamente, foi suscitado na contraparte a legítima expectativa de que não mais se agiria em relação a determinado direito subjetivo ou faculdade”, ponderando: “mas, embora possam estar superpostas, ambas as figuras guardam sua autonomia, na configuração dos pressupostos, unificando-se, todavia, no fundamento: coibi-ção a deslealdade, em razão do dever de agir segundo a boa-fé”.

56 Neste sentido é a lição de Ana de Oliveira Frazão, ao afirmar: “característica fundamental da supressio é o decurso do tempo, visto aqui como fator de estabilização de expectativas de comportamentos e de geração de situações legítimas de confiança que devem ser tuteladas. É a proeminência do tempo que diferencia a supressio de outros subprincípios decorrentes da boa-fé, tais como o venire contra factum proprium” (FRAZÃO, Ana de Oliveira. Breve panorama da jurisprudência brasileira a respeito da boa-fé objetiva no seu desdobramento da “supressio”, cit., p. 33).

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suppressio, na medida em que o seu sentido é o de retirar do agente uma prerro-gativa de exigir a realização de certa prestação, em função de seu comportamento anterior, de não ter cumprido com a sua obrigação negocial.

A surrectio representa a criação de um direito, até então não existente, mas que se pressupunha presente. Esta figura, assim, corresponde a criação de direi-tos subjetivos e situações jurídicas. Jürgen Schmidt visualizou a suppressio e a surrectio como complementações, na atuação como formas de repercussão do tempo nas situações jurídicas.57

5 A suppressio no Direito Privado brasileiro

5.1 A supppresio e a cláusula geral do abuso de direito prevista no artigo 187 do Código Civil

No Direito brasileiro atual a noção de abuso de direito é referenciada como categoria autônoma, posicionando-se entre o permitido e o proibido, e sintetizada na dicção contida no artigo 187 da Cartilha Legislativa Civil, nos seguintes termos: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede ma-nifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Este texto normativo, de nítida influência lusitana,58 na pontuação de Heloísa Carpena, acolhe e sintetiza as diferentes concepções do abuso de direito, impondo-lhe limites éticos ao exercício dos direitos subjetivos e de outras prerrogativas individuais.59

Neste contexto, alinhando-se ao entendimento mundial no tratamento do assunto,60 a boa-fé assume a forma de instrumento de controle do exercício de

57 Apud CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 823.58 O Código Civil português, em seu artigo 334, estabelece: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o

titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito”.

59 CARPENA, Heloísa. Abuso de direito no Código de 2002. Relativização de direitos na ótica civil-consti-tucional. A parte Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Coord. Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 381.

60 Essa tendência mundial de inserção da boa-fé no ambito da teoria do abuso de direito é exposta pelo jurista português Paulo Mota Pinto, lecionado: “assim, na Alemanha, como já referimos, o abuso de direito é tratado normalmente no quadro do §242 do BGB, referente a boa-fé. Tem isso como razão, além de uma possível ‘macrocefalia’ da ‘True und Glauben’, que tem sido denunciada, a formulação em termos estreitos do que se poderia corresponder ao abuso de direito: o ‘Schikaneverbot’, ou ‘proibição de chicana’ do §226. Mas também no Direito helvético os dois institutos têm sido assimilados, o que, aliás, a própria lei civil potencia, ao referir no mesmo preceito o dever de actuar segundo a boa-fé e a proibição de ‘Rechtsmissbrauch’ (artigo 2º do Código Civil suíço) é isto o fruto de uma evolução – que se tem registrado também no direito alemão – da proibição da chicana para o abuso de direito. Quanto ao direito grego, que terá inspirado o nosso legislador, a informação que temos é a de que a boa-fé e os bons costumes foram numa primeira fase frequentemente

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direitos e prerrogativas, como uma espécie de vetor positivo, assegurando vanta-gens tidas como justas, contrapondo-se a posições adversas que sejam com elas incompatíveis.61

Veja-se que a concepção de abuso de direito consagrada na Codificação Civil é balizada por uma visão relativista dos direitos, contemporizando as prerrogativas outorgadas pelo sistema positivo ou pelas técnicas negociais com a realidade social que as confortam.

Neste contexto, a suppressio, como expressão da boa-fé, ao impor a supres-são de determinado direito pela sua inação (mesmo que em desconformidade com as determinações legais consagradas pelo sistema), com priorização da tute-la da confiança de que tal prerrogativa não seria mais do interesse de seu titular, atua como importante mecanismo de concretização da cláusula geral de abuso de direito consagrada na Codificação Civil.62 Nesta linha, Judith Martins-Costa anota que a consequência, suppressio está em “limitar o exercício do direito subjetivo, tendo-se como imobilizada a pretensão em razão da boa-fé objetiva como norma impositiva de um comportamento estável”.63

Assim, a considerável abrangência da cláusula geral da proibição de exercício de direito subjetivo em desconformidade com os ditames da boa-fé permite que a suppressio venha a alcançar ampla aplicabilidade as mais diversas espécies de situações e relações jurídicas, quer no ambito dos direitos obrigacionais, como nas demais situações jurídicas possibilitadas em nosso ordenamento.64 Nesta

assimilados, recorrendo-se muito ao abuso de direito (aliás com problemas de compatibilização com o artigo 919º do Código Civil grego, que prevê o abuso de direito em matéria de responsabilidade civil)”, concluindo: “de qualquer modo, a verdade é que o abuso de direito tem aí sido associado a boa-fé. E isso acontece também noutros sistemas” (PINTO, Paulo Mota. Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 16, out./dez. de 2003, p. 179).

61 Como explica António Menezes Cordeiro: “nas decisões respeitantes a suppressio, o vetor positivo, i.é, constitutivo de posições jurídicas favoráveis novas do abuso de direito fica mais claro ainda: não se trata, de modo algum, de penalizar pessoas, numa operação punitiva estranha, em absoluto, ao espírito do Di-reito Civil, mas antes de assegurar vantagens, tidas por justas; estas poderão, depois, inutilizar posições adversas, com elas incompatíveis” (Da boa-fé no Direito Civil, cit., p. 827).

62 Assumindo posição contrária a vinculação da suppressio com a doutrina do abuso de direito, Miguel Augustin Kreling argumenta: “desde que, pelo princípio da boa-fé, se passe a tutelar juridicamente a expectativa social de continuidade do não-exercício, a suppressio provoca a extinção do direito, o qual, por isso mesmo, deixa de existir. Se o direito não existe, este não pode logicamente ser exercido (abusivamente). Qualquer tentativa, no entanto, de voltar a exercê-lo consistiria em um ato não amparado por direito subjetivo algum e, assim, seria um ato ilícito propriamente dito (e não meramente abusivo), visto que causaria dano ao que confiou, de boa-fé, na sua inação” (Do instituto da suppressio em perspectivas tradicional e contemporanea. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 23, 2003, p. 173).

63 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direto Privado: critérios para a sua aplicação, cit., p. 648.64 Situação semelhante é verificada no modelo jurídico germanico. Filippo Ranieri, ao tratar desta temática,

menciona que: “la dottrina della Verwirkung costituisce indubbiamente uno degli più rivelanti, che i tribunal tedeschi hanno compiuto sulla base di una libera applicazione del canone generale di buona fede, di cui al §242 BGB. In effetti, ammettere che un creditore possa essere dichiarato precluso per ragioni di equita dal far valere il proprio diritto, prima del decorso del termine legale di prescrizione, significa applicargli in

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linha, analisando o ordenamento jurídico tedesco, Filippo Ranieri observa que a Verwirkung não constitui um dado isolado, mas ao contrário, representa um fe-nômeno mais amplo, de abertura do sistema, explicando: “le corti germaniche, recorrendo alla formula del divieto dell’abuso del diritto hanno proceduto ad una profunda relativizzazione delle norme di ‘jus strictum’ codificate nel BGB”.65 Não é diferente o impacto que a efetivação da suppressio imprime em nosso direito interno, em especial quando colocada em cotejo com as figuras rígidas da prescri-ção e da decadência.

5.2 O artigo 330 do Código Civil como manifestação da suppressio no direito obrigacional

A Codificação Civil atual, inovando em nossa tradição jurídica, oferece inte-ressante regramento sobre o local de realização do pagamento, nas modalidades de obrigações duradouras ou de prestações diferida no tempo, no qual o elemento confiança parece assumir posição de protagonista. O artigo 330 do Código Civil estabelece que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”.

É possível notar, na previsão normativa, clara influência da boa-fé nas rela-ções obrigacionais, priorizando a dinamica do vínculo ao restrito atrelamento ao conteúdo inicial do negócio, proporcionando-lhe certa autonomia capaz de pre-servar a confiança que as partes, paulatinamente, cristalizam na relação. Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald “o negócio jurídico não pode ser interpretado apenas pelo conteúdo da autonomia privada (art. 112 do CC). Após o seu momento genético, a relação obrigacional é capturada pelo sabor dos fatos sociais e do princípio da confiança (art. 113 do CC)”, concluindo: “a criatura ganha vida e se liberta da vontade criadora”.66

Para se obter uma melhor visualização deste dispositivo, façamos uma sim-plificada decomposição de seu conteúdo.

Decompondo a referida previsão normativa, encontramos os seguintes re-quisitos autorizadores da realização da presunção indicada no tipo normativo:

realta una specie di prescrizione di fatto. In tal maniera la giurisprudenza germanica testimonia la propria disponibilita a liberarsi dal legalismo caratteristico dell’esperienza della codificazione e dalla metodologia concettuale del passato, e la propria apertura per soluzioni equitative ed antiformalistiche” (RANIERI, Filippo. Rinuncia tacita e Verwirkung, Padova: Cedam, 1971, p. 2-3).

65 RANIERI, Filippo. Rinuncia tacita e Verwirkung, cit., p. 3. 66 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Vol. 2. Obrigações. 9. ed. São

Paulo: Atlas, 2015, p. 403.

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(a) obrigação que permita variação de local de pagamento, ou melhor, na qual as partes possam vir a influir da determinação sobre onde deverão ser realizadas as prestações;67 (b) tratar-se de modalidade de obrigação duradoura ou de presta-ções diferidas no tempo; (c) a existência de convenção sobre o local da realização da prestação; (d) o pagamento reiteradamente realizado em local diverso daquele previsto no contrato, exigindo-se, portanto, a atuação continuada no tempo, ou seja, por um considerável lapso temporal;68 (e) a consolidação da situação fática, de forma a reproduzir as partes a noção de perpetuidade da prestação no local onde, de fato, esta vem sendo prestada.

Realizado este detalhamento da regra em questão, é possível constatar, de forma clara, nos elementos do preceito legal, a presença dos pressupostos caracterizadores da suppressio. A expressão reiteradamente expõe a exigência de um razoável decurso de tempo com constantes pagamentos realizados em local diverso daquele originariamente definido. Não há, aqui, a definição de um lapso temporal a priori. O legislador deixou, portanto, tal tarefa para o julgador, que fren-te as circunstancias que orientam o caso concreto, verificar qual a extensão tem-poral de aceitação do adimplemento em local diverso do acordado será suficiente para despertar no devedor a legítima confiança de regularidade e continuidade da situação.69

Ainda, tomando-se em consideração a natureza jurídica do pagamento, para a sua perfectibilização exige-se a aceitação (mesmo que tácita), o que indica a confiança do devedor em relação a eficácia dos seus repetidos atos de adimple-mento.

Tomando-se em consideração estes requisitos, não há como afastar a referi-da regra da figura jurídica da suppressio.

67 Conforme leciona Jorge Cesa Ferreira da Silva: “existem relações obrigacionais que, pela sua própria natureza, devem ser realizadas em um determinado local (manutenção de elevadores, pintura de edifício, p. ex.). Existem outras a que a lei mesmo determina o lugar de pagamento, como ocorre com dívidas tributárias. O art. 330 só é aplicável aos casos em que as partes podem dispor sobre o lugar do pagamento, sem que isso altere o conteúdo nuclear da relação” (SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações, cit., p. 242).

68 Para que se caracterize a possibilidade de incidência da norma contida no art. 330 do Código Civil é in-dispensável a reiteração efetiva do pagamento em local diverso daquele inicialmente acertado, pois como adverte Judith Martins-Costa: “se o credor deu, em algumas ocasiões, espaçadamente, permissão excep-cional para que o pagamento fosse realizado em local diverso do estabelecido, não há que se falar em pagamento reiteradamente feito” (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: Do Direito das Obrigações. Do adimplemento e da extinção das obrigações. Vol. V, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 318).

69 Judith Martins-Costa elogia, neste ponto, a postura legislativa, afirmando: “andou bem, pois, o Código, ao referir a expressão ‘pagamento reiteradamente feito em outro local’, não predeterminando o tempo, mas deixando a sua determinação ao juiz, em caso de litígio o qual deverá ponderar o grau de confiança despertado no devedor a vista de todas as circunstancias do caso” (Comentários ao novo Código Civil: Do Direito das Obrigações. Do adimplemento e da extinção das obrigações, cit., p. 319).

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Voltando aos ensinamentos de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, é oportuno apontar que:

a suppressio não carece de prova da vontade: basta o decurso de ra-zoável lapso de tempo no qual é feito, ‘reiteradamente’, o pagamento em local diverso do pactuado e a confiança despertada no beneficiá-rio a ser averiguada objetivamente, segundo o parametro da ‘pessoa razoável’. Já quanto a outra parte, a melhor solução é considerar uma presunção absoluta de renúncia, decorrente de um comportamento concludente.70

Na mesma linha, e de forma claramente crítica a dicção atribuída pelo legis-lador ao texto normativo, Jorge Cesa Ferreira da Silva ressalta a necessidade de se vincular a questão tratada a incidência do postulado da boa-fé (e, portanto, afastando-se do fundamento volitivo), explicando que, por força desta rotina, o ser torna-se o próprio dever ser do caso concreto, pontuando: “não há renúncia em sentido técnico: há sim, aplicação da boa-fé objetiva, independentemente da existência de vontade específica”.71

Por tudo que foi referido, parece-nos que a única forma de dar sentido prag-mático, de modo a permitir a efetivação do conteúdo do art. 330 da Codificação Civil de forma coerente e proveitosa, é realizar a sua vinculação ao postulado da boa-fé e, mais especificamente, da suppressio. No contexto do novo Direito Civil a insistente vinculação ao elemento volitivo passa a ceder espaço para a promoção

70 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Vol. 2. Obrigações, cit., p. 403. Os autores explicam: “imaginemos que em contrato de trato sucessivo os pagamentos deveriam realizar-se no domicílio do credor (obrigação portável), mas desde o início do pagamento das prestações periódicas o devedor efetuasse o cumprimento das prestações em seu próprio domicílio, sem qualquer oposição pelo credor. Seria qualificada como contrária a boa-fé objetiva conduta do credor que, após prolongada desídia, venha a exigir o cumprimento de legítima expectativa de confiança na parte contrária de que nunca viria a exercê-lo”, pontuando: “a suppressio tem o mérito de paralisar o desleal exercício do direito subjetivo, sancionando a ilegitimidade da conduta ofensiva ao princípio da confiança” (p. 403-404).

71 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações, cit., 241 e 244. O autor opõe-se a extremada vinculação ao intérprete ao voluntarismo, ou seja, a uma visão de mundo que ancora o direito civil – e, em especial o direito obrigacional – a declaração volitiva das partes, explicando que nessa ótica voluntarista de interpretação a ser emprestada ao art. 330 do Código Civil: “ainda que não existisse qual-quer expressão volitiva, ter-se-ia a vontade como o fundamento da alteração, o que só auxilia a mistificar a vontade e torná-la elemento inexplicável do ponto de vista operativo. Por sua vez, admitir-se a prova em sentido contrário conduz a extremada insegurança para a relação concreta, pois dificilmente se saberá se a alteração se processara efetivamente ou não”. Na mesma linha é a lição de Guilherme Magalhães Martins, ao afirmar: “a associação da suppressio ao instituto da renúncia tácita constitui postulado já superado, tendo aquela gradativamente se libertado de considerações subjetivas e roupagens negociais, em direção a sua inserção no ambito da boa-fé objetiva” (MARTINS, Guilherme Magalhães. A função de controle da boa-fé objetiva e o retardamento desleal no exercício de direitos patrimoniais (suppressio). Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, nº 53, jul./set. de 2014, p. 132).

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e tutela da confiança, atuando como regra maior de orientação para a segurança no tráfego negocial.

5.3 A suppressio na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

A suppressio, apesar de não ter sido agraciada pelo legislador civilista com uma previsão normativa específica, que viesse a indicar indubitavelmente a sua in-corporação ao Direito Privado pátrio, tem sido lembrada na atuação dos tribunais. Não são poucas as situações levadas as Cortes de Justiça nas quais se verifica a utilização desta notável figura jurídica, não apenas em típicas questões negociais, mas também na composição de situações jurídicas em geral.

Visando expor um panorama sobre a realização do postulado da suppressio pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, selecionamos três casos em que a temática foi enfrentada pela Corte, para análise.

O leading case da aplicação da suppressio é encontrado em julgamento rea-lizado pelo Superior Tribunal de Justiça no final da década de noventa do século passado, quando a Corte teve oportunidade de enfrentar situação apta a receber a incidência deste postulado na ocasião em que o Judiciário foi chamado a re-solver questão envolvendo litígio entre condômino e condomínio, decorrente da ocupação, pelo primeiro, de parte do hall de circulação, integrante da área de uso comum do condomínio. No case em questão, a ocupação exclusiva de área de uso comum por um dos condôminos contrariava vedação expressa, constante da convenção condominial, porém, tal conduta foi autorizada mediante concordancia plena dos demais proprietários das unidades autônomas. Tal aprovação, inclusi-ve, contou com a ratificação em assembleia, tendo a situação perdurado por mais de vinte anos. Durante todo o decurso deste longo lapso temporal, não houve qualquer reclamação em relação a referida ocupação. A Corte, ao proceder ao jul-gamento da questão que lhe foi apresentada, determinou a manutenção do status quo, vinculando-se ao princípio da boa-fé e invocando a figura da suppressio, sob o seguinte fundamento: “houve o prolongado comportamento dos titulares, como se não tivessem o direito ou não quisessem exercê-lo; os condôminos ora réus con-fiaram na permanência desta situação pelas fundamentadas razões já explicadas; a vantagem da autora ou do condomínio, que ela diz defender, seria nenhuma, e o prejuízo dos réus, considerável”.72

72 STJ, 4ª T, REsp nº 214.680/SP, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julg. 10.8.1999. A ementa foi a seguinte: “Condomínio. Área comum. Prescrição. Boa-fé. Área destinada a corredor, que perdeu a

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Nota-se, neste precedente, a presença de justificativa fática perfeita para o reconhecimento da suppressio e tutela de seus efeitos. Houve um longo lapso temporal, propiciando a configuração de uma base fática consolidada e capaz de despertar no condômino a confiança na definitividade da situação. Não houve, em nenhum momento, durante o decurso do tempo, qualquer conduta por parte do condomínio que viesse a abalar a expectativa legítima do condômino.

Em outra oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça analisou recurso in-terposto em relação a decisão que reconheceu a responsabilidade de sociedade empresária, por causar ruídos excessivos aos demais condôminos, decorrentes de instalação no teto do edifício de equipamento que garantia a refrigeração de suas camaras frias. A sociedade empresária argumentou que a convenção condo-minial estipula a finalidade comercial dos imóveis, o que justificaria a sua conduta em desprestígio aos moradores que estavam violando a referida convenção. O acórdão proferido pela Corte Superior ratificou a decisão do tribunal local, que superou as regras condominiais e deu ênfase a realidade dos fatos, impondo o reconhecimento de que, naquele edifício, há uma área de uso misto, o que foi reforçado pelo anúncio de unidades como quitinete, sendo, ainda, a natureza residencial do imóvel levada em consideração para a fixação das tarifas de luz e IPTU a ele relativas. Assim, o Tribunal concluiu: “se colocarmos a questão em termos teóricos, constata-se aqui a figura da suppressio, regra que se desdobra do princípio maior da boa-fé objetiva e segundo a qual o não-exercício de direito por certo prazo pode retirar-lhe a eficácia”.73

Novamente, aqui, o Superior Tribunal de Justiça confirmou a importancia da valoração da manutenção das situações de fato que se consolidam com o decurso de tempo.

finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordancia dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre a área não indispensável a existência do condomínio. É de ser mantido o status quo. Aplicação do princípio da boa-fé (suppressio)”.

73 STJ, 3ª T, REsp nº 1.096.639/DF, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julg. 09.12.2008, com a seguinte ementa: “Direito Civil. Vizinhança. Condomínio comercial que admite utilização mista de suas unidades autônomas. Instalação de equipamentos por condômino que causa ruído. Indenização devida. Dano moral fixado em quantum razoável. – O exercício de posições jurídicas encontra-se limitado pela boa-fé objetiva. Assim, o condômino não pode exercer suas pretensões de forma anormal ou exagerada com a finalidade de prejudicar seu vizinho. Mais especificamente não se pode impor ao vizinho uma convenção condominial que jamais foi observada na prática e que se encontra completamente desconexa da realidade vivenciada no condomínio. – A ‘suppressio’, regra que se desdobra do princípio da boa-fé objetiva, reconhece a perda da eficácia de um direito quando este longamente não é exercido ou observado. – Não age no exercício regular de um direito a sociedade empresária que se estabelece em edifício cuja destinação mista é acei-ta, de fato, pela coletividade dos condôminos e pelo próprio Condomínio, pretendendo justificar o excesso de ruído por si causado com a imposição de regra constante da convenção condominial, que impõe o uso exclusivamente comercial, mas que é letra morta desde sua origem. – A modificação do quantum fixado a título de compensação por danos morais só deve ser feita em recurso especial quando seja irrisório ou exagerado”.

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Por fim, trazemos a colação acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial nº 1.374.830-SP, da lavra do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no qual a suppressio foi utilizada para resolver discussão sobre a adequação de aplicação e multa contratual. No caso em questão as partes haviam firmado contrato de fornecimento pelo prazo de 76 meses, compreendendo o período de 14.12.1990 a 16.04.1997, o qual contava com previsão impositiva de aquisição de quantida-de mínima de produtos, guarnecida por correspondente cláusula penal. Porém, durante o transcorrer da relação contratual a referida meta de aquisição mínima não foi observada. Em 05.12.1995 houve a resilição unilateral do acordo, o que levou a outra parte contratante a buscar em juízo a cobrança da multa prevista na cláusula penal, ao argumento de que, no curso do contrato, não teria sido adquiri-da a quantidade mínima de produtos previamente estabelecida. A Corte Superior, valendo-se da suppressio, afastou tal pretensão econômica, sob o argumento de que

no caso, narram os autos que a ora recorrente permitiu de forma es-pontanea, por quase toda a vigência do contrato, que a aquisição de produtos pela recorrida ocorresse em patamar inferior ao pactuado. Quer dizer, ela mesma forneceu quantidade abaixo do mínimo previs-to e quedou-se silente, de modo que concorreu voluntariamente para o alegado descumprimento contratual.

Concluindo:

as metas de aquisição de produtos estabelecidas não foram obser-vadas e houve tácita tolerancia da ora recorrente. Os autos refletem, longa aquiescência com o cumprimento em menor extensão do que fora pactuado e a desleal exigência do valor integral com incidência de multa, em momento posterior. Assim, por força do instituto da suppressio, não há ofensa ao art. 921 do Código Civil de 1916.74

74 STJ, 3ª T, REsp nº 1.374.830/SP, Relator Ministro Ricardo Villas boas Cueva, julg. 23.6.2015. Vejamos a ementa: “Recurso especial. Contrato. Promessa de compra e venda de combustíveis. Aquisição de quan-tidade mínima de produtos. Inobservancia no curso da relação contratual. Tolerancia do credor. Cláusula penal. Inaplicabilidade. Princípio da boa-fé objetiva. Instituto da suppressio. Incidência. Honorários advo-catícios. Súmula nº 7/STJ. 1. Trata-se de ação de cobrança de multa prevista em contrato de promessa de compra e venda de combustíveis e produtos derivados sob a alegação de que o posto de gasolina não adquiriu quantidade mínima prevista. 2. A mera reiteração, nas razões do recurso de apelação, de argu-mentos apresentados na inicial ou na contestação não determina, por si só ofensa ao art. 514 do Código de Processo Civil. Precedentes. 3. Segundo o instituto da suppressio, o não exercício de direito por seu titular, no curso da relação contratual, gera para a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação, presente a pos-sível deslealdade no seu exercício posterior. 4. Hipótese em que a recorrente permitiu, por quase toda a

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Neste caso, em especial, restou evidenciada a considerável tolerancia do contratante em relação a imperfeição, reiterada e contínua, das prestações reali-zadas pela contraparte do contrato. Esta inércia em reclamar sobre a conduta do outro contratante expressou a sensação de que o adimplemento perfeito não se mostrava relevante a ponto de ser condição sine qua non para a manutenção do acordo negocial. Assim, a omissão em reclamar a observancia estrita dos exatos termos do contrato, agregada ao considerável lapso temporal e a fluidez da re-lação negocial, acabaram por justificar a supressão do direito do contratante, a ponto deste não poder mais vir a ser exercido de forma legítima.

Na análise destes precedentes do Superior Tribunal de Justiça é possível se constatar a inserção da suppressio como desdobramento do postulado maior da boa-fé, no ambito pretoriano, sempre decorrente do cotejo dos aspectos que norteiam a situação fática posta em julgamento, visando preservar a efetiva tutela da confiança.

6 Considerações finais

Ao encerrar o presente ensaio, focado na análise da suppressio, cabe tecer algumas considerações finais, não a título conclusivo, mas como constatações relativas a evolução do tema abordado.

De forma similar ao que acorre no direito comparado, a suppressio não usufrui de plena aceitação no cenário nacional. Ela traz a reboque, de plano, o risco de comprometimento dos prazos de prescrição e decadência consagrados expressamente no direito positivo. Nisso reside o temor de enfraquecimento do tão almejado ideal de obtenção de segurança jurídica, em especial no ambito do direito negocial.

O caráter tópico da aplicação da suppressio planta a dúvida sobre a sua uti-lidade no seio das relações jurídicas e reforça os argumentos daqueles que veem nela um instrumento irradiador de insegurança.

A isso se soma o fato da suppressio representar contribuição advinda de modelos estrangeiros, mormente o sistema jurídico germanico, o que por si só fomenta certo preconceito em sua absorção pelo nosso sistema jurídico, compro-metido com uma realidade social tão diversa daquela existente no país de origem.

vigência do contrato, que a aquisição de produtos pelo posto de gasolina ocorresse em patamar inferior ao pactuado, apresentando-se desleal a exigência, ao fim da relação contratual, do valor correspondente ao que não foi adquirido, com incidência de multa. Assim, por força do instituto da suppressio, não há ofensa ao art. 921 do Código Civil de 1916. 5. A revisão do montante fixado a título de honorários advocatícios, exceto se irrisórios ou exorbitantes, demanda o reexame de provas, atraindo o óbice da Súmula nº 7/STJ”.

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Ambas as preocupações são compreensíveis, mas podem, tranquilamente, ser vencidas. A efetivação da suppressio é, na verdade, a confirmação da im-portancia atribuída a segurança e coerência no contexto da relação obrigacional, garantindo o alcance do ideal de negócios úteis e justos. Num ambiente de pós- modernidade, com uma economia intensamente globalizada e sem fronteiras, a interação dos sistemas é inevitável e, até mesmo, salutar. Muito temos a apren-der com o direito comparado, com o qual devemos manter constantes e intensos diálogos.

Acreditamos que a produção e divulgação acadêmica da boa-fé, e de seus consectários, acompanhada de paulatina e constante absorção pretoriana, permi-tirão que a suppressio venha a alcançar a necessária maturidade que precisa para se consolidar como importante instrumento de realização da justiça contratual nos casos concretos. Para tanto, a sua aplicação deve ser efetivada com parcimônia, sempre comprometida com a integralidade da relação negocial, visando a real proteção da confiança, tida como objetivo inarredável de um sistema contratual comprometido com os valores sociais e éticos, que devem sempre pautar a atua-ção no ambito do mercado.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

XAVIER, José Tadeu Neves. A aplicação da suppressio (Verwirkung) no ambito das relações privadas. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 61-91, jul./set. 2017.

Recebido em: 21.02.2017

1º parecer em: 10.03.2017

2º parecer em: 17.05.2017

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NOTAS SOBRE A INDENIZAÇÃO EQUITATIVA POR DANOS CAUSADOS POR INCAPAZES: TENDÊNCIA OU EXCEPCIONALIDADE NO

SISTEMA DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO BRASILEIRO?

NOTES ON EQUITATIVE INDEMNIFICATION FOR DAMAGES CAUSED BY INCOMPETENT PERSONS:

TREND OR EXCEPTIONALITY IN THE TORT LAW SYSTEM IN BRAZILIAN LAW?

Eugênio Facchini NetoDoutor em Direito Comparado pela Universidade de Florença (Itália).

Mestre em Direito Civil pela USP. Professor Titular da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS. Professor e ex-Diretor da

Escola Superior da Magistratura/RS. Desembargador do TJ/RS.

Fábio Siebeneichler de AndradeDoutor em Direito pela Universidade de Regensburg (Alemanha).

Professor Titular da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.

Resumo: O artigo 928 do Código Civil regula a responsabilidade civil dos incapazes no Direito Civil bra-sileiro. De forma específica estabelece a possibilidade de a indenização ser estabelecida por equidade pelo juiz. O presente artigo pretende examinar estas particularidades. Examinam-se os pressupostos para a incidência da responsabilidade do incapaz, bem como as circunstancias presentes para a fixa-ção da indenização por equidade.

Palavras-chave: Incapacidade; Equidade; Responsabilidade civil.

Sumário: Introdução – 1 Pressupostos para a responsabilidade civil do incapaz – 2 A indenização devida pelo incapaz – Considerações finais

Abstract: Article 928 of the Civil Code regulates the civil liability of the incapacitated in Brazilian civil law. Specifically establishes the possibility of the indemnity being established by fairness by the judge. The present article intends to examine these particularities. It examines the assumptions for the incidence of the responsibility of the incapable, as well as the present circumstances for the determination of the indemnity for equity.

Keywords: Incapacity; Equity; Torts.

Summary: Introduction – 1 Assumptions for the civil liability of the incapable – 2 Indemnification due by the incapable – Final considerations

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EUGÊNIO FACCHINI NETO, FÁBIO SIEBENEICHLER DE ANDRADE

Introdução

Dentre as inovações do Código Civil de 2002, consta a previsão do artigo 928 referente a possibilidade de se responsabilizar o incapaz pelos danos por ele causados.1

Trata-se de uma dúplice inovação: a primeira, pela possível responsabiliza-ção de incapazes. Não podendo eles conceitualmente agir com culpa, já que lhes falta a imputabilidade, sem o que a culpa tecnicamente não se caracteriza, sua responsabilização se dá de forma objetiva, o que configura uma mudança de para-digma.2 A segunda novidade reside, por sua vez, na circunstancia de que a indeni-zação, nos casos que se enquadrem na moldura legal, poderá ser equitativamente fixada. Isso implica dizer que eventualmente resultará em valor menor, inferior a totalidade do dano.

Relativamente a esta modificação, é forçoso indicar que o tema da respon-sabilidade civil do incapaz nunca foi estranho ao Direito Civil brasileiro. Teixeira de Freitas, por exemplo, o havia inserido no art. 808 da sua “Consolidação das Leis Civis”.3

Quando das tentativas de elaboração do Código Civil na segunda metade do século XIX, o problema foi objeto de previsão. O “Projeto” de Felício dos Santos, por exemplo, estabeleceu, no art. 655, §1º, que “si provar-se que o menor de 14 anos, que tiver causado o damno, obrou, com discernimento, seus bens serão su-jeitos a indemnização do damno causado”. Também o Projeto de Clóvis Beviláqua tratou do tema: inicialmente, equiparou-se o menor ao maior, para o efeito de ser responsabilizado extracontratualmente, qualquer que fosse sua idade. Durante a tramitação do projeto, posteriormente, restringiu-se tal situação aos menores en-tre 14 e 21 anos. Prevaleceu, por último, o critério que veio a ser adotado no art. 156 do Código Civil de 1916: a equiparação só abrangeria os menores púberes,

1 Art. 928: “O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.

Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”.

2 Nesse sentido, perante norma semelhante do direito italiano, BONVICINI, Eugenio. La Responsabilità Civile per Fatto Altrui. Milano: Giuffrè, 1976, p. 635; TRIMARCHI, Pietro. Rischio e responsabilità oggettiva. Milano: Giuffrè, 1961, p. 42; DE CUPIS, Adriano. Il danno. Teoria generale della responsabilità civile. Vol. II. Milano: Giuffrè, 1979, p. 24: (“tratasi di danno solo obiettivamente antigiuridico (ma non colposo)”; ALPA, Guido; BESSONE, Mario. La responsabilità civile. Vol. II. Milano: Giuffrè, 1980, p. 1. Já Marco Comporti entende que, perante o direito italiano, “la norma... sembra uscire dal sistema della responsabilita anche oggettiva, e sembra determinata dal principio equitativo di volver far ottenere comunque, ed indipendentemente dalle regole di diritto, una certa riparazione al danneggiato” (COMPORTI, Marco. Il Codice Civile – Commentario. In: Fatti Illeciti: le responsabilità presunte. Artt. 2044-2048. Pietro Schlesinger; Francesco D. Busnelli (dir.). 2. ed. Milano: Giuffrè, 2012, p. 202.

3 Art. 808: “Serão igualmente obrigados a satisfação do damno, posto que não possam ser punidos: §1º. Os menores de quatorze anos; (...)”.

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de idade entre 16 e 21 anos. Fora disso, somente os pais, tutores e curadores teriam responsabilidade pelos atos danosos praticados por seus filhos, pupilos e curatelados, ex vi do art. 1.521, inc. I e II, daquele diploma legal.

Em essência, no direito anterior, vigorava a seguinte posição doutrinária, expressa por Sílvio Rodrigues:

provado que o agente causador do dano é um amental, sem capa-cidade para medir o alcance de seu gesto, não é ele pessoalmente responsável pela reparação do dano causado. Se a responsabilidade não puder ser atribuída a pessoa incumbida de sua guarda e vigilan-cia, ficará a vítima irressarcida, da mesma maneira que ocorreria se o seu infortúnio derivasse de caso fortuito ou de força maior.4

Ao ocupar-se da matéria da responsabilidade civil do incapaz, portanto, o codificador de 2002 resgata uma temática que sempre preocupou o legislador nacional. Adotou, porém, uma solução singular no sistema da responsabilidade civil brasileira, na medida em que introduziu uma hipótese de exceção ao princí-pio classicamente adotado no ambito da responsabilidade civil, qual seja, o de que a vítima assistiria o direito a integral reparação de seu prejuízo (restitutio in integrum). Esta noção, basilar em tema de responsabilidade civil, encontra-se cristalizada no artigo 944, caput, do Código Civil, com uma declaração de princí-pio, segundo a qual “a indenização mede-se pela extensão do dano”. Uma regra semelhante não existia, de forma expressa, no Código de 1916.5

A solução brasileira alia-se a diversos ordenamentos jurídicos que, igualmen-te, tiveram de disciplinar a questão de como deve ser responsabilizado civilmente pelos danos que causou, quem não possui discernimento, seja por uma questão de enfermidade, seja pelo requisito da idade legal6 – e que até recentemente

4 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, vol. IV, Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 28.5 A novidade é, porém, apenas aparente, pois o princípio indicado sempre fora acatado doutrinária e ju-

risprudencialmente. Clóvis do Couto e Silva, por exemplo, extraía tal princípio do próprio art. 1.060, do Código Beviláqua, que entendia aplicável não só a responsabilidade contratual, mas também a respon-sabilidade extracontratual (COUTO E SILVA, Clovis do. Dever de indenizar. RJTJRGS, Porto Alegre, n. 6, 1967, p. 7). Como exemplo, por sua vez, de decisão, ao tempo do Código Civil de 1916, leia-se a seguinte ementa: “CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – DANO MORAL E DANO MATERIAL – CUMULAÇÃO. I – Assentado na jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça, o entendimento no sentido de admitir-se a inde-nização por dano moral e dano material, cumulativamente, ainda que tais danos derivem do mesmo fato. Incidência da Súmula 37/STJ. II – Irrelevante o exercício da Ação após a maioridade dos beneficiários. O caráter alimentar correspondente ao dano material não exonera o causador do dano ao pagamento da verba correspondente ao dano moral, porque obrigado, não por aquele, mas, pela responsabilidade civil decorrente do ato ilícito, a sua reparação integral (art. 159 do CC). III – Recurso conhecido e provido” (STJ, 3ª T, REsp 106644/MG, Rel. Min. Waldemar Zveiter, julg. 6.10.1998).

6 Ver, por exemplo, BLANC-JOUVAN, Xavier. La Responsabilité de l’infans. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, vol. 56, 1957, p. 373; WARENBOURG-AUQUE, Françoise. Irresponsabilité ou Responsabilité Civile

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eram genericamente considerados incapazes. De forma exemplificativa, apontam- se aqui soluções normativas que contemplam uma regulação específica sobre o tema, como a do Código das Obrigações suíço (art. 547); a do Código Civil italiano (art. 2.0478); a do Código Civil alemão (§8299), a do Código Civil português,10 e,

de l’infans. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, n. 1, 1982, p. 331; NONATO, Orozimbo. Reparação do dano causado por pessoa privada de discernimento. Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 83, p. 373.

7 Art. 54: “Si l’equité l’exige, le juge peut condamner une personne meme incapable de discernement a la reparation totale ou partielle du dommage qu´elle a cause)”. Em tradução livre: “se a equidade o exigir, o juiz pode condenar uma pessoa, ainda que incapaz de discernimento, a reparação total ou parcial do dano por ela causado”.

8 Art. 2.047: “Danno cagionato dall’incapace. In caso di danno cagionato da persona incapace di intendere o di volere, il risarcimento è dovuto da chi è tenuto alla sorveglianza dell’incapace, salvo chi provi di nona ver potuto impedire il fatto. Nel caso in cui il danneggiato non abbia potuto il risarcimento da chi è tenuto alla sorveglianza, il giudice, in considerazione delle condizioni economiche delle parti, può condannare l’autore del danno a un’equa indennita”. Em tradução livre: “Dano causado pelo incapaz. Em caso de dano causado por pessoa incapaz de entender ou de querer, é devida a indenização do dano por quem estava obrigado a vigilancia do incapaz, a não ser que prove que não pode impedir o ato. No caso em que o lesado não tenha podido obter indenização daquele que era obrigado a vigilancia, pode o juiz, levando em consideração as condições econômicas das partes, condenar o autor do prejuízo a uma indenização equitativa”.

Aplicando o disposto na primeira parte deste dispositivo, a Corte de Cassação italiana vem adotando um critério mais restritivo, como se vê do seguinte julgamento: “Ai fini del riconoscimento della responsabilita del sorvegliante, a norma dell’art. 2047 c.c., è necessario che il fatto commesso dall’incapace presenti tutte le caratteristiche oggettive dell’antigiuridicita e cioè che sia tale che, se fosse assistito da dolo o colpa, integrerebbe un fatto illecito. Ne consegue che, nell’ipotesi di lesione personale inferta da un minore ad un altro nel corso di una competizione sportiva, occorre verificare, al fine di escludere l’antigiuridicita del comportamento dell’incapace e la conseguente responsabilita del sorvegliante, se il fatto lesivo derivi o meno da una condotta strettamente funzionale allo svolgimento del gioco, che non sia compiuto con lo scopo di ledere e che non sia caratterizzato da un grado di violenza od irruenza incompatibile con lo sport praticato” (Cassazione civile, sez. III, 30 marzo 2011, n. 7247).

Discorrendo sobre a segunda parte do artigo, sustenta Guido Alpa que, quando o responsável pelo incapaz não está em condições de ressarcir o dano (na forma prevista na primeira parte deste artigo), responde diretamente o incapaz. A amplitude da indenização é avaliada equitativamente pelo juiz, tendo em conta as condições econômicas das partes. Cf. ALPA, Guido. Trattato di Diritto Civile. IV. La Responsabilità Civile. Milano: Giuffrè, 1999, p. 667.

9 §829: “Wer in einem der in den §§823 bis 826 bezeichneten Fälle für einen von ihm verursachten Schaden auf Grund der §§827,828 nicht verantwortlich ist, hat gleichwohl, sofern der Ersatz des Schadens nicht von einem aufsichtspflichtigen Dritten erlangt werden kann, den Schaden insoweit zu ersetzen, als die Billigkeit nach den Umständen, insbesondere nach den Verhältnissen der Beteiligten, eine Schadloshaltung erfordert und ihm nciht die Mittel entzogen werden, deren er zum angemessenen Unterhalt sowie zur Erfüllung seiner gesetzlichen Unterhaltspflichten bedarf”. Tradução: “Quem, em um dos casos assinalados nos §§823 e 826, não for, com fundamento nos §§827 e 828, responsável por um dano por ele causado, terá, não obstante, sempre que a indenização do dano não possa ser exigida de um terceiro com dever de vigilancia, de indenizar o dano, desde que a equidade, de acordo com as circunstancias, particularmente, de acordo com as relações entre os interessados, exigir uma compensação, e a ele não sejam tirados os meios dos quais necessita para a sua manutenção conveniente assim como para a realização das suas obrigações legais de alimentos”.

10 Art. 2377 do Código antigo (1867) e art. 489 do Código de 1966: “Art. 489 (Indenização por pessoa não imputável) 1. Se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilancia. 2. A indemnização será, todavia, calculada por forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos”.

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mais recentemente, no direito latino-americano, a do Código peruano de 1984 (arts. 1975 a 197711).

O Direito francês, por sua vez, a partir de alteração legislativa de 3 de janeiro de 1968 alterou a solução do Código Civil, que reputava irresponsável o incapaz. Introduziu-se no então artigo 489-2 (atual artigo 414-3,12 após a recente reforma do Direito Obrigacional francês), a ideia de que a eventual ausência de discerni-mento do autor do dano é irrelevante, de modo que ele indeniza o dano causado. Os incapazes ficaram absolutamente assimilados as pessoas capazes, para os efeitos da responsabilidade civil.13 Relativamente aos menores, por sua vez, o tema não é regulado de forma específica, tendo-se a tendência de considerar que, em geral, incide a disposição do artigo 1384, do Código Civil francês, que reputa os pais responsáveis pelos atos dos filhos menores. Observe-se, porém, que no Direito francês, considera-se possível que o filho menor responda solidariamente com os pais.14

A inovação introduzida pelo art. 928 do CC, portanto, segue uma tendência presente em importantes ordenamentos jurídicos: a de, por um lado, reconhecer que a responsabilidade civil deve ambicionar uma efetiva tutela da vítima, amplian-do as chances de que esta obtenha o ressarcimento pelo prejuízo sofrido; de outro, amparar aquele que se conduz sem o necessário discernimento, na medida em que este fator é reconhecido como pressuposto de uma responsabilidade civil integral.

Nesse contexto, pretende-se, com o presente estudo, analisar a inovação in-troduzida no Direito Civil brasileiro, bem como verificar a sua efetividade na práxis, nos quase quinze anos de vigência do Código Civil de 2002. Estruturou-se, em es-sência, o trabalho em duas partes: na primeira, um exame sobre os pressupostos

Discorrendo sobre o dispositivo do CC de 1867, substancialmente mantido no vigente CC português, de 1966, esclareceu Jeovanna Viana que “o afastamento da responsabilidade criminal por motivo de pouca idade não afastava o menor de um dever de ressarcir a vítima de seus prejuízos” (VIANA, Jeoyanna. Responsabilidade Civil dos Pais pelos Actos dos Filhos Menores. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 16).

11 Art. 1975: “La persona sujeta a incapacidad de ejercicio queda obligada por el daño que ocasione, siempre que haya actuado con discernimiento. El representante legal de la persona incapacitada es solidariamente responsable”; Art. 1976: “No hay responsabilidad por el daño causado por persona incapaz que haya actuado sin discernimiento, en cuyo caso responde su representante legal”; Art. 1977: “Si la víctima no ha podido obtener reparación en el supuesto anterior, pude el juez, en vista de la situación económica de las partes, considerar una indemnización equitativa a cargo del autor directo”.

12 Art. 414-3: “Celui qui a cause um dommage a autrui alors qu’il était sous l’empire d’un trouble mental n’en pas moins obligé a réparation”. Tradução livre: “Aquele que causou um dano a outrem, ainda que sob o império de uma perturbação mental, nem por isso deixará de ser obrigado a reparação”.

13 VINEY, Geneviève. Reflexions sur l’article 489-2 du Code Civil. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, vol. 68, ano 1970, p. 253-254. No mesmo sentido, FABRE-MAGNAN, Muriel. Droit des obligations. 2 – Responsabilité civile et quase-contrats. 3. ed. Paris: PUF, 2015, p. 101: “atualmente, o alienado deve reparar as consequências danosas de seus atos exatamente da mesma forma como um responsável o faz”.

14 Ver, sobre o tema, exemplificativamente, YOUF, Dominique. L’enfant doit-il être tenu responsable de ses actes?. Cités, n. 6, 2001, p. 240 e segs.

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da responsabilidade do incapaz; na segunda, os efeitos de tal responsabilidade, em especial no que concerne ao arbitramento da indenização.

O método utilizado no trabalho é o da pesquisa bibliográfica. Após passar em revista os entendimentos doutrinários mais relevantes a respeito do tema, buscar-se-á assentar as condições e efeitos da responsabilidade direta do incapaz e responder a indagação constante no título.

1 Pressupostos para a incidência da responsabilidade civil do incapaz

1.1 A figura do incapaz como causador de dano a outrem

O requisito nuclear do artigo 928 do Código Civil reside na conduta de um incapaz que acarrete prejuízo a outrem. Faz-se mister, portanto, que uma pessoa qualificada pela ordem jurídica brasileira como incapaz acarrete um dano a tercei-ro, a fim de que se tenha um primeiro elemento de existência do suporte fático do referido artigo.

Um primeiro ponto a ressaltar consiste na questão conceitual presente na solução legislativa: o fato de o dispositivo legal em análise concernir aos incapa-zes do ponto de vista jurídico permite a conclusão inicial de que o requisito da cul-pa não é exigido. Falando por todos, Orlando Gomes refere que o conceito de culpa é integrado por dois elementos, a ilicitude e a imputabilidade. A imputabilidade é a “idoneidade psíquica do agente para querer e entender”. Sendo assim, “somente as pessoas nessas condições podem ser consideradas culpadas”. Todavia, pros-segue o citado autor, o legislador pode considerar injusto o abandono da vítima e impor a um agente psiquicamente inimputável a obrigação de reparar o dano que causou. “Mas, do fato de estatuir essa obrigação, fundada em razões de equida-de, não se pode inferir que haja culpa no fato do agente”, pois “nem sempre o de-ver de indenizar resulta da prática do ato culposo”.15 Observa-se, portanto, que a solução do artigo 928 consagra esta percepção identificada na doutrina brasileira.

Uma segunda questão interessante é a de saber se o incapaz responde ape-nas pelos danos decorrentes de sua conduta pessoal, ou se também pode vir a responder pela via da responsabilidade pelo fato das coisas e dos animais. O tema foi debatido no Direito francês no ambito da discussão sobre se os pais do menor responderiam também pelos danos causados pelas coisas e pelos animais que

15 GOMES, Orlando. Responsabilidade Civil. Edição revisada, atualizada e ampliada por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 74.

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estivessem sob a guarda do menor. Sabidamente o menor pode ser proprietário e possuidor de bens e animais, já que detém personalidade jurídica. Dependendo da idade do menor, não se pode imaginar que a posse, a guarda e a supervisão do uso de determinados bens de propriedade do menor, possam ser monitora-dos pelos genitores. Pense-se na bicicleta de um adolescente de 15 anos, ou no seu cachorro de estimação. Suponha-se, portanto, que danos venham a ser causados pelo cachorro ou pela bicicleta do menor, sem que se possa identificar propriamente uma “culpa” deste. Na França, responderiam os pais por tais danos, independentemente de culpa deles ou do menor.16 Segundo importante acórdão da Corte de Cassação, de 10.2.1966, “considerando que a responsabilidade dos pais supõe que aquela do filho tenha sido estabelecida, a lei não distingue entre as causas que podem dar origem a responsabilidade do filho”.17

Em célebre acórdão de 1997 (arrêt Bertrand, de 19.02.97), envolvendo a reparação de danos sofridos durante a colisão de uma bicicleta conduzida por um menor de 12 anos e uma motocicleta conduzida pela vítima M. Domingues, que sofreu lesões corporais ao cair, a Corte de Cassação francesa afirmou que “so-mente a força maior ou a culpa da vítima pode afastar a responsabilidade de pleno direito que os pais devem suportar, pelos danos causados pelos filhos menores que com eles residam”.18

Reputa-se que, da mesma forma que seus genitores, os próprios incapa-zes poderiam vir a ser responsabilizados pelos danos causados por tais objetos/animais, independentemente da ocorrência de uma culpa, diante da ideia de soli-dariedade que preside esse tipo de responsabilidade. Pondera-se que todo dano injustamente sofrido por alguém, que possa ser imputado a outra pessoa, deve ser reparado. Quem deu causa ao dano, mesmo que sem culpa (até porque a víti-ma é menos culpada ainda), deve repará-lo, segundo o princípio da solidariedade, aplicado ao campo da responsabilidade civil.

Um outro tema passível de investigação consiste em que, embora a respon-sabilidade do incapaz seja objetiva, para que ela se ative, é preciso que o dano por ele causado seja fruto de uma conduta objetivamente ilícita ou antijurídica.19

16 Nesse sentido, VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de Droit Civil. In: Les Conditions de la Responsabilité. Jacques Ghestin (dir.). 3. ed. Paris : L.G.D.J, 2006, p. 1129-1130.

17 Dalloz, 1966, p. 333.18 Sobre o impacto dessa decisão ver FABRE-MAGNAN, Muriel. Droit des obligations. 2 – Responsabilité civile

et quase-contrats. 3. ed. Paris: PUF, 2015, p. 361.19 A França passou a adotar uma posição mais rigorosa, a partir de orientação jurisprudencial adotada pela

Corte de Cassação francesa desde o final da década de noventa: arrêt Bertrand (de 1997), arrêt Levert (de 2001) e acórdão da Assemblée plénière, de 13.12.2002. A partir desses acórdãos, passou-se a entender que a responsabilidade dos pais se tornou pessoal e objetiva, pois basta a presença de um fato (fait) anormal do menor, que tenha causado o dano, para que surja tal responsabilidade pela reparação, independentemente que tal fato possa ser considerado uma culpa (faute). Nesse sentido, LE TOURNEAU,

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Ou, nas palavras de Bonvicini,20 “è necessaria una valutazione negativa della con-dotta dell’incapace, in termini di giuzidio di disvalore”. Isso porque se estivessem presentes, por exemplo, causas de justificação e de exoneração da responsabili-dade (força maior, caso fortuito, ato de terceiro, legítima defesa etc.), não haveria responsabilidade nem do incapaz, nem de seus responsáveis. Impõe-se, portanto, a presença de uma ilicitude objetiva. Perante o Direito brasileiro, sustenta, por exemplo, Cavalieri Filho que “se o inimputável agiu em condições em que não se lhe poderia atribuir culpa algum acaso fosse imputável, não poderá ser obrigado a indenizar”, uma vez que “seria um contrassenso tratar o inimputável, neste aspecto, com maior severidade do que as pessoas imputáveis, exigindo dele uma conduta que a estas se não impõe”.21

Merece reflexão igualmente uma questão não tratada explicitamente: saber se a pessoa capaz quando praticou o ato, tornando-se incapaz posteriormente, poderá ou não receber a benesse instituída no parágrafo único do artigo 928, a de ter sua indenização estabelecida pela equidade. Adota-se aqui a orientação negativa: a premissa para a aplicação da regra do artigo 928 é que a pessoa seja incapaz no momento em que causou o dano. Somente a fixação do valor da indeni-zação é que poderá levar em conta a situação patrimonial das partes no momento da liquidação do dano, como se verá adiante.

Cumpre pontuar, igualmente, que o texto legal trata, genericamente, de inca-pacidade, sem especificar os seus graus classicamente conhecidos, absoluta ou relativa, nem as suas diversas espécies. Quanto a esse aspecto, há que se levar em conta a reforma legislativa levada a efeito pela Lei 13.146/2015, que alterou

Philippe. Droit de la responsabilité et des contrats. Paris: Dalloz, 2010, p. 36-37, 1619 e 1641. Também Geneviève Viney e Patrice Jourdain referem que “desde há muito tempo a Corte de Cassação, em situações faticamente bem diversificadas, tem admitido a condenação dos pais e mães sem exigir a prova da culpa do menor”. Prosseguem, afirmando que “esse afastamento da responsabilidade dos genitores relativamente a exigência de culpa do menor foi oficialmente consagrado e generalizado pela Corte de Cassação a partir de 1984” (VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice, cit., p. 1.131). Em outra obra, Geneviève Viney igualmente refere que a alteração do posicionamento da Corte de Cassação remonta a um acórdão de 9 de maio de 1984, quando “a Assemblée Plénière da Cour de Cassation, tendo que decidir sobre danos causados por três crianças, afirmou solenemente, com reafirmação posterior em vários acórdãos, que a ausência de discernimento não é um obstáculo a responsabilidade, que deve ser apreciada independentemente deste elemento” (VINEY, Geneviève. Traité de Droit Civil. In: Introduction à la Responsabilité. Jacques Ghestin (dir.). 2. ed. Paris: L.G.D.J, 1995, p. 33. Ainda no mesmo sentido se manifesta Muriel Fabre-Magnan, ao comentar o impacto dos acórdãos da Corte de Cassação, acima indicados, mencionando, aliás, que a tendência de facilitar a reparação dos danos sofridos pela vítima de atos praticados por menores remonta ao arrêt Füllenwarth, de 1984, no qual se enunciou que para a responsabilidade dos pais, por atos danosos praticados pelos filhos menores, basta que o dano tenha sido causado pelo menor, dispensando-se a prova da culpa, mesmo objetiva (FABRE-MAGNAN, Muriel. Droit des obligations. 2 – Responsabilité civile et quase-contrats. 3. ed. Paris: PUF, 2015, p. 358-359).

20 BONVICINI, Eugenio. La Responsabilità Civile per Fatto Altrui. Milano: Giuffrè, 1976, p. 633. 21 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 42.

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profundamente o panorama da incapacidade no direito brasileiro, bem como a questão das esferas de exercício dos incapazes na vida cível.22

Sobressai que o sentido da regra contida no artigo 928 é de amparar o in-capaz, aquele que na ordem jurídica possui uma capitis deminutio que lhe subtrai a capacidade, a integralidade da aptidão para exercer pessoalmente direitos e deveres na esfera jurídica. No que concerne a solução do direito brasileiro, poder- se-ia aqui indagar, porém, se foi correta a opção legislativa tão generalizante, que abrange hipóteses tão diversas de incapacidade, sem observar as nuances existentes entre elas, como a que concerne a um menor de dezesseis anos, e que, em princípio terá como responsável os pais, e pessoas maiores, como, por exemplo, os pródigos, que possuem uma problemática não diretamente capaz de lhe subtrair a imputabilidade e, por conseguinte, de lhes configurar uma posição especial quanto ao dever de indenizar.

Acresce que muito embora a disposição do artigo 928, do Código Civil possa ser vista como vinculada a dignidade da pessoa,23 ela parece estar em desacordo com a diretriz do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que pretende eliminar quais-quer traços distintivos entre a pessoa com deficiência e as plenamente capazes.24

A este respeito, a solução do Direito peruano, adotada em seu Código Civil de 1984 – acima referida – aparenta ser mais cuidadosa ao tratar distintamente de hipóteses que são díspares, ainda mais a partir da referida reforma quan-to ao tema da capacidade. Pode efetivamente suceder que a pessoa tenha seu discernimento reduzido para a prática de atos negociais, mas não o tenha para condutas como o ato de dirigir no transito (que poderia ser qualificado pelo juízo como um ato existencial e que, portanto, não está abrangido na esfera da cura-tela). Logo, pode-se indagar se a solução brasileira é a mais adequada ao tratar de modo tão genérico as sutis situações existentes nesta seara e mesmo se ela não estaria “contra a corrente”, ao adotar uma orientação que trabalha, de forma tão genérica, com o conceito de incapacidade, quando o Estatuto da Pessoa com Deficiência introduziu em nosso ordenamento um outro paradigma, que pretende

22 Na atualidade, nos termos do art. 3º, do Código Civil, apenas os menores de 16 são absolutamente inca-pazes. Quanto aos relativamente incapazes, nos termos do artigo 4º, prevê-se as seguintes hipóteses: a) os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos; b) os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; c) aqueles que, por causa transitória ou permanente não puderes exprimir sua vontade; d) os pródigos.

23 TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 823.

24 Esta é a ideia que se pode extrair do art. 84, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que assegura a pessoa com deficiência “o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais”, sendo que no §1º, do referido dispositivo, reputa-se a curatela uma medida excepcional, e, no art. 1.783-A, regula-se a figura da tomada de decisão apoiada.

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precisamente desconstruir esta qualificação, a fim de retrabalhar a noção de pes-soa, para que, em princípio, apenas o menor de 16 anos tenha a configuração de absolutamente incapaz.

Cumpre referir, nesta parte do trabalho, que a solução para a adequação da opção legislativa brasileira passa pela utilização racional da previsão inserta no parágrafo único do referido artigo, como será exposto a seguir, na parte que outor-ga ao magistrado o poder de dosar o alcance da redução do valor da indenização, podendo chegar mesmo ao limite de não reconhecer necessidade de qualquer redução, a luz do caso concreto.

Há que se referir que a doutrina nacional teve a iniciativa de cristalizar uma situação de responsabilidade do incapaz no Enunciado 40, das Jornadas de Direito Civil,25 ao tratar da hipótese de ressarcimento devido pelos adolescentes que praticarem atos infracionais, nos termos do art. 116 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no ambito das medidas socioeducativas ali previstas.

Acentue-se, aqui, a circunstancia de a inimputabilidade do incapaz não afas-tar seu dever de reparar os danos causados por sua conduta, tendo presente a condição de ser o ato tal que, se praticado por alguém imputável, configurasse a violação de um dever. Se o inimputável agiu em condições em que não se podia atribuir nenhuma culpa caso fosse imputável, não poderá ser obrigado a indenizar. Seria um contrassenso tratar o inimputável, nesse aspecto, com maior severidade do que as pessoas imputáveis, exigindo daquele uma conduta que a estes não se impõe. Há que se ter presente, em suma, a relevante temática da imputação, que também está vinculado a regulação específica da temática da responsabilização do incapaz.26

Todavia, não basta que o incapaz seja teórica e abstratamente responsável pelos danos que diretamente causou. Para que possa ser concretamente respon-sabilizado, com fulcro no art. 928 do Código Civil vigente, é mister que a indeniza-ção não possa ser obtida dos seus responsáveis, pelas razões expostas a seguir.

1.2 Ausência de meios e de obrigação de reparação por parte dos responsáveis pelo incapaz

Consoante a leitura do artigo 928, caput, a responsabilidade do incapaz incidirá na hipótese em que o responsável não tiver obrigação de fazê-lo, ou não dispuser de meios suficientes.

25 Nesse sentido, TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, cit., p. 821.

26 Sobre o tema, ver, por exemplo, MAJO, Adolfo di. Profili della Responsabilitá Civile. Torino: Giappichelli Editore, 2010, p. 7.

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Perante o Código Civil de 2002, portanto, a responsabilidade do incapaz será subsidiária, pois somente será acionada se uma das duas premissas acima indica-das estiver presente. Além disso, será potencialmente mitigada,27 em razão da pos-sibilidade de redução do valor da indenização, nos termos abordados mais adiante.

Examinando-se a primeira questão, observa-se que a responsabilidade dos pais, tutores e curadores, pelos atos danosos praticados por seus filhos, pupilos e curatelados é de natureza objetiva, independente de culpa (ex vi do art. 933 do C.C.); logo, serão raríssimas as hipóteses em que tais pessoas não terão respon-sabilidade.28

Embora a hipótese de inexistência de responsabilidade do responsável legal pelo menor seja restrita, alguns casos de responsabilização direta do menor, po-rém, poderão ocorrer. Pense-se na situação de estar o menor púbere empregado, e, em razão de seu trabalho, vier a causar um dano a terceiros: simule-se o caso do jovem de 17 anos, empregado como office-boy (ou seja, em condições tais que não se possa afirmar ter ele “economia própria”, a ponto de ser considerado emancipado, nos termos do art. 5º, parágrafo único, inc. V, do CC), que, burlando a vigilancia de seu empregador, retira indevidamente um veículo da empresa e com ele cause um atropelamento. Num caso como esse, os genitores do menor não terão qualquer responsabilidade, pois ela é transferida ao empregador pelos atos danosos relacionados ao emprego. Na hipótese de insolvência do empregador, a vítima poderia ter interesse de ressarcir-se junto ao próprio menor, acaso tivesse patrimônio.

No que concerne a segunda premissa, ausência de meios dos pais, trata-se de circunstancia que deverá ser alegada por eles, pois é seu o ônus da prova. Muito embora ainda não se tenha, na vida judiciária, casos concretos a revelar a sua incidência – até porque nosso Código ainda é relativamente recente –, esta não é impossível.

Na sociedade contemporanea, pode acontecer que menores, em algumas áreas, como no entretenimento ou no esporte, desde logo recebam considerável remuneração, direta, ou indireta – por meio de patrocínio –, de sorte que sejam estes menores, incapazes, detentores de patrimônio superior ao de seus respon-sáveis.

27 É comum a doutrina referir-se a responsabilidade dos incapazes como sendo uma responsabilidade “mitigada e subsidiária”. É o caso, dentre outros, de GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil. vol. 11 (Arts. 927 a 965). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 394; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, cit., p. 41. As mesmas características se observam no direito italiano; ver, por exemplo, BONVICINI, Eugenio. La Responsabilità Civile per Fatto Altrui, cit., p. 633.

28 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. IV – Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 21; VENOSA, Sílvio de Salvo. Código civil interpretado. Vol. XII. São Paulo: Atlas, 2009, p. 863.

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De maior frequência prática poderá ser o caso dos pupilos e curatelados, em que se configure a situação na qual o patrimônio destes seja maior do que o daqueles. De fato, não são infrequentes as hipóteses de um órfão que tenha herdado vultoso patrimônio de pais falecidos num acidente, e que, sendo menor, seja colocado sob a tutela de outro parente – tio, por exemplo – que não tenha fortuna. Nessa hipótese, vindo o pupilo a causar danos de monta a outrem (um atropelamento fatal, por exemplo), poderá ele vir a ser diretamente acionado pela vítima, diante da hipótese de não ter o tutor bens suficientes para garantir o pa-gamento da indenização.

Discorrendo sobre hipótese semelhante no direito italiano, Monateri afirma que a norma constitui uma espécie de social security em favor do terceiro, em prejuízo do patrimônio do incapaz. Sua previsão não encontraria outra justificativa que não a própria opção legislativa que a instituiu e que, por isso mesmo, deve ser tida como algo excepcional. E conclui no sentido de que “a indenização prevista na norma tem essencialmente a função de satisfazer as necessidades (bisogni) da pessoa lesada”.29

Já Franzoni30 identifica como fundamento de tal responsabilidade, uma “im-prescindibile esigenza di solidarieta sociale”, derivada do art. 2º da Constituição italiana, de forma que a liquidação do dano deve ser efetuada de acordo com a equidade, entendida como a exigência de reparar a vítima inocente, ainda que se levando em conta a avaliação comparativa das condições econômicas das partes.

Em nosso direito, a doutrina invoca a ideia de equidade como fundamento da responsabilidade do incapaz, de forma que “nem a vítima do dano fica sem proteção alguma, nem o incapaz é obrigado a indenizar integralmente, ainda que pudesse sucumbir financeiramente a miséria”. Sustenta-se, ainda, que “a solu-ção adotada pelo Código civil de 2002 evidencia uma tendência contemporanea, perceptível em vários sistemas jurídicos”.31 Em essência, trata-se de uma solução de equilíbrio, que pretende harmonizar a tutela da vítima, a fim de não deixar sem remédio aquele que sofre um dano injusto, com o resguardo da posição jurídica do incapaz, visto na ótica legislativa como alguém ainda merecedor de proteção jurídica.

29 MONATERI, Pier Giuseppe. Le Fonti delle Obbligazioni. La Responsabilita Civile. Vol. 3. In: Trattato di Diritto Civile. Rodolfo Sacco (dir.). Torino: UTET, 1998, p. 942-943. Também a Corte d’Appello de Napoli, em julgamento proferido em 5.5.1967 (Archivio della Responsabilità Civile, 1968, p. 178. Piacenza: La Tribuna), refere que “l’equa indennita ha la funzione di soddisfare il bisogno di riparazione della persona danneggiata, tenuto conto delle possibilita economiche della controparte”.

30 FRANZONI, Massimo. Trattato della Responsabilità Civile. L’Illecito. Vol. I. 2. ed. Milano: Giuffrè, 2010, p. 698. 31 Nestes termos FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo

Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2015, p. 613, bem como SIMÃO, José Fernando. A responsabilidade civil do incapaz. São Paulo: Atlas, 2008, p. 295.

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De qualquer sorte, a responsabilização direta dos incapazes só ocorrerá se os recursos necessários ao pagamento da indenização não privarem o incapaz ou as pessoas que dele dependam do necessário, segundo a dicção da lei, o que se examinará a seguir. Neste sentido, embora o texto normativo do Código Civil não expresse inequivocamente a ideia de faculdade/discricionariedade judicial, vislum-bra-se na solução acima indicada do parágrafo único do art. 928 esta conclusão.

Na medida em que a indenização – que deverá ser equitativa – “não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”, pode-se considerar que também no direito brasileiro é possível que o juiz, ao fim e ao cabo, resolva não condenar o incapaz a indenizar, em razão das circunstancias do caso sub judice. Esta circunstancia conduz que o sistema brasileiro – como o direito ita-liano32 – possui como característica uma certa dose de discricionariedade judicial na identificação ou não de um dever de indenizar, bem como a presença de um juízo equitativo para a fixação do valor da indenização.

A diferença que se pode estabelecer entre os dois ordenamentos consiste, substancialmente, no fato de que o critério predominante para a fixação da res-ponsabilidade em si, bem como da dosagem do quantum reparatório, reside, no direito italiano, basicamente na indicada comparação das condições econômicas entre as partes (incapaz e vítima), ao passo que no direito brasileiro o juízo de equidade a que se refere o parágrafo único do art. 928 pode envolver todas as circunstancias do caso.

Por outro lado, apesar de a responsabilidade dos incapazes ser subsidiária, surge a questão de saber como se deve compatibilizar a regra do artigo 928, com o disposto no artigo 942, do Código Civil. Considera, por exemplo, Rizzardo33 que “o art. 928 não afronta o art. 942, que estabelece a responsabilidade solidária dos incapazes e das pessoas nomeadas no art. 932”, embora refira, mais adian-te, que “essa solidariedade, no entanto, deve considerar a limitação constante no art. 928 e em seu parágrafo único”, ou seja, prevalecerá apenas se os responsá-veis não tiverem patrimônio suficiente para reparar os danos.

No ambito do Superior Tribunal de Justiça, examinou-se a questão de como harmonizar os dois preceitos acima indicados: decidiu-se que a responsabilidade

32 No direito italiano, por todos, FRANZONI, Massimo. Trattato della Responsabilità Civile. L’Illecito, cit., p. 697. Tal posicionamento já remontava a DE CUPIS, Adriano. Il Danno. Teoria generale della responsabilità civile, cit., p. 25. Na jurisprudência italiana, teve repercussão uma decisão do Tribunale di Macerata, proferida em 20.05.1986 (publicada no Il Foro Italiano, Roma, I, col. 2594, 1986), envolvendo um menino de 10 anos que, brincando com uma zarabatana, lesionou o olho de uma criança de quatro anos. Naquele julgamento, foi dito que “l’equa indennita ex art. 2047, comma 2º, c.c., consiste in un mero indennizzo, che, pur potendo in astratto corrispondere anche all’integrale ristoro, dipende sia nell’an che nel quantum da una valutazione comparativa delle condizioni economiche delle parti”.

33 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2011, p. 119.

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do incapaz será subsidiária e não solidária. Ela incide apenas quando os res-ponsáveis não tiverem meios para ressarcir. Em consequência a esta premissa, afirmou-se no Superior Tribunal de Justiça que inexiste no caso litisconsórcio pas-sivo necessário: ou seja, a vítima não é obrigada a litigar contra o responsável e o incapaz.34

Observe-se, porém, que nada impede que a vítima opte por litigar contra ambos, o que configurará uma situação de litisconsórcio facultativo, pleiteando então de modo subsidiário a responsabilidade do incapaz.35

Desse modo, quanto a eventual necessidade de se ajuizar previamente uma ação contra os responsáveis legais para somente depois de acertada judicialmen-te a inexistência de seu dever legal de indenizar, ou a sua incapacidade econômi-ca para fazê-lo, mover a ação contra o incapaz, a resposta deve ser negativa. Vem sendo afirmado que “ainda nas hipóteses de responsabilidade civil subsidiária, o aconselhável, sob o prisma processual, é a propositura da ação judicial contra todos, responsáveis imediatos e subsidiários. Ainda que isso não tenha sido feito inicialmente, não se descarta a possibilidade de ser feito no curso do processo”.36

Considera-se que a ação direta pode ser desde logo proposta, com a afirma-ção, na inicial, da irresponsabilidade dos pais, tutores ou curadores, ou afirmação da insolvência destes. Todavia, diante do potencial conflito de interesses entre o incapaz e seus representantes legais – que serão também os seus represen-tantes/assistentes em juízo –, deverá o juiz nomear um curador especial para representar/assistir o incapaz na demanda judicial. Até porque uma das teses da defesa poderá ser a da responsabilidade e solvência de seus representantes legais, contra quem deveria a demanda ser dirigida.

Passa-se, agora, a segunda parte deste ensaio, analisando os efeitos da decisão que entende ser o incapaz responsável pelos danos que causou.

2 A indenização devida pelo incapaz

2.1 O condicionamento da indenização à vítima pelo dano causado pelo incapaz

Nos termos do parágrafo único do artigo 928, do Código Civil, a indenização devida pelo incapaz a vítima do dano por ele causado possui um primeiro requisito:

34 Nesse sentido, STJ, 4ª T., REsp 1.436.401/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 2.2.2017.35 Nessa linha, o voto do eminente Relator, Luiz Felipe Salomão, no Recurso Especial acima indicado. 36 Assim se manifestaram FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson.

Novo Tratado de Responsabilidade Civil, cit., p. 614, bem como, no mesmo sentido, SOUZA, André Pagani de. Aspectos processuais da responsabilidade civil do incapaz. In: Impactos processuais do Direito Civil. Cássio Scarpinella Bueno (coord.). São Paulo: Saraiva, 2008, p. 339-361.

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ela não ocorrerá se “privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele depen-dam”. Ela é, em essência, portanto, condicionada: o arbitramento da indenização pelo magistrado somente ocorrerá após a verificação desta circunstancia: afinal, se o incapaz e aqueles que dele dependam forem privados do “necessário”, a indenização simplesmente não terá lugar.37

Superada esta primeira linha de reflexão, é forçoso reconhecer que o conteú-do normativo do artigo não auxilia, suficientemente, o magistrado: afinal, a per-gunta sobre o que se deve efetivamente entender por “necessário” pode acarretar questionamento ao intérprete, a fim de conduzir a conclusão última e relevante do parágrafo único do artigo 928.

A este respeito, há que se verificar qual o contorno objetivo do significado da expressão “necessário”, contida no aludido preceito.38 Deverá, por exemplo, o incapaz viver com o salário mínimo legal, estabelecido em nível nacional – ou mes-mo estadual em que é domiciliado? Consoante se apontou introdutoriamente, em alguns ordenamentos faz-se menção expressa a noção de alimentos necessários para a subsistência do incapaz, de acordo com sua condição, o que conduz a ideia de uma renda mínima a ser atribuída ao destinatário da norma.

Nesse sentido, considera-se que “o inimputável deva conservar bens em va-lor superior ao necessário para simplesmente lhe assegurar os alimentos adequa-dos ao seu estado e condição, e os alimentos que legalmente deva a outrem”.39

Considera-se que a referida expressão – necessário – está vinculada a ideia de mínimo existencial,40 na medida em que esta tende a tornar mais concreta, e também mais restrita, a noção adotada pelo codificador civil.41

37 Pode-se, aqui, apenas suscitar se o poder discricionário atribuído ao juiz implicaria que o lesado não dis-poria de um direito subjetivo a indenização, mas sim de um “mero potere d’azione”. Uma vez avaliadas comparativamente as condições econômicas das partes e determinado o montante do prejuízo sofrido, o juiz poderia então traduzir tal poder de ação em uma indenização. Sobre o tema, ver FRANZONI, Massimo. Trattato della Responsabilità Civile. L’Illecito, cit., p. 699 (que também faz referência aos escólios de Ven-chiarutti, Travi e Carnelutti); DE CUPIS, Adriano. Il Danno. Teoria generale della responsabilità civile, cit., p. 24. A questão envolve um dos temas mais relevantes da doutrina contemporanea: o eventual redimensio-namento do papel e da função do direito subjetivo, que ultrapassa os limites do presente artigo. Cf., por exemplo, GENTILI, Aurelio. A proposito de “Il diritto soggetivo”. Rivista di Diritto Civile, Milão, v. 50, n. 3, 2004, p. 351; RUSSO, Ennio. Il Concetto di diritto soggetivo. Rivista di Diritto Civile, Supplemento Annuale di Studi e Ricerche, Milão, 2008.

38 Ver, por exemplo, TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 35 e segs.

39 Nesse sentido, CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, cit., p. 41 e DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil. Vol. XIII. São Paulo: Forense, 2004, p. 161-162.

40 Ver sobre o tema, por todos, SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 170 e segs.; e também Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.

41 Nesse sentido FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil, cit., p. 613: “a indenização, na espécie, deverá ser equitativa, e só terá lugar se não privar o incapaz do mínimo existencial”.

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Nesse contexto, pode-se indagar, por exemplo, como uma situação prática passível de reflexão, se o incapaz poderia invocar a noção de “necessário”, a fim de evitar ser privado da propriedade do único imóvel residencial, na eventual hipó-tese em que ele incidir nas exceções previstas na Lei 8.009/90. Pense-se na situa-ção em que o incapaz seja tido como responsável, na esfera penal ou da infancia e juventude, por uma conduta apta a gerar indenização, sendo esta circunstancia uma exceção especialmente prevista no artigo 3º, VI, da referida Lei 8.009/90.

Reputa-se aqui que, mesmo existindo a previsão especial de impenhorabili-dade do bem de família, se o incapaz residir em um imóvel próprio, e não puder alegar o benefício por força da incidência de exceção contida no artigo 3º da Lei 8.009/90, poderá ele então invocar o disposto no parágrafo único, na medida em que a propriedade de um único imóvel residencial se considera como uma con-cretização do mínimo existencial e deve, portanto, ser reputada como necessária para a manutenção do incapaz.

Vê-se, portanto, que o conteúdo do parágrafo único do artigo 928 contém múltiplos desafios: apresenta, de um lado, a possibilidade de examinar-se o con-teúdo do mínimo existencial no Direito Civil, podendo ser considerada uma situa-ção de vínculo com a noção de dignidade da pessoa humana. De outro, porém, é forçoso reconhecer a ausência de indicações maiores para o julgador, por parte do legislador, a fim de que a interpretação não se descaracterize em face de po-tenciais soluções discricionárias.

Na doutrina, o tema foi objeto de análise, tendo sido proposto o Enunciado n. 39, da I Jornada de Direito Civil, que teve como teor o seguinte texto: “a impossibi-lidade de privação do necessário a pessoa prevista no artigo 928, traduz um dever de indenização equitativa, informado pelo princípio constitucional da proteção a dignidade da pessoa humana. Como consequência, também os pais, tutores e curadores serão beneficiados pelo limite humanitário do dever de indenizar, de modo que a passagem ao patrimônio do incapaz se dará não quando esgotados todos os recursos do responsável, mas se reduzidos estes ao montante necessá-rio a manutenção de sua dignidade”.

Observe-se, aqui, que embora seja louvável a concepção acima exposta, ela não possui pleno amparo legal, na medida em que pretende ampliar a finalidade protetiva do artigo 928, abrangendo a reserva patrimonial também aos respon-sáveis pelo incapaz, o que pode restringir desmesuradamente a possibilidade de ressarcimento para a vítima do dano e causando a este um dúplice questiona-mento, na medida em que terá de superar a alegação dos responsáveis acerca da extensão do seu patrimônio e, posteriormente, enfrentar o mesmo argumento por parte do incapaz.42

42 Não se olvida aqui a posição doutrinária que reputa a indenização como um direito fundamental. Muito embora não se adote esta concepção na sua extensão, considera-se a posição da vítima no quadro do

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De qualquer sorte, trata-se de problemática que ainda não foi objeto de con-cretização na jurisprudência nacional, de modo que o tema ainda permanece no ambito exclusivamente teórico, dando razão a posição doutrinária que aponta para o caráter excessivamente residual da solução delineada.

2.2 O arbitramento equitativo da indenização como exceção ao princípio da reparação integral

Superado o requisito acima indicado, ou seja, sendo caso de se responsa-bilizar o incapaz,43 a indenização a que ele estará sujeito deve ser fixada com observancia do critério da equidade, especialmente previsto no texto legal.

Consoante indicado na introdução ao presente texto, cuida-se de opção legis-lativa diferenciada em relação ao princípio clássico adotado no art. 944 do CC/02 (“A indenização mede-se pela extensão do dano”), o da reparação integral, cujo objetivo precípuo é pretender “colocar o lesado, na medida do possível, em uma situação equivalente a que se encontrava antes de ocorrer o fato danoso”.44

O princípio da reparação integral corresponde a um critério de justiça: quem é responsável por ter causado um dano “x”, tem o dever moral e jurídico de pagar “x”, para, desta forma, neutralizar a perda sofrida pela vítima.

Todavia, esse imperativo de justiça comutativa, de sensata aplicação a gene-ralidade dos casos de danos, pode ceder a outras considerações de justiça. É o que se passa a analisar neste ponto do trabalho.

Antes de se abordar a indenização equitativa, convém analisar, sintetica-mente, a noção de equidade.45 É comum iniciar essa referência, invocando-se

direito contemporaneo da responsabilidade civil. Sobre o tema, ver, por exemplo, LUTSKY, Daniela. A Reparação de danos imateriais como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 255 e segs.

43 Nesse sentido, GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. In: Código Civil comentado. Doutrina e Jurisprudência. Cezar Peluso (coord.). 5. ed. Barueri: Manole, 2011, p. 935. (Cláudio L. B. Godoy foi responsável pelos comentários aos artigos 653 a 853 e 927 a 954. O trecho citado refere-se aos comentários ao art. 928/CC).

44 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 48. Nesta preciosa obra, faz referência a Resolução n. 75-7, de 14.03.1975, do Conselho da Europa, que dis-ciplina a reparação de danos em caso de lesões corporais e da morte, nas hipóteses regidas pelo direito comunitário, estabelecendo que “a pessoa que sofreu um prejuízo tem direito a sua completa reparação, devendo ser recolocada em uma situação mais próxima possível daquela em que estaria se o evento danoso não tivesse ocorrido” (p. 49-50). Acrescentamos que a Resolução n. 75-7, de 1975, do Conselho Europeu, com sede em Estrasburgo mas aplicável a todos os países integrantes da União Europeia, fixa 19 princípios a serem observados na fixação dos danos corporais e em caso de morte. Informações sobre referidos princípios podem ser obtidos em: <http://www.association-aide-victimes.fr/RESOLUTION%2075-7%20DU%20CONSEIL%20DE%20L%27EUROPE.htm>.

45 Sobre o tema ver, por exemplo, FROSINI, Vitorio. Nozine di Equita, in Enciclopedia del Diritto, vol. XV. Milão: Giuffrè, p. 69 e segs; ROMANO, Salvatore. Principio di Equitá (dir. priv.), in Enciclopedia del Dirittto, vol. XV, p. 83 e segs., cit; NASI, Antonio, Giudizio di Equita, in Enciclopedia del Diritto, vol. XV, p. 107 e segs., cit.

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Aristóteles que, ao retomar de Sócrates o tema, sobre ele discorreu em duas de suas obras – na Arte Retórica46 e na Ética a Nicômaco.47 Tal concepção ainda hoje possui marcante vinculação com a temática da responsabilidade civil extracontra-tual.48

Em Aristóteles, a ideia de equidade está relacionada a adaptação da genera-lidade das leis as especificidades do caso concreto, nem sempre percebidas pelo legislador, que necessariamente deve atender aos aspectos mais genéricos e repetitivos da conduta humana. Como esclarece Hélio Tornaghi,49 a lei, ao regular as relações entre os homens por meio de normas gerais, leva em conta os grupos de casos que têm, entre si, um denominador comum e despreza as diferenças específicas. Em outras palavras, a justiça da lei atenta para o geral; a justiça da equidade atenta para o circunstancial, o peculiar.

Dentre as funções da equidade, destaca Milton Paulo de Carvalho Filho50 que “a equidade pode funcionar como fundamento da correção da lei inadequada no caso concreto”. Mas adverte que “ela confere um poder discricionário ao ma-gistrado, não uma arbitrariedade”. Segundo o citado autor, “a autorização é para apreciar, equitativamente, segundo a lógica do razoável, interesses de fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto ou singular ou omisso”.

Observe-se que o fato de o legislador, no parágrafo único do artigo 928, do Código Civil, ter autorizado o juiz a agir com maior discricionariedade e liberdade na fixação da indenização, mediante invocação da equidade, representa certa-mente uma das manifestações dos princípios da operabilidade e concretude que Miguel Reale buscou impregnar em seu código. Isso significa, naquilo que aqui interessa, que o codificador procura não mais legislar para o sujeito abstrato, existente somente na imaginação do legislador e ausente da vida real, mas sim para o indivíduo situado, concreto.

46 Retórica, Livro I, Capítulo XIII. In Aristóteles. Obras Completas. Retórica. Biblioteca de Autores Clássicos. Coordenação de António Pedro Mesquita. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

47 Cf. Ética a Nicômaco, Livro V, Capítulo X: “...o equitativo é justo, porém, não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal”; “Portanto, quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não é abrangido pela declaração universal, é justo, uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de sim-plicidade, corrigir a omissão – em outras palavras, dizer o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso”; “Essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade”.

48 Ver, por exemplo, ZAMORA, Jorge Fabra. Estudo introdutório: Estado del arte de la filosofia de la respon-sabilidad extracontratual. In: La filosofia de la responsabilidad civil. Carlos Bernardo Pulido; Jorge Fabra Zamora (org.). Bogotá: Universidad Externado Editora, 2013, p. 21, 60.

49 TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 135.

50 CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Indenização por Equidade no Novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 115.

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NOTAS SOBRE A INDENIZAÇÃO EQUITATIVA POR DANOS CAUSADOS POR INCAPAZES: TENDÊNCIA...

De qualquer sorte, não se pode olvidar a lição de Limongi França,51 ao referir que “a construção da regra de equidade não deve ser sentimental ou arbitrária, mas o fruto de uma elaboração científica, em harmonia com o espírito que rege o sistema e especialmente com os princípios que informam o instituto objeto da decisão”.

É de se indagar se em todas as hipóteses em que o legislador outorga ao juiz a faculdade de fixar a indenização de forma equitativa, ele o faz dentro da mes-ma racionalidade, ou se há diferenças entre as situações. Em outras palavras, trata-se de um novo princípio, com atuação independente, ou de uma exceção ao princípio da reparação integral? Ou ambos? A importancia prática da distinção aqui apontada reside em que, quando comparece como exceção – e apenas nesse caso –, vale a regra hermenêutica segundo a qual as exceções interpretam-se restritivamente.

Embora o caráter de novidade na solução do artigo 928 em confronto com o direito anterior, faz-se mister apontar que a lógica do recurso a equidade também está presente em outros dispositivos legais do Código de 2002: na esfera con-tratual, por exemplo aparece na faculdade outorgada ao Juiz de reduzir equitativa-mente a cláusula penal (artigo 413); poderá reduzir equitativamente a indenização da vítima no contrato de transporte, quando esta houver concorrido para a ocorrên-cia do dano (parágrafo único do artigo 738); e, na esfera do dano extrapatrimonial, está autorizado expressamente o Juiz a fixar, equitativamente, o valor da indeniza-ção, nas hipóteses de injúria, difamação e calúnia (parágrafo único do artigo 954).

Mais importante do que as hipóteses bastante específicas acima referidas é a cláusula mais aberta prevista no parágrafo único do art. 944. Após estabelecer, no caput deste artigo, o princípio da reparação integral, admite o legislador que “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”. Mesmo não se podendo fugir do caráter excepcional de tal previsão, fato é que o legislador adotou quase que uma verdadeira cláusula geral, tamanha é a largueza do enunciado. Caberá ao juízo discricionário do magistrado definir qual o montante da “desproporção” entre a gravidade da culpa frente ao dano causado que continuaria a exigir a aplicação do princípio da reparação integral, e quando tal desproporção se tornaria “excessiva”, a ponto de justificar o afastamento de tal princípio, admitindo-se uma indenização equitativa.

Nesse sentido, há que se reconhecer a afirmação de uma tendência pela equidade, no ambito do Código de 2002, ao prever a adoção deste critério na

51 FRANÇA, R. Limongi. Verbete “Aplicação do direito positivo”. In: Enciclopédia Saraiva do Direito. Vol. 7. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 205.

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EUGÊNIO FACCHINI NETO, FÁBIO SIEBENEICHLER DE ANDRADE

apreciação da responsabilidade pelo incapaz, “no sentido de considerar-se não só o prejuízo em si¸ como também outros elementos informadores, na fixação do quantum objeto da justa indenização”.52

Pode-se, porém, ponderar que em relação a situação específica da respon-sabilidade civil do incapaz – para utilizar a denominação genérica adotada pelo codificador brasileiro – poderia este ter dotado a regulação da matéria de alguns critérios específicos – o Código italiano pede a atenção para a condição econômi-ca das partes –, ou então explicitar que o juiz deveria atentar para todas as par-ticularidades do caso, a fim de indicar que o intérprete da norma deve pautar-se pela atenção a diretrizes objetivas, em face da peculiaridade da questão regulada pelo artigo 928, parágrafo único.53

É também cabível a indagação sobre qual a ponderação a ser exercida no caso concreto, em face das diversas situações de incapacidade abrangidas pelo caput do artigo – como acima se apontou. Pontua-se que não se olvida, aqui, a necessidade acima já apontada de considerar a figura da vítima – que poderá ser inclusive tão ou mais necessitada do que o incapaz –, caso em que eventualmen-te justificar-se-ia uma decisão que condenasse este a indenizar integralmente o dano sofrido pela vítima.54 Uma interpretação que conduza, por exemplo, a uma indenização insignificante, em relação ao dano, deverá ser evitada, na medida em que contradiz a concepção intrínseca da responsabilidade civil, que é de propiciar a reparação de danos na forma mais integral e completa possível.

Veja-se que inexiste, também, na solução brasileira, qualquer referência acerca do eventual incremento do patrimônio do incapaz, após a tramitação do processo, o que pode suscitar eventual questionamento por parte da vítima que recebesse indenização inferior ao dano. Diante do fato de a demanda anterior não haver reparado a integralidade do dano, tendo tal solução sido adotada exclusiva-mente em face da pouca expressão do patrimônio do incapaz na época, é de se indagar se poderia aquela vítima ajuizar nova demanda, alegando, por exemplo, que o valor por ela recebido, por não ter reparado integralmente o dano, deve ser majorado, tendo em vista o aumento do patrimônio do incapaz, em momento posterior. É pouco provável, porém, que uma tal demanda seja aceita, em razão

52 CAHALI, Yussef Said. Indenização segundo a gravidade da culpa. In: Dano e Indenização. São Paulo: Re-vista dos Tribunais e AJURIS (coedição), 1980, p. 136. Isso é particularmente verdadeiro em se tratando de danos imateriais, pois, como afirma Miguel Reale, “não se mede o dano moral segundo critérios quan-titativos e numéricos, porque há sempre que levar em conta o espírito de equidade e a boa-fé com que se praticou ou se deixou de praticar o ato” (REALE, Miguel. O Projeto de Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 8).

53 No mesmo sentido, indagando-se acerca de quais os critérios para o juiz decidir por equidade, cf. GODOY, Cláudio Luiz Bueno de, cit., p. 935-936.

54 Como sustenta, por exemplo, GODOY, Cláudio Luiz Bueno de, cit., p. 935.

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NOTAS SOBRE A INDENIZAÇÃO EQUITATIVA POR DANOS CAUSADOS POR INCAPAZES: TENDÊNCIA...

da necessidade de estabilização da solução de conflitos, cujo ponto culminante é a garantia fundamental da coisa julgada.

É certo, também, que as condições econômicas das partes, para efeito da fi-xação do montante da indenização, devem ser aferidas no momento da liquidação da indenização, e não no momento do evento danoso, devendo ser seguido, neste aspecto, a lição italiana diante de semelhante situação.55

Considerações finais

O sintético panorama sobre o tema versado permite apontar que a inovação contida no art. 928 do Código Civil enfrenta um problema que foi objeto de regula-ção por outros ordenamentos jurídicos, mas sobre o qual se omitia o codificador brasileiro.

A aludida previsão configura uma das significativas inovações do Código Civil, pois, de um lado, estabeleceu a possibilidade de se responsabilizar diretamente o incapaz, inclusive os absolutamente incapazes, o que não era possível a luz do direito anterior; por outro lado, como uma espécie de compensação, mitigou-se o princípio da reparação integral, admitindo uma hipótese de indenização equitativa, ou seja, não necessariamente integral.

Em boa parte dos ordenamentos jurídicos contemporaneos há muito já se aceita a responsabilização direta dos incapazes, sujeitando seu patrimônio pessoal a reparação dos danos por eles causados, ainda que inimputáveis, por razões equitativas.

Ou seja, como cada vez mais a responsabilidade civil compromete-se com a reparação/compensação dos danos sofridos pela vítima, a questão se resolve num confronto entre patrimônios, buscando-se restaurar o equilíbrio rompido com a lesão causada por um incapaz. Não se trata de puni-lo pelo ato praticado, mas simplesmente de compeli-lo a reparar o dano causado, sempre que tal reparação não possa ser alcançada por seus responsáveis legais. Considerando, porém, a racionalidade que sustenta esta responsabilidade objetiva, o dever de reparar o dano não precisa necessariamente alcançar a totalidade do prejuízo, podendo ser limitada, mediante equanime avaliação do julgador.

As recentes mudanças legislativas ocorridas na temática da incapacidade permitem, é certo, uma reflexão sobre o acerto da disciplina do codificador de 2002, ou mesmo sobre o cuidado do legislador especial ao alterar a matéria da incapacidade, sem atentar para o ponto objeto de disciplina no artigo 928. Com

55 FRANZONI, Massimo. Trattato della Responsabilità Civile. L’Illecito, cit., p. 701.

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EUGÊNIO FACCHINI NETO, FÁBIO SIEBENEICHLER DE ANDRADE

efeito, embora o tema não seja objeto central do presente trabalho, há que se pon-tuar para a circunstancia de que uma reforma da temática da capacidade deveria ter levado a uma análise por parte do legislador especial acerca da hipótese de responsabilidade civil prevista no artigo 928 e em seu parágrafo único.

Quanto ao tema específico da responsabilidade civil do incapaz, muito em-bora se saiba que o foco atual da matéria, pelo que se percebe da sua evolução histórica e tendências doutrinárias, reside cada vez mais no imperativo de indeni-zar ou compensar o dano injustamente sofrido, reputa-se que o espírito de tutelar aquele que não possui capacidade plena é, ainda hoje, meritório, em face das peculiaridades da condição pessoal do causador do dano.

É certo que ressalvas podem ser feitas para a circunstancia de que se poderia ter agregado a moldura legislativa do artigo 928, parágrafo único, alguns critérios mais objetivos que servissem de referência ao julgador, a fim de que este se sen-tisse mais seguro e capacitado para aplicar o novel dispositivo em maior amplitude.

Respondendo, por fim, a indagação posta no título deste ensaio, sobre se a novidade introduzida no art. 928 do CC/02 configura uma tendência ou, ao contrá-rio, representa uma exceção, há que primeiramente se chamar a atenção para o aspecto de que referido dispositivo legal, na verdade, introduziu em nosso direito duas exceções: a primeira delas em relação ao princípio de que incapazes não são responsáveis por seus atos, por lhes falecer a natural imputabilidade; a segunda, em relação ao princípio da reparação integral.

Quanto a primeira exceção, trata-se inquestionavelmente de uma tendência, no sentido de relativizar-se a necessidade da presença da culpa para se poder res-ponsabilizar alguém. No ambito da responsabilidade civil, o foco não mais reside no agente causador do dano e na necessidade de se identificar na sua conduta um elemento de reprovabilidade moral (a culpa). Cada vez mais a atenção da res-ponsabilidade civil desloca-se para a vítima e para a necessidade de sua proteção quando ela não deu causa ao seu dano (ideia de danno ingiusto, tão cara a cultura jurídica italiana). Se nem o agente causador do dano, nem a vítima do mesmo, agiram com culpa, o direito civil deve inclinar-se para a proteção desta última, pois o fator desequilibrador consiste em que o dano foi causado por aquele. Não se trata de punir alguém. Trata-se apenas de fazer com que quem agiu e causou um dano, venha a se responsabilizar pela reparação do mesmo.

Já em relação ao segundo questionamento, o do afastamento do princípio da reparação integral mediante a utilização da equidade, observa-se que, embora não se trate de uma solução isolada no sistema brasileiro, há que ser qualificada como tendo um caráter excepcional, a ser aplicada somente quando todas as con-dições legais estejam presentes. Ou seja, sempre que possível, a indenização a ser paga deverá ser suficiente para efetivamente neutralizar os danos, reparando integralmente o prejuízo causado. As dúvidas, portanto, devem ser resolvidas no sentido de se prestigiar o princípio da restitutio in integrum.

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NOTAS SOBRE A INDENIZAÇÃO EQUITATIVA POR DANOS CAUSADOS POR INCAPAZES: TENDÊNCIA...

Esta premissa harmoniza-se, porém, com a percepção de que o artigo 928 robustece a ideia de que a equidade pode ser um critério de decisão perfeitamente adequado ao campo da responsabilidade civil contemporanea, exatamente pela maior porosidade do tema objeto de disciplina no dispositivo indicado. Isto é, frente a opção de deixar a vítima sem nenhuma indenização, nas hipóteses em que o po-tencial responsável civil não tiver patrimônio capaz de suportar tal responsabilidade, e a opção de se responsabilizar integralmente o incapaz, que moralmente não pode ser responsabilizado por seus atos, ao ponto de eventualmente comprometer seu próprio futuro, o legislador pátrio, inspirado em experiên cias estrangeiras, adotou o caminho do meio: presentes algumas condições, é possível se responsabilizar o incapaz pelos danos que ele diretamente causou, mas não de forma integral.

A preocupação com o tema talvez deva ser relativizada, seja em face da escassa aplicabilidade prática da matéria, seja pela ampla abrangência da res-ponsabilidade objetiva atribuída aos pais, pelos atos dos filhos menores, mesmo quando não estejam diretamente sob sua guarda.56

Estes fatores explicam o fato de o regime da equidade permanecer substan-cialmente sem aplicação pelo Judiciário, quando na verdade, em face da maior abertura concedida pelo codificador de 2002, poderia ser percebido como um me-canismo que eventualmente possibilitaria uma mais justa composição de litígios envolvendo danos praticados por incapazes, compatibilizando a necessidade de se reparar integralmente o dano sofrido pela vítima, com a necessidade de proteção dos incapazes, tutela esta que sempre se deu mediante diversas formas em nosso Direito, e que agora se espraia também para o tema da reparação de danos.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FACCHINI NETO, Eugênio; ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Notas sobre a inde-nização equitativa por danos causados por incapazes: tendência ou excepcionali-dade no sistema da responsabilidade civil no Direito brasileiro? Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 93-115, jul./set. 2017.

Recebido em: 26.04.2017

1º parecer em: 29.04.2017

2º parecer em: 08.05.2017

56 Ver, por exemplo, o seguinte julgado, acima citado: STJ, 4ª T., REsp 1.436.401/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 2.2.2017.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO DA MORTE: UMA ANÁLISE DO DIREITO

PORTUGUÊS E SUA (IN) APLICABILIDADE NO BRASIL

CIVIL LIABILITY FOR DEATH DAMAGE: AN ANALYSIS OF PORTUGUESE LAW AND ITS (IN) APPLICABILITY IN BRAZIL

Camilla de Araujo CavalcantiDoutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra –

Portugal. Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal. Membro do Instituto Brasileiro de Direito

de Direito de Família – IBDFAM e de Relações Internacionais do IBDFAM-PB. Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões e da Comissão de Direito,

Arte e Cultura – OAB-PB. Professora Universitária. Advogada.

Resumo: Partindo do tratamento histórico, legal e doutrinário acerca da proteção da vida como direito inerente a existência humana, evidencia-se que a violação a este preceito propugna responsabilização pela ocasião do dano morte como resultado de um ato ilícito. Ainda como sucedaneo desta premissa aplicada no Direito português, uma vez que desaparece o sujeito de direito pelo fim de sua vida, questões acerca de identificar a forma como o destinatário da indenização pelo dano sofrido pelo de cujus legitima-se a recebê-la, ainda sob abordagem lusa, é posta em destaque nesta discussão. Isto posto, o texto busca examinar, quando do reconhecimento do ressarcimento do dano morte no direito comparado, sua aplicabilidade no Brasil, por todas as nuances que o envolve, entre elas, o direito a vida.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil; Direito a vida; Dano da morte.

Sumário: Introdução – 1 Epistemologia do dano morte: o direito a vida como fundamento para sua indeni-zabilidade – 2 Natureza e titulares do direito a indenização pela perda da vida: uma análise do Direito por-tuguês – 3 A indenizabilidade do dano morte no Brasil – um contributo do Direito português – 4 Conclusão

Abstract: From the historical, legal and doctrinal treatment on the protection of life as a right inherent to human existence, it is clear that the violation of this provision advocates liability for the damage occasion death as a result of an unlawful act. Even as a substitute this premise applied in Portuguese law as it disappears the subject of law by the end of his life, questions about identifying how recipient of compensation for the damage suffered by the deceased legitimate to receive it, even under Portuguese approach, it is emphasized in this discussion. That said, the text aims to examine when the recognition of the death damage compensation in comparative law, its applicability in Brazil, by all the nuances that surrounds it, including the right to life.

Keywords: Civil liability; Informed consent; Loss of life.

Summary: Introduction – 1 Epistemology of loss of life; informed consent as the basis for your indenimnity – 2 Nature and holders of the right to compensation of loss of life – 3 The indenimnity of loss of life in Brazil – A contribution of portuguese law – 4 Conclusion

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CAMILLA DE ARAUJO CAVALCANTI

Introdução

A responsabilidade civil ocupa-se de funções que a torna hábil a sancionar, prevenir e reparar danos causados aqueles cujos bens juridicamente relevantes foram violados. Neste turno, sendo o direito a vida um bem supremo, reconhecido desde as primeiras cartas em defesa dos direitos do homem, é certo que um dano causado ao bem vida é alvo de sanção/reparação pela ofensa ocasionada/sofrida.1

Ancorados neste ponto de vista, consideramos a indenização do dano morte como longa manus da proteção do direito a vida, pois a mais profunda e mais gra-ve violação a este bem resulta no fim da existência humana, aplicáveis, portanto, os institutos aos quais a responsabilidade civil se destina.

Uma vez que as lesões corporais, leves ou graves, ensejam a reparação civil, estender os efeitos da reparação a mais grave lesão corporal, que põe termo a vida humana, pressupõe necessária autonomização do dano morte, já reconhecida no direito português. Por um estudo mais superficial no direito italiano, alemão, espanhol e inglês, discussões acerca das consequências que esta indenizabilidade transporta refletem na doutrina e jurisprudência ainda em Portugal no sentido de es-tabelecimento da titularidade e natureza do direito a indenização pela perda da vida.

Deve-se a questão em saber se no direito português (i) a indenização é dirigi-da, ab initio, ao de cujus e, posteriormente, aos seus herdeiros por via sucessória, ou se (ii) os titulares deste direito seriam seus herdeiros, desde o evento morte, adquirido por direito próprio, verificadas as implicações das regras de direito su-cessório no primeiro caso e, do direito obrigacional, apenas, no segundo ponto.

Há quem entenda que a titularidade da indenização pelo dano morte perten-ce ao de cujus, incluída a indenização ao seu patrimônio no momento morte e, como resposta ao segundo problema supra exposto, como o fim da vida põe termo a personalidade jurídica da pessoa, torna-se impossível a aquisição de direitos.

E não apenas isto. Seguindo esta titularidade de direitos para além da vida, também os reclamariam quem ainda não nasceu, polemizada, dessa maneira, não só o termo da vida, como seu início. Neste turno, teriam os nascituros concebidos o mesmo direito a indenização por dano morte, em decorrência da perda de seu pai?

Essas premissas mergulham-se, ainda mais profundamente, quando, diante da proximidade histórico, cultural e legislativa entre Portugal e Brasil, percebemos que não há qualquer referência do direito brasileiro a indenização ao de cujus pela perda da sua vida.

1 Cite-se a Magna Carta de 1215, ainda na Idade Média. No período Moderno, a Petition of Rights, em 1628; Habeas Corpus Act, em 1679; o Bill of Rights, em 1689 e o Act of Settlement, em 1701; além da Carta de Direitos da Virgínia, de 1776.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO DA MORTE: UMA ANÁLISE DO DIREITO PORTUGUÊS...

Os problemas postos trazem complexidades ainda incômodas aos tribunais portugueses e de outros países europeus como a Itália, Espanha, Alemanha, onde a indenizabilidade do dano morte possui critérios particulares de apreciação. Tais premissas, portanto, longe de serem exaustivas, pelo limite que ora nos é posto, buscam clarear a compreensão de um dano corriqueiro que traz problemas cotidia-nos e contínuos, o dano da morte.

1 Epistemologia do dano morte: o direito à vida como fundamento para sua indenizabilidade

A indenizabilidade dos danos a alguém causado decorre da violação de um bem juridicamente relevante.2 Para alcançar status de dano indenizável, fazendo-se reconhecer a morte como dano, a dinamica da vida e a evolução da sua tutela como o bem que se destina a maior proteção do Estado, elevou-a a categoria de prius dos Poderes Públicos frente a tutela jurídica da sua manutenção e inviolabilidade.

Tanto é verdade que mesmo antes das codificações escritas em defesa da vida humana, o jusnaturalismo já se ocupava em reconhecer a existência humana como um direito aos homens inerente. Mesmo não se excluindo as teorias jusna-turalista – ético-filosófica – e positivista do Direito, ambas convergem na proteção do que se considera essencial para a manutenção da vida humana.3

Mesmo em períodos que remontam a existência de povos organizados em sociedades incipientes, o mandamento ético primordial de regulação da vida fun-damentado no mandamento divino “não matarás” preconizava a proteção da vida como princípio norteador do comportamento cristão.4

A retomada do valor do homem, em apertada síntese, fora posta em causa quando do Renascimento cultural, já no século XVIII, atrelado aos ideais antropo-lógicos da valorização da existência humana enquanto digno de ser criatura de Deus. Neste rastro, o direito natural concebe a vida humana, e sua dignidade, como bem inato a sua existência, que deve ser preservada.

2 Pessoa Jorge ressalta que nem todos os danos são indenizáveis, mas aqueles que reúnam os requisitos de alienidade, certeza, mínimo de gravidade e causados por ato ilícito. JORGE, Fernando Pessoa. Ensaios sobre Responsabilidade Civil. Lisboa, 1968, p. 25.

3 Bobbio ressalta que o ressurgimento do Direito natural sirva também como ressurgimento da ideia de justiça, que transcende o direito positivo, pois que busca sempre adequar-se as novas necessidades e novos valores, posição esta não tomada pelo positivismo jurídico. BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural, 2 ed., Trad. Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, p. 25.

4 Exceção a prática do Tribunal da Santa Inquisição, cujo apogeu deu-se no período da Idade Média, compreendido entre os séculos V a XV depois de Cristo, desfez-se deste preceito uma vez que justificava a pena de morte aqueles que se contrapusessem a autoridade da Igreja.

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CAMILLA DE ARAUJO CAVALCANTI

Em Kant, surge de fato a ideia de valor da vida humana e sua dignidade é definida, em que pese a comparação entre as pessoas com as coisas. Neste contexto, Kant, na Fundamentação da metafísica dos costumes, elucida que as coisas têm preço avaliável no mercado, enquanto as pessoas têm dignidade.

A vida seria, portanto, um direito encontrado pelo homem, e não inventado por ele, pois bem assim se abona o reconhecimento do direito a vida nas citadas cartas em defesa dos homens5 e não a invenção desse direito, reproduzida essa defesa nas regras positivadas um pouco mais tarde e que, no que respeita a vio-lação deste bem, fecunda-se a responsabilização ao agente lesante.

O direito a vida consolida-se na modernidade, contrario sensu, quando a vida de milhões de pessoas fora vulgarizada e relegada a status de inferiores a raça ariana, o que levou o Tribunal de Nuremberg, entre 1945 e o ano seguinte, a julgar autoridades proeminentes da Alemanha nazista em crimes de guerra e genocídio, mesmo por enforcamento (12 condenações), em paradoxal afronta ao direito a vida também dos detratores.6

Somado a decadência das ideologias dominadoras do século passado e do reconhecimento como valor a convivência em comunidades, posteriormente como princípio ético-religioso (não matarás), o direito a vida é reproduzido nas mais diversas Constituições de países democráticos e a pessoa como detentora de di-reitos, sendo essa tutela realizada por meio da defesa dos direitos fundamentais.

A experiência Constitucional, no que tange a tutela da vida, reproduz a im-portancia da guarda da pessoa. No caso português, a Constituição da República portuguesa prioriza, no Título II, no qual esboçam-se os Direitos, Liberdades e Garantias, o direito a Vida, vinculado a proibição de penas de morte,7 tal como ocorre no Brasil, com a ressalva de que, neste último, a pena de morte pode ser imputada, excepcionalmente, para o caso de guerra declarada, com autorização do Presidente da República.8

5 Cfr. nota 1.6 Cfr. Judgment at Nuremberg - Fifty years ago the trial of Nazi war criminals ended: the world had witnessed the

rule of law invoked to punish unspeakable atrocities. Disponível: <http://w3.salemstate.edu/~cmauriello/pdf_his102/nuremberg.pdf>. Acesso: 3.4.2016; FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios, Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

7 Artigo 24º da Constituição da República portuguesa- Direito a vida. 1- “A vida humana é inviolável; 2- Em caso algum haverá pena de morte.”

8 Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil- “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, nos termos seguintes: (...) XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; (...)”.

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A Constituição espanhola reproduz a regra da Carta Magna brasileira,9 refe-rindo-se ao direito a vida no artigo 15 da Seção I, relativa aos direitos fundamen-tais e das liberdades públicas, enquanto o diploma constitucional italiano não se refere ao termo “vida”, mas tutela, no artigo 2º, princípios fundamentais, nos quais são garantidos os direitos invioláveis do homem, como o desenvolvimento da sua personalidade, somando-se a este dispositivo, a proibição da pena de morte, traduzida na preservação da vida, de acordo com o exposto no artigo 27.

A Lei Fundamental alemã, destinando-se a guarda dos direitos fundamentais, evidencia a proteção da vida como defesa de um direito inerente a liberdade (nº 2, artigo 2).10 Também atenta ao desiderato do direito a vida, embora não traga referência explícita, a Lei constitucional francesa refere, ainda no preambulo, a defesa dos princípios assegurados pela declaração de 1789, reafirmando seu compromisso na defesa dos direitos humanos.

Identificada a consagração e inequívoco respeito a vida, as referidas cartas constitucionais mencionadas, a título exemplificativo, unanimemente resguardam a existência humana como valor ético indissociável do Estado Democrático de Direito.

E, consistindo na permanência desta proteção, as normas infraconstitucio-nais, mormente os sistemas de regulação dos direitos de personalidade, como o Código Civil, não excluindo a dogmática jurídica, submergem ainda mais profunda-mente nas nuances relativas a proteção do bem vida, sobretudo quando cientes de que essas normas se prestam a tutela da pessoa. Tanto assim se constata que são resguardadas as possíveis relações que entre particulares possam ser instituídas, a respeito dos contratos, das obrigações em geral, sem deixar de-sapercebida a responsabilidade que deve ser tomada a cabo quando da ofen-sa de direitos alheios, o exercício da propriedade, as relações familiares, enfim. Todavia, todos esses fatos, regulados na vida em sociedade, multifacetada que é, realizam-se entre dois momentos: inicia-se com a tutela da vida das pessoas e termina com seu fim, a morte.

Direito inato e intransmissível, a vida, que está a paredes meias com o direito de personalidade, é intransponível e personalíssimo, confluindo para sua inviolabilidade, que se origina ainda na concepção do nascituro e se prolonga

9 Artículo 15 – “Todos tienen derecho a la vida y a la integridad física y moral, sin que, en ningún caso, puedan ser sometidos a tortura ni a penas o tratos inhumanos o degradantes. Queda abolida la pena de muerte, salvo lo que puedan disponer las leyes penales militares para tiempos de guerra.” Disponível: <http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/constitucion.t1.html#a15>. Acesso: 4.4.16.

10 “Artikel 2 [...] (2) Jeder hat das Recht auf Leben und körperliche Unversehrtheit [...]”, vale dizer, “artigo 2 [...] (2) Todos têm o direito a vida e a integridade física.[...].” Disponível: <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso: 4.4.2016.

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para além do seu termo, como similarmente ocorre quando da ofensa a honra de pessoas já falecidas.11

Reproduzimos e abonamos o descrito por Diogo Leite de Campos,12 quando se dirige ao ser humano definindo-o como uma “vida, auto-organização, que se exprime e se prolonga em múltiplas funções, de caráter físico e espiritual. Este ser humano, entendido como conjunto, é protegido contra a ingerência de terceiros por um direito geral de personalidade [...]”. Do seu valor como pessoa, em Carlos Alberto da Mota Pinto, emergem direitos absolutos que impõem o respeito de todos (direitos de personalidade), prestando-se o Direito Civil a proteção de vários modos de ser físicos ou morais da personalidade, daí que qualquer violação dos aspectos da personalidade desencadeie punição, para os casos de ilícitos crimi-nais, ou responsabilidade civil do infrator, quando em causa ilícitos de natureza civil.13

Neste sentido que se torna verossímil pensar que nasce, na esfera jurídica do ofendido, o direito a ser indenizado quando sua vida é violada, seja na forma da lesão corporal, ofensa a honra ou ao bom nome, integridade biopsíquica, ou quando ofendida em sua plenitude, levando o sujeito a morte.

A agressão a vida constitui um ato ilícito, pela proteção que lhe é própria, incitando a responsabilização do lesante em caso também de morte do lesado. Controvérsias se formulam em questões circunscritas ao chamado “Direito a mor-te”, e neste novo direito, diametralmente oposto ao Direito a vida, viabilizaria seu fim em casos particulares como a problemática do aborto, permitido nos casos específicos previstos na lei, quando ameace a vida da parturiente, ou em casos de encefalopatia, como ocorre em Portugal e no Brasil.

Sendo a dignidade humana substrato ético que regula a vida, a cessação do ciclo vital, embora natural, jamais pode ser abreviado por terceiros e, mesmo

11 Carneiro da Frada sustenta que o próprio artigo 70, nº 1 do Código Civil português, quando proclama que “a lei protege todos os indivíduos contra qualquer ofensa a sua personalidade física ou moral”, possibi-lita a jurisprudência portuguesa a ampliar o rol de direitos da pessoa que podem e devem ser tutelados, adequando-se as novas demandas. Entendemos, para o caso do dano morte, possível e necessária observancia de ofensa ao direito a vida como direito de personalidade, por ofensa a integridade física da pessoa de tal forma que abarca o fim da vida. Cfr. FRADA, Manuel A. Carneiro da. Nos 40 anos do Código Civil Português Tutela da Personalidade e dano Existencial. In: Themis Revista de Direito, Edição Especial. Ano: 2008, p. 47-68. Pedro Pais de Vasconcelos assume importante posição quando afirma ser o direito a vida o mais importante dos direitos de personalidade, todavia reconhece dificuldades que podem ser impostas quando discutidas questões periféricas como o aborto. VASCONCELOS, Pedro Pais. Direito de personalidade, Coimbra: Almedina, 2014, p.68-70. Álvaro Dias no direito do ser humano de não ser mor-to. DIAS, João António Álvaro. Dano corporal quadro epistemológico e aspectos ressarcitórios. Coimbra: Almedina, 2004, p. 105.

12 CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de Direito da Personalidade, 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 49.13 Cf. MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. 2ª Reimp. Coimbra: Coimbra Editora,

2012, p. 100-101.

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com estas nuances limitadoras ao pleno reconhecimento do direito a vida, não sobram resistências outras que impossibilitem/limitem a indenizabilidade o dano morte quando provocado por ato ilícito, imputável ao lesante, além de se fazerem presentes os demais pressupostos da responsabilidade civil – culpa e nexo de causalidade.14

De outro turno, as funções as quais a responsabilidade civil se presta apre-sentam particularidades em que pese o dano morte. Sob o aspecto sancionató-rio, aufere-se o caráter pedagógico e reprovação da conduta verificada pelo dano causado. No que respeita a compensação do dano, o de cujus jamais poderá ser usufruí-la, por questões óbvias.15

Para o caso português, o direito a indenização por dano morte sofrera hesi-tação por parte da jurisprudência, pois, para o caso de fim da vida, já não haven-do que se falar em capacidade jurídica, como seria possível adquirir direitos?16 Em um curto intervalo de tempo após este entendimento, o posicionamento do Supremo Tribunal de Justiça português fora modificado e reconhecida a perda da vida como dano indenizável, muito embora com dúvida acerca da titularidade e natureza desta indenização.17

14 Na esteira do entendimento da indenizabilidade do dano morte, Diogo Leite de Campos resume: “o dano da morte é um dano de caráter não patrimonial para o próprio; ao facto que deu origem a morte podem ser imputáveis outros danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo falecido; sendo também imputá-veis a morte danos para terceiros, de caráter patrimonial e não patrimonial; todos estes danos devem ser indenizados.” CAMPOS, Diogo Leite de. Os danos causados pela morte e sua indenização. In: Comemora-ções dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol III, Das Obrigações. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.133-137. Carlos Pamplona Corte-Real reflete que “mais vale indenizar (o morto) do que nada fazer, pois se se admite a indenização por danos não patrimoniais, v.g ofensas corporais, por maioria de razão deveria ser juridicamente reconhecida a indenizabilidade do dano morte. De outro modo, cometer-se-ia uma injustiça no plano civil, visto não se poder negar a existência de um dano privado.” CAMPOS, Diogo Leite. Curso de Direito das Sucessões. Lisboa: Quid Juris, 2012, p. 48.

15 Oliveira Ascensão considera que a compensação “NUNCA poderia funcionar como equivalente ou com-pensação para o lesado; por natureza, ele nunca poderia desfrutar desse bem. ASCENSÃO, José Oliveira. Direito civil Sucessões, 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 50. Leite de Campos afirma que a compensação não visa e nem pode mitigar “o dano não patrimonial no «de cuius» com o proporcionar de outras satisfações alcançadas através do dinheiro, como é a regra geral dos casos da indemnização dos danos não patrimoniais.” CAMPOS, Diogo Leite de. Nós: estudo sobre o direito das pessoas, Coimbra: Almedina, 2004, p. 324.

16 Assim entendeu o Acórdão do S.T.J. de 12.2.1969.17 Uma das raras vozes da doutrina portuguesa que abona o entendimento da não indenizabilidade do dano

morte é Antunes Varela, quem afirma: “embora a obrigação de indemnizar assente sobre vários pressu-postos, entre os quais figura, em regra, a prática do fato ilícito, não pode esquecer-se que a indemnização é, essencialmente, reparação de um dano (de terceiro). Se e enquanto não houver dano, embora haja fato ilícito, não há obrigação de indemnizar. No caso especial da lesão ou agressão mortal, a morte é um dano que, pela própria natureza das coisas, não se verifica já na esfera jurídica do seu titular. «É inadmissível, como justamente observa o Conselheiro ARALA CHAVES num dos votos de vencido, reconhecer o nasci-mento do direito com o facto jurídico de que deriva, para o pretenso titular, incapacidade para o adquirir».” VARELA, Antunes. Das obrigações em geral, Vol. I, 10ª ed. Rev. e Atual. Coimbra: Almedina, 2014, p. 611. Também assim afirma ASCENSÃO, José Oliveira. Direito civil Sucessões, cit. Em sentido diverso, Meneses Cordeiro reconhece a morte como um dano indenizável, fundamentando seu posicionamento

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Outros ordenamentos juscivilísticos comportam-se em favor da reparação dos danos de forma ampla, assim como o faz a Alemanha, na norma contida no §823 do BGB, no qual quem, dolosa ou negligentemente, de forma antijurídica, cause dano a vida, ao corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito de outra pessoa, está obrigado a indenizar-lhe,18 todavia não consagra a indeniza-bilidade do dano morte. Na Itália, o artigo 2043 prevê que qualquer fato doloso ou culposo que ocasione a outrem um dano injusto, obriga aquele que o cometeu a ressarcir o dano causado, nos casos determinados pela lei (artigo 2059), sendo o dano morte considerado como espécie do dano biológico. É, aliás, neste país, que o dano morte encontra terreno fértil para consolidar-se como dano indenizável.19

O ordenamento civil espanhol não prevê o dano da perda da vida, mas regula, no artigo 1902 do código civil que “el que por acción u omisión causa daño a otro, interviniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado”, sendo devida a indenização aqueles que provem vínculo de afeto com de cujus.

Na França, a responsabilidade de reparar os danos causados também é feita de forma genérica, em virtude do que está contido no artigo 1382 do Code civil, no qual há obrigação de reparar o dano aquele que o cometeu, e no artigo subsequente, 1383, a extensão da reparação é considerada para quem provocou

afirmando que “a morte de uma pessoa constitui um dano, uma vez que a vida é um bem juridicamente tutelado através do direito a vida; trata-se de um dano com aspectos morais e patrimoniais; além disso, é um dano infligido ao morto e, reflexamente, a certos elementos que o rodeiam, nos aludidos aspectos morais e patrimoniais; finalmente, o ressarcimento de que beneficie a vítima transmite-se, pela morte, aos seus sucessores.” CORDEIRO, António Meneses. Tratado de Direito Civil português, Vol. II, Tomo III, Coimbra: Almedina, 2010, p. 518. Sustentando a indenizabilidade do dano morte, cf. Inocêncio Galvão Teles, Direito das Sucessões, 6ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996; CAMPOS, Diogo Leite de. Nós: estudo sobre o direito das pessoas, cit.; Mafalda Miranda Barbosa, (Im)pertinência da autonomização dos danos puramente morais? Considerações a propósito dos danos morais reflexos. In: Cadernos de direito privado. Jan-Mar 2014, nº 45, p. 3-18.

18 Tradução aproximada: §823 1. Quien, dolosa o negligentemente, de forma antijurídica dane la vida, el cuerpo, la salud, la liberdad, la propriedade u outro derecho de outra persona, está obligado a indemnizarle cuarquier daño causado por esto. In: ENCINAS, Emilio Eiranova. Codigo Civil Alemán comentado, Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A, 2001. Ainda pertinente ao direito alemão, mesmo preven-do indenização aos danos de choque nervoso, Adelaide Menezes Leitão refere que o OGH já se posicionou no sentido de recursar a indenização, “com base no caráter mediato do prejuízo” em ZVR 1958/144, “em que o pai de uma criança morta, por causa de uma depressão, deixou de ser capaz de continuar a traba-lhar como caminista, ou, em ZVR 1972/27, em que uma mulher veio a falecer pelo choque pela morte do marido.” LEITÃO, Adelaide Menezes. Normas de protecção e danos puramente patrimoniais, Coimbra: Almedina, 2009, p. 705 e nota nº1888. A referida autora cita Emmerich, para quem o dano-choque é ad-mitido, quando consequência da notícia de morte de familiar próximo que causem perturbações na saúde ou se ocorrer um grave acidente, excluído dessa hipótese apenas o indivíduo que apresente predisposição de perturbações neuróticas. LEITÃO, Adelaide Menezes. Normas de protecção e danos puramente patrimo-niais, cit.. p. 706, nota nº 1889.

19 “La privazione del bene-vita – si releva intal senso- costituisce un´alterazione irremediable dello stato di salute di um individuo, tale da cauargli un «danno biológico dela massima entità».” BARZAZI, Guido; BOSIO, Paola; DEMORI, Angelo; RONCALI, Davide. Il Danno Da Morte biologico e morale, Padova: Cedam, 2000, p. 25.

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o dano não por culpa sua, mas por negligência ou por imprudência. Não há tutela da perda do direito a vida, mas fala-se em préjudice d´affection, como espécie do dano reflexo.20

No Direito inglês, a regra é a de que o dano morte não é indenizável, todavia, esta regra fora relativizada e aceitável a reparação patrimonial aos ascendentes, descendentes, cônjuge e sogro que do de cujus dependessem, a exemplo da obrigação de alimentar e das despesas médicas.21

A lei e jurisprudência brasileiras reconhecem o dano morte como dano moral devido aos sobrevivos e as normas relativas a responsabilidade civil são impu-tadas aqueles que cometem ato ilícito e causem danos patrimoniais ou morais, regra escrita nos artigos 186 e 187 do Código Civil, além do artigo 948 do mesmo diploma legal, que obriga ao ressarcimento patrimonial aqueles somados pelos gastos com funeral e despesas médicas, além das prestações alimentícias devi-das pela pessoa que teve sua vida abreviada por conduta ilícita.

O direito a indenização pela perda da vida, por ofensa biológica máxima, há de ser imputado em favor daquele que sofrera lesão ao bem juridicamente protegido, pela confiança depositada pelas pessoas ao Estado de garantia, cuja prestação jurisdicional deve ser reconhecida e preservada sob pena de flagrante niilismo. A indenização se legitima, portanto, não como uma prestação do Estado, mas uma garantia da manutenção da vida das pessoas, pois que esta guarda é oposta ao próprio titular quando, se proíbe a prática da assistência ao suicídio, disposição do próprio corpo, v.g. Há, nas palavras de Leite de Campos, exigência de comportamento negativo dos outros, em respeito ao bem vida.22

Esta indenizabilidade baseia-se, neste sentido, levadas em consideração as funções do instituto da responsabilidade civil, em sanção pelo ilícito de ofensa físicopsíquica máxima cometida a um bem constitucionalmente reconhecido e protegido e não lhe indenizar significa afronta, a contrario sensu, a sua proteção. Cremos, com isto, em equívoco quanto ao não reconhecimento da proteção da

20 “Archétype du préjudice réfléchi, puisqu´il affecte par répercussion des personnes autres que la victime directe” BRUN, Philippe. Responsabilité Civile Extracontractuelle, 2ª édition. Paris: Lexis Nexis, 2009, p. 141.

21 In: Leite de Campos. Nós: estudo sobre o direito das pessoas, cit., p. 340-341, nota 39. Cfr. Christian von Bar para quem: “To say that the victim of a fatal accident does not suffer damage would be a cynical, but even if one accepts that such a victim suffers damage, most European laws draw no consequences from that. The only exception is Portugal, whose courts have decided that loss of life constitutes damage and is therefore compensatable as a separate item.” E, continua o autor: “As the legal capacity of a person ends on his death, he cannot thereafter claim on his own behalf.” Acrescenta que: “In Germany law, the relatives of the deceased are therefore only entitled to na injunction, not to financial compansation.” VON BAR, Christian. The Common European Lawof Torts. Volume two. New York: Oxford University Press, 2000, p. 62, e nota nº 307.

22 Cf. CAMPOS, Diogo Leite de. Nós: estudo sobre o direito das pessoas, cit., p. 366-367.

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vida no sentido da sanção direcionada ao agente lesante que deu causa ao deces-so de alguém, servindo o direito português, por analogia, a aceitabilidade deste dano no Brasil.

2 Natureza e titulares do direito à indenização pela perda da vida: uma análise do Direito português

Consagra-se em Portugal a indenizabilidade do dano morte em respeito a vida, cuja violação enseja a reparação. No que se refere ao caráter da titularidade e a natureza da indenização, o entendimento dado a lei pela doutrina portuguesa diverge amplamente quanto a forma pela qual as pessoas legitimam-se a receber esse direito.

Ab initio, consideram-se, no direito luso, os seguintes danos indenizáveis no que diz respeito ao fim da vida: danos patrimoniais, os não patrimoniais e o dano da morte, como dano autônomo, em si considerada, pela perda da vida e fim da personalidade, além dos danos sofridos pelo de cujus sentidos entre o fato lesivo e a morte (danos a integridade físicopsíquica) e os danos morais próprios dos familiares sobrevivos e amigos próximos.

Referindo-nos a situação da(s) lesão(ões) sofrida(s) pelo de cujus e o sofri-mento do qual padeceu até o seu decesso, em caso do evento morte não ser ins-tantaneo, parte da jurisprudência portuguesa dedica compensação autônoma aos danos biológicos pelos quais a pessoa sofre dores físicas e psíquicas, também considerada a consciência e aflição de que pode vir a falecer daqueles danos que suportara. A atribuição de indenização dada a violação da saúde é levada a cabo uma vez consistente na diminuição das capacidades psicofísicas da pessoa que é acometida por um fato que gera o dever de responsabilidade.23 Considerados os

23 Acerca da indenizabilidade do dano biológico como dano autônomo, como ocorre em Itália, assim referi-do quando do julgamento pelo Tribunal de Gênova, em 1974, que considerara o dano morte espécie de dano biológico, ou dano biológico máximo, a jurisprudência portuguesa diverge quanto sua autonomia indenizatória, embora a doutrina o reconheça como passível de indenização, visto tratar-se de ofensa a integridade psicofísica da pessoa. O contorno do estipulado pelos artigos 496º e 71º, nº 1 do Código civil, de conformidade com a proteção constitucional expressa no artigo 24º nº1, da Carta da República portu-guesa, para o qual é inviolável a integridade moral e física das pessoas, sugere não só a possibilidade, mas dever de compensação por danos a integridade psicofísica da pessoa, afetada em sua dignidade. Isto posto, o trabalho da jurisprudência portuguesa, com apoio da doutrina de DINIS, Joaquim José de Sousa, A avaliação e reparação do dano não patrimonial (no domínio do Direito Civil), In: Revista Portuguesa de Dano Corporal, ano XVIII, nº 19, nov. 2009; Armando Braga, A reparação do dano corporal na responsa-bilidade civil Extracontratual, Coimbra: Almedina, 2005; TRIGO, Maria da Graça, Adopção do conceito de ‘dano biológico’ pelo direito português. In: Revista da ordem dos advogados, ano LXXII, Jan-Mar 2012, p. 147; QUEIROZ, Luísa Monteiro de. Do Dano Biológico, in: Revista da Ordem dos Advogados, ano LXXV, Jan-Jun 2015, p. 183-, mesmo diante de entendimentos paradoxais, tem atribuído indenizações para além

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danos físicos, a avaliação das lesões é auferida pelas perícias médico-legais cujos pressupostos consideram a sua adequação com o tipo de lesão e sua etiologia, “entre o traumatismo e o tipo de lesão (...), continuidade sintomatológica entre o traumatismo, a lesão e as sequelas”, excluídas as pré-existências de danos ou causa estranha ao trauma sofrido.24

Levam-se também em comento questões relativas a natureza do dano a ser indenizado. Ocupa-se a indenização pelo dano morte em abarcar tanto o que diz respeito as perdas patrimoniais quanto extrapatrimoniais do de cujus e de tercei-ros. Aos primeiros, dúvidas não restam de que há transmissão mortis causa do patrimônio do falecido que se perde com o evento morte. O artigo 465º do Código civil português elucida esta garantia aqueles que dispenderam valores com des-pesas médicas, funeral, além da indenização dirigida aqueles que podiam exigir alimentos do falecido. Também o artigo 2024º do mesmo diploma legal português expressa que as relações jurídicas patrimoniais do morto pertençam aos seus herdeiros.

Quanto a ressarcibilidade dos danos extrapatrimoniais, eram postos em cau-sa valores ético-morais. Pessoa Jorge levanta argumentos no sentido de ser imo-ral a prestação pecuniária de bens de personalidade, pois seria repugnante “ao pai exigir dinheiro pela morte do filho”; os danos morais seriam insusceptíveis de avaliação pecuniária, e de difícil identificação a pessoa para quem a indenização seria dirigida no caso do dano morte, v.g.; além de que a reparação por danos morais constituiria uma pena privada, já que a “pretensa reparação dos danos morais nunca poderia integrar-se na função da responsabilidade civil”.25

Continua o mesmo autor contra argumentando que mais imoral seria nem compensar o lesado pelos danos que sofrera, tratando-se de uma compensatio do-loris.26 É neste sentido que se desenvolve a doutrina portuguesa,27 consignando a

do dano morte e dos danos morais dos sobrevivos, para também os danos físicos e psíquicos causados ao de cujus e que culminaram com o fim de sua vida. Neste sentido, vide Acórdão da Relação do Porto, de 7 de abril de 1997, no qual o dano biológico fora concedido em Portugal de forma incisiva, pela primeira vez. Mais recentemente e atribuídos conforme a temática em exame, mesmo decorrendo posterior dano morte, cfr. Acórdãos do STJ de 28 de novembro de 2013 e de 29 de outubro do mesmo ano, disponíveis em: dgsi.pt.

24 Conforme LUCAS, Francisco Manuel. Uma outra visão... Coimbra, 2013, p. 101.25 JORGE, Fernando Pessoa. Ensaios sobre Responsabilidade Civil. Lisboa, 1968, p. 25. cit., p. 374.26 Reforça a tese de que não há imoralidade na compensação por danos morais Meneses Cordeiro, em texto

cuja transcrição elucida: “A questão da imoralidade por percepção de dinheiro, a troco de valores morais pretendidos, tem sido afastada mercê do dinamismo crescente do Direito das obrigações, como disciplina predominantemente patrimonial; os princípios patrimoniais tendem a penetrar em todos os meandros do Direito, até as últimas consequências. Daí que, por abstração, o dinheiro nunca seja imoral; imorais pode-rão ser certas práticas com ele realizadas, mas isso só releva do foro do beneficiário da indemnização.” CORDEIRO, António Meneses. Tratado de Direito Civil português, cit., p. 515.

27 Neste sentido acordam VARELA, Antunes. Das obrigações em geral, cit., p. 604; Pessoa Jorge. Ensaios sobre Responsabilidade Civil, cit., p. 375-376; ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12ª ed. Coimbra:

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indenização dos danos extrapatrimoniais, a despeito do que regula o artigo 496º, nº 128 do diploma civil.

E é por força do nº 2 do mesmo artigo retro, que o dano morte é auferível e a titularidade do dano é dispensada, em conjunto, “ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem ou aos companheiros que vivia em união de facto com o de cujus e aos filhos ou outros descendentes” (nº 3).

O dispositivo em apreço suscita dúvidas acerca da sua interpretação, tanto pela doutrina como na jurisprudência portuguesa. Uma vez que há obrigação de re-parar/compensar um dano, ao titular do direito violado é que se dirige o quantum indenizatório, circunstancia impossível de ser verificada para o caso do dano mor-te. A divergência reside no momento de estabelecer a quem o dano morte deve ser compensado, se o direito a indenização pertence ao de cujus e transmite-se, via sucessória, aos legitimados no nº 2 do artigo 496º, ou se o direito já nasce na esfera dos herdeiros, tendo em vista o fim da capacidade jurídica do falecido, consequentemente, impedido que está a aquisição de direitos por ele.29

A primeira posição é a que nos parece mais conveniente em termos de de-fesa dos direitos de personalidade. Havendo violação de um bem juridicamente tutelado, somente ao titular deste direito cabe constituí-lo. É bem verdade que o fato morte encerra as relações jurídicas do de cujus, mas não o impede, por con-seguinte, de adquirir direitos. A regra contida no artigo 71º, nº 1 do diploma cível português ratifica nosso juízo de admissibilidade de aquisição de direitos para

Almedina, 2011, p. 599; CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra: Coimbra editora, 2011, p. 463 e ss; Lições de Direito das Sucessões 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 292 e ss; GALVÃO TELLES, Direito das obrigações, 7ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p.378 e ss; ABRANTES GERALDES, Temas de Responsabilidade civil indenização de danos reflexos. V.II, Coimbra: Almedina, 2007, p.22 e ss; BARZAZI, Guido; BOSIO, Paola; DEMORI, Angelo; RONCALI, Davide. Il Danno Da Morte biologico e morale. Padova: Cedam, 2000, p.23 e ss. VELOSO, Maria Manuel. Danos Não Patrimoniais. In: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Direito das Obrigações. V. III, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 501 e ss. Carlos Alberto da Mota Pinto fala em compensar o dano extrapatrimonial “mediante satisfações derivadas da utilização em dinheiro.” Não se trataria, continua o autor, em conceder ao lesado um «preço da dor» ou «preço do sangue», mas satisfazer-lhe conquanto o dinheiro propicia uma “ampla gama de interesses.” MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 129-130.

28 Artigo 496º (Danos não patrimoniais)- nº 1. “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”

29 Traz-nos Antunes Varela, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de março de 1973, que a indenização fora considerada inserida no patrimônio da vítima e, com a morte desta, se mantém e se transmite. Em outra oportunidade, entendeu o mesmo Tribunal, no Acórdão de 13 de novembro de 1974, se tratar de que a reparação do dano da morte se transmite não aos herdeiros em geral, mas as pessoas indicadas no nº2 do artigo 496º, um dano autónomo, adquirido por direito próprio. VARELA, Antunes. Das obrigações em geral, cit., p. 614.

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depois da morte, no caso de violação de um direito de personalidade, derivada de um dano injusto, sendo transmissível de iuri sucessionis.30 A aquisição do direito dá-se, portanto, mesmo no momento morte, traduzido no último momento da vida,31 legitimando a obtenção da indenização do injusto cometido contra o falecido, cujos danos o levaram a morte.

Aos que perfilham a ideia de que os legitimados do nº 2 do artigo 496º são indenizados por direito próprio, o fazem, de início, por considerar inadmissível a indenização autônoma do dano pela perda da vida, pois só sofreriam danos as pessoas capazes de os sentir, impossível para o caso de morte do titular do di-reito. Soma-se a isto o fato de que a lei teria abarcado expressamente a vontade do legislador, determinada categoricamente, em compensar os danos decorrentes da morte, o que, não auferível expressamente, conduz-se a uma não aceitação a esse tipo de compensação. Sendo a morte fator extintivo de todas as situações jurídicas da pessoa, não poderia funcionar ao mesmo tempo como fato aquisitivo de direitos, nas lições extraídas em Oliveira Ascensão.32

Contenda doutrinária posta, longe de se chegar ao consenso do que de fato a exegese da norma do artigo 496º propõe, a lei portuguesa ainda prevê como legi-timados a indenização aqueles cuja morte causou-lhes danos, por direito próprio. Os familiares, elencados no nº 2 do artigo 496º, ou outras pessoas que compro-vem ter sofrido danos com o falecimento de alguém, legitimam-se nas demandas compensatórias pelo sofrimento comedido. Fala-se, em Portugal, na imputação de

30 Neste sentido, CORDEIRO, António Meneses. Tratado de Direito Civil português, cit., p. 523; BARBOSA, Mafalda Miranda. (Im)pertinência da autonomização dos danos puramente morais? Considerações a propósito dos danos morais reflexos. In: Cadernos de direito privado, cit., p. 13; CAMPOS, Diogo Leite de. Os danos causados pela morte e sua indenização. In: Comemoração dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977. VIII, Direito das Obrigações, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p.143; CAMPOS, Diogo Leite de, A vida, a morte e sua indemnização. In: Boletim do Ministério da Justiça. inº 365, 1987, p. 5-20; CAMPOS, Diogo Leite de, Nós: estudo sobre o direito das pessoas, cit., p. 325, no qual ainda o autor faz referência a doutrina e jurisprudência francesa considera os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo lesado e a transmissão de iuri sucessionis. Na Suíça, equiparável ao Direito francês, deste diferencia-se no rol dos titulares do direito a indenização, que é taxativo, enquanto em França o dano não patrimonial dos terceiros para aqueles mais ligados a vítima. p. 336, nota 33.

31 Oliveira Ascensão considera inconveniente aceitar que a morte é o último momento da vida, pois, nas palavras do autor, “ou se está vivo ou morto, e com a superveniência da morte já não se adquire mais nada em vida.” ASCENSÃO, José Oliveira. Direito Civil Sucessões, 5ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 248.

32 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil Sucessões, cit., p. 243 e ss. De igual forma, LIMA, Fernando Andrade Pires de Lima; VARELA, Antunes, Código civil anotado, Vol I, 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora: 1982, p.473-474; VARELA, Antunes, Das obrigações em geral, cit., p. 615. Também Capelo de Sousa faz uma análise em sentido histórico da norma do artigo 496º, nº 2 do Código Civil, entendendo que a indenização é devida aos parentes ali discriminados, por direito próprio. SOUSA, Rabindranath Capelo de, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 303; DIAS, Pedro Branquinho Ferreira, O dano moral na doutrina e na jurisprudência. Coimbra: Almedina, 2001, p. 45; LUCENA, Delfim Maya de. Danos não patrimoniais: o dano da morte. Coimbra: Almedina, 2006.

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dano de ordem moral, autonomamente indenizável aqueles que comprovem, além do vínculo afetivo com o de cujus, a ocorrência do dano.33

É que a parte final do nº 4 do artigo 496º prevê que podem ser atendidos os danos não patrimoniais sofridos não somente pela vítima, “como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”, sem se falar em outras pessoas que não os familiares, a quem presumem-se maior vínculo afetivo com o de cujus, que possam ter sofridos danos. Isto posto, e comprovada a experiência jurisprudencial para o caso, denota-se que a respon-sabilidade civil abrange a compensação aqueles que sofreram danos decorrentes de um ato ilícito lesivo, passível, portanto, de reparação.

Em França, denominados de préjudice par ricoche é reconhecido como dano autônomo, assim como também sucede na Alemanha, onde o dano de choque possa ter abalado a integridade biopsíquica de quem presenciou o evento mortal, devendo ser efetivamente configurado e comprovado; o Direito italiano reproduz a regra, compensando os parentes próximos ou outras pessoas vinculadas ao falecido que comprovem efetivo dano biológico ou dano existencial sofrido com evento morte,34 regra repetida também na Espanha, desde que demonstrados os vínculos de afeto.

Nos Estados Unidos, o dano morte (loss of life) não é indenizável, sendo pos-sível ressarcir reflexamente aqueles que sofreram com a perda de alguém (hedonic loss).35 Em sentido oposto, pela não ressarcibilidade da reparação por danos morais sofridos com a morte de alguém, comportam-se as normas da Áustria e Holanda.36

2.1 A transmissão da compensação do dano da perda da vida de iuri sucessionis e seus efeitos

Colocadas as questões envoltas ao dano morte, alguns efeitos são relacio-nados se considerada a transmissão por via hereditária da compensação da lesão referida,37 quando pertinente então a aplicação das regras de direito sucessório.

33 Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de novembro de 1995 concedeu indenização ao amigo do falecido por danos morais a ele causados, uma vez que o abalo psicológico surgira por ter presenciado o evento lesivo.

34 Fala-se em danni riflessi, traduzido pela jurisprudência italiana como: “La morte dell unica figlia può comportare per i genitori uma alterazione dell´equilibrio mentale, sai purê come difficoltà di partecipare alle attività quotidiane e demotivazione nella vita futura. Essa, infatti, incide sulla personalità dei genitori e la personalità altro non uma espressione dela psiche dell´indiviuo.” Tribunale di Milano, sentenza de 2 settembre 1993, in: BARZAZI, Guido; BOSIO, Paola; DEMORI, Angelo; RONCALI, Davide, Il Danno Da Morte biologico e morale, cit., p. 45-46.

35 Cf., VELOSO, Maria Manuel. Danos Não Patrimoniais, cit., p. 525.36 BRAGA, Armando. A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual. Coimbra:

Almedina, 2005, p. 314.37 Reforça a tese de que não há imoralidade na compensação por danos morais Meneses Cordeiro, em

texto cuja transcrição elucida: “A questão da imoralidade por percepção de dinheiro, a troco de valores

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Seguindo o que prevê a lei portuguesa, convocadas as normas dispostas no artigo 2024º e seguintes do seu código civil, os dispositivos trazem particularida-des que afetam diretamente a recepção da compensação do dano morte em que pesem os encargos da herança, a exclusão de herdeiros indignos ou deserdados e a (inexistente) situação dos companheiros sobrevivos que, por sua peculiaridade, será tratada em tópico próprio.

Com o fato jurídico morte, cessam as relações jurídicas patrimoniais do de cujus que serão transmitidas aos seus herdeiros (art. 2024º do Código Civil), que respondem pelos encargos da herança até o monte por eles recebido a título sucessório, considerados estes encargos as despesas com o funeral, testamen-taria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados, de acordo com o disposto no artigo 2068º do diploma cível.

Isto posto, a recepção da compensação do dano morte por via sucessória aos legitimários entra na soma dos ativos do falecido e responde por suas dívidas, além de fazer parte do cálculo da legítima e posterior partilha.

A contrario sensu, considerada a compensação do dano morte como de direi-to dos legitimados do nº 2 do artigo 496º, o crédito é constituído mesmo em suas esferas de direito, sem relação com o direito sucessório, mas inserto no direito obrigacional, não havendo que se falar, neste caso, em encargos da herança.

Outra consequência, uma vez colacionadas as normas sucessórias para a titularidade da compensação dos danos pela perda da vida da pessoa, há de ser levada em consideração a existência de legitimários excluídos da sucessão,38 situação em que se encontram os indignos (artigo 2034º) e deserdados (artigo 2166º, por via testamentária, com “expressa declaração em causa”), incapazes

morais pretendidos, tem sido afastada mercê do dinamismo crescente do Direito das obrigações, como disciplina predominantemente patrimonial; os princípios patrimoniais tendem a penetrar em todos os meandros do Direito, até as últimas consequências. Daí que, por abstração, o dinheiro nunca seja imoral; imorais poderão ser certas práticas com ele realizadas, mas isso só releva do foro do beneficiário da indemnização.” CORDEIRO, António Meneses. Tratado de Direito Civil português, cit., p. 515.

38 Entende-se os excluídos da sucessão por indignidade segundo exposto no artigo 2034º: “a) O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado; b) O condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza; c) O que por meio de dolo ou coacção induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu; d) O que dolosamente subtraiu, ocultou, inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos. O termo incapacidade é relativizado, pois que haveria, sim, ilegitimidade para determinada sucessão, mas não há impedimento para o herdeiro recorrer a sucessão de outras pessoas, como retirado das lições de ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil Sucessões, cit., p. 140-141 e, de igual pensamento, CORTE-REAL, Carlos Pamplona. Curso de Direito das Sucessões, cit., p. 206. A deserdação equipara-se a indignidade, para todos os efeitos legais. (nº 2, art. 2166º).

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de adquirir sua quota parte na sucessão do falecido, o que não ocorreria, caso fossem indenizados por direito próprio, obedecidas as regras da responsabilidade civil, apenas, restando prejudicada a essência da norma que dirige a exclusão de herdeiro, por seus atos ofensivos contra o morto, dando-lhes plena legitimidade de adquirir algum valor compensatório pelos danos morais resultantes da morte que acometeu alguém.

Destas posições, logo resulta a conclusão de que a titularidade, por via here-ditária, da compensação pelo dano morte está aí encrustada, pois que o bem vida violado pertence ao de cujus, direito personalíssimo tutelado para além da vida, permitindo aos herdeiros legitimários que seja incorporada ao monte hereditário a ser partilhado, aplicando-se os dispositivos relativos a sucessão, com as suas particularidades.

2.2 Companheiros sobrevivos e o direito à indenização

A transmissão causa mortis do direito a compensação pela perda da vida no direito luso também pode trazer injustiças, no nosso sentir, quando do tratamento dirigido aos companheiros, mesmo longe de ser esta a função da ciência do Direito.

Atinente aos sobrevivos e o direito de serem compensados pelos danos que a morte de alguém lhes causa, não é pacífica a aceitação dos companheiros como titulares do direito iuri sucessionis. A celeuma reside, para quem entende ser o dano da morte transmissível mortis causa e como herdeiros do de cujus os familiares, os mesmos titulares da sucessão legítima do artigo 2157º (“São herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes, os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima”), em se excluir deste rol, o companheiro sobrevivo.

Somente com a regra do imposto pelo nº 3 do artigo 496º é que a normativa da responsabilidade civil dirigiria algum “direito sucessório” ao companheiro so-brevivo, no entanto, resta consagrado que o direito a indenização pelo dano morte dará apenas por direito próprio, quando lhe causado dano moral.

Tentativa de considerar inconstitucional a regra do nº 2 do artigo 496, com intenção de abarcarem-se as relações de fato no preceito, já fora argumentada no Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu não haver ofensa ao princípio da igualda-de da união de fato ao casamento, já que se tratam de institutos distintos, sendo que cabe ao legislador criar mecanismos específicos de tutela as uniões de facto.39

39 Acórdão de 7 de dezembro de 2000. In: VELOSO, Maria Manuel. Danos Não Patrimoniais. In: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Direito das Obrigações, cit., p. 530. Na

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Cremos que ao companheiro, por constituir união equiparável ao casamento, digna de mesma tutela protetiva dos direitos de personalidade, seria a ele ex-tensível os mesmos direitos concedidos ao cônjuge, no que se refere as normas abarcadas pela sucessão. Todavia, o problema reside mesmo nessas normas, si-lentes no que diz respeito aos direitos dos companheiros, o que, no nosso enten-der, traduz-se em inconstitucionalidade por omissão legislativa em não conceder direitos aqueles que, construindo relação familiar, possui tratamento diferenciado sem critérios legais, fator que ofende a dignidade das pessoas que compõe esta espécie de núcleo doméstico.

Coloca-se a problemática, em Portugal, em razão de (i) ser reconhecida a união de facto como entidade familiar; (ii) serem atribuídos direitos sucessórios ao companheiro sobrevivo para só então ser considerada legítima a aquisição, por via sucessória, da indenização do dano morte atribuída ao companheiro falecido. A questão suscita discussões as quais ainda há relutancia na aceitação das uniões de fato como entidades familiares, o que não legitima a percepção de um direito que julgamos ser-lhes legítimo.

As medidas de proteção das “Uniões de Facto”, Lei nº 7/2001, de 11 de maio, adotam como garantias (e não direitos sucessórios propriamente ditos) a permanên-cia do companheiro sobrevivo na casa de morada da família, pelo prazo de cinco anos, como “titular de direito real de habitação” (nº 1, art. 5º), além do benefício da proteção social de prestações por morte do beneficiário de segurança social.

A lei concede direitos para a manutenção da situação de vida dos unidos de fato, mas está ainda a caminhar em passos largos a atribuição dos direitos su-cessórios, excluídos que estariam, portanto, da compensação de iuri sucessionis pela perda da vida do companheiro falecido, deferido o direito próprio a indeniza-ção pelos danos morais sofridos com o decesso.

O caso brasileiro difere do português no que diz respeito ao reconhecimento das uniões estáveis como entidades familiares, já que no Brasil são constitucio-nalmente previstas, e também, mais recentemente, assistiu-se, ainda no Brasil, a

opinião do catedrático de Lisboa, acerca do tratamento sucessório ao unido de facto, Carlos Pamplona Corte-Real e, tomando de empréstimo suas palavras: “Curiosamente, a parca e circunscrita proteção que lhe é conferida post-mortem, no tocante a casa de morada da família (direito real de habitação e de uso do respectivo recheio por um período de pelo menos idêntico ao da duração da união de facto [...]), ao direito a alimentos (art. 2020, nº1,do C. Civ) e as prestações por morte no ambito da segurança social (art. 6º), têm até gerado algum criticismo doutrinal, já que se insiste em olhar para a união de facto como uma situação – distinta é certo do mero concubinato- que não deveria gerar qualquer tipo de vínculos e, ou, efeitos inter-partes (...). Como se uma comunhão plena de vida de mesa, leito e habitação, não envolvesse, pela exigência legal de perdurabilidade de pelo menos dois anos para relevar, um mundo de inter-relação dos companheiros perfeitamente sobreponível ao conjugalmente vivido. CORTE-REAL. Carlos Pamplona. A não sujeição do cônjuge a colação no direito sucessório português. Outros considerandos críticos sobre a vocação sucessória do cônjuge e do companheiro. In: Temas controvertidos de direito das sucessões – o cônjuge e o companheiro, coords. CORTE-REAL, Carlos Pamplona; LEAL, Adisson; SANTOS, Victor Macedo. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 201-202.

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equiparação dos direitos sucessórios dos companheiros, ao dos cônjuges, restan-do decidido, pelo Supremo Tribunal Federal, pela inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil brasileiro.

2.3 A indenização do dano morte aos e dos nascituros

A norma legal civilista portuguesa do artigo 496º é clara ao legitimar que ao cônjuge, descendentes, ascendentes, irmãos ou sobrinhos que os representem, é devida indenização pelo dano não patrimonial que sofram em decorrência da morte da vítima. Da regra exposta, não se percebe direito ao nascituro por dano que eventualmente sofra pela perda de seu pai.

Bem assim ainda é regulamentado que a personalidade é adquirida com o nascimento com vida, estando relegados aos nascituros direitos que dependem do seu nascimento, sem deixar a lei de prover sua proteção intrauterina, já que o direito se ocupa em tutelar o direito a vida, em seu mais amplo aspecto.

Para o caso em tela, e fortes na compreensão de que os legitimados diretos e indiretos do destino da compensação pelos danos não patrimoniais pelo dano morte, parte da jurisprudência portuguesa o corrobora como um ser que sofreria danos futuros pela ausência de seu pai, uma vez que a figura paterna contribui, em muito, para o desenvolvimento psicossocial da criança.40

Nosso esboço conclusivo se dirige, portanto, em entender que é legítima a indenização por danos patrimoniais ao nascituro concebido uma vez que se con-sidera filho, nascidos ou não, para todos os efeitos legais de herdeiro, segundo exigido pela norma dos nos 2 e 3 do artigo 496º. Oportunamente se ressalta que esse mesmo dispositivo não exige o nascimento do filho para ser indenizado de forma extrapatrimonial pela perda do seu ascendente.

Ainda no envolvimento do nascituro quando da indenização por dano que cau-se a sua morte, em análise comparativa das indenizações destinadas aos pais por morte dos seus filhos, também aqui seriam aplicáveis os danos não patrimoniais sofridos pelos pais em decorrência de falecimento do nascituro concebido, filho para todos os efeitos legais, pela frustração do não nascimento e uma criança esperada. Atine-se, portanto, a consideração de que a mãe pode/deve ser desti-nada uma maior indenização em caso de lesão também a sua integridade física.

40 Cf. Acórdão do STJ de 3.4.2014 no qual fora concedida indenização ao nascituro por morte de seu pai. Disponível: <http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/28aff17cdabb90e880257cb00034dcc2?OpenDocument&Highlight=0,dano,da,morte.> Acesso: 30.5.2016. Recebe apoio a esta decisão doutrina de DIAS, João António Álvaro. No direito do ser humano de não ser morto. In: Dano corporal quadro epistemológico e aspectos ressarcitórios, cit., p. 350, nota 782; também de BRAGA, Armando, A reparação do dano corporal na responsabilidade extracontratual. Coimbra: Almedina, 2005, p. 187.

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3 A indenizabilidade do dano morte no Brasil: um contributo do Direito português

O direito construído pelas práticas sociais recebe influências através de inter-ferências dos valores morais, éticos, religiosos e também da experiência estran-geira. O legislador brasileiro, no que tange ao dano morte, limita-se em suportar apenas os danos patrimoniais (art. 948), muito embora haja na redação da norma espaço para “outras reparações”. Esquece-se o aplicador da lei da essência do ne-minem laedere, ampliado no sistema de juridicidade em maior proporção e impor-tancia do que na normatividade, tomando de empréstimo as palavras de Mafalda Barbosa.41 O apelo é da valorização do ser enquanto pessoa, por sua natureza ética, daí a premente necessidade de prestação compensatória (em outros mol-des, é verdade), afora a responsabilidade penal, ultima ratio do intermédio estatal, em preservação da dignidade do ser enquanto pessoa, função precípua do Direito.

A jurisprudência nacional nesse sentido não percebe o vazio de justiça quan-do da ignorancia dirigida a perda da vida decorrente de ato ilícito e culposo. Nega-se a sanção cível aquele que teve sua vida abreviada como se sua dignidade como pessoa encerrasse com a morte.

A normativa da parte final do disposto no artigo 948 do Código Civil brasileiro, analisada com o que prevê o artigo 5º da Lei de Introdução as normas do direito brasileiro, vale dizer, que, em caso de homicídio as indenizações serão devidas no montante das despesas com o funeral e alimentos devidos pelo morto e também em outras reparações, resta aberta a possibilidade para abarcar a compensação de cujus pelo evento danoso cujo resultado foi a morte, do contrário, qual o senti-do que teria a expressa proteção da vida, constitucionalmente consagrada?

Posto o direcionamento da lei e jurisprudência portuguesas e, de modo en passant, em normativas estrangeiras, atinente a este tema antes visto, não en-contramos embargos outros a necessidade/possibilidade da prestação compen-satória pelo fato morte no Brasil, mesmo porque o reconhecimento da vida como valor humano abarcado pelas constituições anteriormente referidas defere o reco-nhecimento da indenização pelo dano morte, como o estudo propõe.

Mesmo percebidas as repercussões que a compensação pelo dano morte devida ao morto abarca no direito português, é imperioso que a dignidade do mor-to seja mantida para depois do seu decesso, tudo isto em defesa do que propõe o mandamento ético de respeito a vida como fundamento para a indenizabilidade do dano morte.

41 BARBOSA, Mafalda Miranda. Liberdade vc. Responsabilidade – a precaução como fundamento da imputa-ção delitual? Coimbra: Almedina, 2006, p. 181.

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CAMILLA DE ARAUJO CAVALCANTI

4 Conclusão

A compensação pelo dano morte está a passos largos de atingir a função que se destina, tendo em vista que a vida humana é insuscetível de avaliação pecuniária, bem assim, as dores sofridas por aqueles que construíram com o falecido estreitos laços de afeto. Assim mesmo, ocorrendo um fato ilícito lesivo que acometa a integridade fisicopsíquica de uma pessoa, a responsabilização é devida, sobretudo quando o direito violado é a vida.

Direcionar as indenizações ao de cujus pelo fim de sua vida é consequência do que o direito traduz, pois o bem transgredido lhe pertence, e a compensação é adquirida com o evento morte, transferindo-se aos herdeiros por via sucessória. Dúvidas não restam quanto a possibilidade de serem ressarcidos os danos cau-sados aos sobrevivos, em decorrência deste mesmo dano morte, pacificamente considerado pela doutrina e jurisprudência brasileiras, pois o lesante, com sua conduta, amplia sua esfera de risco quando põe em causa lesão ao bem vida, e o homem, por ser social que é, reúne em seu convívio pessoas por quem alimente relações estreitas o necessário para que elas também sejam lesionadas com um único fato ilícito, causa do dano imediato.

Mensurar as quantias devidas, pelo valor da vida e pela ausência da pessoa que morre, precificadas nas decisões judiciais, corre a léguas de distancia da efetiva prestação da justiça reta para quem experimenta a efetiva dor da saudade, todavia, o paradigma pós-positivista nos coloca diante do poder jurisdicional dos princípios, sendo a dignidade da pessoa humana, nela abarcada a vida da pessoa, relegada quando não atendível, no Brasil, a compensação por sua perda.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CAVALCANTI, Camilla de Araujo. A responsabilidade civil por dano da morte: uma análise do Direito português e sua (in) aplicabilidade no Brasil. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 119-138, jul./set. 2017.

Recebido em: 24.10.2016

1º parecer em: 13.12.2016

2º parecer em: 13.12.2016

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SOCIOAFETIVIDADE NA FILIAÇÃO: ANÁLISE DA DECISÃO PROFERIDA PELO STJ NO RESP

1.613.641/MG

THE SOCIAL AFFECTION BOND IN FILIAL RIGHTS: AN ANALYSIS OF THE SUPERIOR COURT OF JUSTICE (STJ)

PRECEDENT RESP. 1.613.641/MG

Ricardo Lucas CalderónDoutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR. Pós-Graduado em Teoria Geral do Direito e em Direito Processual Civil. Professor dos cursos de Pós-Graduação da Fundação Getulio Vargas – FGV/ISAE Curitiba,

Universidade Positivo e Escola Paulista de Direito. Coordenador da especialização em Direito das Famílias e Sucessões da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Membro da Diretoria Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam. Pesquisador do grupo de estudos e pesquisas de Direito Civil “Virada de Copérnico”, vinculado ao PPGD-UFPR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil.

Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado em Curitiba, sócio do escritório Calderón Advogados.

Resumo: O presente trabalho tem por escopo comentar recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que reconheceu uma filiação socioafetiva e registral mesmo estando ausente o vínculo biológico. O princípio da afetividade está consolidado no direito de família brasileiro, reverbera em suas diversas searas, inclusive nas definições de parentalidade. No Brasil, a doutrina e a jurisprudência foram as precursoras no reconhecimento da socioafetividade como suficiente vínculo parental. Ao lado da vin-culação biológica figura o liame socioafetivo, lastreado na força construtiva dos fatos sociais. A posse de estado de filiação é acolhida pelo direito brasileiro, estando prevista na parte final do art. 1.593 do Código Civil. A paternidade socioafetiva espontanea e higidamente registrada é apta produzir efeitos jurídicos. A decisão do Superior Tribunal de Justiça ora em comento traz a luz a consagração da cate-goria da socioafetividade, constituindo-se em julgado que pode servir de orientação para os litígios de parentalidade.

Palavras-chave: Parentalidade; Filiação; Afetividade; Socioafetividade.

Sumário: 1 Descrição do caso – 2 Leitura jurídica da afetividade – 3 Direito de filiação x direito ao conhecimento da ascendência genética – 4 Considerações finais

Abstract: The purpose of this article is to comment the recent Superior Court of Justice’s decision, which recognized a filiation based on civil registration and affection bond, even though the biological bond was absent. The principle of affectivity is consolidated in the Brazilian Family Law, and reverberates across its several fields, including parental relationships definitions. In Brazil, case law and doctrine were the precursors of the affection bond recognition as a sufficient parental bond. Besides the biological bond, arises the affection bond, backed by the constructive power of social facts. Brazilian Law, as foreseen at the final part of the Civil Code’s article 1.593, shelters the possession of filial status. Paternity by affection bond, when spontaneous and regularly registered, produces legal effects. The decision of the

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Brazilian Superior Court of Justice under analysis brings to light the confirmation of affection bond’s category, constituting in final judicial decision that may offer orientation for the challenging parenting disputes.

Keywords: Parenthood; Filiation; Affection bond; Affectivity.

Summary: 1 Case description – 2 Legal interpretation of affection bonds – 3 Filial rights vs. the right of knowing your genetic ascendancy – 4 Final considerations

1 Descrição do caso

O caso ora em pauta1 envolve um imbróglio no qual se discute a possibilida-de (ou não) de manutenção de um vínculo de filiação com lastro registral e socio-afetivo, mas no qual se mostra ausente a descendência biológica. O processo foi ajuizado pelo pai registral e socioafetivo que, após o término do seu relacionamen-to com a mãe da criança, houve por bem pleitear a desconstituição da paternidade da filha em comum, alegando a inexistência de vínculo biológico.

A situação fática diz respeito a um pai que, em momento pretérito, espon-taneamente reconheceu a paternidade de uma menina de tenra idade, visto que estava em um relacionamento afetivo com a mãe da criança. Foi noticiado nos autos que no momento desse registro o referido pai já não tinha certeza da sua ascendência genética com essa filha, mas, mesmo assim, ele houve por bem formalizar essa paternidade. Como a mãe era solteira a época do nascimento, inicialmente ela foi a única a figurar no registro civil. Quando a referida filha es-tava com aproximadamente um ano de vida, o então companheiro da mãe foi espontaneamente até o ofício de registro civil e reconheceu a sua paternidade (estabeleceu-se o vínculo registral da paternidade).

No decorrer dos anos a convivência dessa família consagrou uma inequívoca relação paterno-filial socioafetiva, visto que pai e filha travaram essa convivência de forma harmoniosa por mais de uma década. Fotografias, testemunhas e ou-tros elementos dos autos atestaram que pai e filha conviveram afetivamente por aproximadamente quatorze anos (estabeleceu-se o vínculo socioafetivo da pater-nidade).

Em um dado momento esse pai e essa mãe puseram fim ao relacionamento de conjugalidade que mantinham entre si, foi quando ele resolveu questionar a paternidade que houvera reconhecido anteriormente. Quando a filha estava com quatorze anos de idade foi realizado exame em DNA, que atestou que a menor efe-tivamente não era descendente genética do referido pai (comprovou-se a ausência do vínculo biológico).

1 STJ, 3ª T., REsp 1.613.641/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 23.5.2017.

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Nesse contexto, havia uma paternidade registral e socioafetiva consolidada, mas na qual restou comprovada a ausência de descendência biológica entre pai e filha. Diante disso, houve o ajuizamento pelo pai da respectiva ação negatória de paternidade, que tinha dois fundamentos centrais: a) a ausência de vincula-ção biológica; b) o registro anterior da filiação apenas por “pressão familiar”. O pleito requeria a desconstituição da paternidade e a consequente exoneração da obrigação alimentar. A ação foi manejada contra a criança, que judicialmente foi representada pela sua mãe tendo em vista a sua menoridade.

Em contestação a mãe alegou a existência de uma paternidade socioafetiva consolidada o que, por si só, deveria levar a improcedência do pedido. A mãe lembrou que o registro da paternidade foi espontaneo por parte do pai, sendo que durante quatorze anos houve fortes laços de afeto entre todos os envolvidos. O reconhecimento por livre iniciativa e a inequívoca relação socioafetiva vivenciada de forma pública e duradoura seria suficiente para a manutenção da respectiva re-lação paterno-filial. Por tudo isso, sustentou a defesa a inviabilidade da pretensão paterna de ver desconstituída a filiação.

A decisão de primeiro grau entendeu que a ação não cuidaria de uma preten-são negatória de paternidade, mas sim de anulação de registro civil. Isso porque as ações negatórias de paternidade seriam restritas as hipóteses de estabeleci-mento da filiação mediante a presunção pater is est (art. 1.597/CC). Como, in casu, o reconhecimento foi espontaneo, realizado diretamente pelo pai no ofício ci-vil, de modo que não incidiu qualquer presunção, a hipótese cuidaria de pedido de anulação de registro. A sentença asseverou que esse reconhecimento espontaneo da paternidade é, em princípio, irrevogável e irretratável. A hipótese excepcional de anulação seria para os casos de vício do consentimento no ato do registro, ou seja, quando restasse comprovada indução a erro ou falsidade (art. 1.604/CC). O juízo a quo considerou que não houve prova alguma de vício da vontade, o que não permitiria a desconstituição da filiação por esse motivo. Ainda, considerou que, por outro lado, houve prova contundente do vínculo socioafetivo existente entre pai e filha por longos anos, fator esse que aliado ao princípio do melhor interesse levou a improcedência do pleito em primeira instancia.

Irresignado, o requerente apelou ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que deliberou no sentido de manter integralmente a sentença. Para o colegiado, a única hipótese de anulação na espécie seria a descrita no art. 1.604/CC (ví-cios do consentimento), entretanto, no referido caso inexistiriam essas máculas. Destacou o aresto estadual que o próprio pai reiterou várias vezes que, apesar das dúvidas que tinha quanto a sua ascendência genética sobre a filha, mesmo assim decidiu reconhecer a filiação. O acórdão regional também afirmou que a origem genética não é elemento constitutivo do registro de filiação, aliado ao fato

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de o reconhecimento voluntário ser ato irrevogável e irretratável. Ao final, anotou que a socioafetividade e princípio do melhor interesse levavam a improcedência do apelo.

O pai então recorreu ao Superior Tribunal de Justiça alegando que a paterni-dade socioafetiva não poderia prevalecer sobre a comprovada ausência de vínculo biológico. Ademais, reiterava a alegação de vício do consentimento. A insurgência especial foi inicialmente inadmitida na origem, chegando posteriormente ao STJ mediante o subsequente recurso de agravo.

Na Corte Especial, o Ministério Público proferiu parecer no sentido de que a paternidade em pauta só poderia ser desconstituída com a demonstração de ausência de vínculo biológico e também de ausência de vínculo socioafetivo, e desde que aliada a alguma comprovação de vício de consentimento no momento do registro. Como na situação em apreço não houve prova de qualquer vício, bem como restou inconteste a presença do vínculo socioafetivo o parquet opinava pelo desprovimento do recurso paterno, com a confirmação das decisões anteriores (que mantinham a paternidade).

No STJ o referido feito foi distribuído para a Terceira Turma, sob a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que proferiu voto no sentido de manter a paternidade socioafetiva mesmo ausente o vínculo biológico. Com isso, negou provimento ao Recurso Especial do pai, em decisão acolhida de forma unanime (votaram com o I. Relator os Ministros Marco Aurélio Belizze, Moura Ribeiro, Nancy Andrigui e Paulo de Tarso Sanseverino).

A decisão restou assim ementada:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. SOCIOAFETIVIDADE. ART.

1.593 DO CóDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE. PATERNIDADE. RECONHE-

CIMENTO ESPONTÂNEO. REGISTRO. ART. 1.604 DO CóDIGO CIVIL.

ERRO OU FALSIDADE. INEXISTÊNCIA. ANULAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA.

1. A socioafetividade é contemplada pelo art. 1.593 do Código Civil,

no sentido de que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da

consanguinidade ou outra origem.

2. Impossibilidade de retificação do registro de nascimento do menor

por ausência dos requisitos para tanto, quais sejam: a configuração

de erro ou falsidade (art. 1.604 do Código Civil).

3. A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa

humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histó-

rico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos

aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos.

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4. A posse de estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo da condição de filho legítimo, restou atestada pelas instan-cias ordinárias.

5. A ‘adoção a brasileira’, ainda que fundamentada na ‘piedade’, e muito embora seja expediente a margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado não consubstancia negócio jurídico sujeito a dis-trato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva, consistente no término do relacionamento com a genitora (Precedente).

6. Aplicação do princípio do melhor interesse da criança, que não pode ter a manifesta filiação modificada pelo pai registral e socioafe-tivo, afigurando-se irrelevante, nesse caso, a verdade biológica.

7. Recurso especial não provido.2

A deliberação está embasada em fundamentos tanto de direito civil como em alguns princípios constitucionais, perpassando diversos aspectos do atual estado da arte da parentalidade no direito de família brasileiro, o que merece destaque.

Em especial, as premissas que cuidaram da leitura jurídica da afetividade e as que permitem refletir sobre a distinção entre o direito de filiação e o direito ao conhecimento da ascendência genética incitam a algumas reflexões.

2 Leitura jurídica da afetividade

Um dos fundamentos centrais da referida decisão foi a acolhimento da so-cioafetividade demonstrada na relação paterno-filial que era objeto de análise. A proeminência do tema pode ser percebida logo ao início do voto do Min. Relator:

A socioafetividade foi contemplada pelo art. 1.593 do Código Civil, ao prever que ‘o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da con-sanguinidade ou outra origem’. Contudo, nem sempre o ordenamento reconheceu os liames calcados no afeto. Basta recordar que sob a égide do Código Civil de 1916 (conhecido como Código Bevilacqua) havia a primazia da verdade registral para fins de configuração de estado de filiação, predominando, em última análise, o patriarcalis-mo. Com a evolução da sociedade, que refletiu na legislação, e es-pecialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988,

2 STJ, 3ª T., REsp 1.613.641/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 23.5.2017.

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o instituto da filiação teve ampliada sua proteção, que não mais se atrela apenas ao casamento ou a odiosa hierarquização de vínculos. Tal premissa está consagrada no art. art. 227, §6º, da CF/1988: ‘Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, te-rão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designa-ções discriminatórias relativas a filiação’. A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos.

A manifestação traz elementos civis e constitucionais que fundamentam a categoria da socioafetividade, o Ministro Relator inclusive relaciona a paternidade socioafetiva ao macroprincípio da dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal traz relevantes diretrizes sobre a filiação, o que deve ser observado no acertamento dos casos concretos.3 Por sua vez, o Código Civil de 2002 também traz uma regulação que acolhe a socioafetividade nas relações de parentalidade.4

Atualmente, a afetividade se tornou o novo vetor dos relacionamentos familiares,5 o que exigiu do Direito a sua consequente tradução jurídica, como é possível perceber no acórdão objeto de análise. Uma das exigências que decorrem desse novo contexto é a busca por uma apuração escorreita do sentido jurídico da afetividade, de modo a viabilizar a sua aplicação no acertamento de casos concretos.

3 CF, art. 226, “§5º – Os direitos e deveres referentes a sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.

CF, art. 226, “§7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

CF, art. 227, “§6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas a filiação”.

4 CC, “art. 1.593 – O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. CC, “art. 1.596 – Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos

direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas a filiação”. CC, “art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constancia do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes a dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação

judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção

artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.5 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Sobre Peixes e Afetos – Um devaneio acerca da ética no Direito.

In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006.

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As manifestações exteriorizadas de afeto podem ser captadas pelos filtros do Direito, pois fatos jurídicos representativos de uma relação afetiva são assi-miláveis no curso de um processo judicial. Por outro lado, é inegável que o afeto em si é efetivamente um sentimento anímico, inapreensível de forma direta pelo atual sistema jurídico, o que desaconselha que os juristas se aventurem na sua apuração. Consequentemente, resta tratar juridicamente apenas das atividades exteriorizadoras de afeto (afetividade), um conjunto de atos concretos representa-tivos de um dado sentimento afetivo por outrem (esses atos concretos são cap-táveis pelo Direito, por intermédio dos seus meios usuais de prova). Finalmente, resta possível sustentar que a socioafetividade se constitui no reconhecimento no meio social de uma dada manifestação de afetividade, percepção por uma dada coletividade de uma relação afetiva (repercussão também captável pelo Direito, pelos seus meios usuais de prova).6

Stefano Rodota descreveu, com a maestria que lhe é peculiar, como o Direito paulatinamente criou barreiras para o reconhecimento jurídico das relações amo-rosas, afetivas e sentimentais, e como elas o afastaram da realidade dos relacio-namentos humanos. Um equívoco que merece ser revisto. Para o mestre italiano, ao ignorar e restringir esse aspecto subjetivo das pessoas o direito suprime um traço relevantíssimo do ser humano, o que é inapropriado.7

Ainda que se parta de uma análise transdisciplinar é inarredável aportar em uma tradução jurídica da afetividade, que não deve restar atrelada a aspectos subjetivos ou inapreensíveis concretamente. Em face do Direito laborar com fatos jurídicos concretos, estes devem ser os alicerces que demarcarão a significação jurídica da afetividade.

A leitura jurídica da afetividade deve ser realizada sempre com uma lente objetiva, a partir da persecução de fatos concretos que permitam sua averiguação no plano fático: uma afetividade jurídica objetiva. Corolário disso, a percepção que o princípio da afetividade jurídica possui duas dimensões: a objetiva, que é retra-tada pela presença de eventos representativos de uma expressão de afetividade, ou seja, fatos sociais que indiquem a presença de uma manifestação afetiva; e a subjetiva, que refere ao afeto anímico em si, o sentimento propriamente dito. A verificação dessa dimensão subjetiva certamente foge ao Direito e, portanto, será sempre presumida, o que permite dizer que constatada a presença da dimensão objetiva da afetividade, restará desde logo presumida a sua dimensão subjetiva. Em outras palavras, “nessas situações, é possível até presumir a presença do

6 Conforme já tivemos a oportunidade de sustentar: CALDERóN, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. 2 ed. rev. atual. amp. São Paulo: Forense, 2017.

7 RODOTÀ, Stefano. Diritto D’amore. Bari: Laterza, 2015, p. 7.

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sentimento de afeto. Sendo ação, a conduta afetiva é um dever e pode ser impos-ta pelo Judiciário, presente ou não o sentimento”.8

A obra clássica de Caio Mário da Silva Pereira adere a essa proposição de leitura objetiva da afetividade jurídica,

O princípio jurídico da afetividade, em que pese não estar positivado no texto constitucional, pode ser considerado um princípio jurídico, a medida que seu conceito é construído por meio de uma interpretação sistemática da Constituição Federal (art. 5º, §2º, CF) princípio é uma das grandes conquistas advindas da família contemporanea, recep-táculo de reciprocidade de sentimentos e responsabilidades. (...) o princípio da afetividade possui duas dimensões: uma objetiva e outra subjetiva.9

A partir destes pressupostos é possível sustentar que a socioafetividade representa o reconhecimento no meio social de manifestações afetivas concretas. Em que pese inicialmente possa parecer árduo ao Direito lidar com um tema tão subjetivo, não raro alguns institutos jurídicos igualmente subjetivos são apurados de maneira similar (v.g., a boa-fé). Eventos que podem evidenciar a afetividade são manifestações especiais de cuidado, entreajuda, afeição explícita, carinho, comunhão de vida, convivência mútua, mantença alheia, coabitação, projeto de vida em conjunto, existência ou planejamento de prole comum, proteção recíproca, acumulação patrimonial compartilhada, dentre outros.

O STJ foi um dos precursores na edificação do sentido de socioafetividade para o Direito de Família brasileiro, visto que acolhe essa categoria há quase mais de duas décadas, mesmo quando inexistia qualquer lei expressa a respeito dessa temática. Esta categoria foi consolidada em um profícuo diálogo travado entre a literatura jurídica de direito de família (dentre outros: João Baptista Vilella,10 Luiz Edson Fachin, Zeno Veloso11 e Paulo Luiz Netto Lobo) e a jurisprudência (em parti-cular, do próprio Superior Tribunal de Justiça).12

8 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 70.

9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Família, v. 5. 22. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 65-66.

10 VILLELA, João Baptista. A Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, UFMG, ano XXVII, n. 21, maio 1979.

11 VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997.12 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Socioafetividade no Direito de Família: a Persistente Trajetória de um Conceito Fun-

damental. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Porto Alegre, Magister; Belo Horizonte, IBDFAM, v. 5, ago./set. 2008.

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O conceito de filiação de Paulo Lobo envolve o vínculo decorrente da socioa-fetividade, expresso mediante a noção da posse de estado:

Filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que se es-tabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga.13

O referido acórdão do STJ acolhe essas premissas, visto que levou em conta diversos fatos concretos que evidenciavam claramente a existência de uma rela-ção paterno-filial socioafetiva. Na situação fática que era apreciada, a posse de estado de filho foi percebida e destacada em diversos eventos, que transcorreram em fases distintas da vida da referida filha (atestados inclusive em laudo da as-sistente social judicial).

Pelas palavras do Ministro Relator Villas Bôas Cueva, resta cristalina a cons-tatação objetiva do vínculo socioafetivo, pois afirma que o pai “esteve presente na vida da suplicada desde o nascimento, na condição de pai, assim como presente esteve em datas comemorativas e fases importantes da vida (...)”. É possível afirmar que o STJ consolidou a leitura objetiva da categoria da socioafetividade, o que se mostra adequado.14

O avanço da afetividade na definição das questões familiares é percebido também no direito comparado, como se percebe nas palavras de Pietro Perlingieri:

O sangue e o afeto são razões autônomas de justificação para o mo-mento constitutivo da família, mas o perfil consensual e a affectio constante e espontanea exercem cada vez mais o papel de denomina-dor comum de qualquer núcleo familiar. O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente as relações de sangue, mas, sobretudo, aquelas afetivas que se traduzem em comunhão espiritual e de vida.15

A manutenção da filiação socioafetiva mesmo com a comprovação da ausên-cia do vínculo biológico está de acordo com o sentido civil-constitucional de filiação

13 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil – Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p.192.14 CARDOSO, Simone Tassinari. Notas sobre parentalidade socioafetiva. Trabalho aprovado e apresentado

no II Congresso Brasileiro de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Civil-IBDCIVIL. Evento realizado em Curitiba, em 2014.

15 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil-constitucional. 3. ed. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 244.

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apurado pelo direito de família contemporaneo, que é uníssono em afirmar que a paternidade não decorre apenas da descendência genética.16

3 Direito de filiação x direito de conhecimento da ascendência genética

Uma das questões que está presente nas entrelinhas da decisão em apreço é a possível distinção entre o direito de filiação e o direito de conhecer a ascen-dência genética.17 Esta dissociação se desvela nas conclusões do próprio acórdão do Superior Tribunal de Justiça, visto que está, de certa forma, imbricada na dis-cussão que foi travada judicialmente. Uma das premissas em análise nesse caso era a seguinte: a mera ausência de descendência biológica é suficiente, por si só, para desconstituir uma dada paternidade?

Para uma exata compreensão do que se está a discutir, merece destaque a distinção entre parentesco e ascendência genética,18 sustentada por parte subs-tancial da doutrina jusfamiliarista brasileira. Essa diferenciação se extrai a partir do disposto no artigo 227, §6º, da CF, no artigo 1.596 do Código Civil, e também é retrato da evolução das relações familiares na própria sociedade. O reconheci-mento da socioafetividade como suficiente vínculo parental permite perceber que nem sempre a filiação estará atrelada a descendência genética.19

No que concerne aos vínculos paterno-filiais, tal ordem de ideias resultou na edificação da distinção entre o direito ao reconhecimento da origem genética e o direito de ver reconhecida uma relação parental (coisas tidas como distintas por grande parte dos autores e da jurisprudência).20

Assume relevo o entendimento externado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o estado de filiação não está – direta e

16 “A paternidade socioafetiva é a relação paterno-filial que se forma a partir do afeto, do cuidado, do carinho, da atenção e do amor que, ao longo dos anos, se constrói em convivência familiar, em assistência moral e compromisso patrimonial. O sólido relacionamento afetivo paterno-filial vai formando responsabilidades e referenciais, inculcando, pelo exercício da paternagem, elementos fundamentais e preponderantes na formação, construção e definição da identidade da pessoa. E assim, a relação paterno-filial vai sendo reconhecida não só entre os parentes do grupo familiar, mas também entre terceiros (padrinhos, vizinhos e colegas)” (PORTANOVA, Rui. Ações de Filiação e paternidade socioafetiva, Porto Alegre: Livraria do Advo-gado, 2016, p. 19).

17 FACHIN, Luiz Edson. Paternidade e Ascendência Genética. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.) Grandes Temas da Atualidade: DNA Como Meio de Prova da Filiação, Rio de Janeiro: Forense, 2002.

18 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed., rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2013.19 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação, o biodireito e as relações parentais, de acordo com

o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.20 TJRS, 8ª CC, AC 70031164676, Rel. Des. Rui Portanova, DJe 24.9.2009.

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SOCIOAFETIVIDADE NA FILIAÇÃO: ANÁLISE DA DECISÃO PROFERIDA PELO STJ NO RESP 1.613.641/MG

necessariamente – ligado aos vínculos biológicos. Não raro, os pais não são, ne-cessariamente, os respectivos ascendentes genéticos (exatamente como nesse caso concreto). O estado de filiação também pode restar presente por intermédio de um vínculo socioafetivo, registral, adotivo, em decorrência da incidência das presunções legais ou ainda pelas hipóteses de reprodução assistida. Assim, exis-tindo um estado de filiação estabelecido de forma hígida e regular, em regra este não pode ser impugnado judicialmente apenas com base na alegação de ausência de vínculo biológico. Em outras palavras, nem todas as paternidades devem estar consubstanciadas em vínculos biológicos.21

Resulta disso a percepção de que o estado de filiação possui um sentido civil-constitucional plural que não pode ser objeto de uma leitura reducionista, sob pena de se incorrer até mesmo em reprovável inconstitucionalidade.22 Como visto, os vínculos de filiação podem ser biológicos, presuntivos, adotivos, registrais ou socioafetivos. Essa especial relação de parentesco tem seu contorno delineado pelo direito de família, e nem sempre está agregada ao elo biológico, como visto. Diante disso, particular destaque deve merecer a análise dos fatos concretos que consubstanciam uma dada relação parental.

Outro sentido teria o que se denomina como direito ao conhecimento a ori-gem genética, típico direito da personalidade, que envolve o direito da pessoa – a qualquer tempo – ter ciência da sua ancestralidade biológica, mas sem necessa-riamente se estender daí os efeitos do parentesco.23 Ou seja, é direito de todos averiguar judicialmente seu ascendente genético, mas não deriva daí – necessa-riamente – qualquer relação de parentesco, máxime quando esta já estiver esta-belecida com outrem. A vinculação biológica pode – ou não – influir na relação de filiação, sempre a depender das peculiaridades do caso concreto.

Conforme assevera Paulo Luiz Netto Lôbo,24 “pai é quem cria, ascendente quem gera”, e prossegue:

O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essen-cial de atribuição de paternidade e maternidade. Nada tem a ver com

21 OLIVEIRA, Guilherme de. Critério Jurídico da Paternidade, reimp., Coimbra: Almedina, 2003.22 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In: COMAILLE, Jacques et al.

A Nova Família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.23 FACHIN, Luiz Edson. Do Direito de Família. Do Direito Pessoal. Das Relações de Parentesco. Arts. 1.591

a 1.638. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. XVIII, p. 112-113.

24 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito a origem genética: uma distinção neces-sária. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 523.

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o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética.

São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de

família e a segunda, de direito da personalidade. As normas de regên-

cia e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.

Muito mais do que apenas um dado objetivo (biológico), sedimentou-se o

entendimento de que a parentalidade se constitui um dado cultural (sociológico),25

e, consequentemente, ser pai ou mãe nos dias de hoje é uma função.26

O acórdão objeto de reflexão traz expresso em seu teor esse entendimento,

em trecho elucidativo que merece transcrição:

Esta corte tem orientação firmada no sentido de que ‘a simples au-

sência de convergência entre a paternidade declarada no assento de

nascimento e a paternidade biológica, por si, não autoriza a invalida-

ção do registro. Ao marido/companheiro incumbe alegar e compro-

var a ocorrência de erro ou falsidade, nos termos do art. 1.601 c.c.

1.604 do Código Civil’. (REsp nº 1.330.404/RS, Terceira Turma, Rel.

Min. Marco Aurélio Bellizze.)

Como o entendimento prevalecente foi o de que não houve prova de qual-

quer vício do consentimento do pai quando do registro da filiação, a solução foi

a de manutenção da paternidade, ainda que ausente a descendência genética. O

princípio do melhor interesse da criança também foi lembrado como elemento que

reforçaria essa conclusão.

Merece destaque o fato deste julgamento do Superior Tribunal de Justiça que

se está a detalhar ter ocorrido no decorrer do ano ora em curso (maio de 2017),

em momento posterior a deliberação do Supremo Tribunal Federal na repercussão

geral 622 (setembro de 2016). A tese aprovada pelo STF em meados do ano pas-

sado admitiu a possibilidade jurídica da multiparentalidade,27 com a manutenção

de paternidades concomitantes (biológica e afetiva): “A paternidade socioafetiva,

declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo

25 Na esteira das embrionárias lições de João Baptista Villela, no Brasil, e de Guilherme de Oliveira em Portugal; mais recentemente, os autores Luiz Edson Fachin, Paulo Luiz Netto Lôbo e Zeno Veloso (dentre tantos outros) são alguns que argumentam no mesmo sentido na literatura jurídica brasileira.

26 BARBOZA, Heloisa Helena. Entrevista. Informativo IBDFam, n. 74, maio/jun. 2012, p. 3.27 RODRIGUES, Renata de Lima; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Multiparentalidade como Fenômeno Jurí-

dico Contemporaneo. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, Magister/Belo Horizonte, IBDFAM, v. 14, p. 89-106, fev./mar. 2010.

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SOCIOAFETIVIDADE NA FILIAÇÃO: ANÁLISE DA DECISÃO PROFERIDA PELO STJ NO RESP 1.613.641/MG

de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.28

Entretanto, como deixa clara a recente decisão do STJ, isso não implica retomar um biologicismo exacerbado na filiação, de modo que segue presente e sólida a importante categoria da socioafetividade. A medida aprovada pelo STF deve ser aplicada na extensão da respectiva tese, sempre tendo em mente a ratio decidendi que a originou.29

Na esteira do que se está a afirmar, a averiguação da desconstituição ou não de uma dada paternidade exige muito mais do que a mera comprovação da ausên-cia de descendência biológica, no exato entendimento externado pelo acórdão do STJ ora comentado. Os elos socioafetivos e registrais regularmente constituídos são mais que suficientes para sustentar uma filiação.

4 Considerações finais

A multiplicidade de vínculos torna mais complexa a trama da parentalidade contemporanea. Ligações biológicas, socioafetivas, registrais, adotivas e presun-tivas estão presentes no nosso sistema jurídico, todos a desfilar com o mesmo status hierárquico e com guarida na Constituição Federal.

Em muitas situações existenciais, a dinamica das relações sociais atuais acaba por exigir uma análise que encontre soluções a partir de uma metodologia civil-constitucional, muitas vezes a única a permitir ao julgador fazer justiça no caso concreto. O acórdão que ora foi apreciado parece ter percorrido esta trilha.

Merece destaque a decisão do Superior Tribunal de Justiça que reconhece uma filiação lastreada no vínculo socioafetivo, mesmo sem existência de descen-dência biológica, o que demonstra a consolidação dessa importante categoria. Os fundamentos do julgado e os temas que lhe são correlatos permitem, de certa forma, perceber o atual estágio do direito de(as) família(s) brasileiro.

Dedico estas singelas palavras ao professor italiano Stefano Rodota, jurista italiano que é marco teórico de muitas dessas reflexões, que veio a falecer nos dias da conclusão deste texto. O professor Rodota fará uma falta inestimável ao Direito, mas suas ideias certamente seguirão iluminando gerações de civilistas de

28 STF, tese aprovada na Repercussão Geral 622, que teve como base o REXT 898.060/SC, Rel. Min. Luiz Fux, do qual o IBDFAM participou como Amicus Curiae.

29 Sobre o tema: CALDERóN, Ricardo. Reflexos da decisão do STF de acolher a socioafetividade e multiparenta-lidade. Artigo Publicado no Portal Consultor Jurídico, em 25.09.2016, na Coluna Processo Familiar. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-set-25/processo-familiar-reflexos-decisao-stf-acolher- socioafetividade-multiparentalidade>. Acesso em: 5 jul. 2017.

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todos os cantos. Encerro com uma frase citada por ele, em sua obra mais recente: “Amo, logo existo”.30

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CALDERóN, Ricardo Lucas. Socioafetividade na filiação: análise da decisão proferida pelo STJ no REsp 1.613.641/MG. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 141-154, jul./set. 2017.

Recebido em: 26.06.2017

1º parecer em: 06.07.2017

2º parecer em: 29.07.2017

30 Em livre tradução de “Amo ergo sum”. RODOTÀ, Stefano. Diritto D’amore, cit., p. 114.

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EFEITOS DO INADIMPLEMENTO EM RELAÇÃO TRIANGULAR COLIGADA ENTRE CLUBE DE FUTEBOL, PATROCINADORA E ATLETAS. A

RESPONSABILIDADE POST FACTUM FINITUM E A CHAMADA PERDA SUPERVENIENTE DA

CAUSA DO CONTRATO

Anderson Schreiber Professor de Direito Civil da UERJ. Professor Permanente do Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) da UERJ. Doutor em Direito Privado Comparado pela Università degli studi del Molise (Itália). Mestre em Direito Civil

pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.

Sumário: 1 Consulta – 2 Relação contratual triangular entre clube de futebol, patrocinadora e atletas – Contratos coligados – Interpretação dos instrumentos contratuais – Correspectividade entre a obrigação de pagamento a título de direito de imagem e o direito de participação econômica em operações futuras e eventuais de transferência do jogador – 3 Efeitos do inadimplemento da obrigação de pagamento a título de direito de imagem em relação ao clube – Boa-fé objetiva e responsabilidade post pactum finitum – 4 Inexigibilidade do direito a participação econômica na transferência de jogadores – Proibição de comportamento contraditório e suppressio – Implemento deliberado de condição a luz do art. 129 do Código Civil: alienação que se reputa não verificada – 5 Perda superveniente de causa do direito a participação da patrocinadora – Assunção pelo clube do custo econômico relativo a remuneração do jogador – Quebra do sinalagma no regramento pluricontratual das partes – Interpretação do contrato de cessão parcial de direitos econômicos – 6 Responsabilidade civil da patrocinadora – Pressupostos do juízo de responsabilização: conduta culposa, nexo de causalidade e dano – Liquidação dos danos patrimoniais e morais – 7 Resposta aos quesitos

1 Consulta

Em atendimento a consulta apresentada pelo clube de futebol Alpha F.C.,1 examinei, a luz do direito brasileiro, as relações contratuais estabelecidas entre, de um lado, Alpha F.C. e, de outro lado, Beta 1 S.A. e Beta 2 Ltda. (entidades integrantes do grupo Beta, doravante denominadas simplesmente Beta).

1 Os nomes das partes e outras circunstancias do caso concreto foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos.

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Os fatos foram assim sintetizados pelo consulente:

1. Alpha F.C. e Beta mantiveram uma longa parceria de 1999 até o final de 2014. Durante todo esse período Beta foi a patrocinadora oficial do clube e com isso divulgava a marca da empresa no uniforme do Alpha F.C.

2. A partir do ano de 2002, o relacionamento entre o Alpha F.C. e a Beta se estreitou ainda mais. A patrocinadora passou a participar diretamente da contratação e remuneração de vários jogadores de futebol contratados para compor o elenco de Alpha F.C. Em contrapartida a tal participação, houve a diminuição da verba de patrocínio que era repassada ao clube, já que atuava diretamente na contratação de jogadores para fortalecer o time de futebol e expor sua marca.

3. Essa parceria se estabelecia por meio de três contratos para cada joga-dor: (a) Contrato Especial de Trabalho Desportivo, firmado entre Alpha F.C. e atleta; (b) Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e Imagem, firmado entre o atleta e Beta; e (c) Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, firmado entre Alpha F.C. e Beta em relação aquele atleta.

4. Ocorre que no final de 2014, Beta encerrou sua parceria com o clu-be, deixando de renovar o contrato de patrocínio até então existente. Paralelamente ao encerramento da relação de patrocínio, Beta passou a descumprir seu dever de pagar aos atletas do clube a remuneração mensal referente aos direitos de imagem dos jogadores, violando o con-trato relativo a direitos de imagem que continuava vigente entre Beta e o respectivo jogador.

5. Além disso, Beta passou a incitar atletas do Alpha F.C. a rescindir os seus contratos de trabalho com o clube. Diversas notícias jornalísticas, que seguem anexas, comprovam que o Presidente de Beta passou a es-timular a saída dos atletas do clube, tendo, inclusive, os incitado a jogar no maior rival do Alpha F.C. no Rio de Janeiro.

6. Em consequência disso, diante do risco iminente da perda de vários jo-gadores, visto que muitos atletas de seu elenco entrariam no terceiro mês sem o recebimento de seus direitos de imagem, o Alpha F.C. (a) au-mentou o salário de alguns de seus atletas por meio de aditamentos aos

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EFEITOS DO INADIMPLEMENTO EM RELAÇÃO TRIANGULAR COLIGADA ENTRE CLUBE DE FUTEBOL, PATROCINADORA...

contratos especiais de trabalho desportivo para evitar a rescisão unilate-ral desse contrato pela ausência do pagamento dos direitos de imagem para os jogadores e a incidência das multas pela eventual ruptura desse vínculo; ou (b) promoveu a venda de atletas por valores abaixo do merca-do para evitar que os mesmos saíssem do clube sem o recebimento de nenhum tipo de contraprestação financeira para a entidade desportiva.

7. Não bastassem todos os danos causados no Alpha F.C. por sua conduta, Beta, mesmo descumprindo seus deveres contratuais, ajuizou diversas ações judiciais para cobrar supostos benefícios econômicos que lhe se-riam devidos por Alpha F.C. por conta da negociação de jogadores sob os quais a empresa alega ainda deter direito de participação.

Cópias dos seguintes documentos me foram apresentadas juntamente com a consulta: (i) Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, relativo ao jogador Gama, data-do de 2.1.2013; (ii) Contrato Especial de Trabalho Desportivo (nº RJ 2013914), relativo ao mesmo jogador, datado de 3.1.2013; (iii) Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e Imagem, referente ao mesmo jogador, datado de 25.1.2013; (iv) Aditivo ao Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e Imagem, relativo ao mesmo jogador, datado de 30.5.2014; (v) Termo Aditivo de Alteração Salarial de Contrato Especial de Trabalho Desportivo, relativo ao mesmo jogador, datado de 18.3.2015;2 (vi) Instrumentos Particulares de Patrocínio, celebrados entre Beta e Alpha F.C. durante os anos de 1998 a 2014, datados de 21.8.1998, 9.9.1998, 17.3.1999, 24.8.1999, 2.1.2001, 1.8.2002, 2.9.2003, 1.3.2005, 3.1.2006, 8.6.2007, 29.10.2007, 26.11.2008, 29.12.2009, 12.8.2011, 14.11.2013 e 5.1.2014; e (vii) diversas reportagens jornalísticas noticiando o fim da relação de patrocínio entre Alpha F.C. e Beta, bem como a conduta adotada pelos represen-tantes de Beta frente aos atletas após o encerramento da parceria.

O consulente apresentou os seguintes quesitos:

Quesito 1 – Pode Beta cobrar do Alpha F.C. quaisquer valores a título de direito de participação econômica em relação às transferências daqueles atletas em face dos quais inadimpliu sua obrigação de pagamento de direitos de imagem?

2 O consulente informa que os instrumentos contratuais mencionados até aqui repetem-se substancialmente em relação aos demais jogadores contratados pelo clube a pedido de Beta.

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Quesito 2 – A resposta seria a mesma se o Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças fosse analisado isoladamente?

Quesito 3 – O Alpha F.C. tem direito de ser ressarcido por Beta dos custos incorridos pelo clube para fazer frente ao inadimplemento dos direitos de imagem devidos pela sua ex-patrocinadora aos atletas, especialmente à luz do disposto no art. 31 da Lei Pelé?

Quesito 4 – Em caso afirmativo, os valores devidos a Alpha F.C. a título de ressarcimento podem ser compensados com eventuais valores que venham, por hipótese, a ser considerados devidos pelo clube à Beta, em virtude dos contratos celebrados entre as partes?

O presente parecer foi dividido em cinco tópicos, para melhor compreensão das respostas as questões formuladas. No primeiro, examina-se a relação contra-tual triangular estabelecida entre clube, jogadores e a patrocinadora, verificando- se se há coligação contratual entre os diferentes negócios jurídicos celebrados. No segundo, apreciam-se os efeitos do inadimplemento da obrigação de Beta de arcar com os direitos de imagens dos jogadores, após a extinção da relação de patrocínio com o clube. Em seguida, procede-se ao juízo de exigibilidade de participação econômica em verbas obtidas com a transferência desses mesmos jogadores, a luz do comportamento empregado pela patrocinadora. No quarto tó-pico, examina-se ainda o tema da exigibilidade, sob a ótica da causa do contrato de cessão parcial dos direitos econômicos incidentes sobre transferências dos atletas. Por fim, verifica-se se há responsabilidade civil da patrocinadora em de-corrência do seu inadimplemento.

2 Relação contratual triangular entre clube de futebol, patrocinadora e atletas – Contratos coligados – Interpretação dos instrumentos contratuais – Correspectividade entre a obrigação de pagamento a título de direito de imagem e o direito de participação econômica em operações futuras e eventuais de transferência do jogador

Sob o prisma técnico-jurídico, verifica-se dos contratos examinados que Alpha F.C. e Beta desenvolveram, desde o ano de 2002, uma relação contratual atípica,

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EFEITOS DO INADIMPLEMENTO EM RELAÇÃO TRIANGULAR COLIGADA ENTRE CLUBE DE FUTEBOL, PATROCINADORA...

que envolvia, além do pacto de patrocínio, a parceria na contratação e remunera-ção de jogadores de futebol. Assim, a relação contratual de cada jogador contra-tado por força dessa parceria regia-se por três instrumentos contratuais distintos:

(I) o Contrato Especial de Trabalho Desportivo, celebrado entre o Alpha F.C. e o jogador, por meio do qual o clube se obrigava a pagar o salário do jogador e lhe oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento do esporte,3 enquanto o atleta assumia as obrigações de participar de treinos e jogos, esforçando-se por obter o máximo de sua eficiência técnica, dentre outras obrigações acessórias;4

(ii) o Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e Imagem, celebrado entre Beta e o atleta (ou socie-dade empresária que o atleta houvesse constituído para gerir sua ima-gem), por meio do qual a patrocinadora se obrigava a arcar com o valor estabelecido a título de direito de imagem do jogador,5 enquanto o joga-dor se obrigava a divulgar o nome e a marca de Beta sempre que fosse possível, participar de comerciais, realizar fotos publicitárias (com ou sem a utilização do uniforme de Alpha F.C.), comparecer a eventos ins-titucionais, como a Convenção Nacional Beta, o Encontro da Federação de Beta do Estado do Rio de Janeiro, entre outros;6 e

(iii) o Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, celebrado entre Alpha F.C. e Beta, por meio do qual o clube se obrigava a ceder a patrocinadora uma parcela dos resultados econômicos que viesse a obter em caso de futura e eventual transferência do jogador.7

Como se vê, embora cada contrato fosse dirigido a um aspecto específico da relação contratual, os três contratos uniam-se em torno de uma função unitária: permitir a atuação desses atletas pelo clube, por meio de uma remuneração que era paga, em parte, por Alpha F.C. e, em parte, pela sua patrocinadora. A parcela relativa aos direitos de imagem assumia, nesse contexto, o papel de componente

3 Cláusula 3ª do Contrato Especial de Trabalho Desportivo.4 Cláusula 2ª do Contrato Especial de Trabalho Desportivo.5 Cláusula 8ª do Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e

Imagem.6 Cláusulas 2ª e 3ª do Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome,

Voz e Imagem, bem como itens “2”, “4”, “5”, e “6” do Anexo ao Instrumento Particular do Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e Imagem.

7 Cláusulas 1a e 2a do Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças.

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relevante e principal da remuneração do jogador, sendo numerosos os exemplos em que a verba paga pela patrocinadora correspondia a três ou quatro vezes o valor da parcela salarial paga pelo clube.8

Assim, embora Beta não figurasse como contratante no contrato de trabalho do jogador, nem o clube figurasse como contratante no contrato relativo aos seus direitos de imagem, pode-se concluir que o atleta que decidia aceitar a oferta de jogar pelo clube somente o fazia com vistas ao recebimento da remuneração total prometida por Alpha F.C. e por sua patrocinadora. De igual modo, parece evidente que o clube somente concordava em ceder parte dos resultados que pudesse vir a obter, futuramente, com o atleta em virtude da significativa contribuição que Beta prestava na constituição e manutenção do vínculo contratual com aqueles jogadores, normalmente atletas de renome internacional – como convinha espe-cialmente a patrocinadora interessada em explorar sua imagem junto a mídia – e de custo mensal bastante superior aquele que o clube se obrigava a arcar com seus próprios recursos.9

Significa dizer que os três contratos antes mencionados, embora estrutural-mente distintos, uniam-se por um indisfarçável nexo funcional, a caracterizar o que se denomina tecnicamente de coligação contratual:

Autonomia estrutural significa, então, que cada um dos contratos co-ligados conserva a própria estrutura, isto é, a própria forma (ainda que documentalmente unidos) e o próprio conteúdo. Por nexo fun-cional entende-se que a coligação visa a um determinado resultado econômico-social. (...) O fim do contrato unifica a relação contratual in concreto, tornando-a ‘uma estrutura unitária e funcional.10

8 Com efeito, de acordo com o informado pela consulente no quadro anexo a sua consulta, a remuneração do jogador Ômega paga por Alpha F.C. totalizava R$ 100.000,00 (cem mil reais), enquanto a remuneração paga por Beta correspondia ao sêxtuplo desse valor: R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais); a remuneração do jogador Pi paga pelo Alpha F.C. totalizava R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), enquanto a remune-ração paga por Beta correspondia ao triplo desse valor: R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil reais); a remuneração do jogador Tau paga pelo Alpha F.C. totalizava R$ 72.000,00 (setenta e dois mil reais), enquanto a remuneração paga por Beta superava em mais de quatro vezes esse valor: R$ 373.000,00 (trezentos e setenta e três mil reais); a remuneração do jogador Lambda paga pelo Alpha F.C. totalizava R$ 40.000,00 (quarenta mil reais), enquanto a remuneração paga por Beta correspondia a mais que o triplo desse valor: R$ 125.900,00 (cento e vinte e cinco mil e novecentos reais); e assim por diante.

9 Durante o período de vigência da parceria entre clube e patrocinadora, jogaram pelo Alpha F.C. astros como Kappa (jogador com passagens por diversos clubes europeus e títulos como a Liga dos Campeões da Europa 2003/2004 e 2005/2006, Copa da UEFA 2002/2003, Campeonato Espanhol 2004/2005 e 2005/2006 e o Campeonato Inglês 2009/2010), Épsilon (jogador com passagens por outros tantos clubes europeus e conquistas como a Copa do Mundo de 1994, a Copa das Confederações de 1997 e a Copa América de 1989) e Ômega (jogador com passagem por um grande clube francês e conquistas como a Copa da França 2007/2008 e o Campeonato Francês 2005/2006, 2006/2007, 2007/2008).

10 CRESCENZO, Francisco Paulo Marino. Contratos Coligados no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 134.

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EFEITOS DO INADIMPLEMENTO EM RELAÇÃO TRIANGULAR COLIGADA ENTRE CLUBE DE FUTEBOL, PATROCINADORA...

A coligação contratual faz com que a composição dos interesses das partes não possa ser compreendida com base nos contratos vistos isoladamente, mas somente possa ser extraída do conjunto contratual como um todo. O atleta não atuava apenas por conta do salário, mas também e principalmente por conta dos valores mais elevados pagos a título de direito de imagem; a patrocinadora não se interessava apenas em explorar a imagem do atleta, mas pretendia também lucrar com a sua transferência futura; o clube não se limitava a arcar com o salário, mas cedia também parte de seus direitos econômicos, no afã de ter em seu plantel o jogador de renome. Os interesses das partes não se encerram em cada instru-mento contratual, coligam-se nos diferentes contratos. Eis a coligação contratual.

Mais especificamente, o caso concreto exprime hipótese de coligação con-tratual por permutação – a que a doutrina italiana, pioneira no estudo do tema, denomina collegamento negoziale in funzione di scambio11 –, espécie de coligação contratual que se caracteriza pelo fato de que a contrapartida de cada contrato não se esgota no próprio instrumento, mas somente pode ser compreendida quan-do associada a prestações contidas nos demais negócios jurídicos celebrados:

(...) em vários casos é possível observar esse nexo de correspecti-vidade estabelecido entre distintos negócios: são os chamados con-tratos coligados em permutação (in funzione di scambio). Como já foi observado, em tais hipóteses o equilíbrio necessário a permutação de prestações está constituído não entre as prestações fixadas por cada contrato, mas na totalidade de prestações impostas pelo regu-lamento de interesses plurinegocial.12

Em outras palavras, o sinalagma contratual – ou seja, a correspectividade entre as diversas prestações ajustadas entre as partes – não se estabelece com base exclusivamente nas prestações internas a cada contrato, mas sim a partir de um “desenho unitário”, que conjuga as prestações contidas em todos os con-tratos celebrados para o atingimento daquele propósito econômico único. Como explica Guido Biscontini:

O sinalagma vem, assim, a se colocar não somente entre as pres-tações que encontram justificativa em uma única relação jurídica e,

11 Ver, entre outros, GIOGIANNI, Michelle. Negozi Giuridici Collegati. In Rivista Italiana di Scienza Giuridica. 1937, pp. 334 e ss.; SCOGNAMIGLIO, Renato. Collegamento Negoziale. Verbete da Enciclopedia del diritto, vol. VII, Milano, 1960, pp. 375 e ss.; NANNI, Carlo Di. Collegamento Negoziale e Funzione Complessa. In Rivista di Diritto Commerciale, 1977, pp. 279 e ss.; e SCHIZZEROTTO, Gianni. Il Collegamento Negoziale. Napoli: Jovene, 1983.

12 KONDER, Carlos Nelson. Contratos Conexos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 240-241.

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portanto, em um único título, mas também entre as prestações de autônomas relações desde que coligadas em um desenho unitário.13

A jurisprudência brasileira tem reconhecido o fenômeno, como se pode ver, a título ilustrativo, da seguinte decisão:

É exatamente esta a hipótese dos autos: o contrato de financiamento e o contrato de compra e venda, embora estruturalmente independen-tes entre si, encontram-se funcionalmente interligados, têm um fim unitário comum, sendo ambos, em essência, partes integrantes de uma mesma operação econômica global, de tal arte que cada qual é a causa do outro, um não seria realizado isoladamente, sem o outro. (...) Ora, sendo conexos os contratos, a análise desloca-se da estru-tura unitária de cada um deles para a análise integrada dos vínculos individuais e, a partir daí, dos direitos e das obrigações decorrentes não dos contratos individualmente considerados, mas da relação sis-temática em que se situam, condizente com a totalidade negocial. Isto significa que a relação sinalagmática forma-se não apenas entre as prestações de cada contrato, mas entre todos, de tal modo que as vicissitudes que venham a afetar um deles também projetam efeitos sobre os demais.14

O mesmo entendimento aplica-se ao caso concreto que ora se examina. Nas relações contratuais entre Alpha F.C., Beta e jogadores de futebol, a operação eco-nômica perseguida pelas partes era uma só, mas se exprimia em três contratos distintos que se situavam em coligação contratual.15 O sinalagma (a correspectivi-dade) entre as prestações contratadas não se esgotava no ambito interno de cada contrato, mas dependia de prestações contidas nos outros contratos coligados: o atleta não jogaria pelo clube apenas pelo valor do salário, que representava menos da metade da remuneração prometida; o clube não celebraria contrato de trabalho com o atleta, não tivesse a patrocinadora se obrigado a arcar com a

13 Tradução livre do original em italiano: “Il sinallagma viene cosí a porsi non soltanto tra le prestazioni che trovano giustificazione in un unico rapporto giuridico e quindi in un unico titolo, ma anche tra le prestazioni di autonomi rapporti purché collegati in un disegno unitario” (BISCONTINI, Guido. Onerosità, corrispettività e qualificazione dei contratti. Napoli: ESI, 2005, p. 71).

14 Tribunal de Justiça de São Paulo, 30ª Camara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 0108064-56.2013.8.26.0000, Relator Desembargador Andrade Neto, julgado em 30.10.2013.

15 Segundo Claudio Luiz Bueno de Godoy “na coligação, há uma finalidade econômica comum as partes, que faz os ajustes entre si subordinados. Os negócios coligados perseguem um mesmo fim econômico e se completam na prossecução desse objetivo comum” (Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 147).

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EFEITOS DO INADIMPLEMENTO EM RELAÇÃO TRIANGULAR COLIGADA ENTRE CLUBE DE FUTEBOL, PATROCINADORA...

maior parte da sua remuneração; a patrocinadora não assumiria tal obrigação se o atleta não se comprometesse a atuar pelo clube, expondo sua marca e reduzindo o ônus que já assumira a título de patrocínio. Eventual tentativa de compreender a relação entre clube, jogador e patrocinadora sem um desses contratos resultaria em visão fragmentada da operação econômica, que faz pouco ou nenhum sentido a luz da realidade concreta. A coligação contratual é, pois, evidente.

Dentre as numerosas consequências que a coligação contratual produz no campo jurídico, está a imperativa necessidade de interpretação conjunta dos ins-trumentos contratuais, especialmente no que tange aos efeitos do inadimplemen-to. Se cada prestação encontra contrapartida não apenas no próprio instrumento contratual, mas também em outros contratos que lhe são coligados, o efeito do inadimplemento não se limita aquele vínculo específico, mas afeta todo o conjunto das relações contratuais.

Exemplo emblemático tem-se no tocante ao direito de participação econômi-ca de Beta nas transferências futuras e eventuais envolvendo jogadores do clube. Tal direito vem previsto, relembre-se, no Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, instru-mento que nenhum direito assegura a Alpha F.C. Visto isoladamente, tal contrato configuraria um negócio jurídico unilateral, por meio do qual o clube simplesmente “doava” ou, mais tecnicamente, cedia gratuitamente uma parcela substancial dos direitos econômicos que detinha sobre cada jogador. Tal parcela chegava, em alguns casos, a 90% (noventa por cento), como se pode ver, a título ilustrativo, do contrato celebrado em relação ao atleta Gama:

Cláusula Primeira – O objeto da presente contratação é a cessão par-cial, que é feita, nesta data, pela 2ª a 1ª contratante, do benefício fi-nanceiro que o Alpha F.C. estará percebendo com a futura e eventual transferência temporária ou definitiva do atleta profissional de futebol Gama de apelido ‘Gama’, para outra agremiação desportiva nacional ou estrangeira, ou a outro tipo de sociedade equivalente a esta.

(…)

Cláusula Segunda – Em razão do disposto na Cláusula Primeira, nes-te ato, a 2ª Contratante cede a 1ª Contratante 90% (noventa por cen-to) dos direitos financeiros que detém. Assim, em sendo verificada a transferência temporária ou definitiva do aludido atleta profissional de futebol a 1ª Contratante perceberá, pela cessão da 2ª Contratante ora realizada, 45% (quarenta e cinco por cento) da totalidade do be-nefício financeiro obtido com a respectiva transferência.

(…)

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Parágrafo Segundo – Com a cessão acima os direitos anteriormente mencionados ficam distribuídos, entre as Partes, nas seguintes pro-porções:

Direitos Federativos: 100% Alpha F.C

Direitos Financeiros: 5% para o Alpha F.C; 45% para Beta; 23,8% para o Teta F.C; 10,2% para a Zeta Ltda.; 16% para o C.R. Delta.16

O contrato deixa de se qualificar como gratuito quando se observa, porém, o conjunto contratual em sua totalidade, considerando não apenas esse instrumen-to em si, mas também os outros contratos que lhe são coligados. Do conjunto con-tratual extrai-se que o direito de participação econômica nas operações eventuais e futuras advinha do fato de que a patrocinadora assumia a maior parte do custo econômico representado por aquele jogador até o fim do seu vínculo com o clube. O direito de participação econômica da patrocinadora encontrava, portanto, corres-pectividade na sua obrigação de arcar com a maior parcela do custo representado pelo vínculo que o jogador manteria com o clube. Tal obrigação era a verdadeira raison d’être, o autêntico fundamento jurídico do direito da patrocinadora a partici-par dos resultados econômicos de uma futura e eventual alienação.

Ocorre que, como é notório, a patrocinadora interrompeu, em determinado momento, sua duradoura relação com o clube. Conforme afirma a consulta, “parale-lamente ao encerramento da relação de patrocínio”, Beta passou a inadimplir reite-radamente sua obrigação de pagamento de direitos de imagem, embora mantendo sua relação contratual com os jogadores.17 Tal inadimplemento, longe de se limitar ao contrato específico entre patrocinadora e atleta, repercutiu, por força da coliga-ção contratual e da legislação brasileira, diretamente sobre a instituição desportiva.

3 Efeitos do inadimplemento da obrigação de pagamento a título de direito de imagem em relação ao clube. Boa-fé objetiva e responsabilidade post pactum finitum

A violação pela patrocinadora do seu dever de pagamento de direitos de imagem gera o efeito de sujeitar o clube a perda do jogador. A Lei 9.615, de 24

16 Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, celebrado por Alpha F.C. e Beta em 2 de janeiro de 2013, referente ao jogador Gama.

17 Veja-se, além do texto da consulta, a reportagem intitulada “Atraso de Beta no pagamento aos medalhões causa mal-estar nos EUA” veiculada em 12.1.2015 por um jornal de grande circulação, informa que, no dia 13 de janeiro de 2015, Beta completaria dois meses sem pagar o direito de imagem aos atletas, de onde se extrai que o inadimplemento teria se iniciado em novembro de 2014, as vésperas, portanto, da interrupção da relação de patrocínio (reportagem anexada a consulta).

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de março de 1998 – chamada Lei Pelé –, regula o desporto brasileiro e possui estipulações expressas sobre a relação entre a entidade de prática desportiva e o atleta. O art. 31 do mencionado diploma legal prevê expressamente a rescisão do contrato especial de trabalho do jogador com o clube ao qual se vincula, caso haja mora no pagamento de seu salário ou “de contrato de direito de imagem” por “período igual ou superior a três meses”.

Art. 31. A entidade de prática desportiva empregadora que estiver com pagamento de salário ou de contrato de direito de imagem de atleta profissional em atraso, no todo ou em parte, por período igual ou superior a três meses, terá o contrato especial de trabalho despor-tivo daquele atleta rescindido, ficando o atleta livre para transferir-se para qualquer outra entidade de prática desportiva de mesma moda-lidade, nacional ou internacional, e exigir a cláusula compensatória desportiva e os haveres devidos.

A consequência, portanto, do inadimplemento superior a três meses, seja de verbas de salário, seja de direito de imagem, é a rescisão do vínculo com o clube, ficando o jogador, por consequência, livre para se transferir a qualquer outra agremiação,18 sem que o clube inadimplente receba qualquer verba pela sua transferência.

Como se vê, o inadimplemento da patrocinadora produz grave risco para o clube, resultando na ruptura da relação com o atleta e ameaçando a finalidade es-sencial da parceria estabelecida entre a instituição desportiva e a patrocinadora. Compromete-se o próprio escopo da operação econômica, propósito unitário dos múltiplos contratos. Em sentido diametralmente oposto, o direito brasileiro e, em particular, a cláusula geral de boa-fé objetiva, consagrada em nosso ordenamento jurídico (Código Civil, arts. 113, 187 e 422),19 impõem que o contratante empre-gue todos os esforços para a preservação do escopo perseguido pelas partes com o contrato original:

18 “Art. 31 (...) §5º. O atleta com contrato especial de trabalho desportivo rescindido na forma do caput fica autorizado a transferir-se para outra entidade de prática desportiva, inclusive da mesma divisão, indepen-dentemente do número de partidas das quais tenha participado na competição, bem como a disputar a competição que estiver em andamento por ocasião da rescisão contratual.”

19 “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. (...) Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede mani-festamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (...) Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

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No ambito contratual, portanto, o princípio da boa-fé impõe um pa-drão de conduta a ambos os contratantes no sentido da recíproca cooperação, com consideração dos interesses um do outro, em vista de se alcançar o efeito prático que justifica a existência jurídica do contrato celebrado.20

O que o ordenamento jurídico visa com o princípio da boa-fé objetiva – já se disse – é assegurar que as partes colaborarão mutuamente para a consecução dos fins comuns perseguidos com o contrato.21

Registre-se que, no cenário fático examinado, mostra-se irrelevante o fato de que a relação direta entre clube e patrocinadora, por meio do chamado contrato de patrocínio, não tenha sido renovada. O dever de agir conforme a boa-fé objetiva incide mesmo após a extinção da relação contratual. Trata-se da chamada respon-sabilidade pós-contratual ou responsabilidade post pactum finitum, que impõe as partes, mesmo após o encerramento do vínculo, o dever de se abster de condutas que retiram a utilidade do contrato:

(...) verifica-se a persistência, depois de finda uma situação obrigacio-nal, do dever de não adoptar atitudes que possam frustrar o objetivo por ela prosseguido ou que possam implicar, mediante o aproveitar da antiga posição contratual a diminuição das vantagens ou, até, o infligir danos ao ex-parceiro. Integram-se, aqui, sub-hipóteses de grande relevo económico, tais como o dever de fornecer peças so-bressalentes e de velar pela assistência técnica da coisa cedida, o dever de não concorrência ou o dever de sigilo perante as informa-ções obtidas na constancia da vinculação extinta.22

Assim, em face do comportamento assumido por uma das partes du-rante o iter contratual – na formação ou na sua execução – criou-se situação em face da qual a boa-fé impõe, mesmo depois de extinto o contrato pelo regular adimplemento, um dever de proteger a pessoa ou os bens da outra parte, de informar a outra parte sobre qualquer cir-cunstancia apta a influenciar o gozo dos direitos adquiridos com o con-trato, ou de manter a utilidade do resultado já obtido com o contrato.23

20 NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 122-123.21 SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A Boa-fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no

Código Civil. In Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 39.22 CORDEIRO, Antônio da Rocha e Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1997 p. 629.23 TREVISAN, Marco Antônio. Responsabilidade civil pós-Contratual. Revista de Direito Privado. vol. 16, São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 268. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:artigo.revista:2003;1000694914>. Acesso em: 20 jun. 2017.

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A pós-eficácia das obrigações constitui, portanto, um dever lateral de conduta de lealdade, no sentido de que a boa-fé exige, segundo as circunstancias, que os contratantes, depois do término da relação contratual, omitam toda conduta mediante a qual a outra parte se veria despojada ou essencialmente reduzida das vantagens ofereci-das pelo contrato. Esses deveres laterais de lealdade se consubstan-cializam primordialmente em deveres de reserva quanto ao contrato concluído, deveres de segredo dos fatos conhecidos em função da participação na relação contratual e deveres de garantia da fruição pela contraparte do resultado do contrato concluído.24

A jurisprudência brasileira acolhe amplamente a noção de responsabilidade pós-contratual, impondo aos contratantes os deveres de preservar a utilidade do contrato mesmo após a extinção do vínculo e cuidar para que a contraparte não seja prejudicada na fruição dos resultados do contrato. Como já afirmou o Superior Tribunal de Justiça:

(...) a hipótese dos autos comporta análise sob a ótica da boa-fé objetiva, a qual impões deveres de conduta as partes contratantes em todas as fases da relação obrigacional, inclusiva na fase pós- contratual, de modo que o protesto de título após o pagamento cons-titui ofensa ao dever de cuidado que se impõe ao credor, gerando obrigação de indenizar.25

Conclui-se, assim, que, ao lado da obrigação que tinha com cada jogador de manter o pagamento dos seus direitos de imagem – obrigação contratual stricto sensu, derivada de expressa disposição do Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e Imagem26 –, a patrocinadora tinha também, por força da boa-fé objetiva e da sua eficácia post pactum finitum, o dever perante o clube, seu ex-parceiro, de manter tais pagamentos aos atletas enquanto vigente o contrato entre patrocinadora e jogadores, evitando o forço-so desligamento dos atletas que compunham o time por falta de pagamento da parcela mais substancial de sua remuneração, que implicava, nos termos da lei, rescisão do vínculo.

24 MOTA, Maurício. A Pós-eficácia das Obrigações Revisitada. Revista Quaestio Iuris. vol. 4, 2011, Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/10194/7970, p. 375>. Acesso em: 19 jun. 2017.

25 Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.387.236/MS, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 26.11.2013.

26 Cláusula 8ª do Instrumento Particular de Contrato de Licenciamento de Direitos de Uso de Nome, Voz e Imagem.

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Dito de outro modo, a boa-fé objetiva impunha que a Beta preservasse o es-copo de sua longa relação contratual com o clube, sendo evidente que tal escopo restaria comprometido pelo inadimplemento por mais de três meses frente aos jogadores – inadimplemento que, por sua vez, resultaria, por força de expresso comando legal (Lei Pelé, art. 31), em ruptura do vínculo que tais jogadores manti-nham com o clube.

Em que pese tais deveres, a consulta registra que a patrocinadora não ape-nas deixou de empregar seus melhores esforços para adimplir com suas obriga-ções, mas passou, a partir de certo momento, a afirmar publicamente que não efetuaria o pagamento, chegando o representante da Beta a declarar que “atrasar é um direito de qualquer um”, apenas alguns dias após ter afirmado “eu garanto: Beta vai cumprir todos os seus contratos com os jogadores do Alpha F.C. Os con-tratos serão honrados. Mesmo que a parceria tenha sido encerrada, mesmo que a marca de Beta não esteja estampada no uniforme do clube”.27

Em outro episódio, conforme noticia reportagem anexa a consulta, o mesmo representante reuniu os jogadores para declarar expressamente sua intenção de não efetuar os pagamentos devidos,28 passando a estimular também de modo explícito que os jogadores se transferissem para clubes rivais, incluindo o maior antagonista do Alpha F.C. no Rio de Janeiro, o C.R. Delta.29 Adotou, assim, atitude nitidamente desleal, contrária aquela exigida pela boa-fé objetiva, violando fron-talmente seu “dever de não adoptar atitudes que possam frustrar o objetivo por ela prosseguido ou que possam implicar, mediante o aproveitar da antiga posição contratual, a diminuição das vantagens ou, até, o infligir danos ao ex-parceiro”.30

A consulta registra, ainda, que a patrocinadora passou, a partir de dezembro de 2015, a ingressar em juízo para cobrar do clube valores atinentes as transfe-rências de jogadores com base nos Instrumentos Particulares de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, que ha-viam firmado em relação a diversos atletas. Cumpre verificar se, no cenário fático traçado, tais valores são ou não exigíveis da agremiação desportiva.

27 Reportagem anexa a consulta, intitulada “Beta atrasa salários, e Upsilon minimiza: ‘Direito de qualquer um’”, publicada em 26.12.2014, em site e anexada a consulta.

28 Reportagem anexa a consulta, intitulada “Sem Ômega e Xi, Upsilon faz reunião com jogadores Beta”, publicada em 21.1.2015, disponível em site e anexada a consulta.

29 Fato mencionado na consulta e em reportagem anexa a mesma, intitulada “Upsilon admite oferta do C.R. Delta por Xi e pressiona Alpha F.C.”, publicada em 4.1.2015 em site e anexa a consulta.

30 CORDEIRO, António da Rocha e Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil, cit., p. 628.

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4 Inexigibilidade do direito à participação econômica na transferência de jogadores. Proibição de comportamento contraditório e suppressio. Implemento deliberado de condição à luz do art. 129 do Código Civil: alienação que se reputa não verificada

O direito a participação econômica encontra-se, de fato, previsto nas disposi-ções do chamado Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, particularmente em sua cláusula 1a, já transcrita anteriormente, que atribui a Beta direito a uma parte do “benefício financeiro que o Alpha F.C. estará percebendo com a futura e eventual transferên-cia”. Tal direito afigura-se, contudo, juridicamente inexigível no caso concreto, por mais de um fundamento.

Em primeiro lugar, não pode a patrocinadora que descumpre, por meses a fio, seu dever de pagar parcela significativa da remuneração dos jogadores, estimulando-os a deixar o clube, vir cobrar participação sobre renda futuramente obtida com suas transferências. Isto porque nemo auditur propriam turpitudinem allegans. A ninguém é dado se beneficiar de sua própria torpeza. O direito, como lembra Caio Mario da Silva Pereira, “não tolera que alguém seja ouvido quando alega a própria má-fé”.31

Significa dizer, no caso concreto, que a patrocinadora não poderia preten-der se beneficiar de venda que estimulou com seu comportamento antijurídico, consubstanciado no inadimplemento – publicamente reconhecido, como se extrai das numerosas notícias jornalísticas acostadas a consulta – das obrigações que assumira. Forçoso concluir que transferências terão ocorrido justamente por força do estímulo da patrocinadora e do seu próprio inadimplemento, sendo intolerável a luz do nemo auditur propriam turpitudinem allegans que venha a Beta pretender auferir participação nos resultados de tais transferências, o que significaria, em poucas palavras, lucrar com a violação de suas obrigações.32

Mesmo que se desconsiderasse, entretanto, o caráter torpe da atitude da patrocinadora, examinando seu comportamento sob lentes puramente objetivas,

31 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 340. No mesmo sentido, já afirmava Clóvis Bevilaqua, que “ninguém póde ser ouvido alegando o próprio dolo, nem dele tirar proveito. Ninguém tira ação da sua improbidade” (BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil, vol. I, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916, p. 382).

32 Registre-se que o antigo adágio revela-se atualíssimo, em uma ordem jurídica cada vez mais caracterizada pela juridicização de noções éticas: “Ninguém pode ser ouvido ao alegar a própria torpeza. Trata-se de uma regra jurídica que encontra lastro no imprescindível mínimo ético que deve presidir as relações huma-nas de um modo geral” (SOUZA, Wagner Mota Alves de. A Teoria dos Atos Próprios: da proibição de venire contra factum proprium. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 188).

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o direito de cobrar participação econômica sobre a transferência de atletas per-maneceria inexigível, por se afigurar contraditório com a conduta anteriormente adotada pela própria Beta. A inexigibilidade derivaria já aí da proibição de compor-tamento contraditório, também conhecida como nemo potest venire contra factum proprium. Conforme sustentado em obra específica sobre o tema:

O nemo potest venire contra factum proprium representa, desta forma, instrumento de proteção a razoáveis expectativas alheias e de consideração dos interesses de todos aqueles sobre quem um comportamento de fato possa repercutir. Nesse sentido o princípio de proibição ao comportamento contraditório insere-se no núcleo de uma reformulação da autonomia privada e vincula-se diretamente ao princípio constitucional da solidariedade social, que consiste em seu fundamento normativo mais elevado.33

Nas palavras do ex-Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior:

A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento fu-turo, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo a contraparte.34

No caso concreto, identifica-se o comportamento contraditório da patrocina-dora: (i) primeiro, deixa de efetuar os pagamentos dos direitos de imagem dos jogadores, exprimindo com sua atitude a postura de que a partir de então, o pro-blema pertencia exclusivamente a Alpha F.C.;35 (ii) depois, vem cobrar valores que

33 SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, cit., p. 196.

34 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor. Rio de Janeiro: Aide, 1991, pp. 248-249.

35 Note-se que, como registram as notícias anexas a consulta, o representante de Beta, ao ser perguntado sobre os atrasos nos direitos de imagem dos jogadores do clube, que geravam um problema urgente para a entidade desportiva, afirmou publicamente: “estamos com outros problemas mais sérios para resolver do que esse depois de 15 anos” (reportagem anexa a consulta, intitulada “Beta atrasa salários, e Upsilon minimiza: ‘Direito de qualquer um’.”, publicada em 26.12.2014 em site e anexa a consulta). Em outra reportagem, também anexa a consulta, o aludido representante declarou que a prioridade de Beta, após o fim do patrocínio, passava a ser cuidar de seus hospitais (“Upsilon ironiza proposta de expor Beta nas mangas da camisa do Alpha F.C.”), publicada no site de jornal de grande circulação e anexa a consulta.

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somente seriam devidos em transferência “futura e eventual” que ocorresse após ter arcado com o ônus econômico que assumira até o fim do vínculo entre atleta e clube – ônus do qual não se desincumbiu até o momento da transferência. Em outras palavras, Beta, primeiro, omitiu-se, deixando de arcar com suas obrigações e permitindo que o problema econômico recaísse sobre Alpha F.C.; depois, veio exigir o cumprimento das obrigações alheias, derivadas da venda dos mesmíssi-mos jogadores que deixara de pagar. A omissão inicial é inteiramente incompatível com a postura ativa de cobrança que se verifica em seguida.

Registre-se, a propósito, que doutrina e jurisprudência reconhecem que com-portamentos omissivos incutem legítima confiança em outrem, impedindo sua posterior contradição. É o que a doutrina tem denominado de suppressio – ou, na expressão alemã, Verwirkung36 –, figura que consiste em espécie de comporta-mento contraditório, caracterizada pelo teor omissivo da conduta inicial.37

A suppressio ganhou intensa aplicação prática na Europa após a Primeira Guerra Mundial, quando a jurisprudência alemã passou a inadmitir o exercício de um direito por seu retardamento desleal, especialmente em casos de cobrança de dívidas com atraso, situação nas quais o credor retardatário acabava por se beneficiar da elevada inflação que atingiu o marco alemão.38 Daí se difundiu pelo mundo para alcançar casos os mais diversos. Em tais situações,

(...) a inadmissibilidade do exercício do direito vem como consequên-cia de ter a conduta omissiva – a inatividade, o retardamento – do titular deste direito gerado em outrem a confiança de que aquele di-reito não seria mais exercido. O que se tutela é (...) a confiança no comportamento coerente daquele que se retardou em fazer valer o seu direito. Trata-se, portanto, de uma subespécie de venire contra factum proprium, caracterizada pelo fato de a conduta inicial ser um comporta-mento omissivo, um não exercício de uma situação jurídica subjetiva.39

36 BOEHMER, Gustav. Grundlagen der bürgerlichen Rechtsordnung. Tübingen: Mohr, 1952. 37 Sobre o tema, ver MACHADO, João Baptista. Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium. In

Obra Dispersa. Braga: Scientia Iuridica, 1991, p. 421. No Brasil, ver DICKSTEIN, Marcelo. Boa-fé Objetiva na Modificação Tácita da Relação Juridica: Surrectio e Suppressio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; SOUZA, Wagner Mota Alves de. A Teoria dos Atos Próprios: Da Proibição de Venire Contra Factum Proprium. Salvador: JusPodivm, 2008; MARTINS, Guilherme Magalhães. A Função de Controle da Boa-fé Objetiva e Re-tardamento Desleal no Exercício de Direitos Patrimoniais (Suppressio). In Civilistica, a. 2, n. 4, 2013 (Dispo-nível em: <http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Martins-civilistica.com-a.2.n.4.2013.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2017).

38 Sobre a evolução da Verwirkung (ou illoyal verspäteste Rechtsausübung) no direito alemão e sua difusão pelas experiências jurídicas da tradição romano-germanica, ver DIEZ-PICAZO, Luiz. La Doctrina de los Proprios Actos: Um Estudo Crítico sobre la Jurisprudencia del Tribunal Supremo. Barcelona: Bosch, 1963, pp. 94 e ss.

39 SCHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório – Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, cit., p. 125.

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O principal efeito da suppressio é a supressão da exigibilidade de um direito. Não se nega, portanto, que o direito exista, derivando de norma legal ou contra-tual, mas se impede o seu exercício diante de circunstancias concretas, em que admiti-lo equivaleria a premiar o comportamento incoerente:

O efeito mais importante da suppressio é a paralisação da exigibili-dade do direito, traduzindo importante função de prevenção, e não apenas de reparação de danos, por meio da imposição de obrigação de fazer ou não fazer.40

No caso concreto, portanto, verifica-se que, independentemente de prova de torpeza ou malícia por parte da patrocinadora, a cobrança de valores a título de participação econômica aos atletas do clube afigura-se objetivamente incom-patível com sua conduta anterior, consubstanciada na omissão do pagamento da remuneração que devia a eles. O direito a participação econômica torna-se, assim, inexigível por força da proibição de comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium), mais especificamente em sua modalidade omissiva (suppressio). Por esta razão, permitir o exercício da cobrança equivaleria a admitir o exercício abusivo de um direito ou, mais precisamente, o exercício de um direito em contrariedade aos limites impostos pela boa-fé objetiva, o que é expressamente vedado pelo art. 187 do Código Civil brasileiro:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Convém notar, a propósito, que, mesmo que se ignorasse por completo a incidência da boa-fé objetiva no presente caso, igual resultado seria alcançado por força da aplicação do art. 129 do Código Civil. Isto porque, no esquema contratual construído pelas partes, a transferência do jogador consubstanciava evento futuro e incerto cuja ocorrência deflagraria o direito de participação econômica da patroci-nadora. Vale dizer: não se tratava aí de um ganho necessário de Beta, que já inte-grasse seu patrimônio, mas de um direito eventual, conforme se extrai da própria cláusula 1a do Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças, que atribuía a patrocinadora direito a uma parte do “benefício financeiro que Alpha F.C. estará percebendo com a futura e eventual transferência”.

40 MARTINS, Guilherme Magalhães. A Função de Controle da Boa-fé Objetiva e Retardamento Desleal no Exercício de Direitos Patrimoniais (Suppressio), cit.

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O ganho era, portanto, incerto, pois o encerramento do vínculo entre clube e atleta, por decurso do prazo de vigência, poderia ocorrer antes de qualquer ten-tativa de alienação do jogador, hipótese na qual a patrocinadora nada ganharia. A participação econômica da patrocinadora dependia, repita-se, da realização de um evento futuro e incerto – a venda do jogador antes do fim do seu vínculo con-tratual –, evento que, justamente por seu caráter futuro e eventual, o Direito Civil denomina de condição. E, ao tratar do tema, o art. 129 do Código Civil determina, em sua parte final, que se considera “não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento”.41

Ao descumprir seus deveres perante o jogador e estimular sua transferência para outros clubes, Beta estimula, incentiva, procura, nos termos da lei, “levar a efeito” a ocorrência da condição, cujo implemento lhe beneficia. Como sanção por tal comportamento, o art. 129 do Código Civil considera “não verificada” a condição. Trata-se de um expediente legislativo de ficção jurídica: a lei ordena que se considere não ocorrido um evento que sabidamente ocorreu, a título de sanção aquele que procura artificialmente levá-lo a cabo em benefício próprio.

Nas palavras de Carvalho de Mendonça:

(...) reputa-se não-cumprida a condição maliciosamente cumprida pela parte a quem aproveitar o seu implemento. Assim já era no di-reito romano; todos os autores consolidam o princípio e quase todos os Códigos o consignam expressamente. (...) Ninguém deve tirar pro-veito do mal que causa, e depois há em atos dessa natureza violação do contrato, segundo a índole do qual devem as partes conservar-se estranhas ao acontecimento.42

A jurisprudência tem aplicado o art. 129 da codificação civil em diferentes hipóteses fáticas, reputando não verificada a condição deliberadamente imple-mentada por quem dela se beneficiaria.43 Reprime-se, assim, a atitude daquele que procura burlar o caráter aleatório do acontecimento que as partes trataram como futuro e eventual, de ocorrência não necessária.

41 “Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosa-mente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.”

42 MENDONÇA, Manuel Inácio Carvalho de. Doutrina e Prática das Obrigações. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 243.

43 Veja-se, a título de exemplo, Tribunal de Justiça de São Paulo, 4ª Camara de Direito Privado, Apelação Cível nº 3502834300/SP, Relator Desembargador Francisco Loureiro, julgado em 30.10.2008; e Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 25ª Camara Cível, Apelação Cível nº 00282858120138190021, Relator Desembargador Luiz Fernando de Andrade Pinto, julgado em 10.12.2015, entre outros precedentes.

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No caso concreto, as transferências de todos aqueles atletas perante os quais a patrocinadora inadimpliu suas obrigações devem ser tidas como “não veri-ficadas”, pois tal inadimplemento representa ausência da parcela mais significati-va da remuneração do jogador, estimulando direta e necessariamente a realização da transferência antes do fim do vínculo, condição que deveria ser, como afirma o próprio instrumento contratual celebrado entre as partes, “futura e eventual”, mas que sofreu indevida intromissão da Beta em seu caráter aleatório.

Conclui-se que, por mais de um fundamento jurídico, afigura-se inexigível o direito de participação econômica da patrocinadora, a luz do seu comportamento concreto. Ainda é preciso registrar, todavia, que, mesmo que se ignorasse in-teiramente as atitudes de Beta descritas na consulta, o direito de participação econômica restaria desprovido de exigibilidade, em virtude da quebra do sinalag-ma estabelecido no regramento pluricontratual das partes. É o que se passa a examinar.

5 Perda superveniente de causa do direito à participação da patrocinadora. Assunção pelo clube do custo econômico relativo à remuneração do jogador. Quebra do sinalagma no regramento pluricontratual das partes. Interpretação do contrato de cessão parcial de direitos econômicos

Como já visto na parte inicial do presente parecer, Alpha F.C., Beta e jogado-res mantinham entre si um regramento pluricontratual, que pode ser sintetizado em uma relação contratual triangular, por meio da qual a permanência de cada jo-gador no clube era assegurada por uma fatia de remuneração advinda do contrato de trabalho (salário) e uma fatia substancialmente maior de remuneração advinda do contrato de licenciamento de uso de imagem. Em um terceiro instrumento, Alpha F.C. outorgava, gratuitamente, a Beta direito de participação nos resultados econômicos de futura e eventual transferência do atleta antes do encerramento do seu vínculo contratual com o clube. Também já se viu que este último contra-to, embora gratuito se observado isoladamente, representava, na verdade, uma contrapartida pelo ônus econômico que Beta assumia por meio dos demais ins-trumentos, auxiliando financeiramente o clube na constituição e manutenção do vínculo com atletas de renome.

Ao descumprir suas obrigações junto aos jogadores, deixando de arcar com os direitos de imagem que representavam a parcela mais substancial da sua remuneração, a patrocinadora quebra o sinalagma contratual que ampara o seu direito de participação econômica. O rompimento do sinalagma contratual produz

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diversas consequências jurídicas, dentre as quais a inexigibilidade da prestação correspondente aquela que se deixa de cumprir.

A perda de exigibilidade derivada do rompimento sinalagmático é a base de numerosos institutos jurídicos, mas pode ser melhor visualizada na conhecida exceptio non adimpleti contractus (exceção do contrato não cumprido). Como ad-verte Ricardo Pereira Lira:

Prestação e contraprestação nascem, na origem, coligadas pela inter-dependência e devem seguir assim, durante a execução contratual, durante a fase estática da relação. (...) As prestações recíprocas são prestações coetaneas, bastando que um dos contratantes demons-tre estar disposto a adimplir, para que o outro não possa recusar cumprir argüindo a exceptio non adimpleti contractus. A natureza si-nalagmática da relação explica por que uma das partes pode prevenir o perigo de a outra parte não cumprir a sua prestação corresponden-te, através da dita exceção do contrato não-cumprido e da exceção do adimplemento imperfeito, exceptio non rite adimpleti contractus.44

A exceção do contrato não cumprido é usualmente descrita pela doutrina brasileira como uma suspensão de exigibilidade da prestação, pois se presume que o inadimplemento possa ser ainda corrigido, situação na qual a prestação voltaria a se tornar exigível, desde que cumprida a prestação contraposta. Há ca-sos, todavia, em que o inadimplemento da prestação contraposta pode se tornar irremediável (como no célebre exemplo da obrigação de confeccionar e entregar vestido de noiva, o qual, após a data do casamento, torna-se inútil ao credor).45 Em tais casos, a suspensão de exigibilidade da prestação deixa de ser temporária para se tornar definitiva, pois o sinalagma não pode mais ser restaurado de modo útil ao credor.

É exatamente o que ocorre no caso que ora se examina: o continuado inadim-plemento da patrocinadora, diante do prazo estrito de três meses mencionado pelo art. 31 da chamada Lei Pelé, confrontou o clube com ameaça iminente de perda do vínculo com o atleta, nos termos da mesma Lei Pelé.46 Assim, ou o clube

44 LIRA, Ricardo Pereira. A Onerosidade Excessiva nos Contratos. In Revista de Direito Administrativo. vol. 159. Rio de Janeiro: FGV, 1985, p. 11.

45 “A mora converte-se em inadimplemento absoluto, quando a prestação, por causa dela, se tenha tornado útil ao credor” (ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 48).

46 Relembre-se, ainda uma vez, a redação do dispositivo legal: “Art. 31. A entidade de prática desportiva empregadora que estiver com pagamento de salário ou de contrato de direito de imagem de atleta profis-sional em atraso, no todo ou em parte, por período igual ou superior a três meses, terá o contrato especial de trabalho desportivo daquele atleta rescindido, ficando o atleta livre para transferir-se para qualquer

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sofria passivamente tal perda ou agia para evitá-la. Nos casos em que o clube agiu para evitar a perda – procurando o jogador, como narra a consulta, para rees-tabelecer as bases do contrato, arcando com os direitos de imagem ou elevando substancialmente o seu salário no afã de suprir a ausência de pagamento pela patrocinadora –, ocorreu uma novação objetiva na relação clube-jogador: alterou-se o seu objeto, fazendo com que a prestação pecuniária a cargo do clube absorves-se no todo ou em grande parte a parcela econômica que o jogador tinha direito a receber da patrocinadora.47 Com isso, o clube passou a arcar integralmente com o custo econômico do jogador, de modo que o direito da patrocinadora de participar de uma eventual transferência futura perdeu sua razão de ser, sua justificativa jurídica ou, em termos mais técnicos, sua causa.

A perda superveniente de causa priva, de modo definitivo, a prestação de sua exigibilidade:

Assim, por exemplo, quando um contrato é firmado em vista de uma determinada razão de ser (como um outro contrato, no caso de co-ligação), não sendo mais possível atender a esta razão de ser deve o contrato ser extinto. O fundamento neste caso é a superveniente ausência de causa, em virtude da própria constatação da inaptidão real daqueles efeitos essenciais.48

Tal consequência se verifica também no ambito de contratos coligados, quando um contrato, que é sinalagmático a outro, representando a sua genuína razão de ser, deixa de produzir os efeitos esperados, também o contrato que lhe é coligado perde sua eficácia, tornando-se inexigíveis as obrigações nele contidas.49

outra entidade de prática desportiva de mesma modalidade, nacional ou internacional, e exigir a cláusula compensatória desportiva e os haveres devidos”.

47 Em outras palavras, embora estruturalmente o ato tenha sido uma novação objetiva, sua função foi nitida-mente a de assunção de dívida por expromissão, assim entendida aquela pela qual “o contrato é realizado entre o terceiro e o credor, independente de assentimento do devedor” (PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações. vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 375). Para Silvio Venosa, ocorre assunção de dívida por expromissão quando “um terceiro (expromitente) contrai perante o credor a obrigação de liquidar o débito” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, p. 307). A verificação do efeito da assunção de dívida por expromissão – extinção da obrigação original com subrogação do assuntor nos direitos de crédi-to frente ao devedor originário – é discutível nas hipóteses em que não há expressa referência a assunção, pois para parte da doutrina brasileira tal referência expressa afigura-se imprescindível. De qualquer modo, independentemente da configuração da assunção, a responsabilização do devedor originário permanece possível, desde que preenchidos seus pressupostos, por força das regras gerais da responsabilidade civil.

48 KONDER, Carlos Nelson. A Constitucionalização do Processo de Qualificação dos Contratos no Orde-namento Jurídico Brasileiro. Tese (Doutorado), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 92.

49 “Assim, partindo-se da noção tradicional aplicável aos contratos individualizados, pode-se chegar a uma concepção alargada de correspectividade, entre contratos diversos, sempre que as prestações objeto de

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Nesse sentido, a doutrina esclarece que o desaparecimento dos efeitos de um contrato coligado torna o outro ineficaz, privando-lhe de efeitos sempre que se torne inalcançável o propósito que vinculava ambos os acordos.50 Essa extensão dos efeitos que atingem um contrato a outro que lhe é coligado se explica, na medida em que as “prestações de uma parte não são correspectivas apenas as prestações da contra-parte dos contratos singulares”, devendo “manter a corres-pectividade em relação a rede” composta por todos os contratos situados em coligação.51

No caso concreto, ao deixar de efetuar o pagamento devido aos atletas, por força do contrato de imagem, colocando em risco a manutenção do seu vínculo com o clube, a patrocinadora frustrou a finalidade essencial da sua relação com a entidade desportiva, perdendo-se, a partir daquele momento, a justificativa ju-rídica que servia de base aos direitos futuros e eventuais que correspondiam a essa obrigação, em particular o direito de participar dos resultados econômicos de possíveis transferências daqueles atletas. O instrumento de cessão perdeu sua causa, sua autêntica razão de ser, deixando de produzir efeitos para o futuro.

Note-se que mesmo a chamada doutrina anticausalista – que nega utilidade a noção jurídica de causa contratual – reconhece que um negócio jurídico deixa de produzir efeitos quando se perde sua justificativa signalagmática, especialmente em situações de coligação contratual em que um contrato só existe por força de outro. Tais autores tratam do tema não sob a rubrica da perda superveniente de causa, mas como impossibilidade superveniente do objeto negocial, reconhecen-do-lhe, todavia, a mesmíssima consequência:

A priori, a ineficácia de um dos contratos coligados acarreta ineficá-cia superveniente dos demais, em decorrência da impossibilidade de

um contrato sejam, em seu conjunto, e reciprocamente, causa das prestações objeto do outro contrato, guardando entre si uma interligação funcional. A causa aqui assume uma concepção também mais ampla do que aquela que informa cada contrato individualizado, e sem prejuízo desta, na medida em que os contratos coligados, conjuntamente, teriam uma suprafunção econômico-social, formando uma ‘unidade econômica’ a partir do sinalagma supracontratual” (SALLES, Raquel Bellini de Oliveira. A Autotutela pelo Inadimplemento nas Relações Contratuais. Tese (Doutorado), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011, p. 122).

50 FRIAS, Ana López. Los Contratos Conexos. Barcelona: Bosch, 1994, p. 300: “(...) una forma de solventar genéricamente el problema pude ser acudir a la teoría de la causa. Y entender que, además, de tener cada contrato su causa ‘individual’ (pues si no, no existirán varios convenios, sino un solo), hay que referir dicho elemento al resultado o finalidad común que persiguen los dos o más contratos celebrados. De manera que se extenderá la ineficacia de un contrato a otro coligado, si, tras la desaparición del primero, el segundo pierde su razón de ser y hace inalcanzable el propósito que vinculaba a ambos convenios.”

51 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes Contratuais no Mercado Habitacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 201.

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alcançar o fim visado pelas partes (impossibilidade superveniente do objeto, compreendido o objeto do contrato enquanto operação econômico-jurídica visada pelas partes, ou perda da função social do contrato, conforme o art. 421 do Código Civil). Os demais contratos somente poderão ser mantidos quando o fim concreto ainda puder ser atingido.52

Assim, o contrato de cessão parcial de direitos econômicos incidentes sobre transferências futuras e eventuais dos atletas de Alpha F.C. deixa de produzir efei-tos no momento em que a patrocinadora deixa de arcar com o custo dos atletas a ponto de colocar em risco iminente de ruptura o próprio vínculo com o clube – seja pela impossibilitação superveniente do objeto (a transferência eventual e futura deixa de ser possível na medida em que o próprio jogador restará liberado do vínculo), seja pela perda superveniente de causa, consubstanciada na eliminação da própria razão de ser do contrato (a manutenção de um vínculo entre clube e jogador).

A mesma perda de causa, aliás, acontece naqueles casos em que o jogador teve novo vínculo empregatício formado com o clube, após o fim da relação de patrocínio com Beta. Tal conclusão deriva, em primeiro lugar, da própria interpre-tação do negócio jurídico de cessão, que determina que o Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças vigora enquanto perdurar “o vínculo contratual com o atleta mencionado na Cláusula Primeira deste instrumento, com a 2ª Contratante”.53 Ora, “o vínculo” aí é, seguramente, o vínculo empregatício existente ao tempo da celebração do instrumento de cessão, não já o que vier a ser formado posteriormente, em novas bases remuneratórias.

Assim, se há novo vínculo empregatício pactuado em bases objetivamente diversas – resultante, portanto, de novação objetiva, cujo efeito primordial é a extinção da relação obrigacional anterior (Código Civil, art. 360, I) –, o novo vínculo não se encontra abrangido pelo anterior instrumento de cessão, que deixou de produzir seus efeitos por esgotamento do prazo de vigência ajustado entre as

52 MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos Coligados no Direito Brasileiro, cit., p. 205. O fim do contrato, note-se, deve ser entendido como “o resultado concreto que o contrato atingiria se todos os seus efeitos se produzissem” (ob. cit., p. 156). Na mesma direção, ver a lição de Di Sabato: “individuato il collegamento, si deduce che i negozi sono in relazione di necessita. Questo significa che la risoluzione per inadempimento dell’uno determina, sí, la risoluzione dell’altro, ma no per inadempimento (perchè no c’è) bensi per impossibilita sopravvenuta” (DI SABATO, Franco. Unita e pluralita di negozi – Contributo alla dottrina del collegamento negoziale. Rivista di diritto civile, vol. I, Padova: Cedam, 1959, p. 438).

53 Cláusula 20ª do Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças firmado entre Beta (1ª Contratante) e Alpha F.C. (2ª Contratante).

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partes. Tal conclusão é reforçada no cenário de coligação contratual, em que a relação de patrocínio já se encontra extinta e um direito meramente eventual da ex-patrocinadora – tecnicamente, uma mera expectativa de direito cuja conversão em direito dependia da ocorrência de fato futuro e incerto – não pode ser esten-dido ad eternum, sob pena de violação ao princípio geral segundo o qual ninguém pode restar obrigado para todo o sempre.54

Registre-se que, ainda que fosse ignorada a coligação contratual, a conclu-são seria juridicamente idêntica, pois, se afastada a coligação, o contrato em questão – Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças – teria que ser qualificado como contrato unilateral e gratuito, já que não atribuía qualquer direito ao Alpha F.C., mas apenas obrigação. Como contrato gratuito, exigiria interpretação restritiva, por força do comando expresso do art. 114 do Código Civil: “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”.

Interpretar restritivamente significa que, entre dois ou mais sentidos possí-veis do texto, deve-se optar sempre pelo de menor amplitude, de menor abrangên-cia. A interpretação restritiva aplicar-se-ia, por conseguinte, a cláusula de vigência, devendo “o vínculo” com o jogador ser interpretado como o vínculo mais restrito, ou seja, o vínculo então vigente, não já o novo vínculo que viesse a se formar futura e eventualmente, com objeto (remuneração) distinto. Também por essa via, portanto, conclui-se que a interpretação contratual resultaria em ser o lapso de vigência e eficácia do Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças restrito a duração do vínculo então existente com o jogador, não abrangendo eventual novo pacto entre clube e atleta, especialmente em cenário no qual a patrocinadora já não contribuía para o custeio do profissional.

Tem-se, em apertada síntese de tudo quanto exposto no presente tópico, que, a partir do prolongado inadimplemento da patrocinadora, uma de duas situa-ções alternativas pode ter vindo a ocorrer: ou (a) o clube assumiu o custo eco-nômico representado por tal parcela, retirando fundamento jurídico ao direito de participação da patrocinadora em futura e eventual transferência do atleta (perda superveniente de causa ou, para alguns autores, impossibilidade superveniente do objeto); ou (b) o clube não assumiu tal custo econômico, sofrendo o efeito do inadimplemento da patrocinadora, isto é, a perda do atleta.

54 Como destacam Humberto Theodoro Junior e Adriana Theodoro de Mello, “a imposição de obrigações eternas ou vitalícias, sem fundamento na lei ou na vontade declarada, fere o senso de liberdade humano e se aproxima da noção de escravidão, tão repudiada pelo Direito e pela Justiça.” (THEODORO JUNIOR, Humberto; MELLO, Adriana Theodoro de. Apontamentos sobre a Responsabilidade Civil na Denúncia dos Contratos de Distribuição, Franquia e Concessão Comercial. Revista de Direito Mercantil. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 20).

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Na primeira hipótese, o clube nada deve a patrocinadora, pois a perda super-veniente de causa (ou impossibilidade superveniente do objeto) retira exigibilidade ao direito de participar dos resultados econômicos da transferência. Na segunda hipótese, igualmente o Alpha F.C. nada deve a Beta, pois não há resultado eco-nômico do qual participar, mas sim perda. É de se examinar, a tal propósito, se a patrocinadora deve algo ao clube em quaisquer das duas hipóteses.

6 Responsabilidade civil da patrocinadora. Pressupostos do juízo de responsabilização: conduta culposa, nexo de causalidade e dano. Liquidação dos danos patrimoniais e morais

Como se sabe, a configuração da responsabilidade civil depende, em regra, de três pressupostos: (a) conduta culposa, entendida como aquela que viola um dever jurídico; (b) nexo de causalidade; e (c) dano patrimonial ou extrapatrimo-nial.55

No caso concreto, verifica-se, por parte da patrocinadora, a violação ao dever jurídico, consubstanciada no descumprimento do seu dever contratual de arcar com o direito de imagem dos atletas. O inadimplemento representa, por definição, conduta culposa, preenchendo-se o primeiro pressuposto da responsabilização. Poder-se-ia afirmar que tal inadimplemento da patrocinadora verifica-se na relação contratual com o jogador, não com o clube. Tal aspecto, contudo, pertence não ao exame da culpa, mas ao exame do nexo de causalidade, campo no qual se deve responder a seguinte indagação: o inadimplemento da patrocinadora produz consequências sobre o clube?

Como já visto, quer por força da legislação desportiva (Lei Pelé, art. 31), quer por força da coligação contratual, o inadimplemento da patrocinadora produz consequências sobre o clube. Tais consequências não são indiretas ou remotas, mas decorrem direta e imediatamente do inadimplemento de Beta. Isto porque o referido inadimplemento, ao privar o jogador da parcela mais importante da sua remuneração por prolongado período, conduz diretamente ao seu desligamento do clube, por força de lei (Lei Pelé, art. 31), sem que se faça necessária a intervenção

55 O primeiro pressuposto é dispensado nas hipóteses de responsabilidade objetiva, assim entendida aquela que independe de culpa, por força de disposição específica da lei ou por aplicação da cláusula geral do parágrafo único do art. 927 do Código Civil (atividades de risco). Para mais detalhes, seja consentido remeter a SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2015, especialmente capítulo 1.

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de qualquer outro fato nessa cadeia causal.56 Estabelece-se, portanto, o nexo cau-sal direito e imediato, como prevê o art. 403 do Código Civil,57 devendo-se registrar que o dispositivo tem sido flexibilizado pela melhor doutrina para abranger o nexo de causalidade indireto, mas necessário,58 embora, no caso concreto, não haja razão para se percorrer tal caminho diante dos fatos verificados.

Note-se que, mesmo que se desconsiderasse a coligação contratual e a pa-trocinadora restasse considerada como personagem estranho a relação contratual entre clube e jogador, a doutrina brasileira reconhece a responsabilidade civil do terceiro que estimula a ruptura de um contrato do qual não é parte – exatamente como ocorre, in casu, em relação a patrocinadora que, com seu inadimplemento, estimula o rompimento da relação de trabalho entre clube e atleta. Trata-se da chamada tutela externa do crédito, bem delineada pelos autores nacionais:

As situações em que é possível invocar a tutela externa cabem em duas categorias: 1. quando o terceiro instiga o devedor a não cumprir a obriga-ção a seu cargo, hipótese em que se fala em indução ao inadimplemento de negócio jurídico alheio; 2. quando o terceiro celebra com o devedor um contrato incompatível com o adimplemento, por parte deste, da obrigação assumida com o credor.59

Desta forma, o terceiro que tenha interesse conflitante com o de algum dos contratantes não pode instigar ou facilitar o inadimplemento do con-trato, caso contrário, será responsabilizado por prejudicar o normal de-senrolar da relação contratual, causando danos específicos ao credor da obrigação. Sua responsabilidade seria decorrência da oponibilidade dos

56 Note-se que o referido dispositivo legal considera o contrato de trabalho do atleta “rescindido”, ipso facto, ou seja, não exigindo qualquer atitude por parte do jogador. Trata-se, na linguagem do art. 31, de rescisão por efeito automático da lei.

57 “Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.”

58 “Apreciado certo dano, temos que concluir que o fato que o originou era capaz de lhe dar causa. Mas – pergunta-se –, tal relação de causa e efeito existe sempre, em casos dessa natureza, ou existiu nesse caso, por força de circunstancias especiais? Se existe sempre, diz-se que a causa era adequada a produzir o efeito; se somente uma circunstancia acidental explica essa causalidade, diz-se que a causa não era adequada” (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências, cit., p. 345). Além disso, cumpre notar que a jurisprudência tem empreendido uma flexibilização ampla da relação de causalidade, como se pode ver de diversos precedentes em que as teorias da causalidade não são aplicadas de modo rígido, ampliando-se o cabimento das indenizações. Sobre o tema: “A indefinição quanto as teorias da causalidade tem servido, muito mais do que a qualquer das soluções teóricas propostas, a garantir, na prática, reparação as vítimas de danos. Os tribunais têm, por toda parte, se valido da miríade de teorias do nexo causal para justificar um juízo antecedente de responsabilização, cuja finalidade consiste, quase sempre, em assegurar a vítima alguma compensação” (SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos, cit., pp. 65-66).

59 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 463.

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contratos, que impõe a este um atuar em conformidade com o devido dever de cautela, consubstanciando-se num dever geral de respeito as situações jurídicas alheias.60

Não se trata, aliás, de inovação puramente doutrinária, já tendo tido o Superior Tribunal de Justiça a ocasião de reconhecer a tutela externa do crédito, como se pode ver, a título exemplificativo, da seguinte decisão:

O tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clás-sicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente po-dem interferir na esfera jurídica de terceiros – de modo positivo ou negativo –, bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias a relação inter partes. As mitigações ocorrem por meio de figuras como a doutrina do terceiro cúmplice e a proteção do terceiro em face de contratos que lhes são prejudiciais, ou mediante a tutela externa do crédito. Em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato.61

Não há, portanto, qualquer dúvida de que, no caso concreto, encontram-se presentes a conduta culposa da patrocinadora e o nexo de causalidade, restando por se examinar o terceiro e último pressuposto da responsabilidade civil: o dano patrimonial ou extrapatrimonial. Há de se verificar, nesse plano, se sofreu o clube algum dano decorrente do inadimplemento da patrocinadora, entendendo-se por dano a violação a um interesse de caráter patrimonial ou extrapatrimonial merece-dor de tutela jurídica.62

Inicie-se o exame pelo dano patrimonial. Cumpre aí distinguir entre duas hipóteses já apontadas neste parecer. Em primeiro lugar, há os casos em que o clube assumiu o custo econômico da parcela de remuneração dos atletas que competia a Beta. Em tais casos, o dano patrimonial afigura-se evidente e de

60 CARDOSO, Patrícia. Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera com o devedor na violação do pacto contratual. In Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 20, Rio de Janeiro: Padma, 2004, p. 139.

61 Superior Tribunal de Justiça, 2ª Turma, Recurso Especial nº 468.062/CE, Relator Ministro Humberto Martins, julgado em 11.11.2008.

62 Na célebre lição de Francesco Carnelutti, “il danno riguarda sempre la situazione della persona rispetto al bene, non il bene in sè. Appunto il concetto di lesione si attaglia all’interesse, non invece al bene (considerato al di fuori dal suo rapporto con un uomo). Questo è il motivo, per cui la formula può e deve essere semplificata in queste parole brevi: lesione di interesse. Non credo che il danno possa essere definito più precisamente di così” (CARNELUTTI, Francesco. Il danno e il reato. Milão: Cedam, 1930, p. 14).

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simples liquidação, bastando verificar o acréscimo de salário concedido a cada jogador após o inadimplemento da patrocinadora, multiplicando-se tal acréscimo pelo número de meses que restavam para o fim do prazo do vínculo contratual entre o clube e o atleta, que correspondia, também, ao prazo do vínculo contratual entre o atleta e a patrocinadora, nos termos do contrato relativo a direitos de imagem.

Ainda nessa primeira hipótese, é certo que o clube, ao assumir o custo econômico dos direitos de imagem, evitou maiores prejuízos para si, razão pela qual o dano patrimonial limita-se ao valor assumido pelo lapso de tempo em que seria de responsabilidade da patrocinadora. O dano patrimonial aí mencionado é líquido, dependendo de cálculo aritmético simples. Da sua liquidez derivam a exigibilidade imediata, a automática incidência de compensação legal nos termos do art. 368 do Código Civil63 e os demais efeitos que a legislação brasileira atribui aos créditos líquidos.

Há, todavia, uma segunda hipótese: aquela em que o inadimplemento levou efetivamente ao desligamento do atleta. Em tais casos, o dano patrimonial exige apuração mais sofisticada, cumprindo verificar quanto o clube perdeu efetivamen-te e quanto deixou de lucrar em relação a cada jogador por ter perdido a oportuni-dade de contar com a atuação do mesmo em sua equipe e, ainda, por ter perdido a oportunidade de negociar sua transferência ou por ter perdido, eventualmente, a oportunidade de negociá-lo por valores mais elevados, diante da necessidade re-pentina de alienação. Tais oportunidades integram o patrimônio de qualquer clube em relação ao seu atleta. Aqui, somam-se, portanto, danos emergentes e lucros cessantes, que demandam apuração em juízo. São créditos ilíquidos de onde de-corre que sua eventual compensação não se dá automaticamente, mas depende da chamada compensação judicial, que ocorre por meio de pedido deduzido em juízo em sede de ação ou reconvenção.64

63 “Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.” Note-se que a compensação aí decorre automaticamente da lei, dispensando qualquer ato de qualquer das partes. Como destaca Caio Mário da Silva Pereira, “na sua sistemática [o Código Civil brasileiro] filiou-se a escola que se poderia dizer francesa, da compensação legal e ipso iure” (PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações, cit., p. 244). Em igual direção, destaca Serpa Lopes: “Desse modo, a extinção de obrigações recíprocas revestidas dos pressupostos acima enumerados independe de manifestação da vontade das partes, ocor-rendo automaticamente” (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil: Obrigações em Geral, vol. II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 255).

64 “A compensação judicial constitui matéria de natureza reconvencional. É pronunciada pelo juiz, quando o devedor, executado por uma dívida, opõe ele próprio um crédito contra o autor, o qual, embora não reunindo as condições integrantes de uma compensação legal, contudo faculta aos tribunais o poder de remediar a ausência da condição falha. Assim, v. g., o locatário contesta ao autor locador, reconvindo para perdas e danos por não ter o segundo providenciado a manutenção do imóvel no estado próprio ao seu destino. Não se trata de crédito ilíquido. O juiz o liquidará, através do processo reconvencional” (LOPES,

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Por fim, é de se examinar se sofreu o clube dano moral. A jurisprudência bra-sileira entende que pessoas jurídicas sofrem dano moral sempre que sua honra objetiva ou algum outro atributo de sua “personalidade” sofre abalo negativo.65 Trata-se de uma extensão dos direitos da personalidade, que o Código Civil manda aplicar, no que couber, as pessoas jurídicas: “Art. 52. Aplica-se as pessoas jurídi-cas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.

No caso concreto, verifica-se do material apresentado a ocorrência de episó-dios que provocaram desnecessária exposição do clube perante a opinião pública por força da atuação da ex-patrocinadora. A não renovação do vínculo de patrocínio foi cercada de declarações pejorativas, voltadas contra a honra objetiva da cente-nária instituição desportiva.

Confira-se parte das declarações extraídas das entrevistas contidas em re-portagens jornalísticas apensas a consulta:

O Alpha F.C., em outras épocas, disputava a Libertadores e o es-tadual. Hoje, só disputa o estadual e terminou em quarto (na fase classificatória). 66

Vamos torcer para que o Alpha F.C. consiga o resultado, mas vamos parar com mentiras ou farsas. A direção do Alpha F.C. hoje caminha dessa forma.67

Não é interesse da Beta morrer abraçado aos jogadores do Alpha F.C., como se fosse um grande funeral.68

O que mais me incomoda é a desfaçatez da direção. Falaram muito que não precisavam de Beta. Há um erro. A questão não é Beta. E, sim, a parceria que resgatou o orgulho do torcedor. O Ômega, por exemplo, só existe hoje como ídolo do Alpha F.C. por causa de Beta.69

Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil: Obrigações em Geral, cit., p. 266). É esta também a posição da jurisprudência brasileira: “A autora não se conforma com a espécie de compensação consagrada pelo r. acórdão, ao abater o prejuízo por ela sofrido pelo atraso com os pagamentos feitos a mais. Diz que tais acréscimos decorrem de ‘arredondamentos’ das medições, prática comum em construções dessa envergadura. Porém este fato não ficou reconhecido nas instancias ordinárias (Súmula 7/STJ). Ademais, é possível ao Juiz considerar os direitos contrapostos, avaliá-los e definir o saldo que toca a cada um deles pagar, efetuando compensação judicial, procedimento que o nosso sistema admite e não exige dos créditos liquidez e certeza (...)” (Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, Recurso Especial nº 191.802/SP, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 2.2.1999).

65 Superior Tribunal de Justiça, Súmula 227: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.66 Declaração constante da matéria intitulada “Úpsilon quer ser presidente do Alpha F.C. e convida Sigma

para voltar em 2017”, publicada em 15.4.2015, publicada em site e anexa a consulta.67 Declaração constante da matéria intitulada “Úpsilon quer ser presidente do Alpha F.C. e convida Sigma

para voltar em 2017”, publicada em 15.4.2015, publicada em site e anexa a consulta.68 Informações constantes da matéria intitulada “Úpsilon confirma papo com C.R. Delta e deixa claro que

admite negociar Xi”, publicada em 4.1.2015, disponível em site e anexa a consulta.69 Fato mencionado na consulta e em reportagem anexa a mesma, intitulada “Oposição, Úpsilon critica ano

do Alpha F.C.: ‘Horroroso’”, publicada em 10.12.2015, disponível em site e anexa a consulta.

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Além disso, ele e o Zeta sempre quiseram provar que haveria vida sem Beta. E provaram o contrário: não houve até agora. Acho que a torcida ficou traumatizada. Trocam técnicos de montão e não con-seguem títulos. O último foi em 2012. Aliás, dois títulos: Carioca e Brasileiro, com o patrocínio de Beta.70

Objetivamente, tais declarações atentam contra diferentes aspectos da ins-tituição mencionada: (a) reduzem seu mérito desportivo (“(...) em outras épocas, disputava a Libertadores e o estadual. Hoje, só disputa o estadual e terminou em quarto”); (b) sugerem o desmantelamento da equipe do clube (“Não é interesse da Beta morrer abraçado aos jogadores do Alpha F.C. como se fosse um grande funeral”); (c) desqualificam sua gestão (“o que mais me incomoda é a desfaçatez da direção”; “trocam técnicos de montão e não conseguem títulos”; “vamos parar com mentiras ou farsas. A direção do Alpha F.C. hoje caminha dessa forma”); e (d) reduzem as conquistas do clube a um produto da parceria extinta (“o Ômega, por exemplo, só existe hoje como ídolo do Alpha F.C. por causa de Beta”), sugerindo que não há futuro para o clube após o fim da relação com a patrocinadora.

As declarações citadas revelam que a conduta da patrocinadora foi inteira-mente diversa daquela que seria de se esperar de um parceiro de longos anos. O efeito lesivo sobre a honra objetiva do clube – assim entendido o sentimento que lhe reservam a sociedade e, em particular, a coletividade de seus torcedores – afigura-se ainda maior por se tratar de um conjunto de declarações emitidas pela ex-patrocinadora, já que o público em geral presume que o declarante tem profundo conhecimento do que ocorre no dia a dia do clube e nos bastidores de treinos, jogos e competições.

O dano moral, como se vê, não decorre do inadimplemento contratual em si, como se poderia supor a primeira vista, mas da violação a outros deveres anexos que a patrocinadora, como ex-parceira, continuava obrigada a respeitar, tais como deveres de confidencialidade, deveres de proteção, de informação e de lealdade. Como já se destacou, tais deveres anexos, baseados na boa-fé objetiva, continuam produzindo efeitos (pós-eficácia) depois da extinção da relação obrigacional:

(...) extinta uma obrigação, podem subsistir, a cargo das antigas par-tes, deveres de proteção, de informação e de lealdade. No primeiro caso, constata-se que, concluído e extinto um processo contratual, as partes continuam vinculadas, em termos específicos, a não provoca-rem danos mútuos nas pessoas e nos patrimónios uma da outra. (...). No segundo, assiste-se a manutenção, a cargo das antigas partes

70 Informações constantes da matéria intitulada “Alpha F.C.: Úpsilon vai lançar candidatura a presidência no segundo semestre”, publicada em 25.2.2016, disponível em site e anexa a consulta.

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num contrato, de deveres de informação relacionados com o acto an-tes efectivado: o dever de explicar o funcionamento de uma máquina de tipo novo, antes vendida, ou de prevenir perigos comportados pelo objeto de uma transação encerrada. No terceiro, verifica- se a persis-tência, depois de finda uma situação obrigacional, do dever de não adoptar atitudes que possam frustrar o objectivo por ela prosseguido ou que possam implicar, mediante o aproveitar da antiga posição contratual, a diminuição das vantagens ou, até, o infligir danos ao ex-parceiro. Integram-se, aqui, sub-hipóteses de grande relevo econó-mico, tais como o dever de fornecer peças sobresselentes e de velar pela assistência técnica da coisa cedida, o dever de não concorrência ou o dever de sigilo perante as informações obtidas na constancia da vinculação extinta.71

Os deveres acessórios (de proteção, de informação e de lealdade), mesmo posteriormente ao cumprimento da obrigação, devem ser observados, sob pena de ser responsabilizado aquele que provocar danos a outra parte, em razão da violação esses deveres.72

Configurado, portanto, o dano moral, decorrente da violação a deveres ane-xos em sede pós-contratual que se identifica no caso concreto. A quantificação da verba devida a título de compensação pelo dano moral sofrido é reservada ao arbitramento judicial, consistindo em matéria que pode variar sensivelmente conforme o conjunto probatório constante dos autos.

7 Resposta aos quesitos

Diante de todo o exposto, seguem as respostas aos quesitos formulados: Quesito 1 – Pode Beta cobrar do Alpha F.C. quaisquer valores a título de

direito de participação econômica em relação às transferências daqueles atletas em face dos quais inadimpliu sua obrigação de pagamento de direitos de imagem?

Resposta: Não. Quando se observa o conjunto de contratos celebrados entre as partes, e não apenas cada contrato isoladamente, verifica-se que o direito da

71 CORDEIRO, António da Rocha e Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil, cit., pp. 628-629.72 DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade Pós-contratual no Código Civil e no Código de Defesa do

Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 154.

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Beta a participar dos resultados econômicos de transferências futuras e even-tuais dos atletas consistia em contrapartida a assunção pela patrocinadora da maior parte do custo econômico representado pelos jogadores de renome, até o fim do respectivo vínculo contratual com o clube – o que era implementado por meio do contrato de imagem celebrado com cada um desses atletas. No ambito dessa coligação contratual, o direito de participação econômica da patrocinadora encontrava, portanto, correspectividade na sua obrigação de arcar com a maior parcela do custo do jogador, consistindo tal obrigação em verdadeira raison d’être, em autêntico fundamento jurídico daquele direito. O continuado inadimplemento por Beta da sua obrigação de arcar com os direitos de imagem dos jogadores, a ponto de se tornar iminente a ruptura dos seus vínculos com o clube, por força do art. 31 da Lei Pelé, traz relevantes consequências jurídicas. Em primeiro lu-gar, impede o exercício do direito de cobrança por Beta, a luz do comportamento adotado pela própria patrocinadora que estimulou a realização das transferências expressamente – por meio de reuniões com os jogadores sem a participação do clube – e também tacitamente, por meio de sua conduta antijurídica (descum-primento da obrigação assumida), já que a legislação brasileira determinava a automática rescisão do vínculo empregatício com o clube se os direitos de ima-gem permanecessem em atraso por três meses. Nesse cenário, princípios como nemo auditur propriam turpitudinem allegans e nemo potest venire contra factum proprium impedem o exercício da cobrança por Beta, já que permitir a cobrança seria premiar a patrocinadora pela sua própria torpeza ou, ao menos, consagrar seu comportamento contraditório, em afronta a boa-fé objetiva e, mais especifi-camente, ao disposto no art. 187 do Código Civil, conforme detalhado no corpo do parecer. Além disso, a cobrança por Beta consubstancia afronta ao art. 129 da mesma codificação, já que a ocorrência do evento futuro e incerto (condição) – transferência de jogadores – da qual dependia o surgimento do direito da patro-cinadora foi deliberadamente levada a cabo pela própria patrocinadora. Assim, tal condição deve ser reputada “não verificada”, como determina o Código Civil, não se lhe admitindo a geração de qualquer efeito entre as partes. Por fim, mesmo que se ignorasse a conduta adotada, no caso concreto, por Beta, a cobrança se mostraria juridicamente inviável diante da privação superveniente de causa do instrumento de cessão parcial. De fato, o inadimplemento dos direitos de imagem rompia o sinalagma contratual existente entre tal obrigação de pagar e o direito cedido pelo clube a patrocinadora, privando esse último de fundamento jurídico. A perda de inexigibilidade derivada do rompimento sinalagmático é bem visuali-zada na conhecida exceptio non adimpleti contractus (exceção do contrato não cumprido), usualmente descrita pela doutrina brasileira como uma suspensão de exigibilidade da prestação, pois se presume que o inadimplemento possa ser ain-da corrigido, situação na qual a prestação voltaria a se tornar exigível, desde que

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cumprida a prestação contraposta. Há casos, todavia, em que o inadimplemento da prestação contraposta pode se tornar irremediável (como no célebre exemplo da obrigação de confeccionar e entregar vestido de noiva, o qual, após a data do casamento, torna-se inútil ao credor). Em tais casos, a suspensão de exigibilidade da prestação deixa de ser temporária para se tornar definitiva, pois o sinalagma não pode mais ser restaurado de modo útil ao credor. É exatamente o que ocor-re no caso que ora se examina: o continuado inadimplemento da patrocinadora, diante do prazo estrito de três meses mencionado pelo art. 31 da chamada Lei Pelé, confrontou o clube com ameaça iminente de perda do vínculo com o atleta, nos termos da mesma Lei Pelé.73 Assim, ou o clube sofria passivamente tal perda ou agia para evitá-la. Nos casos em que o clube agiu para evitar a perda – procu-rando o jogador, como narra a consulta, para reestabelecer as bases do contrato, arcando com os direitos de imagem ou elevando substancialmente o seu salário no afã de suprir a ausência de pagamento pela patrocinadora –, ocorreu uma no-vação objetiva na relação clube-jogador: alterou-se o seu objeto, fazendo com que a prestação pecuniária a cargo do clube absorvesse no todo ou em grande parte a parcela econômica que o jogador tinha direito a receber da patrocinadora. Com isso, o clube passou a arcar integralmente com o custo econômico do jogador, de modo que o direito da patrocinadora de participar de uma eventual transferência futura perdeu sua razão de ser, sua justificativa jurídica ou, em termos mais téc-nicos, sua causa.

Quesito 2 – A resposta seria a mesma se o Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças fosse analisado isoladamente?

Resposta: Visto isoladamente, o Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças configuraria um negócio jurídico unilateral e gratuito, por meio do qual o clube simplesmente “doava” ou, mais tecnicamente, cedia gratuitamente uma parcela substancial dos direitos econômicos que detinha sobre cada jogador. A tal propósito, o art. 114 do Código Civil determina que os negócios jurídicos gratuitos devem ser interpre-tados restritivamente, significando dizer que, entre dois sentidos possíveis do

73 Relembre-se, ainda uma vez, a redação do dispositivo legal: “Art. 31. A entidade de prática desportiva empregadora que estiver com pagamento de salário ou de contrato de direito de imagem de atleta profissional em atraso, no todo ou em parte, por período igual ou superior a três meses, terá o contrato especial de trabalho desportivo daquele atleta rescindido, ficando o atleta livre para transferir-se para qualquer outra entidade de prática desportiva de mesma modalidade, nacional ou internacional, e exigir a cláusula compensatória desportiva e os haveres devidos”.

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texto, deve se optar sempre pelo de menor abrangência. Assim, a cláusula de vigência do Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças que declara que o instrumento vigorará enquanto perdurar “o vínculo” entre clube e jogador deve ser interpretada como se referindo ao vínculo então vigente entre clube e jogador. Uma vez novado o vínculo por meio de sua alteração objetiva – alteração do valor da remuneração paga a título de salário ou incorporação de direitos de imagem –, tem-se novo vínculo, pois o efeito primordial da novação é a extinção do vínculo obrigacional anterior. Assim, não resta a Beta direito a participação econômica sobre qualquer atleta cujo vínculo empregatício vigente ao tempo da celebração do Instrumento Particular de Cessão Parcial de Benefício Financeiro com a Transferência de Atleta e Outras Avenças tenha sido novado (novação objetiva) com alteração do valor da remuneração paga.

Quesito 3 – O Alpha F.C. tem direito de ser ressarcido por Beta dos custos incorridos pelo clube para fazer frente ao inadimplemento dos direitos de imagem devidos pela sua ex-patrocinadora aos atletas, especialmente à luz do disposto no art. 31 da Lei Pelé?

Resposta: Sim. Como se sabe, a configuração da responsabilidade civil de-pende, em regra, de três pressupostos: (a) conduta culposa, entendida como aquela que viola um dever jurídico; (b) nexo de causalidade; e (c) dano patrimo-nial ou extrapatrimonial. No caso concreto, verifica-se, por parte da patrocinadora, a violação ao dever jurídico, consubstanciada no descumprimento do seu dever contratual de arcar com o direito de imagem dos atletas. O inadimplemento repre-senta, por definição, conduta culposa. Tal conduta culposa produz efeitos diretos e imediatos sobre o clube, pois, ao privar o jogador da parcela mais importante da sua remuneração por prolongado período, o inadimplemento da patrocinadora conduz direta e necessariamente ao seu desligamento do clube, por força de lei, sem exigência de intervenção de qualquer outro fato nessa cadeia causal. Estabelece-se, portanto, o nexo causal direito e imediato, como prevê o art. 403 do Código Civil. Mesmo que se desconsiderasse a coligação contratual e a patro-cinadora restasse considerada como personagem estranho a relação contratual entre clube e jogador, a doutrina reconhece a responsabilidade civil do terceiro que estimula a ruptura de um contrato do qual não é parte (tutela externa do crédito) – exatamente como ocorre, in casu, em relação a patrocinadora que, com seu inadimplemento, estimula o rompimento da relação de trabalho entre clube e atle-ta. Quanto ao último pressuposto da responsabilidade civil, verifica-se, em primei-ro lugar, que o clube sofreu dano patrimonial, cumprindo distinguir aí entre duas

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hipóteses: (a) casos em que o clube assumiu o custo econômico da parcela de remuneração dos atletas que competia a Beta, em que o dano patrimonial afigura- se evidente e de simples liquidação, bastando verificar o acréscimo de salário concedido a cada jogador após o inadimplemento da patrocinadora, multiplicando- se tal acréscimo pelo número de meses que restavam para o fim do prazo do vínculo contratual entre o clube e o atleta, que correspondia, também, ao prazo do vínculo contratual entre o atleta e a patrocinadora, nos termos da cláusula 1a do contrato relativo a direitos de imagem; (b) casos em que o inadimplemento levou efetivamente ao desligamento do atleta, sendo certo que, nessa última hipótese, o dano patrimonial exige apuração mais sofisticada, cumprindo verificar quanto o clube perdeu efetivamente e quanto deixou de lucrar em relação a cada jogador por ter perdido a oportunidade de contar com a atuação do mesmo em sua equipe e, ainda, por ter perdido a oportunidade de negociar sua transferência ou por ter perdido, eventualmente, a oportunidade de negociá-lo por valores mais elevados, diante da necessidade repentina de alienação. Tais oportunidades integram o pa-trimônio de qualquer clube em relação ao seu atleta. Aqui, somam-se, portanto, danos emergentes e lucros cessantes, que demandam apuração em juízo. Por fim, é de se examinar se sofreu o clube dano moral. A jurisprudência brasileira entende que pessoas jurídicas sofrem dano moral sempre que sua honra objetiva ou algum outro atributo de sua “personalidade” sofre abalo negativo (STJ, Súmula 227). Trata-se de uma extensão dos direitos da personalidade, que o Código Civil manda aplicar, no que couber, as pessoas jurídicas (art. 52). No caso concreto, verifica-se do material apresentado a ocorrência de episódios que provocaram desnecessária exposição do clube perante a opinião pública por força da atuação da ex-patrocinadora. A não renovação do vínculo de patrocínio foi cercada de de-clarações pejorativas, voltadas contra a honra objetiva da centenária instituição desportiva. Objetivamente, tais declarações atentam contra diferentes aspectos da instituição mencionada: (a) reduzem seu mérito desportivo (“(...) em outras épocas, disputava a Libertadores e o estadual. Hoje, só disputa o estadual e terminou em quarto”); (b) sugerem o desmantelamento da equipe do clube (“Não é interesse de Beta morrer abraçado aos jogadores do Alpha F.C., como se fosse um grande funeral”); (c) desqualificam sua gestão (“o que mais me incomoda é a desfaçatez da direção”; “trocam técnicos de montão e não conseguem títulos”; “vamos parar com mentiras ou farsas. A direção do Alpha F.C. hoje caminha dessa forma”); e (d) reduzem as conquistas do clube a um produto da parceria extinta (“o Ômega, por exemplo, só existe hoje como ídolo do Alpha F.C. por causa de Beta”), sugerindo que não há futuro para o clube após o fim da relação com a patrocinadora. O efeito lesivo sobre a honra objetiva do clube – assim entendido o sentimento que lhe reservam a sociedade e, em particular, a coletividade de seus torcedores – afigura-se ainda maior por se tratar de um conjunto de decla-rações emitidas pela ex-patrocinadora, já que o público em geral presume que o

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declarante tem profundo conhecimento do que ocorre no dia a dia do clube e nos bastidores de treinos, jogos e competições. O dano moral, como se vê, não decor-re do inadimplemento contratual em si, mas da violação a outros deveres anexos que a patrocinadora, como ex-parceira, continuava obrigada a respeitar, tais como deveres de confidencialidade, deveres de proteção, de informação e de lealdade. Tais deveres anexos, baseados na boa-fé objetiva, continuam produzindo efeitos (pós-eficácia) depois da extinção da relação obrigacional.

Quesito 4 – Em caso afirmativo, os valores devidos ao Alpha F.C. a título de ressarcimento podem ser compensados com eventuais valores que venham, por hipótese, a serem considerados devidos pelo clube à Beta, em virtude dos contratos celebrados entre as partes?

Resposta: Sim. Nos casos em que o clube assumiu o custo econômico dos direitos de imagem, o dano patrimonial limita-se ao valor assumido pelo lapso de tempo em que seria, ainda, de responsabilidade da patrocinadora. Tal dano patri-monial afigura-se líquido, sendo, por essa razão, objeto de incidência da compen-sação legal que, nos termos do art. 368 do Código Civil, ocorre automaticamente, dispensando qualquer ato das partes. Se houver, portanto, débitos do clube para com a patrocinadora, igualmente líquidos, a compensação não apenas se impõe, como já terá juridicamente ocorrido. Nos casos em que o clube não assumiu o cus-to econômico dos direitos de imagem do jogador, o dano patrimonial sofrido, como visto em resposta ao quesito anterior, demanda liquidação, por envolver perdas de oportunidades que integravam o patrimônio do clube. Aqui o dano patrimonial con-substancia crédito ilíquido, de onde decorre que sua eventual compensação não se dá automaticamente, mas depende da chamada compensação judicial, que ocorre por meio de pedido deduzido em juízo em sede de ação ou reconvenção. O mesmo vale para o crédito decorrente da compensação dos danos morais, cuja quantificação depende de arbitramento judicial.

Eis as respostas que refletem, em minha opinião, o correto entendimento da matéria a luz do direito brasileiro.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SCHREIBER, Anderson. Efeitos do inadimplemento em relação triangular coli-gada entre clube de futebol, patrocinadora e atletas. A responsabilidade post factum finitum e a chamada perda superveniente da causa do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 157-193, jul./set. 2017. Parecer.

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A CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA IPSO FACTO E A CRISE DA EMPRESA: PARÂMETROS

PARA EXAME DA LEGITIMIDADE DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO EM CASO DE

INSOLVÊNCIA DO CONTRATANTE

Victor WillcoxMestrando em Direito Civil na UERJ.

Procurador do Município do Rio de Janeiro. Advogado.

Sumário: 1 Efeitos da recessão econômica sobre os contratos business-to-business – 2 A cláusula resolutiva expressa como instrumento de repartição de riscos entre os contratantes – 3 O risco de insolvência, falência e recuperação judicial ou extrajudicial – 4 Possíveis parametros para ponderação dos interesses colidentes – 5 Conclusão

1 Efeitos da recessão econômica sobre os contratos business-to-business

Nos últimos anos, como se sabe, o Brasil tem passado por uma crise eco-nômica severa, o que tem contribuído para que os requerimentos de falência e recuperação judicial venham atingindo números recordes.1

Em 2016, por exemplo, as empresas integrantes do grupo econômico Oi requereram recuperação judicial, indicando um passivo total de aproximadamente R$ 65 bilhões a época.2

No requerimento de recuperação judicial, as empresas requerentes alega-ram a existência de contratos em vigor com diversos fornecedores, com vistas a

1 “Pedidos de recuperação judicial batem recorde em 2015, aponta Serasa”. Valor Econômico, 11.1.2016. Disponível em: <http://www.valor.com.br/brasil/4386032/pedidos-de-recuperacao-judicial-batem-recorde-em-2015-aponta-serasa>. Acesso em: 20 jul. 2017. No ano seguinte, o recorde foi superado: “Pedidos de recuperação judicial batem recorde em 2016, nota Serasa”. Valor Econômico, 3.1.2017. Disponível em: <http://www.valor.com.br/brasil/4824392/pedidos-de-recuperacao-judicial-batem-recorde-em-2016-nota-serasa>. Acesso em: 20 jul. 2017.

2 “Oi pede recuperação judicial de R$ 65 bilhões, a maior da história do Brasil”. Folha de S. Paulo, 20.6.2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/06/1783621-oi-pede-recuperacao-judicial-de-r-53-bilhoes.shtml>. Acesso em: 20 jul. 2017.

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prestação de serviços acessórios (tais como interconexão, constituição de redes de telecomunicações, direitos de passagem, etc.), cuja eventual resolução, a seu ver, poderia inviabilizar sua atividade-fim (qual seja, a prestação dos serviços de comunicação aos seus clientes).

Por tal razão, as requerentes do grupo Oi postularam a concessão de liminar que lhes assegurasse a continuidade dos referidos contratos, o que foi deferido pelo Juízo da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro. O Juiz Fernando Cesar Ferreira Viana entendeu que, “no confronto entre a aplicabilidade da cláusula que prevê a rescisão contratual e as consequências danosas da interrupção de serviços es-senciais e contínuos, prestados e direcionados a consumidores, deve prevalecer aquele que atende a função social do contrato, vale dizer, prevalece a suspensão da eficácia da referida clausula contratual”.3

O exemplo citado evidencia como o atual cenário de recessão econômica tende a reverberar nos contratos em curso, celebrados pela parte falida ou em recuperação judicial ou extrajudicial.

Assim como as empresas do grupo Oi, na vasta maioria dos contratos empre-sariais (usualmente denominados business-to-business), especialmente quando dotados de maior complexidade, estipula-se cláusula resolutiva expressa, con-templando a possibilidade de qualquer das partes resolver a avença em caso de decretação de falência ou deferimento de recuperação judicial ou extrajudicial da outra parte. Eis a chamada cláusula ipso facto.

Por vezes, na praxe negocial, as partes vão além, pactuando que o contrato se dará por resolvido mediante a simples instauração de requerimento de falência ou recuperação judicial ou extrajudicial (sendo prescindível, em tais hipóteses, a sua efetiva chancela pelo Judiciário).

A esse respeito, a legislação falimentar em vigor dispõe, de forma genérica, que os contratos bilaterais não se resolvem automaticamente pela falência (Lei n. 11.101/05, art. 117, caput). No que tange a recuperação judicial, a lei prevê que, em princípio, as obrigações anteriores ao seu deferimento observarão as condições originalmente contratadas (Lei n. 11.101/05, art. 49, §2º).

Tais dispositivos têm dado margem a controvérsias, tal como se viu no caso da Oi. Por um lado, reconhecer a resolução automática dos contratos em vigor poderia ir de encontro a finalidade precípua da Lei n. 11.101/05, consistente na preservação da empresa, em virtude de sua função social.

Por outro lado, obrigar o credor a prosseguir em uma relação contratual com parte insolvente poderia lhe impor ônus demasiadamente gravoso, especialmente

3 Decisão proferida pelo Juízo da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, em 29.6.2016, nos autos do processo n. 0203711-65.2016.8.19.0001 (cf. fls. 89.511 do processo eletrônico).

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nas hipóteses de cláusula resolutiva expressa assegurando a possibilidade de resolução do contrato, em caso de falência ou recuperação judicial da outra con-tratante.

Tendo em vista o problema narrado acima, que pode vir a se tornar recorrente no Judiciário, busca-se, no presente trabalho, examinar a eficácia da cláusula resolutiva ipso facto em consonancia com os valores previstos no ordenamento civil-constitucional brasileiro.

2 A cláusula resolutiva expressa como instrumento de repartição de riscos entre os contratantes

Inicialmente, é necessário analisar o conceito e a função desempenhada pela cláusula resolutiva expressa nas relações contratuais, a luz do ordenamento jurídico vigente.

Doutrinariamente, a cláusula resolutiva expressa tem sido conceituada como estipulação pactuada nos contratos bilaterais, por meio da qual a qualquer dos contratantes, caso não prefira reclamar o cumprimento da prestação, é assegura-da a faculdade de provocar a resolução do contrato.4 Ruy Rosado de Aguiar Júnior destaca que a prestação contemplada na cláusula resolutiva expressa deverá ser “relevante para a economia do contrato”.5

Como é intuitivo, a cláusula resolutiva expressa tem como fundamento a autonomia privada.6 Isto porque, se a própria autonomia privada é facultada a cria-ção do vínculo contratual, mediante regulamentação dos interesses das partes, por uma questão de paralelismo de formas, as partes também podem regular as hipóteses em que o vínculo contratual poderá ser desfeito. É a própria autonomia privada que dá ensejo a esta modalidade de autotutela contratual,7 dispensando- se a chancela do Estado, por meio do Poder Judiciário, para que as partes se liberem do vínculo contratual.

4 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado segundo a Constituição da República. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 118-119.

5 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil. Vol. VI, tomo II: da extinção do contrato (Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 394.

6 “Fruto da autonomia privada dos contratantes, que ajustam, livre e conscientemente, sua inclusão no contrato, a cláusula resolutiva expressa permite ao credor desvincular-se de relação jurídica disfuncionali-zada, incapaz de cumprir o programa negocial traçado pelas partes, de forma célere, mediante simples de-claração receptícia de vontade” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação. 2015. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015, p. 8).

7 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 55.

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A maior vantagem proporcionada pela pactuação de cláusula resolutiva expressa parece residir na possibilidade de resolução extrajudicial, mediante simples declaração receptícia de vontade, a operar efeitos de pleno direito, tal como prevê o art. 474 do Código Civil. Afinal, o dinamismo do ambiente negocial demanda a resolução de relação jurídica disfuncionalizada com segurança, previ-sibilidade e celeridade.8

Segundo Aline de Miranda Valverde Terra, a autonomia privada manifestada na redação da cláusula resolutiva expressa não é absolutamente insindicável, nem infensa a eventual controle de merecimento de tutela.9 Sobre os possíveis problemas que podem advir da cláusula resolutiva expressa, adverte Ruy Rosado de Aguiar Júnior:

A cláusula tem a vantagem de permitir a regulação dos interesses das partes no caso de inadimplemento; daí a tendência de vir a ser utilizada com maior frequência no futuro imediato. Traz benefícios, mas também traz desvantagens, pois facilita a destruição dos con-tratos e permite a parte dominante impor-se ao outro, ainda que haja desproporção entre os efeitos da resolução e os do inadimplemento. Por isso, corrente importante atribui aos juízes um poder moderador, e estes têm invocado o princípio da boa-fé para resguardo do princípio de justiça.10

8 Nesse sentido: “(...) a cláusula resolutiva expressa contribui para a criação de ambiente negocial mais seguro e previsível para os contratantes: permite-lhes preestabelecer livre e conjuntamente, em que situa-ções a relação poderá ser resolvida por não ser capaz de promover os interesses concretamente perse-guidos, e faculta a parte lesada livrar-se imediatamente da relação disfuncional, imprestável a finalidade a que se dirige, sem que, para isso, tenha de se submeter as agruras de um processo judicial” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 235).

9 “O mero consenso na definição do seu conteúdo, conquanto seja um aspecto fundamental, não lhe garante a legitimidade necessária ao seu merecimento de tutela. Não basta, portanto, a conformidade procedimental na elaboração da cláusula, a constatação de que o seu teor resultou da vontade livre, infor-mada e consciente de ambas as partes; é indispensável averiguar sua adequação a economia contratual, tomando como parametro a boa-fé objetiva, sob pena de se produzirem cláusulas distorcidas, e, por isso, inválidas.

Qualquer que seja o suporte fático da cláusula resolutiva expressa, a investigação a respeito da legitimida-de da autonomia privada na sua elaboração requer a análise sistemática do contrato, avaliando a cláusula no contexto negocial unitário, em cotejo com todas as demais disposições contratuais. O exame não pres-cinde da consideração do programa contratual e dos concretos interesses perseguidos pelas partes. Im-perativo considerar que a cláusula resolutiva encerra uma das várias peças do intrincado quebra-cabeças que é o arranjo negocial, de modo que apenas partindo da visão global do ajuste é possível ter a exata noção dos reais termos do regulamento de interesses e, consequentemente, da efetiva conformação da cláusula a legalidade constitucional” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 74).

10 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil, vol. VI, tomo II: da extinção do contrato, cit., p. 397.

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A CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA IPSO FACTO E A CRISE DA EMPRESA: PARÂMETROS PARA EXAME...

O evento contemplado na cláusula resolutiva expressa há necessariamente que ser relevante, de modo que a sua ocorrência comprometa substancialmente o atingimento do resultado útil programado.11 O descumprimento da obrigação contemplada na cláusula resolutiva expressa deve acarretar “un’alterazione tale da non consentire più la realizzazione della funzione economica del contratto e, di conseguenza, una situazione che rende privo di giustificazione il vincolo contrattuale”.12

Além disso, a redação da cláusula resolutiva expressa deve enumerar, da maneira mais específica possível, as obrigações que, uma vez violadas, dariam ensejo a resolução.13 14 Ruy Rosado de Aguiar Júnior pondera que os cuidados que se impõem na redação da cláusula resolutiva se justificam na medida em que o exercício do direito de resolver o contrato é uma medida drástica ao programa contratual:

Para validade e eficácia da cláusula resolutiva, não se exige fórmula sacramental, desde que redigida com clareza, de modo a evidenciar a real intenção das partes quanto ao efeito extintivo da inexecução, e resultar do expresso acordo de vontade dos contratantes. Isso por-que tal cláusula atribui ao descumprimento da obrigação o mais grave dos efeitos a incidir sobre a relação, que é a sua extinção, com a restituição a situação anterior, e o pagamento de indenização pelos danos resultantes do descumprimento (...).

A cláusula deve referir com precisão qual a prestação cujo descumpri-mento resolverá o contrato, a natureza desse descumprimento e seu

11 Neste sentido: “A elaboração da cláusula resolutiva expressa pressupõe a avaliação das partes sobre a relevancia das obrigações assumidas no contexto do escopo econômico do contrato; a inclusão da obrigação no suporte fático indicará que o seu cumprimento é indispensável para a consecução do resultado útil programado e, por conseguinte, para a realização do programa negocial. Significa, em definitivo, que os contratantes, de comum acordo, reconhecem que a sua inexecução fere, irremediavelmente, o interesse do credor na prestação” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 75).

12 SERVER, Rafael Verdera. Inadempimento e risoluzione del contratto. Padova: CEDAM, 1994, p. 95.13 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais

para sua fixação, cit., p. 82. 14 A referência a exigência de especificidade das obrigações contempladas na cláusula resolutiva expressa

é também recorrente na doutrina italiana, consoante observa Perlingieri: “I contraenti possono convenire espressamente che il contratto si risolva qualora una determinata obbligazione non sia adempiuta secondo le modalita stabilite. In presenza di un tale inadempimento, pur se di scarsa importanza, il contratto si risolve in quanto le parti hanno concordato che esso giustifica la risoluzione. Le parti devono comunque indicare specificamente le obbligazioni e le modalita di adempimento alle quali attribuiscono carattere di essenzialita in quanto un’indicazione generica è considerata di mero stile e quindi priva di valore impegnativo” (PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. 7. ed. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 2014, p. 638).

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efeito. A menção ao cumprimento de todas as prestações deve ser vista como uma cláusula de estilo, não propriamente uma cláusula resolutiva.15

O fato de as partes contemplarem determinada obrigação contratual na cláu-sula resolutiva expressa leva a “presunção de sua essencialidade para a realiza-ção do escopo negocial”.16 Tal presunção poderá, eventualmente, ser infirmada pelo devedor, se demonstrar que o não cumprimento perfeito de tal obrigação não comprometeria a essencialidade do programa negocial, hipótese em que a cláusula resolutiva violaria a boa-fé objetiva.17

É imprescindível, portanto, que o programa negocial seja substancialmente impactado pelo descumprimento (ou cumprimento imperfeito) da obrigação con-templada na cláusula resolutiva expressa:

A cláusula resolutiva expressa não se presta a promoção de capri-chos, de modo que apenas os atrasos ou as imperfeições que ofen-dam substancialmente a obrigação, e comprometam a consecução do programa negocial, podem integrar seu suporte fático. Não é su-ficiente que a prestação se torne menos valiosa, sem repercussões na sua utilidade; indispensável que se torne incapaz de promover o interesse perseguido pelas partes.18

Em sentido aparentemente contrário, no ordenamento italiano, Vincenzo Roppo mostra-se refratário a eventual controle judicial da relevancia que a obriga-ção inadimplida possua na economia contratual. Para o autor, a esfera de atuação do Judiciário estaria adstrita a averiguação do grau de descumprimento ou cum-primento imperfeito da obrigação contemplada na cláusula resolutiva expressa.19

15 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil, vol. VI, tomo II: da extinção do contrato, cit., p. 399-400.

16 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 80-81.

17 “(...) a inclusão de certa obrigação na cláusula resolutiva expressa, de comum acordo pelas partes, conduz a presunção de sua essencialidade para a realização do escopo negocial. No entanto, como não há ato de autonomia imune ao filtro da legitimidade, afasta-se o merecimento de tutela do exercício da autonomia quando restar demonstrado, pelo devedor, que a previsão daquela obrigação no suporte fático da cláusula viola a boa-fé objetiva, tendo em vista sua incapacidade de afetar o equilíbrio econômico do contrato e impedir a consecução do resultado útil programado, a luz do concreto programa negocial” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 80-81).

18 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 93.

19 “(...) è escluso il sindacato giudiziale sull’importanza che l’obbligazione inadempiuta ha nell’economia del contratto; ma non anche quello sull’entita della lesione che l’obbligazione abbia ricevuto. Se l’obbligazione dedotta nella clausola è stata adempiuta in modo solo leggermente imperfetto (com um retardo minimo, con

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No direito brasileiro, contudo, parece-nos que o espaço de atuação do Judiciário não pode estar restrito a hipótese de adimplemento substancial da obri-gação contemplada na cláusula resolutiva expressa, assistindo-lhe, outrossim, espaço para controle da validade por si só da cláusula, partindo-se da premissa de que o exercício legítimo da autonomia privada depende sempre de uma análise de merecimento de tutela.

Em consonancia com o entendimento exposto, Ruy Rosado de Aguiar Júnior parece ser partidário de uma visão mais ampla quanto a possibilidade de controle judicial:

Em razão da força da cláusula resolutiva, a sua aplicação deve dar-se com a preocupação de resguardo da justiça contratual. Nada dispon-do a lei, cabe ao juiz julgar as demandas de acordo com o princípio da boa-fé, da igualdade e da função social do contrato, uma vez que nem sempre o pactuado corresponde ao exigido por esses princípios.

Tudo se passa fora do juízo. Porém, na discordancia sobre a existên-cia da cláusula, seu conteúdo, seus efeitos, as partes poderão ir a juízo.

Ao juiz é permitido examinar a existência de dispositivo resolutivo; o atendimento dos seus requisitos para que produza efeitos, quanto a clareza e a importancia da prestação; a existência e a relevancia do inadimplemento; o comportamento do credor depois do inadimple-mento; a restituição de prestações já efetuadas de parte a parte; a multa e a avaliação das perdas e danos etc.20

Em sentido semelhante, Darcy Bessone de Oliveira Andrade destaca que, conquanto a cláusula resolutiva expressa faculte ao credor a resolução extrajudi-cial, tal circunstancia não afasta a possibilidade de controle judicial a posteriori, provocado pelo devedor insatisfeito com a medida drástica adotada pelo credor:

A declaração de que o contrato se resolverá de pleno direito, ao verificar-se certa forma de inadimplemento, exprime a dispensa de prévia decisão jurisdicional a respeito de sua ocorrência. Ela não im-possibilita, todavia, a apreciação do fato a posteriori pela Justiça,

qualche trascurabile difetto qualitativo), non sembra che il creditore possa invocare la clausola: posto che a essere pignoli un’imperfezione può sempre trovarsi, sarebbe come mettergli in mano um’inammissibile condizione risolutiva meramente potestativa” (ROPPO, Vincenzo. Il contratto. 2. ed. Milano: Giuffrè, 2011, p. 905).

20 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil, vol. VI, tomo II: da extinção do contrato, cit., p. 412.

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inclusive porque pode esta considerar improcedente a arguição de inadimplemento. Apenas significa que o prejudicado pode, de plano, considerar-se desvinculado, sem ter de recorrer previamente ao Judi-ciário para obter a resolução do contrato.21

De forma geral, a doutrina costuma dar destaque a utilidade da cláusula resolutiva expressa na regulação do inadimplemento absoluto. Aline de Miranda Valverde Terra, no entanto, parece propor um alargamento da função da cláusula resolutiva expressa, ao destacar a sua importancia em relação a gestão de riscos contratuais pelas partes (embora reconheça que o inadimplemento absoluto é, por si só, um risco contratual).

Ou seja, para a autora, em termos mais abrangentes, a cláusula resolutiva expressa se presta a “gestão de outros riscos que, uma vez implementados, impeçam a promoção da função econômico-individual do negócio”.22 A autora vis-lumbra, inclusive, a possibilidade de as partes regularem, por meio da cláusula resolutiva expressa, a responsabilidade decorrente da assunção de riscos decor-rentes de caso fortuito ou força maior23 e de vícios redibitórios,24 os quais, uma vez implementados, resultem na impossibilidade de cumprimento da prestação.

Em tal hipótese, a implementação do risco equiparar-se-á ao inadimplemento absoluto, em virtude de sua assunção expressa pela parte.25 Aline de Miranda Valverde Terra ressalva, apenas, a necessidade de que a assunção de risco extra-ordinário por uma das partes não acarrete o desequilíbrio econômico do contrato, de modo que tal assunção seja compensada por alguma vantagem econômica ou normativa.26

21 ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 318-319.

22 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 53.

23 TERRA, Aline de Miranda Valverde, Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 90.

24 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 96-97.

25 “Comprometendo-se o devedor a prestar mesmo que sobrevenha o risco assumido, a impossibilidade decorrente do caso fortuito indicado na cláusula não o exonera da obrigação, mas configura, em vez dis-so, inadimplemento absoluto. A gestão da superveniência do evento inevitável e necessário transforma um risco econômico extraordinário em um risco de inadimplemento no ambito do concreto regulamento de interesses. O inadimplemento, nesse caso, não decorre de inexecução culposa, mas da assunção contratual do risco: embora o caso fortuito exclua o nexo de causalidade entre a conduta do devedor e a inexecução da prestação, a assunção expressa do risco estabelece um nexo de imputação entre o evento inevitável e o devedor, a atribuir-lhe a responsabilidade pela execução” (TERRA, de Aline Miranda Valverde, Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 91).

26 TERRA, Aline de Miranda Valverde, Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 97.

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Por fim, sem embargo desta exposição teórica sobre os aspectos estruturais e funcionais da cláusula resolutiva expressa, é imprescindível que, como corolário lógico da adoção da metodologia civil-constitucional,27 o exame de determinada cláusula específica leve em consideração todas as peculiaridades concretas da economia contratual respectiva.28

Analisado o papel da cláusula resolutiva expressa no ordenamento jurídico brasileiro, passa-se a examinar a possibilidade de a mesma contemplar a hipóte-se específica de falência ou recuperação judicial ou extrajudicial.

3 O risco de insolvência, falência e recuperação judicial ou extrajudicial

Para enfrentar, no ordenamento jurídico brasileiro, a legitimidade de tal espé-cie de estipulação contratual, parece inócuo averiguar se a situação de insolvên-cia civil, caracterizada pela falência ou pela recuperação judicial ou extrajudicial, consistiria em um fato imputável ao devedor ou se, ao contrário, configuraria caso fortuito ou força maior.29

27 “Do confronto fato-norma se individua o significado jurídico a ser atribuído aquele fato concreto e o ordenamento assume um significado real, sem perder sua intrínseca função de ‘ordenar’. Fato e norma são o objeto do conhecimento do jurista, destinado a proceder do particular ao particular, reduzindo tudo a unidade dos valores jurídicos sobre os quais se fundam a convivência social e a justiça de cada caso.

A teoria da interpretação (entendida como unidade de interpretação e qualificação) supera a contraposição entre fattispecie abstrata e fattispecie concreta, e almeja a máxima valorização das particularidades do fato. Isto, não mediante um procedimento mecanico de subsunção em rígidos (e não completamente correspondentes) esquemas legislativos, mas individuando a normativa mais compatível com os interesses e os valores em jogo, segundo a hierarquia que deles propõe o ordenamento e tendo em conta todas as circunstancias atenuantes e agravantes do caso, de modo a relativizar a decisão sem atentar ao princípio da igualdade. Trata-se de valorar o fato — analisando-o também naquelas condições ou modalidades que poderiam parecer marginais ou acessórias —, determinar a normativa do caso concreto a luz das normas e dos princípios, procurando no ambito do ordenamento a disciplina mais adequada aquela composição dos interesses” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 657-658).

28 Sobre esse ponto: “(...) importa investigar a configuração do inadimplemento absoluto da obrigação cons-tante de cláusula resolutiva expressa. (...) trata-se de análise a ser empreendida no caso concreto, a partir da particular economia contratual, uma vez que o resultado programado em cada contrato é único, dotado de peculiaridades que não se repetem em qualquer outro negócio. Por essa razão, há que se afastar qual-quer tentativa de abstrativização da análise acerca da licitude e legitimidade da cláusula resolutiva expres-sa; certa execução de obrigação que, em determinado contrato, não assume relevancia, pode se revelar grave em outro contexto contratual, a autorizar, neste caso, mas não naquele, a resolução extrajudicial”

(TERRA, Aline de Miranda Valverde, Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 119-120).

29 Sobre tal indagação, Rubens Requião observava: “O caso fortuito, ou força maior, verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não é possível evitar ou impedir, diz o art. 1.058 do Código Civil. A insolvência, como a falência, são fatos perfeitamente previsíveis, resultantes dos riscos inerentes a que estão sujeitos os empresários comerciais” (Curso de direito falimentar. V. I. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 192).

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Afinal, conforme analisado acima, quer se trate de riscos extraordinários e imprevisíveis, quer se trate de riscos ordinários, decorrentes do exercício regular de determinada atividade econômica, bem como do próprio ordenamento jurídico, não se pode pretender impedir que as partes, no exercício de sua autonomia negocial, procedam a realocação de tais riscos conforme melhor lhes aprouver.

Aliás, é razoável afirmar que, ao prever a chamada exceção de inseguridade (Código Civil, art. 477), o ordenamento jurídico considera merecedora de tutela a preocupação do credor com a ocorrência de diminuição no patrimônio do devedor que seja capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação a que se houver obrigado. Trata-se de interesse legítimo do credor em não cumprir de imediato a obrigação que lhe incumbe, enquanto persistir a debilidade patrimonial do outro contratante.

Logo, a luz do ordenamento jurídico vigente, há fortes indícios de legitimidade e merecimento de tutela da estipulação contratual que prevê a resolução do con-trato em caso de falência ou recuperação judicial de uma das partes.

Mesmo no regime falimentar anterior – isto é, ainda a luz do Decreto-Lei n. 7.661/45 –, Carvalho de Mendonça já reconhecia a possibilidade de estipulação de cláusula resolutiva expressa contemplando a hipótese de falência do contra-tante:

Não vemos, porém, razões que vedem os contratantes a se premu-nirem contra certas consequências da falência, como a incerteza, a demora ou a dificuldade que esta produzirá relativamente a execução dos contratos, ou, ainda, certos contratos intuitu personae, onde se atende especialmente a pessoa do contratante e a inconveniência da sua substituição pela massa falida ou por terceiro. Não há proibição de os contratantes estipularem, para o caso de superveniência da falência, a rescisão do contrato, antes de cumprido inteiramente. Não se dá ofensa a princípio algum de ordem pública. O direito da massa, agindo esta como representante do falido, mede-se pelo direito des-te. Então, o contrato não continuará com a massa. É válido, portanto, o pacto em virtude do qual a declaração da falência opera como con-dição resolutiva do contrato, cessando as relações jurídicas criadas, para que o síndico ou liquidatário não substitua o falido na execução; não seria lícito, entretanto, ao co-contratante reclamar preferências ou privilégios fundados nesse pacto, salvo o seu direito de concorrer na falência.30

30 Curso de direito comercial: direito de empresa. V. 3. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 233.

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Trajano de Miranda Valverde, em seus comentários ao Decreto-Lei n. 7.661/45, expunha opinião semelhante:

A falência de um dos contraentes não se inclui entre as causas le-gais de rescisão do contrato. Nem mesmo os contratos feitos intuitu personae debitoris, salvo disposição em contrário, se resolvem de pleno direito com a falência (...). É comum, entretanto, as partes pactuarem a rescisão do contrato no caso de falência de um dos contraentes. A cláusula encontra-se, geralmente, nos contratos de execução continuada, como no de locação de coisas. A sua validade é, em princípio, aceita, tanto pela doutrina, como pela nossa juris-prudência.31

Embora não tenha enfrentado a questão a fundo, o Superior Tribunal de Justiça possui precedente reconhecendo que “mesmo os contratos bilaterais po-dem ser resolvidos pela falência, quando o Síndico deixa de executá-los, especial-mente se há cláusula resolutiva expressa”.32

Não obstante o reconhecimento de um instrumento legítimo de tutela dos interesses do credor, por meio da estipulação de cláusula resolutiva expressa, o exame de sua eficácia não pode prescindir do enfrentamento dos princípios espe-cíficos que inspiram o regime legal da falência e da recuperação judicial.

No ordenamento constitucional em vigor, como se sabe, o exercício da livre iniciativa deve ser funcionalizado a tábua axiológica constitucional, de modo a promover valores que sejam caros ao ordenamento, o que poderá extrapolar, em alguma medida, a mera racionalidade econômica norteadora das decisões empre-sariais.

Se o ordenamento condiciona a utilização legítima da propriedade ao aten-dimento da sua função social (Constituição Federal, arts. 5º, XXIII, e 170, III), o emprego dos bens de produção utilizados pela empresa na consecução de sua atividade empresarial, naturalmente, também deverá atender a interesses extra-proprietários (e.g., interesses dos trabalhadores, dos consumidores, da comuni-dade, etc.).33

31 Comentários à Lei de Falências, atualizado por J.A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 298.

32 STJ, 3ª Turma, REsp 846.462/SP, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, julg. 15.5.2007.33 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e

administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 109-110.

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Em consonancia com o comando constitucional, aos poucos, o legislador infraconstitucional começou a positivar, em dispositivos esparsos, a necessidade de que a empresa atenda a sua função social.

No ponto que interessa ao presente trabalho, a Lei n. 11.101/05 prevê, em seu art. 47, que:

A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da si-tuação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo a atividade econômica.

Em seu art. 75, prevê que “a falência, ao promover o afastamento do deve-dor de suas atividades, visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa”.

Conquanto seja árdua a tarefa de densificar o princípio da função social da empresa e dele extrair comandos normativos específicos, é possível afirmar que a sua adoção, no ordenamento jurídico brasileiro, militará, em regra, favoravelmente a que a atividade produtiva da empresa se mantenha ativa.

Em geral, como benefícios gerados pela atividade empresarial, além daque-les decorrentes da mera racionalidade econômica (geração de lucro), é possível apontar os seguintes: geração de riquezas e empregos, recolhimento de tributos ao erário, avanços tecnológicos, etc.

Consoante observa Ana Frazão, “o princípio da manutenção da empresa res-tringe consideravelmente a margem de atuação de todos os interessados em relação a companhia, pois nenhum gestor, acionista ou credor pode sobrepor seus interesses ao interesse maior relativo a continuidade da empresa”.34 Fabio Ulhôa Coelho demonstra semelhante preocupação, explicitando os prejuízos que normalmente advêm da crise da empresa:

A crise da empresa pode ser fatal, gerando prejuízos não só para os empreendedores e investidores que empregaram capital no seu desenvolvimento, como para os credores e, em alguns casos, num encadear de sucessivas crises, também para outros agentes econô-micos. A crise fatal de uma grande empresa significa o fim de postos de trabalho, desabastecimento de produtos ou serviços, diminuição

34 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As, cit., p. 430.

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na arrecadação de impostos e, dependendo das circunstancias, pa-ralisação de atividades satélites e problemas sérios para a economia local, regional ou, até mesmo, nacional.35

No que tange ao objeto do presente trabalho, constata-se uma aparente colisão entre, de um lado, o princípio da autonomia negocial, que culminou na estipulação de cláusula resolutiva expressa em caso de falência ou recuperação judicial, e, de outro lado, o princípio da função social da empresa, o qual torna preferível, sempre que possível, a sua preservação.

De um lado, a autonomia privada não é imune a qualquer controle,36 poden-do tornar-se disfuncional, eventualmente, o exercício do direito de resolução de determinado contrato, caso não seja medida estritamente necessária a proteção dos interesses do credor. De outro lado, o princípio da função social da empresa não pode ser invocado a qualquer custo, caso a preservação do contrato sacrifi-que demasiadamente os interesses do contratante prejudicado pela situação de insolvência da outra parte.37

Como visto, a legislação falimentar dispõe, de forma genérica, que os contra-tos bilaterais não se resolvem automaticamente pela falência (Lei n. 11.101/05, art. 117, caput) e que, na hipótese de recuperação judicial, as obrigações anterio-res ao seu deferimento observarão as condições originalmente contratadas (Lei n. 11.101/05, art. 49, §2º).

Conquanto tais dispositivos legais possam levar a interpretação de que even-tual cláusula resolutiva expressa seria ineficaz tout court, não parece ser esta a melhor solução para o problema, na medida em que tenderia a asfixiar a autono-mia privada das partes que pactuaram a cláusula resolutiva expressa, confiando em sua eficácia.

35 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito empresarial, vol. 3, 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 251..36 Segundo Gustavo Tepedino, “a autonomia privada não pode mais ser concebida como direito absoluto, o

qual sofreria restrições pontuais por meio de normas de ordem pública. Ao revés, o princípio da autonomia privada deve ser revisitado e lido a luz dos valores constitucionais, não sendo possível admitir espécies de zonas francas de atuação da autonomia privada, imunes ao controle axiológico ditado pela Constituição da República” (Notas sobre a função social dos contratos. Disponível em: <http://www.tepedino.adv.br/wp/wp-content/uploads/2012/09/biblioteca12.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2016).

37 Ao examinar a função social da empresa, Ana Frazão, com fundamento na doutrina alemã, adverte que o princípio não é absoluto e que o seu reconhecimento “não quer dizer que os demais interesses dos acionistas, dos trabalhadores e do público em geral não devam ser considerados e ponderados uns em relação aos outros” (FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 215).

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Mais recentemente, já a luz do disposto na Lei n. 11.101/05, a controvérsia tem sido enfrentada por outros doutrinadores, os quais se têm mostrado refratá-rios a validade e a eficácia da cláusula resolutiva expressa ipso facto em caso de insolvência, propondo restrições a sua aplicação.

Manoel Justino Bezerra Filho entende que o administrador judicial poderá desconsiderar a cláusula resolutiva, caso pretenda dar cumprimento ao contrato, eis que “a falência, por se tratar de instituto colocado a disposição dos interessa-dos para afastar do meio comercial aquele empresário que já está falido de fato, assume características que extrapolam o mero interesse privado”.38 Jorge Lobo também defende a impossibilidade de resolução do contrato, mesmo que haja cláusula resolutiva expressa em caso de falência ou recuperação judicial.39

Há também opiniões intermediárias, tais como a posição defendida por João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea, segundo a qual seria válida a cláusula resolutiva expressa contemplando a hipótese de falência,40 mas inefi-caz a cláusula relativa a hipótese de recuperação judicial (ou extrajudicial), por ir de encontro ao princípio da preservação da empresa.41

Em sentido diverso, Ricardo Tepedino entende que a cláusula resolutiva ex-pressa ipso facto é nula, ante a natureza cogente dos dispositivos da legislação falimentar, mas ressalva que a estipulação será válida quando “a contratação do falido se tiver dado intuito personae – se realmente for esse o caso, e a massa tiver perdido as características personalíssimas visadas pelo contratante (o que necessariamente não ocorrerá na continuação dos negócios)”.42 Para o autor, incumbiria ao contratante que almejar fazer valer a cláusula resolutiva o ônus de provar o prejuízo a ser suportado com a preservação da avença.

38 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 282.

39 LOBO, Jorge. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Coords. Paulo F. C. Salles de Toledo e Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 118.

40 “A despeito de posições contrárias, entendemos ser válida a previsão contratual dessa natureza inserida no pacto anteriormente a decretação da quebra, em virtude da qual o evento da falência do devedor opera como verdadeira cláusula resolutiva expressa do contrato (o que é permitido, nos termos do art. 474 do Código Civil), fazendo cessar as relações jurídicas criadas” (SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2016, p. 552).

41 “A cláusula contratual prevendo a resolução automática do contrato caso uma das partes ajuíze a sua recuperação judicial (ou extrajudicial) – bastante comum na prática – deve ser declarada ineficaz, especial-mente quando o contrato é essencial para o sucesso do esforço recuperatório, pois atenta frontalmente contra o princípio da preservação da empresa” (SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2016, p. 292).

42 TEPEDINO, Ricardo. Seção VIII: Dos efeitos da decretação da falência sobre as obrigações do devedor. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 422.

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A CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA IPSO FACTO E A CRISE DA EMPRESA: PARÂMETROS PARA EXAME...

Em ambito jurisprudencial, os Tribunais têm oscilado, ora reconhecendo a validade e eficácia integral da cláusula resolutiva expressa ipso facto, ora priori-zando a manutenção das relações contratuais em curso, em prol da preservação da empresa, sempre a depender das circunstancias concretas.

No primeiro sentido, de modo favorável a eficácia da cláusula resolutiva ex-pressa, o Tribunal de Justiça de São Paulo já referendou a resolução de determi-nado contrato de compra e venda de participação acionária, uma vez decretada a falência de uma das partes. Entendeu o Tribunal que, no referido caso,

(...) não se trata de contrato de fornecimento, nem de locação, nem de arrendamento de máquinas, veículos ou equipamentos, que even-tualmente pudessem ser indispensáveis a continuidade provisória da empresa (situação, aliás, não delineada nos autos), mas, pura e sim-plesmente, cessão de participação acionária em companhia. Cuida- se, na realidade, de negócio jurídico complexo, ou seja, contrato de venda e compra de participação acionária e outras avenças.43

No segundo sentido, de modo refratário a eficácia da cláusula resolutiva expressa, o Tribunal de Justiça de São Paulo já julgou caso em que determinada empresa em regime de recuperação judicial ajuizara ação contra a fornecedora de gás natural canalizado, almejando que a mesma fosse compelida a restabelecer o serviço de fornecimento do insumo, paralisado em virtude da implementação do evento previsto na cláusula resolutiva expressa.

Em sede de cognição sumária, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu liminar para proibir a fornecedora de gás de rescindir o contrato firmado com a recu-peranda. Isso porque, segundo o Tribunal, o fato de o serviço público de fornecimen-to de gás ser prestado pela concessionária sob regime de monopólio inviabilizaria a recuperação futura da empresa, caso fosse rescindido o contrato de fornecimento, por se tratar de insumo essencial a manutenção de sua estrutura produtiva.44

43 TJSP, 1ª Camara Reservada de Direito Empresarial, Apelação n. 0003654-06.2011.8.26.0100, Relator Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, julg. 6.5.2015.

44 “O mesmo não se pode dizer em relação ao contrato de fornecimento de gás canalizado firmado entre a agravante e a Gás Brasiliano, em razão da peculiaridade do regime de monopólio que existe no comércio de distribuição de gás canalizado. Por força de contrato firmado com o Poder Público (cláusula 5ª, sub-cláusula 6ª; fls. 1407/1408), não há outra empresa distribuidora intermediária de gás GNC na região de Araraquara e Ribeirão Preto a fazer concorrência com a Gás Brasiliano. Nem pode, ao que consta, a agravante socorrer-se de outra distribuidora, em outra região. Como não pode haver concorrência no segmento de mercado sob regime de monopólio, há que se relativizar os princípios da liberdade de con-tratar e da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). Se assim não for, ainda que se defira o processamento da recuperação judicial a agravante, as possibilidades reais de soerguimento econômico restarão esvaziadas, porque, considerado o regime de monopólio e rescindido o contrato em razão do ajui-zamento do pedido de recuperação, ela não terá o insumo necessário e indispensável ao prosseguimento

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Nota-se, assim, que o Judiciário, ao enfrentar a eficácia da cláusula resoluti-va expressa ipso facto, tem estado atento a função individualmente desempenha-da por cada contrato em relação as atividades da empresa, de forma mais ampla.

Por fim, outra controvérsia prática que se põe diz respeito a necessidade de notificação, pelo contratante que pretender resolver o contrato, do outro con-tratante, que se sujeitar a situação de insolvência, já que é comum, no dia a dia empresarial, a previsão de que a resolução do contrato, em caso de falência ou re-cuperação judicial ou extrajudicial, dar-se-á automaticamente, independentemente de qualquer interpelação das partes.

Em tal hipótese, a rigor, não se cuidará de cláusula resolutiva expressa, mas sim de condição resolutiva, tal como possibilita o art. 127 do Código Civil. Ou seja, o negócio jurídico vigorará enquanto a parte não tiver sua falência decretada ou sua recuperação judicial deferida; sobrevindo um desses eventos futuros e incertos, o contrato se resolverá para todos os efeitos, nos termos do art. 128 do Código Civil.

Assim como na Itália,45 a doutrina brasileira46 também vem destacando a exis-tência de uma linha tênue a diferenciar as cláusulas resolutivas das condições

de sua atividade comercial” (TJSP, 1ª Camara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento n. 0121739-23.2012.8.26.0000, Relator Desembargador Teixeira Leite, julg. 12.3.2013).

45 Nessa linha, pondera Vincenzo Roppo: “Se nel contratto è inserita una condizione (risolutiva) d’inadempimento, si avrebbe un meccanismo apparentemente simile a quello della clausola risolutiva espressa. In realta, ci sarebbero differenze: l’effetto risolutorio sarebbe automatico (anche se evitabile con la rinuncia della parte interessata alla condizione, certamente unilaterale), anziché legato alla dichiarazione di avvalersi della clausola; e opererebbe con retroattivita reale anche in odio ai terzi, anzhiché limitarsi a retroagire fra le parti. Se il non automatismo e la non retroattivita (reale) dell’effetto risolutorio dipendente dall’inadempimento dovessero considerarsi principi di ordine pubblico, ne conseguirebbe l’inammissibilita della condizione d’inadempimento. Invece ammissibile, se quei principi si qualificassero derogabili.

La contiguita alla condizione d’inadempimento segnala la natura ambigua della clausola risolutiva espressa: un po’ rientrante nella logica del rimedio, perché reagisce a un malfunzionamento del contratto, qual è l’inadempimento; un po’ estranea ad essa, perché può reagire a inadempimenti che non presentano i requisiti generalmente necessari per dare ingresso al rimedio della risoluzione, e in questo senso trova piuttosto la sua ragione nel modo in cui le parti hanno costruito il programma contrattuale” (ROPPO, Vincenzo. Il contratto, cit., p. 907).

46 Segundo Aline de Miranda Valverde Terra: “Sob o aspecto estrutural, a condição resolutiva constitui elemento acidental do negócio jurídico, uma vez que não integra o tipo abstrato do negócio, mas é aposta, no concreto regulamento de interesse, pela vontade das partes. (...)

Por outro lado, a cláusula resolutiva, esta sim, encerra cláusula ou disposição acessória do contrato: é inserida pela autonomia privada e conserva, durante todo o desenrolar da relação jurídica, a característica da acessoriedade; é disposição que opera no plano da eficácia, e segue o princípio da gravitação jurídica, pelo que eventual vício da cláusula não afeta a existência ou validade do contrato.

No que tange ao suporte fático objetivo, a condição resolutiva requer que o evento futuro e incerto seja externo ao negócio, e por isso não pode corresponder nem a elemento essencial do contrato, nem a momento típico do desenvolvimento do vínculo obrigacional. O evento há de constituir fato estruturalmente autônomo, a operar externamente ao negócio, não se relacionando diretamente a realização do programa negocial. E é por essa razão, que o inadimplemento não constitui evento idôneo a figurar no contrato como condição resolutiva (...).

A cláusula resolutiva expressa, ao contrário, contempla eventos já alocados pela lei entre as partes e cujos efeitos se busca alterar, eventos inerentes ao contrato – inexecuções de obrigações que conduzem ao inadimplemento absoluto e vício redibitório – ou a ele internalizado pela autonomia privada dos contratantes – caso fortuito e força maior” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parametros funcionais para sua fixação, cit., p. 65-69).

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resolutivas, podendo haver pontos de interseção entre ambos os institutos. Incumbe ao intérprete valorar, a luz das circunstancias concretas em cada caso, a real natureza da cláusula pactuada pelas partes, identificando se ela estabelece um direito de resolver o contrato ou uma condição resolutiva.

Quando as partes pactuarem a resolução automática do contrato em caso de decretação de falência ou deferimento de recuperação judicial de qualquer delas, tratar-se-á de condição resolutiva, e não de cláusula resolutiva. Nesta hipótese, implementado o evento, o contrato se resolverá automaticamente. Por outro lado, na hipótese da cláusula resolutiva expressa, não basta que se implemente o evento nela contemplado; é necessário, ademais, que a parte prejudicada invoque o direito de resolver o contrato perante a parte contrária, mediante declaração receptícia de vontade.47

Sem embargo da aparente validade de tal estipulação contratual a dispen-sar a interpelação da parte contrária, é evidente a insegurança jurídica que ela pode causar, podendo levar a incerteza acerca da efetiva vigência do contrato. Em determinado julgado, o Tribunal de Justiça de São Paulo sinalizou para a des-necessidade de qualquer declaração receptícia de vontade para que a resolução produzisse efeitos, os quais se operariam automaticamente, a partir da situação de insolvência por si só.48 Em outro julgado, em sentido diametralmente oposto, o mesmo Tribunal considerou imprescindível a notificação da parte contrária, como decorrência da boa-fé objetiva.49

Problematizada a questão e expostas as divergências doutrinárias e jurispru-denciais no seu enfrentamento, constata-se a dificuldade de se tentar abstrativizar a discussão acerca da eficácia da cláusula resolutiva expressa em caso de falên-cia ou recuperação judicial ou extrajudicial.

47 A esse respeito, no ambito do ordenamento jurídico italiano, Perlingieri observa: “Affinché la risoluzione si verifichi non è suficiente l’inadempimento ma è necessario che la parte che lo subisce dichiari alla parte inadempiente di volersi avvalere della clausola risolutiva (1456). La parte non inadempiente, infatti, potrebbe avere interesse a mantenere il vincolo contratttuale (interesse che non troverebbe possibilita di realizzazione se la risoluzione fosse automatica). La parte può tanto rinunciare, tanto in forma espressa o tacita, alla clausola risolutiva espressa, quanto agli effeti della risoluzione dopo aver dichiarato di volersi avvalere della clausola” (PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile, cit., p. 638).

48 “Trata-se, pois, de hipótese em que ocorre a resolução do contrato ainda que nenhuma outra obrigação, afora a de manter-se solvente, tenha sido descumprida. Assim, não é necessário que qualquer uma das partes faça pleito de resolução da avença. Por se tratar de cláusula resolutiva expressa, seus efeitos operam de pleno direito, independentemente da interpelação de alguma contratante” (TJSP, 22ª Camara de Direito Privado, Apelação n. 4002604- 92.2013.8.26.0038, Relator Desembargador Hélio Nogueira, julg. 19.5.16).

49 “Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Ação de reintegração de posse. Contrato de locação de bem móvel. Cláusula resolutiva expressa pactuada para as hipóteses de inadimplemento e requerimento de recuperação judicial. Necessidade de notificação prévia da agravada, até mesmo em decorrência do princípio da boa-fé objetiva. Decisão mantida. Agravo não provido” (TJSP, 1ª Camara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento n. 2065394-95.2015.8.26.0000, Relator Desembargador Pereira Calças, julg. 20.05.15).

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VICTOR WILLCOX

Havendo princípios constitucionais colidentes, impõe-se ao intérprete a ta-refa de ponderá-los a luz das circunstancias casuísticas, motivo pelo qual, no próximo capítulo, se passará a buscar parametros específicos para nortear tal atividade ponderativa.

4 Possíveis parâmetros para ponderação dos interesses colidentes

À luz das peculiaridades analisadas no trabalho, que permeiam a resolução da controvérsia, parece-nos que a análise da eficácia da cláusula resolutiva ex-pressa deverá ser feita de acordo com as peculiaridades do caso concreto e não poderá prescindir do exame da essencialidade, para a parte insolvente, do contra-to em que consta referida cláusula, bem como do grau de lesão ao interesse do outro contratante, caso o contrato prossiga em vigor.

Ao invés de se defender uma posição tout court a favor ou contra a eficácia da cláusula resolutiva expressa ipso facto, propõe-se que o intérprete, sempre atento as circunstancias do caso concreto, pondere os princípios e interesses colidentes.

Exemplificativamente, sugere-se que a atividade ponderativa leve em consi-deração os seguintes parametros: (i) grau de relevancia do contrato para a conti-nuidade da empresa; e (ii) grau de probabilidade de a execução do contrato vir a ser impactada negativamente pela situação de insolvência.

Caso o contrato esteja umbilicalmente ligado a atividade-fim da empresa falida ou em recuperação judicial, a sua resolução implicará sacrifício despropor-cional a comunidade, que será afetada negativamente pela provável paralisação das atividades empresariais.

Por outro lado, não se pode deixar de analisar a situação sob a ótica da parte prejudicada pelo advento da implementação do risco de insolvência da parte contrária, contemplado na cláusula resolutiva expressa.

Caso a situação de insolvência do devedor não tenda a impactar negativa-mente na execução das prestações a que tiver se obrigado contratualmente, a resolução da avença seria, na prática, um capricho do credor, representando um sacrifício desnecessário aos interesses da coletividade.

Caso, contudo, a crise financeira do devedor possa levar efetivamente ao mau cumprimento das obrigações a que se tiver comprometido (e.g., se a obri-gação assumida pela parte insolvente for de pagamento de quantia), a resolução será legítima, na medida em que resguardará os interesses do credor, liberando-o de uma relação contratual possivelmente estéril, que não atingiria o resultado útil almejado.

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5 Conclusão

Se, por um lado, a autonomia negocial confere as partes amplo espectro de liberdade para gerirem, por meio da cláusula resolutiva expressa, os riscos a que desejam submeter-se – incluindo, portanto, o risco de insolvência –, por outro lado, a legislação falimentar, em homenagem a função social da empresa, busca prestigiar a preservação de suas atividades produtivas e das relações contratuais em curso. É este o impasse que instigou o presente trabalho.

Sem qualquer pretensão de esgotar as inúmeras variáveis que tangenciam a controvérsia, foram propostos, no presente trabalho, dois possíveis parametros capazes de auxiliar o intérprete a decidir, no caso concreto, se dará prevalência a preservação do contrato (e, tendencialmente, da atividade produtiva da empresa) ou a autonomia negocial dos contratantes que pactuaram cláusula resolutiva ex-pressa em caso de falência ou recuperação judicial ou extrajudicial.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

WILLCOX, Victor. A cláusula resolutiva expressa ipso facto e a crise da empresa: parametros para exame da legitimidade da resolução do contrato em caso de insolvência do contratante. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 197-215, jul./set. 2017.

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“MULTIPARENTALIDADE E AS NOVAS RELAÇÕES PARENTAIS”, DE MARIA GORETH

MACEDO VALADARES1

Thais Câmara Maia Fernandes CoelhoAdvogada especializada em Direito de Família e Sucessões. Sócia do escritório

Camara & Valadares. Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Professora Universitária. Membro da Comissão de Direito de Família

e Sucessões da OAB/MG. Membro da Diretoria do IBDFAM/MG.

Foi possível verificar uma profunda evolução no Direito das Famílias em mui-tos aspectos, inclusive no próprio conceito de família, bem como em sua estru-tura, a partir da instituição do Código Civil de 2002, sob a égide da Constituição brasileira de 1988, que consagrou os princípios da Dignidade da Pessoa Humana, Igualdade entre os Cônjuges, Solidariedade Familiar, entre outros importantes princípios que decorrem destes e norteiam o ordenamento jurídico atual.

Nessa perspectiva, o livro “Multiparentalidade e as novas relações paren-tais” aborda uma nova concepção do que se entende por família, ao demonstrar a existência de novos núcleos familiares, fundados na dignidade da pessoa hu-mana, na solidariedade familiar e principalmente no afeto, deixando de lado o ultrapassado modelo de família adotado pelo Código Civil de 1916, que tinha como característica a hierarquização das relações familiares, o patriarcalismo, a matrimonialização, o reconhecimento da filiação restrito ao vínculo biológico e o patrimonialismo.

A Constituição de 1988 apresenta como foco a preocupação com os anseios e as necessidades da pessoa humana, que ganhou uma maior atenção do Estado. Nesse contexto, foi possível verificar que a família atual possui novos contornos, dotada de características e responsabilidades diversas, que consequentemente acarretaram mudanças na sociedade.

Diante dos diversos núcleos familiares inclusos no art. 226 da Constituição de 1988, a primeira constatação que se faz é de que a família atual é plural, portanto, além das famílias instituídas por meio do casamento, também estão previstas expressamente a união estável e a família monoparental, sendo esse rol apenas exemplificativo.

1 VALADARES, Maria Goreth Macedo. Multiparentalidade e as novas relações parentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris Direito, 2016.

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THAIS CÂMARA MAIA FERNANDES COELHO

Abordou-se também, de forma crítica, o reconhecimento pela jurisprudên-cia da união estável dos casais homoafetivos, quando da decisão do Supremo Tribunal Federal em 2011, que determinou que o art. 1.723 do Código Civil fosse interpretado conforme os princípios norteadores da Constituição de 1988. E ainda, em relação ao casamento, tem-se que o STJ proferiu decisão em sede de Recurso Especial em 2012, permitindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Constatou a autora que tríplice é a fonte da parentalidade atualmente: presu-mida, biológica e afetiva. Contudo, reconheceu-se que a coexistência de diversas formas de filiação é um paradigma a ser quebrado em relação a biparentalidade e que ainda está longe de ser um tema pacífico na doutrina e jurisprudência.

Partindo dessa premissa, a obra teve por objetivo demonstrar a viabilidade da coexistência dessas diferentes formas de parentalidade, decorrentes de víncu-los biológicos e afetivos, a depender do caso concreto, conforme a decisão inédita do Supremo Tribunal Federal, que permitiu a cumulação da paternidade biológica ao lado da afetiva, sem a predominancia de uma em detrimento da outra.

Observou-se que o próprio rompimento de vínculos enseja o surgimento de novos arranjos familiares, como as famílias recompostas, que são aquelas famí-lias que se constituem da união de um casal, sendo que pelo menos um dos dois já tem um filho. Tais vínculos implicam o surgimento de novos parentescos, que consequentemente apresentam questionamentos em relação aos efeitos jurídicos entre os membros desses novos arranjos.

Outro ponto polêmico levantado pela autora diz respeito a adoção direciona-da, que trata da (im)possibilidade dos pais biológicos entregarem seu filho para pessoas determinadas, ou seja, os pais biológicos escolherem os pais adotivos sem a necessidade do cadastro de adoção.

O reconhecimento da multiparentalidade colocaria fim a arbitrariedade que pode existir de uma parentalidade prevalecendo sobre a outra. Percebeu-se que, embora tenha havido resistência por parte de alguns aplicadores do direito, a multiparentalidade veio a ser reconhecida pelo STF, sendo, portanto, um marco para o direito em relação a filiação.

A pluralidade de vínculos parentais produz diversos reflexos no mundo jurídi-co, como no registro de nascimento, nos direitos sucessórios, entre outros efeitos aplicáveis a filiação.

Por este motivo, concluiu-se que a multiparentalidade é um fato jurídico, não podendo os aplicadores do direito se omitir diante de tal situação, ainda que a demanda seja considerada atípica, sempre buscando a proteção e a promoção da pessoa humana.

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“MULTIPARENTALIDADE E AS NOVAS RELAÇÕES PARENTAIS”, DE MARIA GORETH MACEDO VALADARES

O direito deve buscar uma forma de acompanhar, na medida do possível, a evolução da sociedade, para abarcar situações presentes e futuras, procurando trabalhar com os princípios constitucionais.

Por fim, constatou-se que a coexistência entre diferentes vínculos parentais, com todos os efeitos decorrentes desta relação, é uma forma de atender ao prin-cípio da dignidade da pessoa humana, com base em tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2016, de que “a paternidade socioafetiva, de-clarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de fi-liação concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios”.

O livro é leitura obrigatória para os operadores do direito, principalmente os especializados em direito de família, sendo a obra fruto da tese de doutorado da autora. O tema foi abordado de forma corajosa, enfrentando os conflitos e conse-quências existentes desses novos arranjos familiares.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

Multiparentalidade e as novas relações parentais. Resenha de: COELHO, Thais Camara Maia Fernandes. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 219-221, jul./set. 2017.

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Neste volume, a Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil divulga palestra do Prof. Stefano Rodota sobre uma nova concepção de bens comuns, intitulada: “Bens comuns: a loucura razoável”.

Link de acesso: <https://www.youtube.com/watch?v=kKBEQXkwrMo&t=154s>.

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SUBMISSÃO DE TRABALHOS

A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil dispõe de qualificado comitê de pareceristas, a cujo crivo são submetidos os artigos enviados para publica-ção. A análise preliminar do texto é realizada pelos coordenadores editoriais, sem apreciação do mérito do artigo, para verificação da adequação do trabalho a linha editorial da revista. Em seguida, os trabalhos são submetidos ao sistema de dupla revisão cega por pares, exigindo-se dois pareceres favoráveis para que sejam pu-blicados. Caso qualquer dos pareceres recomende a publicação mediante modifi-cações, as sugestões elaboradas serão encaminhadas ao autor para aprovação e eventual adaptação do artigo, sem identificação do parecerista. Após a aprovação final dos trabalhos pelos pareceristas, não serão admitidas alterações no texto pelo autor.

O envio de Conteúdo Editorial para publicação na RBDCivil implica aceitação dos termos e condições da CESSÃO DE DIREITOS AUTORAIS DE COLABORAÇÃO AUTORAL INÉDITA E TERMO DE RESPONSABILIDADE, por meio da qual o autor cede globalmente os direitos autorais do Conteúdo Editorial enviado exclusivamen-te para a Revista Brasileira de Direito Civil e seus sucessores ou cessionários, por todo o prazo de vigência dos direitos patrimoniais de autor, previsto na Lei Autoral brasileira, para publicação ou distribuição em meio impresso ou eletrôni-co, ficando autorizada a incluir esse Conteúdo Editorial, nos meios de divulgação impressos ou digitais, on-line, Intranet, via Internet e hospedagem, isoladamente ou em conjunto com outras obras e serviços de informação eletrônica, em servi-dores próprios, de terceiros ou de clientes, podendo distribuí-la comercialmente e comercializá-la, por todos os meios eletrônicos existentes ou que venham a ser criados futuramente, inclusive através de armazenamento temporário ou definitivo em memória ou disco dos usuários ou clientes, em aparelhos móveis ou fixos, portáteis ou não, cabendo a RBDCivil determinar todas as suas características editoriais e gráficas, preço, modos de distribuição, disponibilização, visualização, acesso, download, venda e revenda aos distribuidores, portais de Internet, banco de dados, bem como promoções, divulgação e publicidade. A Revista Brasileira de Direito Civil fica autorizada a proceder a modificações e correções para a adequa-ção do texto as normas de publicação.

Os trabalhos a serem submetidos a Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil para publicação devem observar as seguintes normas:

1. Ressalvadas hipóteses excepcionais de publicação a convite, os artigos submetidos para avaliação devem ser inéditos, tanto em meio impresso

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quanto digital e tanto em português quanto em outros idiomas, e exclusi-

vos, isto é, sua publicação não deve estar pendente em outro local. 2. Ressalvadas hipóteses excepcionais de publicação a convite, a titulação

mínima do autor principal dos artigos a serem submetidos para avaliação será de mestre. A RBDCivil não aceita artigos escritos em coautoria com graduandos.

3. Os trabalhos devem ser submetidos a avaliação pelo e-mail [email protected]. É permitido utilizar qualquer processador de texto, desde que os artigos sejam gravados no formato .rtf (Rich Text Format), formato de leitura comum a todos os processadores de texto.

4. Os trabalhos não podem conter qualquer identificação do autor. Os tra-balhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço, telefone, fax, e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições a que per-tença e a principal atividade exercida.

5. Os arquivos do artigo e folha de rosto deverão ser separados e nomina-dos de acordo com o título do trabalho.

6. Caso o trabalho tenha recebido financiamento para seu desenvolvimen-to por instituição pública ou privada, o autor deve indicar o nome da instituição.

7. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente entre 15 e 35 laudas e ser redigidos em português, inglês ou qualquer idioma neolatino.

8. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda escri-ta. Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve utilizar o tabulador <TAB> para determinar os parágrafos: o próprio <ENTER> já determina este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times New Roman, corpo 12. Os parágrafos de-vem ter entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo, 2,5cm no lado direito e 2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve ser A4.

9. As referências bibliográficas devem ser feitas de acordo com a NBR 6023/89 (Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A refe-rência bibliográfica básica deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição; ponto; palavra edição abre-

viada; ponto; local; dois pontos; editora (suprimindo-se os elementos que designam a natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação;

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ponto. Exemplo: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contempo-râneo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 10. KONDER, Carlos Nelson. Causa do contrato x função social do contrato: estudo compara-tivo sobre o controle da autonomia negocial. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, vol. 43, 2010, p. 34. TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social do contrato. In: Temas de direito civil, t. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 150. KONDER, Carlos Nelson; RENTERIA, Pablo. A funcionalização das relações obrigacionais: interesse do cre-dor e patrimonialidade da prestação. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luis Edson (Orgs.). Diálogos sobre Direito Civil, vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 267.

10. A partir da segunda citação da mesma obra, pode-se grafar apenas o sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras minúsculas; ponto; título em itálico; vírgula; cit.; vírgula, e página. Exemplo: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, cit., p. 10.

11. Citações jurisprudenciais devem conter: tribunal, órgão julgador, natu-reza e número do processo, relator e data do julgamento, nesta ordem. Exemplificativamente: STJ, Xª T., REsp xxx.xxx, Rel. Min. Axxxx Bxxxxx, julg. 2.2.2000; TJRJ, Xª C.C., Ap. Cív. xxxxxxx.x, Rel. Des. Cxxxx Dxxxxx, julg. 2.2.2000 (ou, alternativamente, publ. 2.2.2000)

12. As referências devem ser feitas em notas de rodapé.13. Os trabalhos devem ser precedidos por título bilíngue, resumo analítico

bilíngue que não ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e português e por Sumário também bilíngue, numerado, com as divisões do texto, separada cada divisão da outra por um travessão.

Exemplo: Sumário: Introdução – 1 Realidade social e ordenamento ju-rídico – 2 Regras jurídicas e regras sociais – 3 O jurista e as escolhas legislativas – 4 O Código Civil – 5 A Constituição – 6 A chamada descodi-ficação – 7 Conclusão

14. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.

15. As revisões ortográfica e gramatical são inteiramente de responsabilida-de do autor.

16. O autor deve indicar qualquer potencial conflito de interesse, bem como indicar todas as eventuais fontes de financiamento ou suporte, institucio-nal ou privado, para a realização do estudo.

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17. No caso de artigos ou de ensaios com pesquisas envolvendo pessoas humanas, deverá haver a prévia aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa, bem como a obediência estrita e restrita as declara-ções internacionais e as resoluções do Conselho Nacional de Saúde.

18. O autor deve se declarar integralmente responsável pela exatidão e inte-gridade de qualquer parte da obra.

19. Todos os direitos editoriais estão reservados ao Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil e, ante a vigência da lei de direitos autorais, deve-rão ser rigorosamente obedecidos. A publicação dos artigos pela Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, em formato impresso ou digital, implica na transferência gratuita dos direitos autorais a publicação.

20. Somente após publicado no site oficial da Revista, os autores estão autorizados a reproduzir os artigos veiculados, sempre com a citação da fonte completa, inclusive se publicarem os artigos em outro periódico, o que só se admitirá depois da publicação na RBDCivil e correspondente citação da fonte.

Esta obra foi composta na fonte Frankfurt, corpo 10 e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa) pela Laser Plus Gráfica,

em Belo Horizonte/MG.

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