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Faculdades EST TEXTO 2

Curso de Integralização

Disciplina: Temas de Missiologia

Prof. Roberto Zwetsch

O conceito Missio Dei – Missão de Deus

Roberto Zwetsch1

1 – Missio Dei: uma perspectiva trinitária de missão2

Não há consenso fácil na teologia em torno do conceito de missão. Percebo, no

entanto, duas direções para onde se encaminham as reflexões de distintos teólogos e

teólogas:

a) Numa direção, missão é um conceito muito atrelado à Igreja cristã; serve aos seus ministérios ordenados e afins, que desenvolvem programa e criam projetos no intuito não só de manter, mas principalmente de expandir a igreja. Um dos conceitos que mais aparecem nessa argumentação é o da plantatio ecclesiae (a plantação de igrejas), supostamente em áreas onde a igreja não exista. Missão evidentemente cria igreja, mas aqui a ênfase recai sobre os frutos da ação missionária e sua capacidade de frutificação continuada.

b) Noutra direção, missão caracteriza aquelas atividades e projetos que têm em vista um público amplo, não vinculado à instituição, e que procura situar-se em meio às estruturas sociais com alguns sinais que atestam a diferença. Nesse sentido, adquire um caráter mais testemunhal da fé do que de proclamação ou anúncio, ainda que este último de alguma forma sempre esteja presente. Não visa a criação rápida e

1 Este texto é parte do capítulo 1 de minha tese de doutorado. Cf. ZWETSCH, Roberto E. Missão como com-paixão. Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: EST, 2007, p. 74-80.

2 Cf. ZWETSCH, Roberto E. Missão – testemunho do evangelho no horizonte do reino de Deus. In: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Org.). Teologia prática no contexto da América Latina. São Leopoldo: Sinodal, ASTE, 1998a, p. 214-218, com as devidas referências.

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automática de comunidades eclesiais, dando ênfase à singularidade tanto do contexto quanto da vocação missionária. Geralmente ocorre em trabalhos diaconais ou em áreas de fronteiras geográfica, étnica, social.

A essas direções aqui descritas ao modo de tipos ideais (Max Weber)3 e que não

precisam necessariamente estar em concorrência, mas podem eventualmente imbricar-se

em casos concretos, correspondem duas tendências na teologia da missão:

a) Missão é a proclamação do evangelho a toda pessoa ou grupo humano que não conhece a Jesus como Salvador e Senhor pessoal. Esta missão não tem fronteiras nem se deixa prender por qualquer tipo de limitação institucional ou de discriminação. Procura desenvolver o seu anúncio a partir do conhecido texto de Mateus 28.18-20 e paralelos, conhecido como a Grande Comissão. Defende como termo-chave da ação prática a obediência missionária. Nos últimos tempos, elaborou uma compreensão sócio-política da fé e suas conseqüências com a expressão missão integral.

b) Missão é participar do envio de Deus entendido em seu mistério trinitário, cujo fundamento é o amor divino por toda a humanidade, revelado de modo pleno em Jesus de Nazaré, o Filho do Deus vivo. Ele é o centro do envio de Deus e a missão que lhe corresponde segue os seus passos. Seguimento ou discipulado de Jesus é um dos conceitos centrais dessa perspectiva missionária. Missão é entendida como uma ação divina, que se manifesta em missionários e missionárias. A ação da igreja cristã enquanto ação missionária é entendida como participação no chamado e envio de Deus. Missão é missio Dei (missão de Deus). A igreja cristã é instrumento na missão que é de Deus. Sua vocação é tornar-se co-participante da própria ação de Deus no mundo. Deus veio e vem continuamente a este mundo para salvar e libertar a humanidade. A tarefa da igreja deste Deus missionário – como enviada – é ver, ouvir, chamar, orientar, apontar, ajudar e tornar-se solidária como parte do testemunho daquela ação de Deus. A missão aponta para além de si mesma e da própria igreja que ajuda a construir. Ela indica para o horizonte do reino de Deus. O reino de Deus é o alvo e a igreja existe a serviço deste reino futuro, mas que já se antecipa em sinais aqui e acolá.

Detenho-me aqui para um exame mais específico do conceito missio Dei, pois ele

tem se mostrado útil e compreensível para o testemunho do evangelho no mundo

contemporâneo. David J. Bosch desenvolveu no livro já citado o que ele chamou de

paradigma emergente e ecumênico de missão. E o fez a partir do conceito de missio Dei.

Ora, este conceito já tem uma longa história. Remonta a reflexões elaboradas já nos anos de

3 Cf. WEBER, 1991, v. 1, p. 139-166, especialmente p. 141s.

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1920 e 1930 por teólogos como Karl Hartenstein e Karl Barth. Estes teólogos tomaram

como ponto de partida a crise do cristianismo no século 20, percebendo nela tanto um

perigo quanto uma chance de renovação ou redefinição do papel da missão. E afirmaram

que a fé cristã e a própria igreja são, por definição, essencialmente missionárias. A missão é

a razão de ser da igreja. Não obstante, é quase impossível dizer o que ela é. Cada geração

de cristãos precisa redefinir o que entende por missão. Pois missão diz respeito às relações

entre Deus e o mundo, a partir de sua manifestação na história de Israel e particularmente,

na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, a “autocomunicação de Deus”. Nesse

sentido, a Bíblia não é um conjunto de “leis de missão” que nos daria um receituário seguro

para a prática da missão. Ela é antes como um mapa ou bússola de orientação para

avaliarmos a ambivalência entre a providência ou ação divinas e a confusão ou limitação

propriamente humanas do povo de Deus e mesmo da humanidade. Assim, o envolvimento

da igreja na missão de Deus é um ato de fé para o qual não há garantia.4

Bosch entende que a igreja e a vida cristãs são essencialmente missionárias por

causa da universalidade do evangelho. Ele distingue entre missão e missões. O primeiro

conceito se refere à missio Dei. A missão de Deus diz respeito à auto-revelação de Deus

como aquele que ama este mundo de modo inefável e absoluto. Descreve a ação de Deus

através do povo de Deus e de sua presença no mundo. A missão não é, pois, primeiramente

uma atividade da igreja, mas um atributo divino. A missão é primária; as missões são

secundárias, derivadas da primeira. Sendo a missão de Deus atividade de Deus, ela abarca

tanto a igreja quanto o mundo. A igreja é privilegiada em virtude de sua vocação de ser

parceira dessa ação de Deus, mas jamais exclusivamente. Deste modo, as missões referem-

se às diferentes formas adotadas pelas igrejas para pôr em prática a missão como

participantes da missio Dei.

Não podemos separar Deus e o mundo. Quando falamos de Deus, imediatamente

temos de falar do mundo como âmbito de sua revelação e atuação criadora e salvadora ou

4 Cf. PICH, Roberto H.; ZWETSCH, Roberto E. Elementos de um novo paradigma de missão: breve exposição do pensamento de David J. Bosch. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 35, n. 2, p. 211-215, 1995.

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restauradora. A atenção e o amor de Deus transcendem a esfera do que entendemos por

religião, pois dizem respeito ao mundo todo (humanidade, natureza, cosmos). Assim,

podemos entender missão como “participação na existência de Deus no mundo”.

Por isso, é razoável dizer que a igreja-em-missão não pode existir sem olhar para o

mundo com os olhos de Deus. Como comunidade enviada ao mundo, ela não consegue

deixar de questionar os principais problemas que afligem a humanidade (pobreza,

discriminação, fome, violência, guerra, corrupção, desesperança). Em meio a essas

realidades, missão é evangelização, anúncio do evangelho de Jesus Cristo, do perdão dos

pecados, da conversão para uma nova vida, da formação de comunidades alternativas

formadas por membros do corpo de Cristo, nas quais o seu Espírito habita e dá poder.

Missão é o “não” e o “sim” de Deus ao mundo. É “não” ao pecado, à injustiça e à violência

que desumaniza o ser humano radicalmente, É, em especial, o “sim” de Deus, da graça e do

amor que liberta e dignifica, porque em sua ação misericordiosa ele se deu e se dá neste

mundo e não em outro. É o que a Bíblia expressa com a encarnação do Filho de Deus que

torna presente o reinado de Deus, uma realidade nova de justiça e paz já atuantes no

mundo, mas em forma de fermento, realidade que não se confunde com qualquer progresso

humano, ainda que dele se possa valer para o bem da humanidade.

Portanto, a questão central na missão é estar presente no mundo sem ser do mundo

(João 17.15s). Nem igreja separada ou sectária, nem igreja secularizada podem articular

bem a missio Dei. Igreja-em-missão, sinal e instrumento da actio Dei, poderia descrever

essa ambivalência desafiadora, sem esquecer sua permanente luta consigo mesma. A igreja

é santa e pecadora e subsiste exclusivamente pela e na graça de Deus. Por isso mesmo, ela

não pode ser identificada com o reino de Deus, mas também não pode ser entendida à parte

dele. A igreja é uma realidade escatológica. Na verdade, ela vive numa tensão criativa entre

ser chamada para fora do mundo (do grego ek-klesia, ek-kalein) e ser enviada (do grego

apostéllein) em sua apostolicidade ao mundo como um experimento da realidade

escatológica do reino de Deus.

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Georg Vicedom, em sua obra Missio Dei, expõe em profundidade o conceito de

missão sob o ponto de vista da doutrina da justificação.5 Ele retoma o conceito que foi

assumido pela Conferência Missionária de Willingen, na Alemanha, em 1952, segunda a

qual missão não é somente obediência a uma palavra do Senhor, mas é participação na

missão do Filho, na missio Dei, com o objetivo de estabelecer o senhorio de Cristo sobre

toda a criação.

Para Vicedom, o conceito de missio Dei deve ser entendido como genitivo

atributivo. Isto é, “Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado”. Isto

significa que todo envio da pessoa divina implica a presença da própria Trindade divina. O

Pai enviou o Filho e este envia o Espírito. Este envio serve à salvação do mundo. Nesta

concepção trinitária mais complexa de missão nos encontramos diante do que Vicedom

considera o “derradeiro mistério” da ação ou presença de Deus, pois de nossa parte só

podemos perceber de Deus aquilo que ele faz na relação com os seres humanos. Na missão

nos defrontamos, portanto, com o próprio mistério de Deus: Ele é o enviado, mas

simultaneamente, o conteúdo do envio e o que envia. Este pensamento tem enormes

conseqüências para a missio ecclesiae e o seu serviço no mundo. Para Vicedom, a missão

da igreja se encontra “prefigurada na missão divina”. Serviço, sentido e conteúdo de sua

atividade prática estão configurados ou conformados a partir da missio Dei.

Por ser ação soberana, a missio Dei não se deixa prescrever por ninguém: religiões,

governos, potestades, ciência, incredulidade, piedade (especialmente a piedade cristã) não

podem conter a ação livre desse Deus. Faz parte da sua divindade não estar sujeito a

nenhuma restrição humana. O agir de Deus é, como afirmou a teologia da Reforma, extra

nos. E este agir é e só pode ser salvífico. Mesmo quando julga, Deus visa salvar a

humanidade. Por isto, o modo desse agir é tão crucial. Meio e fim não podem ser vistos

como apartados ou em contradição. Nunca conseguimos abarcar toda a ação divina, a sua

missio. Estamos sempre na dependência de suas testemunhas. Na teologia da missão nos

5 VICEDOM, Georg. A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão (1958). São Leopoldo: Sinodal, IEPG, 1996. A Apresentação da edição brasileira é de autoria de Albérico Baeske e minha, p. 7-12.

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referimos de modo especial à ação de Deus em Jesus de Nazaré e seu Espírito, à ação de

Deus na igreja, sem olvidar sua atuação na história do povo de Israel, por intermédio dos

profetas e outros de seus enviados. Ademais, Deus ainda envia ou atua por meio de outras

realidades totalmente impessoais. Assim, Deus, por meio de sua missio, sustenta o mundo e

conduz os seres humanos. E isto não se pode ver nem provar, mas nisso se pode crer,

confiar e procurar entender pela fé. É o que faz a teologia dos sinais dos tempos.

A missão de Deus se tornou, na história, chamamento à decisão para dela fazer

parte. Deus não age sozinho, mas em comunidade, de forma plural, dinâmica, mostrando-se

de formas diferentes ao longo da história. Seria esta uma forma de entender a Trindade

divina: uma comunidade que trabalha junto movida pelo amor entre si e para com o outro, a

humanidade.6 Quem é chamado é incluído nessa missio, por amor. Difícil é ignorar o

chamado. Por caminhos às vezes desconhecidos, estranhos mesmo, todas as pessoas são

chamadas. E quando nos negamos a participar da obra de Deus, parece que Deus se cala e o

ser humano triunfa em sua autocentralidade. Qual não é nossa surpresa quando,

inesperadamente, a missio prossegue, apesar das resistências, tentações, fraquezas e

derrotas típicas da nossa experiência histórica. É isto que significa afirmar o senhorio de

Deus e orar constantemente: Venha o teu reino!

Em resumo, Vicedom assim definiu missio Dei:

A missão como obras da misericórdia divina, que Deus iniciou através do envio de seu Filho, é continuada por ele agora ao incumbir sua comunidade, por meio de seu enviado, da propagação e da proclamação de sua vontade salvadora. Assim o Senhor dá a ordem missionária ... (mas) esse serviço da Igreja somente é possível porque ela mesma

experimentou compaixão através da ação redentora do Filho de Deus e

agora representa a comunidade dos crentes e justificados... Por conseguinte, esse serviço é engajamento na atuação de Deus, obediência

6 Cf. BOFF, Leonardo. A trindade e a sociedade. 3. ed. Série II: O Deus que liberta seu povo. Petrópolis: Vozes, 1987 (coleção Teologia e Libertação, v. 5). Cf. ainda SINNER, 2003. Nesta obra o autor destaca a importância da teologia trinitária para a hermenêutica ecumênica e o diálogo intercultural. Cf. ainda SINNER, Rudolf von. Hermenêutica ecumênica para um cristianismo plural. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 44, n. 2, 26-57, 2004.

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da fé, não estar desligado de Deus, mas ser tomado por ele, não é algo que

é acrescentado à ação de Deus, mas é submeter-se ao agir de Deus.7

Tal compreensão de missão ajuda a desequilibrar o componente messiânico que a

missão cristã assumiu, sobretudo, durante os séculos de colonialismo, disseminando a

formação de igrejas nacionais em muitas partes do mundo que por muito tempo ficaram

enredadas nas estruturas e lideranças missionárias do exterior. É urgente retomar a idéia de

que somos cooperadores de Deus (1 Coríntios 3.9) na sua missio, para o bem, a justiça e a

paz entre as pessoas, e não soldados a serviço de um comandante que declarou guerra aos

infiéis deste mundo.8

2 – Síntese e perspectivas

Este capítulo serviu como porta de entrada para esta pesquisa. Reuni elementos para

avaliar a teologia da missão que emergiu da caminhada histórica das igrejas protestantes e

procurou desafiá-las para uma inserção relevante no contexto latino-americano, crítica,

profética, diaconal e esperançadora. A história do protestantismo, em sua diversidade, ajuda

a perceber que, por mais dedicadas e heróicas que as pessoas tenham sido, nem sempre

prevaleceram as boas intenções e mesmo a dedicação piedosa e de boa consciência. O

protestantismo, por exemplo, tem uma dívida com a população negra escrava na América

Latina. Também deve muitas explicações sobre as estratégias missionárias civilizatórias

impostas às comunidades indígenas. Na sua relação com os governos, assumiu posições

ambíguas mais preocupado em garantir espaços institucionais do que com as conseqüências

da proclamação do evangelho do reino. Quando do surgimento do pentecostalismo no

7 VICEDOM, 1996, p. 107s. Trata-se de um texto publicado como Apêndice e que tem por título: A justificação como força conformadora da missão (1952).

8 A teologia da missio Dei tem despertado renovado interesse entre evangélicos do Movimento de Lausanne, ainda que sua compreensão seja diferenciada em relação ao âmbito ecumênico Cf. ARAGÃO, Jarbas Luiz Lopes. Missio Dei – A trindade em missão. Dissertação de mestrado. Orientador: Ms. Roberto E. Zwetsch. Viçosa: CEM, 2004. Cf. Também DEIROS, 1992. O autor, membro da Fraternidade Evangélica Latino-Americana, afirma na Introdução geral dessa volumosa obra: “Por tratarse de la dimensión histórica de la misión, este estudio tiene que ver con la acción de Dios en la América Latina a través de su pueblo. Es, pues, la consideración de la missio Dei desde una perspectiva histórica. Como tal, su importancia en el pasado no hace más que afirmar su vigencia en el presente” (p. XII).

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início do século 20, não se podia prever em que direção seguiria o processo histórico que

acabou revelando a força impressionante deste movimento para se expandir por toda a

América Latina, sobretudo junto às camadas populares. Por outro lado, pode-se observar

uma deficiência cada vez mais evidente no que concerne às concepções eclesiológicas

nesse segmento majoritário do protestantismo latino-americano. É bem por isto que se pode

avaliar como uma promessa feliz, sem dúvida, a crescente demanda por desenvolvimento

autônomo de uma teologia pentecostal com perfil crítico e aberto à ecumene cristã.9

Esta pesquisa se concentrou na análise de contribuições teológicas que nascem no

contexto de igrejas protestantes históricas e de movimentos evangélicos de grande

expressão na América Latina. Mesmo assim, imagino ser possível chegar a uma formulação

da teologia da missão que consiga estabelecer pontes com outros setores do protestantismo

latino-americano, inclusive com aqueles que eventualmente se mostrem críticos a uma

perspectiva teórica que parte do princípio de que uma teologia cristã relevante para o século

21 necessariamente deverá ser ecumênica, crítica, autocrítica, e por isto mesmo, inspiradora

para um seguimento apaixonado e profético do Senhor Jesus numa realidade que conspira

contra a dignidade da vida humana. É minha esperança que a compreensão da teologia da

missão como com-paixão permita um diálogo promissor com as pessoas de fé, com as

igrejas cristãs e mesmo para além delas, superando preconceitos e mal-entendidos que

acumularam desentendimentos e, não raro, um contra-testemunho na sociedade da qual

fazemos parte. É tempo de diálogo e construção de novos caminhos, de novos rostos para a

missão que, em suma, é de Deus e seu reino. A idéia de missão como com-paixão será

abordada mais extensamente no Texto n. 5.

*

Para continuar a reflexão faço abaixo alguns excertos da introdução de David J.

Bosch ao seu livro Missão transformadora (p. 17-29). Quem tiver oportunidade de

9 Cf. CHIQUETE, Daniel; ORELLANA, Luis (Eds.). Voces del pentecostalismo latinoamericano: identidad, teología e historia. Concepción: RELEP – Red Latinoamericana de Estudios Pentecostales; CETELA; ASETT – AL, 2003. Cf. ainda GUTIÉRREZ; CAMPOS (Eds.), 1996.

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consultar esse livro, faça-o com muita liberdade, pois o proveito será grande. Mas para

facilitar o trabalho de quem não puder acessá-lo, seguem alguns trechos que considero os

mais estimulantes para este estudo.

Trecho 1

O título deste livro [...] é ambíguo. Transforming [“transformadora”] pode ser um

adjetivo que descreve “missão”. [...] entretanto, também pode ser um particípio presente, a

atividade de transformar, da qual “missão” é o objeto. Aqui, a missão não é um

empreendimento que transforma a realidade, mas algo que está sendo, ele próprio,

transformado. [...] Minha tese é [...] que esse processo de transformação ainda não chegou

ao fim (e, na verdade, jamais chegará ao fim), e de que nos encontramos [...] em meio a

uma das mais importantes mudanças na compreensão e prática da missão cristã. Este

estudo, porém, não é meramente descritivo. [... Ele] também sugere que a missão continua

sendo uma dimensão indispensável da fé cristã e que, em seu nível mais profundo, seu

propósito é transformar a realidade que a circunda. [...] “Transformadora” é, por

conseguinte, um adjetivo que descreve uma característica essencial do que significa missão

cristã. (p. 11, Prefácio)

Trecho 2

O termo “missão” pressupõe alguém que envia, uma pessoa ou pessoas enviadas por

quem envia, as pessoas para as quais alguém é enviado e uma incumbência. Toda a

terminologia pressupõe, assim, que quem envia tema a autoridade para fazer isso. Com

freqüência, se sustentava que quem realmente enviava era Deus [...]. Na prática, [..] a

autoridade era entendida como sendo conferida à igreja ou a uma sociedade missionária, ou

mesmo a um potentado cristão. [...] Fazia parte de toda essa abordagem conceber a missão

em termos de expansão, ocupação de campos, conquista de outras religiões e coisas

semelhantes. [...] Vou sustentar que essa interpretação tradicional de missão foi

gradativamente modificada ao longo do século 20. (p. 18)

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Trecho 3

O que é novo em relação à nossa era [...] é que a missão cristã [...] está sendo

atacada não só a partir de fora, mas também a partir de dentro de suas próprias fileiras. [...]

Essas circunstâncias por si só tornam necessária e justificam a reflexão sobre a missão

como um ponto permanente na pauta da teologia. Se esta é uma “exposição reflexiva da

fé” [...], faz parte da tarefa da teologia considerar criticamente a missão como uma das

expressões [...] da fé cristã.

A crítica da missão não deveria, em si, nos surpreender. É, antes, normal para os

cristãos viverem numa situação de crise. (O teólogo holandês) H. Kraemer formulou isto da

seguinte maneira: “A rigor, dever-se-ia dizer que a Igreja está sempre num estado de crisee

que sua maior insuficiência é o fato de ela só estar consciente disso ocasionalmente.” Isso

deveria ser assim, sustentou Kraemer, por causa da “tensão permanente entre a natureza

essencial (da igreja) e sua condição empírica”.

[...]

Como seu Senhor, [...] a igreja – se for fiel a seu ser – será sempre controvertida,

um “sinal contra o qual se falará” (Lucas 2.34). [...] Saibamos [...] que defrontar-se com a

crise é encontrar a possibilidade de ser verdadeiramente a igreja. O caracter japonês de

“crise” é uma combinação dos caracteres de “perigo” e “oportunidade” (ou “promessa”); a

crise, por conseguinte, não é o fim da oportunidade, mas na realidade apenas seu início, o

ponto onde o perigo e a oportunidade se encontram, onde o futuro é incerto e onde os

acontecimentos podem tomar qualquer uma das direções. (p. 19)

Bosch em seguida afirma que a crise de que fala não atinge apenas a igreja cristã,

ela, na verdade, é uma crise que afeta o mundo inteiro: a ciência e a tecnologia; o Ocidente

antes considerado cristão e hoje crescentemente descristianizado; o mundo pluralista das

religiões; a crescente divisão entre pobres e ricos, entre poucas nações extremamente ricas e

muitos países tragicamente empobrecidos e assim por diante. Diante dessa situação, as

igrejas que surgiram do movimento missionário já não admitem mais a dependência das

igrejas de origem. Buscam sua autonomia não só segundo os três autos do século 19 (auto-

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sustento; autogoverno; autopropagação), mas também agora uma teologia própria,

contextual, que ajude estas igrejas a se tornarem responsáveis por sua compreensão do

evangelho e do mandato missionário de Cristo. É daí que surgem as novas teologias do

Terceiro Mundo: teologia da libertação (América Latina), teologia negra (EUA), teologia

contextual (CMI), teologia minjung (Coréia), teologia africana, teologia asiática e outras.

Trecho 4

A tese deste livro é que os acontecimentos que temos vivenciado ao menos desde a

Segunda Guerra Mundial (1939-1945, RZ) e a conseqüente crise na missão cristã não

devem ser entendidos como meramente incidentais e reversíveis. Ao contrário, o que tem se

desenvolvido em círculos teológicos e missionários durante as últimas décadas é resultado

de uma fundamental mudança de paradigma, não apenas na missão ou na teologia, mas

na experiência e no pensamento do mundo inteiro. [...] tal mudança de paradigma não nos

confronta [...] apenas com um perigo, mas também com oportunidades. Em épocas

anteriores a igreja reagiu imaginosamente a mudanças de paradigma; somos desafiados a

fazer o mesmo em relação a nosso tempo e contexto. (p. 20s)

Trecho 5

A crise contemporânea se manifesta, no que diz respeito à missão, em três áreas: o

fundamento, os motivos e a meta e a natureza da missão.

[...] Um fundamento inadequado para a missão e motivos e metas missionários

ambíguos estão fadados a acarretar uma prática missionária insatisfatória. As igrejas

“plantadas” nos “campos de missão” eram réplicas das igrejas da “frente doméstica” da

agência missionária, “abençoadas” com toda a parafernália dessas igrejas, “incluindo tudo,

desde harmônios até arquidiáconos”. [...]

Foi esse comércio de exportação eclesiástica que fez com que (o teólogo alemão

Paul (Schütz) protestasse dizendo: “A casa está pegando fogo! Em nossa missão nós nos

parecemos a um lunático que carrega a colheita para dentro de seu celeiro em chamas”.

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Schütz localizou o problema não “lá fora”, no campo da missão, mas no coração da própria

igreja ocidental. [...] “Intra muros”!” [“para dentro dos muros!”], bradou ele, “o resultado é

determinado pelo que acontece dentro da igreja, não fora, no campo de missão”. (p. 21s)

Trecho 6

(Diante dessa crise), o único caminho válido aberto para nós é lidar com a crise

numa atitude de máxima sinceridade, mas sem nos permitir sucumbir a ela. Mais uma vez:

a crise é o ponto em que o perigo e a oportunidade se encontram.

[...] Sugiro [...] que a solução para o problema apresentado pela atual falta de fibra

não reside numa simples volta a uma consciência e uma prática missionárias anteriores. [...]

Necessitamos, antes, de uma nova visão para sair do atual impasse rumo a uma espécie

diferente de envolvimento missionário [...]. Os mais valentes entre os pensadores

missionários já começaram há algum tempo a perceber que um novo paradigma para a

missão estava surgindo. [...] As duras realidades do presente nos compelem a re-conceber e

reformular a missão da igreja, a fazer isso de maneira ousada e imaginativa, mas também

em continuidade com o melhor daquilo que a missão foi nas últimas décadas e séculos.

A tese deste livro é a de que não é possível nem apropriado tentar uma definição

revista de missão sem examinar meticulosamente as vicissitudes das missões e da idéia

missionária durante os últimos 20 séculos da história cristã. (Além disso) deveria tornar-se

claro que em nenhuma época dos dois últimos milênios houve uma única “teologia da

missão”. [...] Entretanto, diferentes teologias da missão não se excluem necessariamente

umas às outras; elas formam um mosaico multicolorido de sistemas de coordenadas

complementares e mutuamente enriquecedores, bem como mutuamente contestadores. Em

vez de tentar formular uma única concepção de missão, deveríamos, antes, mapear o perfil

de um “pluriverso de missiologia num universo cristão”. (p. 25)

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Trecho 7

[...] nunca podemos arrogar-nos delinear a missão com excessiva nitidez e

autoconfiança. Em última análise, a missão permanece indefinível; ela nunca deveria ser

encarcerada nos limites estreitos de nossas predileções (ou teorias, RZ). O máximo que

podemos esperar é formular algumas aproximações do que a missão significa.

A missão cristã dá expressão ao relacionamento dinâmico entre Deus e o mundo,

particularmente à maneira como ele foi retratado, primeiro na (história) do povo do pacto,

Israel, e então, de modo supremo, no nascimento, vida, morte, ressurreição e exaltaçào de

Jesus de Nazaré. Um fundamento teológico da missão, diz (o teólogo alemão Th.) Kramm,

“só é possível se nos referirmos continuamente à base de nossa fé: a autocomunicaçào de

Deus em Jesus Cristo”.

A Bíblia não deve ser tratada como um depósito de verdades às quais poderíamos

recorrer aleatoriamente. Não há “leis de missão” imutáveis e objetivamente corretas [...].

Nossa prática missionária [...] é um empreendimento inteiramente ambivalente executado

no contexto da tensão entre providência divina e confusão humana. O envolvimento da

igreja na missão permanece um ato de fé sem garantias terrenas.

[...] A natureza missionária da igreja não depende simplesmente da situação na qual

ela se encontra em dado momento, mas está baseada no próprio evangelho. A justificação e

fundamentação das missões no exterior, bem como das missões no próprio país, “residem

na universalidade da salvação e na indivisibilidade do reinado de Cristo”. [...] Temos [...]

de repudiar a doutrina mística da água salgada; isto é, a idéia de que viajar a países

estrangeiros constitui a condição sine qua non de qualquer empenho missionário e o teste e

critério final do que seja verdadeiramente missionário. (p. 26s)

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Trecho 8

Temos de distinguir entre missão (no singular) e missões (no plural). O primeiro

conceito designa primordialmente a missio Dei (missão de Deus), isto é, a auto-revelaçào

de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a

natureza e atividade de Deus, que compreende tanto a igreja quanto o mundo, e das quais a

igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a boa nova de que Deus é um

Deus-para as/pelas-pessoas. Missões (as missiones ecclesiae) [“missões da igreja”]: (os

empreendimentos missionários das igrejas): designa formas particulares, relacionadas com

tempos, lugares ou necessidades específicos, de participação na missio Dei. (p. 28)

Bosch, então, afirma que a missio Dei – missão de Deus – é o “sim” e o “não” de

Deus ao mundo. É “sim” quando anunciamos o amor e a atenção de Deus pelo mundo, por

todas as pessoas, todos os povos, e particularmente, os pobres do mundo. É “não” quando

Deus se volta contra as injustiças e o mal no mundo, tudo aquilo que desumaniza e oprime

o ser humano e a própria criação. Também nós somos integrados neste “não” de Deus

quando nos opomos aos desmandos dos poderosos e nos solidarizamos com as vítimas de

toda e qualquer forma de opressão. Ao final dessa longa introdução, Bosch resume assim

seu pensamento:

Trecho 9

A igreja-em-missão [...] pode ser descrita em termos de sacramento e sinal. Ela é

sinal no sentido de indicação, símbolo, exemplo ou modelo; é sacramento no sentido de

mediação, representação ou antecipação. Não é idêntica ao reinado de Deus (nunca

confundir igreja e reinado ou reino de Deus, RZ), mas também não deixa de estar

relacionada com ele; é “um antegosto de sua vinda” (um aperitivo do reino, como escreveu

Rubem Alves, RZ), o sacramento de suas antecipações na história. Vivendo na tensão

criativa de, ao mesmo tempo, ser chamada para fora do mundo e ser enviada ao mundo, ela

é desafiada a ser o jardim experimental de Deus na terra, um fragmento do reinado de

Deus, tendo “as primícias do Espírito” (Romanos 8.23) como penhor do que há de vir (2

Coríntios 1.22). (p. 29)