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Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado * Márcia Chuva Na conferência de abertura do “Congresso do Barroco no Brasil – Ar- quitetura e Artes Plásticas”, realizado em Ouro Preto, em 1981, Afonso Ávila reconhecia o barroco brasileiro como um “vínculo de civilização que nos irmana aos povos do Ocidente”. Com isso, atualizava as concepções que fundamentaram as práticas de preservação cultural do Brasil, comparando Aleijadinho e Oscar Niemeyer – Ouro Preto e Brasília – como “algumas das grandes pontes que, ligando passado e presente, igualmente comuni- cam ao mundo, sem perda da individualidade nacional, uma perene uni- versalidade de nossa arte, de nossa cultura.” 1 Dentre essas concepções, a questão do pertencimento à civilização ocidental foi talvez a mais significa- tiva na configuração que tomou o processo de invenção de um “patrimô- nio nacional” no Brasil. Os cânones da arte brasileira e sua universalidade foram construídos de modo eficaz, com a consagração de uma associação inédita até então entre as formas e princípios renovadores do barroco e a produção arquitetônica moderna. Isso se deu, privilegiadamente, no âmbi- to da ação de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Nos anos 30 do século XX, um intenso trabalho de construção da nação foi inaugurado como parte do projeto de modernização do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, homem forte do governo Vargas. Nesse projeto, a noção de interesse público prevaleceria, política ou sim- bolicamente, ante os interesses individuais. Foi este um dos caminhos em que se tornou possível promover o pensamento de unidade nacional, es- pecialmente dentro do Estado Novo: era preciso escapar do individual, que era fragmentário, em busca do público ou do bem comum, unificador. So- mente a unidade das origens e a ancestralidade comum de toda a nação * Artigo recebido em março de 2003 e aprovado em maio de 2003. TOPOI, v. 4, n. 7, jul.-dez. 2003, pp. 313-333.

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Fundando a nação: a representação deum Brasil barroco, moderno ecivilizado

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  • Fundando a nao: a representao deum Brasil barroco, moderno e

    civilizado*

    Mrcia Chuva

    Na conferncia de abertura do Congresso do Barroco no Brasil Ar-quitetura e Artes Plsticas, realizado em Ouro Preto, em 1981, Afonso vilareconhecia o barroco brasileiro como um vnculo de civilizao que nosirmana aos povos do Ocidente. Com isso, atualizava as concepes quefundamentaram as prticas de preservao cultural do Brasil, comparandoAleijadinho e Oscar Niemeyer Ouro Preto e Braslia como algumasdas grandes pontes que, ligando passado e presente, igualmente comuni-cam ao mundo, sem perda da individualidade nacional, uma perene uni-versalidade de nossa arte, de nossa cultura.1 Dentre essas concepes, aquesto do pertencimento civilizao ocidental foi talvez a mais significa-tiva na configurao que tomou o processo de inveno de um patrim-nio nacional no Brasil. Os cnones da arte brasileira e sua universalidadeforam construdos de modo eficaz, com a consagrao de uma associaoindita at ento entre as formas e princpios renovadores do barroco e aproduo arquitetnica moderna. Isso se deu, privilegiadamente, no mbi-to da ao de proteo do patrimnio histrico e artstico nacional.

    Nos anos 30 do sculo XX, um intenso trabalho de construo danao foi inaugurado como parte do projeto de modernizao do ministroda Educao e Sade, Gustavo Capanema, homem forte do governo Vargas.Nesse projeto, a noo de interesse pblico prevaleceria, poltica ou sim-bolicamente, ante os interesses individuais. Foi este um dos caminhos emque se tornou possvel promover o pensamento de unidade nacional, es-pecialmente dentro do Estado Novo: era preciso escapar do individual, queera fragmentrio, em busca do pblico ou do bem comum, unificador. So-mente a unidade das origens e a ancestralidade comum de toda a nao

    * Artigo recebido em maro de 2003 e aprovado em maio de 2003.

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    deveriam servir para ordenar o caos, encerrar os conflitos, irmanar o povoe civiliz-lo. As prticas de preservao cultural foram inauguradas no Bra-sil no bojo desse projeto, a partir da criao do Servio do Patrimnio His-trico e Artstico Nacional o SPHAN, em 1937.

    Intelectuais de peso que moldaram o patrimnio histrico e artsticobrasileiro, como Lucio Costa, Rodrigo Melo Franco de Andrade e CarlosDrummond de Andrade embora consagrados por outras vias de reco-nhecimento e insero social tendo em mos seus passaportes para a mo-dernidade atuaram decisivamente dentro do governo Vargas, especial-mente no Estado Novo. Esses intelectuais tornaram-se, a um s tempo,funcionrios dedicados do SPHAN, onde consolidaram todo um pensa-mento acerca do patrimnio histrico e artstico brasileiro, e os gnios fun-dadores de uma nao moderna, que se identificavam na crena comumque possuam acerca da universalidade da cultura e da arte. Com base nes-sa crena, formularam as teses acerca do patrimnio cultural brasileiro queinseriram o Brasil no mundo civilizado.

    Seria interessante, ento, observ-los sob uma tica que ressaltasse osvnculos entre suas expectativas acerca da nao da qual foram tambmartfices. Nome-los modernistas no seria suficiente, pois os debates emtorno da criao da nao, que estiveram presentes no modernismo dosanos 20, e foram incorporados s malhas do Estado aps 1930, acabarampor evidenciar diferenas cruciais entre as vrias correntes que se forma-ram, constituindo grupos por vezes antagnicos em relao s suas visesde mundo e ao projeto de nao em disputa.

    As diferentes solues projetadas para os imensos desencontros, con-trastes e diversidades presentes no territrio brasileiro levavam a diferentesvias explicativas da identidade nacional. Nesse sentido, a questo da va-lorizao, ou no, das diferenas regionais como constituidoras da identi-dade nacional, que abriu um leque amplo de debates em torno das origensda nao, tornou-se um divisor de guas para as concepes que funda-mentariam, posteriormente, as prticas de preservao cultural no SPHAN:para alguns modernistas, as caractersticas regionais eram sinal de atraso eobstculo atualizao da cultura brasileira e, para outros, ao contrrio,eram depositrias da verdadeira identidade. Com relao a tais teses, comoveremos, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de An-

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    drade e Lucio Costa identificavam-se profundamente entre si, pela crenana universalidade e, conseqentemente, na origem comum da culturae da arte, sendo este um ponto crucial na concepo de nao que se con-sagrou no Brasil a partir do SPHAN.

    Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 1952, rememorando essa po-ca, atualizava seu pertencimento a um certo grupo de modernistas quedenominou a quarta corrente nome que faz referncia aos outros gru-pos existentes, um deles organizado em torno de Graa Aranha, Ronald deCarvalho e Renato Almeida; outro, os verde-amarelos, tendo Plnio Sal-gado, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia frente; ou ainda, o grupode tendncia esteticista de Guilherme de Almeida.2

    Como editor da Revista do Brasil, transformou-a num rgo domodernismo segundo suas palavras, ao contar com as fortes relaes deamizade mantidas com Prudente de Moraes Neto, Srgio Buarque deHolanda e Afonso Arinos de Melo Franco, todos eles integrantes dessa quar-ta corrente, que se tornaram freqentadores assduos de seu Gabinete noSPHAN e tambm autores da Revista do SPHAN.3 Eles formaram o gru-po modernista reunido no Rio de Janeiro, que diversificou o movimento,a partir de 1924, integrando novas redes, s quais mineiros como CarlosDrummond que ainda permanecia em Belo Horizonte seriam tam-bm atrados. Esse grupo, que havia criado A Revista, publicada em BeloHorizonte entre 1925-1926, representava a vertente universalista e cosmo-polita do modernismo mineiro.4

    Em 1927, num artigo na Revista do Brasil, Rodrigo Melo Franco deAndrade confrontava-se abertamente com Plnio Salgado, posicionando-se contrariamente ao indianismo que fundamentou, em boa medida, asteses geograficizantes das origens da cultura nacional da corrente moder-nista verde e amarelo. Sua clareza em relao inexistncia da nao bra-sileira e necessidade de se investir na sua constituio ficou expressa nesseartigo:

    O Sr. Plnio Salgado no pode saber se quando chegarmos a constituir umanao, o elemento preponderante na formao desta ser o tupi ou o japo-ns. No convm, portanto, brigar com seus amigos verde e amarelos porcausa do ndio.5

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    Diante do longo trabalho que estava por se realizar para que a naobrasileira se constitusse, Rodrigo Melo Franco considerava fundamental,ao mesmo tempo, reafirmar uma herana europia portuguesa e, emcontrapartida, negar uma possvel herana indgena. Argumentava que asfrgeis construes de madeira haviam sido logo substitudas pelas edifica-es mais duradouras que imprimiram s primeiras povoaes sua fisio-nomia peculiar, considerando

    ... injustificvel [...] que os povoadores portugueses do Brasil tivessem vin-do aprender com nossos indgenas a erigir construes de madeira, tcnicaessa muito antiga e corrente na Europa e na pennsula. Nem se pode admi-tir que os colonos europeus se resignassem a utilizar por longos anos cons-trues extremamente frgeis e toscas.6

    A posio que Rodrigo Melo Franco tomou nesse debate delinearia,ou melhor, daria propriamente uma forma ao pensamento que se consolidouno SPHAN, ao buscar, sem regionalismos, constituir a fisionomia do Bra-sil que seria apresentada, no mbito das relaes internacionais que esta-belecia, para garantir um pertencimento ao mundo das naes modernas.

    O grupo que atuaria junto ao SPHAN, a partir de 1937, foi marcadopor essa forte experincia dos anos 20, partilhando vivncias comuns e, semdvida, pelo drama da modernidade vivido por esses intelectuais e por suascontradies. Rodrigo Melo Franco de Andrade foi um elo fundamentalde integrao de experincias e amizades entre mineiros e paulistas em tornode sua mesa no Gabinete do SPHAN, no Rio de Janeiro, como primeirodiretor do Servio, desde a fase experimental, em 1936, permanecendo at1967, e pea-chave na articulao poltica e na constituio das redes deagentes em todo o territrio brasileiro. Sua vida pessoal confundiu-se como que chamava sua misso, como personagem de destaque que foi nessenovo campo de interveno social: consolidar uma lei e um servio pbli-co de salvaguarda do patrimnio nacional, sem perder de vista a inserobrasileira nas redes internacionais, numa espcie de diplomacia cultural porele exercida.

    Tambm Carlos Drummond de Andrade seria um legtimo represen-tante de tais idias. Concebidas, como dissemos, a partir da crena na uni-versalidade da arte e da cultura e preocupadas com um provincianismo que

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    limitava as possibilidades de insero no quadro internacional, as idias squais se alinhava Drummond vinculavam-se a uma matriz iluminista eracionalista do pensamento.

    Em relao s teses que fundamentaram as prticas do SPHAN, ocontraponto entre os dois grandes escritores modernos o paulista Mriode Andrade, tambm partcipe da fundao do SPHAN, e o mineiro CarlosDrummond de Andrade colocou em evidncia as concepes universa-lizantes de Drummond e as profundas distines em relao ao pensamentode Mrio de Andrade. Este pretendia encontrar categorias classificadorasque, atravs do conhecimento, pudessem enquadrar a cultura brasileiramltipla e plural. Sustentava a crena no valor da diversidade cultural bra-sileira que, reunida ou amalgamada, faria uma nova sntese.7 Essa possibi-lidade de valorizao de diferentes manifestaes culturais como identifi-cadoras da brasilidade vai de encontro s idias de Drummond, em quea insero no mundo civilizado se daria, principalmente, pela identifica-o de uma arte brasileira que pudesse se enquadrar na classificao tradi-cional da histria da arte no mundo ocidental.

    Alm dessas diferenas, a gerao de Drummond transitava pela lite-ratura e pela poltica, como afirma Bomeny, no pela compulsomissionria de Mrio de Andrade, mas por uma experincia de oficialida-de que se acumulava naquele conjunto de intelectuais, a gerao dos che-fes de gabinete.8 Ainda que Mrio de Andrade tenha retornado a So Paulocomo funcionrio da sede regional do SPHAN, caiu num ostracismo ran-coroso ou desiludido, at sua morte prematura em 1945. Por sua vez, CarlosDrummond de Andrade foi absorvido por Rodrigo Melo Franco de An-drade como funcionrio do SPHAN, com o fim do governo Vargas e desua gesto como chefe de gabinete de Capanema. No SPHAN, tornou-seum barnab, como ele prprio se denominava. Ao assumir a Seo de His-tria, responsabilizava-se, segundo o desejo de Rodrigo, em carta para LucioCosta, por elaborar um plano de organizao compreendendo arquivo ebiblioteca da DPHAN, subordinada Diretoria de Estudos e Tombamen-to, dirigida por Lucio Costa.9 Cabia a Drummond a inscrio nos Livrosde Tombo dos bens selecionados para tombamento pelo SPHAN, bemcomo a constituio de um acervo para a biblioteca e a formulao de umalgica para o arquivamento de toda a documentao produzida no rgo,

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    constituindo, progressivamente e de modo peculiar, um acervo de docu-mentao variada acerca do patrimnio histrico e artstico nacional, ar-quivado pelo endereo do bem cultural.10 Essa escolha se deu, sem dvi-da, em funo das necessidades da lida diria dos tcnicos do SPHAN.Carlos Drummond de Andrade aposentou-se no SPHAN, mas declinousempre ao convite de escrever na Revista do SPHAN, mantendo-se fiel asua escolha em favor de sua prpria arte.

    Lucio Costa no SPHAN: a moderna profisso do arquiteto

    Lucio Costa, vanguardista da arquitetura moderna no Brasil, no teveenvolvimento com qualquer dos diferentes grupos ou correntes modernistasdos anos 20. No entanto, suas concepes abriram uma nova frente nomundo do modernismo, com uma aproximao fecunda entre as concep-es de arte e vises de mundo daqueles integrantes da citada quarta cor-rente do modernismo, com as suas razes da arquitetura, de 1934, naperspectiva universalista da cultura e da arte.11

    Nos anos 30, Lucio Costa tornou-se um dos personagens fundamen-tais no processo de profissionalizao do arquiteto, no que se refere for-mulao de uma fala prpria categoria. J era ento um arquiteto de re-nome, tendo conquistado prmios em concursos nacionais e internacionais.Por indicao de Rodrigo M. F. de Andrade, na ocasio chefe de Gabinetedo Ministro da Educao e Sade Pblica, Francisco Campos, assumiu,em 8/12/1930, a direo da Escola de Belas Artes EBA.

    Implantou, ento, reformas na Escola, que passou a comportar doiscursos didaticamente autnomos: um de Arquitetura e outro de Pintura eEscultura, chamando Gregori Warchavchik, que havia sido o introdutor daarquitetura moderna no Brasil, para lecionar Composio de Arquitetura.12

    Para o curso de Pintura e Escultura, criou o Salo Livre, onde reu-niu artistas no consagrados pelas exposies oficiais13 . Os antigos profes-sores, afastados, abriram campanha ostensiva contra as reformas impostas.Na contra-ofensiva, os estudantes promoveram uma greve de seis meses sesolidarizando com Lucio Costa. Conseguiram, com isso, manuteno depontos bsicos da reforma, mas Lucio Costa foi obrigado a se afastar dadireo da escola em 19 de setembro de 1931.14 Nessa ocasio, Lucio Costa

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    e Gregori Warchavchik projetaram a Vila Operria da Gamboa, no Riode Janeiro. Entre 1933 a 1936, Lucio Costa esteve associado ao arquitetoCarlos Leo, tendo sido, tambm, professor da Universidade do DistritoFederal, no ano de 1935.

    Mas, reflexos talvez de sua breve gesto, em 1932, o Ministro Washing-ton Pires promoveu a reorganizao das disciplinas, a pedido da Congre-gao da EBA, com a criao de novas cadeiras cientficas, artsticas e deestudos de Urbanismo. J em 1933, foi criado primeiro instrumento legalde regulamentao das profisses de engenheiro, arquiteto e agrimensor, oque demarcou o mercado de trabalho dessas profisses.15

    Em 1935, realizou-se o concurso para seleo de projeto para cons-truo do prdio do Ministrio da Educao e Sade, em que foi vencedoro projeto de Arquimedes Memria, professor catedrtico e diretor da Es-cola de Belas Artes desde a sada de Lucio Costa. No entanto, seu projetono foi realizado e, em maro de 1936, Capanema convidava Lucio Costapara elaborar uma nova proposta.16 Lucio Costa constituiu ento umaequipe, junto com alguns arquitetos desclassificados no concurso: CarlosLeo, Jorge Moreira, Affonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer e ErnaniVasconcellos. Com apoio de Carlos Drummond de Andrade (ento Che-fe de Gabinete de Capanema), Mrio de Andrade, Rodrigo Melo Francode Andrade e Manuel Bandeira (j engajados no SPHAN), Lucio Costaconvenceu diretamente Vargas, sob os auspcios de Capanema, a convidaro ilustre arquiteto moderno para orientar a confeco de um novo projeto,o suo Le Corbusier, que viajou para o Brasil a bordo do dirigvel Zeppelin.O prdio do Ministrio tornou-se um dos marcos decisivos no reconheci-mento oficial da arquitetura modernista no Brasil e no mundo.

    O perodo estadonovista possibilitou a consolidao e oficializao davertente modernista da arquitetura, que teve na obra e na figura de LucioCosta seu maior paradigma e sua maior liderana. Criou as possibilidadesde sua institucionalizao, com a formulao de um discurso perfeitamenteenquadrado nas questes mais presentes daquele momento, at mesmo noque diz respeito recuperao da tradio, sempre de acordo com sua visode mundo moderna. Ou seja, sem imit-la ou reproduzi-la, mas no que elatinha de melhor: a pureza das formas, o lirismo, o equilbrio.

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    Foi a partir de 1945 que se deu a proliferao das faculdades de Ar-quitetura no Brasil.17 Reservou-se, enfim, um campo especfico ao novoprofissional o arquiteto. A arquitetura distinguiu-se, paulatinamente, nocampo de disputa scio-profissional travado com a engenharia civil. Essaslutas de representao viriam a caracterizar a profisso do arquiteto comocapaz de propor uma adaptao permanente ao contexto sociocultural emque a arquitetura fosse produzida, voltando-se para a leitura das condiessociais e tecnolgicas existentes no tempo e no espao em que se concreti-zaria. Considerando-se a amplitude prpria formao, o habitus do ar-quiteto pode ser pensado a partir da soma de cada uma das especialidadesdo artista, do engenheiro, do historiador e do socilogo.18

    Um dos traos mais caractersticos dessa orientao que se firmoucomo prpria do arquiteto foi justamente a inteno de uma aborda-gem multifacetada, situando-se a meio caminho entre a tcnica, a arte e ahistria. O estudo das tcnicas no deveria desvincular-se do exame dascondies em que estas deveriam ser utilizadas. Palavras como racionali-zao, verdade, autenticidade, legitimidade, passariam a integrarnecessariamente o seu vocabulrio, que, no Brasil, se constituiu no bojoda consagrao da vertente modernista na arquitetura. Nesse contexto, osarquitetos se auto-atriburam o sentido da modernidade, como algo intrn-seco profisso, visando retomada dos aspectos peculiares experinciabrasileira, e enriquecendo-se da racionalidade contempornea, com utili-zao efetiva das novas tecnologias. Isso fica bastante evidente ao se obser-varem arquitetos dessa vertente atualizando esse tema, fazendo questo deserem tratados, ainda hoje, no por modernistas, mas por modernos, afim de no serem identificados a um estilo arquitetnico de poca, masrepresentantes de princpios universais e valores atemporais.19 Para LucioCosta, a arquitetura daria materialidade nao, e seria esta a funo pri-mordial do SPHAN dar concretude nao, no somente desvendandoa todos os brasileiros aquilo que, embora existente, se encontrava escondi-do, mas, tambm, construindo efetivamente essa materialidade.

    Lucio Costa assumiria papel central dentro do SPHAN, por um lado,ao inter-relacionar trs questes fundamentais, na poca, que demarcarama histria do Servio e o lugar que o arquiteto assume dentro do SPHAN:as prticas de preservao cultural, a produo arquitetnica moderna e a

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    formao profissional do arquiteto. Assim, foi capaz de reunir, a um s tem-po, os papis de principal mentor do modernismo em arquitetura no Bra-sil, de formalizador das bases conceituais que caracterizariam a profissodo arquiteto, e de formulador das posturas e concepes do SPHAN, in-clusive com relao restaurao do patrimnio arquitetnico, como pro-fissional de carreira desde 1938. Desse modo, em momentos cruciais den-tro do Servio, foi delineado um mapa de possibilidades do que viria a setornar patrimnio histrico e artstico brasileiro.

    Ao ocupar esse lugar, Lucio Costa fundaria um novo tempo para aproduo arquitetnica brasileira moderna e herdeira da boa tradioque constituiu uma verdadeira escola. Essa escola formou e forma athoje profissionais que disputam a herana no s da primeira gerao demodernistas brasileiros cujos representantes mximos so o prprio LucioCosta e Oscar Neimeyer , mas tambm da segunda gerao, que se orga-nizou em torno desses j consagrados: os arquitetos da Novacap, os cons-trutores da utopia, a cidade moderna de Lucio Costa. Esses jovens arquite-tos tambm aparelharam-se dentro do SPHAN, como funcionrios do Servio,que se tornou um mercado de trabalho privilegiado e de grande prestgiopara a categoria profissional do arquiteto.

    Lucio Costa torna-se, concretamente, o elo entre o moderno e a tra-dio, construindo essa associao, conceitualmente, atravs de artigos pu-blicados na Revista do SPHAN, das restauraes que o SPHAN executousob sua orientao, das informaes que produziu como tcnico do Servi-o acerca de solicitaes de tombamento.

    Dentre as vrias aes implementadas a partir da poltica de proteoao patrimnio nacional, a edio da Revista do Patrimnio foi muito bem-sucedida no sentido de construir uma identidade nacional que, associada-mente, revelasse uma nao moderna e pertencente ao mundo civilizado,podendo estabelecer o Brasil em p de igualdade nas redes internacionaisde trocas simblicas em funcionamento e circulao naquele momento.Com base nessas concepes, o patrimnio cultural brasileiro teve reconhe-cimento mundial, inserindo o Brasil na universalidade da arte europia eao mesmo tempo garantindo-lhe particularidades.

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    Lucio Costa na Revista do Patrimnio, menina dos olhosde Rodrigo

    A arte brasileira era inconfundvel, posto que, apesar de inseridadentre os valores universais, possua especificidades, onde a apropriaopopular do erudito havia trazido o imprevisto, o criativo, o novo: umanao nova estava sendo construda. Alm da materialidade dos monumentos,portanto, uma outra realidade fsica estava sendo construda com a produ-o de livros, onde se afirmava que o Brasil era uma nao porque possuacultura, era civilizado porque suas razes advinham da arte universal.

    A poltica editorial do SPHAN foi marcada por uma produo dis-cursiva descritiva e classificadora do patrimnio histrico e artstico nacio-nal, capaz de conquistar legitimidade para prescrever os atributos dessepatrimnio e para fixar um mapa de possibilidades. Com ela, o SPHANpassaria a balizar e polarizar os debates sobre essa temtica, fazendo comque, ao se falar de preservao cultural no Brasil, se tornasse impossvel nose remeter sua produo, ainda que para critic-la ou question-la.

    A Revista do Patrimnio a menina dos olhos de Rodrigo, segundoLucio Costa teve no bojo do seu projeto a preocupao com a constru-o de uma arte brasileira que se enquadrasse nos padres universais.Augusto C. da Silva Telles20 , ao apresentar um panorama bastante com-pleto dos estudos das artes e da arquitetura barroca do perodo colonial noBrasil e da bibliografia existente, destacou a inexistncia de produo acer-ca do assunto at a criao do SPHAN, quando se iniciou imenso investi-mento na elaborao de estudos apoiados em critrios cientficos, com basedocumental e crtica, com uma campanha de pesquisas e levantamentodocumental iniciada por Rodrigo Melo Franco, para publicao na Revis-ta.21 Antes de 1937, a produo artstica brasileira permanecia margemda preocupao da grande maioria dos historiadores e dos crticos de arteeuropeus e norte-americanos22, tendo sido alguns dos artigos publicadosna Revista do SPHAN, nos anos 30 e 40, fundadores no tratamento do as-sunto.23 Acreditava, no entanto, terem sido historiadores estrangeiros osprimeiros a realizarem snteses gerais da arquitetura barroca brasileira. Es-ses historiadores, como, por exemplo, o americano Robert Smith, tambmautor da Revista no perodo,24 dariam legitimidade e visibilidade interna-

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    cional ao patrimnio brasileiro, por se alinharem s concepes que fun-damentavam a existncia do barroco no Brasil, em especial na chamadaarquitetura de interior presente nas igrejas setecentistas mineiras.

    A Revista do Patrimnio, embora no fosse uma publicao de luxo,tinha cuidados grficos, e era recheada de fotografias e desenhos, tendoconquistado, em 1946, o diploma de honra na Segunda Exposio In-ternacional de Publicaes Peridicas, realizado pela Biblioteca Pblica deSantiago Alvarez da Escola Provincial de Artes Plsticas Tarasc, em Cuba,em que concorreram 1.711 publicaes de todo o mundo.25 O jornalA Manh, de 21 de janeiro de 1946, noticiava que alguns de seus nmerosj estavam esgotados e considerava que a alta recompensa, de projeo in-ternacional, obtida em Cuba, vem confirmar o crdito que a excelente re-vista vem alcanando desde seu lanamento nos meios culturais do pas edo estrangeiro, e esto por isso de parabns o seu diretor e todos os seuscolaboradores.26

    Ela foi inaugurada visando demarcar um espao para uma produode excelncia. No n 1 da Revista, de 1937, quatro artigos fizeram uma es-pcie de apresentao, traando um panorama geral tanto de diferentes tiposde patrimnio histrico e artstico nacional, quanto das possibilidades de suaproteo, das formas e dos meios para execut-la, com especialistas comatuao profissional variada, configurando uma diversidade de objetos econhecimentos.

    Rodrigo Melo Franco de Andrade exps no Programa da Revista queno se tratava de iniciativa de propaganda do Servio e que apoiava-se nacontribuio dos doutos nas matrias relacionadas com sua finalidade.Seu objetivo era, primordialmente, divulgar o conhecimento dos valoresde arte e de histria que o Brasil possui e contribuir empenhadamente paraseu estudo.27

    Gilberto Freyre escreveu Sugestes para o estudo da arte brasileira emrelao com a de Portugal e das Colnias. Para Freyre, havia um poder depersistncia admirvel da produo artstica colonial que reafirmava a no-o de nao constituda, primordialmente, pela cultura portuguesa. Almda arquitetura, Freyre ressaltava, em diversos outros fazeres e ofcios, que

    [...] a fora criadora do portugus, em vez de se impor, com intransignciaimperial, ligou-se no Brasil ao poder artstico do ndio e do negro e, mais

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    tarde, ao dos outros povos, sem entretanto, desaparecer: conservando-se emquase tudo o elemento caracterstico. 28

    O artigo de Mrio de Andrade, intitulado A Capela de Santo Antnio,embora sem perfil programtico, tinha uma carter conceitual, ao definirum certo entendimento de valor histrico, utilizado, via de regra, nasclassificaes do patrimnio nacional protegido pelo Servio:

    O critrio para um trabalho proveitoso de defesa e tombamento do que opassado nos legou, tem de se pautar, no Estado de So Paulo, quase exclusi-vamente pelo ngulo histrico. [...] Tem de ser histrico, e em vez de sepreocupar muito com beleza, h de se reverenciar e defender especialmenteas capelinhas toscas... 29

    Tambm no nmero 1 da Revista, Lucio Costa escreveu Documenta-o Necessria, referindo-se necessidade de se recuperar a boa tradio,pelo estudo da nossa antiga arquitetura civil e nela, particularmente, a casa,que caracterizou de forma bastante peculiar:

    Feita de pau do mato prximo e da terra do cho, como casas de bicho,servem de abrigo para toda famlia [...] faz mesmo parte da terra comoformigueiro, figueira-brava e p de milho cho que continua... Mas jus-tamente por isso, por ser coisa legtima da terra, tem para ns, arquitetos,uma significao respeitvel e digna... 30

    Os adjetivos que o autor atribua arquitetura pareciam subjetiv-la,levando o leitor a uma identificao dela com os atributos da raa oautntico brasileiro, filho da terra. Valorizava, assim, a inventividade nasformas peculiares de apropriao, que vieram a caracterizar a arquiteturapopular brasileira, processo desenvolvido to naturalmente que tambma prpria nao e os membros que a constitussem genuinamente seriamnaturais. Essa forma de construir era a boa tradio que no podia serperdida e, como disse Rodrigo Melo Franco de Andrade, o arquiteto mo-derno Lucio Costa era seu herdeiro legtimo.

    A preocupao central estava voltada para a valorizao do passadocolonial, representando as origens da nao, conferindo-lhe uma ancestra-lidade que deveria referenciar-se numa matriz portuguesa, mas que, a par-tir dela, configuraria um universo tipicamente brasileiro. Nos nmeros

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    subseqentes da Revista, a chave de entendimento esteve no incentivo produo e na publicao efetiva de estudos acerca da classificao da artebrasileira e seu patrimnio colonial, na categoria de arte barroca, pois eraesta que iria vincular o Brasil histria da arte universal.31

    Mas a participao mais significativa de Lucio Costa foi, sem dvida,atravs do seu artigo seminal intitulado Arquitetura Jesutica no Brasil,na Revista do Patrimnio n 5, de 1941. Nele, Lucio Costa formulou umaclassificao da arte brasileira, que iria, no s orientar a prtica de restau-rao no Brasil, mas, principalmente, esclarecer o que seria a arte barrocabrasileira. Para Costa, ela significava no apenas um estilo, mas abrangiatodo um sistema, uma

    [...] verdadeira confederao de estilos uma commonwealth barroca, po-der-se-ia dizer, [...] pois so diferenciados entre si mas mantm uma normacomum de conduta em relao aos preceitos e mdulos renascentistas. [...]a maior parte das manifestaes de arte compreendidas entre a ltima fasedo Renascimento e o novo surto classicista de fins do sculo XVIII e, noBrasil, princpios do XIX. 32

    A arquitetura tradicional foi classificada em tipos de manifestaesde arte barroca no Brasil, cronologicamente colocados em quatro perodosessenciais, correspondendo cada um deles a um estilo determinado: 1 fase,classicismo barroco, de fins do sculo XVI e primeira metade do XVII, quefoi importado de Portugal; 2 fase, romanicismo barroco, de meados e se-gunda metade do sculo XVII e princpios do XVIII, correspondendo sverses populares da primeira fase, com dois nicos exemplares em SoPaulo, inventariados por Mrio de Andrade, desde 1937; 3 fase, goticismobarroco, da primeira metade e meados do sculo XVIII; e a 4 fase, renas-cimento barroco, da segunda metade do sculo XVIII e princpios do XIX.33

    Trata-se de uma verdadeira tomada de posio, especialmente sob oaspecto da determinao de uma classificao evolutiva, que de formasistmica consagrou uma tipologia que seria reconhecida no somente nointerior do Servio, mas pela prpria historiografia da arte no Brasil umahistoriografia da civilizao material brasileira. Instaurava-se ento umtempo propriamente brasileiro, diferente do portugus, embora dele ad-vindo. Conforme Lucio Costa, a produo arquitetnica colonial brasilei-

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    ra se enquadrava numa classificao universal, obedecendo a um processoevolutivo normal, de natureza, por assim dizer, fisiolgica.34

    Do primeiro estilo o mais caracterizadamente jesutico at ao es-tilo mineiro da ltima fase, cuja obra-prima a capela-mor da Igreja deSo Francisco de Assis, em Ouro Preto, estilo apenas alcanado pelos pa-dres, as transformaes sucessivas repetem, curiosamente e na mesma ca-dncia, as vrias etapas que percorreu o conjunto da arte europia, na suaevoluo da idade clssica Renascena, atravs dos estilos medievais romnico e gtico.35

    O Brasil repetia as fases da periodizao da Europa civilizada, na qualse inseria e da qual se diferenciava. No caso brasileiro foi na composioe na talha dos retbulos de altar que se deu com maior nitidez essa extraor-dinria profuso e variedade de estilos peculiar do barroco elementos es-ses considerados tambm arquitetura, porm de interior.

    Essa cronologia comportava, em no mais de 250 anos (fins do scu-lo XVI e comeo do XIX), as fases do processo civilizatrio do mundoeuropeu ocidental: o clssico grego; o romnico; o gtico; e o renascentista.Todas essas fases estavam reunidas por uma adjetivao comum a todas elasno Brasil o barroco , que colocava as origens da nao brasileira sincro-nizadas com a histria do mundo civilizado. Aparentemente queimandoetapas, essa cronologia sintetizava experincias e tirava-lhes o sumo essen-cial de forma a atualizar a nova nao que, num curto espao de tempo,alcanava o tempo do velho mundo. Estavam sendo forjadas uma ances-tralidade e uma herana, que permitiriam nao prosseguir acompanhan-do, sincronicamente, a partir de ento, a evoluo da arte universal.

    Evidentemente, uma determinada esttica modernista atravessou oestudo de Lucio Costa, evidenciando um engajamento profundo com essacontemporaneidade e viso de mundo moderna. Lucio Costa promoveuento uma apologia do barroco, atravs da sua esttica contempornea e,ao mesmo tempo em que encontrava as especificidades brasileiras, preo-cupava-se permanentemente em introduzi-las no processo civilizatrioeuropeu. Essa identidade foi forjada pelo esprito moderno:

    [...] o estilo que caracterizou as grandes matrizes mineiras, e j tratado pelanova gerao modernista da segunda metade daquele sculo[XVIII], isto ,

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    dos artistas que ergueram as igrejas de irmandades como antigo e de gos-to gtico, conforme se v, entre tantos outros documentos [...]. Esse novoestilo, moderno, como ento se dizia, data da segunda metade do sculoXVIII [...] . Corresponde a um verdadeiro Renascimento, com a volta scomposies mais claras e arrumadas da primeira poca.[...] Do expostoresulta que se pode razoavelmente falar de um classicismo barroco, de umromanicismo e de um goticismo barrocos e, finalmente, de um renasci-mento barroco. 36

    Mapa de um Brasil barroco, moderno e civilizado

    Para recuperar para a nao a posse ou o domnio das suas origens, opatrimnio deveria manter-se e/ou voltar ao seu estado primitivo, devol-vendo nacionalidade um vigor perdido. Para tanto, os vestgios materiaisdeveriam tambm ser identificados, revelando nao sua origem barro-ca, o que se daria atravs das prticas de restaurao: as obras de restauroempreendidas buscavam um tempo apropriado ao qual o imvel deveriaretornar o tempo colonial sendo justamente nesse ponto que, mais umavez, o barroco serviria de parmetro.

    Foi com base numa concepo de origem que contm a idia de saltoem direo ao novo, como algo que se liberta e rompe com a continuidadenum profundo processo de renovao, que os intelectuais do SPHAN fun-daram as origens de uma produo artstica autenticamente brasileira. Issoficou bastante evidente no artigo em que Lucio Costa atribuiu esse saltoqualitativo queles que denominou renovadores do sculo XVIII.37 Asqualidades identificadas seriam as mesmas atribudas produo literria earquitetnica modernista dos anos 20 e 30 renovadora e revolucionria.

    A valorizao do vestgio e a preocupao em guard-los para teste-munhar posteridade, foram estratgias visando estabelecer elos com ummomento originrio (barroco sculo XVIII), que teria sido rompido etransformado. , portanto, somente atravs do sentimento de pertencimen-to a um novo tempo (moderno sculo XX) que se torna possvel demar-car dois momentos precisos o originrio, que constitui a ancestralidadeda nao, e o momento presente, de refundao, que capaz de reconquis-tar o elo perdido constituinte do ser nacional, qual seja, o esprito de in-

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    veno, a seiva criadora, o sentido plstico real e a espontaneidade e reconhecer nesse gesto a ruptura. Lucio Costa carregava a crena de quea produo moderna da arquitetura resgataria essa que ele chamou de aboa tradio.38

    A arquitetura era compreendida em todo seu conjunto, isto , edifi-cao e arquitetura de interior e, de acordo com as idias que se(con)formavam a respeito do barroco no Brasil, esse estilo havia alcanadoplenitude e maior liberdade de expresso, especialmente nas igrejassetecentistas mineiras, atravs da composio dos retbulos e das obras detalha.

    Para inserir o Brasil na consagrada histria da Arte Universal, inves-tiu-se na reapropriao do barroco, que passou a ser visto como um movi-mento artstico considerado profundamente renovador, que desde a pu-reza e verdade das construes gregas jamais havia se repetido e que, apartir do barroco, s teve novo momento renovador com a arquiteturamoderna, advinda da revoluo industrial. Foi esta que possibilitou a in-veno de novos materiais, novas formas e tcnicas. A genialidade de LucioCosta construa, assim, a genealogia da boa arquitetura, universal, emque a produo brasileira se enquadrava, na origem e na atualidade

    certo que, alm da universalidade visada, a arquitetura modernabrasileira conquistou tambm nesse momento a legitimidade de figurarcomo a produo nacional autntica, herdeira legtima da boa arquiteturade renovao que deu origem a uma produo genuinamente brasileira.Ao mesmo tempo em que o SPHAN lutou pela consagrao do barrocobrasileiro, atravs de diferentes aes de seleo e proteo do patrimniohistrico e artstico, conseguindo tornar a produo artstica brasileira parteintegrante da produo universal da arte, investiu tambm em encontraras especificidades do nacional nela contida. A produo artstica brasileirafoi reconhecida, porque inserida num processo civilizatrio europeu per-cebido como universal sendo este um trao marcante da concepomodernista dos trs intelectuais Drummond, Rodrigo e Lucio Costa. Osmodernistas do SPHAN conquistaram a insero do Brasil no mundo ci-vilizado assim como a insero de sua prpria produo artstica que setornou hegemnica com o efetivo ajuste dos relgios. Os tempos dosagrado se uniam.

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    Se a memria trabalho presente, inevitvel compreender que foiuma esttica modernista que configurou o patrimnio histrico e artsticonacional. A arquitetura colonial foi privilegiada no somente pela suaancianidade (valor comumente partilhado no mbito da preservao cul-tural no mundo ocidental), mas porque foram-lhe atribudas caractersti-cas que, segundo as concepes modernistas, distinguiam-na como primeiromomento de uma produo autenticamente nacional. Foi diferenciada,dessa forma, do que veio depois, considerado como importado (produorelativa ao sculo XIX e comeo do sculo XX).

    A barroquizao do patrimnio histrico e artstico nacional imple-mentada pelos modernistas foi, sem dvida, uma impressionante estrat-gia de consagrao de ambas as partes, que se tornaram constituintes dopatrimnio histrico e artstico nacional. O conceito de barroco, bastantedifuso, sempre foi perseguido como origem mtica de nossa nacionalidade.

    O segundo momento de produo da boa arquitetura no Brasil deu-se, para esses arquitetos do SPHAN, com a produo modernista, consi-derada autenticamente nacional e fundadora de uma nova temporalidade.Dessa forma, so os princpios norteadores da arquitetura moderna queidentificavam uma genealogia da boa arquitetura: ela seria, ento, a her-deira da boa tradio. Os atributos que caracterizariam a boa arquitetu-ra, segundo as teses modernistas, qualificavam tanto a arquitetura tradi-cional brasileira, quanto a arquitetura moderna, constituindo, ambas, opatrimnio histrico e artstico nacional.

    A esttica modernista definia ento a boa arquitetura e as caracte-rsticas do patrimnio histrico e artstico nacional atravs de cdigos com-preendidos por aqueles que se formaram nessa experincia, tais como: be-leza, autenticidade, harmonia, simplicidade, singeleza, graa, sobriedade.No pretendiam destacar caractersticas de um estilo barroco, mas simda boa arquitetura. Desta forma, o vocabulrio constituinte do cdigodo novo discurso em formao, engendrado a partir das restauraes, po-deria ser atributo da arquitetura grega antiga, da arquitetura barroca colo-nial brasileira, e da arquitetura moderna.

    A noo de patrimnio histrico e artstico nacional, constituda nosanos 30 e 40, consagrou-se, tornando-se reconhecida, vinculando o Brasil civilizao: nem exclusivamente o barroco, nem somente a arquitetura

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    moderna, mas ambos enlaados trama e urdidura constituram o tecidoautenticamente nacional.

    Notas

    1 vila, Afonso. Saudao aos Congressistas. Barroco. n 12, Belo Horizonte, 1982.2 Andrade, Rodrigo Melo Franco de. Trigsimo aniversrio da Semana de Arte Moder-na; Rodrigo M. F. de Andrade recorda um manifesto que Srgio Buarque perdeu. DirioCarioca, em 11/5/1952. In Rodrigo e seus tempos: coletnea de textos sobre artes e letras. Riode Janeiro: MinC/SPHAN/Pr-Memria. 1986.3 Bom exemplo o artigo de Srgio Buarque de Holanda publicado na Revista do Patrim-nio Histrico e Artstico intitulado Capelas antigas de So Paulo. Revista do SPHAN n5, 1941.4 Para um aprofundamento acerca da vertente modernista de Carlos Drummond de An-drade, ver Bomeny, Helena Bousquet. Guardies da Razo. Modernistas mineiros. Rio deJaneiro: UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994.5 Andrade, Rodrigo Melo Franco de. Plnio Salgado; a anta e o curupira. Revista do Brasil,Rio de Janeiro, ano 1, v.9, 15/01/1927. In: Rodrigo e seus tempos: coletnea de textos sobreartes e letras. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura, SPHAN, Fundao Nacional Pr-Memria, 1986, p. 230.6 Andrade, Rodrigo Melo Franco de. Op. cit. p.123.7 As principais proposies de Mrio de Andrade acerca da preservao do patrimniocultural esto presentes claramente em seu Anteprojeto, que elaborou a pedido de RodrigoMelo Franco de Andrade, para organizao do novo servio, em 1936. Embora poucoseguido, esse documento foi um interlocutor importante para que Rodrigo Melo Francoelaborasse o texto do Decreto-lei n 25, de 30 de novembro de 1937, que organizou aproteo ao patrimnio histrico e artstico nacional, criando o instituto do tombamento,ainda hoje em vigor. Tanto o Anteprojeto de Mrio de Andrade quanto o Decreto-lei 25/37 encontram-se publicados no livro Proteo e revitalizao do patrimnio histrico e ar-tstico no Brasil um trajetria. Braslia: Fundao Nacional Pr-Memria, 1980.8 Bomeny, Helena Bousquet. Op. cit. p. 120/1.9 Carta de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Lucio Costa, 18/7/1946 (Arquivo NoronhaSantos IPHAN Pasta de Personalidades Lucio Costa).10 A biblioteca e o arquivo do atual Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional IPHAN, denominados Noronha Santos, localizam-se no Palcio Gustavo Capanema,no Rio de Janeiro. A biblioteca rene acervo especializado sobre histria da arte, arquite-tura, histria, especialmente para o perodo colonial.11 Costa, Lucio. Razes da Nova Arquitetura [1934]. In: Lucio Costa: registro de umavivncia. So Paulo: Empresa de Artes, 1996.

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    12 Gregori Warchavchik era um arquiteto russo, nascido em 1897, que emigrou para oBrasil em 1923. Em 1925, Warchavchik lanava na imprensa paulistana seu ManifestoAcerca da Arquitetura Moderna. Foi o responsvel pela primeira construo modernistano Brasil, sua residncia em So Paulo, de 1927, tombada pelo IPHAN em 1986 (Proces-so de Tombamento n 1154-T-85, localizado no Arquivo Central do IPHAN). Sobre seuengajamento com o movimento da arquitetura moderna, ver Warchavchik, Gregori.Warchavchik e as origens da Arquitetura Moderna no Brasil. So Paulo: Museu de Arte deSo Paulo, 1971.13 A respeito do revolucionrio Salo de 1931, veja Vieira, Lucia Gouveia. O Salo de 1931.Rio de Janeiro: Funarte, 1984.14 Koatz, Eduardo. O processo de Criao da Faculdade Nacional de Arquitetura e de seuCurrculo. Rio de Janeiro. Dissertao (Mestrado em Educao) UFRJ, 1996.15 Decreto federal n 23.569/33, sendo que permanecia a garantia do exerccio das fun-es de arquitetos, arquitetos-construtores e agrimensores aos profissionais no diploma-dos, mas licenciados pelos Estados e Distrito Federal, se provado o exerccio data dapublicao do decreto. Cf. Legislao do Exerccio da Engenharia, Arquitetura e Agrimensu-ra. 1947. Conselho Federal da Engenharia e Arquitetura, 1947.16 A histria desse episdio j foi tratada, com vasta documentao, por Lissovsky, Mau-rcio e S, Paulo. Colunas da Educao: a Construo do Ministrio da Educao e Sade.Rio de Janeiro: IPHAN, 1996 e tambm por Cavalcanti, Lauro. As Preocupaes do Belo.Rio de Janeiro: Taurus, 1995.17 A Faculdade Nacional de Arquitetura, oriunda da Escola Nacional de Belas Artes, foicriada em 1945; a Faculdade de Arquitetura Mackenzie, separada da Escola de Engenha-ria Mackenzie, surgiu em 1947; a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universida-de de So Paulo, separada da Escola Politcnica, em 1948; a Faculdade de Arquitetura daUniversidade do Rio Grande do Sul, oriunda do Instituto de Belas Artes, em 1952; aFaculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, originria da Escola de BelasArtes da Bahia, em 1959, juntamente com a Faculdade de Arquitetura da UniversidadeFederal de Pernambuco. Sobre o assunto, cf. Sobre a Histria do Ensino de Arquitetura noBrasil. So Paulo: Associao Brasileira de Escolas de Arquitetura, 1977.18 Sobre a constituio de um habitus advindo da formao escolar e a construo demecanismos de prestgio e promoo atravs da formulao de discursos e prticas de re-conhecimento e pertencimento/excluso ver BOURDIEU, Pierre. A Economia das TrocasSimblicas. So Paulo: EDUSP, 1982.19 Conforme colocou talo Campofiorito, integrante da equipe de arquitetos construtoresde Braslia Nova Cap, no artigo O patrimnio cultural: um balano crtico. Revistado Brasil ano 2, n 4, 1985. Governo do Estado do Rio de Janeiro/Secretaria de Cinciae Cultura, Prefeitura do Rio de Janeiro. Confira tambm a Apresentao do autor ao livrode Lissovsky, Maurcio e S, Paulo. Op. cit..20 Augusto Carlos da Silva Telles foi arquiteto do IPHAN, desde a dcada de 1950, e pro-fessor da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Foi diretor da Diretoria de Tom-

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    bamento e Conservao do IPHAN por longos anos. No final da dcada de 1980 ocu-pou, por curto perodo, o cargo de presidente da Fundao Nacional Pr-Memria e desecretrio da ento Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPHAN.21 Telles, Augusto Carlos da Silva. Barroco no Brasil: anlise de sua bibliografia crtica ecolocao de pontos de consenso e de dvidas. Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes,1979, p. 15.22 Telles, Augusto C. da Silva. Op. cit., p. 14.23 Telles refere-se aos seguintes artigos: Cardoso, Joaquim. Um tipo de casa rural do Dis-trito Federal. Revista do SPHAN n 7, 1943; Saia, Luiz. Notas sobre a arquitetura ruralpaulista do segundo sculo. Revista do SPHAN n 8, 1944; Barreto, Paulo Thedim. Casasde Cmara e Cadeia. Revista do SPHAN n 10, 1946; e, especialmente o de Costa, Lucio.Arquitetura jesutica no Brasil. Revista do SPHAN n 5, 1941, que ser tratado em parti-cular.24 Seus artigos publicados na Revista do SPHAN foram: Alguns desenhos de arquiteturaexistentes no Arquivo Histrico Colonial Portugus (n 4/1940); O cdice de frei Cris-tvo de Lisboa(n5/1941); Documentos baianos (n 9/1945). Seu ltimo artigo, inti-tulado Arquitetura civil do perodo colonial, saiu no n 17/1969, teve carter de snte-se, ao contrrio dos anteriores, mais monogrficos.25 Andrade, Rodrigo Melo Franco de. Op. cit.26 A Manh, de 21 de janeiro de 1946, apud Andrade, Rodrigo Melo Franco de. Op. cit.,p. 22.27 Andrade, Rodrigo Melo Franco de. Programa. Revista do SPHAN, n 1/1937.28 Freyre, Gilberto. Sugestes para o Estudo da Arte Brasileira. Revista do SPHAN n 1,1937, p. 41.29 Andrade, Mrio. A Capela de Santo Antnio. Revista do SPHAN n 1, 1937, p. 119.30 Costa, Lucio. Documentao Necessria. Revista do SPHAN n 1, p. 34.31 Vale registrar, ainda, a presena de Helosa Alberto Torres, Diretora do Museu Nacio-nal, com o artigo Contribuio para o estudo da proteo ao material arqueolgico eetnogrfico no Brasil. Revista do SPHAN, n 1.32 Costa, Lucio. Arquitetura jesutica no Brasil. Revista do SPHAN n 5, 1941, p. 12.33 Costa, Lucio. Op. cit..34 Ibidem, p. 9.35 Ibidem, p. 13.36 Ibidem, p. 47.37 Ibidem.38 Costa, Lucio. Op. cit., 1937.

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    Resumo

    O artigo aborda as concepes que fundamentaram as prticas brasileiras de preserva-o cultural, especialmente relacionadas ao pertencimento civilizao ocidental,consagrado pela associao indita entre as formas e princpios renovadores do barro-co e a produo arquitetnica moderna. Essa associao ser fundamentada pela noode universalidade da arte e da cultura brasileiras, partilhada por modernistas comoRodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Lucio Costa, comofuncionrios do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.Palavras-chave: arquitetura moderna; barroco; identidade nacional; Lucio Costa;modernismo; patrimnio cultural.

    Abstract

    This article analyzes the main practices of cultural preservation in Brazil, speciallythose that concern the Western civilization, consecrated by the association of forms andprinciples of the baroque and the modern artistic production. This association is basedon the notion of universality of the brazilian art and culture, shared by modernistssuch as Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de Andrade and LucioCosta, functionaries of the Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.Key-words: modern architecture; baroque; national identity; Lucio Costa; modernism;cultural patrimony.

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