texto 01 - a arte de ler

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1 MARTINS, Baron Rosilda. A arte de ler. In: _________. Metodologia Científica: como tornar mais agradável a elaboração de trabalhos acadêmicos. Curitiba: Juruá, 2008. p. 146-152. A arte de ler Para Demo (1994), ler é soletrar, é entender a comunicação escrita, é informar-se, é interpretar, é contra- ler. O sentido mais primário deveria, segundo ele, ser pelo menos soletrar, no sentido de dominar o alfabeto, com sua lógica da construção da palavra e da sentença. Quem lê para informar-se está um passo mais além, porque usa a escrita para apropriar-se de uma das armas mais importantes da inclusão social que é a informação. Mas, ler de fato encon- tra-se na leitura como interpretação autônoma, no sentido de compreender criticamente o autor ou a realidade. Para fins de construção do conhecimento, "ler é precisamente contra-ler. Significa brigar com o autor, contestar, refazer. Na verdade, isto é apenas coerente com o questionamento sistemático crítico e criativo" (DEMO, 1994, p. 81). Assim, na contramão do conceito, ler não é apenas passar os olhos, obtendo informação superficial; ler em pedaços, apenas partes de uma obra, evitando uma visão global do texto; fazer fi-chamentos extraindo algumas ideias, mesmo que sejam essenciais; citar sem conhecimento de causa ou inventar referencial teórico, por insuficiência de leitura. Desse modo, segundo o mesmo autor, ler é compreender a proposta do livro ou do artigo globalmente, testar e contestar conceitos fundamentais, de modo a dominar a estrutura básica do texto; reescrever o texto com as próprias palavras, seja para melhor compreender como para reconstruir o texto. A leitura de textos teóricos Os textos teóricos são instrumentos privilegiados da vida de estudos na universidade, pois é por meio deles que os alunos se relacionam com a produção científica de sua área e tornam possível participar do universo de conquistas nas diversas áreas do saber. Por isso, compreender, interpretar, contra-ler, significa ir muito além da simples dissecação a que se reduz o formalismo das técnicas de leitura que, normalmente, distanciam o leitor da obra. A leitura, para ser autenticamente leitura, é um processo realizável em dupla dimensão: ter um antes e um depois, ou melhor, funcionar como instrumento de comunicação e ligação entre um antes e um depois. Inicialmente a de ler a própria realidade, as circunstâncias do mundo em que se vive, as suas solicitações, provocações e

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MARTINS, Baron Rosilda. A arte de ler. In: _________. Metodologia

Científica: como tornar mais agradável a elaboração de trabalhos acadêmicos.

Curitiba: Juruá, 2008. p. 146-152.

A arte de ler

Para Demo (1994), ler é soletrar, é entender a comunicação escrita, é informar-se, é interpretar, é contra-ler.

O sentido mais primário deveria, segundo ele, ser pelo menos soletrar, no sentido de dominar o alfabeto, com sua lógica da construção da palavra e da sentença. Quem lê para informar-se está um passo mais além, porque usa a escrita para apropriar-se de uma das armas mais importantes da inclusão social que é a informação. Mas, ler de fato encontra-se na leitura como interpretação autônoma, no sentido de compreender criticamente o autor ou a realidade.

Para fins de construção do conhecimento, "ler é precisamente contra-ler. Significa brigar com o autor, contestar, refazer. Na verdade, isto é apenas coerente com o questionamento sistemático crítico e criativo" (DEMO, 1994, p. 81). Assim, na contramão do conceito, ler não é apenas passar os olhos, obtendo informação superficial; ler em pedaços, apenas partes de uma obra, evitando uma visão global do texto; fazer fi-chamentos extraindo algumas ideias, mesmo que sejam essenciais; citar sem conhecimento de causa ou inventar referencial teórico, por insuficiência de leitura.

Desse modo, segundo o mesmo autor, ler é compreender a proposta do livro ou do artigo globalmente, testar e contestar conceitos fundamentais, de modo a dominar a estrutura básica do texto; reescrever o texto com as próprias palavras, seja para melhor compreender como para reconstruir o texto.

A leitura de textos teóricos

Os textos teóricos são instrumentos privilegiados da vida de estudos na universidade, pois é por meio deles que os alunos se relacionam com a produção científica de sua área e tornam possível participar do universo de conquistas nas diversas áreas do saber. Por isso, compreender, interpretar, contra-ler, significa ir muito além da simples dissecação a que se reduz o formalismo das técnicas de leitura que, normalmente, distanciam o leitor da obra.

A leitura, para ser autenticamente leitura, é um processo realizável em dupla dimensão: ter um antes e um depois, ou melhor, funcionar como instrumento de comunicação e ligação entre um antes e um depois.

Inicialmente a de ler a própria realidade, as circunstâncias do mundo em que se vive, as suas solicitações, provocações e valores numa linha de reflexão crítica; posteriormente, a de decodificação da palavra escrita, que nada mais é que a comunicação e transmissão desta primeira leitura da realidade e do mundo (LUCKESI et al, 1997, p. 124).

Entendida nesta perspectiva global, a prática da leitura é imprescindível aos homens e aos povos e deve estar na raiz de libertação de cada pessoa e de cada povo. Desta forma, numa sociedade alicerçada no conhecimento, espera-se que todos tenham sucesso. Para tanto, as mudanças e os desafios de administrar sua própria vida podem aparecer óbvios; no entanto, exige coisas novas e sem precedentes das pessoas, prin-cipalmente do trabalhador intelectual.

Essa transformação no ato de ler deve surgir, portanto, do próprio aluno a partir de algumas sugestões. A afirmação de Drucker (2002, p. 156) ilustra essa questão: "o aparecimento do trabalhador do conhecimento que pode e deve administrar sua vida está transformando toda a sociedade".

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Assim, se o aluno não ler "bem", este problema só por ele pode ser corrigido. Correções e sugestões são válidas, mas a aplicação depende de cada um, se quiser que surtam efeito.

Sugestões para leitura

- O valor de um horário: a primeira providência a tomar e, talvez, a mais importante é organizar um horário de estudo. Essa iniciativa pode contribuir para evitar o 'pega e larga' de alguns estudantes, a distribuição errada do tempo, estudando as matérias mais áridas ou difíceis justamente quando a capacidade de concentração está mais baixa. Enfim, ajuda a estudar cada matéria na época mais adequada e elimina movimentos desnecessários.

- Fazendo e revendo um horário: o aluno é que precisa organizá-lo; ninguém poderá fazer por ele. Essa organização dependerá do ajuste às horas de aula, atividades, trabalho em meio expediente ou integral etc. Especificando as matérias, o aluno economizará tempo, pois não terá que ficar resolvendo o que estudar em seguida e dará a certeza de que dispõe dos materiais de que necessita para determinar a matéria.

- Quando ler: o aluno pode destinar menos tempo aos assuntos mais fáceis e mais tempo aos considerados mais difíceis. Distribuir melhor o tempo contribui para que o aluno aprenda mais, pois o estudo é feito em várias sessões. Também, fazer periodicamente revisões melhora o desempenho do aluno que estará sempre com a matéria em dia e estará programando-se para as próximas aulas, sejam expositivas ou práticas. Além disso, é importante encontrar um bom lugar para estudar, evitando locais de muito movimento, a fim de aumentar seu tempo de concentração.

- A leitura propriamente dita: Furlan (1997, p. 121-122) sugere que, para penetrar no conteúdo de um texto, é necessário ter em mente, em primeiro lugar, o objetivo do estudo do mesmo, sem o qual há o risco de a leitura esvaziar-se de significado. É imprescindível ter claras as questões, os problemas que podem ser desvelados no enfrentamento com o texto, assim como partir do princípio que ele tem a dizer algo ao leitor. Em seguida, é preciso localizá-lo no tempo e no espaço. Algumas questões podem ajudar: Quem é seu autor? Quando o escreveu? Quais as condições da época em que produziu sua obra? Quais as principais características de seu pensamento? Quais as influências que recebeu e também exerceu?

Na continuidade, a mesma autora coloca que, de posse desses elementos, é possível elaborar a primeira etapa da leitura, com o objetivo de preparar o texto para compreensão, verificando as dificuldades de entendimento da linguagem empregada, dos conceitos apresentados pelo autor. A sugestão é a demarcação dos conceitos, das doutrinas desconhecidas, dos autores citados e, após a leitura, a consulta aos dicionários, en-ciclopédias, manuais, para a explicação, sem o que torna-se difícil a compreensão da mensagem do autor.Reconstruindo a experiência mental do autor do texto (captando antes o todo e depois as partes), o segundo momento da leitura objetiva adquirir uma visão de conjunto do que é tratado no texto, atentando para os temas e subtemas desenvolvidos, o que possibilita a elaboração de um esquema das ideias do autor, seguindo, para isso, a ordem lógica da expo-sição das mesmas.

Furlan (1997, p. 122) sugere os principais questionamentos ao texto: Qual o assunto tratado? Qual o problema central levantado pelo autor? Diante do problema levantado, qual a posição assumida pelo autor? Quais os argumentos apresentados que justificam a posição assumida pelo autor? Quais os argumentos secundários apresentados pelo autor?

As sugestões da autora são enriquecedoras pois, a partir deste trabalho, é possível expressar as ideias do autor, e o aluno estará apto a elaborar um resumo (com seu próprio vocabulário) apresentando os principais momentos do texto e ir além do texto, "de refletir sobre a perspectiva abordada pelo autor, de verificar a contribuição da mesma

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para o aprofundamento do assunto e compreensão e intervenção na realidade" (FURLAN, 1997, p. 123).

Demo (1994, p. 81) apresenta as sugestões para ler bem:a) ler uma vez para se apreender o projeto global do texto, assinalando as ideias

básicas e possíveis contra-argumentações;b) reler tantas vezes quantas forem necessárias, para dominar o texto,

destrinchando-o analiticamente;c) refazer a argumentação básica e reconstruir possíveis lacunas;d) elaborar posição argumentada própria, frente ao texto, destacando consensos

e dissensos.

Luckesi et al. (1997, p. 144) apresentam como roteiro do processo de leitura crítica da palavra escrita, três conjuntos de atividades que poderão processar-se simultaneamente no exercício mecânico-mental de ler, mas que, para maior eficiência, poderão ser realizados sistematicamente separados.

l - Elementos subsidiários da leitura:- referência bibliográfica do texto e extensão da leitura a ser feita;- identificação do tipo de texto (filosófico, científico, literário etc.);- conhecimento dos dados biográficos do autor do texto; situar o autor no

tempo e no espaço - sujeito concreto);- estudo dos componentes desconhecidos do texto (vocabulário técnico,

autores citados, correntes doutrinárias, fatos históricos etc.).

2 - Elementos da leitura propriamente dita: estudo da dinâmica do texto- identificação e análise do título do texto (indicador do seu sentido e

significado);- identificação do tema abordado;- identificação da problematização feita pelo autor em torno do tema;- identificação do ponto de vista ou ideia central;- identificação da argumentação.

3 - Elementos da avaliação e proposição- avaliação do texto lido (posicionamento crítico);- juízo externo (critérios referentes à autoridade científica do autor, coerência

ideológica do texto com o posicionamento político assumido pelo autor, relação efetiva entre o que o autor escreve e sua prática social e científica etc.).

- juízo interno (a estrutura do texto e validade de seu conteúdo, o valor social da mensagem, seu significado político etc.);

- proposições (avaliação como um julgamento de valor para uma tomada de posição, a uma forma de ação).

A partir das sugestões dos autores referenciados, pode-se inferir que, quando se conclui uma leitura, o leitor está em condições de assumir a posição de leitor-autor, uma vez que apreendeu um conhecimento já produzido e, então, está em condições de propor a ampliar e alargar elementos que o texto despertou. Vale a pena, nesse momento, propor novos temas para a pesquisa, para outros estudos, paralelos ou decorrentes do conteúdo lido. É o momento de criação do leitor.

Nesta perspectiva, conclui-se que, para ler, deve haver motivação por parte do leitor, o qual deve estar estimulado a aprender o texto e a aprender com o texto. Como o conhecimento científico (ou não) é sempre acúmulo de conhecimentos, a leitura de textos mais atualizados, por certo, apresentará os vários acréscimos de contribuição que os autores foram trazendo com o passar do tempo. Claro que a leitura tem que ser crítica, porque, embora os textos sejam recentes, alguns podem refletir posições nas quais grande parte do pensamento científico não mais acredita, ou seja, são ultrapassados.

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Assim, antes de partir para o fichamento propriamente dito, é importante analisar criteriosamente o texto lido. O momento da leitura é, sem dúvida alguma, uma das etapas mais importantes de todo o trabalho. Se o aluno não tiver muito tempo para desenvolver seu trabalho, então é necessário fazer um cálculo de quanto vai gastar nessa fase e na próxima. Na realidade, estabelecer um cronograma de leitura é aconselhável, pois serve de organização, e, para não perder o estímulo, isto é, a manutenção do ritmo é fundamental para o desenvolvimento do trabalho como um todo.

Portanto, o texto deve ser lido com atenção, grifando, fichando (ver próximo item) e fazendo anotações. Para tanto, algumas orientações podem auxiliar o aluno a ler melhor e guardar as informações:

- marque o texto: desde que o livro seja do próprio aluno, não há nenhum mal em riscá-lo; os grifos demonstram a dialética viva da relação livro-leitor. As marcas pessoais denotam participação ativa na leitura e o destaque das ideias, fatos, enfim, do que chamou a atenção do aluno. Deve-se tomar o cuidado para não riscar o texto todo, pois assim perde sua finalidade. A manutenção do grifo serve para personalizá-lo de modo que, numa segunda leitura e mesmo numa rápida olhada, o aluno conseguirá identificar com mais facilidade os aspectos que chamaram a sua atenção e, portanto, serão úteis no momento de escrever o trabalho.

- use várias marcas: é possível cada aluno criar suas próprias marcas, além do sublinhamento. Pode sublinhar termos e parágrafos importantes e criar um tipo de marca para cada dado significativo, como, por exemplo: traço vertical ao lado de cada parágrafo que contém uma ideia central; dois traços para os parágrafos que apresentam ideias secundárias; três traços ou qualquer outro sinal, para as partes onde o autor argumenta etc. Uma maneira eficaz de marcar é dobrar a ponta da folha onde o aluno grifou algo importante, ou colo-car clipes. Na hora de encontrar fica mais fácil.

- abra fichas e folhas: enquanto estiver lendo e colocando as marcas no texto, o aluno deve ir, simultaneamente, fichando o texto, e anotando aqueles grifos que entender importantes e que deverão ser utilizados na redação. Pode-se utilizar caminhos diferenciados para este trabalho em vez de utilizar fichas, como, por exemplo, grampear folhas ern branco na parte de dentro da última capa do livro e nela ir fazendo suas anotações. Além de ir direto a essas folhas quando precisar, o aluno tem a vantagem de contar com elas onde estiver, consultando-as nos intervalos de aula, na sala de espera de um gabinete odontológico, numa viagem etc.

- separe folhas ou abra arquivo no micro para obervações: é interessante separar algumas folhas em branco para anotações pessoais ou abrir diretamente no micro um arquivo com esse objetivo. Muitas vezes, quando o aluno está lendo um determinado texto, surgem ideias importantes, até originais, as quais devem ser anotadas para não se perderem ou caírem no esquecimento. Aliás, tudo o que o aluno redigir deve ser guardado, pelo menos até a escrita final do trabalho. Pode ocorrer que, no futuro, o aluno nem lembre o que escreveu e em que momento o pensamento surgiu, mas, ainda assim, as anotações poderão ter serventia.

- trocar ideias com os colegas: ao selecionar os textos, na maioria das vezes, por tratar-se de uma mesma área, outros alunos também podem estar interessados na mesma temática. Portanto ler os autores, os comentadores dos mesmos, a partir da publicação mais recente indo até a mais antiga, ler as obras dos autores que deram sustentação ao autor escolhido e discutir com outras pessoas/colegas, pode auxiliar na sua compreensão e dar mais segurança no caminho a ser percorrido.