tese lucas carvalho _revista

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Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970 Lucas Correia Carvalho Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho Rio de Janeiro Outubro de 2015

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Tese Lucas Carvalho _revista

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Page 1: Tese Lucas Carvalho _revista

Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária

no Brasil dos anos 1970

Lucas Correia Carvalho

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).

Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho

Rio de Janeiro

Outubro de 2015

Page 2: Tese Lucas Carvalho _revista

Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970

Lucas Correia Carvalho

Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).

Banca Examinadora:

____________________________________

Presidente, Prof. Dr. André Pereira Botelho (PPGSA/IFCS/UFRJ)

____________________________________

Profa. Dra. Nísia Trindade Lima (COC/FIOCRUZ)

____________________________________

Prof. Dr. João Marcelo Ehlert Maia (FGV/RJ)

____________________________________

Profa. Dra. Helga Gahyva (PPGSA/IFCS/UFRJ)

____________________________________

Prof. Dr. Antonio Brasil Jr. (IFCS/UFRJ)

Suplentes:

____________________________________

Profa. Dra. Maria Eloisa Martin (PPGSA/IFCS/UFRJ)

____________________________________

Profa. Dra. Aline Marinho Lopes (UFF)

Rio de Janeiro

Outubro de 2015

Page 3: Tese Lucas Carvalho _revista

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

C331pCarvalho, Lucas Correia Projeto, conhecimento e reflexividade: estudosrurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970/ Lucas Correia Carvalho. -- Rio de Janeiro, 2015. 256 f.

Orientador: André Pereira Botelho. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia eAntropologia, 2015.

1. história das ciências sociais e seusprojetos de pesquisa. 2. sociologia rural. 3.campesinato. 4. questão agrária. 5. pensamentosocial brasileiro. I. Botelho, André Pereira,orient. II. Título.

Page 4: Tese Lucas Carvalho _revista

À memória de meu avô, Aires Duarte Correia

Page 5: Tese Lucas Carvalho _revista

Resumo

Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970

Lucas Correia Carvalho

Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia

e Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).

Esta tese propõe a reconstituição da história das ciências sociais contemporâneas a partir

da investigação de seus projetos de pesquisa. Para tanto, toma como objeto o Projeto

“Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste” (1975-1977), coordenado por

Moacir Palmeira, empreendimento que teve a participação de uma ampla equipe de

pesquisadores do PPGAS/MN. O objetivo dessa tese é analisar os “projetos de

pesquisas” através das diversas contingências que os constituem – negociações com

agências financiadoras, obtenção de recursos – e o papel delas nas formulações teórico-

metodológicas que embasam a pesquisa. Analiticamente, isso implica reconstituir a

dimensão processual que envolve o projeto, percorrendo o conhecimento que, em

determinado momento, tornou possível sua formulação, as discussões que definiram sua

metodologia e os seus resultados finais – os quais, muitas vezes, revelam sentidos

independente dos objetivos iniciais da pesquisa. Nossa hipótese é de que o Projeto

Emprego fora fundamental para a afirmação da abordagem antropológica nos estudos

camponeses e questão agrária no Brasil, sobretudo, ao afirmar uma perspectiva

relacional do campesinato.

Palavras-chave: história das ciências sociais e seus projetos de pesquisa; sociologia

rural; questão agrária; teoria sociológica

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Abstract

Project, knowledge and reflexivity: rural studies and agrarian question in Brazil in the 1970`s

Lucas Correia Carvalho

Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).

This thesis proposes the reconstitution of the history of the contemporary social sciences from the investigation of its research projects. For such, it takes as the object of the Project “Employment and social-economical changes in the Northeast" (1975-1977), coordinated by Moacir Palmeira, a undertaking that had the participation of a wide team researchers from the PPGAS/MN. The objective of this thesis is to analyze the "projects of research" through several contingencies that constitute them – dealing with funding agencies, raising funds– and their roles in the theoretical-methodological formulations that underpin the research. Analytically, this implies the reconstitution of the procedural dimension that involves the project, covering knowledge that, in given time, made possible its formulation, the discussions that defined its methodology and its final results – which, many times, revealed paths that were independent from the initial objectives of the research. Our hypothesis is that the Employment Project was crucial for the confirmation of the anthropological approach in the studies of peasants and the agrarian question in Brazil, especially by stating one relational perspective of peasantry.

Key-words: history of social sciences and their research projects; rural sociology; agrarian question; sociological theory

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradeço ao meu orientador, o Prof. André Botelho, cujo

exemplo de dedicação ao trabalho sociológico serviu de estímulo constante para

enfrentar as agruras da pesquisa. À cada etapa da tese, suas observações sobre o cuidado

de se lidar com as contingências e ambiguidades foram fundamentais para domar certos

ímpetos de ordenação do objeto de pesquisa.

Agradeço ao Prof. Afrânio Garcia Jr. pela recepção ao meu trabalho no estágio

sanduíche na EHESS, em Paris, durante o semestre de 2013-2014, período em que pude

aprofundar algumas das minhas hipóteses de pesquisa, participar de seminários e

dialogar com diversos pesquisadores.

Agradecimento especial dedico ao Prof. Moacir Palmeira por toda paciência e

generosidade de disponibilizar os arquivos do “Projeto Emprego e mudança

socioeconômica no Nordeste” sediados no NuAp (Núcleo de Antropologia da

Política/PPGAS/MN). Entre uma consulta e outra aos documentos, tive o privilégio de

discutir algumas de minhas hipóteses de pesquisa com o Prof. Moacir Palmeira, que

sempre atenciosamente ouvia e tecia comentários reveladores dos meus próprios

pressupostos. O trabalho no arquivo não seria possível sem a gentileza e afinco de Thais

Danton, Carina e Adilson.

Aos participantes do Projeto Emprego que, de diversas maneiras – conversas,

entrevistas, documentos -, tornaram possível a reconstituição dos debates e discussões

da época. Com os Profs. Moacir Palmeira, Afrânio Garcia Jr., Beatriz Heredia, José

Sergio Leite Lopes, Leilah Landim, Neide Esterci, Luiz Antonio Machado, aprendi a

importância da generosidade intelectual e do espírito coletivo de pesquisa.

À Profa. Nísia Trindade Lima que, desde o mestrado, tem sido fonte constante

de inspiração de pesquisa e interlocutora generosa.

Ao Prof. José Ricardo Ramalho, cuja vivência intelectual com grande parte dos

atores desse estudo, tornaram mais claras as questões e embates da época. Junto com a

Profa. Nisia Trindade Lima, membros da banca de qualificação, apontaram rotas a

serem seguidas por essa pesquisa.

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Ao Prof. João Marcelo Ehlert Maia, que em ocasiões diversas debateu etapas do

meu trabalho e foi um de seus principais interlocutores. Seus comentários sempre

estimulantes – e certeiros - busquei incorporá-los aqui.

Agradeço ao Prof. Marcos Chor Maio os comentários no Seminário

“Pensamento Social em Instituições do Rio de Janeiro” (FIOCRUZ/UFRJ), onde, além

de compartilhar interesses de reconstituição da história das ciências sociais a partir de

seus projetos de pesquisa, teceu comentários fundamentais para se tomar “projetos de

pesquisa” como objeto e, assim, teorizá-los.

A Aline Marinho Lopes pelos comentários minuciosos ao meu trabalho,

apresentado no Encontro “Pensamento social às quintas”.

Ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde a convivência de sete anos foi

fundamental para o desenvolvimento deste trabalho e a criação de um diálogo profícuo

com professores e alunos. Estendo este agradecimento a todos os funcionários, sempre

dispostos a auxiliar.

Aos professores e funcionários do Departamento de Sociologia do IFCS/UFRJ

principalmente Profa. Aparecida Moraes e Prof. Bruno Cardoso.

Aos professores que, em algum momento, tiveram a generosidade de ler e

comentar partes deste trabalho: Mario Grynszpan, Giralda Seyferth, Miriam de Oliveira

Santos, Neide Esterci, Antonio Herculano Lopes.

Às palavras de conforto e ao apoio de meus amigos. Mauricio Veiga Jr. e André

Veiga Bittencourt foram a um só tempo interlocutores e companheiros de empreitada.

Com Antonio Brasil Jr., Alessandro Garcia, Alice Ewbank, Pedro Cazes, Karim

Helayël, Fernando Lopes, Luna Campos, descubro que o trabalho coletivo pode ser tão

prazeroso quanto as conversas descontraídas.

Aos amigos de sempre, Guilherme, Tiago, Vitor e João Paulo.

A Simara, sempre paciente e gentil.

Aos amigos “franceses”, Juliana, Dayana, Roseane, Luiz e Mariana.

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Aos meus pais, Silvio e Beth, pela compreensão infinita e amor incondicional.

Aos meus irmãos, Bruno, pronto a despertar o sorriso alheio, e Camila, sempre ao lado

nas idas e vindas da vida e, agora, na vida acadêmica.

A Carol, que sempre apresenta a habilidade de encurtar os caminhos, no Brasil,

na França, e na vida. Sua presença ao meu lado foi fundamental para esta tese. Com

você estou seguro.

Ao CNPQ pela concessão da bolsa sanduíche.

À CAPES pelo apoio desde quando esta pesquisa era apenas um projeto.

A todos vocês, muito obrigado!

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Sumário

Introdução______________________________________________________ P.13

Capítulo 1: Projetos para uma antropologia do campesinato ____________ P. 29

1.1 Campesinato e “estudos regionais”: a criação do PPGAS P.32

1.2 Antropologia e economia: disciplinas postas em diálogo P.38

1.3 A formulação de um projeto coletivo de pesquisa P. 51

Capítulo 2: A miséria da teoria ______________________ P. 71

2.1 “Um divisor de águas” P.73

2.2 Uma “terceira posição” P.77

2.2.1 Capitalismo e plantation P.82

2.2.2 Patriarcalismo e a “função” do grande proprietário P.87

2.2.3 Plantation e campesinato P.93

2.3 Ideologia e campesinato P.98

Capítulo 3: Etnografia e comunidade camponesa_______________ P.110

3.1 Comunidade: teoria e método P.113

3.2 Comunidade e “situações-tipo” P.123

3.3 Estudo de caso e representatividade P.127

3.4 Comunidade camponesa, formas de dominação e expropriação P.134

Capítulo 4: O campesinato em movimento_____________ P. 153

4.1 O “isolamento” camponês e estratégias de reprodução P.159

4.2 Fronteira e campesinato P. 169

4.3 Especificidade do campesinato e tradução de conceitos P. 180

Capítulo 5:_O uno e o múltiplo: diversidade do campesinato e participação

política___ P.191

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5.1 Mobilização e “desmobilização”: processo político e campesinato P.196

5.2 Significado(s) da Reforma Agrária P. 215

Considerações Finais_______________________________________________ P. 227

Referências Bibliográficas______________________________________ P. 241

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“Doce é projetar, rude é cumprir” (Drummond de Andrade, Carlos. Passeios na Ilha)

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Introdução

“O que é tido como pressuposto é, até segunda ordem, acredita-se, algo simplesmente ‘dado’, e ‘dado como me aparece’ – isto é, como eu ou os outros em quem eu confio o vivenciaram e interpretaram. É dentro dessa zona de coisas pressupostas que temos que encontrar nosso caminho (...) Ou, usando os termos de Dewey, é da situação indeterminada que parte toda investigação possível, com o objetivo de transformá-la numa situação determinada. É claro que o que é tido como pressuposto hoje pode tornar-se questionável amanhã, se somos induzidos, por nossa própria escolha ou de outro modo, a mudar nosso interesse e fazer do estado de coisas aceito um campo de maior investigação” (Schutz, Alfred. Fenomenologia e Relações Sociais)

Em 1978, José de Souza Martins, um dos maiores especialistas em questão

agrária no Brasil, iniciava sua palestra sobre a fronteira amazônica ressaltando uma

questão metodológica que parecia fulcral àquele contexto de discussões, advertindo os

ouvintes que propunha perseguir outro “ponto de vista”:

aquele que é mais difícil de ser resgatado, na medida em que ele não existe sob forma escrita, na medida em que precisa ser catado literalmente, precisa ser resgatado fundamentalmente. E esse é um trabalho bastante complicado, bastante difícil e sem querer retificar a fronteira e os antropólogos, os antropólogos é que sabem fazer isso com arte e distinção. Entretanto, os sociólogos – eu infelizmente sou sociólogo – também estão metendo o nariz no assunto e talvez daí saia alguma coisa (Martins, 1983, p. 127).

A importância atribuída pelo autor ao “ponto de vista” antropológico para os

estudos sobre camponeses e questão agrária no Brasil, parece-nos, foi fundamental para

uma “rotação de perspectiva” em relação àqueles assuntos. Muito embora a

antropologia do campesinato no Brasil tenha proporcionado estudos clássicos como Os

Parceiros do Rio Bonito de Antonio Candido, e os diversos trabalhos de Maria Isaura

Pereira de Queiroz, além dos chamados “estudos de comunidade” (Carvalho, 2010;

Jackson, 2002 e 2003; Lima, 1999; Oliveira & Maio, 2011), a etnografia como

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perspectiva heurística para a compreensão desses grupos sociais e da questão agrária só

viria a ganhar força durante os anos 1970 (Gnaccarini & Moura, 1983; Brandão, 1984;

Sigaud, 1990; Garcia Jr. & Grynszpan, 2002; Garcia Jr. & Heredia, 2009). Aliás, não

seria exagero afirmar, que muito da atribuição de “clássicos” a estes estudos advém

justamente desse momento em que os debates sobre a questão agrária no Brasil,

sobretudo nos moldes encaminhados pela esquerda brasileira, perdiam sua força

explicativa e pareciam girar em falso (Gnaccarini & Moura, 1983, p. 7).

Este trabalho toma o Projeto “Emprego e mudança socioeconômica no

Nordeste” (1975-1977), desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Antropologia

Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(PPGAS/MN/UFRJ) sob a coordenação de Moacir Palmeira, como um dos momentos

chaves para o entendimento daquela “rotação de perspectiva” em que o método

etnográfico assume importância crucial para a compreensão da questão agrária e do

campesinato no Brasil. Apesar do Projeto Emprego ter sido composto por duas frentes

de trabalho, dedicadas à área rural e urbana, nosso enfoque recairá, sobretudo, nas

pesquisas dedicadas à área rural e ao campesinato. O Projeto Emprego contou com uma

ampla equipe de pesquisadores, todos professores e/ou alunos do PPGAS, entre os

quais, Otávio Velho – em suas etapas iniciais -, Lygia Sigaud, Afrânio Raul Garcia Jr.,

José Sergio Leite Lopes, Luiz Antonio Machado, Alfredo Wagner Berno de Almeida,

Neide Esterci, Beatriz Heredia, Regina Novaes, Leilah Landim Assumpção, Marie

France Garcia, Maria Rosilene Barbosa Alvim, Eliane Cantarino O`Dwyer, Laís

Mourão Sá, Amélia Rosa Barreto Teixeira, Dóris Rinaldi Meyer, Jorge Eduardo

Saavedra Durão, Roberto Ringulet e Maria Cristina Melo Marin1.

1 Antonio Paulo Ferraz e Francisco Quental participaram da fase de levantamento de áreas de pesquisa e Théo Santiago e Orlando Alves Paiva colaboraram na fase de levantamento bibliográfico. Otávio Velho teve participação na elaboração do projeto, especificamente na parte dedicada à fronteira. Logo se

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A escolha do Projeto Emprego se deve a dois fatores fundamentais: primeiro, as

pesquisas desenvolvidas em sue âmbito consolidavam um debate sobre campesinato e

questão agrária iniciados com a criação do Programa de Pós-graduação em

Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, cujo alicerce fundamental tomava a

etnografia e a pesquisa de campo como componentes essenciais do trabalho

antropológico; segundo, porque ao desenvolverem pesquisas etnográficas junto a grupos

camponeses e “camadas de baixa renda” dialogaram criticamente com seus

contemporâneos – sobretudo economistas e sociólogos –, além de revisarem questões

teóricas incontornáveis sobre aqueles temas. Não se trata, entretanto, de atribuir um

“pioneirismo” ao grupo ao tratar tais temas a partir do método etnográfico, mas de

compreender de que forma o fizeram, quais as suas especificidades, e como

contribuíram para formular uma agenda com a qual a produção posterior teve de

dialogar. Não à toa, em reconstituição da história da antropologia no Brasil, Mariza

Correa (1995) tenha afirmado que a análise da produção do PPGAS permite “dizer que

a área de estudos sobre ‘camponeses’ realizou um trabalho análogo ao feito em relação

às sociedades indígenas – criou um novo léxico, desde então parte de nossa bagagem

intelectual” (Ibidem, p. 47). E, citando Otávio Velho, Mariza Correa enfatiza que um

dos principais meios para se criar esse “léxico” foram “‘os projetos coletivos que

organizam e dão sentido a pesquisas individuais e seus desdobramentos no sentido

sempre de busca de continuidade’” (Ibidem, p. 45).

A questão agrária se instalara na ordem do dia no pré-1964 com a crescente

movimentação e expansão dos movimentos camponeses, sobretudo no Nordeste.

Período que se caracterizou também pela forte atuação política de grande parte da

intelectualidade brasileira preocupada ela mesma com as diversas formas possíveis de

dedicaria a outro projeto vigente na mesma época, intitulado “Hábitos Alimentares em Camadas de Baixa Renda” (1975-1977), em parceria com a UNB.

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aproximação com o “povo” – essência da nação – e sua conscientização política. A

“hegemonia cultural da esquerda” (Schwarz, 1992, p. 62) fazia com que o

desenvolvimento fosse visto como algo inexorável, cujo caminho levaria à redenção de

uma nação livre diante das potências imperialistas. O Golpe de 1964, no entanto,

alteraria completamente esse panorama e diminuiria o entusiasmo nutrido pela esquerda

em relação aos caminhos tomados pela “revolução brasileira”. Estarrecida diante da

parca resistência ao golpe, dos métodos cada vez mais violentos utilizados pelos

governos ditatoriais, coube à intelectualidade repensar seus esquemas explicativos da

realidade brasileira.

Passou-se a revisar o período “populista” da política brasileira, suas alianças de

classe e a subjugação política e ideológica do proletariado. Aos poucos se tornava claro

que autocracia política e desenvolvimento econômico poderiam andar de mãos dadas,

através de um conjunto de alianças que uniam internamente as classes burguesas e

latifundiárias aos imperativos externos das classes burguesas dos países desenvolvidos.

Em relação ao campo, o esquema etapista difundido, sobretudo, pelo PCB (Partido

Comunista Brasileiro), fundante da polêmica entre defensores do feudalismo e

capitalismo, perdia seu lastro explicativo ao mesmo tempo que estampava sua nitidez

ideológica.

Diante das diversas formas de controle e repressão postas em prática pela

ditadura, não se tornou incomum que ativistas políticos convertessem em investimento

intelectual e formação profissional a frustração de uma efetiva mudança social, tornando

a pesquisa de campo e a presença in locu uma nova forma – com exigências e

implicações próprias - de aproximação com grupos subalternos (Velho, 1982; Garcia Jr.

2009; Keinert, 2011). Algo que se tornou possível num contexto de forte expansão do

ensino – sobretudo de pós-graduação – e de crescente valorização de pesquisas

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empíricas (o que não significou necessariamente abrir mão da teoria). Dessa forma, o

cuidado com uma pesquisa respaldada na coleta de dados, índice de profissionalização

de uma área, manteve relações diretas com o bloqueio da participação política de uma

geração. Conforme Otávio Velho,

a ênfase na pesquisa beneficiou-se do clima de crise e da sensação de fracasso vivida em 64 e logo após, de que uma das vertentes era o sentimento de que, apesar de todos os protestos em favor da desalienação e da inserção na "realidade", a verdade é que se tinha em boa parte vivido em um mundo político imaginário e pressuposto (Velho, 2008, p. 365) .

Afinal, os caminhos da “revolução brasileira” haviam esbarrado no Golpe

Militar de 1964 e estampado a dissonância entre essas interpretações e a realidade. Era

preciso compreender os modos como o “povo” pensava e agia. Em relação aos estudos

rurais, conforme Gnaccarini & Moura (1983, p. 7) surgiu certo incômodo por parte da

academia em relação à “circularidade interpretativa” sobre a questão agrária, em grande

parte causada pelo “desdém pela pesquisa documental e/ou vida das relações de

produção”. Em comunicação realizada em 1983 sobre a produção sobre questão agrária

no Brasil, intitulada “A ideologia das classes subalternas”, Carlos Rodrigues Brandão

ressaltava a influência decisiva da antropologia em momentos como os anos 1960 e

1970 em que “categorias de sujeitos do mundo rural aos poucos emergem para as

ciências sociais (...) como uma cultura, uma presença que fala de si, uma fala que

ascende a dado e pode, então, ser apreendida como um momento de uma ideologia”

(Brandão, 1984, p. 185). Ao percorrer a produção dedicada ao mundo rural desde os

folcloristas até os estudos antropológicos contemporâneos, o autor esclarece essa

tendência, demonstrando como as “ideologias” de diferentes categorias camponesas –

posseiros, meeiros, sem-terra, volantes - se constituíram em “dados a partir dos quais,

também e relevantemente, é possível compreender e explicar tudo o que se falou antes,

até aqui, a respeito do mundo rural e do trabalho agrário no Brasil” (Ibidem, p. 186,

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grifos no original). Por fim, o autor destacava a importância da pesquisa empírica e,

sobretudo, antropológica, para o resgate da atuação política do campesinato, e, “ainda

que o trabalho político do campesinato tenha muitos anos de história, apenas nos

últimos anos, não só a história política do campesinato, mas a fala política do camponês

e outros sujeitos de trabalho agrário, são objeto de estudo” (Ibidem, p. 195)2.

Nesse contexto, o Projeto Emprego, através de suas pesquisas e discussões

coletivas, consolidava o deslocamento do estudo da estrutura agrária e do campesinato

de uma “perspectiva substancialista ou unilinear” – como em grande parte fora o debate

na década de 1950 e 1960 sobre a questão agrária, que enfatizava, grosso modo, o

desenvolvimento do mercado interno e a modernização da agricultura através da

transformação do campesinato em “farmer”, espécie de “classe média” rural, tomando

ainda o campesinato como um proletário, de fato ou virtual – para uma perspectiva

“relacional”, que autonomiza os aspectos sociais e políticos das transformações havidas

no campo3. Como esperamos deixar claro adiante, estabelecer uma perspectiva

2 No âmbito internacional, compartilhava-se a visão segundo a qual os problemas teóricos e metodológicos impostos pelo estudo de sociedades camponesas deveriam ser enfrentados através de forte investimento em pesquisas empíricas. Assim, por exemplo, um dos periódicos mais importantes da época sobre o assunto, The Journal of Peasant Studies, em editorial de sua primeira edição (1973), chama atenção para o fato de que o desconhecimento sobre diversos aspectos da vida camponesa só poderia ser contornado através de pesquisas que ao mesmo tempo “trying to avoid both unduly high-level generalisation and excessively narrow studies of little comparative interest” (“Editorial Statement”, 1973, p. 1). Além disso, não deixa de ser elucidativo das questões metodológicas que estamos aludindo o fato de que este mesmo periódico reserve um espaço intitulado “Peasants Speak”, que “ will include extracts from literary sources, descriptions of peasant life, folksongs, proverbs, documents and news of peasant movements” (Ibidem, 1973, p. 2). 3 Moacir Palmeira, coordenador do Projeto, em seu memorial para o concurso de professor titular do PPGAS/MN, rejeita para si a designação de “agrarista”, justamente por sua preocupação com o estudo do conjunto de relações sociais, das posições e oposições sociais que conformam o mundo rural e a questão agrária. Em suas palavras, “agrarista” seria um “termo que, de designar os especialistas em direito agrário, acabou tendo seu uso estendido para designar os estudiosos da chamada questão agrária, juristas ou não. Ao contrário, sempre manifestei, ao lado da minha simpatia política pelas forças sociais que se batem pela redistribuição da propriedade da terra, a antipatia, tradução talvez de alguma dificuldade intelectual minha, pelos instrumentos desse saber quase autônomo (um pouco como a sociologia rural nos Estados Unidos, em que pese a distância ideológica), a que me referi na minha tese de doutoramento como ‘um misto de agronomia e marxismo’, em que se constituíram esses estudos agrários, centrados em torno de noções como estrutura agrária, urna fórmula boa, redonda, para denúncias políticas, mas que escamoteia as relações sociais que seria preciso identificar para se atacar eficazmente as questões para onde aponta. Diga-se de passagem que bons trabalhos têm sido produzidos por alguns desses especialistas. Apenas digo que seu recorte não me atrai” (Palmeira, 1994, p. 15). Em balanço sobre a

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“relacional” do campesinato significava tomar a circulação de diferentes categorias e

atores por distintas posições e espaços sociais em contraposição a qualquer visão

“estática” desse estrato social. Desse modo, pôr em relação as diferentes categorias que

compunham o campesinato – meeiros, parceiros, posseiros, moradores, sitiantes,...-

poderia revelar, através das designações empregadas pelos próprios agentes, não

somente as formas de dominação social na qual se inseriam, mas as amplas redes de

relações sociais que estabeleciam entre si, recusando-se, de antemão, qualquer

atribuição de características ou excepcionalidades a qualquer um desses personagens

que prefigurariam certos processos irreversíveis do mundo rural – como ocorrera com

diversos estudos sobre o “trabalhador volante”, espécie de proletário rural, e, em outra

perspectiva, com o “posseiro” da fronteira amazônica. Por outro lado, não se negava as

especificidades dessas categorias para unificá-las sob o conceito de campesinato, mas de

compreendê-las em suas relações recíprocas e em seus “movimentos”, desreificando o

próprio conceito de campesinato.

A aposta desse trabalho é de que o Projeto “Emprego” teve contribuição

fundamental na “rotinização” desse novo “léxico” sobre campesinato e questão agrária.

Mas antes de avançarmos na reconstituição do Projeto Emprego, é preciso se perguntar:

qual a relevância de se estudar “projetos de pesquisa”, torná-los “objetos” de análise, e

não qualquer outra produção intelectual comumente analisada, como livros e teses –

ainda que, para esta pesquisa, esse tipo de material não se faça ausente?4

produção sobre a “estrutura agrária brasileira”, Gnaccarini & Moura (1983, p. 7) relacionam a perspectiva da antropologia social das pesquisas do PPGAS como um importante momento de renovação da discussão sobre a questão agrária e camponesa no Brasil. 4 Em livro organizado por Sedi Hirano, intitulado “Pesquisa social. Projeto e Planejamento”, dedicado a auxiliar estudantes de ciências sociais na formulação e concepção de projetos de pesquisa, Perseu Abramo afirmava que “a melhor maneira de aprender a fazer pesquisa é fazê-la: nada substitui a prática da realização. Todavia – e é importante frisar – seria absurdo supor que essa prática não possa ser teorizada, principalmente para os alunos iniciantes” (Abramo, 1979, p. 22).

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No nosso caso, a proposta de recuperar a história das ciências sociais

contemporâneas a partir de seus projetos de pesquisa, pode contribuir para desvendar os

significados de uma prática comum entre nós pesquisadores, e que, talvez por isso

mesmo, é muitas vezes acobertada pela rotina acadêmica - o que em parte explica os

poucos trabalhos na área que se dedicaram a esse objeto (Roseberry, 1978; Maio, 1997;

Jollivet, 2003; Alphandéry & Sencébé, 2009; Oliveira, 2010; Chor, Oliveira, Lopes,

2013; Lauria-Perricelli, 2012). Resta, contudo, averiguar o que se entende pela categoria

“projeto”, o que nos permitiria delimitar analiticamente e avançar no conhecimento

desse instrumento fundamental da prática acadêmica5. Com Alfred Schutz (1962; 1979),

podemos afirmar que todo “projeto” envolve um planejamento do “ato” futuro, ou seja,

a antecipação “no tempo futuro perfeito” de uma ação em estado acabado (“modo futuri

exacti”), o que não é o mesmo que afirmar que, uma vez realizada, a ação encontre

completa correspondência com o seu “projeto” inicial. As “antecipações” são sempre

referências vazias que o próprio desenrolar do “projeto” vai preenchendo, e quando

5 Ao enfocarmos na elaboração de um novo “léxico” sobre campesinato e questão agrária a partir de projetos de pesquisa, buscamos contribuir com discussões recentes sobre a “história dos métodos” encetadas pela socióloga britânica Jennifer Platt (1996). Segundo esta autora, a ampla utilização de determinado método de pesquisa em um contexto específico estaria associado a constrangimentos de ordem institucional, política e econômica, o que possibilitaria, inclusive, compreender melhor as circunstâncias que levariam certos métodos a serem mais “teorizados” que outros. No entanto, a nosso ver, a proposta de Platt permanece assentada numa perspectiva institucionalista. Uma visão menos disjuntiva entre teoria e prática (empiria) permitiria destacar, além dos fatores institucionais, a lógica teórica que preside certos debates intelectuais. A proposta de Jeffrey Alexander (1984), a qual Platt se contrapõe, avança nesse sentido ao propor um esquema de via de mão dupla, formando um continuum entre um “ambiente metafísico” e um “ambiente empírico”, permitindo divisar, de acordo com cada proposta de pesquisa, elaborações teóricas diversas – e obviamente de seu relacionamento com a empiria. Conquanto cada nível desse continuum - modelos, conceitos, definições, preposições,... - esteja relacionado um com o outro, ocorre que essas relações não são simétricas, mas variam de acordo com as noções de generalidade e especificidade que cada pesquisa encerraria. Diferente de Platt, a qual concentra suas análises nos métodos das ciências sociais mais do que propriamente em sua lógica analítica ou de justificação, algo que, de acordo com a própria autora, caberia à “metodologia” estudar, Alexander oferece um modelo cujas distinções analíticas – e não ontológicas – permitiria destacar a “autonomia parcial” de cada um daqueles níveis que compõem a lógica teórica com a qual opera todo trabalho sociológico. Afinados com a perspectiva de Alexander, sem deixar, no entanto de compreender a “escolha” de determinados métodos em certos contextos, tomamos “projetos de pesquisa” como objetos de análise perseguindo a “lógica teórica” que preside seus diversos momentos.

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porventura não realizadas, parcialmente que seja, podem “‘explodir’” (Schutz, 1979, p.

135).

Mas o planejamento (a ação de “projetar” de Schutz) depende não só da

“previsão” do “ato futuro”, mas da “retrospectiva” de experiências similares passadas,

que auxiliam na “tipificação” dos possíveis meios e fins empregados na consecução do

“projeto”. Todo projeto, portanto, é intrinsecamente processual e sua realização está

ligada à redução, ainda que idealmente, de suas contingências. Schutz afirma que essa

operação é realizada de acordo com “fórmula ideais” contidas no “estoque de

conhecimento”, que guardariam correspondência com eventos passados, através dos

quais os agentes dotariam de inteligibilidade a concepção de seus “projetos”. Segundo o

teórico austríaco, “essas fórmulas ideais implicam a suposição de que a estrutura básica

do mundo como o conheço e, consequentemente, o tipo e estilo da minha experiência

dele e do meu agir dentro dele permanecerão inalterados, isto é, inalterados até segunda

ordem” (Ibidem, p. 135). A observação “até segunda ordem” é fundamental para

entendermos que no processo de “projetar” abre-se um lapso de tempo em que

contingências se tornam fundamentais para o surgimento de novas soluções por parte

dos agentes. Em diversas experiências da vida social o “estoque de conhecimento” é

suficientemente adequado para realização de determinado “projeto”, para outros, no

entanto, os agentes devem improvisar e extrapolam aquelas “fórmulas ideias” - o que

não quer dizer que mesmo na improvisação os agentes não procedam com linhas de

“tipificação” possíveis e dentro de certos marcos imaginativos. Sem essa complexa

operação, a própria ação de “projetar”/”antecipar” não seria possível, permanecendo um

mero “fantasiar”, sem qualquer referência à experiência.

De modo similar, o “estoque de conhecimento” a que recorre o cientista social é

“estruturado” por um corpus de métodos e teorias tomado como “dado” – o que

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significa cientificamente apurado (“scientifically ascertained”) - a menos que o próprio

pesquisador justifique o contrário6. Embora com “estrutura” diferente daquela da vida

cotidiana, esse “estoque de conhecimento” tem variados graus de clareza e distinção, ou

seja, um “sistema de relevâncias” próprio que define os interesses centrais do problema

a ser abordado. A própria conformação do “estoque de conhecimento” científico

depende não somente de “problemas” resolvidos, mas de suas implicações ainda ocultas

e de horizontes abertos pertencentes a problemas ainda não formulados. Embora em

aberto, afirmava Schutz, que “the scientific problem, once established, determines alone

the structure of relevances” (Idem, 1962, p. 39).

O importante a ressaltar é que o “conhecimento” oriundo de um “projeto”

realizado (então denominado de “ato” por Schutz) pode vir a rearrumar a estrutura do

“estoque de conhecimento”, alterando o “sistema de relevâncias”. E mesmo que o

“projeto” não se realize na forma exata como o concebemos – o que ocorre na maioria

dos casos -, a experiência seria incorporada ao nosso “estoque de conhecimento”. Desse

modo, conforme Schutz, “qualquer mudança no sistema de relevâncias desloca essas

camadas e redistribui nosso conhecimento. Alguns elementos, que anteriormente

pertenciam a zonas marginais, entram na área de clareza e definição ótimas” (Idem,

1979, p. 136)7.

6Se utilizamos o arcabouço conceitual da obra de Schutz na investigação de processos relativos ao conhecimento científico, é porque assim o faz o próprio autor com ressalvas importantes em relação às diferenças com o senso comum. A atitude do pesquisador de campo e do cientista social, de forma geral, é também guiada por um “estoque de conhecimento”, estruturado, no entanto, a partir de outros “sistemas de relevância” daqueles que guiam os agentes na vida cotidiana. O pesquisador cria modelos de atores e ações que não são e nem podem corresponder a de “seres humanos” situados no mundo social com suas histórias biográficas. Esses modelos, segundo Schutz, “strictly speaking, they do not have any biography or any history, and the situation into which they are placed is not a situation defined by them but defined by their creator, the social scientist. He has created these puppets or homunculi to manipulate them for his purpose” (Idem, 1962, p. 41). 7 Maria Isaura Pereira de Queiroz (1983, p. 33) ressaltava como todo projeto de pesquisa é “a convergência de três coordenadas: desconhecimento, hesitação e dificuldade, na ação futura”, posto que “seu propósito é esclarecer a dúvida, é descobrir o que está oculto, é conhecer o que se ignora”.

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Todavia, as contingências envolvidas na ação de “projetar” não dizem respeito

somente às capacidades cognitivas dos agentes em relação a determinados contextos da

vida, ou seja, aos mecanismos recursivamente aplicados em referência a um “estoque de

conhecimento” estruturado. Há de se considerar que, apesar ou mesmo por causa do

conhecimento mobilizado pelos agentes em sua vida cotidiana, a realidade social

também se constitui a partir de resultados imprevistos das práticas desses mesmos

agentes, o que, com frequência, modifica os “sentidos” iniciais de seus projetos.

Giddens (1978, p. 32-33), por exemplo, enfatiza que a sociologia de Schutz estaria por

demais preocupada em compreender as “condições da ação” e não suas “consequências

objetivas”, intencionais ou não. Desse modo, para se escapar à perspectiva “egológica”

de Schutz, Giddens propôs pensar os “projetos” formulados pelos agentes em contextos

que incorporem tanto suas consequências impremeditadas quanto as diferenças de

recursos – de poder inclusive (Ibidem, p. 81-84).

Os conteúdos desses projetos podem encontrar diferentes e contraditórias

ressonâncias na sociedade, e isso, como nos adverte Giddens, independente da

intencionalidade dos agentes envolvidos. Para o sociólogo inglês, as ciências sociais não

podem ser separadas dos universos de significado e ação de que tratam, criando-se um

vínculo “lógico”, diferente do que ocorre nas ciências naturais, entre a “metalinguagem”

científica e os conceitos orientadores mobilizados pelos próprios atores leigos em sua

vida cotidiana (Giddens, 2003). Essa “dupla hermenêutica”, assim denominado por

Giddens a interseção entre redes de significados cunhadas pelas ciências sociais e

aquelas tecidas pelos próprios atores leigos e por eles recursivamente implementados

como conhecimento discursivo e prático na produção de suas ações, é fundamental para

compreendermos a dimensão “pública” que todo “projeto” encerra (Giddens, 2003, p.

XXXVII et seq.).

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Giddens avança nessa proposição afirmando que aquela relação é constitutiva da

própria prática das ciências sociais, dado os limites frouxos entre o conhecimento

científico e o conhecimento prático e discursivo dos agentes na vida cotidiana. Nem as

ciências sociais, nem os agentes “competentes”, inseridos em contextos espaço-

temporais definidos, estão imunes aos discursos e conhecimentos produzidos em cada

uma dessas esferas – o que não significa, contudo, que esses conhecimentos sejam

equivalentes e que não seja possível uma ciência do social, ainda que não nos moldes

das ciências naturais. Portanto, quando o conhecimento produzido pelas ciências sociais

entra no curso da vida ordinária, voltando a elas já de forma modificada, num

movimento cíclico ininterrupto, pode-se então falar, com Giddens, de um processo

difuso de “reflexividade social”. Dessa forma, projetos científicos trazem em seu bojo

um potencial comunicativo que escapa ao controle de seus agentes, e de forma

impremeditada se imiscuem na vida social ganhando “sentidos” diversos.

Gilberto Velho (1981, p. 27) também já havia chamado atenção para o fato de

que os limites e alcances de um projeto estão relacionados ao que denominou de

“campo de possibilidades”, conceito este que denota os contextos sociais e simbólicos

específicos em que os “projetos” estão situados, embasando, restringindo e

credenciando os agentes para a sua realização. De acordo com o antropólogo, todo

“projeto” está inserido num contexto cultural ao qual recorre criativamente para a sua

formulação e, por isso, “tem de ‘fazer sentido’, num processo de interação com os

contemporâneos, mesmo que seja rejeitado” (Ibidem, p. 27). Dessa forma, “projetos”

nunca são puramente “subjetivos”, mas tendo como referência o “outro” ou o “social”,

condição mesma de sua possibilidade de comunicação, expressam-se dentro de um

repertório limitado de problemas centrais ou dominantes, o que os torna

“potencialmente público” (Ibidem, p. 27).

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A “eficácia” de cada projeto, segundo Velho, variaria justamente de acordo com

o quadro histórico, delimitado linguística e culturalmente, e do pêndulo de forças na

concorrência com outros projetos (Ibidem, p. 28). A continuidade dos projetos

dependerá, ainda de acordo com o autor, “de sua capacidade de estabelecer uma

definição de realidade convincente, coerente e gratificante – em outras palavras, de sua

eficácia simbólica e política propriamente dita” (Ibidem, p. 33). Política porque, como

empreendimentos “potencialmente públicos”, os projetos se infiltram na organização

social e nos processos de mudança social, não raro tomando parte nas relações de poder

(Ibidem, p. 34). Sua “eficácia” dependerá, por conseguinte, de certo nível de “abertura”

e de maleabilidade para se abrir ao outro, sem se esgotar ou destruir-se. Assim,

conforme Velho, os projetos dependerão “do instrumental simbólico que puderem

manipular, dos paradigmas a que estiverem associados, da capacidade de contaminação

e difusão da linguagem que for utilizada, mais ou menos restrita, mais ou menos

universalizante” (Ibidem, p. 34).

Interpretar os “sentidos” dessa forma de produção intelectual que é o “projeto”,

enquanto processo, coloca como exigência incontornável que o analista o situe dentro

de um contexto específico, apreendendo seu “potencial de comunicação”. Projetos de

pesquisa, portanto, não se restringem tão somente à função institucional-burocrática de

formação de redes profissionais ou de obtenção de financiamento – embora tudo isso

seja importante componente explicativo de sua viabilidade e das contingências que os

envolve. Mas, ao cumprir a exigência de sistematização de etapas, definição do objeto,

justificativa de métodos, formulação de hipóteses, e, por conseguinte, de ordenação de

resultados, os projetos podem se revelar fonte empírica de importante valor heurístico

para o estudo da história das ciências sociais contemporâneas, permitindo recuperar

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alguns de seus momentos formativos decisivos e suas principais formulações teórico-

cognitivas.

***

Vimos que a dimensão temporal é constitutiva da ação de “projetar”, seja

“retrospectivamente”, seja na “previsão” do desenrolar da ação - nesta última,

diferentemente da primeira, sempre restando algo “em aberto e indeterminado” (Schutz,

1979, p. 142). Daí que todo “projeto” guarde uma dimensão processual (“horizontes em

aberto”), o que, no plano analítico aqui proposto, é fundamental para que as

contingências envolvidas não recebam tratamento tangencial, mas se tornem variável

explicativa das condições que possibilitaram ou impediram a sua realização. No entanto,

na mesma ação de “projetar” está condito o esforço, ainda que idealmente, de redução

dessas contingências, o que é feito recorrendo-se a experiências pretéritas, tipificadas

em “fórmulas ideais”. A estrutura dos capítulos dessa tese busca justamente incorporar

esse “duplo movimento” presente na ação de “projetar”, além de buscar captar os

sentidos – intelectuais e políticos - assumidos pelas formulações do Projeto “Emprego”

no contexto sócio-histórico dos anos 1970.

No caso em que nos deteremos nesse trabalho, as contingências são basicamente

de duas ordens: primeira, a que aparece na própria “costura” do Projeto, reconstituída

através das negociações, apreciações de relatórios, reuniões, entre os interesses do grupo

de pesquisadores e das agências financiadoras; segunda, dizem respeito a própria

realização do Projeto, cujos resultados, ainda que animados por discussões comuns e

objetivos estabelecidos, trouxeram impressos o caráter coletivo do empreendimento,

algo possível de ser visto através da articulação de diversas pesquisas individuais nos

relatórios finais. O que no final esperamos deixar claro é que essas contingências não

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foram irrelevantes para o entendimento dos “sentidos” assumidos pelo Projeto naquele

contexto.

No primeiro capítulo, buscaremos reconstituir o contexto institucional e

intelectual mais amplo e mais especificamente da criação do PPGAS, evidenciando

algumas das “contingências” envolvidas na elaboração do Projeto Emprego.

Recorreremos a diversas fontes empíricas para mostrar como negociações e discussões

tanto internas ao grupo de pesquisadores quanto externas, com as instituições

financiadoras, imprimiram suas marcas no texto final. O esforço maior do grupo de

pesquisadores era de tornar legítima, frente às instituições financiadoras, o estudo

antropológico de questões tidas como de domínio quase exclusivo da economia.

No segundo capítulo, veremos como diversos fatores, como a formação de uma

geração de estudantes de ciências sociais na PUC-Rio, com forte ímpeto para a pesquisa

empírica, a revisão teórica do debate sobre questão agrária na esquerda brasileira levada

a cabo por Moacir Palmeira e as pesquisas de campo realizadas pelo antropólogo e

Lygia Sigaud na Zona da Mata de Pernambuco, a partir de 1969, estruturaram um

“estoque de conhecimento” fundamental para a formulação do Projeto Emprego e de

sua proposta de investigação antropológica do campesinato.

No terceiro capítulo, a ênfase recairá nas discussões internas realizadas pelo

grupo com o fito de definir coletivamente os aspectos metodológicos das pesquisas tal

como apresentados pelo texto do Projeto às agências financiadoras. O recorte do

capítulo girará em torno do debate do grupo sobre a “comunidade camponesa”, sua

possível aplicabilidade, rendimentos heurísticos, e, as formas de “generalização” teórica

e “representatividade” de caso, temas que o afastaria de algumas proposições dos então

chamados “estudos de comunidade”.

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No quarto capítulo, apresentaremos algumas das pesquisas realizadas no âmbito

do Projeto Emprego e incluídas em seus relatórios finais. Em sua unidade, os relatórios

se estruturam a partir de dois eixos: as possíveis contribuições da antropologia ao debate

sobre campesinato e questão agrária à época, e a necessidade da adequação e

refinamento de conceitos quando aplicados ao sistema econômico camponês –

discussão que interessava diretamente às instituições financiadoras. Veremos como os

relatórios expressam, a só um tempo, os interesses de pesquisas individuais do grupo e o

esforço comum de desreificar o conceito de “campesinato” através de uma perspectiva

relacional das diferentes categorias sociais que o compunham.

No quinto e último capítulo, extrapola-se o Projeto Emprego justamente como

parte da análise que permite evidenciar os “sentidos” que as pesquisas encaminhadas

pelo grupo, condensados em torno do que denominei de “campesinato em movimento”,

encontraram respaldo nos escritos sobre a atividade política do campesinato.

Recorreremos também a intervenções dos pesquisadores do Projeto – a maioria deles

engajados em atividades de assessoria a movimentos sociais e sindicatos - em debates

públicos para demonstrar como aquela concepção de “campesinato” trazia embutida

uma afirmação de cidadania não centrada somente no mundo urbano. Concepção essa

que entrava em disputa com outras naquele momento – inclusive do próprio movimento

camponês -, evidenciando a dimensão “comunicativa” das pesquisas aqui reconstituídas.

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Capítulo 1

Projetos para uma antropologia do campesinato

“It goes without saying that making use of different indexes does not mean their equality in some eclectic sense, but must be seen in hierarchies of significance defined by the conceptual structure of the question posed. All that accepted, it is still the attempt to push closer the conceptual to the empirical which is the focus of operational debate, past and present” (Shanin, Teodor. Measuring Peasant Capitalism)

Neste capítulo iremos percorrer – ainda que brevemente em alguns momentos –

a história da criação do PPGAS (Programa de Pós-graduação em Antropologia Social)

do Museu Nacional/UFRJ, de forma a elucidar como a literatura internacional sobre

campesinato animou as discussões deste Programa desde o seu início e possibilitou, em

determinado contexto, a aglutinação de diversos pesquisadores no âmbito do “Projeto

Emprego”. Para tal tarefa, selecionaremos dois eixos principais de análise: primeiro, os

modos pelos quais fora trabalhado o conceito de “campesinato”; segundo, o que

poderíamos chamar de abertura e interesse das instituições financiadoras à “perspectiva

antropológica” – o que de modo algum se deu sem esforço e negociações, sobretudo,

dos pesquisadores do PPGAS, preocupados na manutenção daquela instituição e de seu

alicerce ensino-pesquisa.

É preciso atentar para o fato que o Museu Nacional já se constituía em uma

instituição reconhecida por seu forte acento em pesquisa empírica, nas áreas de ciências

naturais e antropologia. No departamento de antropologia passaram grandes nomes

como Roquette Pinto, Curt Nimuendajú, Eduardo Galvão, Lévi-Strauss e Charles

Wagley, através dos quais seriam organizadas expedições e viagens de pesquisa (cf.

Garcia Jr., 2009; Melatti, 1984; Rubim, 1997). Nos anos 1960, o ensino em

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antropologia ganharia novo impulso com cursos de especialização em “Teoria de

Pesquisa em Antropologia Social e Cultural” organizados por Roberto Cardoso de

Oliveira e Luiz de Castro Faria, consolidando diálogos e desenvolvendo pesquisas que

desembocariam na formulação de três projetos de pesquisa: “Estudo Comparativo das

sociedades indígenas brasileiras”; “Estudos de áreas de Fricção Interétnica no Brasil”,

coordenados por Roberto Cardoso de Oliveira; e “Harvard Central Brazil Research”,

dirigido por David Maybury-Lewis. Através das atividades incluídas nesses projetos

puderam-se ampliar e consolidar pesquisas e cursos que deram origem ao mestrado do

PPGAS, cuja execução tornara-se possível a partir da subvenção da Fundação FORD ao

projeto “Estudo Comparativo do Desenvolvimento Regional” (1968-1972), coordenado

por Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis8. Conforme Leite Lopes,

a criação do PPGAS foi assim uma prática inovadora, reconvertendo antigas tradições de pesquisa e trabalho de campo do Museu Nacional e do Departamento de Antropologia para novos padrões de integração da pesquisa com o ensino pós-graduado e abrindo assim um enorme campo de atuação para a consolidação dessa nova experiência de trabalho (Lopes, 1992, p. 3)

Essa inovação foi posta em prática, segundo Garcia Jr (2009, p. 412), através do

recrutamento de alunos advindos principalmente da área de ciências humanas (história,

sociologia, psicologia,...) por meio de concurso público, implicando a comprovação de

conhecimento na área de antropologia. Aos poucos se consolidaria a institucionalização

de critérios que seriam decisivos para a conformação de uma nova prática

antropológica, de perfil muito mais próximo às ciências sociais do que às naturais.

O corpo docente e discente do PPGAS guardava as marcas de seu contexto de

criação. A conjuntura repressiva imposta pela ditadura militar teve fortes repercussões

nas elaborações teóricas e escolhas dos objetos a serem investigados, muito embora o

8 Para uma análise detalhada desse período, baseada em fontes empírico-documentais, ver Garcia Jr., 2009.

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desenvolvimento de pesquisas não tivesse sofrido grandes desvios e intervenções mais

diretas, contribuindo para isso a imagem histórica do Museu Nacional como lócus de

trabalhos em ciências naturais e de antropologia física. Este clima – relativamente

favorável em relação ao que acontecia com outras instituições, como a UNB9 -

propiciou a ampliação e diversificação das atividades. De acordo com Cardoso de

Oliveira,

certamente o Museu Nacional, por se achar um pouco marginal às instituições de ensino superior com grande número de alunos (por abrigarem cursos de graduação), e por cultivar disciplinas consideradas ‘pouco politizadas’ pela repressão (como a etnologia, a arqueologia, e as ciências naturais), foi deixado fora do foco da atenção do sistema policial-militar (Cardoso de Oliveira, 1992, p. 53-54).

Neste capítulo, propomos reconstituir o Projeto Emprego a partir das discussões

intelectuais que o animava e dos constrangimentos de ordem técnica e burocrática que,

em parte, o formatou. Dessa forma, esperamos ressaltar a dimensão processual que todo

projeto encerra enquanto projeção de situações de pesquisa, hipóteses e delimitações de

problemas, o que no caso aqui estudado é ainda mais significativa dada as múltiplas

relações estabelecidas para a viabilidade das pesquisas com as agências financiadoras. O

que, no entanto, não impediu que o grupo reafirmasse o caráter eminentemente

“acadêmico” do Projeto. Na primeira parte, percorreremos alguns projetos de pesquisa e

as “conceituações e desconceituações” (Shanin, 1980) – da categoria de campesinato

que estavam em debate naquele momento no PPGAS/MN. Com isso, pensamos ser

possível reconstituir a história do PPGAS e lançar luz sobre seu processo de

institucionalização por meio da diversidade de suas pesquisas, afastando-se com isso de

9 Fundada em 1961, a Universidade de Brasília fora fruto de um ambicioso projeto de ensino que reunira Darci Ribeiro e Anísio Teixeira e em muitas medidas antecipou a Reforma Universitária de 1968. O Golpe de 1964, no entanto, frustraria as pretensões desses educadores ao forçar diversos de seus alunos e professores à demissão ou o exílio, além das constantes intervenções, violentas inclusive, como a que ocorrera em 1968 (cf. Schwartzman, 1979, p. 291).

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identificar qualquer uniformidade ou identidade estável em seu interior. Apoiamo-nos,

sobretudo, na sugestão de Garcia Jr. (2009) que ao reconstituir a criação daquele

Programa e o esforço de seus pais fundadores, mostrou como a sua institucionalização

não se fez desatrelada dos debates teóricos de suas pesquisas e, por conseguinte, da

própria inovação da prática antropológica. Na segunda parte, veremos como

pesquisadores do Projeto Emprego legitimaram uma abordagem antropológica sobre

assuntos até então sob domínio da economia, principalmente no debate público. Por fim,

recorreremos a um material empírico diverso para demonstrar como se desenrolaram as

negociações, recuos e propostas que balizaram, enfim, as formulações do Projeto

Emprego apresentadas às agências financiadoras.

1.1 Campesinato e “estudos regionais”: a criação do PPGAS

Chama atenção que, embora o impulso inicial às pesquisas em antropologia no

Museu Nacional tenha se dado a partir de uma ênfase no estudo das populações

indígenas, a primeira dissertação de mestrado defendida em 1972 no Programa de Pós-

graduação em Antropologia Social (PPGAS/MN) tenha tido como tema as sociedades

camponesas: “Frentes de expansão e estrutura agrária” de Otávio Guilherme Velho,

orientada por Roberto Cardoso de Oliveira. Seria este o grupo social que integraria um

amplo interesse de pesquisas no âmbito do projeto “Estudo comparativo do

desenvolvimento regional: Nordeste e Centro-Oeste” (1968-1972), financiado pela

Fundação Ford, sob a coordenação de David Maybury-Lewis e de Roberto Cardoso de

Oliveira, e cujos recursos subsidiaram a própria criação do PPGAS.

O objetivo do projeto era avaliar as repercussões do desenvolvimento brasileiro

nas populações de baixa renda, especialmente aquelas situadas nas áreas rurais, ou

mesmo urbanizadas, mas de certo modo ainda vinculadas, cultural e economicamente,

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às regiões agrárias (Oliveira, 1992, p. 51). Em seu “Subsídios a um ‘Estudo

comparativo do Desenvolvimento Regional’” (s/d)10, Roberto Cardoso de Oliveira

propugnava um enfoque antropológico para o estudo da “mudança social (entender

também cultural) dirigida ao polo moderno e desenvolvido da Sociedade Nacional”,

que, segundo o autor, assentava-se nas disjunções entre a modernização - compreendida

como um conjunto de comportamentos, aspirações e valores de indivíduos e grupos - e

desenvolvimento - identificado na mudança de estruturas socioeconômicas. O projeto

propunha, então, investigar as mudanças nesses dois níveis conjugados, de maneira a

avaliar suas “repercussões” sobre as formas de pensar e agir do homem “tradicional” ou

“rústico”, “produtor e produto da sociedade em que se acha inserido”, e sobre as

estruturas permanentes de desigualdade ensejadas por uma sociedade periférica. Na

seleção das comunidades a serem estudadas deveriam ser observadas, segundo Cardoso

de Oliveira, as formas de integração à sociedade global, posto que as conexões entre as

localidades, áreas e regiões “não se estabelecem através de relações vazias de

conteúdo”, estando elas “carregadas de conteúdo ‘político’”. Tendo isso em vista, o

projeto se dividiu em duas frentes: na região Centro-Oeste, onde as frentes de expansão

permitiriam estudos sobre a “fronteira” e contatos interétnicos; e na região Nordeste,

onde as mudanças na plantation tradicional permitiriam analisar a formação de um novo

campesinato e outras formas de trabalho. Como “diretores de campo”, inicialmente

coube a Francisca Vieira Keller coordenar as pesquisas na região Centro-Oeste; e a

Moacir Palmeira a região Nordeste11.

10 Este texto é uma versão do Projeto em português escrita por Roberto Cardoso de Oliveira, e encontra-se no acervo Luiz Fernando Cardoso Fontenelle no arquivo da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz. A versão em inglês, escrita por David Maybury-Lewis, intitulado “A comparative study of regional development in Brazil” (s/d) encontra-se no acervo de Roberto Cardoso de Oliveira no Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP. 11 Ainda envolto com a escrita de sua tese de doutorado na Universidade Paris-Descartes, na França, Moacir Palmeira ressalta que sua função de coordenador foi um tanto quanto “formal” no Projeto, não tendo participado desde seu início dos “surveys” que prepararam as pesquisas de campo: “eu devia ter

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O Projeto “Estudo Comparativo” propunha, portanto, estudos direcionados de

acordo com o recorte “regional”, buscando fugir das críticas direcionadas aos tão

propalados “estudos de comunidade” das décadas anteriores (cf. Melatti, 1984, p. 28)12.

Não fora outro senão o critério ao definir as áreas de pesquisa no Nordeste (área 1: Zona

da Mata e Agreste; área 2: sul do Ceará e Paraíba) e no Centro-Oeste (área 3: Pará,

Maranhão e Goiás; área 4: vale do São Patrício, situado em Goiás), buscando adequar,

conforme Cardoso de Oliveira, “a necessidade de estudos mais intensivos (crítica à

sociologia), ao mesmo tempo que menos circunscritos a comunidades (crítica à

antropologia)” (Cardoso de Oliveira, “Possibilidade de imediata aplicação da pesquisa

em 4 áreas”, s/d, p. 5). Além disso, a versão em inglês do projeto, escrita por Maybury-

Lewis, justificava a escolha dessas regiões pelas oportunidades que ofereciam para o

estudo das mudanças sociais, o Nordeste como uma área de colonização antiga, e o

Centro-Sul como área de fronteira, e, portanto, de colonização recente (“A comparative

study of regional development in Brazil”, mimeo, s/d: 2).

Fora justamente nesse momento que Moacir Palmeira começou a formar um

grupo de pesquisadores dedicado às mudanças sociais na plantation tradicional

nordestina. Palmeira desenvolvia um subprojeto próprio no interior do Projeto “Estudo

Comparativo”, intitulado “Os Mercados Locais como Elemento de Mudança numa Área

de Plantation” (cf. Palmeira, 1994), e Lygia Sigaud, com preocupações muito próximas

a de Palmeira preparava sua dissertação de mestrado, orientada por David Maybury-

Lewis, sobre as representações e classificações de moradores e trabalhadores da rua.

operado como uma espécie de coordenador de campo, mas no momento de início da pesquisa de campo, eu não estava aqui, estava na França ainda. Quando voltei, fazia um pouco, mas era mais a articulação burocrática e logo percebi que era bem complicado, tinha pessoas com bem mais experiência do que eu (...) E então o que eu fiz foi um pouco ir separando um grupo formando, um grupo para estudar a área canavieira de e aí o resto era conversa com os colegas e tal, um período que o Roberto Cardoso estava nos Estados Unidos tinha um pouco que coordenar as ações, resolver problemas de densidade de pesquisa e tal, então a coisa foi mais interessante” (Palmeira, 2010b, p. 22). 12 Indicativo disso é a oferta da disciplina “Estudos regionais e de comunidade” no quadro do PPGAS.

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Palmeira distribuiria diversos de seus alunos em frentes de pesquisa que julgava

relevantes para o entendimento das transformações da plantation: Vera Maria

Echenique, trabalhou sobre as tensões e conflitos trabalhistas em torno da terra,

principalmente entre foreiros, que ocorriam na Zona da Mata pernambucana; Luiz

Maria Gatti, estudou a atuação dos sindicatos, apesar da forte repressão do governo e

dos proprietários. Ambos publicaram um trabalho em comum (Gatti & Echenique,

1974), mas não defenderam suas dissertações de mestrado, tendo Echenique se tornando

assessora da CONTAG (Confederação dos Trabalhadores da Agricultura) e Gatti se

transferido para o México. Roberto Ringuelet, formado em antropologia pela

Universidade Nacional de La Plata em 1969, dedicou-se a estudar os corumbas,

pequenos proprietários que migravam em determinadas épocas em busca de trabalho

nas plantations, tema sobre o qual defenderia sua dissertação de mestrado (cf.

Ringuelet, 1977). Beatriz Heredia13, formada em história pela Universidade Nacional de

Córdoba em 1964, estudaria os camponeses marginais à plantation no norte da Zona da

Mata, enquanto Afrânio Garcia Jr., formado em economia pela PUC-Rio em 1969,

estudaria a mesma categoria social no sul da Zona da Mata. Garcia Jr. defenderia sua

dissertação de mestrado em 1976 e Heredia em 1977. Caberia ainda a José Sergio Leite

Lopes, colega de Garcia Jr. na turma do curso de economia da PUC-Rio, estudar os

trabalhadores da parte industrial da plantation, pesquisa de mestrado que defenderia em

1975. Ainda integrariam o grupo, Doris Rinaldi Meyer, que estudaria uma vila de

camponeses situada dentro de uma grande fazenda, e Leilah Landim Assumpção,

graduada em filosofia pela UFRJ em 1970, que voltaria seus esforços de pesquisa para

as cooperativas de pequenos produtores. Ambas defenderiam suas dissertações de

13 Assim como Gatti e Ringuelet, Heredia vinha da Argentina fugindo da violenta repressão da ditadura militar. Gatti integraria posteriormente o corpo de pesquisadores do Centro de Investigaciones Superiores do Instituto Nacional de Antropologia y Historia (CIS-INAH) e da Universidade Autônoma de Nuevo Léon, no México. Ringuelet atualmente é professor titular da Universidade Nacional de La Plata.

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mestrado em 1978. Todos os pesquisadores citados teriam suas dissertações orientadas

por Moacir Palmeira e – à exceção de José Sergio Leite Lopes - defendidas já na

vigência do Projeto Emprego.

Pode-se observar que se formara um amplo grupo de pesquisadores em torno de

Moacir Palmeira interessados nas transformações da plantation tradicional e nas

diversas posições ocupadas pelos trabalhadores nesse sistema, bem como os tipos de

dominação nela engendradas. Nesse contexto, a bibliografia sobre campesinato já tinha

relevância no interior do PPGAS, inclusive entre os estudos de “etnologia indígena”

(Correa, 1995; Melatti, 1983; Viveiros de Castro, 1999), como melhor expresso na

elaboração do conceito de “fricção interétnica” de Cardoso de Oliveira (cf. Amorim,

2001). Apesar de interesses distintos, diversas pesquisas desenvolvidas no âmbito do

projeto “Estudo Comparativo” compartilhavam o interesse teórico comum pela

bibliografia contemporânea sobre campesinato, algo que foi se solidificando com o

tempo e formando uma identidade do Programa, como se pode entrever através da

oferta regular, até hoje, da disciplina “Sociedade Camponesas”, ministrada por diversos

professores, como Roberto Cardoso de Oliveira, Giralda Seyferth, Otávio Velho,

Moacir Palmeira, Lygia Sigaud e posteriormente por diversos ex-alunos (Garcia, 2009;

Garcia & Grynszpan, 2002; Lopes, 2011a).

Roberto Cardoso de Oliveira e Otávio Velho foram os principais responsáveis

pela introdução dessa bibliografia, mais propriamente antropológica, no PPGAS, e foi

através deles que o próprio Moacir Palmeira se entrosara com o assunto (cf. Palmeira,

1994, p.10). A partir dessa bibliografia, Roberto Cardoso de Oliveira estava

particularmente interessado em testar as possibilidades heurísticas do conceito de

“fricção interétnica” desenvolvido a partir de seus trabalhos entre os Tukuna e os

Terêna, na tentativa de melhor compreensão da dinâmica de relação entre os grupos

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indígenas e a sociedade de classes. Assim, ao lado dos projetos que encaminhara

individualmente ou coletivamente, sob sua orientação, nas áreas de fricção interétnica,

Cardoso de Oliveira alimentava o crescente interesse pela tradição de estudos sobre o

campesinato, e por isso propôs o que denominou de “sociologia do campesinato

indígena” (cf. Cardoso de Oliveira, 1978).

Para essa proposta, Cardoso de Oliveira apoiara-se em esforço teórico

empreendido por Otávio velho em seu artigo intitulado “O conceito de camponês e sua

aplicação à análise do meio rural brasileiro” de 1969 [1982], onde discutia como aquele

conceito, originalmente transposto de análises que se referiam à Europa Ocidental,

precisaria ser depurado em confronto com a realidade brasileira. Propões, então, pensar

os grupos camponeses brasileiros dentro de um “continuum” que iria desde a

“integração mínima no sistema nacional”, o máximo de “campesinidade”, como nas

regiões de “fronteira”, até o máximo de “proletarização”, a exemplo da Zona da Mata de

Pernambuco.

Ora, é importante lembrar que não seriam outras as áreas – Zona da Mata e

Agreste de Pernambuco, exemplos de Otávio Velho - selecionadas para as pesquisas de

campo coordenadas por Moacir Palmeira e Lygia Sigaud no projeto “Estudo

Comparativo” e, posteriormente, no Projeto “Emprego” – muito embora o interesse por

estas áreas viesse antes mesmo do Projeto Estudo Comparativo, principalmente por

parte de Palmeira (conforme mostraremos no próximo capítulo). No entanto, a menção

se faz necessária, como veremos adiante, porque os estudos de caso nestas regiões

teriam sua relevância e interesse justamente pela “coexistência” das relações

camponesas e não-camponesas, unindo, por assim dizer, as duas pontas daquele

continuum. O Projeto Emprego seria montado tendo em vista esse desafio: as posições

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polares não significariam tão somente uma transição, mas o estabelecimento de uma

relação recíproca entre os dois momentos.

1.2 Antropologia e economia: disciplinas postas em diálogo

Em 1972 terminava o período de vigência do Projeto “Estudo Comparativo” e

com ele os recursos que subsidiavam o PPGAS. A crise se agravaria com a saída no

mesmo ano de Roberto Cardoso de Oliveira para a Universidade de Brasília, resultado

de discordâncias com a administração central do Museu Nacional, durante a gestão de

Lacerda Feio, principalmente em relação a política de promoção de professores e

pesquisadores que não tomava a titulação como principal critério de avaliação (cf.

Cardoso de Oliveira, 1992, p.55). Cardoso de Oliveira era figura central no

funcionamento do PPGAS, incentivando estudos dirigidos e instalando um regime

intenso de leitura de livros e artigos entre seus alunos, além de arregimentar professores

e pesquisadores para o Programa, estilo que o fizera se destacar na profissionalização da

área, como o demonstra sua participação na criação das pós-graduações em antropologia

na UNB e na UNICAMP (Amorim, 2001). Sua desvinculação do Programa implicou a

ausência do principal mediador, ao lado de David Maybury-Lewis, junto a agências

financiadoras na obtenção de recursos. Uma das saídas vislumbradas para a crise em

que ingressara o PPGAS foi a submissão de projetos de pesquisa, individuais e

coletivos, a agências financiadoras. Essa estratégia ganhava espaço em um contexto de

de políticas de ampliação e diversificação do sistema universitário brasileiro

encampadas pelos governos ditatoriais. Os militares levaram a cabo um dos

diagnósticos do período desenvolvimentista segundo o qual a superação da condição

periférica do país passava pelo incremento em ciência e tecnologia, ponta de lança da

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economia mundial (Cunha, 1988; Schwartzman, 1979). A partir de então, assistiu-se à

implementação de uma série de programas voltados à área de educação, ampliando o

número de vagas ofertadas nas universidades e o credenciamento de diversos cursos de

pós-graduação (Velho, 1983; Durham, 1986). A Reforma Universitária de 1968 viria

justamente consolidar esse processo ao abolir o regime de cátedras e reforçar a relação

ensino-pesquisa, em conformidade com o padrão moderno de universidade difundido

pelo mundo. Momento propício para que cientistas, em geral, e cientistas sociais, em

particular, começassem a se valer da identidade de “pesquisadores” para angariarem

recursos em pesquisas e melhorar a infraestrutural institucional de seus programas (cf.

Keinert, 2011). Tiveram papel importante nesse incremento das políticas voltadas à

educação superior as agências privadas estrangeiras, sobretudo norte-americanas, que

passaram a reconhecer na profissionalização desses pesquisadores meio pelo qual

implementar uma política de inserção mundial do Brasil e também afastar os riscos do

envolvimento desses pesquisadores com atividades políticas (Miceli, 1993; Keinert,

2011). O maior volume de investimentos dessa natureza partiu da Fundação FORD, que

como vimos subsidiou a criação do PPGAS/MN, mas também a de centros de pesquisa

como o CEBRAP e IUPERJ.

A retração dos investimentos da Fundação FORD no Brasil fez com que os

pesquisadores se voltassem então às fontes de financiamento público. A principal dessas

instituições estatais fora a FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), criada em 1967,

tendo, em meados dos anos 1970, suas funções reformuladas ao substituir e ampliar o

FUNTEC (Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico), até então ligado ao BNDES

(Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Essas reformulações

faziam parte de um amplo pacote de políticas de inovação científica dos governos

militares, entre os quais o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e

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40

Tecnológico (FNDCT), cuja secretaria executiva ficara a cargo da própria FINEP.

Grande parte dessas medidas foi efetivada pelo ministro do planejamento José Paulo

dos Reis Velloso em sintonia com o então presidente da FINEP José Pelúcio Ferreira

(cf. Schwartzman, 1979; Ferrari, 2002)14. Além desses fatores de ordem política, fora

decisiva também a participação de Afrânio Garcia e José Sérgio Leite Lopes, então

funcionários da instituição, na viabilização desses projetos, em particular o Projeto

Emprego, através do qual angariaram recursos inclusive para melhoria de infraestrutura

do PPGAS e para contratação de novos professores15. Os dois funcionários - e naquele

momento alunos de mestrado do programa – foram formados em economia pela PUC-

Rio em 1969 – época em que este curso ainda integrava a Escola Livre de Sociologia e

Política – e, com passagem pela Universidade Paris-Assas e de Nanterre. A

aproximação com a antropologia se dera através de Isaac Kerstenetzky, professor que os

indicou para o então recém-criado PPGAS, sendo admitidos em março de 197016.

Tempos depois, poderiam se utilizar da dupla formação como economistas e

antropólogos integrando o Grupo de Pesquisas da FINEP, coordenado pelo economista

14 José Paulo do Reis Velloso é graduado em economia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e foi ministro do Planejamento durante os governos Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, permanecendo no cargo entre 1969 e 1979. José Pelúcio Ferreira era formado em Economia pela UERJ (1952), foi grande entusiasta do financiamento e implantação de programas de pós-graduação nas universidades brasileiras no Brasil. Depois de sair do BNDES, foi vice-presidente do CNPq e o segundo presidente da FINEP (1967-1975). Sobre a importância cada vez maior, nesse contexto, dos economistas na promoção de políticas de governo e como “classe dirigente”, ver Loureiro, 1997. 15 No mesmo período existiam outros projetos que serviriam de apoio ao PPGAS, entre eles os “institucionais”, “Manutenção e Desenvolvimento do ensino e da pesquisa na área de Antropologia Social” (arquivo FINEP, convênio 202/CT) e “Apoio global ao ensino pós-graduado associado diretamente a pesquisas na área de Antropologia Social e nas áreas conexas de Etnologia e Arqueologia” (convênio 239/CT). Quanto aos projetos relacionados à pesquisa, além do Projeto Emprego, havia também o “Hábitos Alimentares em Camadas de Baixa Renda”, coordenado por Otávio Velho. Por ainda estar em curso todos esses financiamentos, o pedido de “termo aditivo” para o incremento de recursos ao Projeto Emprego fora negado pela parecerista Maria Brígida Moreira de Andrade, sob a justificativa de que “acreditamos que um apoio mais efetivo será realizado se um projeto de apoio global for solicitado no lugar de pequenos projetos específicos realizados pelo Departamento” (Arquivo FINEP, IF/206: 889-890). 16 Kerstenetzky foi orientador de Garcia Jr. em sua monografia de conclusão no curso de economia em 1969, intitulada “Industrialização Brasileira (1930-1968)”.

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Fabio Erber, onde, como ressaltou Leite Lopes em seu memorial de professor titular, os

trabalhos desenvolvidos

puderam ter alguma serventia ao colocar-nos em cena com economistas no interior de instituições do Ministério do Planejamento interessados no que eventuais pesquisas antropológicas poderiam oferecer para melhor focalizar a face social das questões abertas ou aprofundadas com as consequências do ‘milagre econômico brasileiro’ (Lopes, 2011a, p. 16)17.

Os rumos da política econômica dos governos militares ganhara o debate público

em 1972, ano em que o IBGE publicou o censo de 1970 cujos dados indicavam a piora

da distribuição de renda em relação ao censo de 1960. Imediatamente apareceram

diversas releituras daqueles dados, acrescentando ainda outros fatores e variáveis, e

polarizando argumentos que, de diferentes maneiras, ou defendiam a política econômica

dos governos ditatoriais, ou, apesar do crescimento econômico experimentado naqueles

anos, viam na desigualdade de renda fator alarmante e perverso da política econômica.

De forma geral, para os críticos da política econômica, a ênfase no consumo de minorias

e o investimento em setores de alta renda eram os fatores que estimulavam o

crescimento econômico, às custas, no entanto, de amplas camadas da população,

sobretudo as mais pobres, e do controle de sua participação política (cf. Malta, 2011).

O “Projeto Qualidade de Vida”, que abrigava as pesquisas do Grupo de

Pesquisas, inseria-se nesse contexto de revisão dos índices econômicos e da distribuição

17 Fabio Eber assim definiu as atividades do Grupo: “em sua primeira fase, de 1971 a 1974, o GPq concentrou suas atividades em projetos que tinham forte proximidade com as prioridades da política econômica do período, como o desenvolvimento tecnológico da indústria de bens de capital e da indústria petroquímica e a demanda das empresas estatais por equipamentos e serviços tecnológicos. Composto por uma equipe multidisciplinar, em que havia economistas, sociólogos e um engenheiro, desenvolveu métodos de pesquisa qualitativos apropriados a esses temas e inseriu-se na comunidade internacional, participando de projetos de pesquisa multinacionais. Entre 1975 e 1978, sob a direção de José Tavares de Araújo Jr. e, no fim do período, de Marcelo de Paiva Abreu, o GPq abriu substancialmente o leque de pesquisas e recrutou diversos pesquisadores seniores, como Luciano Martins, Maria da Conceição Tavares e Simon Schwartzman, que realizaram importantes projetos sobre a burocracia brasileira, a organização da indústria nacional e a evolução da comunidade científica no País, além de dar continuidade aos estudos setoriais, a exemplo das indústrias farmacêutica e de alimentos” (Erber, Fabio apud Ferrari, 2002, p. 169).

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de renda. De acordo com o seu texto, o projeto tinha como objetivo sugerir “campos

prioritários para a aplicação dos recursos do ‘Fundo Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (FNDCT)’, tendo em vista os pontos contidos no ‘Plano

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social’”, para assegurar “a participação de

todas as categorias sociais nos resultados do desenvolvimento” (s/d, p. 1). Com isso,

intentava-se compreender de que forma o desenvolvimento econômico repercutia nos

índices de “qualidade de vida”, entendida como “poder aquisitivo da população frente

aos bens transacionados no mercado e pela oferta de serviços de infraestrutura básica”

(Ibidem, p. 2). Para tal, o projeto propunha investigar, por um lado, as formas de

emprego e remuneração do trabalho, e, por outro, a disponibilidade e custos de certos

bens considerados fundamentais para o pleno desenvolvimento dos recursos humanos.

O projeto abarcaria diversos estudos “de caráter curto” que deveriam cumprir o objetivo

de fornecer alguns subsídios para “pesquisas de campo” posteriores (Ibidem, p. 4-5).

No âmbito deste projeto, Afrânio Garcia e José Sergio Leite Lopes produziram

análises importantes, trazendo como aporte crítico a literatura da antropologia

econômica18. Assim , por exemplo, em “Notas críticas ao ‘Desemprego e subemprego

18 Conquanto os aspectos centrais dessa literatura possam ser remontados às décadas de 1930 e 1940, com Malinowiski, Firth, Herskovitz, Knight e Goodfellow, o debate se torna, contudo, mais acirrado nas décadas de 1960 e 1970 entre duas principais correntes: os “substantivistas” e os “formalistas”. O fulcro da discussão girou em torno da possibilidade de utilização e aplicação da moderna teoria econômica para estudar e analisar outras formas de economia, isto é, da sua pretensa aplicabilidade universal enquanto base explicativa da realidade. Os substantivistas, encabeçados por Polanyi, consideravam uma “falácia” a aplicação do modelo neoclássico da teoria econômica a todas as formas de economia – primitivas e camponesas -, criticando, por conseguinte, a sua pretensa universalidade. Esta, na verdade, restringia-se ao estudo das modernas economias capitalistas, onde os mercados formadores de preços desempenham um papel fundamental. Dessa perspectiva, são as instituições culturais de integração que moldam o comportamento “econômico” dos indivíduos numa sociedade complexa, e não tendências psicológico-comportamentais inatas, como as do homo economicus neoclássico. Os formalistas, por sua vez, cujos maiores representantes são Raymond Firth e Melville Herskovits, defendiam a apropriação dos conceitos considerados universalmente aplicáveis da teoria econômica formal — tais como escassez, maximização, excedente, lucro, capital, crédito etc. — para analisar os dados empíricos das economias camponesas e primitivas. Embora considerem que seja possível recorrer aos conceitos referentes à economia moderna para explicação da economia camponesa,

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no Brasil’”, cuja primeira versão circulara no grupo de estudos da FINEP em 1972,

Leite Lopes propôs a revisão do trabalho “Desemprego e Subemprego no Brasil” de

F.S. O´Brien e Claudio L. Salm – este último responsável, posteriormente, pelo

acompanhamento e avaliação do Projeto Emprego junto ao IPEA. Neste artigo, os

autores chamavam a atenção para a adequação do conceito de “desemprego disfarçado”

em países subdesenvolvidos, cuja maioria da população seria oriunda do campo. Isso

traria implicações importantes para a análise, posto que se deveria levar em

consideração que as taxas de emprego em zonas rurais variariam de acordo com as

estações, nível de tecnologia, estrutura produtiva e acesso à terra. Em países

desenvolvidos, o desemprego no campo seria compensado pela alta produção

tecnificada e pela absorção no mercado urbano-industrial, enquanto nos países

subdesenvolvidos, o parco desenvolvimento deste mercado, junto ao baixo investimento

em tecnologia e uma estrutura agrária arcaica, faria com que as taxas de desemprego

permanecessem estáveis, piorando os níveis de vida dessa parcela da população.

Leite Lopes situava o artigo de O`Brien e Salm dentro do “campo intelectual”

que animara as discussões sobre distribuição de renda no Brasil, sobretudo entre os

economistas, e criticava o fundamento daquelas discussões, qual seja: a de que a

substituição do termo emprego pelo termo distribuição de renda, em suas palavras,

contribuía para “o tratamento econométrico imediato com a abstração da realidade

social” elidindo as formas pelas quais emprego e subemprego se manifestavam

empiricamente (Lopes, 1978, p. 136). Correlato a isso, a utilização corrente do termo

eles não devem ser operacionalizados da mesma maneira Dessa forma, suas posições se assentam no fato de que as sociedades primitivas e camponesas através de suas regras morais podem pôr em funcionamento, por outras vias, o capital. A seguir, utilizaremos textos escritos por José Sergio Leite Lopes no Grupo de Pesquisas da FINEP. Isso porque não tivemos acesso a textos de Afrânio Garcia Jr., apesar da referência a eles, principalmente “Nota preliminar de discussão do trabalho de Edimar Bacha” e “Comentários sobre encargos trabalistas e absorção de mão de obra no Brasil” (cf. Lopes, 2011a, p. 17).

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distribuição de renda revelava que o debate se afastava do estudo mais detido da

organização produtiva e suas diversas formas assumidas na sociedade brasileira.

Diferentemente do termo emprego, que deslocaria a análise para a distribuição dos

meios de produção e dos membros da sociedade entre os diferentes gêneros produtivos,

tomando como foco principal o próprio nível da produção.

De forma geral, o tratamento dado à questão da desigualdade pelos estudos sobre

distribuição de renda, prosseguia o autor, privilegiava as mensurações estatísticas sem a

necessária referência à realidade social, cujos meandros limitariam a fácil generalização

ou o transplante de conceitos oriundos de outras realidades para explicar a brasileira.

Não raro, estas análises, conforme observava Leite Lopes, tomavam fenômenos do

“desemprego” e ‘subemprego” “como um resíduo marginalizado da sociedade

‘moderna’”, cuja fragilidade dinâmica e produtiva em países subdesenvolvidos não seria

capaz de absorver os excedentes populacionais do setor “tradicional”. Embora atentos à

dinâmica econômica de um país subdesenvolvido como o Brasil, O´Brien e Salm

recairiam, segundo Leite Lopes no mesmo equívoco (Ibidem, p. 136).

Munido das leituras antropológicas e das pesquisas de campo que já realizara no

Nordeste, José Sergio Leite Lopes constatava, no entanto, que “essa literatura por um

lado deixou de ver este suposto ‘subemprego’ como sujeito a leis próprias de

funcionamento, como no caso da economia camponesa ou no caso da economia de

‘latifúndio’, e por outro lado fez abstração das condições de trabalho dentro do próprio

setor ‘moderno’” (Ibidem, p. 137). Perspectiva que se alimentara de leituras da

antropologia econômica e, sobretudo, daquela dedicada ao campesinato, a exemplo do

livro “On the theory of non Capitalist Economic System” do economista russo

Alexander Chayanov, traduzido do russo para o inglês em 1966. Livro esse que serviu

como apoio teórico para uma primeira formulação de Afrânio Garcia e Beatriz Heredia

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dos dados colhidos junto a camponeses localizados entre a Zona da Mata e o Agreste de

Pernambuco, o que lhes rendeu um artigo, publicado em 1971, na Revista América

Latina com o título “Trabalho Familiar e Campesinato”19. Retomaremos os argumentos

deste artigo como indicativo das discussões que ocorriam entre os pesquisadores do

Projeto Emprego e para elucidar o teor da crítica de Leite Lopes aos economistas da

época.

Garcia Jr. e Heredia chamavam a atenção para a necessidade, no nível teórico, de

se levar em conta as especificidades da economia camponesa. Apoiando-se em

Chayanov, os autores afirmavam que, embora a produção camponesa lidasse com

trabalho, bens de produção e terra, disso não se poderia depreender que se devesse

utilizar categorias condizentes a outros modos de produção em sua explicação. Dessa

forma, seria preciso tomar o campesinato como um “sistema econômico” específico,

cujas leis de produção e reprodução poderiam ser determinadas.

A economia camponesa, segundo o autor russo, estaria apoiada em um princípio

fundamental, que seria o balanço entre a necessidade de consumo e a sua capacidade de

produção, fazendo com que a família camponesa trabalhasse somente o estrito

necessário para suprir suas necessidades. Dessa forma, nas palavras de Chayanov, “o

grau de auto-exploração é determinado por um equilíbrio específico entre a satisfação

da procura familiar e a fadiga devida ao trabalho” (Chayanov, 1981, p.482)

Além disso, a economia camponesa estaria basicamente apoiada no trabalho

familiar, e não no trabalho assalariado. A ideia de que o camponês seria um capitalista

ao mesmo tempo que seu próprio operário, desconsiderava, para o autor russo, o fato de

que a renda familiar seria indivisível, composta pelas estratégias de todos os membros.

A densidade populacional da família, o número de consumidores e produtores, ao lado 19 O artigo foi escrito em 1972, logo após o retorno da pesquisa de campo em Pernambuco, mas integrado nos números 1/2 de 1971 da revista.

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da disponibilidade de terras, influía decisivamente nas escolhas familiares, sobretudo

através de seu chefe, nas estratégias de reprodução20.

Dentro dessa perspectiva, portanto, a “unidade de trabalho” relativa ao

campesinato não seria composta pelas exigências diretas do processo de produção, mas,

segundo Garcia Jr. e Heredia, “a priori ao nível do parentesco” (Garcia Jr. & Heredia,

1971, p.10). De acordo com os dados colhidos por estes autores, a economia camponesa

se definiria por dois momentos, distintos mas complementares: o da reprodução física e

social de seus membros (“unidade de consumo”), e de reprodução econômica (“unidade

de produção”). A esses momentos se sobrepunham diversos relações de oposições e

complementariedades como a casa (lugar do consumo e do trabalho feminino) e do

roçado (lugar da produção e do trabalho masculino) e entre este e o roçadinho (pedaço

de terra cedido pelo pai a membros da família para a plantação e consumo individual, a

que serve também como meio de socialização dos filhos de técnicas e comportamentos

adequados ao trabalho agrícola). Tudo isso se desenvolvia sob a estrita vigilância do

pai, cuja divisão de tarefas reforçava a solidariedade familial e o caráter coletivo do

trabalho. Explicavam os autores que “a autoridade do pai dentro da família se manifesta

na sua autoridade quanto ao roçado, opondo-a à autoridade restrita da mãe aos da casa e

do terreiro. Manifesta-se também na oposição ‘roçado familiar’-‘roçado individual’,

onde contrapõe-se aos filhos, e sua área de autoridade limita-se” (Ibidem, p. 18).

Seria esta constatação, baseada em dados empíricos, de que as relações de

parentesco e consanguinidade teriam maior relevância explicativa da economia

20 A oposição de Chayanov à coletivização das terras pela política de Stalin advinha justamente do fato de que a disposição de maiores extensões de terras aos camponeses não alteraria a produtividade da agricultura, haja vista que, segundo o cálculo camponês baseado no equilíbrio acima referido entre a quantidade de trabalho e o nível de consumo, a partir de determinado nível de produção não haverá a necessidade de trabalho extra. O que propunha Chayanov era a “cooperação vertical”, estabelecido de acordo com o cultivo de diferentes extensões de terras ou formas de produzir (pequenas propriedades, cooperativas, multicooperativas), de maneira que ao camponês ainda coubesse definir suas estratégias, integrados com outras famílias, na competição do mercado.

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camponesa do que as relações baseadas no estrito cálculo econômico capitalista, que

permitiria avançar uma abordagem condizente com as especificidades da vida

camponesa, recorrendo aos instrumentais antropológicos. Permitiria, além disso, uma

visada crítica que despertaria o interesse e forçaria o diálogo com outras perspectivas,

notadamente a econômica, fato de que se serviram o grupo de antropólogos para

legitimar a proposta que seria apresentada pelo Projeto Emprego às instituições

financiadoras.

Retomando a discussão entre a abordagem antropológica e a perspectiva

economicista no seio do Grupo de Pesquisas da FINEP, Leite Lopes ressaltava que o

entendimento do que seja “emprego” e, consequentemente, “subemprego” e

“desemprego” entre os grupos camponeses não deveria passar pelos parâmetros

definidos pela economia clássica, centrada no funcionamento do sistema capitalista.

Fazendo referência a Chayanov, Leite Lopes observava que a economia camponesa não

seria regida precipuamente pela busca de lucro, mas pelo equilíbrio entre a satisfação da

demanda familiar (subsistência) e o grau de intensidade do trabalho imposto aos

membros da família. Assim, nas palavras do autor,

ao contrário da economia capitalista, onde a taxa de lucro implica que a superpopulação relativa à atividade econômica desta economia assuma a forma de desemprego, a economia camponesa permite que a sua superpopulação específica continue trabalhando, embora com uma intensificação maior do trabalho familiar e com uma compressão do nível de subsistência (Ibidem, p. 146).

Essa situação peculiar aos grupos camponeses poderia causar confusão às

análises a eles dedicadas. O que por vezes se assemelharia a “desemprego” ou

“subemprego” na verdade se localizaria, segundo Leite Lopes, em um momento

específico do ciclo demográfico de reprodução da família camponesa: a migração, por

exemplo, aparecia como uma das estratégias a que a família camponesa poderia recorrer

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em momentos de desequilíbrio – crescimento demográfico da família com escassez de

terra - para que um ou mais de seus membros auxiliasse no orçamento. No entanto,

ainda de acordo com o autor, a participação na força de trabalho familiar, através da

terra, permanecia o referencial do migrante, e não a atividade assalariada a que

sazonalmente buscava como complementação da renda. Esta última, ao contrário,

constituir-se-ia o referencial com que operavam os economistas, preocupados que

estavam com a proletarização da mão de obra, índice da modernização dos fatores

produtivos.

Para Leite Lopes, as taxas de migração deveriam ser analisadas com cuidado,

porque elas não necessariamente indicavam a absorção definitiva da mão de obra no

mercado urbano, mas, muitas vezes, uma situação temporária, agenciada pela família

camponesa. O pesquisador afirmava, portanto, que negligenciar “o ponto de vista da

economia camponesa” seria descartar o fato de que ela “não ‘libera’ definitivamente

essa parcela móvel de sua força de trabalho que migra justamente para contribuir à

subsistência de sua família enquanto família camponesa” (Ibidem, p. 147). Por

conseguinte, seria preciso distinguir migração e liberação da mão de obra como

fenômenos distintos embora correntemente correlatos, já que haveria migração sem

liberação da mão de obra, como no caso de camponeses que buscam trabalho nas

plantations, e liberação da mão de obra sem migração, a exemplo do que ocorria no

Nordeste, onde o enfraquecimento das plantations criava um campesinato “marginal” a

ela – a exemplo de trabalhadores indenizados com terra e os foreiros. Como veremos,

este será um dos pontos de introdução do Projeto Emprego e que servirá de base de

interlocução com as agências financiadoras.

Outro trabalho importante de José Sérgio Leite Lopes no Grupo de Pesquisas da

FINEP fora o artigo "Sobre o Debate da Distribuição de Renda: Leitura Crítica de um

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Artigo de Fishlow”, de 1973, sendo republicado posteriormente no livro Controvérsia

sobre Distribuição de Renda e Desenvolvimento, em 1975, que reunira artigos de

importantes economistas da época, como José Serra, Pedro Malan e Maria da Conceição

Tavares. O estudo, com proposta semelhante ao anterior, revisava criticamente o

trabalho do economista americano Albert Fishlow intitulado “Brazilian Size of

distribution of Income” (1972), buscando compreender o lugar dos estudos estatísticos

no debate sobre distribuição de renda no “campo intelectual” brasileiro, bem como a

reavaliação das categorias analíticas que subjaziam a essas medições. Leite Lopes

destacava o fato de que sem as devidas qualificações conceituais tanto o lado

situacionista quanto o lado oposicionista do debate recaiam em erros e “como a

estatística não revela outras relações senão as que são procuradas a priori pelo

pesquisador, é necessário discutir-se a própria validade explicativa dessas relações e dos

‘modelos’ que o pesquisador tem que lançar mão em sua análise causal” (Ibidem, p.

293). O artigo propunha, portanto, elucidar o esquema teórico que informava as

mensurações estatísticas, já que nas palavras de Leite Lopes “os dados estatísticos não

podem ser tomados pela realidade” e muito menos serem concebidos como a única

forma de estudo empírico (Ibidem, p. 293).

Seria justamente esse “fetichismo da estatística” que se encontraria no artigo de

Fishlow, o qual ajustava os dados da amostra do censo de 1960 na tentativa de

compreender a maior concentração de renda no intervalo de 10 anos até o censo de

1970. Assim, Fishlow procedia uma série de imputações incorporando formas de renda

não-monetária e rendas de trabalhadores familiares considerados economicamente

ativos, ambos não contabilizados pelo censo de 1970. No entanto, ao proceder dessa

forma Fishlow diferenciaria, segundo Leite Lopes, “força de trabalho” de “população

economicamente ativa”, que nada mais significaria que a ‘distinção entre a utilização da

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força de trabalho no quadro da produção familiar e a utilização da força de trabalho no

contexto de sua venda no mercado de trabalho” (Ibidem, p. 296). No entanto, cada uma

dessas utilizações da força de trabalho, sempre segundo Leite Lopes, pertencem, “a

dois tipos de ‘sistemas econômicos’ distintos” (Ibidem, p. 296). Seria equivocado,

portanto, a mensuração estatística desses dois fenômenos juntos, fazendo com que se

agregasse uma renda não-monetária à renda monetária, e, sobretudo, tomando a

heterogeneidade da primeira a partir da homogeneidade da segunda (Ibidem, p. 296).

A renda monetária implicava, para Leite Lopes, a formação de um mercado de

trabalho em seu sentido clássico, em que o salário e venda da força de trabalho

constituíam o núcleo dinâmico. O contrário se daria com a renda não-monetária que

abarcaria distintas formas de emprego que não se limitariam à venda da força de

trabalho em troca de salário. Seria esse o caso, por exemplo, das empregadas domésticas

e dos trabalhadores familiares não-remunerados. A agregação dos dados desses dois

tipos de renda, ainda de acordo com Leite Lopes, “não quer dizer que esses elementos

constitutivos das condições de trabalho desses trabalhadores sejam uma vantagem para

eles como quer fazer crer a parte situacionista do debate já mencionado” (Ibidem, p.

297). Não haveria, segundo o antropólogo, em diversas circunstâncias, nada de

“vantajoso” nessa agregação para o trabalhador, isso porque na renda não-monetária

estaria, na maioria das vezes, implicada uma dependência econômica e extraeconômica

com o empregador, indicando uma “rigidez” do mercado de trabalho, e não uma suposta

flexibilidade (Ibidem, p. 297). Além disso, nos casos de renda não-monetária, como

aquelas em que os rendimentos do trabalho seriam redistribuídos pelo chefe da família

aos membros não-pagos (crianças, mulheres), não seria possível qualquer mensuração

exata da parcela de produtividade de cada um. Diante dessas imputações estatísticas,

observava Leite Lopes, seria preciso repensar as próprias categorias econômicas

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trabalhadas e sua adequação à realidade, de forma que o tema da redistribuição de renda

pudesse ser discutido através da abordagem antropológica, o que permitiria que as

representações dos próprios agentes econômicos do grupo social tivessem validade

analítica para a compreensão de sua prática econômica.

Os trabalhos desenvolvidos no interior do Grupo de Pesquisas da FINEP seriam

fundamentais para a interlocução com os representantes das instituições que

financiariam ou apoiariam o Projeto Emprego, em particular na legitimação da interface

economia e antropologia. A busca de alternativas metodológicas e de novos aportes

teóricos para um debate tão marcado pelas estatísticas e pelas análises econômicas, seria

estratégia fundamental do grupo de pesquisadores na consecução do Projeto e no

prosseguimento de grande parte das atividades de pesquisa e ensino do PPGAS/MN. A

seguir, veremos como os interesses entre as agências financiadoras e os do grupo de

antropólogos, mantidas as diferenças, se entrelaçaram.

1.3 A formulação de um projeto coletivo de pesquisa

Inicialmente, o Projeto “Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste”

(1975-1977) foi elaborado entre setembro de 1972 e janeiro de 1973 para concorrer a

um edital da Social Science Research Council (SSRC), organização não governamental

norte-americana, criada em 1923 para estimular pesquisas em ciências sociais. O

Projeto fora elogiado pela organização, mas não aceito por considerarem que Moacir

Palmeira não tinha currículo apropriado para assumir a coordenação e sugerido que um

pesquisador norte-americano assumisse a coordenação, o que foi negado pelo grupo (cf.

Lopes, 2013, p. 447). No mesmo período, o texto do projeto sofreria modificações para

atender a solicitação do Centro Nacional de Recursos Humanos (CNRH) do Instituto de

Planejamento Econômico e Social (IPEA), então sob a coordenação de Edson Machado,

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para um convênio a ser firmado entre a UFRJ e o Banco Mundial (BIRD)21. O

financiamento do Projeto adviria principalmente do BIRD, interessado em formular

políticas públicas destinadas ao combate à pobreza e desigualdade, sobretudo na região

Nordeste. O BIRD contava com o IPEA para a avaliação das propostas do Projeto e para

acompanhar sua formulação, o que foi feito através de reuniões periódicas que

envolveram a equipe do CNRH - entre eles, Claudio Salm, Luiz Carlos Silva, Francisco

Sá -, e um grupo formado por Moacir Palmeira, Lygia Sigaud, Otávio Velho, José

Sérgio Leite Lopes e Afrânio Garcia Jr. As discussões levariam a temas de interesse

comum do CNRH-IPEA e dos pesquisadores, a saber emprego e migração. Para ser

efetivado, o Projeto precisaria ser aprovado pelo Ministério do Planejamento, o que não

aconteceu por uma negativa de um funcionário (cf. Lopes, 2013, p. 447).

Malogrado novamente o acordo que daria vigência ao Projeto, dessa vez com o

Banco Mundial, os pesquisadores levaram o Projeto para o conhecimento de José

Pelúcio Ferreira, que, entusiasmado, levou as discussões já existentes com o IPEA, até a

FINEP e o IBGE, possibilitando, enfim, a assinatura do convênio que deu origem ao

21 O interesse por uma abordagem antropológica do problema sobre o “emprego” surgiu com a proposta de pesquisa ao IPEA de uma organização não governamental de apoio ao desenvolvimento de comunidades chamada “Accion International” (AITEC), no primeiro semestre de 1972. Esse projeto não vingaria porque, conforme Claudio Salm e Luiz Carlos Silva, “entre as razões destacavam-se a falta de uma estrutura teórica que orientasse a formulação de hipóteses, a fragilidade metodológica do projeto e dúvidas quanto à capacidade de coordenação da AITEC” (carta de Luiz Carlos Silva e Claudio Salm a Edson Machado da Silva, secretário executivo do CNRH, 30 de janeiro de 1973, p. 2). Em 26 de setembro de 1972, o CNRH promoveu em Brasília um seminário cujo objetivo era fornecer parâmetros para estudos sobre mão de obra e emprego, e lá estavam Afrânio Garcia Jr. e José Sergio Leite Lopes. Segundo Salm e Silva, neste mesmo seminário tiveram a oportunidade de conhecer “uma equipe ligada ao Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, composta de economistas com pós-graduação em antropologia, sociólogos e antropólogos, que já possuíam uma experiência razoável de atividades sobre mão de obra em vários setores da economia nordestina, além de um conhecimento aprofundado em trabalho de campo” (Ibidem, p 2-3). A partir desse encontro se estabeleceu o contato periódico dos economistas do IPEA com o grupo de pesquisadores do Museu Nacional. Entre 11 e 13 de setembro de 1974, realizou-se outro seminário intitulado “Sistema de Informação para Políticas de Emprego”, em Brasília, promovido pelo IPLAN (Instituto de Planejamento) do IPEA com apoio do Programa de Emprego para a América Latina e Central (PREALC) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde, segundo consta nos Relatórios de Atividades da FINEP, “os pesquisadores do Projeto se fizeram presentes através de uma comunicação que sumariava os termos de referência do Projeto, tendo essa comunicação figurado como um dos documentos da delegação brasileira” (Primeiro Relatório de Atividades/FINEP, IF/206, maio de 1976, p. 1049).

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Projeto Emprego em 20 de agosto de 1975. A supervisão técnica e o controle da

aplicação de recursos coube a José Sergio Leite Lopes e Afrânio Garcia (FINEP) e

Claudio Leopoldo Salm (IPEA)22. No Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), o canal de comunicação foi Isaac Kerstenetzky - antigo professor de Afrânio

Garcia e José Sergio Leite Lopes na Faculdade de Economia da PUC-Rio - e a

supervisora e estatística Olga Lopes da Cruz. O apoio de Kerstenetzky ao Projeto

Emprego não se limitou às redes de proximidade com seus alunos, haja vista a

importância dele para a renovação das pesquisas estatísticas no Brasil e o papel

fundamental que o IBGE viria a adquirir durante sua presidência entre 1970 e 1979.

Kerstenetzky inovou, sobretudo, ao adotar indicadores variáveis de pobreza o que

incomodara representantes do governo militar. No plano dos estudos estatísticos,

deslocou-os de uma formatação “técnico-administrativa”, baseada nos registros

administrativos, para uma formatação técnico-científica, ou seja, privilegiando práticas

amostrais, a exemplo das pesquisas por domicílio (cf. Senra, 2008, p. 49). Isso

significou que as estatísticas tornavam-se menos marcadas pelos censos, com pretensões

de abarcar a integridade de uma determinada população, para amostras mais restritas de

grupos, para as quais a antropologia poderia fornecer aporte metodológico importante23.

22 Claudio Leopoldo Salm é formado em economia pela UFRJ, com mestrado no Programa de estudos econômicos latino-americanos para graduados (escolatina) pela Universidade do Chile, (1967); e doutorado em economia, pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (1980). 23 Kerstenetzky operou uma modificação significativa nas práticas estatísticas do IBGE também como incentivador de pesquisas qualitativas. É o que demonstra seu apoio ao “Estudo Nacional de Despesa Familiar” (ENDEF), coordenado pelo sociólogo Luiz Affonso Parga Nina entre 1974 e 1975, que tinha como objetivo agrupar dados sobre consumo alimentar, renda e estado nutricional das famílias brasileiras. Caracterizado como uma “aventura antropológica” (cf. Camargo, 2009, p. 183), o estudo lançou mão de questionários “abertos”, com registro de observações de pesquisadores, espécie de trabalho de campo, ao contrário do que ocorria com os tradicionais questionários do IBGE, de perfil mais “fechado”. Aliando pesquisa qualitativa e quantitativa, a fim de subsidiar formulações de política públicas para a pobreza (inclusive ajudando a melhor delimitá-la), o IBGE, através do ENDEF, escorou-se, conforme Camargo (Idem, p. 183), “na moderna metodologia científica da sociologia e antropologia”, tornando-se “o primeiro grande estudo sistemático sobre nutrição no Brasil, pela sua dimensão verdadeiramente nacional e pela riqueza do método amostral, ainda recente entre nós”.

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È possível perceber, dessa forma, como o convênio que viabilizou o Projeto

situava-se em uma conjuntura específica, institucional e intelectual. Instituições como o

IBGE e FINEP passavam por reformulações que possibilitavam o diálogo com

perspectivas que não somente baseadas na metodologia dos estudos econômicos.

Contribuiu para a aglutinação dos interesses dos pesquisadores e das agências

financiadoras, o questionamento do modelo econômico da ditadura, cujas altas taxas de

desigualdade – sobretudo no Nordeste - exigiam análises que explicassem os fatores

sociais e políticos envolvidos, o que tornou plausível o recurso a explicações e

abordagens alternativas24. Abria-se, portanto, uma brecha para que recursos destinados

até então prioritariamente para áreas tecnológicas fossem concedidos a projetos

alternativos aos que comumente tramitavam por aquelas agências. Esse contexto

explicava o conteúdo da carta de Afrânio Garcia e Leite Lopes ao presidente da FINEP,

José Pelúcio, datada em 17 de maio de 1973, durante as primeiras tratativas de

formalização do acordo. Nela os autores apresentavam, em texto anexo, o Projeto

Emprego, solicitando o apoio institucional da FINEP ao desenvolvimento das pesquisas

previstas. Para tanto, Garcia Jr. e Leite Lopes se valiam dos pareceres e opiniões

favoráveis à execução do Projeto, tal como declaradas pelo IPEA, BIRD e IBGE, para

obter o mesmo em relação a Pelúcio e à Finep. No caso do IBGE, os pesquisadores

indicavam que “soubemos, outrossim, que o Prof. Isaac [Kerstenetsky] declarou em

reunião formal ao Dr. Edson Hollanda considerar o projeto como complementar aos

esforços da PNAD” (Carta de Afrânio Garcia e José S. Leite Lopes para José Pelúcio

Ferreira/Arquivo FINEP, 17 de maio de 1973, p. 746). Estava em jogo a busca por

24 Isso é atestado em carta de 26 de novembro de 1974 enviada por Paulo Dante Coelho, superintendente do Instituto de Planejamento (IPLAN), ligado ao Ministério do Planejamento, a José Pelúcio Ferreira, solicitando apoio ao “Projeto Emprego” cujas questões abordadas seriam complementares “a outros trabalhos realizados pelo Governo principalmente no campo das migrações internas e o rigor metodológico com que foi elaborado” (carta de Paulo Dante Coelho a José Pelúcio Ferreira/Arquivo IPEA, 26/11/1974).

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legitimação de uma perspectiva de análise distinta da econômica, algo que poderia ser

visto na solução do Projeto em integrar temáticas como a de “emprego” e “migração” –

caras à economia - e a investigação antropológica. Desse modo, justificavam os autores

na carta que a antropologia social teria uma “contribuição específica (...) a dar ao

desenvolvimento teórico das pesquisas sociais e econômicas no Brasil”, além de ser

uma tentativa de “dar um melhor conhecimento da realidade econômica e social, para

que as políticas econômicas que objetivam melhorar a situação de segmentos

‘desfavorecidos’ da população produtiva, não venham ao contrário agravar a situação de

‘desemprego’ e ‘pobreza’” (Ibidem, p. 746).

O “conhecimento” a ser fornecido passava justamente pelo trabalho de campo

intensivo, núcleo identitário da antropologia. Na carta, esse era um dos trunfos dos

pesquisadores em crítica ao distanciamento, presente em diversas pesquisas, entre a

análise da sociedade brasileira e a complexidade da realidade empírica. Tal deficiência

ocorreria, segundo os pesquisadores, “porque os diagnósticos das situações são feitos

em parte através de dados estatísticos secundários e muito através da imaginação do

técnico ou cientista social em seu gabinete urbano” (Ibidem, p. 746). E por fim, os

pesquisadores e funcionários da instituição assinalavam mais uma vez o papel que a

antropologia e o método etnográfico teriam numa interpretação mais ampla da

sociedade brasileira e de seus principais dilemas:

Esse projeto, portanto, representa uma materialização de campo de pesquisa que nós nos definimos, e do tipo de contribuição que podemos dar à teoria e política do desenvolvimento econômico do Brasil. Assim como procuramos demonstrar em nossos relatórios internos da FINEP, achamos estratégicos no atual estágio da pesquisa econômica e social no Brasil tanto uma delimitação rigorosa de conceitos, quanto a interlocução resultante da simultaneidade de pesquisas etnográficas com pesquisas e análises do desenvolvimento econômico ao nível global (Ibidem, p. 747).

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Os pesquisadores teriam que esperar mais dois anos após essa carta para que o

os trâmites burocráticos de fato viabilizassem o Projeto. E uma vez firmado o convênio,

o grupo se voltou para a discussão interna, em reuniões cujas transcrições é possível

observar a explicitação das estratégias na elaboração da proposta de pesquisa e nos

ajustes inevitáveis aos interesses das agências no que tangia aos temas e à metodologia a

ser empregada. Para tanto, ficou estabelecido que Moacir Palmeira e Afrânio Garcia

coordenariam as pesquisadas dedicadas às áreas “rurais” e Luiz Antonio Machado da

Silva e José Sérgio Leite Lopes aquelas dedicadas às áreas “urbanas”. Paralelamente,

Alfredo Wagner Berno de Almeida, então orientando de mestrado de Moacir Palmeira

no PPGAS em pesquisa sobre a obra de Jorge Amado, coordenaria o levantamento

bibliográfico sobre o tema “migração”, enquanto Leite Lopes ficaria à frente da

sistematização da bibliografia referente ao tema “emprego”. Ao grupo que concebera

inicialmente o Projeto e participara de pesquisas no Nordeste, juntar-se-iam outros

pesquisadores todos eles, até aquele momento, com dissertações de mestrado em

desenvolvimento ou defendidas no PPGAS: Luiz Antonio Machado defendera sua

dissertação de mestrado em 1971, sob a orientação de Roger Walker, sobre mercados

informais; Neide Esterci defendera sua dissertação de mestrado em 1972, sob a

orientação de Francisca Vieira Keller, sobre as representações da colonização e

migração durante o Estado Novo; Maria Rosilene Barbosa Alvim defendera sua

dissertação sobre a produção artesanal no Cariri (CE) em 1972, sob a orientação de

Neuma Aguiar; Regina Novaes desenvolvia naquele momento sua dissertação de

mestrado, orientada por Lygia Sigaud, sobre a relação entre política e trabalhadores

pentecostais (defendida em 1979); e, por fim, Maria Cristina Melo Marin que, sob o

orientação de Otavio Velho, desenvolvia em sua pesquisa de mestrado a relação entre

emprego e trabalho autônomo entre trabalhadores urbanos (defendida em 1976).

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A seguir, reconstituiremos as propostas do Projeto Emprego ressaltando como

algumas delas foram justificadas ou sofreram modificações conforme o avanço das

negociações com as agências. Para ressaltar essa dimensão processual da feitura do

Projeto, cotejaremos comentários dos próprios pesquisadores acerca de alguns dos

pontos da versão definitiva do texto, evidenciando, além disso, a construção coletiva de

problemas e hipóteses que norteariam as pesquisas25.

Tendo em vista o contexto institucional e político a que já fizemos referência, a

Introdução do texto do Projeto “Emprego” iniciava com as discussões sobre

desenvolvimento econômico e desigualdade de renda encetadas pelo censo de 1970,

afirmando a necessidade de ir além dos indicadores econômicos para “identificar as

razões e a lógica que presidem a recriação destes ‘problemas’” (Palmeira et alii, 1976,

p. 202). Como vimos anteriormente, uma das constatações mais recorrentes do debate

era de que o desenvolvimento da agricultura brasileira estava liberando contingentes de

mão de obra e, por conseguinte, aumentando o fluxo migratório, sem que o mercado de

trabalho urbano tivesse capacidade de absorver essa força de trabalho. Em consonância

com as observações de Leite Lopes no Grupo de Pesquisas da FINEP, o Projeto

assinalava que, ao focalizar nas migrações rurais-urbanas, as análises correntes

identificavam dois fenômenos que poderiam ser distintos: a migração e a liberação de

mão de obra. Dessa forma, o Projeto postulava que poderia haver “migração sem

liberação da mão de obra”, como acontecia geralmente com o deslocamento de

25 A dimensão coletiva do Projeto fora apontado como uma de suas principais qualidades pelo grupo de pesquisadores e valorizado pelas agências financiadoras. No primeiro Relatório de Atividades do Projeto Emprego, maio de 1976, os pesquisadores ressaltavam que a equipe “não era homogênea nem quanto à formação acadêmica, nem quanto à familiaridade com os problemas que esta pesquisa trata. Optamos por realizar as atividades de maneira coletiva, de modo a familiarizar todos, na prática, com os assuntos tratados e com as formas de fazê-lo e prever atividades que cobrissem lacunas de formação ou de conhecimento” (Primeiro Relatório de Atividades/FINEP, IF/206, maio de 1976, p. 1051). Em parecer ao mesmo relatório de 28 de julho de 1976, Maria Brígida Moreira de Andrade afirmava que “o projeto ‘Emprego e Mudança socioeconômica no Nordeste’ é de grande importância para o país pois além de desenvolver os conhecimentos sobre os assuntos constantes do termo de referência, tem também a finalidade de formar e treinar alunos em pesquisas” (Arquivo FINEP, IF/206, p. 888).

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trabalhadores entre as plantations, ou no trabalho temporário na cidade com o objetivo

de aumentar a renda familiar. Haveria ainda a possibilidade de “liberação de mão de

obra sem migração”, a exemplo da modernização da plantation, fazendo com que

surgisse um campesinato em seu entorno ou se constituíssem pequenas cidades.

Ao desconsiderarem as possibilidades acima referidas, os analistas do

desenvolvimento utilizavam o que o Projeto caracterizou como uma “abordagem formal

demográfica”, ou seja, a “contabilização de fluxos populacionais vistos como

indiferenciados socialmente”, e, com isso, “todos os deslocamentos são vistos como

fenômenos da mesma natureza e de significados e consequências universais. O

problema então aparece como sendo apenas uma ‘mudança de escala’, mas não como

uma mudança de sistema de relações sociais” (Ibidem, p. 203). Subjacente a essas

análises, segundo a avaliação do Projeto, residia um ponto comum contido na ideia de

que o setor moderno, urbano e capitalista, absorveria a mão de obra liberada do setor

tradicional, rural, sendo a migração o principal índice de um processo de transformações

da força produtiva na agricultura e de expropriação dos trabalhadores rurais.

Em reunião do grupo de pesquisadores, realizada em 1975, Moacir Palmeira

reforçava que a “Introdução” do Projeto é a ponte, o elemento assim do diálogo na

época com as instituições que estavam se propondo a dar suporte à pesquisa” (Palmeira

et alii, 1975, p. 2). Em contraposição às teses economicistas sobre o rural, o Projeto

Emprego, como exposto em seu título, tinha como objetivo discutir as situações de

emprego que se originavam das mudanças sociais e econômicas na plantation

nordestina e investigar as diferentes racionalidades dos agentes envolvidos nesse

processo. Com isso, foram selecionadas, na versão de 1973, diversas frentes de estudos

que os pesquisadores designaram como “situações-tipo”, entre as quais, a “Plantation”,

as “Cidades da Zona da Mata: os trabalhadores da Rua”; “Camponeses Marginais à

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Plantation”; “Redes de Comercialização – Barracões e Feiras”; “Parte Industrial da

Plantation”; “Camponeses do Agreste e do Sertão”; “Cidades do Agreste e do Sertão”;

“Indústria Rural”; “Grande Cidade regional e Extra-Regional”. Na versão definitiva do

texto do Projeto, aprovada em 1975, foram incluídas as situações “Frentes de

Expansão” e “Cidades da Frente de Expansão”. A opção por selecionarem “situações

tipo”, segundo os pesquisadores, permitiria “identificar as unidades sociologicamente

relevantes”, e “descobrir padrões estruturais de comportamento e distinguir, a partir daí,

grupos sociais mais ou menos homogêneos” (Ibidem, p. 234).

Deter-nos-emos na metodologia apresentada pelo Projeto, começando pelo

critério que presidiu à seleção de “situações-tipo”: marcadas por uma espécie de “meio-

termo” entre os interesses do grupo de pesquisadores e das agências financiadoras,

preocupadas sobremaneira com uma interpretação mais global da realidade nordestina, a

definição dessas “situações-tipo” era um recurso metodológico que, segundo os

pesquisadores, permitira dar conta da diversidade das formas de “emprego” entre

camadas de baixa renda. Algumas delas já haviam sido estudadas pelos próprios

pesquisadores no âmbito do Projeto “Estudo Comparativo do Desenvolvimento

Regional” ou em pesquisas individuais, mas todas, de certa forma, ganhavam

inteligibilidade a partir das mudanças do funcionamento da plantation tradicional,

analisada por Moacir Palmeira em sua tese de doutoramento – a qual voltaremos com

mais vagar no próximo capítulo. A tese de Palmeira e as pesquisas de campo apontavam

como o “isolamento” a que estavam relegados os trabalhadores rurais no interior do

“sistema de plantation”, através de uma complexa relação de dominação contida na

morada – que de forma geral poderíamos definir como cessão de terras e outros

benefícios pelo grande proprietário aos trabalhadores em troca de trabalho gratuito -

sofrera modificações importantes, o que teve implicações diretas nas relações

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estabelecidas entre os diferentes grupos. Apesar da dominação envolvida no “sistema da

plantation” continuar a existir, seria outra a configuração das relações sociais assim

como as experiências vividas pelos grupos de trabalhadores, algo que as “situações-

tipo” tentavam identificar e delimitar, como se pode entrever nas frentes de pesquisa em

cidades, na parte industrial da plantation e até mesmo em frentes de expansão, áreas que

extrapolariam a delimitação geográfica estrita do Nordeste, abarcando a região

amazônica. Isso porque as modificações desse sistema acarretariam não só o surgimento

de novos grupos, como um “neocampesianto”, impulsionando novos tipos de relações

sociais, como as “feiras”, que escapavam dos limites impostos pelos barracões

existentes no interior da plantation, mas também encetariam movimentos de populações

que, com o enfraquecimento da morada, encontrariam na migração para as cidades

regionais e do centro-sul, ou ainda para a “fronteira”, possibilidades de trabalho e de

reprodução familiar.

Com as “situações-tipo”, portanto, os pesquisadores buscavam, conforme o texto

do Projeto, “estabelecer distinções conceituais pertinentes entre os diferentes processos

sociais subjacentes aos movimentos de população e às condições de vida dos ‘grupos de

baixa renda’” (Ibidem, p. 204). Salientavam, entretanto, que não se trataria de

“situações médias”, mas de investigar as especificidades das relações sociais envolvidas

e como elas se articulavam formando um “sistema”. Em suas palavras,

tentar identificar o sistema de posições sociais dentro das populações trabalhadoras nordestinas, desvendar a sua lógica, seu movimento e, sobretudo, poder distinguir quais as unidades sociais reais (e seu modus operandi) do processo de desenvolvimento, e quais as repercussões deste para cada um dos tipos daquelas (Ibidem, p. 204, grifos no original)26.

26 Em interpretação recente, Afrânio Garcia Jr. aponta como as “situações-tipo”, definida pelo autor como “feixes de relações sociais recorrentes que eram nomeados de maneira constante nas falas quotidianas, a desenhar algo como uma cartografia social”, era uma forma de conectar os estudos detidos de diversos grupos sociais pelos antropólogos com uma visão mais geral da mudança social na plantation (Garcia Jr.,

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O Projeto não apresentava qualquer plano de análise dessas “situações-tipo”,

uma vez que, alegavam os pesquisadores, qualquer tentativa desse gênero poderia ser

uma imputação do próprio pesquisador ao objeto. De acordo com o texto do Projeto, o

modo pelo qual se definiria as unidades sociologicamente relevantes variaria de caso

para caso, estipulado por cada pesquisador no trabalho de “observação direta”, cujo

“acompanhamento mais prolongado e detido das situações que se deseja estudar (...)

revela o significado daquelas situações para os indivíduos, que sempre é mais amplo do

que aquilo que aparece numa situação formal de entrevista” (Palmeira, et alii, 1976, p.

233).

As “situações-tipo” cumpririam, enfim, o papel de delimitar analiticamente o

alcance e a validade da utilização de termos tão genéricos como “emprego” e

“migração”, referindo-os a situações concretas e a significados fornecidos pelos agentes

em suas práticas cotidianas. Em reunião com o grupo de pesquisadores, Moacir

Palmeira chamava a atenção para este fato: se o grupo tomasse “emprego” e “migração”

como conceitos a priori “não teria sentido o próprio projeto”, e, por conseguinte,

alertava que “não falamos mais em migração em geral, de emprego em geral, como no

início do trabalho, mas vamos estar sempre referidos a determinadas situações-tipo, a

determinadas configurações de posição e oposições sociais” (Palmeira et alii, 1975, p.

3-4). A preocupação teórica do grupo seria “o conhecimento das leis de população

correspondentes a cada uma daquelas formas econômicas” ao mesmo tempo que

especificaria “que aquilo que é chamado de emprego, subemprego, desemprego,

2013, p. 8). Além disso, reforça que “esta noção chave utilizada no texto do projeto pode ser aproximada do conceito de ‘configuração social’ proposto por Norbert Elias, ao designar redes de indivíduos conectados por vínculos de interdependência, onde o comportamento de uns só ganha sentido pelo comportamento dos outros, onde nenhuma atitude deixa de produzir efeitos sobre a atitude dos demais” (Ibidem, p. 8).

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mercado de trabalho, cada uma dessas coisas elas significam coisas diferentes, em cada

uma dessas situações-tipo” (Ibidem, p. 3-4)

Não se trataria de simples substituições de conceitos, mas, segundo Palmeira na

mesma reunião, “uma tentativa de ao substituir determinados conceitos, se dar conta

melhor de certos fenômenos que os conceitos anteriores davam de modo precário”

(Ibidem, p. 4). Ainda de acordo com o coordenador do Projeto, embora não tivesse

como deixar de utilizar conceitos comumente usados, como “mão de obra”, “mercado

de trabalho”, “migração”, “emprego”, “modernização”, cada pesquisador, ao utilizar

esses mesmos conceitos, deveria “estabelecer essas pontes” (Ibidem, p. 4).

Outro problema que se impunha, principalmente no que se referia aos interesses

das agências financiadoras, era como de fato determinar aquelas unidades

sociologicamente relevantes sem recorrer necessariamente a categorias estatísticas de

mensuração, mas à observação direta. No texto do Projeto, o encaminhamento

metodológico preconizado era tomar como “ponto de partida as categorias e elaborações

dos agentes sociais a respeito das situações nas quais estão inseridos” (Palmeira et alii,

1976, p. 231). Alertavam os pesquisadores que essa escolha permitiria escapar à falácia

objetivista de adoção de um “padrão de linguagem socialmente neutro”, porque

científica, que, no entanto, obscureceria a imputação aos fatos de percepções sociais que

na verdade seriam a do pesquisador. Desse modo, conforme apontava o texto do

Projeto, “a redução da linguagem dos informantes à linguagem do pesquisador implica,

muitas vezes, a imposição de um modelo de relações que os informantes não

estabeleceriam, não por ignorância mas porque seu modelo é outro”, algo muito

recorrente entre os estudos estatísticos (Ibidem, p. 232).

Era este o tom da crítica contido no Projeto aos questionários adotados pela

PNAD-1972, que pressupunham modelos pré-definidos de classificação, trabalhando

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com padrões de consumo da classe média urbana ou com um modelo de família

elementar nem sempre compatíveis com as populações a quem os questionários eram

aplicados. A esse respeito, Lygia Sigaud expunha, em reunião do grupo, “justamente o

que está por trás disso, a pressuposição de que tudo é representado a partir de um

conjunto de perguntas feitas pelo analista e não pelo indivíduo a partir de sua própria

prática” (Palmeira et alii, 1975, p. 12). Os pesquisadores apontavam, no texto do

Projeto, que esse tipo de equívoco metodológico de análises estatísticas acarretava a

uniformização das técnicas de pesquisa aplicadas a distintos grupos sociais, supondo

“uma padronização de agentes sociais e de se iludir com a ideia de que questões

formalmente idênticas tenham o mesmo significado para sujeitos separados pela cultura

e situação de classe” (Palmeira et alii, 1976, p. 233). A percepção refletida de cada caso

empiricamente selecionado faria do uso da técnica de pesquisa uma questão de

adequação conforme cada caso particular. E, por isso, ressaltavam por fim os

pesquisadores, “se o sistema de referências dos trabalhadores é desconhecido não se

pode optar por uma ou outra unidade de coleta. Só a pesquisa poderia mostrar qual a

mais indicada” (Ibidem, p. 234).

Quando da publicação na Revista “Anuário Antropológico”, em 1977, do texto

do Projeto fora retirado trecho onde se explicitava alguns dos conceitos fundamentais

operados na definição daquelas “unidades sociais relevantes” (cf. Arquivo IPEA). Por

esta categoria, o grupo de antropólogos entendia o conjunto de “redes de relações

sociais”, possíveis de serem delimitadas pela referência mútua que seus agentes sociais

mantêm entre si, formando uma “fronteira entre esse conjunto de agentes e outro

conjunto de agentes” (Ibidem, p. 35). Assim, conforme exemplo utilizado no texto, em

algumas áreas camponesas no Brasil a “família elementar” e o “grupo de vizinhança”

seriam as unidades sociais relevantes para a compreensão daqueles grupos, enquanto na

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Kabília (Argélia) – região estudada por Pierre Bourdieu – seriam a “família extensa” e o

“grupo de parentesco patrilinear” os mais significativos. Mas, de acordo com os

pesquisadores, essas redes de relações sociais se constituiriam porque cada agente

social, entendido como “grupos ou indivíduos enquanto suportes de uma prática social”,

participaria de distintas atividades estabelecendo em cada uma delas relações sociais

específicas (Ibidem, p. 35). Dentro dessa ampla e complexa “rede de relações sociais”

formar-se-ia um “sistema de referência” que orientaria as condutas de cada agente

social. Com um tom um tanto didático para melhor definir a abordagem etnográfica

proposta às instituições, o grupo de antropólogos reforçava que não se trataria, portanto,

de definir as características psicológicas de um agente social estudado, mas o “papel ou

a constelação de papéis que lhe é atribuído por sua posição diferencial frente a outros

agentes sociais” (Ibidem, p. 35). Assim, por exemplo, o trabalhador rural seria definido

menos por sua, digamos, “resignação” (característica psicológica), mas pelo papel por

ele desempenhado em oposição a outros agentes, como os patrões, pequenos

proprietários, trabalhadores urbanos (Ibidem, p. 35).

Em coerência com a constante busca pela adequação entre os procedimentos de

coleta de dados e o objeto particular investigado, o Projeto não explicitava qualquer

quadro de hipóteses. O modo pelo qual se concluía o texto do Projeto apontava nesse

sentido, já que, nas palavras dos pesquisadores,

ao invés da ordem ritual – definição de objetivos, revisão bibliográfica, elaboração de hipóteses, escolha de amostra, elaboração de questionário, trabalho de campo, elaboração do plano de análise, tabulação mecânica, análise e relatório final -, preferimos indicar apenas uma ordem provável e aproximada das tarefas concretas da pesquisa o que garante uma maior flexibilidade (...), a partir do material colhido segundo procedimentos etnográficos (Palmeira et alii, 1976, p. 235).

Assim como a metodologia proposta, o texto do Projeto assumia um caráter

aberto, sem definições precisas quanto às técnicas e aportes de pesquisa, uma vez que

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seria o trabalho de campo e as análises das práticas discursivas dos agentes que

permitiriam definir o que seria essencial na delimitação empírica e estrutural das

“situações-tipo”. Etapa que necessariamente antecedia às definições, auxiliando no

refinamento das técnicas de investigação e dos instrumentais cognitivos que

possibilitariam recompor diferentes posições do sistema social.

Fora justamente o plano metodológico elaborado no Projeto o principal foco das

discussões preliminares junto ao Banco Mundial, apresentadas na carta de Ana Maria

Sant`Anna datada em 15/03/1975, funcionária da instituição e intermediadora no pedido

de financiamento. Segundo consta na carta, o Projeto fora bem aceito pelo Banco que

“considering the goal of labor absorption and income distribution in present Bank loan

policy, definitely we constitute an audience for this type of study”27 (Carta Ana Maria

Sant`Anna a Moacir Palmeira, 15/03/1973). As diversas situações empíricas destacadas

pelo projeto pareciam de grande relevância e interesse à instituição porque, conforme

argumentavam os avaliadores por intermédio de Sant`Anna, “making it meaningful to

use a regional analytical framework”28, mantendo, no entanto, certas dúvidas

particularmente quanto ao “research design and methodology”29 (Ibidem). As

observações foram separadas em cinco tópicos, todas elas tendo em comum a

preocupação com as possibilidades de generalização a partir das “situações-tipo”.

Embora reconhecessem “several advantages in a methodological approach that does not

pre-structure the learning situation of the researcher, we are also aware of certain build-

in constraints”30 (Ibidem). Esses constrangimentos, de acordo com os funcionários do

Banco Mundial, eram de ordem mais prática, como a do tempo para realização da

27 “considerando o objetivo da absorção de trabalho e da distribuição de renda na política de empréstimo do Banco, definitivamente nós formamos uma audiência para este tipo de estudo” (tradução nossa). 28 “tornando-se significativo a análise de um quadro analítico regional” (Tradução nossa). 29 “projeto de pesquisa e metodologia” (Tradução nossa). 30 “várias vantagens em uma abordagem metodológica que não pré-estruture a situação de aprendizagem do pesquisador, também estamos conscientes de certas restrições nela contidas” (Tradução nossa).

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pesquisa, e, principalmente, de ordem teórico-metodológica, como o uso de estatísticas

e do método comparativo – importante para o controle de generalizações. Notavam

também os avaliadores que existiam diferenças significativas entre as “situações-tipo”

selecionadas, seja por maior conhecimento de algumas delas em relação às demais, seja

ainda por estarem localizadas em espaços diversos, implicando em complexidades

distintas de relações sociais, como no campo e na cidade. Além disso, questionavam o

porquê da plantation receber maior atenção em relação a outras “situações-tipo”, e, em

suas palavras, “given the broad scope of the project, should all situations be studied

simultaneously or according to a phase programe?”31 (Ibidem). Por fim, solicitavam dos

pesquisadores explicação mais detalhada sobre qual seria a relevância “política” do

projeto, tendo em vista a possível utilização dos resultados das pesquisas “for testing

behavioral relationships to policies, such as the reaction of unemployed workers or rural

poor to government programs designed to alleviate their present circumstances”32

(Ibidem).

Em resposta, o grupo de antropólogos elaborou uma carta, datada em 29 de abril

de 1973, justificando que a formulação do Projeto não poderia ser somente um

“exercício formal”, sendo o objetivo “chegar a um corpo particular de hipóteses e não a

hipóteses esparsas” (Carta de Moacir Palmeira a Anna Maria Sant`Anna/Arquivo

FINEP, 29 de abril de 1973, p. 741). No que concerne, por exemplo, às questões

relativas à mobilidade da mão de obra, que envolvem as variadas formas de emprego,

elas não poderiam ser dadas a priori, porque o modelo com que trabalhavam

economistas e sociólogos estaria alicerçado numa noção de “mercado de trabalho”

31 “dado o amplo escopo do projeto, todas as situações devem ser estudadas simultaneamente ou de acordo com um cronograma?” (Tradução nossa). 32 “para testar comportamentos em relação a políticas, tais como a reação dos trabalhadores desempregados ou pobres rurais a programas governamentais destinados a aliviar as suas atuais circunstâncias” (tradução nossa).

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moderno. Assim, retomando algumas das formulações de trabalhos no Grupo de

Pesquisas da FINEP, o grupo afirmava que “economias como a camponesa ou como a

da plantation têm leis próprias de utilização da mão de obra que regulam os problemas

de emprego, desemprego e superpopulação de maneira diversa da empresa capitalista à

qual geralmente está referenciada de maneira implícita a categoria ‘emprego’” (Ibidem,

p. 741). O grupo seguia afirmando na carta que as “situações-tipo” serviriam justamente

para dar conta da multiplicidade dessas relações de emprego, procurando, por

conseguinte, escapar à transplantação de conceitos como o de “desemprego disfarçado”

e de “subemprego”. Por isso, não faria sentido alegar que o Projeto tratava do processo

de “modernização”, a não ser que o tomasse “de uma maneira tão ampla, que esvazie

este termo de seu conteúdo” (Ibidem, p. 742).

Ainda segundo os antropólogos, a utilização dos recursos teóricos e

metodológicos da antropologia poderiam se constituir em alternativa aos “modelos de

modernização”, os quais tendiam a reduzir diferentes situações “sob a noção vaga de

‘sociedade tradicional’”, associada à dicotomia rural - tida como organização social

simples - e urbano - tido como organização social complexa. Desse modo, o grupo

questionava na carta se as relações do operário na indústria de Recife seriam mais

“complexas” do que aquelas estabelecidas entre um parceiro do Sertão com o

proprietário da terra (Ibidem, p. 744). Seguros de que a “complexidade” dessas últimas

relações não se definiria pelo espaço geográfico, reforçavam, por conseguinte, o fato de

que “no próprio desenho da pesquisa procuramos apontar para a complexidade de

situações via de regra qualificadas como ‘tradicionais’” (Ibidem, p. 742).

Outro ponto abordado na carta-resposta diz respeito ao “problema da

generalização”. Segundo o grupo, a generalização não depende tanto do tipo de

observação utilizada (no caso, a etnográfica), mas no tratamento dos dados, sendo o

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recurso às estatísticas apenas uma maneira de se chegar à generalização, entre outras. A

questão fundamental, ainda segundo os pesquisadores, seria que no método estatístico

“o problema da generalização se confunde com o problema da representatividade da

amostra com relação ao universo” (Ibidem, p. 743). Tratando-se da observação direta e

de técnicas de entrevista, dever-se-ia investigar, em suas palavras, “em que medida as

estruturas (ou as relações) identificadas e suas combinações possíveis são capazes de

dar conta de cada caso singular” (Ibidem, p. 743).

Mas quais seriam essas estruturas ou relações? Para o grupo de antropólogos,

elas se agrupariam em torno do “sistema de plantation”, muito embora as modificações

recentes tivessem alterado seu funcionamento, elas se combinariam em diversos casos

novos e antigos (“situações-tipo”), conservando estruturas e relações básicas, através de

mecanismos de dominação direta e indireta, imobilização da mão de obra e formação de

grupos sociais através de processos de “proletarização” e “encampesinamento”. Não à

toa o privilégio dado a “plantation” no Projeto, aspecto questionado pelo Banco

Mundial e assim respondido pelo grupo:

se é verdade que o nosso conhecimento sobre a plantation nordestina é maior do que o conhecimento que temos de outras ‘situações-tipo’, parece-nos discutível, no entanto, afirmar que a plantation no Brasil esteja bem estudada, sobretudo no que diz respeito ao problema do emprego (Ibidem, p. 744).

Dessa forma, as transformações da plantation tradicional e o enfraquecimento do

tipo de dominação por ela ensejada, expressa principalmente pela morada, modificou o

“sistema” de relações sociais dessa formação, entendendo-se por “sistema” o conjunto

de posições e oposições sociais que conformavam as práticas individuais e coletivas das

situações selecionadas. As transformações da plantation tradicional, formação social

hegemônica no Nordeste, não deixariam de ter, portanto, efeitos para diversos grupos ao

seu redor ou na emergência de um conjunto de relações sociais que no Projeto ganhava

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sentido a partir da formulação das “situações-tipo”. Na carta-resposta ao Banco

Mundial, os pesquisadores afirmavam essa perspectiva ressaltando “a interdependência

assimétrica (onde a plantation é dominante), em termos de emprego, entre as diferentes

‘situações-tipo’” (Ibidem, p. 743). No que tocava ao tema da “migração”, a plantation

também teria centralidade analítica haja vista que suas áreas adjacentes, segundo os

pesquisadores, teriam sido desde sempre fornecedoras de migrantes, e por isso,

justificavam, “privilegiamos também o lado dos movimentos e da lógica da oferta de

força de trabalho em contraposição ao privilegiamento normalmente concedido pelos

economistas à demanda”, ou seja, o enfoque recairia na lógica das práticas sociais

inseridas na plantation e não somente na avaliação da capacidade de absorção dessa

mão de obra nas cidades (Ibidem, p. 741).

As conversas, negociações, reuniões e trâmites burocráticos envolvidos na

formulação do Projeto Emprego, é um material empírico que julgamos de importante

valor heurístico ao revelar a dimensão processual guardada em sua realização. Embora

alinhadas às propostas da equipe de antropólogos, as diretrizes de pesquisas também

teriam que incorporar os interesses das agências financiadoras, espécie de “meio-termo”

que tornara o Projeto viável institucionalmente, mas também intelectualmente. Em

documento sem autoria encontrado no acervo do Projeto Emprego são relatadas as

condições que o propiciaram e as “normas éticas” que deveriam guiar pesquisas e

pesquisadores. Nele, reafirmava-se o caráter eminentemente “acadêmico” do

empreendimento, recusando-se o fornecimento de “sugestões de política”. Conforme o

mesmo documento,

o projeto não representou uma concessão propriamente aos interesses das fontes financiadoras, mas o acréscimo de dois tópicos a nossas preocupações: emprego e migrações que continuam não sendo focos dominantes de interesse e que são abordados pelo projeto de uma ótica que nada tem a ver com a

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ótica a partir da qual tem sido tradicionalmente tratados (Documento Acervo Projeto Emprego/NUAP/MN).

Tomar, portanto, projeto de pesquisa enquanto “processo” implica reconstituir o

corpo de questões e problematizações que permitiram sua formulação e viabilização,

algo, que no caso de que nos ocupamos, assume inteligibilidade se inserido no espaço

de confluência de interesses entre grupos e agências financiadoras. No próximo capítulo

percorreremos as pesquisas de Moacir Palmeira, sobretudo sua revisão crítica do debate

sobre a questão agrária na esquerda brasileira, e os trabalhos etnográficos de Lygia

Sigaud entre trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco na tentativa de

explicar a centralidade do “sistema de plantation” na elaboração do Projeto. Essas

pesquisas conformariam um “estoque de conhecimento” tanto para as formulações

contidas no Projeto quanto para as discussões com as instituições financiadoras.

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Capítulo 2

A miséria da teoria

“Sem dúvida, acho que quando vocês perguntaram antes se eu era sociólogo ou antropólogo, talvez a coisa que iria me aproximar mais dos antropólogos fosse um pouco essa coisa do trabalho de campo, esse modo de ligar a teoria e a prática de pesquisa propriamente dita, o lado empírico da investigação. (...) Então para mim, quer dizer, bate um pouco como árido, um pouco sem sentido, você pensar na teoria sem referência ao campo” (Palmeira, Moacir. Entrevista ao CPDOC/FGV)

O caráter “aberto” do texto do Projeto “Emprego e mudança socioeconômica no

Nordeste”, como vimos, foi motivo de discussão com técnicos do Banco Mundial.

Segundo o grupo de antropólogos, um sistema de hipóteses consistente só poderia ser

formulado com o avançar das pesquisas. Procedimento este, considerado pelo grupo

como inerente ao “fazer antropológico”. Todavia, chamara a atenção dos técnicos do

Banco Mundial o privilégio concedido à plantation na formulação das “situações-tipo”,

seja pelo maior detalhamento de suas características, seja ainda por ela estar no centro

de um “sistema” com o qual todas as situações se relacionariam. Essa precedência não é

à toa se considerarmos o estudo empreendido por Moacir Palmeira do “sistema da

plantation” e a dominação social por ela engendrada, e as pesquisas de campo

realizadas, inicialmente, por esse pesquisador e Lygia Sigaud, e, posteriormente, junto

com Afrânio Garcia Jr., Beatriz Heredia e José Sérgio Leite Lopes, ainda no âmbito do

projeto “Estudo Comparativo do Desenvolvimento Regional” (1968-1972). Material

este que fez parte fundamental do “estoque de conhecimento” de que os antropólogos

lançaram mão para traçar certas etapas do Projeto Emprego e ajudar na formulação dos

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problemas de pesquisa e no delineamento das “situações-tipo”33. Por “estoque de

conhecimento” compreendemos aquilo que Shutz (1979, p. 74 et seq.) definiu como

uma espécie de reserva de “recursos” dos quais indivíduos lançam mão em situações

ordinárias para conferirem, através de “tipificações”, ou seja, “fórmulas ideias” de

eventos futuros, inteligibilidade e planejamento às suas ações.

É possível perceber o recurso a esse “estoque de conhecimento” nas negociações

com aquelas agências, e nas discussões internas ao grupo, o que dotaria o próprio

Projeto do caráter coletivo que permitiria não só a continuidade de pesquisas

individuais, mas também explorar a contendo as diversas “situações-tipo”. Neste

capítulo, veremos como no momento da apresentação às agências financiadoras já

existia uma série de questões “estruturadas” pelos pesquisadores que apoiariam a

formulação do Projeto. No entanto, esse conjunto de informações não significou que ele

já tivesse dado de antemão, mas era sempre posto em discussão a cada novo caso

empírico relevante, o que era condizente com o próprio caráter aberto do Projeto e a

problematização interna das “situações-tipo”. De acordo com Schutz (1979, p.136), esse

caráter “aberto” que todo projeto assume decorreria do fato de que o “estoque de

conhecimento” modifica-se continuamente, em razão das mudanças mais ou menos

incisivas no “sistema de relevâncias” geradas no próprio desenrolar da ação34.

33 Em sentido próximo, Lygia Sigaud (2012, p. 88) definiu assim as primeiras experiências de campo em Pernambuco: “The first fieldwork in Pernambuco (1969–70) was a moment of ‘primitive accumulation’, to borrow Marx’s expression, in the process of compiling a capital of knowledge on the plantation world. The volume and pace assumed by the formation of this capital were an outcome of the modus operandi in the Field”. 34 Moacir Palmeira, em seu memorial para professor titular do PPGAS/MN, notava exatamente o caráter processual da formulação das situações de pesquisas: “algumas surpresas me aguardavam nas primeiras idas a campo (final de 1969 e primeiro semestre de 1970). A maior delas, no que dizia respeito às formulações teóricas da pesquisa, encontrar feiras dentro de usinas e até mesmo em alguns engenhos. Analisar essa “exceção” às “regras” que eu estava formulando, criava uma situação de quase experimento. Marie-France Garcia encarregou-se de fazer um estudo de caso. Surpresa do mesmo porte foi encontrar “núcleos urbanos” dentro de alguns engenhos e usinas, alguns até com o status legal de vilas e com o aparato administrativo correspondente - cartório, coletoria, escola pública e mercado municipal. Doris Rinaldi, alguns anos depois, iria estudar uma delas” (Palmeira, 1994, p. 7).

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Essa dimensão processual pode ser também percebida na própria ênfase posta

pelo trabalho etnográfico nas pesquisas efetuadas pelo grupo de antropólogos aqui

destacado. Trabalho este que não se fez desatrelado de discussões teóricas que, naquele

contexto, pareciam incontornáveis, não só pelas questões de ordem política que

impunham, mas também por sua inserção no debate intelectual. E seria justamente a

revisão teórica que abriria novas possibilidades para o recurso à etnografia, sem a qual

os dados reafirmariam os pressupostos do debate.

Neste capítulo, reconstituiremos, em primeiro lugar, o perfil de uma geração de

estudantes do curso de ciências sociais da PUC-Rio, cuja estrutura aos poucos fora

modificada para atender aos anseios daqueles que buscavam se profissionalizar na área

através do rigor científico, expresso principalmente na pesquisa empírica. Dessa

experiência participaram alguns dos principais pesquisadores do Projeto. Num segundo

momento, abordaremos a revisão do debate corrente na esquerda brasileira sobre a

questão agrária e, a partir dela, as formulações acerca da plantation contidas na tese de

doutorado de Moacir Palmeira. Foram elas essenciais para o conjunto de pesquisas

desenvolvida no âmbito do Projeto “Estudo Comparativo”, e, posteriormente, no Projeto

“Emprego”. Por fim, discutiremos as pesquisas de campo realizadas por Lygia Sigaud

sobre as representações “ideológicas” de trabalhadores rurais, destacando como essa

perspectiva antropológica permitiu recolocar certas questões candentes à época.

2.1 “Um divisor de águas”

Do grupo de antropólogos que formaria o quadro do Projeto Emprego, diversos

deles – em momentos distintos – foram alunos da “Escola de Sociologia e Política” da

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PUC-Rio35. Entre eles, Moacir Palmeira, Luiz Antonio Machado da Silva, Otávio

Velho, da primeira turma de 1961; Lygia Sigaud, que ingressara em 1964; Alfredo

Wagner Berno de Almeida, além de Afrânio Garcia Jr. e José Sergio Leite Lopes – estes

dois últimos, como vimos, alunos da Faculdade de Economia, que, no início de seus

estudos, em 1968, ainda integrava aquela “Escola”.

A história do Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade

Católica (PUC-Rio) começou em 1954 como "Instituto de Estudos Políticos e Sociais"

(IEPS), criado pelo Pe. Fernando de Bastos D’Ávila, doutor pela Universidade de

Louvain (Bélgica), instituição católica responsável pela formação de sacerdotes

identificados com a abertura política do Concílio Vaticano II e polo de difusão de

doutrinas socialistas alinhadas ao catolicismo (cf. Martins, 2010, p. 21). Sua tese

versava sobre a imigração no Brasil, publicada em português em 1956. Foi diretor do

Instituto até 1967, integrando o quadro docente como professor de sociologia. Embora

desde 1955 o IEPS ministrasse cursos em ciências sociais, somente em 1960 seria

reconhecido pelo Ministério da Educação, transformando-se, com isso, em “Escola de

Sociologia, Política e Economia”. O curso de ciências sociais ofertava um abrangente

quadro de disciplinas na área de “humanas”, interessando justamente aqueles que

aspiravam à carreira diplomática. Isso é possível notar em seu “Plano de Estudos” em

que constam, além das disciplinas de sociologia, ministradas desde o primeiro ano,

diversas disciplinas de línguas – russo, inglês e francês -, de história econômica, social e

política; de economia e estatística; política internacional, sendo a de “antropologia

cultural (etnologia)” ministrada somente no terceiro e quarto anos (Anuário da PUC

XXI 1941-1961, 1962, p. 138).

35 Para uma reconstituição mais detida da história da PUC-Rio e da Escola de Sociologia e Política, ver Keinert, 2011.

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Aos poucos muitos alunos foram abandonando as pretensões de seguir a

diplomacia e passaram a investir na carreira acadêmica – a exemplo de Moacir Palmeira

e Afrânio Garcia Jr. (cf. Keinert, 2011, p. 132) e Otavio Velho (2010, p. 485). Coube à

primeira turma da Escola de Sociologia e Política de 1961, que, entre os alunos,

constavam Luiz Antonio Machado, Otávio Velho e Moacir Palmeira, levar adiante as

transformações necessárias do modelo de ensino da Escola, operando, segundo Palmeira

(2009a, p. 10), “uma espécie de divisor de águas na PUC”. Ainda segundo o

antropólogo (2013, p. 438), “éramos desde o início muito ligados a essa ideia da

pesquisa científica, preocupados em saber como iríamos casar a pesquisa empírica com

as grandes elaborações teóricas do marxismo e de outras teorias”. Em entrevistas,

Palmeira (2010; Lopes, 2013) e Machado (2010) apontam um de seus colegas de turma,

Sergio Lemos, como tendo uma “liderança intelectual sobre o grupo” na articulação

daquelas transformações (Lopes, 2013, p. 438). Ainda segundo Palmeira, Lemos, que

também era formado em direito e se tornaria jornalista e escritor,

tinha a ideia de que tinha que haver uma profissionalização: nós estávamos ali para sermos sociólogos. E a ideia do Ieps, criado pelo padre Ávila, que é uma figura que eu aprendi a admirar nessa época e eu gosto muito, a ideia do Ieps era, como você tem, ou teve muito tempo a Sciences Po, na França, ou tem no Colégio do México, a coisa da ciência política. Era criar uma espécie de elite política. E o Sérgio se lançou veementemente contra isso, disse: ‘Temos que profissionalizar esse curso’ (Palmeira, 2010a, p. 11).

Em razão dessa movimentação dos alunos é implantado, em 1963, o sistema de

créditos no IEPS, tornando-se “Escola de Sociologia e Política”, modelo próximo a de

sua congênere em São Paulo. A Escola passaria a ter um ciclo básico, constituído de

dois semestres, depois do qual o aluno deveria optar por seguir a especialização em

Sociologia, Política ou Economia (cf. Anuário da PUC XXI 1941-1961, 1962, p. 115).

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O pendor à pesquisa empírica seria reforçada pelo quadro docente da instituição

formado por, entre outros, Arthur Hehl Neiva – demógrafo e imigrantista presidente

diversas vezes da Fundação Brasil Central, contratado como professor de Introdução às

Ciências Sociais -; Manuel Diegues Jr. – sociólogo, com trabalhos sobre folclore e

questão agrária no Nordeste, fora contratado como professor de Antropologia Cultural -;

Glaucio Ary Dillon Soares – sociólogo e cientista político com doutorado na

Universidade de Washington (EUA), com forte diálogo com a sociologia norte-america

e treinado em métodos quantitativos, foi professor de sociologia -; e Geraldo Semenzato

– sociólogo, antigo funcionário do INIC (Instituto Nacional de Imigração e

Colonização), participante do “Projeto do Vale do Rio São Francisco”, coordenado por

Donald Pierson, fora também professor de sociologia do Instituto.

Em meados de 1962, Semenzato estava de saída para a Universidade da Bahia a

convite de Thales de Azevedo, o qual organizava um curso de pós-graduação em

ciências sociais. Por não ter havido demanda suficiente e dado o perfil dos candidatos –

a grande maioria não oriunda das ciências sociais -, o projeto não se concretizou,

transformando-se em “curso de treinamento em ciências sociais” (cf. Machado, 2010, p.

142-143 e Palmeira, 2010a, p. 17)36. Insatisfeitos com o caráter por demais bacharelesco

do IEPS, Moacir Palmeira, Luiz Antonio Machado e Sergio Lemos, já no segundo ano

de ciências sociais na PUC, decidem acompanhar Semenzato no curso de um ano na

Bahia, período que obtiveram uma bolsa de pesquisa. Teriam também oportunidade de

participar de pesquisas de campo na cidade de Camaçari (BA) para o Comitê

36 As políticas de modernização e expansão da pós-graduação promovidas pelos governos militares, que culminaria com a reforma de 1968, levariam à decadência os cursos de especialização como etapa de formação acadêmica. Com os novos parâmetros legislativos, esses cursos foram paulatinamente suplantados pela importância concedida ao mestrado (cf. Durham, 1986, p. 44). Segundo Palmeira (2009b, p. 17), para a criação do curso de pós-graduação e depois de especialização voltado para cientistas sociais na Bahia, Thales de Azevedo teria se inspirado na experiência dos cursos de economia, oferecidos pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) com o apoio da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão das Nações Unidas, que visavam a aperfeiçoar a formação acadêmica de profissionais da área.

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Interamericano de Desenvolvimento Agrícola (CIDA), desfrutando “de uma espécie de

imersão total na reflexão característica da ciência social” (cf. Machado, 2010, p. 143).

A experiência dessa geração, aliando, conforme Palmeira (Lopes, 2013, p. 438),

“de um lado a preocupação teórica, marcada pela teoria marxista, e por outro lado uma

atitude dessa nossa turma, que logo no inicio da escola assumiu muito a postura

profissionalizante”, faria com que a pesquisa empírica tivesse importância fundamental

no modo de se conceber a prática em ciências sociais, em contraposição ao perfil até

então dominante da Escola de Sociologia e Política da PUC-Rio37. Postura esta que fez

com que trabalhos de cunho empírico viessem atrelados a discussões teóricas exigentes.

Seria este o caso da revisão proposta por Moacir Palmeira do debate sobre a questão

agrária no Brasil, particularmente entre os grupos de esquerda, fundamental para o

programa de pesquisas que viriam a ser desenvolvidos posteriormente sob sua

coordenação no Projeto “Estudo Comparativo do Desenvolvimento Regional” e no

Projeto “Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste”.

2.2 Uma “terceira posição”

No final do curso de especialização na Bahia, os alunos deveriam apresentar

uma monografia. Moacir Palmeira se dedicou a um trabalho de cunho historiográfico

intitulado “Banditismo político e estrutura social”, sob a orientação de Thales de

Azevedo, no qual investigou o porquê das Ligas Camponesas não terem tido a mesma

incidência em Alagoas como teve em outros estados, como Pernambuco e Paraíba,

sugerindo a hipótese de que a violência a serviço dos chefes políticos locais,

estruturadas em lutas de famílias, impedira a expansão daquela organização camponesa

(cf. Palmeira, 1994, p. 18; 2010a, p. 19; Lopes, 2013, p. 439). De volta ao Rio de

37 É indicativo dessa geração que a escolha do paraninfo de formatura, em 1964, tenha sido Florestan Fernandes, justamente por ser figura representativa do rigor intelectual e científico que a prática das ciências sociais assumiria para aqueles formandos (cf. Palmeira, 2010a, p. 27).

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Janeiro, à convite de Manuel Diegues Jr., Moacir Palmeira e Otavio Velho participaram

de estudos supervisionados por Candido Mendes, também ex-professor dos dois

antropólogos na PUC, no Centro Latinoamericano de Pesquisas em Ciências Sociais

(Clapcs).

Foi ainda no Clapcs que Palmeira tomou conhecimento da seleção de bolsas de

estudos na França (Association pour l’Organisation des Stages en France), país que ao

lado dos Estados Unidos se constituíam nas duas principais opções para aqueles que

desejavam prosseguir na carreira acadêmica, sobretudo numa época em que a pós-

graduação em ciências sociais não havia expandido conforme aconteceria nos anos

seguintes (cf. Palmeira, 2010a, p. 34). Com questões que já havia elaborado ou

trabalhado em pesquisas anteriores, sobretudo na Bahia, Palmeira obtivera a aprovação

na seleção com o projeto “sobre ‘Implicações do desenvolvimento do capitalismo no

campo no Brasil’, esse era o título, mas eu estava interessado especificamente no

problema do surgimento das ligas camponesas. Era o tema que eu queria estudar”

(Palmeira, 2010a, p. 35). No entanto, ao chegar à França, em 1969, teve a surpresa de

constatar que o programa em que inscrevera seu projeto de pesquisa de fato não existia.

Pierre Monbeig, então diretor do IHEAL (Instituto de Altos Estudos da América Latina)

em Paris, convenceu-o a se inscrever no doutorado, o que o fez na Université Paris-

Descartes, sob a supervisão de François Bourricaud, ex-professor da Flacso (Faculdade

Latino americana de Ciências Sociais), sediada no Chile.

Sem possibilidade de ir a campo, Palmeira percebera que o material empírico

trazido do Brasil para desenvolver sua pesquisa sobre banditismo político não era

suficiente. Contudo, possuía leituras aprofundadas sobre a questão agrária no Brasil,

além de contar com grande parte da bibliografia sobre o assunto disponível na França.

Por essas razões, decidira tratar deste tema candente à época, principalmente o debate

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existente na “esquerda brasileira”, mais especificamente as polêmicas que envolviam as

teses do Partido Comunista Brasileiro (PCB) sobre o caráter feudal ou capitalista das

relações sociais na agricultura. E o fez, porque, como explicou o autor, “o que tentei foi

(e não foi apenas por um deleite intelectual, mas porque estava encontrando obstáculos

concretos para conduzir uma determinada atividade de pesquisa) entender a lógica do

debate” (Palmeira, 1984, p. 43).

Já naquele momento o debate feudalismo-capitalismo parecia esmaecer diante

dos acontecimentos que haviam agitado o campo, ao mesmo tempo em que,

paradoxalmente, seus termos estruturantes continuavam a permear distintas pesquisas

(cf. Maria Moura & Gnaccarini, 1983; Garcia Jr. & Grynszpan, 2002; Sigaud, 1992). De

toda maneira, revisões teóricas se impunham a esse debate, porque, de acordo com

Maria Moura & Gnaccarini (1983, p. 7) “a forma de superá-lo não está somente na

pesquisa de campo, já que esta pode servir tão somente para ampliar as ‘provas’ que

cada uma das posições quer dispor para ampliar sua própria evidência”. Era preciso,

portanto, repensar aqueles termos estruturantes que informavam o debate, e, por

conseguinte, a própria relação entre teoria e empiria.

Ainda sem ter ganhado uma tradução do francês, a tese de Moacir Palmeira

intitulada Latifundium et Capitalisme au Bresil: Lecture Critique d`un debat, defendida

em 1971, permanece leitura incontornável sobre o tema (cf. Maria Moura & Gnaccarini,

1983). Ao dissecar as diversas teses que por longo tempo obsedaram os envolvidos na

contenda sobre a questão agrária, Palmeira estabeleceu um diálogo crítico com aquela

literatura a fim de identificar suas questões fundamentais, lançando mão para isso de

teorias então em voga como a de Michel Foucault, Louis Althusser e Pierre Bourdieu -

com este último teve contato mais próximo durante seu doutoramento (cf. Palmeira,

2010a e 2010b). E, embora, salientava o autor, as discussões sobre o “Brasil agrário” e

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sua “realidade” remonte aos anos 1920 e 1930 com o debate entre juristas e

economistas, é somente na década de 1960 que a discussão “gagne le statut d`une

question publique”38 (Palmeira, 1971, p, III). De acordo com Palmeira, isso se deve a

dois motivos principais: primeiro, à emergência do movimento camponês na década de

1950, tornando-se um agente político, a exemplo das Ligas Camponesas e dos

sindicatos rurais; segundo, as divisões na esquerda começam a se tornar mais acirradas,

surgindo novos grupos que questionavam a hegemonia do Partido Comunista Brasileiro

(PCB), e difundindo-se diferentes e contrapostas versões dos rumos da “revolução

brasileira” (cf. Palmeira, 1984, p. 15).

Por essa razão, o autor justificava a utilização dos conceitos de “campo

ideológico” e de “campo intelectual” posto que, “la constitution d`un tel champ ne

constitue pas un mouvement d`autonomisation dans le sens où l`entend Boudieu. Au

contraire, elle signifie l`instauration d`un rapport privilegié avec le champ politique”39

(Palmeira, 1971, p. VII-VIII). De acordo com Palmeira, a confluência do “campo

intelectual” com o “campo político” no que toca ao debate sobre a questão agrária

poderia ser observada pelas petições de princípio que acompanhavam os trabalhos, por

exemplo, de Alberto Passos Guimarães, defensor da tese feudalista, e André Gunder

Frank, defensor da tese capitalista. Para Guimarães, se a estrutura agrária brasileira

poderia ser caracterizada como capitalista, não caberia reformá-la, daí o teor

conservador da posição de seus adversários. Para Frank, no entanto, a outra versão do

debate recaia numa visão evolucionista, e, ao contrário do que escrevia Guimarães, a

permanência de desigualdades no campo permitiria entrever que apenas a superação do

capitalismo acabaria com elas.

38 “ganha o estatuto de uma questão pública” (tradução nossa) 39 “a constituição de um tal campo não constitui um movimento de autonomização no sentido que o entende Bourdieu. Ao contrário, ela significa a instauração de uma relação privilegiada com o campo político” (tradução nossa)

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Como chamava atenção Palmeira, a definição do caráter predominante das

relações sociais na agricultura brasileira – feudal ou capitalista -, estava intimamente

relacionada com a posição ideológica de cada autor e a teoria que a sustentava, e não

com o trabalho empírico de levantamento de dados, já que ambos os polos do debate se

aglutinavam em torno do mesmo conjunto de questões - o latifúndio, o monopólio da

terra, a tecnologia atrasada, as relações de produção e trabalho, dependência pessoal -,

conformando uma “ideologia” cuja força está em “sa capacité d`incorporer non

seulement ce qu`on essaie de dire sur les ‘objets’, mais aussi dans sa capacité de

s´approprier de tout discours portant sur elle-même”40 (Ibidem, p. 159-160).

O caráter ideológico das questões envolvidas, contudo, não significava que elas

não remetessem a “‘problèmes réels’ qui ne sont pas moins réels du fait que celui-ci ait

un caractère idéologique”41 (Ibidem, p. 159). Dessa forma, as formulações de Palmeira

sobre o debate não pretendem transpô-lo, nem mesmo formular uma “síntese”, mas,

como o próprio autor qualifica, apresentar uma “terceira posição” (“troisième

position”). Isso porque, segundo o autor,

não me parece produtivo tomar esse debate como um conjunto de discussões de caráter não muito científico, ou então de caráter científico mas que não teria chegado a bom termo por falta de informações ou pelo parti pris político de uns e outros. Não é o caso. A argumentação das duas correntes, acho que é igualmente respeitável. O problema é que as conclusões a que os autores chegam devem menos à argumentação utilizada do que a um jogo de relações políticas em que está imerso (Palmeira, 1984, p. 26).

Como esperamos deixar claro, as proposições apresentadas por Palmeira ao final

de sua tese, além de ser fruto do esforço de exegese dos textos que envolviam o debate

entre os defensores da tese feudalista e da tese capitalista nas relações sociais na

40 “sua capacidade de incorporar não somente aquilo que se tenta dizer sobre os objetos, mas também dentro de sua capacidade de se apropriar de todo discurso que versa sobre ela mesma” (tradução nossa) 41 “problemas ‘reais’ que não são menos reais em razão de ter um caráter ideológico” (tradução nossa)

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82

agricultura brasileira, é também uma recuperação de temas e questões caras ao

pensamento social brasileiro42. Nesse sentido, a utilização de aportes teóricos na tese

sintonizados com os debates contemporâneos, sobretudo a bibliografia norte-americana

sobre a plantation43, revela ao mesmo tempo que ocultam esse diálogo, cuja

recomposição parece-nos interessante para ressaltar as críticas e as inflexões propostas

por suas formulações em relação àquela tradição, de grande importância posterior para

as pesquisas do grupo do Projeto “Emprego”. Entre os temas que destacamos nessa

reconstituição, estão: a relação entre as formas de imobilização da força de trabalho e o

capitalismo; o “patriarcalismo” e a “função” do grande latifundiário; e, por fim, a

“posição” do trabalhador rural e camponês no sistema de plantation.

2.2.1 Capitalismo e plantation

42 Essa importância do pensamento social brasileiro é ressaltada pelo autor em diversos momentos. Em texto sobre as mudanças políticas no Nordeste durante o século XX, publicado originalmente em 1966, Palmeira cita como referências fundamentais trabalhos de autores como, entre outros, Nestor Duarte, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Victor Nunes Leal (Palmeira, 2006, p. 62). Em entrevista, Palmeira volta a reforçar a importância da bibliografia clássica sobre poder local e mandonismo no Brasil, “quer dizer, você quando pega, por exemplo, um autor, se você pegar e ler com cuidado Victor Nunes Leal − não aquele negócio dos dois famosos capítulos que todo mundo lê – mas ler com as notas, isso e aquilo, depois você lê o que a Sydel Silverman [antropóloga americana] diz sobre os mediadores. Trinta anos antes Victor Nunes já tinha visto e formulado melhor do que ela. Então a coisa da Sydel Silverman − que é uma autora, antropóloga de fôlego e tal −sobre mediação, essa coisa estava lá. Então essa coisa do Victor Nunes é uma coisa indiscutível. A Maria Isaura que tem − contrastando com o jeito mais sofisticado lá da vertente Florestan − tem uma formulação mais simples... Maria Isaura tem coisas fantásticas e algumas, eu até acho que O mandonismo é um livro extremamente interessante, pra mim foi muito importante, na minha trajetória” (Palmeira, 2010b, p. 35). 43 Trata-se em grande parte de trabalhos oriundos de um grande projeto desenvolvido nos anos 1940 e 1950 nos Estados Unidos intitulado “People of Puerto Rico” (1956), sob a coordenação do antropólogo Julien Steward, e com participação de Eric Wolf e Sidney Mintz. O projeto foi viabilizado através de um convênio entre a Universidade de Columbia e a Universidade de Chicago, e financiado pela Fundação Rockfeller. O objetivo era traçar planos de pesquisa em comunidades sobre a indústria açucareira e outras atividades econômicas que se desenvolviam no interior ou estavam relacionadas à plantation. Estimulados pelo arcabouço teórico desenvolvimento por Steward de uma antropologia capaz de contribuir para o estudo de sociedades e nações contemporâneas, e contrapondo-se aos estudos culturalistas do “caráter nacional”, como o de Ruth Benedict, esses pesquisadores buscaram adaptar o método dos estudos de comunidade ao estudo de sociedades complexas, tratando as comunidades locais como “subculturas” dentro de uma “cultura nacional”. Assim, conceberam uma perspectiva centrada em “níveis de desenvolvimento sociocultural” para o estudo das “sociedades complexas”. No interior desse projeto surgiram algumas divergências que, grosso modo, dizem respeito à recusa de Wolf e Mintz em compartilhar a prioridade analítica dada por Steward de encontrar “regularidades” em distintas experiências de modernização, o que o faria recair em certo evolucionismo social (cf. Silverman, 1979).

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Após recompor os referenciais teóricos básicos do debate compartilhados pelos

seus contendores, Palmeira, na quarta parte de sua tese, intitulada “Propositions”,

recorre aos aportes teóricos em grande voga à época, sobretudo na França, do estrutural-

marxismo (Louis Althusser, Étienne Balibar e Maurice Godelier, por exemplo), para

formular uma alternativa teórica àquele debate. Justificava este recurso para se afastar

de uma perspectiva “historicista”, segundo a qual a complexidade do real e a riqueza da

história impossibilitariam o trabalho teórico mais sistemático. Por isso propunha

estabelecer “à la limite (mais seulement à la limite), un invariant structural (ou des

invariants structuraux) capable de rendre compte de n`importe quelles ‘variations’

réelles”44 (Palmeira, 1971, p. 131). Esta “invariante estrutural” se encontraria no

conceito de modo de produção, que, embora não pudesse captar toda a complexidade do

real, permitiria fixar uma instância analítica para a recomposição de seus elementos

fundamentais, a saber, as forças produtivas e as relações de produção. Como “estrutura

de estruturas”, o conceito de modo de produção não poderia ser formulado a priori, mas

deveria se valer do tipo de relação e do lugar ocupado por determinadas categorias,

como “trabalhador”, “meios de produção”, “não-trabalhador”. Como ressaltado pelo

antropólogo, estes elementos formariam uma “combinação” – não se tratando de uma

“combinatória” -, variável, portanto, de acordo com o conjunto de relações sociais

estabelecidas em determinada formação social. A maneira pela qual esses elementos se

relacionariam definiria uma instância como dominante, muito embora “ne coincide pas

nécessairement avec la détermination ‘en dernière instance par l`économique’, mais elle

n`elimine pas non plus cette détermination”45 (Ibidem, p. 132, grifos no original). Por

isso, propôs o autor que se tomasse a plantation como um modo de produção específico,

44 “em última instância (mas somente em última instância), uma invariante estrutural (ou invariantes estruturais) capaz de dar conta de não importa quais ‘variações reais” (tradução nossa) 45 “não coincide necessariamente com a determinação ‘em última instância pela economia’, mas ela não elimina essa determinação” (tradução nossa, grifos no original)

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ainda que, como veremos, subordinado à dinâmica do capitalismo global, e com uma

combinação própria de elementos.

Segundo o autor, o principal equívoco em que caíram os contendores do debate

sobre as relações sociais na agricultura seria o fato de identificarem o latifúndio como

instância econômica, não o entendendo como uma forma de organização social. Tal

compreensão decorreria de uma confusão entre níveis distintos da realidade social: se

para os defensores da tese feudalista o latifúndio era entendido enquanto “unidade de

subsistência”, para os defensores da tese capitalista, o latifúndio era entendido enquanto

“unidade de produção”. Os dois lados do debate, segundo o autor, não lograriam

ultrapassar a “unidade econômica” de referência, o latifúndio, e compreendê-lo em sua

inserção numa formação social específica. Não à toa, o autor utilizava, ao longo da tese,

o termo plantation no lugar de “latifúndio”, fazendo referência à literatura clássica que

tratara daquela unidade econômica e marcando distância com relação ao debate que

circunscrevia. Além disso, assinalava que utilizava a categoria “sistema de plantation”

(“système de plantation”) para tratar não de “unidades econômicas”, mas do contexto

econômico mais amplo no qual o latifúndio se insere (Ibidem, p. 133). Para o

antropólogo a questão fundamental, portanto, seria “quel mode de production, ou quelle

articulation de modes de production, a permis l`emergence du latifundium?”46 (Ibidem,

p. 133).

No continente americano, salientava Palmeira, a plantation surgiu

intrinsecamente ligada à expansão do capitalismo comercial, para o qual a conquista de

colônias foi fundamental para o incremento de “acumulação primitiva” necessária à

industrialização em desenvolvimento no Ocidente. Sob a dominação e os imperativos

do capitalismo, na Colônia não existiria qualquer possibilidade de desenvolvimento de 46 “qual modo de produção ou qual articulação de modos de produção permitiu a emergência do latifúndio?” (tradução nossa)

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outras formas de produção que não a plantation, dificultando ou impedindo o trabalho

livre, a circulação de bens e a formação de mercados internos. Ao mesmo tempo, no

entanto, a plantation deveria ser dotada de certa “flexibilidade” para suportar as

exigências do mercado internacional sem colocar em risco sua própria estrutura. Isso só

seria possível porque o sistema de plantation, além de impedir a complexificação das

trocas mercantis, conformaria um tipo de dominação política centralizada na figura do

senhor de engenho. Dessa forma, segundo o autor,

chaque “unité de production” devant réaliser toutes ces conditions, le ‘système’ de plantation’ se presente alors comme un ensemble de ‘cellules’ tournées vers le marche international, plus ou moins isolées les unes des autres, opérant avec des techniques qui sont décrites comme ‘traditionnelles’. Le ‘problème économique’ de chaque unité de production será donc de s`assurer de la plus grande quantité possible de terre et main d`oeuvre, non seulement en tant que ‘facteurs de production’, mais surtout comme blocage à d`autres alternatives économiques possibles à ces ‘facteurs’. L`absence de ‘compétition économique’ sur un marché international où elles ne ‘comparaissent’ pas, mais seulement leurs produits (et à travers les supports du capital commercial), donne lieu à une ‘compétition politique’ pour l`appropriation de ces ‘facteurs’ potentiels (Ibidem, p. 138)47.

A exemplo do sistema capitalista ao qual se encontraria subordinada, a

plantation suporia a separação do trabalhador dos seus meios de produção, mais

particularmente da terra, legitimada juridicamente como propriedade privada de uma

minoria. Seria, por isso, “indiferente” a este sistema a posse dos “objetos de trabalho”

pelos trabalhadores, como demonstrariam a existência de instituições como a “morada”

e a “parceria” em seu interior, posto que o acesso à terra encontrar-se-ia bloqueada por

47 “cada ‘unidade de produção’ devendo realizar todas essas condições, o ‘sistema de plantation’ se apresenta então como um conjunto de ‘células’ voltadas para o mercado internacional, mais ou menos isoladas umas das outras, operando com técnicas descritas como ‘tradicionais’. O ‘problema econômico’ de cada unidade de produção será então o de assegurar a maior quantidade possível de terra e mão de obra, não somente enquanto ‘fatores de produção’, mas sobretudo como bloqueio a outras alternativas econômicas possíveis a esses ‘fatores’. A ausência de ‘competição econômica’ sobre uma mercado internacional onde essas alternativas não ‘comparecem’, mas somente seus produtos ( e através dos suportes do capital comercial), dá lugar a uma ‘competição política’ pela apropriação desses ‘fatores’ potenciais” (tradução nossa)

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mecanismos políticos (Ibidem, p. 140). Do ponto de vista do funcionamento da

plantation, o trabalho cativo cumpriria o mesmo papel que qualquer outra forma de

imobilização da força de trabalho. Conforme o autor, “la plantation peut opérer aussi

bien à la base de ‘rapports de travail’ esclavagistes, que des ‘rapports de travail’ serviles

ou à la base du ‘salariat formel’”48 (Ibidem, p. 140).

Formulação que se distancia da tese clássica de Caio Prado Jr. apresentada em

seu livro Formação do Brasil Contemporâneo (2011 [1942]), sobretudo no tocante ao

papel da escravidão49. Para o autor marxista, no entanto, a escravidão operaria uma

clivagem estrutural na sociedade brasileira, dado o próprio “sentido” que a colonização

do Brasil imprimiu à sua formação, qual seja, a de produtora de mercadorias para o

exterior. O latifúndio teria papel fundamental ao se constituir como uma empresa cuja

organização se mostrou extremamente adequada às demandas externas, sendo o

principal fator de sua bem sucedida implantação, a organização do trabalho,

amplamente alicerçada na relação entre o senhor e o escravo. Essa relação constituiria o

“setor orgânico” da vida colonial, cuja organização e estabilidade permitiria uma melhor

adequação às demandas do mercado exterior. Por outro lado, a escravidão teve o efeito

de tornar o trabalho dos homens pobres livres dispensável, impedindo, entre eles, a

formação de laços duradouros no âmbito do trabalho, fonte de uma possível

solidariedade de classe. Ocupando a margem da relação fundamental na colônia

estabelecida entre senhor e escravo, aos homens pobres livres não restaria senão uma

vida baseada no insolidarismo e à mercê do mando dos grandes proprietários50.

48 “a plantation pode operar tanto à base de ‘relações de trabalho’ escravagistas, quanto de ‘relações de trabalho’ servis ou à base do ‘assalariado formal’” (tradução nossa). 49 Palmeira (1971, p. 140) cita Prado Jr. para corroborar o seu argumento de que a “flexibilidade” exigida pelo mercado internacional teria como efeito a “flexibilidade” das relações sociais de produção internas a plantation, comportando com isso trabalhadores dependentes, escravos e até mesmo assalariados. 50 Para uma apresentação mais detalhada da obra e do contexto de Prado Jr., ver Ricupero (2000).

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Essa tese, que seria reapropriada posteriormente por diversos autores que se

vinculariam de uma forma ou de outra ao que se convencionou chamar de “escola

sociológica paulista” (Bastos, 2002), toma a escravidão, portanto, como fator

responsável por uma clivagem estrutural fundamental na sociedade brasileira, ao relegar

à situação de penúria, dependência e anomia os homens livres pobres51. No esquema

proposto por Palmeira, entretanto, a escravidão seria inteligível a partir da dinâmica do

“sistema da plantation”. Ou seja, seria o “sistema de plantation”, de acordo com as

demandas externas e a disputa política pelos recursos em seu interior, que definiria as

formas diversas de imobilização da mão de obra, não tendo a escravidão o mesmo peso

estrutural que na tese de Prado Jr.. Conforme Palmeira, “la condition-limite

infranchissable est que la main d`ouevre soit immobilisée et disposée à accepter

n`importe quels arrengements imposés par la conjuncture”52 (Palmeira, 1971, p. 140-

141). A ênfase de Palmeira recai nos fatores de disputa política que permitiria a

manutenção e adequação do “sistema” ao mercado externo. Veremos a seguir como se

estrutura essa disputa política.

2.2.2 Patriarcalismo e a “função” do grande proprietário

Dada a especificidade do modo de produção da plantation, Palmeira ressaltava

que ele conformaria um conjunto de relações sociais em cujo centro ocuparia o

proprietário de terras. Este serviria como “mediador” necessário entre a mão de obra

interna à plantation e o exterior, resultando no isolamento do trabalhador dos circuitos

51 Sem dúvida, a leitura dos trabalhos de Sidney Mintz e Eric Wolf sobre a plantation caribenha pesaram na formulação de Palmeira no que se refere à localização da escravidão nesse sistema, ao colocá-la ao lado de outras formas de imobilização da força de trabalho. Não à toa, os trabalhos desses autores, sobretudo de Mintz, serão fundamentais na formulação de Ciro Flamarion sobre a “brecha camponesa” no modo de produção escravista e nas discussões e polêmicas a que se seguiram. 52 “a condição-limite incontornável é que a mão de obra seja imobilizada e disposta a aceitar não importa quais arranjos impostos pela conjuntura” (tradução nossa)

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econômicos. Confinados à plantation, os trabalhadores se submeteriam aos mecanismos

extraeconômicos, ou seja, políticos, de dominação da classe proprietária, através dos

quais ela “redistribuiria” os bens produzidos em seu interior. Dessa forma, a produção

de “subsistência” dos trabalhadores entraria, por mecanismos indiretos, como o

“barracão” e o “foro”, num circuito controlado pelo senhor proprietário, o que reforçava

a relação de dependência. Além disso, esse tipo de controle e dominação sobre os

camponeses dotariam esse sistema da “flexibilidade” necessária a sua perpetuação, pois,

em momentos de crise, a escala de produção seria retraída, permitindo a mão de obra

voltar-se à agricultura de subsistência até que as atividades principais da plantation

fossem retomadas, sem alterar, contudo, as relações de produção e de poder.

Ao contrário do que era estabelecido pela corrente feudalista do debate sobre a

questão agrária, as cessões de lotes de terra aos trabalhadores não significavam que o

trabalho ficaria restrito à produção de subsistência (Ibidem, p. 143). Toda a produção da

plantation – de “subsistência” ou no engenho - passava pela mediação e redistribuição

do grande proprietário, através do qual entrava no circuito econômico. Dessa forma,

tendências autárquicas do latifúndio, como supunham alguns autores do período, não se

contrapunham à sua necessidade de importação de bens de consumo, haja vista que a

“agricultura de subsistência”, tal como permitida no interior de plantation, não seria

canalizada necessariamente para o abastecimento interno, posto que restrita aos vínculos

pessoais com os proprietários e às suas exigências de produção. Nas palavras do autor,

cette position privilegiée du propriétaire est indispensable à la compréhension de la forme d`appropriation du surtravail propre à la plantation et donc du fétichisme spécifique qui recouvre les rapports sociaux dans le ‘système de plantation’. Et seule cette position explique ce ‘mystère’ d`unités économiques presque autonomes constituées en fonction du marche53 (Ibidem, p. 142).

53 “essa posição privilegiada do proprietário é indispensável à compreensão da forma de apropriação do sobretrabalho próprio à plantation e, portanto, do fetichismo específico que recobre as relações sociais

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As “trocas assimétricas”, segundo Palmeira, entre senhor-trabalhador/camponês,

visualizadas na indistinção de tarefas realizadas no interior da plantation e na

distribuição dos resultados delas, seriam acobertadas pelo viés ideológico do

“patriarcalismo”, dotando o senhor de uma “aura presque providentielle de ‘protecteur’

qui mystifie les rapports de ‘séparation’ propres au ‘système de plantation’”54 (Ibidem,

p. 145). Seria esta forma de “pseudo-communauté” (“pseudo-comunidade”) assumida

pelas relações interiores à plantation que impossibilitaria qualquer outra forma de

associação entre os trabalhadores a não ser com o proprietário de terras, cujas ordens

estariam em função direta das necessidades do mercado. (Ibidem, p. 148). O

“patriarcalismo”, tal como entendido por Palmeira, por conseguinte, criaria uma esfera

de indistinção entre os interesses diversos de trabalhadores e proprietários, reduzindo os

potenciais conflitos (Ibidem, p. 147-148).

Neste ponto, Palmeira parece se inserir – ainda que com descontinuidades

fundamentais – no interior de uma vertente da sociologia política brasileira, tal como

reconstituída por Botelho (2007), que remete às formulações de Oliveira Vianna (1973).

Para Vianna, o latifúndio engendraria um tipo de dominação política baseada nas

relações de mando e dependência em torno do grande proprietário, que impediria o

surgimento de conflitos de classe. Isso porque, a grande propriedade, por sua autarquia

econômica, exercera no plano social uma “função simplificadora”, ao restringir ou

impedir outras formas de associação entre a “plebe rural” 55. Ora, já vimos que o

dentro do ‘sistema de plantation’. E somente essa posição explica este ‘mistério’ das unidades econômicas quase autônomas constituídas em função do mercado” (tradução nossa). 54 “áurea quase providencial de ‘protetor’ que mistifica as relações de ‘separação’ próprias ao ‘sistema de plantation’” (tradução nossa) 55 Essas restrições impostas pelo latifúndio teria como efeito principal a dominação política cuja expressão se daria no que Vianna chama de “anarquia branca”, ou seja, a apropriação privada dos latifundiários pelas instituições públicas, usando-as como mecanismo de reforço e perpetuação de seu poder privado. É no baralhamento entre público e privado, e não na produção e nas relações de classes, que se constitui a dominação política, tema tenaz daquela tradição da sociologia política tal como reconstituída por Botelho (2007). Nas formulações acerca do sistema de plantation, Palmeira reforça a

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destaque dado ao “sistema” de plantation permite a Palmeira fugir da ênfase posta na

“autarquia econômica” da grande propriedade como caracterizado por Vianna. Contudo,

ao destacar as exíguas possibilidades de conflito entre trabalhadores e proprietários no

interior daquele sistema, Palmeira igualmente reforçava o caráter “simplificador” do

latifúndio – a que por outros caminhos chegara Vianna. Nas palavras do autor, “chaque

travailleur se ‘lie’ et ne se ‘lie’ qu`au propriétaire. Comme certains auteurs brésiliens

ont justement observé, la plantation exclue tout autre type d` ‘association’”56 (Ibidem, p.

148).

Outros autores do pensamento social brasileiro, que se inserem na tradição

acima destacada, já haviam chamado a atenção para as possibilidades e limites da ação

social nesse sistema (cf. Botelho 2007 e 2009a). Maria Isaura Pereira de Queiroz

(1976a), por exemplo, ressaltava a importância dos “grupos de parentela” na formação

da sociedade brasileira, entendendo por “parentela” a associação de diferentes grupos,

cuja estratificação se assemelharia a de uma pirâmide, no topo da qual estaria o senhor

latifundiário. Esta posição garantiria a ele a subordinação de seus dependentes, exercida

através de um tipo de dominação mais direta sobre aqueles que ocupam posições mais

próximas à sua órbita de influência – agregados, familiares, trabalhadores. O contrário

ocorre com as famílias de sitiantes que, donas de suas terras, forçariam que a dominação

do senhor se exercesse senão de maneira indireta. Para esses casos, as diversas relações

de parentesco (de sangue, de compadrio, uniões matrimoniais) seriam fundamentais

prevalência do político e a ausência da luta de classes como elemento fundamental na manutenção das relações de dominação, mas, no entanto, não se detém na força expansiva do privado sobre o público –descontinuidade importante em relação àquela vertente. Apoiando-se na literatura sobre plantation a que já aludimos, Palmeira observava que a esfera do político a que se refere seria aquela que se apoia no “poder difuso” do sistema, pela disputa dos recursos, e no “poder concentrado” nos grandes proprietários de terra, portanto, não na esfera institucional do Estado. Como ressaltado pelo autor, “nous faisons ainsi abstraction de l`État ‘fiscaliste’ qui semble se superposer à l`économie de plantation, au moins dans les formes historiques qu`elle a pris dans les pays à colonisation espagnole et portugaise” (Palmeira, 1971,p. 151, nota 29). 56 “cada trabalhador se ‘liga’ e somente se ‘liga’ ao proprietário. Como alguns autores brasileiros justamente observaram , a plantation exclui qualquer outro tipo de ‘associação’” (tradução nossa)

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para a arregimentação dessa população para a órbita de influência do grande

proprietário e para a formação de alianças, inclusive com outras parentelas – o que não

exclui as rivalidades e violências costumeiras que serviam inclusive para fomentar

novas alianças e fortalecer a solidariedade interna a esses grupos (cf. Carvalho, 2011 e

2013).

Queiroz interessava-se sobremaneira com a cultura, sociabilidade e organização

dos grupos de sitiantes, aos quais, segundo ela, poucos estudos haviam sido dedicados57.

Movimentos como o cangaço, o messianismo, teriam relevância para Pereira de Queiroz

(1976b) justamente porque lançariam luz não somente sobre os limites da dominação

engendrada pela estrutura de parentela, mas também sobre os limites dos próprios

grupos “rústicos” organizados. Ao fim ao cabo, embora apresentassem aspectos

significativos de distanciamento daquela estrutura, - a exemplo do estabelecimento de

uma solidariedade nova e até de desenvolvimento econômico, no caso dos grupos

messiânicos -, no entanto, não conseguiam romper com a dinâmica de dominação

baseada na parentela (cf. Carvalho, 2010 e Botelho & Carvalho, 2011).

Assim como Queiroz, Palmeira (1971, p. 146) ressaltava o pouco espaço nas

abordagens sociológicas dedicado às relações de parentesco no sistema de plantation.

Relações estas que se constituíam em importante ponto de sustentação para a

configuração do poder do grande proprietário, no qual a dimensão simbólica (“‘rapports

de parenté’ symbolique”) é fundamental no estabelecimento de uma “concurrence entre

travailleurs pour leur ‘reconnaissance’ par la famille propriétaire, ce qui renforce la

dépendance de ceux-là envers ceux-ci, et donc les mécanismes d`appropriation du

57 Embora não participe da polêmica capitalismo-feudalismo, Queiroz, segundo Palmeira, aproximar-se-ia desta última corrente ao dar destaque à economia de agricultores independentes (“sitiantes”) em contraposição a uma economia de exportação, e ao destacar a importância desses grupos relativamente aos assalariados. No entanto, ao mesmo tempo Queiroz se afastaria desta mesma corrente ao ressaltar a autonomia dos sitiantes em relação aos grandes proprietários (Ibidem, p. 52).

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surtravail”58 (Ibidem, p. 147). Dentro de tal sistema, segundo o autor, restaria uma

margem muito estreita a ações políticas oriundas dos trabalhadores, e quando essas

ações ocorriam - como no caso dos Quilombolas -, o potencial contestatório esbarrava

na estrutura de dominação, a qual acabariam por reforçar. Conforme o autor,

ainsi, la lutte de classes y est toute refractée dans les formes de conflit imposées par une telle dominance du politique. Si la lutte de classes n`est pas ‘reconnue’, si elle est masquée par la ‘pseudo-communauté’ d´intérêts de travailleurs et des propriétaires à qui ils sont ‘liés’; si, pour employer le concept de Dahrendorf, il n`y a pas de ‘groupes d`intérêts’ propres à l´objectivation de l`opossition de classes, celle-ci doit se manifester à travers d`autres formes et, tout d´abord, à travers les formes ‘politiques’ reconnues par le système59 (Ibidem, p. 151-152).

Para Palmeira, o conflito ficaria subjugado ao patriarcalismo, entendido como

essa ampla rede de solidariedade social que supunha a “pseudo-comunidade” de

interesses e acobertava as tensões de classe existentes. Análise, portanto, oposta à

clássica interpretação de Gilberto Freyre (2012), o qual identificava no patriarcalismo,

tipo de organização social surgida na relação íntima entre a casa-grande e a senzala,

princípio ordenador da sociedade brasileira e ponto de equilíbrio das tensões dela

decorrentes (Bastos, 2006; Villas Bôas, 2006). Como observa Bastos (2006, p. 189), em

Freyre “a categoria patriarcalismo pretende ‘cobrir’ toda a explicação sobre o social,

como se na sociedade só houvesse um único ator e todos os elementos sociais fossem

subprodutos dele”. Como pode se observar até aqui, o entendimento de patriarcalismo

por Palmeira não se constituía em um fator explicativo da formação da sociedade 58 “concorrência entre trabalhadores pelo reconhecimento da família proprietária, o que reforça a dependência daqueles com estes, e, portanto, os mecanismos de apropriação do sobretrabalho” (tradução nossa) 59 “Assim, a luta de classes é totalmente refretada dentro de formas de conflito impostas por uma tal dominância do político. Se a luta de classes não é ‘reconhecida’, se ela é mascarada pela ‘pseudo-comunidade’ de interesses de trabalhadores e de proprietários a que são ligados; se, para empregar um conceito de Dahrendorf, não existem ‘grupos de interesses’ próprios à objetivação da oposição de classes, esta deve se manifestar através de outras formas e, antes de tudo, através de formas ‘políticas’ reconhecidas pelo sistema” (tradução nossa).

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brasileira e suas mudanças, nem um “traço cultural” que remontaria ao tipo português;

de acordo com o autor, “si notre analyse est correcte, ce ‘patriarcalisme’ s`explique, au

contraire, par un certain jeu de positions”60 (Ibidem, p. 145-146). Nota-se de acordo

com essa afirmação que Palmeira destacava a arregimentação específica de classes e

poder que impediria a manifestação – pelo menos de forma incisiva – das tensões que as

envolvem, o que não é o mesmo que negar o conflito. Mais uma vez a ênfase recaia no

sistema de platantion sendo as posições de grupos e classes internas a ela fundamental

para o entendimento de seus aspectos essenciais. Sua mudança acarretaria – como

parecia ser o caso quando da mobilização de trabalhadores e camponeses a partir dos

anos 1950 – outro “jogo de posições”, sendo o “patriarcalismo” ao menos resignificado.

Mas o que tornaria possível a modificação desse sistema? Se mudanças há, quais seriam

elas e como elas atingiriam as “posições” deste sistema? Quais são os mecanismos

utilizados pelo senhor de engenho para a manutenção da tutela sobre os trabalhadores

rurais?

2.2.3 Plantation e campesinato

Já se fez menção ao fato de que a proposição apresentada por Palmeira não

colocava ênfase explicativa sobre a grande propriedade territorial – ainda que ela seja

fundamental, como destacava o autor - mas no “sistema” que a possibilitava, formada,

principalmente, pela associação dependente ao desenvolvimento do capitalismo, e a

disputa política pelos recursos de imobilização da força de trabalho. No entanto, essa

“estrutura social” implicava em relações específicas entre as classes que a compunham

– embora Palmeira tenha ressalvas quanto à utilização do conceito de classe. Para

melhor explicar essas relações, o autor recorreu aos argumentos contidos no artigo

“Condição de classe e posição de classe” de Pierre Bourdieu (2007 [1966]). Inserindo- 60 “se nossa análise é correta, este ‘patriarcalismo’ se explica, ao contrário, por um certo arranjo de posições” (tradução nossa)

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se num amplo debate sobre a noção de estrutura social, Bourdieu propõe pensar suas

propriedades de maneira independente, estabelecendo a diferença entre “condição” e

“posição” de classe. Como exemplo, observava que a tese de Robert Redfield, propondo

pensar o camponês em sua relação à cidade, seria fundamental para a consolidação de

uma longa tradição de estudos, sobretudo porque revelava a “condição” que define este

estrato, permitindo situar e diferenciá-lo de outras organizações sociais - como as

“primitivas” - ou estratos mais integrados ao mundo urbano - como o proletariado.

Referindo-se às suas pesquisas entre camponeses na Argélia, apontava, contudo, que, se

existe uma “condição” que possibilitaria situar “estruturalmente” o camponês – como o

fez Redfield -, sua “posição”, todavia, variava de acordo com cada sociedade. Segundo

Bourdieu, o que se poderia estipular serem características de uma classe superior de

uma cidade pequena, por exemplo, poderia diferir bastante do mesmo estrato numa

grande cidade, não obstante, as características comuns que possibilitariam a

aproximação. Como observava o autor, “considerar propriedade de posição deve

impedir os sociólogos de transferirem indevidamente esquemas descritivos e

explicativos de uma sociedade à outra, ou a uma outra época da mesma sociedade”

(Ibidem, p. 5)61.

Vimos que, para Palmeira, a manutenção do sistema de plantation estaria

relacionada à sua inserção no capitalismo internacional, o que implicava na separação,

similar ao do modo de produção capitalista, do trabalhador de seus meios de produção -

a terra principalmente. Contudo, as funções de mediação e redistribuição com o modo

de produção capitalista seria outro aspecto importante que definiria a classe proprietária,

61 Sobre a obra de Bourdieu e o contexto que escrevia sua tese de doutoramento na França, Palmeira comentou: “a sociologia que se fazia naquela época estava voltada sobretudo para o estudo de grupos sociais. Bourdieu, que sempre criticou qualquer tipo de substancialismo, tentou fazer uma sociologia que não passasse pela ideia de grupo. Em vez de buscar características substantivas desse ou daquele grupo e multiplicar as tipologias então em voga, o importante era pensar os sistemas de relações que faziam com que alguns desses grupos eventualmente passassem a ter uma existência ‘real’” (Palmeira, 2002, p. 58).

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através da qual a classe não-proprietária entraria em contato com o mercado, o que teria

repercussões diretas na sua “posição” no sistema de plantation. Os camponeses se

encontravam “isolados” já que suas formas de vida não se dinamizavam, dada a

exclusão de acesso ao mercado e o monopólio da terra exercido pelos grandes

proprietários. Nas palavras de Palmeira,

si la classe propriétaire est, au moins virtuellement, propriétaire d`autres moyens de production, et peut par conséquent, s`offrir d`autres alternatives économiques, il en va autrement de la classe des travailleurs ruraux, dont la dépendance à l´égard de la terre se manifeste chaque fois que, par l´effet de la conjoncture de marche, les propriétés rurales accetuent leurs activités économiques de ‘subsistance’ 62(Palmeira, 1971, p. 149-150).

Ao se deterem nestes momentos em que a atividade de subsistência ganha

relevância na produção da plantation, os estudiosos da questão agrária, segundo o

antropólogo, acabariam por reificar a definição de camponês, supondo decisiva a posse

dos meios de produção por esse grupo. Essa perspectiva privilegiaria somente a

“condição de classe” do campesinato, ou seja, “les caractéristiques qui relèvent

immédiatement de sa pratique de classe dans la prodcution”63 (Ibidem, p. 150). No

entanto, conforme Palmeira, se levado em conta as “posições de classe” do sistema de

plantation, seria possível desreificar a aplicação do conceito de campesinato no Brasil,

posto que, embora o trabalhador tivesse a posse dos instrumentos de trabalho, não teria

a do principal meio de produção que era a terra. Esse aspecto era fundamental para

afastar o grave equívoco de que a destituição do lote de terra cedido no interior da

plantation levaria à proletarização do camponês: não se poderia retirar deste agente

aquilo que de fato ele não possuía.

62 “se a classe proprietária é, ao menos virtualmente, proprietária de outros meios de produção, e pode, por consequência, oferecer-se a outras alternativas econômicas, ocorre de outro modo com a classe dos trabalhadores rurais, para os quais a dependência em relação à terra se manifesta cada vez que, por efeito da conjuntura de mercado, os proprietários rurais acentuam suas atividades econômicas de ‘subsistência’” (tradução nossa) 63 “as características que decorrem imediatamente de sua prática de classe na produção” (tradução nossa)

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Entretanto, na linha argumentativa de Palmeira isso não significaria endossar a

tese capitalista, segundo a qual o camponês no Brasil seria uma espécie de operário

disfarçado. Para o autor, essas circunstâncias guardariam suas particularidades,

relativamente aos casos clássicos de expropriação dos trabalhadores, porque se

vinculariam ao próprio funcionamento do “sistema de plantation” e à posição da classe

proprietária em seu interior. Sendo assim, os camponeses nesse sistema não teriam a

propriedade efetiva da terra, mas dos instrumentos de trabalho; o que não os tornaria

proletários, já que o acesso ao mercado se dá senão indiretamente e por diversos

mecanismos de dominação extra-econômica. Portanto, nem a tese feudalista, nem a tese

capitalista sobre a questão agrária no Brasil estariam atentas a esse “paradoxo”. Nas

palavras do autor,

à s`en tenir au langage de ces auteurs-là, on serait obligé de se rapporter à l`opposition de classe propre aux sociétés basées sur le ‘système de plantation’ en les désignant comme ‘serfs’ sans seigneurs et ‘capitalistes’ sans ouvriers. Or, la solution à un tel paradoxe nous est indiquée par une approche ‘positionnelle’ qui, tout en nous permettant de saisir le ‘système’ complet des rapports de classes, nous montre que nous trouvons dans cette ‘structure de classe’ un plus grand poids fonctionnel de la classe dominante64 (Ibidem, p. 150).

Esse “peso funcional” da classe dominante para alguns analistas, segundo

Palmeira, poderia parecer ambíguo, já que sua posição de mediadora interna a dotaria de

lides conservadoras, ao mesmo tempo que sua posição de mediadora com o mercado

externo a obrigaria a adequar-se às exigências do mercado e a se orientar para a

mudança. No polo oposto, a classe dominada, excluída do mercado, confinar-se-ia ao

“tradicionalismo”. Mas como ressalta o autor, “cette tendance ne s´inverse qu`à partir

64 “restringindo-se à linguagem desses autores, seríamos obrigados a nos remetermos à oposição de classe própria às sociedades baseadas sobre o ‘sistema de plantation’, os designando como ‘servos’ sem senhores e ‘capitalistas’ sem trabalhadores. Ora, a solução a um tal paradoxo nos é indicada por uma perspectiva ‘posicional’ que, permitindo-nos de tomar o ‘sistema’ completo de relações de classes, mostra-nos que descobrimos nesta ‘estrutura de classe’ um grande peso funcional da classe dominante” (tradução nossa).

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du moment où l`isolement des travailleurs ruraux est rompu, c`est-à-dire, à partir du

moment où ce “système de positions” que constitue la “structure de classes” s`est dans

une certaine mesure transformé”65 (Ibidem, p.151).

E a transformação das posições de classe poderia ocorrer porque a mesma

flexibilidade que permitia a adaptação e manutenção do “sistema de plantation”,

sintetizadas na dupla articulação das classes dominantes, seria também ela, ao torná-la

tão dependente às demandas externas e às crises do capitalismo, que faria com que o

sistema ficasse suscetível a mudanças. Muito embora essas crises não colocassem em

xeque todo o “sistema da plantation”, poderiam ter o importante efeito de alterar as

“posições” dos grupos e classes internos a ela. No que concerne à classe dominada, a

quebra do “isolamento”, alteraria o suposto “tradicionalismo” camponês que parecia

inerente à sua condição, para inseri-lo em outra “posição”, o que implicaria, segundo o

autor, “tout un réaménagement de la ‘structure de classes’ et donc la possibilité de

nouvelles formes d`‘association’ que celles supposées par un tel ‘isolement’”66 (Ibidem,

p. 153-4).

Quando falava em quebra de isolamento, Palmeira se referia aos acontecimentos

que a partir dos anos 1950 agitaram o mundo rural brasileiro, nordestino sobretudo, com

o surgimento das Ligas Camponesas e sindicatos rurais. Aliás, como vimos, eram essas

organizações que tinham, a princípio, despertado o interesse do autor de prosseguir seus

estudos na França. Ao buscar uma “terceira posição” diante do debate sobre a questão

agrária na esquerda brasileira Palmeira recolocou os pontos principais que o norteavam

65 “Esta tendência somente se inverte a partir do momento em que o isolamento dos trabalhadores rurais é rompido, ou seja, a partir do momento em que este ‘sistema de posições’, que constitui a ‘estrutura de classes’ é, dentro de determinados limites, transformada” (tradução nossa). 66 “todo um reordenamento da ‘estrutura de classes’ e, portanto, a possibilidade de novas formas de ‘associação’ que aquelas supostas por tal ‘isolamento’” (tradução nossa)

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de forma a lançar luz nas transformações da plantation. Segundo relato do autor em seu

memorial para professor titular do PPGAS,

a construção daquela “hipótese plausível” - a plantation como modo de produção- elaborada na própria linguagem da teoria de referência dos autores envolvidos no debate “feudalismo ou capitalismo”, mesmo daqueles que se contrapunham a suas formulações substantivas - o materialismo histórico - me permitia compatibilizar teoricamente o que era discernido empiricamente pelos autores mas cuja coexistência consideravam espúria (vinculação ao mercado x trabalho não livre; vinculação ao mercado x caráter semi-autárcico dos grandes domínios x isolamento dos trabalhadores; violência nas relações proprietários/trabalhadores x paternalismo) e incorporar conceitualmente tudo aquilo que, por não caber no seus escaninhos classificatórios, era rejeitado como “resíduos”, “sobrevivências”, “restos” ou similares (os exemplos mais frequentes sendo os barracões de engenho, os vales de barracão, a condição e o cambão), fantasmas nas construções dos cientistas sociais, mas presenças muito reais no cotidiano das populações das áreas de plantation, como eu teria oportunidade de constatar algum tempo depois (Palmeira, 1994, p. 7).

As possibilidades abertas pela revisão teórica o debate permitiriam uma primeira

“entrada” nas pesquisas de campo na Zona da Mata de Pernambuco, além de abrirem

um variado leque de situações de pesquisa a serem investigados.

2.3 Ideologia e campesinato

A partir das décadas de 1930 e 1940, a plantation nordestina passa por

modificações significativas ao concentrar e incorporar suas inovações produtivas na

usina. Transformações essas decisivas para a reconfiguração da estrutura de classes e o

reajuste das “posições sociais”. O aumento da densidade populacional das cidades

regionais era indicativo de um acentuado processo de proletarização dos trabalhadores,

ocasionado pelo paulatino desgaste de mecanismos de dominação e imobilização de

mão de obra utilizados internamente à plantation. Assistia-se ao enfraquecimento de um

desses principais mecanismos: a morada, que, grosso modo, consistia na cessão de casa

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e um pedaço de terra ao trabalhador em troca de serviços prestados na lavoura

canavieira.

No entanto, outro fenômeno chamaria a atenção de Palmeira (2013):

concomitante àquele processo de expulsão da plantation, verificava-se o aumento de

“feiras”, compostas por trabalhadores e camponeses. As “feiras” sinalizavam que a

dominação baseada na mediação-redistribuição da produção, constitutivas do “sistema

de plantation”, passava por significativas inflexões, ao dar margem para que houvesse

maior integração dos produtos dos trabalhadores às redes de comercialização. Dessa

forma, ao lado dos trabalhadores residentes na cidade – muitos deles também com

pedaço de terra para plantar em outras localidades – assistia-se ao surgimento de um

“neo-campesinato”, tendência essa que punha em xeque vaticínios sobre a inexorável

proletarização do campesinato da plantation.

Contudo, para o entendimento das transformações da plantation nordestina, seria

preciso identificar não só o “jogo de posições”, como o fizera Palmeira, mas também

como cada grupo ou classe social identificava-se nele, como pensavam e justificavam a

própria ação. Essa fora outra frente de pesquisa aberta pelo grupo de antropólogos aqui

destacado, e particularmente Lygia Sigaud a ela se dedicara inicialmente, resgatand a

literatura antropológica clássica na tarefa de analisar o ponto de vista dos agentes e os

modelos em que se baseavam. Os trabalhos de Sigaud foram decisivos para

consolidação desse tipo de abordagem entre os grupos camponeses, que como

salientado pela própria autora, ainda se constituíam como objeto de estudo reificado por

teorias cujos “investimentos empíricos são feitos no sentido de dar conteúdo ao que está

sendo dito” (Sigaud, 1992, p. 36). Como afirma Garcia Jr. (mimeo, p. 12), Sigaud “não

foi a única a utilizar esse procedimento metodológico em estudos rurais, e logo ele se

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generalizaria, mesmo entre sociólogos; mas verifique-se as datas de aprovação da

dissertação de mestrado e seu pioneirismo será facilmente constatado”.

Junto com Moacir Palmeira, Sigaud realizou no final do ano de 1969, ainda no

âmbito do Projeto “Estudo Comparativo”, as primeiras pesquisas de campo que

subsidiariam as formulações de questões de pesquisa para os seus trabalhos de mestrado

intitulado “A nação dos homens: um estudo regional da ideologia”, defendida em 1971

sob a orientação de David Maybury-Lewis no PPGSA/MN, e doutorado em 1977,

intitulado “Os clandestinos e os direitos” sob a orientação de Ruth Cardoso na

Universidade de São Paulo (USP)67. A região escolhida fora a da Zona da Mata de

Pernambuco, conhecida pela grande mobilização camponesa desde os anos 1950 e que,

apesar, da ditadura, permanecia como foco de agitação sindical. Segundo relato

posterior da autora,

personally I had an enormous curiosity about the rural workers at the forefront of these social protests. Little or nothing was known about them. In sociological and historical studies, they figured as a generic and abstract category, while in the literature describing the outbreak of the large-scale confrontations, they appeared as a ‘mass movement’. Like any ‘mass’, they were amorphous, faceless, nameless, disembodied. Attempting to reverse this tendency, my first research in the region focused on the categories through which rural plantation workers perceived the social world68 (Sigaud, 2008, p. 73).

Além de escapar das armadilhas da relação entre teoria e empiria impostas pelo

debate anterior sobre a questão agrária, a abordagem antropológica, segundo Sigaud,

67 À época, o PPGAS não contava com doutorado. A primeira tese será a de Afrânio Garcia Jr, “O Sul: caminho do roçado”, defendida em 1983, orientada por Moacir Palmeira, cuja pesquisa se desenvolvera no âmbito do Projeto Emprego. 68 “pessoalmente, eu tinha uma enorme curiosidade sobre os trabalhadores rurais na linha de frente dos movimentos sociais. Pouco ou nada se sabia sobre eles. Nos estudos sociológicos e históricos, eles figuravam como uma categoria genérica e abstrata, enquanto que na literatura que descrevia a eclosão de confrontos em larga escala, eles apareciam como um “movimento de massa’. Como qualquer ‘massa’, eles eram amorfos, sem rosto, sem nome, desencarnados. Tentando reverter essa tendência, minha primeira pesquisa na região teve como foco as categorias através das quais os trabalhadores rurais percebiam o mundo social” (tradução nossa)

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poderia ainda introduzir novos rendimentos heurísticos nos estudos camponeses, indo

além do economicismo dominante e “toma[ando] as formulações de um grupo social

dentro de uma sociedade ‘complexa’”, contrapondo-se, portanto, ao “desprezo de

muitos estudos sociológicos pela maneira como os agentes sociais concebem suas

experiências” (Sigaud, 1973, p. 105). A ideologia poderia se constituir numa entrada de

pesquisa proveitosa para o entendimento das transformações ocorridas na plantation e

das disputas políticas que a envolviam, principalmente, como afirmava a antropóloga,

ao se investigar “um grupo social que por sua posição relativa na estrutura de classes

(classe dominada) não possuísse meios ou instrumentos de força para impor suas

representações às demais classes” (Ibidem, p. 105).

Notara a autora que, após a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural

(1963) e o surgimento dos sindicatos rurais, os senhores de engenho adotaram

estratégias as mais diversas de forçar a expulsão dos moradores de suas terras,

buscando fugir de qualquer tipo de responsabilidade legal. A essa expulsão se seguiu o

inchaço das pequenas cidades, a que deu origem a uma categoria denominada de

trabalhadores de ponta de rua, os quais, dependendo de sua situação legal, eram

denominados de fichados – aqueles que tinham a carteira de trabalho assinada – ou

clandestinos – aqueles que não tinham a carteira assinada e que, portanto, não tinham

seus direitos assegurados por lei.

Essas transformações da plantation e as novas condições em que se encontravam

os trabalhadores estudados por Sigaud, poderiam causar à primeira vista a impressão de

um processo inexorável de proletarização do campesinato. No entanto, a apreensão das

categorias nativas, ou, na expressão da autora, “a partir dos trabalhadores” (Idem,

1979, p. 15, grifos no original), permitiu a Sigaud compreender como essas novas

relações não estavam desatreladas das representações da morada. O enfraquecimento

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desta, aos olhos dos trabalhadores, tinha um duplo significado: representava não

somente o fim da sujeição, mas a impossibilidade de acesso à terra e de reprodução

familiar, o que, nas novas condições de vida na cidade, ganharia ares de nostalgia. Não

atentar para as novas condições sociais e as representações que delas se fazem os

trabalhadores seria, para Sigaud, deter-se somente num aspecto daquelas mudanças,

também significativo, mas circunscrito à sua condição presente de proletário. Em sua

tese de doutorado, a autora assinalava que foi distinta a sua preocupação,

na medida em que se preferiu compreender a situação dos trabalhadores a partir do próprio processo que os constituíra enquanto proletários rurais nas cidades, esse processo sendo tomado não em suas determinações mais gerais – a penetração do capitalismo no campo – mas apreendido em sua dimensão interna. A ideia subjacente à esta opção era de que o trabalhador que hoje vive nas cidades da Zona da Mata de Pernambuco, mais do que um trabalhador sem vínculo empregatício, aliciado por empreiteiro e transportado por caminhão é um ex-morador, assim como muitos ‘bóias-frias’ são ex-colonos das fazendas de café, e que esse fato era constitutivo de sua nova condição (Ibidem, p. 241, grifos no original).

Essa “nova condição” de trabalhador de ponta de rua, portanto, não extinguia

aquela de ex-morador, o que se tornava fundamental para o entendimento das

representações do passado e do presente. Segundo Sigaud, o Estatuto do Trabalhador

Rural (1963) se tornara, na ideologia da população camponesa e dos trabalhadores

rurais, um marcador temporal das transformações ocorridas, dotando de inteligibilidade

aos próprios agentes aquele sistema de posições. Para os trabalhadores, os direitos

sempre existiram, mas foram somente aplicados com o Governo de Miguel Arraes

(1962-1964), figura de destaque na política de esquerda em Pernambuco e responsável

pela implementação de várias medidas em favor dos trabalhadores rurais, como por

exemplo, ao forçar usineiros e donos de engenho da Zona da Mata do Estado a

estenderem o pagamento do salário mínimo aos trabalhadores rurais, e ao apoiar a

criação de sindicatos, associações comunitárias e ligas camponesas. A representação do

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direito afigurou-se ao trabalhador como uma quebra da antiga relação entre ele e o

senhor de engenho, já que, a partir de então, entre os dois se interpôs um terceiro

elemento, os direitos, consubstanciada na figura de Arraes.

Segundo a antropóloga, a representação dessas garantias legais variava de

acordo com as posições sociais ocupadas pelos trabalhadores. Assim, entre os

trabalhadores fichados, os direitos seriam vistos como benéficos e representariam a

instauração de uma nova ordem, na qual a relação de dominação ao senhor seria

percebida como prejudicial à liberdade (termo que, entre os trabalhadores, denotaria a

possibilidade de trocar de morada em tempos em que a disponibilidade de terras nos

engenhos e a legislação trabalhista não impunham limites às concessões dadas pelo

senhor). Na maior parte das vezes, contudo, o trabalhador encarava as transformações

advindas com os direitos de forma negativa, posto que liquidava com o complexo

morada/sítio. O acesso à terra, como um benefício dado ao trabalhador, era por ele

prezado como sinal de prestígio, e, em relação a outras atividades não realizadas na terra

– como por exemplo no comércio e na usina -, era a única atividade digna de ser

considerada trabalho.

Essa “idealização do passado”, de acordo com Sigaud, não significaria

necessariamente uma atitude resignada, já que, na ideologia do trabalhador rural,

operar-se-ia uma tentativa de “conciliação” entre os tempos, juntando-se o que era

apreciado nos dois momentos, ou seja, o salário e os direitos no presente, e a morada

no passado69. Por meio dessa análise interna aos códigos ideológicos do campesinato,

Sigaud contribuiu para relativizar posições que circunscreviam a condição proletária do

69 Não deixa de ser significativo, como observa Garcia Jr., que “o que Lygia Sigaud descreveu em sua primeira monografia como utopia, o desejo de conservar as concessões tradicionais (casa de morada, roçado, acesso à lenha e água da propriedade etc.), juntamente com o respeito ao salário mínimo e vantagens adicionais (repouso remunerado, férias, décimo terceiro, salário, indenização no momento da despedida etc.), materializou-se com os contratos coletivos de trabalho assegurados mediante greve dos canavieiros”, a partir de 1979 (Garcia Jr., mimeo, p. 14-15).

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trabalhador rural a que qualificou como “fetichismo do salário”, tomando “o cuidado de

não tomar nem o interesse pela terra, nem o interesse pelos direitos como manifestações

conflitivas de uma tendência ora camponesa, ora obreirista” (Ibidem, p. 245). E,

sobretudo, lançou luz às representações, ainda que por vezes contraditórias, de que

fazem os trabalhadores de suas ações – passadas e presentes – compreendendo a

margem de manobra e legitimação envolvidas nas relações de dominação.

A “abordagem antropológica” também seria recurso importante de análise dos

dados recolhidos nas primeiras pesquisas de campo de Moacir Palmeira na Zona da

Mata de Pernambuco, e agrupados em artigo intitulado “Casa e trabalho: nota sobre as

relações sociais na plantation tradicional” (1977). Neste trabalho, o autor esmiúça a

realidade do camponês através da articulação analítica entre as próprias concepções

deste agente e o sistema social mais amplo que o cerca. Segundo autor, à primeira vista

o valor positivo atribuído à morada pelos trabalhadores pareciam dissonantes com as

relações de dominação estabelecidas com os proprietários de terra, sugerindo certa

“ingenuidade” por parte desses trabalhadores. Mas essa aparente dissonância, como

observava o autor, teria implicações em sua prática cotidiana, e “uma reflexão, por

superficial que seja, mostra, entretanto, que, se há ingenuidade, ela é do investigador,

mais do que do morador” (Palmeira, 1977a, p.103). Com Sigaud, Palmeira constatou

que a “idealização” do passado por parte dos trabalhadores não significava apenas “um

sinal positivo do que já foi”, mas “trata-se como que da construção de um tipo ideal

‘selvagem’, em que as regras da coexistência social nos velhos engenhos são dadas em

‘estado puro’” (Ibidem, p. 103-104). Conforme veremos a seguir, para Palmeira a

remissão aos fatos do passado, notadamente a morada, teria implicações diretas na

avaliação pelo trabalhador dos eventos presentes.

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105

Conforme o antropólogo, se na cidade morar tem conotação de ‘habitar’, para os

trabalhadores da plantation morar significa, sobretudo, estabelecer relações com o

proprietário de terras, com o qual se entretinha uma série de trocas. Assim, ao

trabalhador poderia ser concedido uma casa, possibilitando o sustento de sua família

(morador de condição) ou junto à casa, poderia ser cedido o usufruto de um pedaço de

terra, o sítio (morador-foreiro). Em troca, em ambos os casos, o proprietário de terras

teria assegurado trabalho regular no engenho. A concessão do sítio, no entanto,

representaria a maior das gratificações dadas pelo proprietário, além de ser um fator de

diferenciação interna aos trabalhadores da plantation, sobretudo, em relação ao

Corumbá - pequeno agricultor da zona da mata de Pernambuco que busca trabalho no

engenho durante o verão - e o asilado - corumba que não volta ao sertão, onde reside

sua família.

No entanto, a “autonomia” daqueles que tinham um pedaço de terra no interior

da plantation seria relativizada principalmente nos momentos em que o senhor dispunha

livremente da produção do sítio, seja sob a forma de prioridade na compra de

determinados produtos, seja cobrando dívidas adquiridas. Retomando ponto já

trabalhado em sua tese, Palmeira afirmava que “o que importa é que tais produtos caem,

total ou parcialmente, dentro do ciclo da retribuição permanente do morador ao

proprietário por uma dívida eterna e eternamente renovada por essa mesma retribuição”

(Ibidem, p. 107, grifos no original).

Aos olhos dos trabalhadores no presente, a posição do morador com sítio seria

aquela que melhor conservaria, dada a permissão de trabalho na terra, a imagem de

autonomia valorizada por eles, servindo a morada de contraste com as atuais condições

de trabalho no engenho. A valorização da morada ocorreria em meio às novas e

diversas formas de organização do trabalho: assim, a dominação e a situação de

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exploração apareceriam com maior nitidez aos trabalhadores quando sujeitos às ordens

do empreiteiro - agenciador de mão de obra externa às propriedades - e do cabo -

funcionário designado pelo proprietário para a fiscalização dos serviços realizados na

lavoura; ou ainda quando os trabalhadores se viam obrigados a trabalhar por diária –

remuneração fixa por dia e por tempo – ou por tarefa – área de três mil metros

quadrados a ser trabalhada durante uma semana (ambas em contraste com as melhores

condições do trabalho por conta, área de dez metros por dez que equivalia a uma

jornada de trabalho legal).

A nova situação, segundo Palmeira, não poderia deixar de ser vista pelos

trabalhadores como significativamente pior que a anterior (sintetizada pelas relações da

morada). Isso porque o acesso à terra e a regulação do trabalho pelo próprio

trabalhador, continuariam sendo aspectos centrais daquilo que definiam como liberdade

em contraposição à sujeição. Mas como entender a recorrência dessa representação da

morada nos discursos dos trabalhadores, haja vista que as condições de trabalho haviam

mudado e o acesso à terra estava cada vez mais restrito pelos senhores?

Para alguns analistas, segundo Palmeira, o processo de trabalho na lavoura –

plantio, limpa e corte da cana de açúcar – permanecia essencialmente sendo ele

executado por um morador ou por um trabalhador de fora, já que estritamente

comandados pelos senhores proprietários e seus prepostos. Dessa perspectiva, apesar

das transformações, os trabalhadores se manteriam alienados do processo efetivo de

produção. No entanto, aponta Palmeira, explicar a permanência daquela representação

da morada como uma espécie de alienação seria negligenciar o fato de que “os

trabalhadores estabelecem cortes significativos na passagem de uma a outra dessas

formas de remuneração e organização” (Ibidem, p. 108).

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O mesmo ocorria quando, para explicar a permanência da morada no discurso

dos trabalhadores em certas situações, alguns analistas estabeleciam a propriedade dos

meios de produção por parte dos trabalhadores como fator fundamental: de acordo com

Palmeira, essa questão poderia gerar equívocos sérios se não considerada as

especificidades das relações envolvidas na morada. Segundo o debate corrente à época

sobre a questão agrária, a posse efetiva dos meios de produção, e não a sua propriedade

jurídica, indicariam para alguns a existência de uma classe camponesa e de uma

formação social feudalista; para outros, no entanto, não existiria uma classe camponesa

no Brasil, mas sim de empresários rurais, proprietários dos meios de produção, em

contraposição a uma classe de trabalhadores agrícolas, submetidos ao mesmo tipo de

dominação que o proletariado urbano. Segundo Palmeira, essa discussão não fazia

sentido se tomada a especificidade da dominação do trabalho à morada. Por meio dela,

segundo o autor, a apropriação do trabalho por inúmeras formas de “contrato” tácito

e/ou consentido entre camponês/trabalhador e proprietário não se fundamentaria

essencialmente na propriedade dos meios de produção, já que os instrumentos de

trabalho utilizados no roçado e no sítio também eram utilizados no trabalho coletivo da

cana. Não que, de acordo com o autor, a propriedade dos instrumentos de trabalho fosse

tratada com indiferença por esses agentes, mas é que na própria dinâmica da plantation,

o trabalho seria visto, em suas variadas formas, como um favor do proprietário à qual o

trabalhador deveria retribuir, e, portanto, não faria sentido separar os instrumentos de

trabalho para o sítio ou roça de subsistência daqueles utilizados na lavoura canavieira.

Retomando, portanto, o ponto em questão do debate sobre a questão agrária, Palmeira

afirmava que não seria possível assemelhar esse trabalhador nem ao camponês – no

sentido dado pela corrente feudalista, de um agricultor de subsistência, cuja parte da

produção serviria de tributo ao proprietário de terras -, nem ao proletário – vendedor de

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sua força de trabalho, ainda que sob formas disfarçadas: o trabalhador da plantation

participaria de ambas as formas de organização do trabalho – submetidas à posição

particular que ocuparia o proprietário de terras nesse sistema -, ficando, assim,

encobertas as relações de “oposição inconciliável entre duas formas de trabalho

inconciliáveis e que só uma forma específica de dominação é capaz de consorciar”

(Ibidem, p. 113).

Se para Palmeira a morada continuava referência entre os trabalhadores como

ideal de trabalho era porque não se poderia pensar num processo de expropriação, tal

como ocorrera em outros casos históricos, referindo-se estritamente à separação do

trabalhador de seus instrumentos, mas, diferentemente, deveria ser entendido como

expropriação do trabalhador de suas “condições de produção” – categoria segundo o

autor já contida na obra de Marx. Nas palavras de Palmeira, as

“condições de produção” significam uma forma de dominação específica, sofrida e interiorizada pelos trabalhadores, em nome da qual – mas não necessariamente pela qual – denunciam a ilegitimidade das formas novas – mas não necessariamente mais suaves – de submissão aos patrões que, em muitos casos, são os de sempre (Ibidem, p. 113).

Passado por um longo processo de socialização pelas regras da morada, o

trabalhador da plantation, uma vez expulso ou migrado para as cidades, continuaria, a

operar, em determinadas circunstancias – quando comparada sua situação presente, de

penúria e desemprego, ao passado - a operar com os mesmos referenciais. No entanto,

esses mesmos referenciais teriam o duplo efeito de “idealizar” as formas de trabalho

pretérito, muitas vezes acobertando a dominação que a envolvia, e de legitimar

reivindicações contra as novas formas de trabalho na plantation e na cidade.

Com esses estudos e a tese de doutoramento de Moacir formou-se uma espécie

de “estoque de conhecimento” que serviria de fundamento para as formulações contidas

no Projeto Emprego. Dessa forma, já é possível traçar as linhas que ligam essas

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formulações à proposta metodológica contida no Projeto Emprego. Questionando a

modernização da plantation como um processo unilateral de proletarização do

campesinato, os pesquisadores, através da perspectiva antropológica, descortinaram os

meandros das relações que envolviam trabalhadores, camponeses e grandes

proprietários70. No próximo capítulo veremos como esses aportes metodológicos foram

discutidos internamente pelo grupo, algo fundamental para o empreendimento coletivo

do Projeto.

70 A perspectiva antropológica se abriria também para discussões externas com outros grupos: assim, por exemplo, os resultados de pesquisa da dissertação de mestrado José Sergio Leite Lopes, “O vapor do Diabo” (1975), realizado entre trabalhadores industriais da plantation e orientado por Moacir Palmeira, foram apresentados em reunião no CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), no mesmo ano de 1975. Segundo Lopes, “fui arguido por Gianotti que reclamava de minhas ‘diabruras da fenomenologia’; Paul Singer, Otávio Ianni e Chico de Oliveira intervieram a favor de meu trabalho com simpatia” (Lopes, 2011a, p. 20). A discussões surgidas nessa ocasião serviriam, ainda que não explicitamente, como mote para a escrita do Prefácio de Moacir Palmeira à dissertação quando da sua publicação em livro, o que, dada a ênfase na importância da pesquisa etnográfica o torna, segundo Lopes, uma espécie de “manifesto de investigação” (2011b, p. 28). Isso é demonstrando no texto do prefácio, quando Moacir ratifica a postura metodológica das pesquisas encaminhadas pelo grupo que coordenava, afirmando que O Vapor do Diabo se afasta das monografias antropológicas mais convencionais por dispensar a contextualização histórica extensa e “conclusões gerais” que costumeiramente ficavam à parte dos dados recolhidos. De acordo com Palmeira (1978, p. XII), a dissertação de Leite Lopes seria uma ótima realização de “uma teoria investida nos ‘fatos’”.

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Capítulo 3

Etnografia e comunidade camponesa

“Pois o que é cognoscível não é apenas uma função dos objetos – do que há para ser conhecido -; é também uma função dos sujeitos observadores – do que é desejado e se precisa conhecer. E o que temos de ver então, como sempre, na literatura rural, não é apenas a realidade da comunidade rural: é também a posição do observador nela e em relação a ela; uma posição que faz parte da comunidade que se quer conhecer” (Williams, Raymond. O campo e a cidade) “La vie paysanne n’a plus rien d’autonome. Elle ne peut plus évoluer selon ses lois distinctes; elle se relie de multiples façons à l’économie générale, à la vie nationale, à la vie urbaine, à la technologie moderne... Cependant, l’étude de cette riche et complexe réalité se trouve, dans le passé et le présent, sans cesse devant l’existence ou la prolongation d’une formation originale: la ‘communauté paysanne’” (Lefebvre, Henri, “La communauté paysanne et ses problèmes historicosociologiques”) “But communities, like the peasant sector in toto, are not homogeneous, and those within them differ in status, wealth and otherwise. It has already been suggested that while peasants are, from one point of view, the underside of a society, from another they include both exploiters and exploited, and cannot be fully understood, if we take for granted that they are economically (and culturally) homogeneous” (Mintz, Sidney. “A note on the definition of peasantries”)

No que concerne aos estudos sobre campesinato, a relação entre teoria e empiria

sempre fora motivo de discussão, sobretudo, porque as tentativas de visadas teóricas

mais gerais costumavam vir acompanhadas de ressalvas quanto aos aspectos específicos

daquele grupo social. Essas “especificidades” eram atribuídas à forma organizacional

camponesa, hábitos e atitudes, cuja lógica não estava imune às influências da

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“sociedade global” – termo vago, mas de uso corrente. Algumas correntes da sociologia

rural, sobretudo norte-americanas, viam o campesinato como uma espécie de resíduo a

ser superado pela modernização da sociedade, perspectiva evolucionista que tivera

reforço de leituras enviesadas do marxismo. Por outro lado, a antropologia do

campesinato, crítica a essa vertente, ao atentar para as especificidades da comunidade

camponesa tomando-a como um todo orgânico, muitas vezes, e de maneira subreptícia,

reforçava as premissas teóricas que pretendia criticar.

As formas possíveis de ligar o “particular” e o “geral”, a “comunidade

camponesa” aos processos societários mais amplos, tornaram-se questão metodológica

fundamental para se escapar dessas armadilhas. Discutia-se, entre os sociólogos, a

forma mais adequada de se selecionar amostras “representativas” de uma população,

enquanto os antropólogos, mais afeitos às monografias locais, ficaram obsedados com

os critérios de escolha das “unidades elementares”, aquelas que estariam na base de

determinada organização social. De todo modo, a delimitação de uma unidade a ser

estudada – muitas vezes estabelecida segundo critérios geográficos, “vila”,

“comunidade”, o “canton” francês, “coletividades rurais” – poderia ser contestada por

uma análise contrária que levasse em conta o fluxo constante de indivíduos e grupos

para além da unidade circunscrita (Champagne, 2002a e 2002b; Vincent, 1987).

Não obstante a definição da unidade a ser analisada, muitos estudos sobre

campesinato seguiram os preceitos metodológicos dos então chamados “estudos de

comunidade”. Grosso modo, estes estudos refletiam a transposição de técnicas de

investigação de sociedades primitivas para comunidade rurais situadas em sociedades

complexas. Isso seria possível, pois haveria uma homologia entre as estruturas sociais,

ambas marcadas pela homogeneidade e o isolamento. Características que tornariam

possível o levantamento empírico exaustivo de uma dada comunidade com o intuito de

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se alcançar uma apreensão unitária da realidade social estudada (Chiva, 1992;

Goldwasser, 1974; Oliveira e Maio, 2011).

Para o grupo do Projeto Emprego - e de forma geral para outros pesquisadores,

sobretudo aqueles dedicados à questão camponesa, inseridos no contexto intelectual dos

anos 1970 -, os estudos de comunidade - se podemos tomá-los como um conjunto

homogêneo – configuravam uma tradição a ser revista. Segundo o texto do Projeto, a

análise das “situações-tipo” “partirá do estudo de categorias econômicas relevantes para

cada uma das situações, a partir de estudo etnográfico em comunidades onde aquelas

situações se apresentem de forma mais típica” (Palmeira et alli, 1976, p. 205). Mas o

que o grupo de antropólogos definia como “estudo etnográfico em comunidades” diferia

teórico e metodologicamente da tradição dos “estudos de comunidade”.

Neste capítulo veremos como as discussões que ocorriam no Brasil e fora dele

sobre a “comunidade camponesa” encontravam ressonância nos métodos utilizados pelo

grupo de antropólogos para as análises das “situações-tipo”. Na primeira parte,

abordaremos formulações fundamentais nas discussões sobre a comunidade camponesa

que, em seus respectivos contextos, buscavam contornar certas armadilhas teóricas. Em

seguida, ressaltaremos como essas questões são abordadas nas discussões do grupo de

antropólogos do Projeto Emprego. Se a seleção das diversas “situações-tipo”, como

vimos, obedeceu também a critérios muito gerais para atender às agências

financiadoras, era preciso tornar aquele recurso operacional nas pesquisas, e elas não

seguiriam o modelo estrito dos estudos de comunidade. Por fim, recuperaremos alguns

dos trabalhos desenvolvidos no âmbito do Projeto Emprego como representativos das

discussões sobre “comunidade camponesa” realizadas pelo grupo.

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3.1 Comunidade: teoria e método

Nos anos 1950 e 1960 a antropologia se viu rodeada com questões atinentes ao

que se considerava seu objeto primordial, as sociedades primitivas. A sensação, tão bem

expressa por Levi-Strauss e compartilhada por grande parte de seus colegas de ofício,

era de que o mundo parecia diminuto, tendo o contato entre diferentes povos exaurido o

que outrora estava impregnado de mistério e exotismo. Transformações que a

antropologia atinava com o receio de tornar-se uma ciência sem objeto. No entanto,

salientava o autor, “como resultado imprevisto de nossos empreendimentos e de nossa

conduta, nós e eles fazemos parte de um mesmo mundo, e, dentro em pouco, da mesma

civilização”, de tal modo que os “ditos ‘primitivos’ ou ‘arcaicos’ não desaparecem do

nada. Antes se dissolvem, incorporando-se, de maneira mais ou menos rápida, à

civilização que os cerca” (Lévi-Strauss, 1962, p. 20).

A impossibilidade de se pensar as culturas em seu isolamento, num mundo cada

vez mais integrado, fizeram destes povos atores políticos da civilização que passaram a

então pertencer. Percepção que se aguçou após a II Guerra Mundial com a entrada em

cena de movimentos camponeses ao redor do mundo, principalmente em países

subdesenvolvidos na Ásia, África e América Latina, em guerras e revoluções, a

exemplo da China,Vietnã e Argélia. Como afirmava Shanin, “in this unified world,

peasants represent not simply the numerical majority of mankind, but also one of the

major social and political forces which are shaping the future of the world” (Shanin,

1972b, p. XV).

Não tardou para que, generalizada a sensação de “crise” no interior da

antropologia, o camponês fosse erigido como objeto par excellence da disciplina, algo

que poder ser atestado pela profusão de trabalhos e coletâneas sobre o assunto surgidos

nas décadas de 1960 e 1970 (cf. Seyferth, 2011, p. 396). Os estudos camponeses

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surgiram atrelados ao que era até então considerado a unidade básica de sua vida social,

a “comunidade”. Contribuiu para essa vinculação a longa tradição, pelo menos desde as

décadas de 1930 e 1940, dos chamados “estudos de comunidade”, que tiveram, no pós-

Segunda Guerra Mundial, sobretudo nos Estados Unidos, sua importância resignificada

a partir dos “estudos de área” (“area studies”). À reboque da crescente importância que

as ciências sociais norte-americanas assumiam naquele contexto, os “estudos de área”

formaram centros de pesquisas em importantes universidades norte-americanas, o que

foi possível a partir do forte apoio financeiro de instituições como a Fundação Ford,

Fundação Rockfeller e Carnegie Corporation New York. Os interesses de financiamento

dos “estudos de área” por parte dessas instituições extrapolavam questões acadêmicas e

se ligavam ao protagonismo político e econômico que os Estados Unidos passaram a

assumir desde então, mas não deixaram de ter papel relevante na institucionalização e

na difusão pelo mundo do modelo de estudos de comunidade (Szanton, 2004).

O estudo exaustivo e detalhado da vida social camponesa, abarcando seus

diversos âmbitos (formas de organização do parentesco, relações vicinais, cerimônias

religiosas), todos eles moldados e enlaçados por uma solidariedade extremamente forte,

dotavam os “estudos de comunidade” do “rigor” que se julgava deveria existir em

trabalhos científicos (Consorte, 1996). Não por acaso esses trabalhos tiveram ampla

repercussão na antropologia, dado o forte apelo à pesquisa de campo e o exame

cuidadoso das práticas dos agentes estudados, além de terem sido fundamentais para a

consolidação de programas de pesquisa e de instituições, como fora o caso na Escola de

Chicago com Robert Redfield e Robert Park (Wilcox, 2004; Vila Nova, 1996). No

entanto, a reivindicação, por grande parte desses estudos, da “comunidade” como

princípio metodológico (Arensberg & Kimball, 1973), ferramenta de coleta de dados e

circunscrição empírica da realidade a ser analisada, muitas vezes era confluída com

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outra dimensão analítica, propriamente teórica, e que, portanto, acabava por reificar o

próprio conceito de “comunidade”, mesmo que a contrapelo do que eventualmente os

próprios dados utilizados sugeriam (Ianni, 1961; Moreira, 1963; Wortmaan, 1972).

Nos Estados Unidos, o antropólogo Eric Wolf, apoiado na bibliografia marxista,

fizera críticas ao modelo dos estudos de comunidade e desenvolvera uma abordagem

que recuperaria a “comunidade camponesa” dentro de uma perspectiva macro-

histórica71. Nos anos 1950, Wolf propusera uma tipologia do campesinato latino-

americano e de grupos camponeses na Mesoamérica e Java Central baseada na

diferenciação entre a “comunidade corporada fechada”, referindo-se a agrupamentos

camponeses nos quais atuavam diversos fatores internos e externos inibindo o contato

direto dos seus integrantes com outros grupos, e a “comunidade aberta”, que, ao

contrário da primeira, fatores históricos teriam ensejado e facilitado o contato com

outros grupos (Wolf, 2003a e 2003b). Assim, ao considerar analiticamente esses

diferentes tipos de comunidade na relação entre fatores internos e externos a elas, o

71 Essa perspectiva vinha sendo desenvolvida desde as experiências de Wolf como aluno de doutorado no projeto “The People of Puerto Rico” (1948-1956), coordenado pelo antropólogo americano e professor da Universidade de Columbia Julien Steward (1902-1972). Esse projeto foi desenvolvido sob os auspícios do “Social Science Research Center” da Universidade de Porto Rico e financiado pela Fundação Rockefeller. Tinha como objetivo testar empiricamente as formulações teórico-metodológicas da “ecologia cultural” de Steward, cujos preceitos fundamentais buscavam fugir das limitações metodológicas dos “estudos de comunidade” (Steward et alli, 1966, p. 2). Para Steward, essas limitações decorriam principalmente da forma pela qual se concebia a investigação das comunidades, tomadas como se fossem sociedades tribais, isoladas e autônomas, concedendo-se pouca atenção à integração delas à sociedade mais ampla (Ibidem, p. 5). A proposta de Steward de uma “ecologia cultural” avançava justamente nesse aspecto metodológico: a comunidade seria apenas uma entre outras instâncias de que se comporia a sociedade global, sendo a própria comunidade composta internamente por diferentes “subculturas” ou grupos. Por “subculturas”, Steward entendia a combinação particular entre especialização produtiva e adaptação ecológico-cultural a que daria origem aos “grupos horizontais” (classes, castas, divisões ocupacionais e segmentos de status). No entanto, cada uma dessas “subculturas” deveria ser analisada dentro de um quadro mais amplo conforme os distintos “níveis sócio-culturais de integração” à sociedade global, a exemplo da “família”, “comunidade”, “nação” e o “Estado”, o que seria possível através da análise de fatores demográficos, divisão do trabalho, estratificação social e centralização política (Ibidem, p. 8). Decorreria disso que a “comunidade” deveria ser entendida não como uma unidade auto contida, um microcosmo do todo, mas diferenciada internamente por diferentes “subculturas” e formada pela integração a diferentes níveis socioculturais da sociedade mais ampla (Ibidem, p. 18-22). Como grande parte dos alunos que participara do Projeto, Eric Wolf, assim como Sidney Mintz, afastariam-se cada vez mais da “eccologia cultural” de Steward por julgarem operar com uma visão evolucionista do processo social (cf. Silverman, 1979; Roseberry, 1978 e Lauria-Peicelli, 2011).

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antropólogo da Universidade de Columbia, anotava que a “comunidade corporada

fechada”, protótipo do que era comumente considerado a “comunidade camponesa”, por

sua autossuficiência e forte integração interna, ganhava tal feição por forças históricas.

Não se constituiriam, portanto, em simples “sobrevivências”, nem “resquícios”, e nas

palavras de Wolf, “elas não ilustram a ‘contemporaneidade do não contemporâneo’.

Elas existem porque são contemporâneas” (Wolf, 2003b, p. 158).

Na França, os “estudos de comunidade” também tiveram ampla repercussão

principalmente através do “Groupe de Sociologie Rurale” (GSR), criado em 1949,

ligado ao CNRS (“Centre national de la recherche scientifique”) e dirigido inicialmente

por Henri Lefebvre e posteriormente por Marcel Jollivet (Mendras, 1990; Jollivet, 2003;

Alphandéry & Billaud, 2009; Alphandéry & Sencébé, 2009)72. Ainda que não se possa

caracterizar como uma “reação” às pesquisas desse grupo, porque não houve um

diálogo explícito, é possível afirmar que os estudos de Pierre Bourdieu entre os

camponeses argelinos se constituíram em alternativa aos métodos dos “estudos de

comunidade”.

De 1958 a 1961, Bourdieu participou de diversas enquetes etnológicas e

sociológicas na Argélia, entre as quais duas pesquisas coletivas foram particularmente

interessantes: a primeira, entre 1958 e 1961, sobre proletários e subproletários recém-

72 Mendras esteve na Universidade de Chicago em 1949 onde fizera pesquisa sobre camponeses mórmons, experiência que fora fundamental para a implementação e institucionalização da sociologia rural na França. No início dos anos 1960, Mendras, já formado o GSR junto com Marcel Jollivet, coube-lhe dirigir um grande programa de pesquisas intitulado “Inventaire et typologie des sociétés rurales françaises”, cujos trabalhos de campo duraram de 1962 a 1967. O objetivo do projeto, como pode se entrever no título, era o de traçar um grande mapa das “coletividades rurais” da França, através de intensa pesquisa de campo – nos moldes dos chamados “estudos de comunidade” – medindo o grau de modernização dos grupos camponeses, e de seu eventual desaparecimento. Apropriando-se da bibliografia sobre campesinato, em particular a de Robert Redfield, Mendras propunha pensar essas “coletividades rurais” em relação à sociedade global, através da qual seria possível avaliar o grau de isolamento, contato, fluxo de pessoas, observando as mudanças sociais e culturais que ocorriam no mundo rural francês (cf. Mendras & Jollivet, 1971). Muito embora, no decorrer da pesquisa, tenham surgido controvérsias sobre o método utilizado no estudo das “coletividades rurais”, principalmente a partir da maior aproximação de Jollivet com a perspectiva marxista, o GSR se tornou o principal polo de pesquisas rurais na França, e o principal a realizar pesquisas nos moldes dos estudos de comunidade.

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migrados para as cidades, cujo resultado fora apresentado no livro “Travail et

Travailleurs en Algérie” (1963); a segunda fora realizada entre 1960 e 1961 em

“assentamentos” de camponeses (“camps de regroupement”), junto com seu aluno na

Universidade de Alger, Abdelmalek Sayad, a que deu origem ao livro “Le

Déracinement – La crise de l`agriculture traditionnelle en Algérie” (1964)73. No caso

desta última pesquisa, Bourdieu e Sayad encaminharam suas pesquisas em diversos

assentamentos criados pelo exército francês para desarticular as “comunidades

camponesas” e possíveis focos de resistência. Observavam os pesquisadores que essa

política implicava num processo de “descamponeisamento” (dépaysannisation”) em que

a comunidade camponesa, e as garantias nela contidas para o camponês, como o acesso

a terras e a proximidade familiar, era abruptamente solapada.

A questão central posta por Bourdieu e Sayad partia da constatação de que não

havia a completa modificação do “ethos” camponês, já que permanecia no mesmo

agente – de forma contraditória - disposições e orientações distintas. Perspectiva esta

que, embora sem referências diretas, permitia os autores criticarem posições

evolucionistas sobre campesinato, chamando a atenção para o fato de que “l`opposition

entre le paysan traditionaliste et le paysan moderne n`a plus qu`une valeur heuristique et

définit seulement les pôles extrêmes d`un continuum de conduites et d´attitudes séparées

par une infinité de différences infinitesimales” (Bourdieu & Sayad, 1964, p. 161). Essas

distintas orientações individuais não poderiam deixar de ser vividas senão como

73 Os assentamentos de camponeses foram criados pelo exército francês entre 1954 e 1962 na Argélia, com o objetivo de dificultar o recrutamento de camponeses por parte da ALN (Armée de Libération Nationale), braço armado do partido socialista Front de Libération Nationale (FLN). Segundo Bourdieu & Sayad (1964), desde o século XIX foram promulgadas pelo poder metropolitano francês diversas leis fundiárias na Argélia que visavam introduzir melhoramentos técnicos na agricultura através da destituição de terras de aldeias argelinas. A criação dos assentamentos se revelava, então, como mais uma etapa, e talvez a última, de desestruturação do equilíbrio tradicional das populações camponesas. Assim, a expulsão de terras e a desestruturação da economia camponesa, favoreceram o que os autores chamaram de a “crise da agricultura tradicional”, fazendo com que grande contingente de camponeses migrassem para as grandes cidades argelinas, reforçando a fila dos “subproletários” urbanos.

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conflito, como é possível perceber na diferenciação feita pelos autores entre camponeses

“encamponeisados” (paysans ‘empaysannés’), que ainda teriam na tradição o fim último

de suas ações e de valor incontestável, e camponeses “descamponeisados” (“paysans

dépaysannisés”), cujas novas referências culturais invalidariam, em parte, a tradição de

seus ancestrais. De todo modo, a utilização do termo camponês teria ainda sua validade

no estudo desse agente deslocado, “parce que son être est avant tout une certaine

manière d`être, un habitus, une disposition permanente et générale devant le monde et

les autres, le paysan peut rester paysan lors même qu`il n`a plus la possibilité de se

comporter en paysan” (Ibidem, p. 102). Por isso mesmo, os autores reforçavam, no

livro Le Déracinement, que aos poucos a nova condição do camponês, seja ao ser

destituído de seu “espírito” (“esprit”) nas novas circunstâncias dos assentamentos, seja

como subproletário na cidade, gerava uma espécie de nova solidariedade, não mais

fundada no parentesco, mas na experiência comum da pobreza e do deslocamento

cultural. Nas palavras dos autores, “la communauté d`expérience se substitue à

l`éxpérience de la communauté” (Ibidem, p. 136)74.

Na Inglaterra, os estudos sobre campesinato ganharam grande impulso a partir

da tradução para o inglês, em 1966, do livro “The theory of peasant economy”, editado

74 Há uma ampla bibliografia sobre os trabalhos de Bourdieu na Argélia que ressaltam as continuidades com seus trabalhos posteriores, principalmente sobre a “teoria do prática” - o próprio autor utilizaria sobretudo da revisão de seus trabalhos etnográficos na cabília, região localizada ao norte da Argélia, para elaboração do conceito de habitus (Addi, 2002; Heilbron, 2011; Sapiro, 2004; Wacquant, 2002). Embora seja fundamental recuperar estes traços de continuidade, seria preciso atentar também para as particularidades que o período argelino encerra no conjunto da obra do sociólogo francês: as pesquisas entre camponeses argelinos revelariam como o descompasso entre habitus e a estrutura social e mesmo a convivência de duas lógicas distintas de orientação de condutas (denominada pelo autor de “dédoublement”), seriam situações constitutivas da vida social. Essas questões teóricas não teriam a mesma relevância em trabalhos posteriores de Bourdieu, a não ser na análise de circunstâncias excepcionais. No que toca particularmente a este ponto, Martín-Criado (2008, p. 67-68) ressalta que “l´expérience du dédoublement qui produit analyses dans le Travail et Déracinement, será amenée à disparaître ou reléguée dans la théorie postérieure de l´habitus: si les sociétés étaient continuellement en transformation et si diverses logiques cohabitaient à tout instant en leur sein, l`expérience la plus commune serait le dédoublement”. Ainda segundo Martin-Criado (Ibidem, p. 68), essa clivagem teórica na obra de Bourdieu poderia ser observada em seus trabalhos posteriores no peso cada vez maior dado às primeiras experiências de socialização, em detrimento das experiências secundárias.

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119

por Daniel Thorner, Basile Kerblay e R. Smith, e da fundação do “Journal of Peasant

Studies”. O livro de Theodor Shanin, “The Awkward Class”, publicado em 1972,

utilizou amplamente os aportes teóricos de Chayanov e os dados estatísticos trabalhos

por esse autor para mostrar como as famílias da comunidade camponesa russa (o mir)

respondiam por pressões sociais, econômicas e políticas através do que chama de

“forças centrípetas” – retenção da mão de obra familiar e acumulação de bens - e

“forças centrífuga” – expulsão da mão de obra familiar e declínio da renda. Dessa

forma, qualquer unidade camponesa passaria por ciclos de maior estabilidade e

instabilidade econômica e demográfica, o que explicaria a manutenção da família

perante pressões para a sua desintegração. Shanin propunha acompanhar esses diversos

ciclos para uma caracterização “multidirecional” das unidades familiares, algo que não

seria possível caso se detivesse somente em um desses ciclos (Shanin, 1972a).

No Brasil, assim como em outras partes do mundo, os “estudos de comunidade”

tiveram ampla adesão a partir dos anos 1950, incentivados por grandes projetos de

pesquisa financiados por instituições estrangeiras, a exemplo do “Projeto do Vale do

Rio São Francisco” (Maio, Oliveira e Lopes, 2013), e pela criação da “Escola livre de

Sociologia e Política”, em 1933 (cf. Maior e Oliveira, 2013). Duas preocupações básicas

pareciam presidir esses estudos: uma de ordem teórica postulava que a pesquisa

monográfica de diferentes comunidades, em diferentes regiões, serviria como

“complemento” ou “correção” aos estudos de caráter mais analítico. A segunda era que

os resultados a que chegavam as diferentes pesquisas não deveriam ficar confinadas à

academia, mas deveriam também servir de apoio ao desenvolvimento de projetos

políticos (Nogueira, 1955; Willems, 2009). Não à toa os principais defensores desses

estudos preconizavam a sistematização e ampliação desse estilo de pesquisa

monográfica a todo o Brasil. Alertavam, no entanto, para o fato de que não se deveria

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120

perder de vista que as comunidades brasileiras achavam-se integradas numa estrutura

social nacional, “participando das mesmas instituições básicas e do lastro comum de

tradições que caracterizam a nação” (Nogueira, 1955, p. 95). A própria seleção das

comunidades, portanto, deveria ser tratada com rigor, já que seria etapa fundamental de

pesquisa para a observação de estruturas que poderiam revelar a dinâmica da sociedade

global (Ibidem). Charles Wagley em artigo de 1954, por exemplo, propõe um “quadro

de referência” que contribuiria, através da disseminação dos estudos em diversas

regiões, para “o conhecimento empírico da cultura nacional brasileira” (Wagley, 1954,

p. 8). Para se chegar a essa visão integrada da cultura, sugeria o autor tomar como

parâmetro de escolha da comunidade a ser pesquisada a região onde se encontraria e a

subcultura a qual pertenceria.

Oracy Nogueira também reconhecia que ao se deter no levantamento

monográfico de uma comunidade o pesquisador corria o risco de ter um trabalho

“meramente descritivo e, portanto, cientificamente improfícuo” (Nogueira, 1955, p.

100). Salientava ainda que o emprego “indiscriminado e exclusivo” desse tipo de

técnica poderia conduzir o analista a uma visão escamoteada da sociedade

“especialmente quando se leva ao exagero o artifício de considerar isolada e fechada em

si mesma uma comunidade que (...) está, todavia, integrada numa estrutura social mais

ampla e mais complexa, da qual tanto ou mais que de si mesma depende seu destino”

(Ibidem, p. 100). Nesse sentido, a formulação de um problema a ser estudado deveria

preceder a seleção de uma comunidade dentro de uma determinada região, como por

exemplo, contatos raciais, assimilação ou aculturação e impactos de transformação em

uma comunidade rural isolada. Portanto, o estudo monográfico seria um método que

“tomadas as devidas precauções”, seria compatível “com as mais variadas perspectivas

teóricas” (Ibidem, p. 103).

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Seriam muitas as reações à abordagem dos “estudos de comunidade”, ainda que

sob essa alcunha se agrupassem diversos trabalhos diferentes entre si. No clássico Os

Parceiros do Rio Bonito [1954], Antonio Candido recusava nomear sua pesquisa como

um estudo de comunidade “pelo que tem de estático e convencional” (Candido, 2003, p.

26). Para o autor, o local deveria ser o ponto de partida de indagações e hipóteses cujas

respostas não se encontram nele mesmo, mas na contingência que envolveria a sua

relação com a sociedade global. Advertência que explorou em sua comunicação no

XXXI Congresso Internacional de Americanistas realizado em São Paulo em 1955,

intitulada “L`État actuel et les problèmes les plus importants des études sur les sociétés

rurales du Brésil”. Para Candido, os “estudos de comunidade” foram fundamentais na

expansão do interesse acadêmico pelos grupos rústicos e pela difusão de técnicas de

investigação científica, como a pesquisa empírica. Mas em relação ao “mundo rústico”

brasileiro a aplicação desses estudos trazia o risco de ignorar os caracteres históricos

que compuseram aquela cultura e que lhe deram origem. Nas palavras do autor, “je dis

cela parce qu`en anthropologie et en sociologie ce concept exprime non seulement une

délimitation technique de l´objet d`étude, mais aussi, et parfois sourtout, une piste

théorique pour interpréter les racines de la sociabilité et de la culture” (Candido, 1955,

p. 330). Propõe para análise dos grupos rústicos brasileiros a categoria de “bairro rural”,

a qual permitiria deslindar certas composições e articulações que se operariam intra e

entre os grupos, tomando-os a partir de uma referência de base que serve, em graus

diversos, de parâmetro de conduta ao homem rústico (Ibidem, p. 332).

Muitas outras críticas se seguiram as de Antonio Candido, como por exemplo a

de Maria Isaura Pereira de Queiroz, a qual recorria à antropologia de Marcel Mauss

para ressaltar que o estudo circunscrito de uma comunidade, apesar da importância dada

à pesquisa empírica, muitas vezes deixava de lado a captação de “fatos sociais totais”

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que dariam inteligibilidade a fenômenos aparentemente locais e sem ligação com a

“sociedade global” (Queiroz, 1972, p. 523). Nesse mesmo contexto, diversos

pesquisadores do que se convencionou chamar “escola sociológica paulista”

direcionaram críticas ao modelo imperante de “estudos de comunidade” realizados na

ELSP (cf. Jackson, 2007 e 2009).

José de Souza Martins, por exemplo, recuperara parte dessas críticas e as

reformulara em sua tese de doutoramento defendida na USP em 1970, sob a orientação

de Luiz Pereira, com o sugestivo título “Comunidade na sociedade de classes”, e depois

publicada em livro (Martins, 1973). Nesse trabalho, Martins retomava a díade

comunidade-sociedade em nova chave analítica, de modo a, como ele mesmo ressaltava,

não descartar por completo os “estudos de comunidade” (Ibidem, p. 31). Dessa forma,

Martins pretendia determinar em quais circunstâncias os estudos de comunidade seriam

válidos, sobretudo, como um “método”, o que o fazia buscando os seus fundamentos

histórico-sociais. Para o sociólogo, o desenvolvimento capitalista no Brasil –

principalmente a partir da Lei de Terras de 1850 – alterara completamente o trabalho

camponês, passando a ser mediado pela renda territorial capitalizada. Seria exatamente

neste ponto que residiria a ambiguidade do camponês na sociedade de classes em

formação: a disjunção entre a realidade objetiva (mediada pela propriedade privada e

pelo capital) e a realidade subjetiva (desejo de manutenção ou de retomar o modo de

vida tradicional) ensejaria a utopia da comunidade, pois, nas palavras do autor, “o

processo objetivamente inovador é vivido como processo subjetivamente repetitivo (isto

é, conservador)” (Ibidem, p. 27, grifos no original). Esta comunidade utópica

comportaria, portanto, duas dimensões: ela permitiria recriar, intersubjetivamente,

relações típicas da vida social camponesa; e, ao mesmo tempo, ela se mostraria como

fator de resistência diante das rupturas do modo de vida tradicional. Para Martins,

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somente a partir da utopia carregada pela imaginação camponesa seria possível

compreender sua reprodução na sociedade de classes, e, sobretudo, elucidar os

movimentos mais amplos que o impôs como a principal forma de trabalho em dado

momento histórico da sociedade brasileira75.

Nesse contexto de forte reação aos estudos de comunidade, os pesquisadores do

Projeto Emprego não deixariam de apontar os limites das pesquisas sob essa alcunha,

mas também, assim como o fez Martins, de o recuperarem em nova chave, revelando o

mérito de a maioria delas trazer um intensivo trabalho de campo e uma preocupação

minuciosa com os dados (cf. Garcia Jr. & Grynszpan, 2002, p. 325). Apesar das

“situações-tipo” apresentadas pelo Projeto Emprego representarem um recurso

heurístico de forma a elucidar às agências financiadoras o método a ser empregado

pelos pesquisadores, elas levantariam também discussões internas ao grupo sobre o

modo como abordá-las analiticamente, de modo a apresentar tanto uma alternativa à

generalização baseada em dados estatísticos, tão ao gosto dos técnicos que

acompanhavam o Projeto, quanto se afastar da proposta mais geral contida nos “estudos

de comunidade”.

3.2 Comunidade e “situações-tipo”

Ao reconstituirmos o contexto intelectual e institucional do Projeto Emprego no

primeiro capítulo, ressaltamos como o método etnográfico fora ponto fundamental de

discussão com as instituições financiadoras e eixo de estruturação do texto. Isso porque,

o Projeto não apresentava nenhuma hipótese relativa ao conjunto de “situações-tipo”

selecionadas. No entanto, o espaço reservado no texto do Projeto à análise da plantation

75 Tomando a “comunidade” como “utopia”, Martins não estava afirmando que ela não tinha efeitos práticos para a vida do camponês. Como suas pesquisas na “fronteira” amazônica demonstrarão, essa utopia encerra um potencial social e político diante do avanço capitalista nessas áreas.

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– como não deixariam de notar os técnicos do Banco Mundial – revelava o privilégio

concedido a essa “situação-tipo”, sugerindo que ela seria referência importante nas

pesquisas. De fato, a partir das formulações feitas na tese de doutoramento de Moacir

Palmeira e das pesquisas de campo realizadas por ele e Lygia Sigaud sobre o

funcionamento da plantation, ou melhor, do “sistema de plantation”, seria possível

descobrir o sentido das mudanças sociais ocorridas, já que muitas das relações sociais

em vigor naquele momento advinham ou de seu funcionamento tradicional – como a

morada, presença viva inclusive na ideologia dos trabalhadores – ou das transformações

recentes, a exemplo das diversas “situações-tipo” enumeradas pelo Projeto.

As mudanças da plantation, portanto, norteariam as escolhas das “situações-

tipo”. As constantes crises por que passara a plantation abalara o sistema de

imobilização da mão de obra em seu interior – expresso pela morada -, quebrando o

isolamento dos trabalhadores. Esse fato evidenciava que aquelas mudanças ocorreram

sem uma alteração significativa no processo técnico de produção, mas como decorrência

da modificação do padrão de relações sociais entre os proprietários e seus moradores

tradicionais, sobretudo com a introdução da legislação trabalhista. Assim, diferente dos

deslocamentos do passado em que os trabalhadores acorriam de uma plantation a outra,

assistiu-se a um processo de expulsão de mão de obra em grande escala que implicava a

saída definitiva dos moradores em direção às “cidades” – tanto as do Agreste e do

Sertão, quanto as grandes cidades de Recife e do Sul (centro-sul) -, tornando-se

“trabalhadores da Rua”, bem como a migração para as regiões de fronteira. Esse

processo era concomitante ao crescimento de um “campesinato marginal à plantation” –

ou seja, submetidos aos seus momentos de expansão e retração do monopólio da terra e

aos mecanismos de dominação -, que denotavam o paulatino enfraquecimento dos

“barracões” e o aumento significativo das “feiras” camponesas. Por fim, foram

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selecionadas para estudo a “parte industrial da plantation”, buscando-se identificar as

especificidades das relações sociais de operários no interior desse sistema.

Em discussão sobre o Projeto, realizada em 13/10/1975 com a presença de

Claudio Salm, representante do IPEA, Moacir Palmeira ressaltava que “se tomar as

situações tipo como situações empíricas dadas, você vai ver que essas situações-tipo

representam uma verdadeira aberração (..) esses termos aí são simples etiquetas para

rotular certas configurações” (Palmeira et alii, 1975, p. 10). Como vimos anteriormente,

elas seriam apenas uma forma encontrada pelo grupo para demonstrar às instituições

financiadoras a representatividade dos casos estudados, preocupadas que estavam com a

apresentação de um “modelo” analítico pelo Projeto Emprego. No entanto, com o

avançar das discussões surgidas durante a reunião podemos descortinar como, por detrás

das definições das “situações-tipo”, existia uma estratégia metodológica bem definida

para escapar, ao mesmo tempo, das simples mensurações estatísticas – método

apreciado pelas instituições financiadoras - e dos problemas metodológicos da

antropologia do campesinato, principalmente aqueles relacionados aos “estudos de

comunidade”.

Na reunião, Palmeira voltara a reforçar o preceito metodológico básico contido

no texto do Projeto Emprego que era o de partir das representações e práticas dos

agentes para a definição das unidades a serem estudadas; ou seja, as “situações-tipo”

delimitariam certos problemas a serem analisados, mas elas não definiriam a priori

quais seriam as “unidades sociologicamente relevantes”, o que caberia à própria

pesquisa etnográfica estabelecer. Conforme Palmeira, para

não cair em começar a fazer formulações sem considerar quais as unidades sociais, o quê que efetivamente se configura para o agente social, o que é preciso é delimitar em cada caso as unidades sociais. Então, dentro da situação-tipo você vai encontrar unidades sociais as mais variadas (...) não se delimita

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quais as situações-tipo, delimitando apenas um problema relativo àquela situação-tipo, aquela situação-tipo tem mais problemas que podem ser enfrentados por pesquisas individuais diferentes. Então, tratando como unidades sociais diferentes (Ibidem, p. 18).

Dessa forma, Palmeira expunha ao grupo que as “situações-tipo” eram recursos

metodológicos que poderiam abrigar diversas unidades sociais, distinguíveis somente

pelo trabalho etnográfico. Em seguida, Palmeira avançou a discussão salientando que

“quando falamos em situações-tipo estamos rompendo num certo sentido o modo

tradicional de estudos de comunidade. Não é a comunidade enquanto tal comunidade

(...)” (Ibidem, p. 11). Não seria possível, portanto, dentro dessa perspectiva tomar a

priori o que deveria ser estudado nas “comunidades camponesas”. E retomando esse

ponto do debate, Palmeira reforçava que

em cada caso concreto você tem que identificar o seu trabalho, identificar que unidades são sociologicamente relevantes. Você tem que estar alerta para o fato de que nossa preocupação é justamente essa, é que as unidades sociologicamente mudam. Então, não dá para a gente chegar e dizer: bom, nós temos que ir ao campo para ver famílias, grupos de vizinhança, parentesco, não sei o quê (Ibidem: 20).

Observa-se, portanto, a partir das transcrições da reunião do grupo, que o próprio

conceito de “comunidade camponesa” perde sua estabilidade analítica tal como parecia

acontecer com grande parte dos “estudos de comunidade”, deixando de ser vista como

realidade autocontida e isolada, e se abrindo para a multiplicidade das diversas unidades

sociais que a comporiam. Mas o que tornaria, para o grupo de pesquisadores,

fundamental na operação analítica de fragmentação do conceito de “comunidade”, e,

por conseguinte, na sua operacionalização através das definições de “situações-tipo”?

De que forma o grupo lidou com questões metodológicas que obsedaram os estudos

sobre a comunidade camponesa, como, por exemplo, aquela dedicada às relações com a

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127

“sociedade global”? Como se definia, para este grupo de pesquisadores, a

“representatividade” dos casos estudados?

3.3 Estudo de caso e representatividade

Como vimos anteriormente, a questão da “generalização” ganhara relevo nas

discussões da equipe do Projeto Emprego com os técnicos do Banco Mundial, e com ela

surgira a necessidade de se definir quais “comunidades” seriam pesquisadas de modo

que fossem “representativas” das mudanças por que passava a sociedade brasileira em

seu conjunto (cf. carta de Moacir Palmeira a Anna Maria Sant`Anna/Arquivo FINEP,

29 de abril de 1973). Essas questões surgiriam nas próprias reuniões de pesquisa do

grupo, buscando-se alternativas tanto às “generalizações” teóricas alijadas de

referências empíricas, quanto à obsessão, sobretudo dos “estudos de comunidade”, em

reconstituir todos os aspectos de determinada “comunidade”, como se nela estivesse

contida, em escala menor, o que ocorria na escala macro da sociedade nacional.

Interessante nesse sentido foram os comentários de Luiz Antonio Machado, em

reunião do grupo, sobre as possibilidades de “generalização” e explicação de processos

sociais mais amplos a partir do estudo de caso. Machado concordava quanto à

importância de se tomar o ponto de vista dos agentes na construção tipológica das

situações empíricas tal como exposto no texto do Projeto, contudo, questionava a forma

pela qual se atingiria a compreensão dos “processos globais” que supostamente

regeriam essas “situações-tipo”. Segundo o próprio pesquisador, “a gente pode chegar a

explicar os processos pela estratégia de vida das pessoas, e ao mesmo tempo indicar a

estratégia de vida das pessoas pelos constrangimentos que esses processos mais globais

encontram, o que é de certa forma raciocínio tautológico” (Palmeira et alii, 1975, p. 14).

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Em resposta a Machado, Palmeira afirmara que questão semelhante aparecera na

discussão da dissertação de José Sergio Leite Lopes no CEBRAP, como já ressaltamos

anteriormente. Palmeira fazia referência a essa ocasião para ressaltar que

as leis existem, supostamente se manifestam daí o privilégio do trabalho de campo, etc... Não aquele negócio: faço reflexão sobre os destinos do capitalismo brasileiro e agora vou a campo verificar. Não é que você não tenha teoria, mas, antes de mais nada, a você interessa ver ali onde ela tem vigência (Ibidem, p. 15).

Complementando a resposta de Palmeira, Lygia Sigaud chamava a atenção de

como o trabalho etnográfico deveria justamente atentar para a diversidade de ações dos

indivíduos em um determinado contexto. Segundo a antropóloga, “a vantagem do tipo

de trabalho que a gente pode fazer é você abrir um leque de alternativas que se coloca,

em termos concretos, ao nível da prática dos agentes” e dessa forma, notar como “os

constrangimentos objetivos não leva apenas a uma alternativa” (Ibidem, p. 15). A

pesquisadora tomava o caso da Zona da Mata, onde as pesquisas realizadas pelo grupo

indicavam que a expropriação do trabalhador não levava necessariamente a sua

proletarização, para demonstrar como se abriram outras “alternativas” para os agentes.

E completou dizendo: “o que estaria em jogo é você dar conta desse conjunto de

alternativas que se coloca para o agente que está sendo submetido a um determinado

tipo de constrangimento” (Ibidem, p. 15).

Como forma de reforçar essa postura, Alfredo Wagner Berno de Almeida

prosseguia na discussão enfatizando a necessidade de se posicionar

meotodologicamente frente às exigências das instituições financiadoras, principalmente

em relação à representatividade estatística dos casos estudados. Almeida apontava para

o fato de que o Projeto, ao ressaltar as “especificidades” de cada situação, deveria

também deixar claro “como é que a gente se situa” frente ao debate, e complementava:

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“quase que a gente não trabalha com eles [números], dando importância a certos

processos” (Ibidem, p. 15).

Em resposta à colocação de Almeida, Palmeira expôs a diferença entre “regras

estruturais” e “regras estatísticas”, algo que já aparecia no texto do Projeto Emprego

como forma de demarcar a contribuição das pesquisas do grupo aos temas de interesse

das agências. Não que a utilização de técnicas estatísticas e trabalho etnográfico fossem

incompatíveis, ao contrário, alegava Palmeira, já que “se você deixar de considerar

regularidades que não foram verbalizadas, você está perdendo todo um lado que pode

ser importante você entender daquilo que foi verbalizado” (Ibidem, p. 15-16). O

exemplo dado por Palmeira era elucidativo: a expulsão de trabalhadores do interior da

plantation sempre foi um fenômeno recorrente, “só que agora estamos afirmando que há

uma diferença qualitativa” (Ibidem, p. 16). Se antes o trabalhador expulso poderia

procurar trabalho, eventualmente morada, naquele momento a expulsão do interior de

uma propriedade não tinha como garantia a admissão do trabalhador em outra

propriedade. Nesse caso, ainda segundo Palmeira, as estatísticas poderiam demonstrar,

por exemplo, a significativa diminuição do número de casas no interior das plantations,

confirmando um fenômeno que era descrito pelos próprios agentes (Ibidem, p. 16). Sem

tratamento etnográfico, no entanto, esses dados em estado bruto poderiam corroborar

diferentes hipóteses, inclusive a de uma proletarização do campesinato. Nada mais

distante do que se propunha investigar o Projeto Emprego diante das transformações da

plantation, como já advertia Moacir Palmeira ao grupo:

quando você fala em modernização tecnológica isso não significa necessariamente que junto à modernização tecnológica que você tenha proletarização, você tenha a transformação do camponês em proletariado, você tenha a transformação do camponês em proletário rural ou você tenha a migração do camponês para a cidade, essa história toda. Você tem isso também, mas ao lado disso você tem outros processos como esse

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que eu chamei processo de reapropriação. Veja que nós não estamos fazendo a afirmação oposta, que a modernização leva ao acampesinamento, tá? E sim que esta modernização ela pode levar simultaneamente, à proletarização tal como se vê nos modelos mais baratos, mas também a um encampesinamento (Ibidem, p.3)

Dessa forma, ainda segundo Palmeira, os dados estatísticos teriam sua validade

analítica, “mas que só tem sentido você recuperar se você tem determinadas hipóteses

formuladas. Enfim, o problema todo é de submissão da estatística ao modelo teórico que

você está utilizando” (Ibidem, p. 16).

Outro exemplo mencionado por Palmeira sobre a utilização de medidas

estatísticas eram os estudos sobre migração, os quais tomavam geralmente como

unidade de análise o indivíduo, negligenciando casos, como os grupos camponeses, em

que seria a família a administrar as estratégias de migração de seus membros. Sem o

trabalho etnográfico, alertava o pesquisador, os dados estatísticos poderiam apresentar

distorções sérias. Mas se a mensuração estatística seriam aportes metodológicos, entre

outros, para o desenvolvimento de hipóteses de pesquisas -, como então justificar que o

estudo etnográfico de caso poderia ser “representativo” de certos processos sociais mais

amplos?

Na carta-resposta enviada ao Banco Mundial, a equipe do Projeto Emprego,

através de Moacir Palmeira, citou o artigo “Form and variatioon in Balinese Village

Structure” (1959) de Clifford Geertz como referência fundamental da proposta

metodológica quanto à “representatividade” dos “casos” selecionados (Carta de Moacir

Palmeira a Anna Maria Sant`Anna/Arquivo FINEP, 29 de abril de 1973, p. 743). Neste

artigo, Geertz observava que em Bali (Indonésia) – onde realizava suas pesquisas de

campo -, toda aldeia encerraria uma vida social extremamente complexa e diversificada.

Por menor que fosse, não seria possível, segundo o autor, tomar qualquer aldeia

camponesa como um todo homogêneo de sua estrutura social ou da cultura, muito

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menos, identificar, a partir dela, espécie de “média” que valeria para o conjunto das

outras aldeias. Conforme o autor, em Bali “there is a marvelously complex social

systems, no one of which is quite like any other, no one of which fails to show some

marked peculiarity of form” (Geertz, 1967, p. 255). Até mesmo aldeias contíguas

poderiam apresentar variações significativas, de forma que estruturas centrais em uma

aldeia – como as castas ou parentesco – poderiam não ser em outra.

No entanto, essa diversidade não seria infinita, apresentando certos limites. Para

Geertz, poder-se-ia identificar uma série de padrões organizacionais, mais ou menos

independentes uns dos outros, que, agrupados de determinadas maneiras, explicariam a

variação das aldeias balinesas. Esses diferentes planos de organização social (“planes of

social organization”), cada um dos quais baseados em princípios diferentes de

solidariedade social e de identidade cultural – residência comum, obrigações de devoção

religiosa, laços sociais de afinidade e consanguinidade, organizações voluntárias,

formas de subordinação legal a um governo ou administração oficial - faria com que a

interseção entre eles conformasse a especificidade de cada aldeia. Operando desse

modo, o analista não negligenciaria a diversidade empírica do objeto, nem deixaria de

dotar de inteligibilidade teórica essa mesma diversidade. Por isso, Geertz criticava a

utilização, corrente na literatura antropológica naquele momento, do modelo de “aldeia

camponesa” (“peasant village”), entendida como “a corporate territorial unit

coordinating all aspects of life in terms of residence and land ownership” (Ibidem, p.

256).

Para Geertz, a abordagem analítica que propunha - tratamento das variações

empíricas em conjunções limitadas de padrões organizacionais -, teria implicações

teóricas importantes. A principal delas, segundo o autor, seria que o procedimento

tipológico, muito utilizado na antropologia social, deveria estar apto a incorporar a

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variedade empírica dos dados colhidos, ao invés de restringi-los em tipos gerais e

contrapostos, casos em que se tenderia a acentuar mais os “desvios” dos fenômenos

sociais de um “padrão” do que propriamente suas especificidades. Suas experiências de

campo nas aldeias de Bali indicariam o contrário: nas palavras de Geertz, “they suggest

that clues to the typologically essential may as often lie in rare ou unique phenomenon

as they in common or typical ones” (Ibidem, p. 275).

Para lidar com o problema da “generalização” ou da “representatividade” dos

casos estudados, os antropólogos, segundo Geertz, teriam recorrido a duas perspectivas

principais: a do “mínimo denominador comum” (“lowest common denominator”) e da

“unidade representativa” (“representative unit”). Conforme Geertz, a primeira

perspectiva acentuaria o que seria típico em determinada estrutura social, mas o faria

identificando a “unidade mínima elementar” a partir da qual todos os aspectos

relacionados àquela estrutura social ou comunidade seriam dotados de sentido. No caso

da antropologia brasileira, poderíamos aproximar esse tipo de abordagem à categoria de

“bairro rural”, caracterizada por Antonio Candido como a “unidade mínima de

subsistência” dos grupos rústicos, conforme visto acima. A partir desta unidade,

segundo Candido, não só a vida do caipira ganhava inteligibilidade, mas também as

mudanças por que passava a sua cultura.

Quanto à segunda perspectiva, a “unidade representativa”, no Brasil ela fora

amplamente utilizada pelos denominados “estudos de comunidade”, os quais elegiam -

principalmente através de surveys - uma comunidade concreta – vila, cidade – na qual

estariam condensadas características básicas encontradas numa área cultural ou numa

nação. Nas palavras de Geertz, essa abordagem teria como estratégia metodológica “to

choose a community which is to the greatest possible degree directly representative of

more than itself” (Ibidem, p. 276). Geertz distingue ainda outra forma de seleção das

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unidades de estudo, - que poderia ser tomada como uma terceira perspectiva –, cujos

critérios de representatividade não seriam estabelecidos por dados estatísticos nem por

sua relação com uma área cultural, mas por padrões “prototípicos” (“prototypical”),

sendo o principal deles o grau de isolamento da comunidade. Esse critério – que fora

amplamente discutido no Brasil a partir da crítica aos “estudos de comunidade”76 –

indicaria o grau de tradicionalismo da comunidade, e, por conseguinte, as resistências à

mudança social, expressas através da forma dicotômica tradicional-moderno (Ibidem, p.

276).

As críticas aos estudos de comunidade que surgem nas discussões do grupo do

Projeto Emprego revelariam justamente as posições contidas no artigo de Geertz. Dessa

forma, a pesquisa de campo, através das próprias práticas e representações dos agentes,

deveria indicar – para utilizarmos os termos de Geertz – os “padrões organizacionais”

que estruturariam a “comunidade” em estudo. Através justamente das “situações-tipo”,

no entanto, dever-se-ia buscar a miríade de “formas” estruturais encontradas nas idas a

campo. Como afirmava Palmeira,

o que importa para gente não são comunidades empiricamente, que já representam combinações de determinadas estruturas, mas identificar essas estruturas e as leis de combinação dessas estruturas. Então, a comunidade tem que ter uma série de relações entre proprietários, trabalhadores; entre assalariados e camponeses. Então, é claro, a coexistência no mesmo lugar dessas relações vai gerar certos efeitos que são específicos daquela comunidade (Palmeira et alii, 1975, p. 21)

Portanto, Palmeira afirmava que o encaminhamento das pesquisas realizadas no

âmbito do Projeto Emprego deveria contornar as discussões metodológicas que

obsedaram durante muito tempo, principalmente os antropólogos, sobre qual unidade

social serviria à elucidação da sociedade global. Ao mesmo tempo, segundo o

76 Para uma análise dessas discussões, situadas em uma vertente da sociologia rural brasileira, ver Lima, 2009 e Carvalho, 2011.

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134

pesquisador, dever-se-ia atentar para as especificidades dos casos analisados de forma a

não “teorizar” sem referência empírica. Palmeira reforçava essa perspectiva afirmando

que se trataria “também para nós de explicar a própria existência da unidade, Geertz

mostra como a própria aldeia é questionável, a rigor é feita de muitas estruturas”

(Ibidem, p. 19)

A operacionalização metodológica proposta pelo grupo do Projeto “Emprego”

também diferia dos estudos de comunidade ao se recusarem a delimitar a

“representatividade” dos casos estudados a partir da secção em “áreas culturais”,

rejeitando, portanto, a proposta de que somente a conjunção de diversas pesquisas

realizadas em cada “área cultural” – como afirmava Charles Wagley – poderia fornecer

uma visão abrangente de toda sociedade brasileira. Segundo Palmeira,

a nossa ideia é romper com essa divisão geográfica de uma nação, de um Estado que se faz por unidades físicas. Cada caso que a gente está estudando não é representativo de nada, é ele próprio. Mas ao mesmo tempo desde que coexistem determinadas estruturas, arranjadas de uma maneira única, o estudo dessa maneira única te permite quase que por avaliação saber como as coisas funcionarão se elas se arranjarem de uma outra maneira. O marco da representatividade para gente vai ser exatamente a situação-tipo (Palmeira et alli, 1975, p. 20-21).

As premissas básicas das quais partiriam os estudos no âmbito do Projeto

Emprego revelariam que a “comunidade camponesa” deveria ser tomada em sua

“diversidade” de relações e combinações estruturais. Nesse sentido, a

“representatividade” dos casos selecionados não seria reduzida, como nos denominados

“estudos de comunidade”, a uma relação metonímica, tomando a “parte” pelo “todo”.

Perspectiva através da qual diversos trabalhos do grupo do Projeto Emprego discutirão

questões fundamentais na literatura sobre campesinato, entre as quais o da sua

diferenciação econômica, expropriação econômica e formas de dominação a que estão

submetidos.

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135

3.4 Comunidade camponesa, formas de dominação e expropriação

Além dos relatórios de pesquisa, os quais analisaremos no próximo capítulo, o

Projeto Emprego possibilitou o desenvolvimento de pesquisa de mestrado e doutorado

de seus integrantes. Entre as dissertações de mestrado estão Laranja e lavoura branca:

um estudo das unidades de produção camponesa da Baixada Fluminense de Eliane

Catarino Gonçalves Bastos (1977); A Cooperativa do Trabalhador - diferenciação

social e organização camponesa (1978) de Leilah Landim, ambas orientadas por

Maocir Palmeira; além de Os escolhidos: doutrina religiosa e prática social (1979) de

Regina Novaes, orientada por Lygia Sigaud. Entre as teses de doutorado estão Feira e

trabalhadores rurais: as feiras do brejo e do agreste paraibano (1984) de Marie

France-Garcia, orientada por Moacir Palmeira; Constituição da Família e Trabalho

Industrial: um estudo sobre trabalhadores têxteis numa fábrica com vila operária

(1985) de Maria Rosilene Barbosa Alvim e A tecelagem dos conflitos de classe na

Cidade das Chaminés (1986) de José Sergio Leite Lopes, estas últimas orientadas por

Lygia Sigaud. Embora todos esses trabalhos compartilhem, de uma forma ou de outra,

das orientações mais gerais contidas nas discussões do grupo do Projeto Emprego,

escolherei, para fins de análise, três trabalhos que integraram a parte “rural” e que

puseram em prática a perspectiva metodológica de estudo sobre a “comunidades

camponesas”. São eles: A terra do santo e o mundo do engenhos: estudo de uma

comunidade rural nordestina de Doris Rinaldi Meyer, dissertação de mestrado

defendida em 1978; O Sul: caminho do roçado, tese de doutorado de Afrânio Raul

Garcia Jr. defendida em 1983, ambas sob a orientação de Moacir Palmeira; e Formas de

dominação e espaço social. A modernização da agroindústria canavieira em Alagoas,

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136

tese de doutorado de Beatriz Heredia, defendida em 1986 sob a orientação de Luiz de

Castro Faria.

Doris Rinaldi Meyer denomina a sua pesquisa de mestrado como um “estudo de

comunidade”, mas o faz com a ressalva em relação a uma série de trabalhos anteriores

reunidos sob essa alcunha. Para a autora, o termo “comunidade” não denotaria somente

limites administrativos, tampouco o de uma área ecológica, como se o simples fato de

um grupo de pessoas habitarem o mesmo território gerasse automaticamente

sentimentos de solidariedade. Nessa concepção, a “comunidade” prescindiria de uma

base territorial, o que não significa que essa não exista, mas somente que ela seria

materializada a partir da configuração específica de relações sociais. Para a

pesquisadora, “comunidade”, portanto, seria a expressão de um “sistema de relações

sociais”, configurado “a partir de um jogo de diferenças e semelhanças, identificações e

oposições” (Meyer, 1979, p. 16).

A pesquisa de Meyer elegeu um objeto com especificidades em relação aos

estudos do grupo sobre plantation: a vila de Pedras, localizada no interior do engenho

Cajazeiras, em Pernambuco. De acordo com a “memória social” coletada pela autora, na

localidade do engenho, onde se situava a vila, fora encontrada uma imagem de Santo

Antonio, sendo a área “doada” pelo proprietário ao santo. Desde então, os habitantes da

vila passaram a designar a localidade como “patrimônio do santo”, o que era

significativo da relativa independência da vila em relação ao engenho e aos mandos de

seu proprietário. Essa relativa autonomia dos habitantes da vila contrastava com a

situação dos moradores, cujo vínculo com o proprietário, através da autorização do

cultivo do roçado e o trabalho no engenho, pareciam sempre como “sujeição”.

Aos redor da vila existiam diversos sítios de pequenos produtores, os quais

constituíam conjuntos independentes de roçados familiares (Sítios) às margens de

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137

estradas (linhas). Notara a autora que a população da vila e dos sítios formavam um

“todo”, o que era fundamental para o estudo de comunidade. Contudo, a configuração

dessa comunidade não era sinônimo de homogeneidade das relações, nem significava

ausência de oposições, fundamentais para a afirmação do “todo”, o que tornou

imperativo destrinchar a complexa “rede de relações” estabelecidas pelos diferentes

grupos sociais. Nesse sentido, as diferenças internas à comunidade, apontadas pela

existência de algumas famílias camponesas, designadas como agricultores fortes, donas

de maiores extensões de terra e plantadoras de cana-de-açúcar, em contraste com os

agricultores fracos, não foram negadas, mas se tornaram explicativas da própria coesão

da “comunidade”. A diferenciação ocorria através das “soluções” que cada agricultor

encontrava para lidar com o que designavam de terra fraca, que poderia ser tanto o

plantio de cana, quanto o “trabalhar fora” (alugar ou arrendar terra) e trabalhar alugado

(assalariado). Essas estratégias, muitas vezes combinadas, contribuiriam para a

reprodução mínima da unidade familiar, sendo a herança (partilhando ou concentrando a

terra) e o comércio (o negócio ou a venda de produtos em feiras) fatores que

contribuíam decisivamente para a diferenciação entre fortes e fracos. No entanto, como

observou a pesquisadora, a simples decalagem entre as fortunas de cada família, como

vinha ocorrendo com o plantio de cana entre alguns agricultores, não significava

necessariamente a modificação completa da unidade de trabalho, passando de familiar

para assalariada, e, por conseguinte, no surgimento de classes antagônicas representadas

pelo proletariado e pela burguesia. Havia de se “considerar os limites das diferenças

sociais encontradas no grupo estudado e avaliar até que ponto elas implicam numa

ruptura com a campesinidade” (Ibidem, p. 109). A própria forma de organização da

comunidade imporia certos limites sociais a uma diferenciação que levasse ao

desaparecimento da unidade camponesa.

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138

A predominância de cada uma dessas categorias de agricultores em determinado

Sítio era decisiva para a classificação, por parte da população, entre linhas de Sítios

fracos ou fortes. No interior de cada uma dessas linhas, era possível o trabalho alugado

(remunerado), visto menos como uma relação de assalariamento e mais como uma

relação entre vizinhos, em contraposição ao alugado nos engenhos. Ainda que o tipo de

relação trazido pelo alugado não possa ser equiparado ao de troca de dia (espécie de

mutirão), posto que já expressasse o enfraquecimento das redes de solidariedade local, o

fato dessas relações se darem entre agricultores vizinhos, por outro lado, serve de

reforço dessa mesma solidariedade (Ibidem, p. 115).

Seria, no entanto, outras as relações estabelecidas entre a vila e os sítios. Isso

porque a vila se tornou um lugar de moradia, sobretudo, de trabalhadores cuja venda da

força de trabalho era o principal meio de subsistência. Segundo Meyer, os

trabalhadores davam clara preferência ao trabalho no engenho sob a justificativa de

maior ganho, mas o que parecia se encontrar por detrás disso era a recusa da submissão

do trabalho do chefe de família aos agricultores. Por essa causa, eram as mulheres e

crianças, tidas como forças secundárias, designadas para o trabalho nos sítios, forma

encontrada pelos trabalhadores de se evitar o “rompimento de uma rede de relações na

qual uns e outros participam como membros de um mesmo ‘mundo’” (Ibidem, p. 158,

grifos no original). Embora houvesse diferenças significativas em cada nível das

relações sociais recuperadas por Meyer, agricultores fracos x agricultores fortes, Sítios

fracos x Sítios fortes, agricultores x trabalhadores, elas pareciam se defrontar com uma

oposição mais forte que era a do mundo dos sítios x mundo dos engenhos. Tanto

agricultores dos sítios quanto trabalhadores da vila tinham sua autonomia preservada

quando pensada em relação à sujeição dos moradores de engenho. Portanto, o estudo de

comunidade de Meyer, não poderia ser pensado fora do amplo sistema de relações e

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139

oposições sociais que, sem negar os conflitos, conformam o próprio sentimento de

solidariedade local e as relações de submissão a que fazem frente. Longe de pensar a os

grupos camponeses como isolados de outras relações, Meyer estabelece as “redes” que

ligam sítios, vila (rua) e o engenho, de forma a elucidar de que modo, e através das

diferenciações internas, constitui-se o “todo” da comunidade.

O livro “O Sul: caminho do roçado”, publicado em 1989, de Afrânio Garcia é o

resultado de sua pesquisa de campo no âmbito do Projeto Emprego, e a primeira tese de

doutorado do PPGAS, defendida em 1983 sob a orientação de Moacir Palmeira. As

pesquisas de campo foram realizadas durante a vigência do Projeto Emprego nas regiões

do Brejo e Agreste da Paraíba, estado em que, diferente de Pernambuco – onde Garcia

Jr. realizara suas pesquisas de campo para dissertação “Terra de Trabalho” (1975) – a

plantation e as relações de sujeição ligadas a ela ainda tinham grande vigência. O

objetivo mais geral da tese era o de investigar as transformações da plantation

tradicional nordestina a partir dos movimentos de seus principais agentes – camponeses,

trabalhadores rurais e senhores de terra –, relacionando-os com os fluxos migratórios e

com o crescimento do mercado industrial no Sul – o que na linguagem nativa denotava a

região centro-sul do país.

Garcia Jr. observava que a constatação de relações assalariadas nas duas áreas

selecionadas para a pesquisa, seja nas grandes, seja nas pequenas propriedades, não se

configurariam em indícios inequívocos do avanço do capitalismo. Segundo o autor,

seria comum na literatura sobre campesinato, correlacionar a presença de relações

salariais entre camponeses ao processo de dissolução dessa camada, levando-a a

diferenciar-se e agrupar-se às duas classes principais do capitalismo, a burguesia e o

proletariado. Desse modo, o que poderia, do ponto de vista destas análises, corresponder

a uma crescente homogeneidade das relações sociais da região, para o autor significava

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140

uma complexa e diversificada rede de relações em que se entrelaçavam “forma salário,

trabalho assalariado e campesinato” (Garcia Jr., 1989, p. 17). Dessa maneira, Garcia Jr.

abordava uma das questões mais candentes da época: a da diferenciação social do

campesinato, ou em suas palavras, “o significado da compra e da venda da força de

trabalho por grupos domésticos camponeses e a relação entre o trabalho doméstico e o

trabalho extradoméstico” (Ibidem, p. 26).

Fazendo referência às pesquisas de campo de Lygia Sigaud e Moacir Palmeira

em Pernambuco, em que mostravam como as transformações por que passava a

plantation – mais especificamente a quebra de isolamento dos trabalhadores em seu

interior – modificara o conjunto das relações sociais, Garcia Jr. ressaltava como também

na Paraíba a oposição sujeito e liberto – intimamente associada com o funcionamento

daquele sistema - era estruturante do jogo de posições sociais. Dessa forma, observava

que figurava entre os libertos, os agricultores – pequenos e médios proprietários, ou não

sendo proprietários, trabalhadores que dispusessem de terras para plantio (roçado),

como os meeiros e arrendatários -, e ainda os trabalhadores alugados - assalariados

empregados por grandes proprietários ou por outros agricultores, e que eventualmente

dispunham de terras para plantio de subsistência. Essas categorias de trabalhadores se

consideravam libertos justamente porque desfrutavam de independência no processo de

trabalho agrícola, decidindo o que plantar e a destinação dos produtos, ao contrário do

que ocorria com o morador sujeito (residente das plantations), submetido diretamente

ao mando do fazendeiro.

Mas a diversidade se revelaria, segundo Garcia Jr., no interior da própria

categoria liberto, já que ela também denotaria gradações distintas de trabalho autônomo,

segundo as classificações dos próprios agentes. Assim, mesmo os pequenos

proprietários poderiam lançar mão de terra alheia, tornando-se rendeiros ou meeiros, ou

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141

negociar em feiras da região; da mesma forma, um trabalhador poderia ser rendeiro em

um ciclo agrícola, e no próximo, meeiro; e até mesmo os agricultores, em um ciclo

agrícola ruim, poderiam se lançar ao trabalho alugado. O importante, segundo o autor,

era que “o trabalho alugado existe, ao menos como virtualidade para todas as

categorias” (Ibidem, p. 54). Os deslocamentos entre distintas posições sociais não era

sem consequências nas representações camponesas, sendo a figura do agricultor a que

melhor encarnaria a condição de liberto, em contraposição à figura do alugado, o qual

não tendo controle do próprio processo de trabalho, seria o que menos desfrutaria de

“liberdade” entre os libertos.

Segundo Garcia Jr., uma diferença parecia fundamental ao se discutir a

diferenciação social dos grupos camponeses naquelas áreas: a contraposição, feita pelos

próprios trabalhadores, entre agricultores e agricultores fracos. Essa díade designava,

no caso dos agricultores, aqueles trabalhadores e famílias que se sustentavam aliando

agricultura com negócio em feiras, utilizando-se de trabalho alugado em suas terras; já

no caso dos agricultores fracos, designava aqueles trabalhadores que dependiam tanto

dos produtos do roçado para a subsistência, utilizando-se somente da força de trabalho

doméstica, quanto do fornecimento do trabalho alugado em outras propriedades.

As diferentes situações em que se encontravam agricultores e agricultores

fracos revelavam que de fato existia uma acumulação por parte dos primeiros, enquanto

que aos que não obtivessem terras restava recorrer ao alugado. Essa constatação,

segundo Garcia Jr., revelava que os camponeses, ao contrário da imagem difundida

pelas análises clássicas que os tomavam como contidos em seu “tradicionalismo”,

mantinham relações mercantis fundamentais para a sua reprodução. Pesquisas do

próprio autor e de Beatriz Heredia realizadas em Pernambuco seriam elucidativas das

mesmas práticas encontradas entre camponeses na Paraíba e se contrapunham à noção

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de “economia de excedentes”, que designava que o que era comercializado pela a

família camponesa, era a “sobre” do consumo de subsistência.

Essa perspectiva, segundo os autores, tomaria as relações mercantis

estabelecidas pelas unidades domésticas camponesas como uma variável fraca,

tangencial à “produção de subsistência”, esta sim a fundamental. Ela não explicaria, no

entanto, certos “paradoxos”, como aquele do camponês que vendia seus produtos ao

mesmo tempo em que passava “fome”, ou do camponês que comercializava seus

produtos independente da colheita boa ou ruim do ciclo agrícola. Em referência aos

trabalhos do autor russo Chayanov, os pesquisadores chamavam a atenção para o fato de

que a economia camponesa se regeria pelo balanço entre o consumo necessário à

unidade doméstica e o grau de auto-exploração do trabalho familiar - ambos

dependentes da idade e sexo de seus membros em determinado ciclo agrícola -, e não

pela seleção de mercadorias que fornecessem maiores lucros, como ocorreria com o

cálculo capitalista. Segundo Garcia Jr. e Heredia, dentro da lógica econômica

camponesa, a comercialização e a troca de produtos teria tanta importância quanto a

produção de subsistência, variando o volume de cada uma de acordo com o perfil da

unidade doméstica – a depender do número de membros aptos ao trabalho, homens,

mulheres, idosos, crianças e jovens - ao longo do ciclo agrícola. Desse modo, o

chamado “excedente”, na verdade, seria uma renda em dinheiro destinada a suprir o

consumo da unidade familiar ao longo de determinado tempo. De acordo com a

perspectiva dos autores, e retomada por Garcia Jr. em seu estudo na Paraíba, a

reprodução dos camponeses, portanto, se dava também através do mercado e não

somente pela produção de subsistência ou “natural”.

No entanto, conforme Garcia Jr., em determinadas circunstâncias o cultivo da

lavoura comercial e outros mecanismos – como a venda de gado ou o negócio na feira -

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143

, poderiam ser úteis não somente para a manutenção do consumo da unidade doméstica,

mas também para a “acumulação” de produtos e dinheiro, o que seria demonstrado pela

utilização do alugado nas terras de agricultores. Mas mesmo quando havia

“acumulação”, a lógica produtiva obedeceria aos princípios do cálculo econômico

camponês, ou seja, a “acumulação” ocorreria dentro de limites ditados pelo consumo

socialmente necessário para a reprodução da unidade doméstica, medido pelo número

de membros, sobretudo homens, com idade ativa de trabalho. Nas palavras do autor,

portanto, quanto maior a ameaça ao consumo doméstico e à reprodução social camponesa, maior será a tendência ao princípio da alternatividade operar. E ao inverso, quanto maior a estabilidade das condições sociais de produção e consumo e da reprodução destas condições, maior será a tendência à especialização em lavouras comerciais, a se transformar num farmer (Ibidem, p. 127, grifos no original)

Contudo, ressaltava o autor, as duas situações apontariam somente “tendências”,

ou seja, essas transformações não se dariam num único sentido de forma irreversível, já

que para os agricultores, até mesmo nos casos de “farmerização” (ou seja, de

especialização da atividade produtiva), o cálculo do que fosse socialmente útil para

suprir o consumo da unidade doméstica seria realizado continuamente a todo momento,

a depender da própria flutuação de preços no mercado (Ibidem, p. 127).

A contraposição entre agricultores e agricultores fracos, portanto, fazia

referência a um processo de diferenciação social entre camponeses. Mas, como

ressaltava Garcia Jr., atentar para essa diferenciação não seria o mesmo que afirmar,

como em algumas análises, que a presença da “forma salário” entre camponeses estaria

necessariamente associada a um processo de proletarização. Retomando a tese

fundamental de Palmeira sobre as transformações na plantation tradicional e suas

repercussões para o campesinato, afirmava o autor que “o processo de expropriação

precede logicamente o processo de proletarização. Mas nada garante que sejam

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processos simultâneos” (Ibidem, p. 190). Assim, em referência a Marx, Garcia Jr.

salientava que produção e circulação mercantis apareceriam antes da consolidação do

modo capitalista, o qual suporia a existência do trabalho assalariado, ou seja, a

transformação da força de trabalho em mercadoria. A renovação das condições sociais

que permitiriam a permanência do trabalho assalariado no modo de produção capitalista

- a saber, a liberdade jurídica do trabalhador, igualada ao do capitalista, e a

impossibilidade de vender os produtos de seu trabalho, mas tão somente a sua força de

trabalho – não seriam satisfeitas entre camponeses da Paraíba por dois motivos

principais: primeiro, porque a propriedade da terra permitiria que grande parte da força

de trabalho permanecesse submetida ao mando dos fazendeiros, visto pelos

trabalhadores como sujeição; e segundo porque mesmo o trabalho alugado - situação

tida como mais próxima do assalariado - estava associado a outras formas de produção

agrícola, seja para o autoconsumo, seja para venda. Embora o salário fizesse parte

dessas relações, não se constituíram, portanto, as condições para a efetivação do

trabalho assalariado.

A produção capitalista, produto da diferenciação social entre camponeses, só

seria possível caso se aglutinassem, em um polo, grupos com terra e capital de forma a

dispensar o trabalho familiar, recorrendo ao trabalho pago, e no polo oposto,

trabalhadores que não tivessem alternativa a não ser vender sua força de trabalho; o que

não ocorria no caso estudado porque, mesmo com as modificações da plantation, havia

um processo correlato de “encampesinamento”. A vivência da condição plena de

assalariado se realizaria principalmente quando da ida dos trabalhadores – algo corrente

entre todas as categorias agricultores, rendeiros, meeiros, alugados – para o Sul. E

mesmo nesses casos, a migração faria parte do cálculo da família seja para aliviar a

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pressão oriunda dos membros em idade para trabalhar, seja para conseguirem melhores

salários e, dessa forma, comprarem terras na região de origem.

Para Garcia Jr., as estruturas encontradas no campo de pesquisa poderiam ser

reveladoras de processos mais amplos, a partir do momento em que fosse localizado o

jogo de posições e oposições sociais específicos do caso estudado. Nesse sentido, o

estudo de caso na Paraíba revelaria mecanismos de reprodução camponesa comuns ao

caso de Pernambuco estudado por ele, mas também revelaria diferenças advindas, entre

outros fatores, da utilização do negócio e do trabalho alugado não somente para a

reprodução, mas para a acumulação camponesa (cf. Garcia Jr.; Heredia; France Garcia,

1978).

Para Garcia Jr., portanto, o processo de diferenciação social dos camponeses da

Paraíba, tal como identificado por este último autor, não seria irreversível, sendo o

trabalho alugado – assim como outros mecanismos de reprodução e acumulação da

unidade doméstica –uma “virtualidade” sempre presente no cálculo da família

camponesa. Essas complexas relações só poderiam ser reveladas – tal como observado

nas discussões internas do grupo do Projeto Emprego – caso se operasse a fragmentação

da “comunidade camponesa”, revelando suas diferenças internas a partir das categorias

e práticas dos agentes estudados (Garcia Jr., p. 23)77. A recorrência do trabalho

alugado, dentro das circunstâncias que envolveriam a lógica do cálculo camponês,

conforme descritas por Garcia Jr., revelaria que a simples presença da “forma salário”

não correspondia ao “trabalho assalariado”, e que, portanto, a diferença entre o alugado

77 É elucidativo dessa perspectiva que Garcia Jr. tenha destacado a seguinte passagem do livro “Basic concepts of rural sociology” de Boguslaw Galeski, importante sociólogo rural polonês: “A propósito, a questão se o termo ‘classe camponesa’ ou o de ‘estrato camponês’ é o mais adequado apareceria como mal formulada. Se ignorarmos os tons emocionais desses termos, e os considerarmos sob o prisma dos argumentos anteriores, a questão seria posta da seguinte maneira: ‘em que situações a comunidade rural continua a agir como uma classe, e em que situações é necessário levar em consideração, em primeiro lugar e como fator básico, a diferenciação interna à classe no campo?’”(Galeski, 1972, p. 118 apud Garcia Jr., 1989, p. 267).

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e o agricultor não seria equivalente àquela entre proletário e camponês78. Ainda

segundo o Essas formas de trabalho não se dissociariam, mas o contrário, elas se

relacionariam segundo a própria especificidade do cálculo econômico camponês – que

não teria nada de “tradicional”, mas se adaptaria de acordo com as circunstâncias. Esse

ponto fica mais claro quando Garcia Jr. diferencia as condições que envolvem o

emprego (trabalho assalariado no Sul) e o alugado no Norte. Nas palavras do autor,

neste sentido, o emprego no Sul representa uma estabilização da venda da força de trabalho que de jeito algum se encontra no alugado do Norte. Mesmo a acumulação dos agricultores não engendra a possibilidade de formas análogas ao emprego no Norte, o que significa que o crescimento do alugado representa mais um processo de pauperização da força de trabalho a ele submetida, que uma transformação que permita que a venda da força de trabalho assegure a reprodução do trabalhador e de seu grupo doméstico (Garcia Jr., p. 269, grifos no original).

Garcia Jr. busca na própria diferenciação interna da “comunidade camponesa”, a

partir da ideologia de seus diferentes agentes, a explicação para as suas especificidades,

elucidativas que seriam das formas de trabalho e de articulação com o mercado. Como

observava o autor, não se trataria de “mania de antropólogo”, tão simplesmente, mas de

tratar a própria diversidade (posições e oposições sociais) do campesinato como núcleo

daquilo que deveria ser explicado. Em suas palavras,

78 Essas questões seriam expostas por Garcia Jr. no “I Encontro da realidade Nordestina” realizado em Campina Grande (Paraíba) em 1980, ocasião em que o seu texto, intitulado “Salário e campesinato”- incluído como conclusão de sua tese de doutoramento - seria comentado por José de Souza Martins. A principal crítica de Martins era de que as questões de método observadas (sobretudo a ausência de “mediações” das relações sociais, que se vinculariam a “contradições”) levariam Garcia Jr., a contragosto do próprio pesquisador, a uma “concepção evolucionista” (Martins, 1980a, p. 374), e, além disso, a recusar a tese da proletarização do camponês “em favor de uma concepção alternativa de aburguesamento e proletarização do mesmo campesinato, como duas possibilidades (ao invés de uma só)” (Ibidem, p. 374). Muito embora o próprio Martins ressaltasse que o processo de diferenciação social do campesinato estudado por Garcia Jr. - “certamente o ponto mais delicado do trabalho” - não fosse inexorável, tratando-se de acumulação e desacumulação cíclicas (Ibidem, p. 378), apontava o sociólogo como Garcia Jr. deixou de notar como esse processo se desenvolvia tendo por “mediação” a renda da terra, ou seja como o preço da terra convertia a renda em capital nas mãos dos fazendeiros, limitando a acumulação camponesa. Para Martins, era significativo que Garcia Jr. “fale em auto-exploração [da unidade doméstica] e não localize o beneficiário da exploração, que é o capital”, e prossegue afirmando que isso decorreria do fato de que “o autor toma acumulação no sentido weberiano de acumulação individual e não no sentido histórico-concreto de acumulação social, de produção social e apropriação privada” (Ibidem, p. 380).

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trabalhar com a heterogeneidade das relações sociais não é, assim, uma questão descritiva, uma mania de antropólogo com o rigor empírico, mas a condição de possibilidade de constituir um campo de questões a serem examinadas, uma problemática (Ibidem, p. 27).

Por fim, gostaríamos de destacar a tese de doutorado de Beatriz Heredia,

intitulada “Formas de dominação e espaço social”, publicada em 1988, mas defendida

em 1986 e orientada por Luiz de Castro Faria. A tese baseia a escolha de seu objeto na

comparação dos “casos” de Pernambuco, estudado pela autora em sua dissertação de

mestrado, e Alagoas. Diferente do primeiro estado, em Alagoas o processo de

transformações da plantation tradicional não havia se traduzido em lutas políticas.

Outro fator pesou nessa escolha: o caráter da modernização da plantation associando

alta tecnificação, expansão do cultivo de cana-de-açucar, com forte intervenção do

Estado. Contudo, o que Heredia pretendia demonstrar era que, paralelamente à

propalada “modernização” da plantation nordestina, ocorreram mudanças sociais

relativamente autônomas à tecnificação da produção. Para tanto, a autora percorre um

longo período histórico de ocupação do espaço do sul do estado Alagoas, precisamente

na microregião de Tabuleiros de São Miguel dos Campos, para mostrar como as

mudanças que observara atingiu o “sistema de engenho”, consubstanciado na relação

proprietário-morador.

Observava a antropóloga que, em outras épocas, a inovação tecnológica “não

implicou necessariamente mudanças nas relações sociais existentes entre grandes

proprietários, trabalhadores (moradores) e pequenos produtores” (Heredia, 1988, p. 17),

algo perceptível na própria organização do espaço uma vez que engenhos e usinas

foram alargando suas áreas para além dos “vales” úmidos e ocupando os “tabuleiros”,

região tradicionalmente tida como inapropriada ao cultivo da cana-de-açúcar.

Justamente nessas regiões ficavam localizados pequenos produtores e posseiros (“povo

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148

dos sítios”) e as áreas destinadas às casas dos moradores, ambas às “margens” da

plantation. Em relação aos últimos, o senhor de engenho exercia uma dominação mais

direta, concedendo o acesso à terra e autorizando benfeitorias como o roçado ou sítios.

Algo que não era possível fora dos limites de sua propriedade, como em relação ao povo

dos sítios, senão através de uma dominação “indireta” e em competição com outros

senhores de engenho (Ibidem, p. 147-148). Algumas estratégias eram empregadas para

trazerem esses camponeses para a órbita de mando direto do senhor de engenho, entre

elas a oferta de morada, com construção da casa, autorizando-se o sítio (que, ao

contrário do roçado, significava o acesso a uma parcela maior de terra com

possibilidade de produção de cultivos de ciclo longo, bem como de criação de animais);

a insistência de que os pequenos produtores comprassem no barracão do engenho; a

concessão de terras para arrendamento; além de vínculos estabelecidos a partir da

vizinhança, parentesco (batismo e compadrio). Por outro lado, as estratégias de

acumulação e ascensão dos pequenos proprietários do povo dos sítios passavam pelas

diversas concessões e benesses dos senhores de engenho, o que não deixava de

apresentar seus limites como, por exemplo, na discriminação, por parte dos senhores de

engenho, de que somente alguns desses camponeses pudessem plantar a cana em suas

terras (os chamados lavradores). Como observava Heredia, o mapa das relações sociais

da plantation alagoana permitia afirmar que o domínio dos senhores de engenho não

guardava correspondência com os limites jurídicos de sua propriedade, ultrapassando-os

para o povo dos sítios, configurando um “sistema social” em cujo centro se encontrava o

engenho.

O decisivo, ainda de acordo com Heredia, era que as transformações recentes na

plantation alagoana, impulsionadas, sobretudo, pela alteração das estratégias

econômicas de senhores de engenho e usineiros na ocupação de novas terras,

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estimuladas em grande medida por políticas estatais, como o Instituto do Açúcar e do

Álcool (1971), atingiram o “sistema de engenho” e o conjunto de posições e oposições

sociais que o sustentava. Embora alguns atores fossem os mesmos, o esforço de análise

recaia na identificação de novos atores sociais e na reconfiguração das relações

estabelecidas entre os grupos sociais. Assim, não deixava de ser ilustrativo dessa nova

situação o fato de que no embate com as novas formas de produção introduzidas pela

“usina”, os senhores de engenho se utilizassem das mesmas estratégias do engenho para

que moradores e o povo dos sítios (através do incentivo aos lavradores) aumentassem a

produção de cana. Afinal, as mudanças sociais na região não se deram alterando por

completo o funcionamento do “sistema de engenho”, mas foi necessário para as novas

acomodações.

Se a saída do morador das terras dos engenhos era fato corriqueiro dentro do

“sistema”, já que não tardaria para que o trabalhador encontrasse nova morada em outra

propriedade, as transformações da plantation, segundo Heredia, apresentavam uma

ruptura dessa dinâmica, tornando-se cada vez mais difícil o acesso do morador a outras

terras de engenho. Isso se deu, como vimos, com a expansão do cultivo de cana em

direção aos “tabuleiros”, fato que não impossibilitou somente o cultivo dos roçados,

mas também o acesso à lenha, fonte fundamental para produção de energia, construção

e reparo das casas e cercas. Correlato a isso, o imperativo do aumento de produção de

cana representou maiores exigências dos proprietários em relação ao trabalho coletivo

dos moradores nos engenhos. A regulação na oferta de mão-de-obra passava a ser

atribuição não mais dos senhores de engenho, mas de intermediários, como os

empreiteiros, responsáveis pela arregimentação de trabalhadores fora do engenho, e os

administradores, que cumpriam a função de deslocar os moradores para trabalhar em

outros engenhos, sobretudo, na época de entressafra. Estratégias, de acordo com a

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150

antropóloga, que serviam de ajuste dos senhores de engenho e usineiros às exigências

técnicas na produção de cana, regulamentadas pelas iniciativas governamentais. Como

consequência, assistiu-se o inchaço das cidades, como a de Feira Nova, no município de

Junqueiro. Se a vida na cidade (rua) poderia ser sentida como de liberdade em relação

ao cativeiro da vida do engenho, salientava Heredia, o sinal se inverte quando

comparada a situação de penúria atual com as garantias contidas na relação de morada,

que, ao menos, permitia a reprodução mínima da unidade doméstica e o acesso à terra.

O processo de expropriação levado a cabo pela expansão da plantação de cana

nos “tabuleiros” atingiu não somente os moradores, mas o povo dos sítios. Em relação a

este, as estratégias dos usineiros de expansão foi a de, principalmente, compra e venda.

Mas, como advertia a autora, o mercado de terras foi criado a partir de mecanismos

extra-econômicos, de modo que se tornasse atrativo aos pequenos proprietários e

posseiros a venda de suas terras (Ibidem, p. 185). Assim, usineiros se utilizaram de

“intermediários”, em geral seus empregados, para negociarem e comprarem as terras

desses pequenos proprietários, tornando imperceptível, aos olhos destes últimos, o

deslocamento que se operava de diversas parcelas de terras contíguas para aos mãos

daqueles usineiros. Além disso, a própria valorização da área dos “tabuleiros” forçou a

subida dos preços, sendo inviável, para aqueles camponeses que venderam suas terras, a

compra de novas parcelas em zonas mais distantes. Em relação aos posseiros (categoria

cujas terras nem sempre eram demarcadas juridicamente), os mecanismos eram

distintos, mas a expropriação os atingiu com a mesma intensidade. Não raro, senhores

de engenho se valiam da repartição das terras entre herdeiros de uma família, divisão

que não era registrada legalmente, para comprar apenas uma daquelas parcelas, e logo

em seguida reivindicar a delimitação de toda a área anterior à divisão. Outros posseiros,

receosos de que as usinas reivindicassem como suas as terras não registradas

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legalmente, apressaram-se a vendê-las. Para a maioria dos posseiros, não restou senão a

rua e o trabalho alugado como alternativa.

Como não poderia deixar de ser, todas essas mudanças atingiram em cheio o

“sistema de engenho”, no núcleo do qual se encontrava a morada. A partir de então, não

seria mais possível uma trajetória ascendente no interior da plantation, e a socialização

dos filhos de camponeses não ocorreriam mais no roçado, mas no trabalho alugado. Do

mesmo modo, as relações pessoais que envolviam senhor de engenho e morador foram

enfraquecidas por outras formas de intermediação, como a dos os empreiteiros, e

extintas, por fim, as garantias da morada. No que toca ao povo dos sítios, sua autonomia

foi severamente restringida, sendo o acesso à terra feito somente no interior da

plantation, não mais para ter roçado (como na época da morada), mas para botar

roçado, designações que exemplificam o caráter temporário das relações de trabalho nas

usinas (Ibidem, p. 197). A modernização da indústria canavieira em Alagoas envolveu

uma redefinição do sistema de posições sociais, algo que tornou a expropriação do

campesinato, diferente do caso pernambucano, processo de maior amplitude. Como nos

outros trabalhos aqui recompostos, “Formas de dominação e espaço social” pôs em

prática a perspectiva metodológica discutida pelo grupo do Projeto “Emprego”, na qual

as trajetórias – ascendente ou descendente – de um grupo social não pode ser

compreendidas em sua totalidade sem a recuperação das variadas relações estabelecidas

com outros grupos no interior de um sistema. Mais do que limitar uma comunidade

camponesa, era preciso detectar suas distinções internas e as relações que cada categoria

estabelece uma com as outras.

Como destacado nas discussões do grupo do Projeto Emprego, os trabalhos de

seus integrantes aqui recuperados revelam as possibilidades heurísticas de aplicação do

conceito de “comunidade camponesa” em um contexto de modificações significativas

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no “sistema de plantation”. Sistema que pressupunha uma organização específica das

posições sociais, posto que a submissão ao modo de produção capitalista definiria a

função de mediação do fazendeiro com o mercado e o isolamento dos trabalhadores. A

modificação dessa estrutura social levaria a uma miríade de posições e oposições sociais

- ainda que submetidas aos movimentos da plantation - que o conceito de

“comunidade”, tal como tradicionalmente trabalhado, não poderia dar conta. Os

argumentos, apresentados pelas discussões do Projeto Emprego, favoráveis a ideia de

um campesinato passível de ser apreendido em sua diversidade seria fundamental para

avançar nos estudos sobre este agente na plantation nordestina. Contudo, estas

formulações não ficariam restritas ao campesinato no Nordeste. No próximo capítulo

veremos como os estudos camponeses nas regiões de fronteira na Amazônia permitem

divisar, em relação aos trabalhos do Projeto Emprego, questões teóricas de fundo que

extrapolam a referência a um caso empírico específico.

Capítulo 4

O campesinato em movimento

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153

“(...) o sertão está movimentante todo-tempo – salvo que o senhor não vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos (...)” (Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas)

O Projeto Emprego, como vimos, nascera de um investimento coletivo de

pesquisas no Nordeste, notadamente na Zona da Mata e no Agreste de Pernambuco,

tomando como foco o funcionamento da plantation. Embora inicialmente circunscrito

àquela região, como denotava seu título, o Projeto expandiria suas primeiras

formulações para outras áreas, como Mato Grosso e Rio de Janeiro. Isso porque,

conforme Moacir Palmeira, Afrânio Garcia Jr. e José Sérgio Leite Lopes, a equipe

estava “preocupada mais com problemas teóricos do que com áreas geográficas” e, aos

esforços anteriores de pesquisa, somaram-se “ao de pesquisadores ou conjunto de

pesquisadores que trabalhavam em áreas de frentes de expansão e com as chamadas

‘camadas de baixas rendas’ dentro das grandes cidades” (Palmeira, Garcia Jr., Leite

Lopes, 1979, p. 2). Se, por um lado, a integração de novas áreas de pesquisa atendia o

anseio dos pesquisadores de prosseguirem com seus trabalhos em tempos de “crise”, por

outro lado, como assinalavam os autores, “o Projeto representaria a identificação de

subsídios de alguma importância para serem pensados problemas que se mostravam

cruciais para economistas e planejadores, como o da distribuição de renda” (Ibidem, p.

3).

Nesta seção, trabalharemos com os relatórios finais do Projeto Emprego,

disponíveis na biblioteca Francisca Keller do PPGAS buscando justamente recompor a

interface entre os interesses das agências financiadoras e do grupo de pesquisadores. A

disposição dos relatórios fora a seguinte: o volume um, tomo um, não publicado nos

relatórios, seria dedicado aos trabalhadores rurais, que junto com o tomo dois, dedicado

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aos trabalhadores urbanos, receberiam o título “Mudança social no Nordeste: a

reprodução da subordinação”79. O volume dois fora intitulado “Problemas da formação

do campesinato”, o qual era apresentado por Neide Esterci e Alfredo Wagner Berno de

Almeida como uma “inovação” em relação aos demais relatórios por conjugar nas

pesquisas a perspectiva antropológica e histórica80; o volume três “Proletariado e vida

urbana: relatórios intermediários de pesquisa” apresentava alguns trabalhos preliminares

com trabalhadores urbanos (delimitação de áreas, grupos e temas)81; volume quatro

“Reprodução social e mudança”, o mais diversificado dos relatórios, tratava das

variadas estratégias de reprodução do campesinato, suas formas de produção e

79 Apenas o tomo dois foi publicado nos relatórios, e em 1979 em livro, com o título “Mudança social no Nordeste: a reprodução da subordinação – Estudos sobre trabalhadores urbanos”. Nele continham os seguintes trabalhos, além da “Introdução” assinada por Luiz Antonio Machado e José Sergio Leite Lopes: “Fábrica e vila operária: considerações sobre uma forma de servidão burguesa” de José Sergio Leite Lopes, “Notas sobre a família num grupo de operários têxteis” de Maria Rosilene Barbosa Alvim, “O mercado de trabalho dos operários têxteis numa grande cidade regional” de Jorge Eduardo Saavedra Durão, “Alternativas de trabalho e Estratégias de consumo de operários numa grande cidade regional” de Maria Cristina de Melo Marin, “Notas sobre os pequenos estabelecimentos comerciais” e “A oposição entre trabalho doméstico e trabalho feminino remunerado” de Luiz Antonio Machado da Silva, e, por fim, “Notas sobre a carteira de trabalho e a cobertura previdenciária” de Amélia Rosa Teixeira. O segundo tomo, dedicado aos trabalhadores rurais, como dito anteriormente, não saiu nos Relatórios e não chegou a ser publicado. No entanto, no arquivo do Projeto Emprego/NUAP/MN, encontramos o que seria a “Introdução” desse tomo escrito por Afrânio Garcia Jr. Segundo o próprio autor e Moacir Palmeira, o texto citado seria apenas uma parte que comporia a “Introdução”, sendo a outra escrita por Palmeira. O original desta segunda parte não foi encontrado, mas somente uma versão dele intitulado “Trabalho livre nos engenhos: renda, salário e dívida” (mimeo, 2003). Neste texto, Palmeira afirma que o tomo dedicado aos trabalhadores rurais reuniria os seguintes trabalhos: “‘Terras soltas’ e avanço da cerca: sobre o cercamento das pastagens comunais no sertão” de Alfredo Wagner Berno de Almeida e Neide Esterci; “Crédito e cooperativa para o pequeno produtor (um estudo de caso)”; “Imobilização da mão de obra no sertão paraibano” de Eliane Catarino O`Dwyer Bastos; “Feira e diferenciação social” de Marie-France Garcia; “Salário e campesinato” de Afrânio Raul Garcia Jr.; “Aspectos referentes a relaciones de vecinidad y parestesco” de Beatriz Heredia; “Vila de engenho” de Doris Rinaldi Meyer; “O plantio de cenoura para pequenos produtores do agreste de Pernambuco” de Regina Novaes; “A expropriação e os mecanismos de expulsão” e “As vendas da ponta de rua”, ambos de Lygia Sigaud. 80 As pesquisas contidas nesse volumes foram: “Quixadá: a formação do povoado e o acesso à terra pelos pequenos produtores” e “Terras soltas e o avanço das cercas” de Alfredo Wagner Berno de Almeida e Neide Esterci, “São Pedro: formação de um povoado” de Doris Rinaldi Meyer, “A formação do campesinato no município de Pedreiras, Maranhão” de Neide Esterci, “A crise da lavoura maranhense no último quartel do século XIX” de Alfredo Wagner Berno de Almeida e “Colonização e emigração no Maranhão no século XIX” de Alfredo Wagner Berno de Almeida. 81 O volume continha os trabalhos “Recife: relatório intermediário” de Luiz Antonio Machado da Silva, Amélia Rosa Sá Barreto Teixeira, Ademir Figueiredo, Filipine Chinelli, “Relatório intermediário de pesquisa em um grupo operário no Grande Recife” de Maria Rosilene Barbosa Alvim e José Sergio Leite Lopes, e “Um estudo de representação operária numa grande cidade regional” de Jorge Saavedra Durão.

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155

consumo, além de revisões bibliográficas sobre o assunto82; volume cinco “A invenção

da Migração” é um longo ensaio de Moacir Palmeira e Alfredo Wagner Berno de

Almeida sobre os limites dos diversos sentidos da categoria “migração” a partir de um

extenso conjunto de livros e artigos sobre o assunto; volume seis, intitulado,

“Levantamento bibliográfico sobre emprego e migração” apresentava as listas de fontes

bibliográficas e acervos consultados, cujos assuntos e temas serviram para configurar os

campos de debate e sistematizar as formulações sobre as categorias de “migração” e

“emprego”. Como anexo, os Relatórios continham as seguintes dissertações de

mestrado: “A morada da vida” (1977) de Beatriz Heredia; “Terra de trabalho” (1976) de

Afrânio Garcia Jr.; “O Bacurau” (1977) de Marie-France Garcia; “Migrantes

estacionales de la región del agreste del Estado de Pernambuco” (1977) de Roberto

Ringuelet e “Laranja e Lavoura branca” (1977) de Eliane Cantarino O'Dwyer, todas

orientadas por Moacir Palmeira. Ainda constava como anexo a tese de doutorado de

Lygia Sigaud, “Os clandestinos e os direitos” (1972).

Em sua unidade, os relatórios se organizam em torno de dois principais eixos: o

primeiro se refere ao intento de criar pontes de diálogo com as instituições financiadoras

do Projeto, articulando conceitos econômicos com uma perspectiva antropológica. Isso

significava que os relatórios, de forma geral, buscaram refinar conceitos aplicados à

interpretação da reprodução econômica das “camadas de baixa renda” - algo que já

82 Este volume foi dividido em duas partes: a primeira, intitulada “Emprego e estratégias de produção e consumo”, reunia os textos “Notas críticas ao ‘Desemprego e Subemprego no Brasil’” de José Sergio Leite Lopes, “Lavoura Branca para o gasto ou laranja para vender? Hábitos alimentares de produtores de laranja no Estado Rio de Janeiro” de Eliane Cantarino O´Dwyer Gonçalves Bastos, “Emprego e serviço: estratégias de trabalho e de consumo entre operários de Campina Grande (Paraíba)” de Maria Cristina de Melo Marin, e “O ‘tradicionalismo camponês’ segundo a ‘antropologia da tradição’” de José Sergio Leite Lopes. A segunda parte do volume, intitulada “Expropriação e trabalho assalariado no campo”, reuniu os textos “Expropriação camponesa e trabalho assalariado em áreas de plantation e fronteira” de Lygia Sigaud, Laís Mourão e Neide Esterci, “Reprodução social e escolha de residência” de Regina Novaes, “Campesinato e peonagem numa área de expansão capitalista” de Neide Esterci, “O ‘bóia-fria’: acumulação e miséria’ – uma resenha crítica” de Leilah Landim Assumpção e, por fim, “Campesinato, fronteira e política” de Moacir Palmeira.

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ocorria desde as primeiras investigações do grupo no Nordeste e com as pesquisas de

Afrânio Garcia Jr. e José Leite Lopes no Grupo de Pesquisas da FINEP. Ao contrário

das análises econômicas correntes, assentadas na literatura “clássica” (Stuart Mill,

David Ricardo, Adam Smit), que trabalhavam com as ideias centrais de “lucro”,

“emprego”, “valor”, “mercado”, “desenvolvimento”, “progresso técnico”, o grupo de

antropólogos propuseram, através de análises de campo, relativizar esses conceitos de

acordo com as próprias representações e práticas dos agentes estudados. A própria

noção de “racionalidade econômica”, difundida por aquela literatura econômica através

da imagem do indivíduo que age segundo cálculos constantes de ganhos e perdas, seria

totalmente resignificada pelo grupo de antropólogos tendo em vista a inserção de

práticas sociais em formas de produção não-capitalistas – sobretudo as unidades

familiares. Diversos comportamentos econômicos seriam, segundo o grupo de

antropólogos, igualmente “racionais”, desde que seus sentidos fossem contextualizados

em formas não monetárias de troca (relações de vizinhança, “dons” e herança). Nesses

sistemas econômicos não-capitalistas, a “circulação”, mais propriamente do que o

“equilíbrio” entre produção e consumo, seria a esfera de que se ocupariam as análises

antropológicas (Love, 1998).

As análise microeconômicas, apresentadas através da perspectiva antropológica

dos relatórios, subsidiariam as de caráter macro que circulavam naquele momento sobre

o debate da desigualdade de renda. O “mercado de trabalho” não seria pensado somente

como a produção de bens, nem somente como dividido entre aqueles que vendem a

força de trabalho e os donos de meio de produção que a compram: ele começaria no

interior da família, com suas divisões internas (homens, mulheres, filhos), inserindo-se

localmente em relações entre famílias, e expandindo-se na comunicação campo-

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cidade83. Essa perspectiva demonstrava sua relevância, sobretudo, quando

consideramos o diálogo com instâncias estatais em um contexto de intensa promoção e

incentivo de financeirização e modernização da estrutura agrária brasileira, cujo modelo

era o “agrobusiness” norte-americano com pouco espaço para formas de produção

camponesas (cf. Maia, 2014).

O segundo eixo que estrutura os relatórios refere-se a uma concepção de

campesinato “relacional”. Tal como a operação de “desreificação” do conceito de

“comunidade”, os antropólogos compreenderiam o de “campesinato” em suas múltiplas

relações internas e externas, nas quais as diversas categorias sociais que o compunham e

as variadas formas de produzir de cada uma delas entravam em “relação” e

configuravam aquilo que designo como o “campesinato em movimento”. Essa era uma

perspectiva que se colocava no nível do “pressuposto” (cf. Alexander, 1982) das

análises dos relatórios e que fora explicitada – embora nem sempre sistematizada

teoricamente - no Projeto através da noção de “redes de relações” que apontariam para o

analista as “unidades sociologicamente relevantes” (cf. Palmeira et alli, 1976, p. 234)84.

Nesse sentido, as transformações da plantation tradicional ensejaram não só a

rearticulação dos grupos sociais que a integravam, mas exigiu dos atores a criação de

estratégias para fazer frente a novas formas de dominação econômica e social.

Estratégias essas que se configuraram nos “deslocamentos”, “migrações” e nas amplas

relações estabelecidas entre os agentes, perpassando diferentes espaços e “sistemas

83 A adequação de conceitos oriundos da economia clássica em realidades muito distintas do “sistema capitalista”, como o camponês, foi amplamente explorado por Stanziani (1998) na reconstituição do debate entre marxistas e “populistas” na Rússia. 84 Durante os anos 1970 as análises de “redes” sociais ganharam grande importância, recuperando principalmente os trabalhos antropológicos da Escola de Manchester e da sociologia americana de Harrison White. Grosso modo, por “redes” entende-se uma série de laços entre indivíduos que perpassam diferentes grupos e categorias sociais. A própria definição de “grupo” e “categorias” sociais ficaria em aberto já que eles estariam sempre se refazendo a partir das várias relações estabelecidas entre os indivíduos. É interessante notar que o livro da antropóloga canadense Elizabeth Bott, “Family and social network”, trabalho importante de análise de “redes”, constasse como referência bibliográfica no texto do Projeto (Palmeira et alli, 1976, p. 234).

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sociais”, como a plantation e a “fronteira”, “rural” e “urbano”, e interligando distintas

categorias sociais – “moradores”, “pequenos proprietários”, “posseiros”, “peões”,

trabalhadores assalariados85.

Para demonstrar como esses eixos informaram a orientação geral contida nos

relatórios finais, selecionaremos alguns dos trabalhos de acordo com os seguintes

critérios: primeiro, a discussão sobre as transformações da plantation tradicional,

principalmente a quebra do “isolamento” dos trabalhadores em seu interior, e

repercussão delas na diversificação das posições sociais, bem como nas estratégias

traçadas pelos agentes para fazer frente a novas formas de dominação. Isso será feito

através das discussões mais amplas levantadas pelas “Introduções” dos relatórios

dedicados à parte rural e urbana do Projeto. Segundo, reconstituiremos algumas análises

sobre a “fronteira”, tema candente à época, e de como esse “espaço” e seu agente

principal, o “posseiro”, tinham suas especificidades determinadas por relações múltiplas

com outras categorias sociais. E, por fim, veremos como diversos trabalhos de “revisão

bibliográfica”, contidos nos relatórios, questionaram certas concepções, categorias e

conceitos quando diretamente aplicadas ao campesinato, sem as mediações empíricas e

teóricas julgadas necessárias pelo grupo.

4.1 O “isolamento” camponês e estratégias de reprodução

85 No capítulo II vimos como o “sistema de plantation” ocuparia o lugar central dessa “rede de relações”, algo reafirmado na carta de 26 de setembro de 1974 do diretor do Museu Nacional, Dalcy de Oliveira Albouquerque ao superintendente do IPLAN, Roberto Cavalcanti. A carta encaminhava uma versão do Projeto, no fim do qual se ressaltava que “o critério para a seleção de áreas de frente de expansão, segundo os pesquisadores, será a presença de migrantes nordestinos e, se possível, de áreas cobertas pelas situações-tipo discriminadas” (Arquivo IPEA, 1974, p. 38). Do mesmo modo, no “Relatório administrativo e financeiro” enviado às instituições financiadoras, em maio de 1976, o grupo destacava que a escolha das áreas de pesquisa obedecia não somente às experiências prévias dos pesquisadores mas também às “transformações da grande plantação nordestina e sua relação com o crescimento da força de trabalho urbana e de suas condições de vida por um lado, e a expansão de um campesinato de fronteira no Norte, por outro lado” (Arquivo FINEP, 1976, p. 1050).

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Em outra ocasião tivemos a oportunidade de recompor uma vertente dos

“estudos rurais” brasileiros em que o “isolamento” tornara-se variável central para o

entendimento vida social camponesa, seja ao evidenciar o desenvolvimento de uma

estrutura social apartada da “civilização litorânea” ou da sociedade moderna - motivo da

manutenção de um estilo de vida tradicional e uma tipo dominação pessoal-, seja ainda

para questionar de que forma a quebra do isolamento poderia ser fator não só de

desequilíbrio, mas também de manutenção desses mesmos grupos (Carvalho, 2011).

Partindo das formulações clássicas de Euclides da Cunha, passando pelos “estudos de

comunidade” de Emílio Willems e pelo trabalho clássico de Antonio Candido sobre “Os

parceiros do Rio Bonito” [1954] constatamos como essas diferentes pesquisas

constituíram uma “sequência cognitiva” (Botelho, 2007) fundamental para a

compreensão das formulações contidas no conjunto da obra de Maria Isaura Pereira de

Queiroz.

Os trabalhos de Antonio Candido e de Queiroz tiveram significativa recepção

entre pesquisadores do Projeto Emprego (Garcia Jr. & Grynszpan, 2002, p. 325), entre

os motivos principais porque transitavam bem entre teorias antropológicas e

sociológicas, com ênfase no trabalho de campo, como também, particularmente no caso

de Queiroz, por questionarem a visão do campesinato como atado à “tradição”, cujo

modo de vida permaneceria intocado devido ao “isolamento” em que se encontrava em

muitas partes do país. Nesta seção veremos como o conjunto de pesquisas do Projeto

Emprego – em que pese sua diversidade temática – pode ser inserido nessa longa

tradição de estudos rurais brasileiros justamente por buscar uma visão mais matizada do

campesinato, relacionando-o com suas estratégias de articulação com a sociedade de

mercado.

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Conforme já mencionado, o Projeto “Emprego” se dividira em duas frentes de

trabalho: uma dedicada à área rural, à cargo de Moacir Palmeira e Afrânio Garcia, e

outra à área urbana, à cargo de Luiz Antonio Machado e José Sergio Leite Lopes. A

organização dos Relatórios também seguiu essa divisão, cabendo ao volume um, tomo

um, a apresentação das pesquisas sobre os trabalhadores rurais, e ao tomo dois, a

apresentação das pesquisas sobre os trabalhadores urbanos. Ao reunirem os estudos

realizados em espaços rurais e urbanos, os autores buscavam fornecer um quadro o mais

amplo das transformações na plantation tradicional que abriram um variado leque de

posições sociais e de relações entre elas. Preocupava-se o grupo de antropólogos,

segundo Palmeira, Garcia Jr. e Leite Lopes (1979, p. 6), em ressaltar como os

mecanismos de dominação oriundos do “sistema de plantation” ou mais recentes, como

ocorriam nas cidades, revelavam, em contrapartida, formas variadas de resistência

dessas populações de “baixa renda” àqueles mecanismos. Segundos os autores, as

pesquisas do Projeto Emprego se desenvolveram em um momento específico da

conjuntura nacional em que a repressão parecia tornar os trabalhadores rurais e urbanos

“‘invisíveis’ aos olhos da chamada ‘opinião pública’”. Contrários à tendência em

estudar esses agentes somente nos momentos mais espetaculares, quando as lutas

sociais emergiriam com mais força, os pesquisadores afirmavam que estavam em

“busca da anatomia interna desses grupos sociais, de suas diferenciações e contradições

internas, e de sua insatisfação com a ordem social lá de onde as aparências para

observadores externos ao grupo nada registram ou indicam” (Ibidem, p. 6).

Em “Introdução” ao livro sobre as pesquisas dedicadas à parte rural do Projeto

Emprego86, a questão do “isolamento” do campesinato aparece atrelada aos sentidos

86 Conforme ressaltado anteriormente, o relatório dedicado às pesquisas em áreas rurais não fora publicado nos relatórios e nem como livro, como era previsto. A “Introdução” a esse volume seria composta por textos escritos por Afrânio Garcia Jr. e por Moacir Palmeira. No acervo do Projeto

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assumidos pelas transformações na plantation. Vimos anteriormente que, para Moacir

Palmeira, o “isolamento” social e econômico a que era relegado o camponês advinha de

uma forma específica de imobilização da mão de obra, consubstanciada no sistema da

morada. Esta excluía ou dificultava o acesso dos trabalhadores ao mercado, já que

restritas às “funções” de mediação do fazendeiro, e ao caráter “patriarcalista” de que se

revestiam as relações entre esses agentes. As mudanças que atingiram a plantation

tradicional viria justamente quebrar esse “isolamento”, acarretando modificações

decisivas para a manutenção daquela forma de dominação. A partir de então, os

trabalhadores rurais ampliaram a esfera de decisão sobre sua reprodução e de suas

famílias, e isso fora possível graças à participação desses trabalhadores em circuitos

mercantis, cujos acessos eram fechados ou restritos. A tese de Palmeira, portanto,

questionava, como o fizera Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973a), o “isolamento”

como principal causa da manutenção do campesinato, afirmando que seria mesmo a sua

maior integração na sociedade, através principalmente dos circuitos de mercado, que

viabilizariam a sua reprodução. Veremos como essas questões aparecem em texto

escrito por Afrânio Garcia Jr. em 1978, intitulado “Trabalho familiar e mercado”, para o

que seria a “Introdução” ao livro dedicado à parte rural do Projeto. Ainda que esse texto

não tenha sido entregue às agências financiadoras – como de resto o tomo um do

volume um dos relatórios -, as formulações nele contidas são elucidativas dos

problemas levantados pelas pesquisas e da “costura” entre os interesses daquelas

agências e dos próprios pesquisadores.

Logo no início, Garcia Jr. afirmava que os estudos sobre camponeses se

polarizavam entre aqueles que apontavam a “tendência inerente às unidades camponesas

Emprego no Núcleo de Antropologia Política (NuAP) no PPGAS/Museu Nacional, encontramos apenas os manuscritos do texto de Garcia Jr., os quais utilizaremos neste capítulo, enquanto o texto de Moacir Palmeira encontramos somente uma versão modificada, intitulada “Trabalho livre nos engenhos: renda, salário e dívida” (mimeo, 2003).

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162

a autoprodução e ao autoconsumo” (Introdução à parte rural, 1978, p. 1), e aqueles que

pensam o mercado como o fator que concede “movimento a um agregado de universos

sociais imutáveis” (Ibidem, p.1). Nesse dualismo, a economia camponesa estaria fadada,

portanto, a permanecer ou como uma unidade “de subsistência” e “natural”, ou, no polo

oposto, quando no limite deixaria de ser “camponesa”, a se integrar efetivamente na

“economia de mercado” (Ibidem, p. 1). E mesmo quando essas análises constatavam a

presença das relações mercantis, ainda segundo o autor, elas seriam percebidas como

tangenciais ao funcionamento da unidade camponesa: se era observado uma

especialização produtiva de algumas dessas unidades, o “fechamento” antes visto como

inerente ao grupo camponês “é deslocado para o fechamento de um conjunto dado de

unidades domésticas sobre si mesmas, a comunidade”, onde cada unidade supriria a

deficiência produtiva da outra (Ibidem, p. 1). Tal caracterização da economia

camponesa teria vasto lastro na literatura sobre o tema, sobretudo aquela dedicada ao

seu “isolamento”, já que, nas palavras dos autor,

ao nível sociológico e político esta visão encontra seu correspondente no isolamento camponês, no mundo fechado dos grupos domésticos e das comunidades camponesas, na segmentação de comunidades idênticas mas estanques que por mistério ficam uma ao lado das outras sem se interpenetrarem, e também sem disputarem umas o controle dos recursos e o poder de outras (Ibidem, p. 1).

Essas perspectivas, no entanto, teriam em comum o fato de não tomarem a

relação mercantil como uma entre outras possíveis, mas como a única, o que, na opinião

de Garcia Jr., acabava por ser tornar um dado a priori o que deveria ser o ponto de

partida das discussões. Assim, prossegue o antropólogo, “é o mercado que vem quebrar

a harmonia desse mundo idílico”, pondo em relação, “através de objetos produzidos por

unidades diferentes cuja equivalência é pensada em termos de valor (ou preço),

unidades domésticas e indivíduos até então tidos por isolados”, o que de outra forma,

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163

“tenderiam a permanecer idênticos a si mesmos ad eternitatem” (Ibidem, p. 2, grifos no

original).

Como o caso das feiras entre camponeses, que se tornaram alternativa ao

barracão, Garcia Jr. chamava a atenção para o fato de que a presença das relações

mercantis entre as unidades camponeses e outros agentes precisava ser qualificada de

modo que não se deixasse de lado “a espinhosa questão de que grupos sociais se

beneficiam das relações mercantis, e em que medida, que grupos perdem com a

modificação da incidência das relações mercantis e em que medida” (Ibidem, p. 2). De

outra maneira, prosseguia o autor, tomar-se-iam as leis designadas pelo conceito de

“economia de mercado” como um dado “natural”, posto que “não são passíveis de

transformação pela ação de grupos sociais porque seriam as únicas leis econômicas

objetivamente existentes” (Ibidem, p. 2).

Segundo o autor, no caso da literatura clássica brasileira sobre a questão agrária,

a “cristalização” do sistema de dominação da plantation em torno da relação senhor e

escravo localizara o campesinato ou nas margens do sistema, “grupos de trabalhadores

que estão fora do domínio direto dos grandes proprietários” e, portanto, irrelevantes

para o entendimento do funcionamento destas, ou então simplesmente negaram a sua

existência (Ibidem, p. 3). Por outro lado, parte dessa mesma literatura viu nas relações

mercantis característica fundamental das grandes propriedades considerando os grupos

sociais em seu interior “como submetidos às ‘leis do mercado’, e a atenção se volta para

as redes de relações mercantis, particularmente as peripécias do ‘mercado

internacional’” (Ibidem, p. 3). Conforme já havia notado Moacir Palmeira em sua tese

de doutoramento, essa perspectiva trazia contribuições importantes para o entendimento

da plantation, mas tinha a dificuldade, segundo Garcia Jr., de “pensar os termos das

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164

relações sociais de forma não mercantil no interior das grandes propriedades e

consequentemente a sua dinâmica” (Ibidem, p. 3).

A reavaliação por parte dos pesquisadores da literatura brasileira dedicada ao

tema do campesinato, apresentada na “Introdução” das pesquisas sobre a parte rural do

Projeto Emprego, evidenciava a filiação do grupo àquela longa tradição de estudos

rurais a que fizemos referência acima, sobretudo ao afirmar a existência e importância

do campesinato na formação da sociedade brasileira, além de apontarem como esse

estrato social não tinha sua reprodução atrelada ao “isolamento” (cf. Lima, 2009 e

Carvalho, 2011). A partir desse ponto os pesquisadores avançavam em questões

pertinentes ao diálogo com as instituições financiadoras do Projeto: recorrendo a autores

clássicos da antropologia, como Marcel Mauss e Karl Polanyi, Garcia Jr. sustentava que

a relação mercantil seria uma das formas possíveis de relação social, distribuição,

produção e consumo, sendo, ao lado delas, a “reciprocidade” e a “redistribuição”

também fundamentais. Em suas palavras,

o ponto central não é a busca do grau de presença de relações mercantis, muito menos tomar necessariamente as relações mercantis como objeto privilegiado de observação e análise, mas buscar que feixe de relações sociais permitem especificar um determinado sistema social, e caso as relações mercantis tenham aí seu lugar, buscar determinar que lugar é esse (Ibidem, p. 3).

Esse ponto, particularmente trabalhado nas dissertações de mestrado de Beatriz

Heredia e Afrânio Garcia, mostra o enfoque da equipe em escapar das armadilhas

dualistas no que concerne à discussão do campesinato, demonstrando como o

“mercado” não seria contrário à organização camponesa, mas constituinte dela,

sobretudo “porque permite a unidades domésticas de trabalhadores internalizarem

esferas de decisões que de outra forma lhe escapam” (Ibidem, p. 4). As oposições

encontradas nas pesquisas de campo dos autores, como casa-sítio, casa-roçado, casa-

roçadinho, permitiam evidenciar que as relações mercantis estariam presentes em cada

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165

um desses polos e que elas seriam tão importantes quanto às relações não mercantis, o

que, segundo Garcia Jr., “impedem que o cálculo econômico dos grupos domésticos se

configure como um cálculo puramente monetário” (Ibidem, p. 5). Dessa forma,

quebrava-se a unidade entre esfera da produção e de consumo, característica

supostamente central da economia “natural” camponesa. Os resultados das pesquisas do

relatório revelavam que a “unidade doméstica” tinha importância fundamental no

funcionamento da economia camponesa, sobretudo ao definir o lugar das relações

mercantis em sua reprodução, através de uma lógica específica, ditada pelo tamanho da

família, a distribuição de tarefas entre homens e mulheres e os que, entre eles, seriam

capazes de trabalhar (salvo idosos e crianças). Critérios esses que fugiam das teorias

econômicas clássicas e que eram decisivas para a determinação do quantum de trabalho

necessário para a reprodução dessa mesma unidade a cada ciclo agrícola.

Em outros casos, como afirmava Garcia Jr., o recurso a relações mercantis

poderia restringir em vez de ampliar a autonomia do grupo camponês. Era o que ocorria

quando, visando equilibrar as necessidades da casa com a produção do campo, a

unidade doméstica via como alternativa mais eficaz recorrer a um grande proprietário

para intermediar a venda do produto, o que trazia como “contrapartida o

estabelecimento ou reforço da dominação personalizada que pode exercer o patrão sobre

o trabalhador e sua família” (Ibidem, p. 8). Recusando-se em se tomar o grupo

camponês ao mesmo tempo como unidade produtora e consumidora, característica de de

uma “economia natural”, as pesquisas enfataizavam as estratégias contidas no cálculo

familiar que, a depender das condições, poderiam reforçar a autonomia ou a

dependência em relação a mecanismos tradicionais de dominação.

As questões trazidas à baila pelo estudo das transformações na plantation

tradicional, também foram deslocadas para as pesquisas sobre os trabalhadores urbanos,

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166

posto que também neste caso, tratava-se de marcar como a participação criativa e

estratégica desses trabalhadores em “relações mercantis” antes bloqueadas, tornara-se

aspecto fundamental para maior autonomia nas formas de produzir, o que poderia ter o

duplo efeito de fazer frente ou por vezes reforçar certas relações de dominação. Por isso

mesmo, a “Introdução” ao volume dos Relatórios dedicados aos trabalhadores urbanos,

escrita por Luiz Antonio Machado e José Sergio Leite Lopes, buscava aglutinar as

pesquisas desse relatório em torno de uma problemática fundamental, qual seja, a da

relação entre salário (trabalho assalariado) e outras formas de produzir. Argumentavam

os autores que as pesquisas sobre trabalhadores urbanos em cidades regionais e em

Recife demonstravam que a insuficiência do salário seria superada alternativa ou

conjuntamente com outras formas de atividades entendidas como “independentes”, ou

como “formas não capitalistas de produzir”. Anos antes, essa mesma temática ganhou

formulação clássica no trabalho de Francisco de Oliveira Economia Brasileira: Crítica

à Razão Dualista (1972), em que reagia às teorias dualistas e estruturalistas sobre o

desenvolvimento capitalista que, em geral, relacionavam a permanência de setores

arcaicos ou tradicionais à incapacidade que o setor moderno, representado pela

industrialização, tinha em sobrepujar aqueles setores e alavancar a economia do país.

Oliveira afirmava que essa perspectiva obscurecia a relação estrutural estabelecida entre

os dois setores, e afirmava que a acumulação capitalista no país se fez tendo como base

a articulação entre eles, através de uma política de fixação do salário mínimo e de

formação do programa de produção de bens de consumo duráveis e de capital. Ainda

segundo Oliveira, a acumulação capitalista no Brasil não se desvinculou do conjunto de

relações tradicionais que encontrava esteio principalmente no setor rural, mas também

no setor urbano, sobretudo nas “atividades de subsistência”, cujo excedente não ficava

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retido nas unidades produtoras, mas era drenado para acumulação concentrada do

capital urbano e industrial.

A crítica ao dualismo das interpretações sobre o desenvolvimento brasileiro,

expresso no texto de Oliveira, seria retomado como importante referência na

“Introdução” de Machado e Leite Lopes. Embora concordassem em linhas gerais com a

tese de Oliveira, esses autores questionavam a sua afirmação de que as relações não

tipicamente capitalistas provocavam necessariamente uma redução no custo de

reprodução da força de trabalho: para Machado e Leite Lopes, ao estabelecer essa

conexão direta, Oliveira estaria pressupondo que o valor da reprodução da mão de obra

seria equivalente ao salário (mesmo que em níveis baixos). Ou seja, se Oliveira

postulava que as formas não capitalistas de produção serviam de acumulação ao setor

capitalista ao depreciar os salários reais, Machado e Lopes sugeriam pensar de que

forma as relações não capitalistas de produção poderiam complementar o salário

recebido pelos trabalhadores.

Os resultados das pesquisas empíricas sobre a produção independente de

trabalhadores urbanos, segundo Machado e Lopes, permitiriam evitar seja o equívoco de

um “dualismo urbano”, contida na ideia de que uma parcela da força de trabalho estaria

excluída do setor moderno, seja o erro, como o de Francisco Oliveira, de diluir as

formas não capitalistas de produzir a uma espécie de camuflagem das relações de

produção capitalistas. Portanto, conforme os autores, “cabe aqui reforçar-se o

argumento (....) a respeito da importância da consideração da articulação entre formas

não capitalistas de produção com as formas capitalistas, atentando-se para a não

absorção analítica daquelas formas nas formas capitalistas dominantes” (Ibidem, p. 9;

grifos nossos)

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Um dos exemplos empíricos dado pelos autores seria a submissão dos

trabalhadores num sistema de “fábrica com vila operária”, na qual a permissão

concedida ao operário de plantar um roçado (pequena agricultura) ou um pequeno

comércio nas dependências da usina instituía não somente formas camponesas ou

mercantis simples, mas também formas servis. Mas o que era uma forma de dominação

específica desse sistema, reduzindo os dispêndios da fábrica com mão de obra e,

sobretudo, subjulgando-a aos mandos da usina, seria ela mesma, no entanto, que

permitiria vislumbrar – ao menos parcialmente – a dominação de que ressentem os

trabalhadores. Assim explicam os autores:

se a prática do cultivo de um roçado da parte de operários em seus tempos livres faz relativizar – com esse esforço extra para uma complementação alimentar que deveria estar garantida pelo salário – o ‘fetichismo do salário’ na mente dos operários, se essa prática abala, enquanto ‘corvéia invertida’, a legitimidade do capitalista diante de seus trabalhadores, ela por outro lado é um dos elementos que compõem a legitimidade da dominação do proprietário territorial sobre os mesmos trabalhadores, contrabalançando assim – o capitalista e o proprietário territorial concentrando-se no mesmo agente social – aquela relativização (Ibidem, p. 9).

Aqui mais uma vez nota-se como a abordagem antropológica sobre a economia

dos “grupos de baixa renda” reforçava a importância heurística de se tomar as essas

formas de produção “não-capitalistas” em suas particularidades e não como formas

“disfarçadas” de capital. Dessa forma, as pesquisas destacavam a um tempo tanto os

modos de imobilização da mão de obra, quanto as estratégias de grupos e indivíduos

para fazer frente a eles. Poder-se-ia ainda observar, segundo Machado e Leite Lopes, e

contrariando vaticínios de grande parte da literatura econômica, o ressurgimento

daquelas formas “não capitalistas” de produzir dentro de um longo processo de

transformação do “sistema de plantation”: em um primeiro momento haveria uma

espécie de “descampesinação” com imediata “obreirização”, ou seja recrutamento de

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mão de obra rural (camponeses e outros trabalhadores rurais) para trabalharem na

“fábrica com vila operária”. Decorreriam daí crescente descontentamento por parte dos

trabalhadores diante das insistentes invasões dos proprietários sobre suas vidas

domésticas (retirando-lhes os direitos de moradia e do roçado ou até mesmo os

expulsando das terras da fábrica, por exemplo), iniciando-se uma nova fase, a de

“desobreirização”. Salientavam os autores, à semelhança do que observara Palmeira em

relação às mudanças na plantation em que o fim da morada acarretara processos

distintos e correlatos de surgimento de proletários rurais e de novos camponeses, que a

“desobreirização” possibilitava simultaneamente o surgimento de trabalhadores

assalariados típicos e a recriação de “formas independentes” de produzir, como o

pequeno comércio e oficinas de reparo, que serviriam de auxílio para a manutenção do

grupo doméstico do trabalhador (Ibidem, p. 26).

Essas distintas formas de produzir, não propriamente capitalistas, não deixariam

de ser notadas pelos pesquisadores como fulcro tanto das estratégias dos trabalhadores

para a manutenção de seu grupo doméstico, como também das especificidades das

mudanças e das formas de dominação encerradas nos espaços “rurais” e “urbanos”.

Procedimento comum entre as pesquisas desenvolvidas sob a alçada do Projeto

Emprego e que servia de ponte de diálogo com as instituições financiadoras,

apresentando-se, portanto, como avesso a enxergar essas camadas presas ao

“imobilismo” e ao “tradicionalismo”, até que, enfim, os seus modos de vidas, produção

e consumo fossem varridos pela modernização urbana e capitalista.

4.2 Fronteira e campesinato

Se Euclides da Cunha fora o principal formulador, no pensamento social

brasileiro, da tese do isolamento do sertanejo, também fora ele o responsável por um

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170

dos tropos mais recorrentes na literatura sobre os sertões brasileiros, particularmente no

que diz respeito à Amazônia, que é o da representação do sertanejo enquanto nômade, e

de uma organização social errante (Lima, 2009; Foot Hardman, 2009). A partir de seus

relatos de viagem e dos escritos surgidos sobre aquela região, Euclides traçou o que

seria uma sociedade movediça, fruto de uma colonização incipiente, de homens

oriundos de diversos lugares que não lograra ainda estabelecer uma ordem social

mínima, o que fazia dela uma “terra sem história” (Cunha, 2002).

Nos escritos amazônicos de Euclides da Cunha, o migrante - o cearense, o

paraibano, os sertanejos, em geral - ganhou preeminência como figura central que

persistia no empreendimento de povoamento da região. Como de resto o conjunto da

obra de Euclides, seus escritos sobre a Amazônia guardariam a ambiguidade

fundamental oscilando entre uma análise cética quanto ao estabelecimento do homem e

o desenvolvimento de uma sociedade na região e, porquanto caótica e perigosa, essa

mesma “terra sem história” poderia se revelar também a matriz de uma “civilização

alternativa”, sem uma tradição sólida a sufocar o desenvolvimento de um processo

distinto da civilização europeia, na qual a barbaria seria transfigurada (cf. Maia, 2008, p.

142)87.

Tais formulações de Euclides sobre a Amazônia teria repercussão diferenciada –

direta ou indiretamente – não só na literatura (cf. Foot Hardman, 2009), mas também

nas ciências sociais institucionalizadas. No que toca particularmente ao tema da

fronteira e do campesinato, a Amazônia aparecia como espaço que comportaria

87 A especificidades e potencialidades da região amazônica também receberiam a atenção de outro clássico do pensamento social brasileiro, Gilberto Freyre. Ao retomar algumas das proposições fundamentais de Freyre sobre o que considerava uma ciência do social, espécie de “engenharia social”, baseada na “lusotropicologia”, Elide Rugai Bastos (2014) analisa as implicações que tais propostas tiveram quando pensadas em relação à Amazônia. Nesse sentido, a autora observa que, enquanto nos livros Casa Grande & Senzala [1933] e Sobrados e Mucambos [1936] havia uma aposta de Freyre na autogestão da sociedade, em seus escritos sobre a Amazônia, sobretudo nos anos 1980, o papel interventor do Estado parece ganhar proeminência na “civilização” da região, o que o aproximava das diretrizes básicas da política da ditadura militar destinadas à “fronteira”.

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possibilidades variadas de surgimento de novos sujeitos políticos e sociais (Maia, 2008).

Na década de 1970, dois dos maiores especialistas sobre o campesinato da fronteira,

Otávio Velho e José de Souza Martins, iriam oscilar entre polos distintos na avaliação

de uma sociedade ainda em statu nascenti.

Em seu livro “Capitalismo autoritário e campesinato” (1976), Otávio Velho

propunha “uma sociologia a partir da fronteira (from the frontier)” (Velho, 1976, p. 14

grifos no original). Segundo o antropólogo, no capitalismo de tipo autoritário, como

identificara na sociedade brasileira – com dominância da instância política sobre a

econômica – o campesinato estaria submetido a “uma espécie de pressão a ‘meia força’

que fundamentalmente não destrói o campesinato nem permite a sua transformação”

(Ibidem, p. 55). No entanto, o desenvolvimento de um campesinato na fronteira,

distante dos mecanismos de imobilização da mão de obra da plantation, possibilitava

um grau bastante alto de integração vertical com o mercado nacional, permitindo a

aparição da “face burguesa” desse agente (Ibidem, p. 55). Tese contrária era defendida

por Martins, segundo o qual a “fronteira” representava a última ponta da sociedade na

qual formas de vida camponesas, “não-capitalistas”, vicejavam, ainda que subordinadas

à reprodução do capital. Martins se referia basicamente ao “posseiro” e à sua concepção

de trabalho baseado na “posse” comunal das terras, base de uma organização social

oposta à da terra como mercadoria (cf. Martins, 1983 e 1985)88.

Veremos a seguir que nas pesquisas dos relatórios finais do Projeto Emprego a

“fronteira” recebia tratamento distinto dessa polarização: como uma sociedade nascente,

88 Ao lado dos povos indígenas, os posseiros, segundo Martins, representariam lógicas alternativas àquela da “frente pioneira”. Mesmo integrando a expansão capitalista na fronteira, o posseiro da Amazônia, no entanto, permanecia um obstáculo a um dos principais baluartes dessa expansão que é a “propriedade privada capitalista”. Isso porque a forma de ocupação da terra pela posse, segundo Martins, era vigente desde o regime de sesmarias, ou seja, no trabalho investido na terra e não no suposto valor de mercado dela. Esse tipo de ocupação se constituiria em uma séria ameaça à expansão do capitalismo no campo, já que ela questionava a renda fundiária, representada pelo aluguel e compra de terras e também pelo domínio comercial sobre a produção do posseiro e a “grilagem” de suas terras (cf. Martins, 1983, p. 115).

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na “fronteira” o camponês tinha suas especificidades reveladas nas diversas relações

que entre si estabeleciam as categorias sociais que circulavam por aquele espaço social,

não sendo, portanto, estranha a convivência de lógicas distintas de produção e

ocupação89.

O volume dois dos relatórios finais, intitulado “Problemas de formação do

campesinato”, apresentava-se como uma “inovação” em relação aos demais volumes, na

medida em que tentava “estender o questionamento da formação do campesinato para

além dos limites dados normalmente a uma pesquisa antropológica” (Palmeira et alli,

vol.2, 1977, p. 1). As pesquisas apresentadas se dedicariam ao entendimento da

existência do campesinato e sua reprodução a partir da reconstituição histórica, o que

possibilitaria retomar os movimentos desse campesinato. Os dois primeiros textos do

relatório, intitulados “Quixadá: a formação do povoado e o acesso à terra pelos

pequenos produtores” e “Terras soltas e o avanço das cercas”, escritos conjuntamente

por Alfredo Wagner Berno de Almeida e Neide Esterci, buscavam recompor

historicamente a formação do campesinato e os mecanismos de controle exercidos sobre

89 Com isso não estamos afirmando que Otávio Velho e José de Souza Martins neguem ou façam tabula rasa da diversidade do campesinato, sendo mesmo o contrário o que ocorre. A questão, a nosso ver, é como cada um desses autores incorporou, analítica e teoricamente, essa diversidade. Assim, por exemplo, Otávio Velho, em resposta à resenha crítica de Moacir Palmeira ao seu livro “Capitalismo autoritário e campesinato”, a qual voltaremos mais adiante, chamava a atenção para o “risco que ronda mesmo os melhores antropólogos (e não só os que se dedicam ao estudo do campesinato)” que seria “o de, ao insistir, por bons motivos éticos e científicos, no reconhecimento de lógicas sociais múltiplas, acabar por se negar, por outro lado, em toda a sua extensão e consequências, o desenvolvimento capitalista em suas diversas modalidades; independente das simplificações e/ou adesões que hajam sido cometidas em nome disso” (Velho, 1982, p. 91). Martins, por seu turno, analisando as condições sociais de emergência de novos sujeitos políticos no campo, demonstrava como os posseiros e os sem-terra, sobretudo os primeiros, questionavam a “legalidade” da propriedade privada da terra, o que não significava que outras categorias também não o fizessem. Contudo, ao destacar as especificidades da configuração social que ensejava a posse e o posseiro, Martins, em referência aos trabalhadores rurais do Nordeste, ressaltava que “o fundamental mesmo, o que dá um caráter de massa às lutas dos assalariados rurais, o que permite reunir num único movimento e num único confronto, de uma só vez, dezenas e até centenas de milhares de trabalhadores, como ocorre na região canavieira do Nordeste, é que todos eles têm praticamente idêntica relação com o mesmo objeto, que é o capital, por meio do salário. E sendo o mesmo produto, a cana, e o mesmo processo de trabalho, encontram diante de si, objetivamente, as mediações que os unem. Mesmo quando há diferenças significativas entre eles, como as que separam um fichado de um clandestino e de um corumba. É o que faz do sindicato uma força e meio fundamental nas lutas desses trabalhadores” (Martins, 1984, p. 93, grifos no original).

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essa categoria social no município de Quixadá, no Ceará, durante o período histórico

que decorre do século XVII até os dias correntes.

A formação do povoado de Quixadá ocorreu graças às benfeitorias das

propriedades de criação de gado, multiplicadas ao longo do tempo às margens dos rios e

riachos. O crescimento dos rebanhos e a necessidades de mais pastos fez com que a

frente pecuária avançasse cada vez mais sobre as terras contíguas disponíveis à “posse”.

Esta era efetivada pelo Estado através de alienações de terras como “doações” e

concessões de “datas”, e, uma vez ocupadas, era solicitado a regularização jurídica,

conferindo-lhes o estatuto de “sesmarias” (Ibidem, p. 3). Quando não efetivamente

ocupadas, essas “sesmarias” poderiam ser objeto de novas “doações” por parte do

Estado, a quem a ele recorresse. Essa forma de atuação do Estado, portanto, segundo os

autores, ia “de encontro à própria circunstância de abundância do bem e de sua

disponibilidade, o que concorria para tornar inexistente um mercado de terras” (Ibidem,

p. 4).

Na metade do século XVIII, no entanto, essa situação fora se alterando e junto

com o regime de terras fundado na “posse” houve a expansão da frente pecuária, a partir

da qual começaram as transações com a terra e o reforço de sua condição de mercadoria

(Ibidem, p. 5). Essas mudanças consolidaram uma hierarquia social em que

despontavam, de um lado, os fazendeiros, donos de terras, e, do outro lado, os

trabalhadores. Estes eram constituídos pelos vaqueiros, cuja remuneração do trabalho

realizado era denominado de sorte (percentagem da produção de bezerros que ficava aos

seus cuidados), e os agregados (trabalhadores da fazenda mas que tinham como

atividade complementar a agricultura).

Contudo, salientavam os autores, a formação do campesinato na região deveria

ser entendida também pelo constante fluxo de trabalhadores aos seringais da Amazônia.

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A existência dessa alternativa de trabalho para um ou mais membros de uma família,

fora fundamental para o acúmulo de dinheiro que serviria, já de volta à Quixadá, para a

compra e manutenção da terra. Nas palavras dos autores, “a venda da força de trabalho

sob esta ótica, não significava em absoluto uma tendência à proletarização antes, pelo

contrário, revelava uma situação ascensional” (Ibidem, p. 16). Ao lado da migração, a

existência das terras comunais permanecia até então como mecanismo de reprodução

dos pequenos agricultores. Isso porque, apesar do avanço de terras delimitadas por

cercas, diversas propriedades – principalmente aquelas pertencentes a fazendeiros

absenteístas, sem recursos suficientes para a manutenção – mantinham a antiga tradição.

As terras dos parceiros – doadas pelos fazendeiros -, tinham seu espaço delimitado para

evitar a entrada do gado, enquanto as terras ao redor – de propriedade de outros

fazendeiros -, sem cercas, eram destinadas à criação do gado, seja do próprio

fazendeiro, seja a do pequeno proprietário. Esse espaço, designado como “terras soltas”,

era formado, portanto, por pastagens comunais que nada mais eram do que a junção de

várias extensões privadas.

Nessa estrutura social, passara a conviver dois modos distintos de ocupação de

terras, a “posse” e a “propriedade privada”. Conforme os autores, “a dimensão comunal

se sobrepõe ao caráter privado, previsto pelo código nacional inaugurando um contexto

de coexistência de distintas formas de apropriação dos meios de produção” (Ibidem, p.

30). Contudo, isso não significava a inexistência de tensões entre parceiros e

fazendeiros; ao contrário, a pesquisa de campo realizada pelos autores indicava que elas

cresciam devido, sobretudo, ao avanço das “cercas”, da propriedade privada sobre as

“terras soltas” ou comunais dos pequenos proprietários. O que vemos é que, a partir da

recuperação histórica da formação de um campesinato específico, Almeida e Esterci

chamaram a atenção para o fato de que códigos distintos de condutas incorporados na

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posse e na propriedade privada guardam tensões e conflitos, mas que não

necessariamente se opunham quando se reconstituía o amplo sistema de relações sociais

no qual se inseriam. Segundo os autores, as tensões ocorriam justamente porque os

agentes transitavam entre esses códigos. E porque não viam e viviam como lógicas

apartadas, através deles, poderiam perceber que a reprodução enquanto posseiro estaria

ameaçada.

Essa mesma problemática fora ressaltada na segunda parte do volume quatro dos

relatórios do Projeto Emprego, intitulado “Expropriação e trabalho assalariado no

campo”, a qual recebera a introdução assinada por Lygia Sigaud, Laís Mourão e Neide

Esterci. Essa parte é um dos pontos altos da perspectiva do Projeto Emprego em relação

ao campesinato enquanto agente múltiplo. As autoras ressaltavam que os trabalhos da

seção buscavam articular pesquisas realizadas em áreas de colonização antiga

(plantation) com áreas novas (fronteira), de modo a investigar as mudanças sociais

específicas a cada uma, e como elas se aproximavam, contudo, quando enfocadas as

estratégias camponesas de reprodução. Nesse sentido, o trabalho de Lygia Sigaud

realizado em Pernambuco indicava mecanismos de expulsão dos moradores; o de Laís

Mourão revelava os obstáculos à reprodução do campesinato em “terras livres”

localizadas no Maranhão; e, por fim, Neide Esterci investigou as complexas formas de

associação entre economia camponesa e trabalho assalariado (sistema de peonagem) em

povoados da fronteira de Mato Grosso.

No texto “Mecanismos de expulsão na plantation de Pernambuco”, Sigaud

retomava algumas das formulações de seus primeiros trabalhos de campo na Zona da

Mata daquele estado, para investigar de que forma os fazendeiros criavam mecanismos

de pressão sobre os moradores para que estes saíssem de suas propriedades sem

qualquer custo. Segundo Sigaud, esses mecanismos – revelados quando, por exemplo, o

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fazendeiro deixa de reparar a casa do morador, tornando-a inabitável; ou quando são

designadas ao morador tarefas que lhe eram tidas como incompatíveis com suas

habilidades; ou ainda quando o lote de subsistência era transferido para locais

inacessíveis – seriam claras demonstrações de que o fazendeiro inviabilizava a

permanência do trabalhador e sua família em suas terras. Tais práticas de pressão sobre

o complexo que constituía a morada (casa/sítio), que, como lembra a pesquisadora, não

poderia ser subsumido ao trabalho assalariado, se tornaram mais rotineiras quando ainda

no pré-1964 os grupos de camponeses se reuniam em sindicatos para cobrarem dos

fazendeiros os seus direitos, consubstanciados tanto no Estatuto do Trabalhador Rural

(1963) quanto no Estatuto da Terra (1964).

Diante dessa nova situação, observava a autora, abriram-se algumas

possibilidades para o ex-morador, como migrar para o Sul ou para as áreas de fronteira,

ou ainda manter-se, como a maioria, na região, “na medida em que são tão necessários

como antes da expulsão, pois esta não resultou de inovações tecnológicas”, adaptando-

se assim à nova rotina de deslocamento diário para o campo (Ibidem, p. 110). A

flagrante piora das condições de vida do ex-morador não seria indicativo apenas de sua

proletarização, mas constatação de uma nova situação a qual respondia com novas

estratégias de reprodução social.

Em “Campesinato e terras livres no Maranhão”, Laís Mourão investigou a

incorporação de “terras livres” nas regiões do Médio Mearim, Cocais e Pré-Amazônia

maranhense por grupos camponeses e empresariais. Para a pesquisadora, num primeiro

momento, durante os anos 1950, formou-se uma frente agrícola constituída por unidades

econômicas camponesas, baseadas no trabalho familiar, vindas sobretudo de regiões do

Nordeste. Aos poucos essas unidades foram formando núcleos de povoamento

dedicados à produção de arroz que abasteciam os mercados regionais, que, junto com a

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vinda de novos migrantes, pressionavam para que a frente incorporasse novas terras na

mata. Num segundo momento, a esse processo itinerante fora interposto uma série de

dificuldades advindas dos interesses, cada vez maiores, de grupos empresariais na

apropriação de terras. O “fechamento de terras” representava, para o campesinato da

região, a impossibilidade de se reproduzir avançando sobre novos espaços (Mourão,

1977, p. 112).

O avanço dos grandes empreendimentos sobre a fronteira ensejaria o confronto

entre duas “racionalidades econômicas” distintas, uma fundada na “posse”, sendo as

“benfeitorias” e não a terra os bens comercializáveis, e outra “capitalista”, na qual a

terra se tornava uma mercadoria como qualquer outra (Ibidem, p. 112). Como apontava

Mourão, a racionalidade econômica do posseiro se alicerçava na unidade familiar, no

cálculo entre a mão de obra disponível (membros em condição de trabalho, mulheres e

homens) e o dispêndio necessário de trabalho para a manutenção dessa unidade. Nesse

caso, não seria estranho ao posseiro, afirmava a autora, como qualquer outra categoria

do campesinato, recorrer ao trabalho assalariado. Ao lado da migração para novas áreas

de “terra livre”, estratégia privilegiada quando esgotadas as possibilidades de ocupação

em determinada área, o trabalho assalariado seria outra forma de manutenção ou mesmo

de incremento do patrimônio familiar, como ocorria quando filhos solteiros eram

empregados pelas empresas agropecuárias, ou quando migravam paras as cidades em

busca de emprego. As práticas do posseiro, portanto, segundo Mourão, não encerrariam

uma lógica apartada daquela que poderia ser pensada para o campesinato em seu

conjunto, já que ela se constituiria na própria circulação entre diferentes formas de

trabalho e apropriação da terra. Por fim, ressaltava a autora, “a compreensão da questão

do trabalho assalariado nestas áreas deve passar por uma análise das articulações que

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este apresenta com a racionalidade econômica camponesa e com a lógica dos

deslocamentos de migrantes camponeses em busca de terras livres” (Ibidem, p. 115).

O mesmo tema fora abordado por Neide Esterci no texto “Campesinato e

peonagem numa área de expansão capitalista”, incluído no mesmo volume dos

relatórios do Projeto Emprego90. Dedicara-se a autora à investigar o sistema de

peonagem, uma das formas de assalariamento do campesinato, em alguns povoados do

nordeste de Mata Grosso, formados seja a partir do deslocamento de trabalhadores de

outros estados, como Pará, Maranhão e Goiás, seja de áreas próximas, expulsos pelo

avanço das grandes empresas agropecuárias. Grande parte da população desses

povoados era formada por “posseiros”, ao lado dos quais foram se constituindo uma

camada de fazendeiros, “comerciantes”, os denominados “não tem terra” (ex-posseiros),

“empregados e funcionários” (trabalhadores fixos das fazendas) e os “peões”

(trabalhadores migrantes e sazonais das fazendas) (Esterci, 1977, p. 137). Conforme a

autora, “a relação de todos esses grupos entre si está referida, em última instância, à

disputa de terras entre os projetos agropecuários e os ‘posseiros’, pelo menos nos

momentos em que esta disputa assume características mais agudas” (Ibidem, p. 139).

Apesar do foco analítico da autora recair sobre a figura do “peão”, como vimos

acima, este não poderia deixar de ser pensado em sua relação não só com os demais

agentes, mas, sobretudo, com os “posseiros”. A invasão das empresas agropecuárias

sobre os povoados estudados por Esterci revelava que, para além do conflito entre

“fazendeiros” e “posseiros”, outro conflito, de natureza diversa, se configurava entre

estes últimos e os “peões”. Isso porque eram os “peões” os primeiros invasores, por

assim dizer, ao preparem a limpa do terreno onde seria instalada a fazenda. Além disso,

90 Neide Esterci desenvolvia naquele momento pesquisas relativas à sua tese de doutoramento, intitulada “Conflito no Araguaia - peões e posseiros contra a grande empresa", defendida na USP sob a orientação de Juarez Brandão Lopes em 1985.

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para o “posseiro”, os “peões” representavam o contrário da autonomia do trabalho,

atados a obrigações humilhantes com os patrões e seus intermediários.

Mas este estilo de vida que desagradaria os “posseiros”, seria, segundo a autora,

o mesmo que fomentaria a percepção de que os “peões” eram “enganados” e

“mandados”, relativizando aquela contraposição (Ibidem, p. 156). O “posseiro” passava

a ver o “peão” como um ex-posseiro e não somente como trabalhador da fazenda. Para a

autora, a identificação entre posseiros e peões seria reforçada não somente pela origem

de classe, mas pela história da vida itinerante dos seus ancestrais, verificando-se um

amplo processo de migração que se iniciara no Nordeste, passara pelo Maranhão, Pará e

Goiás e atingira, enfim, o Mato Grosso. Em suas palavras,

são ‘peões’ os membros de famílias camponesas situadas no Maranhão, Pará, Goiás, cuja insuficiência de terras para atender às necessidades de reprodução levou ao trabalho assalariado. Mas também são ‘peões’ muitos ex-‘posseiros’ da própria área, expulsos de suas terras e mesmo os filhos daqueles que as conseguiram manter apesar das pressões (Ibidem, p. 157).

Nota-se que, embora a vida na fronteira tenha peculiaridades inerentes a uma

situação nova, as pesquisas do Projeto Emprego demonstram que essas peculiaridades

não poderiam ser sintetizadas tão somente na figura do “posseiro”. Melhor dizendo, a

fronteira ela mesma seria uma configuração específica de relações, revelada a partir das

diversas frações do campesinato, ou indivíduos pertencentes a uma mesma unidade

doméstica, que circulavam por diferentes posições, formando amplas redes que

perpassariam espaços sociais distintos. Não à toa, no caso estudado por Esterci, apesar

das diferenças entre “posseiros” e “pões”, ou justamente por causa delas, seria possível

identificar a aproximação entre eles, demonstrando como a oposição “se deve ao fato de

estarem no momento situados contraditoriamente no que se refere ao antagonismo

principal face a posse e uso da terra” (Ibidem, p. 157). Ainda segundo Esterci, estaria aí

a tomada de consciência das condições sociais em que vivem “pões” e “posseiros”, já

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que “no ‘peão’ o posseiro percebe a negação de sua própria forma de existência, o

aniquilamento do seu modo de ser” (Ibidem, p. 158).

4.3 Especificidade do campesinato e tradução de conceitos

Vimos até aqui que para as pesquisas contidas nos relatórios finais do Projeto

Emprego, o campesinato tem especificidades que se revelariam em suas múltiplas

estratégias de reprodução social, o que obrigava o analista a um trabalho de tradução ou

de criar “pontes” (como dizia Moacir Palmeira) entre os dados empíricos e o tratamento

conceitual. Em seu conjunto, os relatórios formulavam uma crítica incisiva a

pressupostos da economia “neoclássica” e das ciências sociais – como o da

proletarização do campesinato - que estariam presentes em análises dedicadas a grupos

camponeses ou “de baixa renda”. Encontrar as mediações teóricas necessárias era um

empreendimento tanto das pesquisas empíricas quanto dos textos de “revisão

bibliográfica”.

No volume cinco dos relatórios finais, intitulado “A invenção da Migração”,

Moacir Palmeira e Alfredo Wagner Berno de Almeida se dedicaram à investigação da

“genealogia” da categoria “migração” (Almeida & Palmeira, 1977, p. 2). Além do

interesse das agências financiadoras, a escolha desse tema, ao lado de “emprego”,

relacionava-se ao fato de que os estudos sobre campesinato e “camadas de baixa renda”

urbanas do Projeto tinham se defrontado com fenômenos sociais comumente

congregados por uma ampla bibliografia em torno desses temas. Contudo, ressaltavam

os autores, as pesquisas de campo forçaram o “deslocamento que o ‘olhar’ de uma outra

disciplina impôs aos temas considerados”, fazendo do trabalho, no estilo das “análises

de discurso”, imperativo para o andamento do Projeto (Ibidem, p. 2). Conforme Moacir

Palmeira o trabalho fora elaborado a partir dos “princípios c1assificatórios operados por

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catálogos e bibliotecários” (Palmeira, 1994, p. 4), reunindo-se, em fichas de leitura, a

análise do material preparado pela equipe, a partir do qual se recuperaria as diferentes

concepções correntes sobre a categoria “migração”. O intuito do trabalho, a semelhança

do que fizera Palmeira em sua tese de doutoramento (Ibidem, p. 3), não era a de

fornecer uma síntese teórica das proposições do debate, mas apenas mapeá-lo de forma

a tornar mais nítidas as posições envolvidas (Almeida & Palmeira, 1977, p. 4).

Embora, destacavam os autores, o trabalho não tivesse a preocupação de operar

com cortes cronológicos precisos, já que o objetivo principal era confrontar as

diferentes concepções sobre o tema, era possível observar como o par

“emigração/imigração” se estabelecera anteriormente à própria categoria “migração”.

Tanto no que concerne ao par “emigração/imigração” e à categoria “migração” poderia

se observar esforços no sentido de explicação sociológica das causas e consequências do

fenômeno. No entanto, essas explicações não ocupariam o mesmo “lugar”: no caso de

“imigração/emigração” fatores sociológicos não estariam no centro da análise, mas

seriam referências para a explicação de fenômenos à parte e com recurso a outros

conceitos, como por exemplo “adaptação” e “assimilação” do imigrante, permanecendo

de lado a elucidação de movimentos populacionais; no que se refere à “migração”, a

explicação sociológica ocuparia o seu centro na circunscrição dos deslocamentos

populacionais e individuais, entrando, apenas de forma auxiliar, outros conceitos. Em

ambos os casos, contudo, as categorias analisadas não teriam grande valor heurístico

para o entendimento dos deslocamentos populacionais, tendo o analista que recorrer a

conceitos outros.

Salientavam os autores que, apesar do avanço teórico propiciado pelos estudos

agrupados em torno da categoria “migração”, não se poderia afirmar que existia uma

“teoria da migração”, já que ela remeteria a “um processo dado, empiricamente

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reconhecível, a que só podemos indagar sobre suas causas e consequências sociais

nunca sobre ele próprio” (Ibidem, p. 69). Dessa forma, a bibliografia referendada

estabeleceria uma forma “tautológica” de análise: se ressaltaria um deslocamento físico,

de um ponto a outro, por assim dizer “‘natural’ que será ‘qualificado’ socialmente”; no

entanto, nas palavras dos pesquisadores, “essa qualificação é um movimento posterior

ao reconhecimento dessa ‘realidade’ dada” (Ibidem, p. 70). Não se romperia com uma

visão “naturalista” do deslocamento populacional. Por esse motivo, “migração”

permaneceria enquanto “categoria” e não seria propriamente um “conceito”, dado o

pouco rigor teórico em seu tratamento, possível de ser percebido pelo pouco

distanciamento, em sua definição, de certas concepções correntes no senso comum. Por

fim, ressaltavam os autores que o esforço de resenhar o debate sobre “migração” não

buscava um novo “ponto de partida”, mas “o que estamos tentando chamar a atenção é

para a reificação de determinados conceitos e para a esterilização que essa reificação

pode impor à teoria (muitas vezes em nome da própria teoria)” (Ibidem, p. 72). Para

escapar da armadilha do debate, propunham que fosse mesmo o caso de se tomar a sério

o modus operandis da categoria “migração” tal como contido na própria gênese do

conceito, ou seja, a “migração” “pode ser (e tem sido) pensada através de outros

conjuntos de conceitos”, podendo “ser pensada diluída em outros conjuntos de

conceitos” (Ibidem, p. 72). Para o conjunto de pesquisas levadas a cabo pelo Projeto

Emprego, tratar-se-ia menos de apostar em uma nova definição de “migração”, e mais

de reconhecer os limites do debate e, a partir disso, como propunham os antropólogos,

mostrar como fenômenos tidos como semelhantes carregariam “a especificidade

irredutível de algumas das formas sociais que estávamos analisando”, base de “uma

investigação dos ‘movimentos de população’ propriamente sociológica, isto é, capaz de

atribuir-lhes sentido, relacionando-os a outros processos sociais: o princípio de que a

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cada forma econômica da sociedade correspondem ‘leis de população’ próprias”

(Ibidem, p. 3)91. Se não existia propriamente uma “teoria da migração”, logo caberia às

análises sobre campesinato desvendar a lógica que presidiria a movimentação de grupos

e indivíduos no espaço, suas relações mútuas e a constituição de solidariedades sociais

extensas dentro das quais ocorreria a “migração”. Ora, esse seria um “ponto de partida”

que se revelou fundamental para os estudos sobre campesinato, em particular aqueles

dedicados à “fronteira”, lugar por excelência, como já observara Euclides, de uma

sociedade em formação.

O esforço de tradução de conceitos e de uma sintonia mais fina entre dados

empíricos e teoria apareceria ainda na resenha crítica de Leilah Landim Assumpção ao

trabalho, de grande repercussão à época, O “boia-fria”: acumulação e miséria (1975)

de Maria da Conceição D`Incao92. Conforme Assumpção, diante da expansão capitalista

no campo, a década de 1970 assistiu ao que muitos consideravam o surgimento de um

novo ator, o “boia-fria”, trabalhador assalariado residente das periferias de cidades que

migravam em busca de emprego na agricultura em época de colheita e plantio. O

argumento do livro, resultado de uma pesquisa entre trabalhadores rurais de Alta

Sorocabana, região de São Paulo, apontava para uma crescente proletarização no meio

91 Para clarear o ponto há de se levar em conta as observações de Afrânio Garcia Jr. em sua tese de doutoramento a qual exploramos no capítulo anterior. Garcia Jr., como vimos, demonstrava como a “migração” de camponeses nordestinos para o Centro-Sul não era um fenômeno irreversível, como supunham algumas análises que apostavam na “modernização” e na atração exercida pelas cidades, mas poderia ser uma etapa “temporária” para posterior regresso, constituindo mesmo em possibilidade da afirmação de sua condição camponesa. Contudo, salientava o autor que “de forma alguma queremos aqui autonomizar as migrações como objeto de análise; trata-se simplesmente de buscar estudar as práticas de inserção num mercado de trabalho longínquo e as representações mentais que as acompanham, em relação ao conjunto de práticas de trabalho a nível local (que constituem práticas alternativas e concorrentes)” (Garcia Jr., 1989, p. 13). Dessa forma, o autor seguia a advertência contida no estudo do volume cinco do Projeto Emprego de que uma possível alternativa à “autonomização” dos estudos sobre “migração”, pressuposto de equívocos teóricos que faziam tabula rasa de diferenças sociais e culturais entre indivíduos e grupos estudados, era atentar para o fato de que os fenômenos reunidos sob essa denominação seriam, na afirmação de Palmeira e Almeida, “não apenas pensados, também vividos e ‘administrados’, como movimentos radicalmente diversos pelos agentes sociais a quem atribuímos a qualidade de objeto e suporte de conceitos” (Almeida & Palmeira, 1977, p. 3). 92 A resenha foi publicada no volume 4 dos Relatórios do Projeto Emprego e na revista Proposta, nº 3, de 1976, periódico da FASE (Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional).

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rural, resultado de uma acumulação capitalista que se desenvolvia através da

expropriação e da manutenção, a níveis baixíssimos de vida, da maioria da população

rural.

No entanto, observava Assumpção, a lógica argumentativa de D´Incao concluía

que, “se os esquemas de transformações no campo levam irremediavelmente à estrutura

grande proprietário/proletário, só será objeto digno de estudo a relação entre essas duas

categorias” (Assumpção, 1977, p. 163). Dessa forma, as demais categorias encontradas

na região por D`Incao – como arrendatários e parceiros – seriam subsumidas a

terminologias como “assalariados disfarçados” ou “semi-assalariados” (Ibidem, p. 163).

Além disso, o registro feito pela própria D`Incao de que na região havia o crescimento

das pequenas propriedades, era tomado como um processo provisório (Ibidem, p. 163).

Segundo Assumpção, o descarte de evidências como estas demonstrava a

démarche do trabalho, no qual os fatos empíricos seriam utilizados como

exemplificação da teoria, fazendo com que D`Incao estabelecesse “um verdadeiro fosso

entre a teoria abstrata e os dados da pesquisa, sendo que, nessa relação de exterioridade,

a teoria é que acaba sendo o polo dominante” (Ibidem, p. 161). Desconectados da teoria,

os dados empíricos serviriam mais como “exemplificação” de um suposto processo de

expropriação completa do trabalhador rural do que base para a “produção de novos

conhecimentos”, tendo como resultado a simplificação de um fenômeno complexo.

Haveria casos, como exemplifica Assumpção em relação às modificações ocorridas na

Zona da Mata do Nordeste, em que o processo de proletarização, surgido com a

expulsão de moradores da plantation, daria espaço ao crescimento de grupos

camponeses. Isso porque as pequenas propriedades, estabelecidas nas margens das

grandes explorações de tipo capitalista, ofereceria ao mesmo tempo oportunidade de

trabalho assalariado para os grupos camponeses e supriria de mão de obra as grandes

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fazendas, sem que estas arquem com os custos de sua manutenção durante todo o ciclo

agrícola. No caso nordestino, salientava Assumpção, estabelecia-se, ao contrário do que

preconiza um processo inexorável de expropriação, uma relação muitas vezes

“funcional” entre grande e pequena propriedades (Ibidem, p. 164). Para Assumpção,

uma das principais consequências de se tomar esse processo em sua multiplicidade seria

que, ao contrário da tese de expropriação completa do campesinato que reduziria a

expressão das tensões geradas ao conflito proletariado x burguesia, poder-se-ia abrir a

possibilidade para o reconhecimento político da reivindicação pela posse da terra por

parte dos trabalhadores rurais (Ibidem, p. 166).

Esforço semelhante de desreificar o conceito de campesinato e de traduzir as

categorias analíticas para o estudo desse agente fora também levado a cabo por José

Sérgio Leite Lopes no texto “O ‘tradicionalismo camponês’ segundo a ‘antropologia da

tradição’”, o qual integrou o volume quatro dos relatórios finais. Escrito a partir de

fichas de leitura preparadas pelo autor para o concurso de professor assistente do

PPGAS em 1977, o texto buscava discutir a noção de “tradicionalismo camponês” a

partir de uma das vertentes de estudo sobre campesinato, precisamente a que remontaria

aos fundamentos da sociologia durkheimiana, ganhando a formulação clássica de

Kroeber, e retrabalhada posteriormente por Redfield, sobre o campesinato enquanto

“part-society”. Leite Lopes propunha tomar os trabalhos de George Foster, discípulo de

Redfield, para compreender algumas inflexões daquele autor em relação àquela

vertente.

Diferentemente dos trabalhos antropológicos sobre campesinato, inclusive os de

Redfield, Foster propôs investigar as “orientações cognitivas inconscientes” das

condutas dos camponeses em suas comunidades. E o princípio básico dessas orientações

residiria naquilo que Foster designava como “bem limitado”, aspecto cultural que

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permearia toda a vida social camponesa. Para Foster, a categoria de “bem limitado”

designava a percepção camponesa de que todos os âmbitos de sua organização social

(riqueza, saúde, status) seriam de quantidade finita e de difícil reposição pelo grupo. De

acordo com Leite Lopes, o princípio do “bem limitado”, tal como formulado por Foster,

estaria intimamente ligado à concepção de “comunidade fechada (coerente com a

alegada visão localista do camponês)” o que o faria enfatizar “o fato de que um

indivíduo ou uma família só pode melhorar de posição em detrimento ou às expensas

dos outros” (Lopes, 1977, p. 97-98).

Ainda segundo Leite Lopes, a visão da comunidade camponesa como

incompatível com a “melhoria individual”, teria o efeito, por parte de Foster, não só de

enfatizar uma “universalidade” do tradicionalismo camponês, como se valesse para

qualquer circunstância empírica, mas também de reforçar um tipo específico de

“universalismo”, referido à “transhistoricidade do pensamento econômico formalista

burguês” (Ibidem, p. 98). Ou seja, ao trabalhar com o conceito de “bem limitado” como

fulcro da cultura camponesa, Foster estaria, por outros meios, se utilizando da noção de

“escassez”, base sobre a qual, segundo Leite Lopes, se erigiu a teoria econômica

moderna.

Ainda de acordo com Leite Lopes, as proposições de Foster teriam o efeito

ambíguo de, ao procurar no “tradicionalismo” o fator que singularizaria a cultura

camponesa, reduzir o princípio do “bem limitado” à fórmula “meios escassos e fins

alternativos”, tão propalada pela economia moderna. Por fim, ressaltava o autor, o

princípio do “bem limitado” ao reforçar a imagem do camponês como agente

inconciliável com o “progresso”, “contraria o que seria uma ‘tradição antropológica’

voltada para o estudo da ideologia própria a cada sociedade, e tendo por preocupação

epistemológica constante o anti-etnocentrismo” (Ibidem, p. 104).

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E o que dizer dessa noção de “tradicionalismo camponês”, criticada por Leite

Lopes, qunado aplicada a situações como a da fronteira, em um espaço da sociedade

nacional que estava por “se fazer”? O mesmo volume que apresentava a crítica de Leite

Lopes termina com a resenha de Moacir Palmeira ao livro de Otavio Velho

“Capitalismo autoritário e campesinato”.

Na primeira parte do texto, Palmeira ressaltava a particularidade do uso do

método comparativo para o estudo da fronteira, já que Velho tomou como objeto

“‘realidades’ descontínuas”, o caso russo, americano e brasileiro (Palmeira, 1977b, p.

310). O método comparativo tal como utilizado por Velho traria ainda outra

contribuição importante, particularmente no que diz respeito aos estudos sobre a

fronteira amazônica: de acordo com Palmeira, ao buscar compreender a sociedade

brasileira “a partir da fronteira (ou a partir da posição relativa do ‘campesinato de

fronteira’)”, Velho pôde estabelecer distinções analíticas profícuas como aquelas entre

“capitalismo burguês” e “capitalismo autoritário”, e em relação a este último, as

diferenças do que designou como “regime autoritário” (Ibidem, p. 311, grifos no

original). Ao mesmo tempo, no entanto, destacava Palmeira, Velho “‘escolheu’ arcar

também com as dificuldades inerentes ao estudo de ‘fronteiras’ que vão da própria

instabilidade das populações à ausência de registros escritos” (Ibidem, p. 311).

Seria essa mesma imagem da fronteira amazônica que ressoaria para a segunda

parte da resenha crítica de Palmeira, que foca principalmente na contribuição do livro

aos estudos sobre campesinato (Ibidem, p. 314). Vimos anteriormente que Velho, na

esteira do sociólogo Jerzey Tepicht, definia o campesinato como um “modo de

produção” específico, muito embora submetido à dinâmica do modo de produção

capitalista. Com isso, Velho pretendia ressaltar as regras próprias do campesinato sem

com isso submergi-las às de outros modos de produção. O ponto assinalado por

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Palmeira residia na forma pela qual Velho tentava “conciliar isso com a concepção do

campesinato como uma protoburguesia” (Ibidem, p. 315). Afinal, questionava Palmeira,

“onde fica a especificidade dessas regras enquanto modo de produção se, no momento

em que a subordinação é suspensa, o campesinato aparece ipso facto como uma

burguesia – talvez sem os ares ‘civilizados’ de uma burguesia citadina, mas burguesia?”

(Ibidem, p. 316). Ainda segundo Palmeira, Velho estaria privilegiando somente um

aspecto do processo de diferenciação do campesinato, sendo a proletarização

igualmente possível, o que contrariava a literatura na qual ele mesmo se apoiava.

Palmeira prosseguia questionando se a análise “a partir da fronteira” empreendida por

Velho, ao fim e ao cabo, “não deixa de considerar as relativizações sucessivas que ele

próprio impõe a esse conceito” a partir das comparações de diferentes casos (Ibidem, p.

316). Nesse sentido, Velho teria corrido o risco de substancializar a fronteira tal como o

teria feito Victor Turner em relação ao caso americano, vendo-a como intrinsecamente

democrática, e por conta disso, “descartando os conflitos reais da fronteira que diriam

respeito à trajetória descendente de um ‘campesinato marginal’ em liquidação” (Ibidem,

p. 316). Por fim, Palmeira formulava, sob forma de pergunta, se Velho, ao analisar as

condições sociais da fronteira, não teria privilegiado em demasia a “posição política

potencial de um campesinato protoburguês da fronteira física e não as implicações de

uma trajetória de classe sobre o próprio ‘projeto político’ de uma classe” (Ibidem, p.

316)93.

93 Em resposta às questões postas pela resenha de Palmeira publicada em 1978, Velho (1982) argumentava que, a partir das pesquisas por ele coordenadas no projeto “Hábitos alimentares em camadas de baixa renda” (1977), observava-se uma acentuada “integração vertical” dos pequenos produtores nos circuitos monetários (crédito bancário, hipotecas, financiadores, compradores), havendo uma crescente especialização de produtos comerciais, sendo quase nada reservado ao cultivo para o autoconsumo. A partir desse debate Velho revisará a sua proposição fundamental de que o campesinato se constituiria em um modo de produção subordinado, afirmando que a condição camponesa variaria de acordo com experiências sociais concretas, e, em suas palavras, “respondendo a Moacir Palmeira eu diria que o campesinato que se proletariza já não é, no limite, um campesinato, ao passo que o campesinato que foi objeto principal de meu interesse no livro é, por assim dizer e no sentido acima, uma pequena burguesia, e

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Ao recorrermos aos volumes de Relatórios finais do Projeto Emprego buscamos

ressaltar como a relação entre a questão agrária e questão regional encontrou seu termo

de “mediação” empírica e teórica na própria concepção de campesinato com a qual

trabalhava a equipe de pesquisadores. Empírica porque não se negava a multiplicidade

do campesinato brasileiro, composto por diferentes categorias; e teórica porque se

buscou justamente nessa mesma diversidade perspectiva que superasse ou ao menos

nuançasse os termos dicotômicos com que muitas vezes era tratado o conjunto do

campesinato brasileiro (como estavam a indicar as díades plantation e fronteira,

“estabilidade” e “instabilidade”, fronteira aberta e fronteira fechada, posse e

propriedade, trabalho familiar e trabalho assalariado, isolamento e contato, rural e

urbano, economia de subsistência e economia de mercado). Isso é possível perceber na

própria organização dos relatórios finais do Projeto Emprego, os quais reuniram, por

vezes no mesmo volume, trabalhos que versavam sobre diferentes situações sociais

segundo os sentidos teóricos que poderiam encerrar para a compreensão do campesinato

brasileiro, revelando, por conseguinte, a preocupação do grupo em não operar

separações rígidas de frentes de estudos segundo critérios geográficos. Nesse sentido, as

especificidades dos casos regionais analisados no Nordeste – a quebra do “isolamento”

do camponês - e na Amazônia – as possibilidades abertas por uma região constituída

por uma “sociedade errante”, nos dizeres de Euclides -, foram fundamentais para a

compreensão da dinâmica “camponesa”, base de uma construção teórica de um

não apenas uma burguesia em potencial” (Velho, 1982, p. 88, grifos no original). Velho prosseguia afirmando que, em seu trabalho, a questão da “especificidade” camponesa não se colocava já que supunha “haver a identificação de uma camada camponesa com o campesinato. Explicitamente nego essa especificidade ao afirmar que apenas formalmente tratar-se-ia sempre do mesmo ator social” (Ibidem, p. 90, grifos no original). E em crítica direta à perspectiva teórica que orientavam as pesquisas realizadas no âmbito do Projeto Emprego, ressaltava que “a relação com o mercado, que é afirmada [pelo grupo do Projeto], é vista no entanto através de um modelo único (de que se teriam apenas variações submetidas a invariantes precisas) determinado por um mecanismo de alternatividade subsistência-mercado que se liga diretamente a uma lógica geral de funcionamento interno da unidade camponesa segundo suas necessidades sociais de reprodução e que passa a integrar a própria concepção de campesinato” (Ibidem, p. 93).

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campesinato múltiplo e em movimento. A diversidade do campesinato, em sua dinâmica

e relações recíprocas, seria consubstanciada numa lógica própria, distinta da

racionalidade capitalista, mas também distante do “tradicionalismo” que algumas

análises supunham. Questão que os próprios pesquisadores julgavam ser a melhor

contribuição da antropologia para os debates sobre desenvolvimento. Não seriam outras

as questões trazidas pelas análises de membros da equipe de pesquisadores do Projeto

Emprego sobre a participação política do campesinato.

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Capítulo V

O uno e o múltiplo: diversidade do campesinato e participação política

“Em muitas aldeias, o espírito de comunidade só se tornou realidade quando direitos econômicos e políticos parciais foram conquistados após muitas lutas, com o reconhecimento dos sindicatos, a ampliação do sufrágio e a possibilidade de participação nas novas instituições representativas e democráticas. Em muitos milhares de casos, há mais espírito comunitário na aldeia moderna, como resultado desse processo de aquisição de novos direitos legais e democráticos, do que em qualquer outra época do passado documentado ou imaginado” (Williams, Raymond. O campo e a cidade)

O golpe de 1964 e o regime político inaugurado por ele representou, para grande

parte de uma geração, o fechamento do horizonte de transformações sociais. O

cerceamento crescente sobre partidos e diversas organizações políticas restringiram os

canais de atuação. Fora também o que ocorrera para diversos integrantes do Projeto

Emprego: o afunilamento de participação política tivera como contraponto o contato

direto, através de interesses acadêmicos, com grupos sociais “subversivos”, a exemplo

dos camponeses, o que se tornara possível graças à expansão do ensino universitário e

das pesquisas atreladas à pós-graduação durante o período militar. O golpe praticamente

liquidou as possibilidades de atuação política mais direta, e a luta armada se tornou a

alternativa vislumbrada. Nesse contexto, não poderia deixar de ser surpreendente a

movimentação política encontrada em Pernambuco por Moacir Palmeira à época de

suas primeiras pesquisas, em 1969:

Foi realmente uma grande surpresa e a disposição do pessoal, os sindicalistas, que entrando em fazendas, tendo que enfrentar a capangagem, de vez em quando um sendo preso, o pessoal sendo chamado o tempo todo lá pelo Quarto Exército para dar

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depoimentos, fechavam sindicato, abriam sindicato, então havia uma luta muito mais intensa e eu fui me convencendo que isso, quer dizer, essa luta tinha mais, digamos assim, abria mais perspectivas do que, por exemplo, a guerrilha urbana, que até então eu achava que era a saída, enfim, a guerrilha de um modo geral, a luta armada e tal. Então o pessoal em plena ditadura estava reagindo com sucessos evidentemente pontuais, era uma situação extremamente difícil, tomei conhecimento dessa luta. E realmente fiquei, quer dizer, me senti muito envolvido e todos que iam ao campo ficavam muito envolvidos com isso. Realmente foi uma descoberta. Eu acho que você está falando do Afrânio há pouco, não é, do Afrânio, Beatriz todos... tiveram de repente uma bela surpresa de ver que essa coisa não estava morta, que havia, entende? Luta e tal. Então houve uma aproximação sucessiva desse pessoal... (Palmeira, 2010b, p. 24)94

Esse longo trecho revela o quão significativo fora o impacto causado pela

atuação dos sindicatos em Moacir Palmeira e para outros integrantes do Projeto

Emprego, em meio ao silêncio forçado da repressão ditatorial. Ainda que nessa nova

conjuntura não se fizesse ausente os riscos implicados na própria atividade de pesquisa,

o importante a reter é como, para muitos dessa geração, a experiência frustrada em

provocar mudanças substanciais na sociedade brasileira fora responsável por esforços

consideráveis de reconversão para a carreira acadêmica, contribuindo substancialmente

para profissionalização da área de ciências sociais (Garcia Jr. & Grynszpan, 2002;

Velho, 1983).

A ressonância da movimentação camponesa na Zona da Mata se faria também

sentir no engajamento político dos pesquisadores do Projeto durante a paulatina abertura

94 Para reforçar esse ponto, vale a pena recorrer a mais um relato de Moacir Palmeira: “Quando planejávamos essa ida ao interior de Pernambuco em 1969 todo mundo dizia: ‘Não, você não vai encontrar nada, você vai ser preso, os sindicatos ficaram todos pelegos, não tem mais nada e tal’. E quando eu chego no interior de Pernambuco eu encontro manifestações em massa, 200, 300 trabalhadores na porta de juntas trabalhistas exigindo seus direitos. Várias usinas tinham falido. A federação dos trabalhadores rurais (Fetape [Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco]) estava caindo em cima dos proprietários exigindo que em 1969 fosse depositada a parte do INPS das usinas, que tinha sido recentemente estendida aos trabalhadores canavieiros, que elas não estavam efetuando; a federação foi atrás desses direitos. Antes que acusada de subversiva, a federação acusava ao contrário os patrões por estarem desrespeitando a lei. A luta de classe continuava acesa, com paradas de trabalho quase todo dia, alguns sindicatos muito atuantes” (Palmeira, 2013: 452).

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do regime militar. Não fora à toa, ainda segundo Palmeira, “que alguns de nós nos

vinculamos ao movimento sindical. Eu pessoalmente fiquei muitos anos como assessor

da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], porque em plena

ditadura abria uma perspectiva de luta de massa” (Palmeira, 2013, p. 452). Diversos dos

pesquisadores do Projeto Emprego atuaram como consultores ou assessores de

diferentes organizações: Moacir Palmeira, como já mencionado, foi assessor da

CONTAG (Confederação dos Trabalhadores da Agricultura) entre 1978 e 1989, e,

posteriormente, diretor do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária), em 1985; José Sérgio Leite Lopes e Rosilene Alvim foram assessores da

Pastoral Operária de Nova Iguaçu “entre 1978 e meados dos anos 80” (cf. Lopes, 2011a,

p. 589); Afrânio Garcia Jr. fora assessor educacional da FETAG-RJ (Federação dos

trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio de Janeiro) de abril de 1977 a janeiro de

1983 e de abril de 1986 a junho 1988, assim como Eliane Catarino O`Dwyer entre 1979

e 1984. Em relação à atuação em ONGs (Organizações não-governamentais), Neide

Esterci desenvolveu diversas pesquisas junto ao CEDI (Centro Ecumênico de

Documentação e Informação); e Leilah Landim e Jorge Saavedra Durão na FASE

(Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional).

Neste capítulo, veremos como algumas das principais questões e formulações de

pesquisa surgidas no bojo do Projeto Emprego que integraram as reflexões do grupo

sobre a participação política do campesinato. Nelas, veremos como os pesquisadores se

dedicaram a aprofundar reflexões que buscavam fugir de certas aporias presentes em

análises correntes da organização política do campesinato, como, por exemplo,

“espontaneidade” e “dirigismo”, a relação entre diversidade do campesinato (inclusive

sua diferenciação socioeconômica) e o ativismo político, luta pela terra e direitos

trabalhistas. Ainda que não se possa estabelecer correlações diretas entre o trabalho

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científico e a atuação política do grupo, seria possível afirmar, conforme Palmeira, que

o trabalho de assessoria, como de resto quem trabalhava diretamente com movimentos

sociais, tornariam os envolvidos, “simultaneamente, mais sujeitos e mais rebeldes do

que outros grupos a essas construções intelectuais” (Palmeira, 1994, p.16). Tal

afirmação não parecia contraditória com outras que reivindicavam a separação entre as

atividades acadêmica e extra-acadêmica. São várias as colocações dos integrantes a esse

respeito: Palmeira se desligou durante dois anos da universidade (1978-1980) para se

dedicar à assessoria, atuando, posteriormente, em regime de vinte horas, recusando-se a

proferir palestras sobre resultados de seu trabalho intelectual em instâncias ligadas ao

sindicalismo rural; por outro lado, declinava de convites feitos por associações de

cientistas sociais para expor sobre o trabalho de assessoria (Ibidem, p. 16). Contudo,

afirmava que sua atuação na CONTAG lhe permitiu “contribuir para a renovação da

linguagem sindical e, de algum modo, para o arejamento da linguagem e das

concepções dos agraristas” (Ibidem, p. 16). José Sérgio Leite Lopes afirmou, em

entrevista, que era preciso separa as duas atividades, no entanto, advertia que

fazer investigação científica tem consequências, consequências de conhecimento que também são políticas por si mesmas. Então também não é necessário que você faça uma militância do mesmo nível que você faz como cidadão. Agora é claro que as escolhas por pesquisar tal ou tal coisa, ou de que maneira, claro que tem um lado político mais geral (Lopes, 2010).

Por fim, vale a pena recorrer a depoimento de Beatriz Heredia, a qual expôs com

clareza o modo de operar dos pesquisadores, delimitando a separação entre cada

atividade (acadêmica e extra-acadêmica):

La reflexión sistemática sobre esta cuestión y la certeza de la diferencia existente entre ambas formas de compromiso –así como de la legitimidad de cada uno- fue lo que hizo posible que productos de investigación pudieran ser puestos en diálogo con lo social y pudieran transformarse inclusive hasta en parte de la lista de reivindicaciones de los trabajadores rurales de la región cañera de Pernambuco y de Río de Janeiro, en las negociaciones salariales en algún momento en Brasil (Heredia, 2005, p. 12)

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Mas a assessoria ao sindicalismo rural revelava não só certo entusiasmo pela

ação dos próprios camponeses, à revelia do que imaginava grande parte da

intelectualidade a respeito da articulação política no campo, mas também profícua,

conforme afirmações anteriores, para repor certas questões de ordem teórica e

interpretativa sobre a mobilização camponesa. Isso vai ocorrer num momento em que os

governos militares elegeram a questão agrária como central para as políticas públicas e

implementaram medidas de apoio à modernização da agricultura, incrementando o

mercado de terras e, por conseguinte, a concentração fundiária, além de estimularem a

colonização em áreas de fronteira através da migração de camponeses. Os conflitos

despontariam em diversas regiões, inclusive na fronteira amazônica onde a luta entre

“posseiros” e “grileiros” (respaldados por grandes empresas) ganharia tons dramáticos.

Em torno desses conflitos nasceria a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975, órgão

vinculado à Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB), mas com caráter

ecumênico, que teve importante atuação na região, o que logo faria crescer o

reconhecimento de seu trabalho com os camponeses. A partir de então, as discussões

sobre a forma de representação política e seus encaminhamentos polarizariam as duas

principais participantes nas lutas camponesas, CONTAG e CPT, cujas divergências se

acirrariam a partir do III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais (1979). Grosso

modo, a CPT capitaneava críticas, com ressonância na academia, à organização

centralizada da CONTAG, construída sobre uma rígida burocracia, que desatrelava a

vontade dos camponeses da de seus líderes. A consequência maior dessa forma de

direção política, segundo a própria CPT, seria o pragmatismo e a restrição da atuação do

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sindicato à letra da lei, principalmente ao Estatuto da Terra (1964), código que teria se

mostrado inócuo no avanço das propostas camponesas95.

Não pretendemos traçar uma ponte direta entre os vínculos estabelecidos pelos

pesquisadores do Projeto Emprego com organizações políticas e o sentido das questões

trazidas por suas pesquisas, mas, sem tomar esse dado como algo tangencial, propomos

nesse capítulo mostrar como formulações a respeito da organização política do

campesinato estavam ligadas à concepção entrevista nos relatórios do Projeto do que

designamos como um “campesinato em movimento”. Ou seja, a diversidade do

campesinato e as relações estabelecidas entre as categorias que o compunha, longe de

significarem a fraqueza de sua organização política, poderiam revelar ela mesma a sua

força, fato que era corroborado pela imposição na ordem do dia do tema da reforma

agrária. No que toca a esse debate, veremos na segunda parte do capítulo como algumas

das intervenções públicas dos participantes do Projeto Emprego visavam a desatrelar a

concepção “econômica”, hegemônica ao se discutir a “viabilidade” da reforma agrária,

da concepção “política”, que relacionava a legitimidade daquela demanda à luta

histórica dos trabalhadores rurais.

5.1 Mobilização e “desmobilização”: processo político e campesinato

Vimos no relato de Moacir Palmeira que a mobilização de camponeses na Zona

da Mata de Pernambuco, sobretudo através de sindicatos, causara surpresa ao grupo de

95 São esses pontos que se deixam entrever, por exemplo, no documento da CPT intitulado “Conquistar a Terra, Reconstruir a Vida. CPT, Dez Anos de Caminhada” (1985), onde se afirmava que “o movimento sindical não se transformará pela força das posições dos dirigentes sindicais, por mais autênticas que sejam. A raiz da renovação está na classe, nas lutas por seus direitos. Isso demanda a construção de novos canais de organização dentro dos sindicatos, democratização do poder, formação de novas lideranças, formação continuada dos associados . . . Sem superar o ‘presidencialismo’ reinante nos sindicatos, pouco ou nada se fará. Sem que se articule a força das classes organizadas, pequeno será seu poder político”. (CPT. Conquistar a Terra, Reconstruir a Vida. OPT, Dez Anos de Caminhada.Petrópolis, Vozes, 1985, p. 56, apud Medeiros, 1989, p. 156)

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antropólogos. Para Palmeira, no entanto, essa realidade que se descortinava viraria

objeto de pesquisa, a partir da qual seria possível questionar certas interpretações sobre

campesinato e participação política. Em texto escrito em 1974, mas publicado em 1979

na Revista de Cultura e Política, intitulado “Desmobilização e conflito: relações entre

trabalhadores e patrões na agroindústria Pernambucana”, o antropólogo ressaltava

justamente o fato de que as lutas sociais continuavam a ocorrer, ainda que não com a

mesma repercussão que tivera “em seus momentos mais críticos” (Palmeira, 1979, p.

41), e que o estudo desse período de aparente “‘desmobilização’” poderia contribuir

para o entendimento de certas mudanças de atuação das classes sociais.

Tendo em vista essas questões, Palmeira retomou algumas das observações de

campo feitas por ele e Lygia Sigaud sobre as modificações nas relações de trabalho na

plantation nordestina. Observava o antropólogo que as lutas camponesas tinham longa

data, ainda na década de 1930, quando a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)

possibilitou a criação de sindicatos de operários do açúcar, ainda que com pouca

atuação entre os trabalhadores rurais. Essa situação começou a se inverter a partir da

redemocratização de 1945, quando a valorização do açúcar no mercado externo fez com

que proprietários tivessem interesse em retomar a produção, expulsando os “foreiros”

residentes. Ocasião em que surgem as primeiras Ligas Camponesas, incentivadas por

grupos políticos da esquerda vindos da cidade, experiência que para muitos autores

serviria de esteio para o reaparecimento de suas congêneres nos anos 1950. No caso de

Pernambuco, a eleição de Miguel Arraes - simpático à mobilização camponesa - e a

promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (1963), com indicativos para a

regulamentação das “tarefas”, trouxeram novos elementos para as disputas dos

trabalhadores com os proprietários de terra. Conjuntura que teve, de acordo com o autor,

repercussões importantes na mobilização política camponesa, que, através dos

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sindicatos, alterou significativamente as relações de poder na área. Além disso, como

apontara Lygia Sigaud, as mudanças também atingiram o próprio “mapa cognitivo” dos

camponeses, para os quais, a partir de então, as “leis” se constituíram em um marco

temporal entre a vigência no “passado” das relações tradicionais de trabalho e das novas

práticas vigentes.

As vitórias obtidas pelos trabalhadores, impondo obrigações legais antes

inexistentes ou então facilmente burladas pelos proprietários, aliada às constantes crises

do mercado de açúcar e a acirrada concorrência interna com a produção paulista,

aceleram o processo de expulsão dos moradores do interior da plantation. Para diminuir

os custos com a mão de obra implicados na relação da morada, os proprietários

recorreram a diversas “estratégias”, como a de fornecer pedaços de terra de difícil

acesso e de baixa qualidade, reivindicar o lote após o trabalhador ter feito a limpa do

mato e a colheita do roçado, ou ainda exigindo o aluguel da casa. Todos esses

mecanismos tornaram inviável a reprodução do trabalhador pela morada, fechando a

possibilidade, antes existente, de buscarem em outras propriedades terras para se

instalarem, restando ou o trabalho alugado ou a migração para as cidades.

Mas como assinalava Palmeira, “a expulsão dos moradores não é a única fonte

de conflitos. Ela coexiste com conflitos que se ligam às novas formas de exploração da

força de trabalho nas condições concretas de funcionamento da economia açucareira”

(Ibidem, p. 46). Fato que se deixava entrever através do espaço de disputas em torno

dos critérios de medidas de produção do trabalho (tarefa, cento, tonelada), opondo, de

um lado, os trabalhadores, que buscavam diminuir a margem de arbítrio envolvida na

medição contestando os seus instrumentos e critérios, e, do outro, os patrões (e seus

intermediários), os quais, em compensação, burlavam a medição de modo a tornar

menor a produção do trabalhador, rebaixando a sua remuneração. Quando exitosas, as

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estratégias dos patrões revelavam uma espécie de “super-exploração”, na qual o

trabalho necessário para a reprodução do trabalhador era cada vez mais suprimido, para

o que também contribuía o barracão, criando um circuito eficaz de retorno do

rendimento dos trabalhadores para a mão dos patrões (Ibidem, p. 46-47).

A distinção entre os modos de “expropriação” dos moradores e as novas formas

de “exploração” da força de trabalho, e os conflitos decorrentes de cada um, na

formulação de Palmeira, “só tem sentido de um ponto de vista analítico”, já que “do

ponto de vista dos agentes envolvidos não cabem essas sutilezas teóricas, tanto mais

quanto empiricamente não há diferença alguma entre um mecanismo de expropriação e

um mecanismo de extração de mais-valia extra” (Ibidem, p. 49). Contudo, a

“indiferenciação prática” entre “expropriação” e “superexploração” teria rendimentos

analíticos importantes para a compreensão das formas assumidas pela luta de classes.

Isso porque, nas palavras do autor, “essa indiferenciação é responsável pela unidade de

uma luta que poderia não ser a mesma, uma vez que a proletarização, i.e., o

envolvimento pleno do trabalhador nas novas relações econômicas, não é a única via

para os que são atingidos pela expropriação” (Ibidem, p. 49). Mas essa mesma

indiferenciação, advertia Palmeira, seria “responsável também pelos limites dentro dos

quais se desdobram essas lutas, que não são outros que aqueles dados pela legislação

nacional” (Ibidem, p. 49). Com essa afirmação, o autor parecia chamar a atenção para a

potencialidade política que as lutas camponesas nordestinas poderiam adquirir caso não

cerceadas pelo regime ditatorial e o arcabouço legislativo que o respaldava.

Contudo, as mesmas leis que fomentaram a expulsão dos moradores das grandes

propriedades se constituíram em instrumento importante a favor dos interesses dos

próprios trabalhadores rurais. E por isso, de acordo com o autor, o cumprimento da

legislação trabalhista, exigida insistentemente pelos sindicatos rurais, teria “uma feição

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radical insuspeitada”, influindo nas disputas e na própria continuidade das relações

sociais de dominação (Ibidem, p.50). Nesse sentido, segundo Palmeira, a existência e o

perfil de atuação dos sindicatos rurais da região não se encaixavam

nos enquadramentos ‘normais’ dentro dos quais são geralmente pensados os conflitos. Não são conflitos propriamente sindicais sem serem puramente locais, não são conflitos puramente políticos sem serem simplesmente econômicos. Não são conflitos ‘espontâneos’ sem serem maquinados por alguma entidade mágica, dessas que costumam povoar certas cabeças conservadoras (Ibidem, p. 50).

O sindicato proporcionaria às lutas camponesas extrapolarem os seus limites

“locais”, recorrendo a outras instâncias de legitimação concorrentes à dominação

pessoal do grande proprietário. Para isso, bastava notar como o sindicato dos

trabalhadores rurais em Pernambuco era evocado pelo trabalhador rural como marco de

ruptura com um passado de sujeição, o que era indicativo da importância que assumia.

Isso dava a real dimensão de que não se tratava tão simplesmente de “conflitos pura ou

primordialmente sindicais”, já que o fechamento político durante a ditadura fez com que

os sindicatos construíssem sua legitimidade a partir de “demandas ‘de baixo’”,

dificultando que outros grupos se apoderassem de conflitos ou os direcionasse de

acordo com interesses imediatos (Ibidem, p. 50). Acrescente-se o fato de que o alcance

desses conflitos não estaria restrito à economia, mas dada a própria formação histórica

da sociedade brasileira, marcada por um capitalismo autoritário e o papel proeminente

desempenhado pelo Estado, eles tinham também alcance político importante, muito

embora, ressaltava Palmeira, fatores conjunturais como o “bloqueio da atividade política

propriamente dita, imposto pelo regime, e o isolamento da luta que opõe trabalhadores e

proprietários da zona canavieira de Pernambuco d[eem] a essas lutas um caráter

puramente defensivo” (Ibidem, p. 50).

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O que as mobilizações camponesas na região indicavam, sobretudo as sindicais,

era que se havia uma “contradição” ao se falar em “lutas espontâneas” naquele contexto

específico, tampouco faria sentido qualificar do mesmo modo os conflitos camponeses

do período anterior, de 1955 a 1964. Palmeira sugeriu que o mais adequado fosse tomar

esses dois períodos da mobilização camponesa, aparentemente apartados no tempo,

como um processo “de interiorização da luta (política) de classes que teria perdido sua

feição mais explicitamente política para inscrever-se no interior mesmo do processo

produtivo, a produção cotidiana dos ‘engenhos’ e usinas passando a estar suspensa à

decisão dos enfrentamentos diários de trabalhadores e patrões” (Ibidem, p. 51).

Assinalava ainda Palmeira, ao final do artigo, que a suposta perda de “espontaneidade”

das lutas camponesas na região não se ligava ao fato da presença do Estado ou de um

necessário distanciamento dos conflitos diários, mas uma “espontaneização” das

lideranças sindicais, os quais poderiam substituir, “dentro de certos limites”, partidos

políticos, atuando efetivamente junto a instâncias de poder, e representando,“legal e –

paradoxo – politicamente”, os interesses de classe (Ibidem, p. 51). Seguindo a

argumentação do autor, a paulatina perda da “espontaneidade” das lutas camponesas

pré-1964, representadas pela atuação “legalista” dos sindicatos, encerraria um

“paradoxo” que estaria levando, no entanto, a importantes resoluções políticas, ainda

que, como não poderia deixar de ser, limitadas pelo contexto de repressão e vigilância.

No que concerne a este debate, a posição do sociólogo José de Souza Martins

parecia concordar com a crescente importância dos conflitos camponeses, mas divergia

da forma pela qual se ampliaria o alcance político deles. No texto “Os novos sujeitos

das lutas sociais, dos direitos e da política no Brasil rural” apresentado em 1983, em

Roma, Martins investigou a condição social do “posseiro” na fronteira para

compreender a particular expressão política nela contida. Dessa forma, o autor se

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contrapunha a interpretações que viam no assalariado o principal agente político no

campo, como se na Amazônia, “região pioneira de situações ainda indefinidas”, os

conflitos que ali tinham lugar não encerrassem, em suas palavras, “maior alcance

histórico como têm as lutas operárias, institucionalizadas, e que a situação conflitiva

tende a desaparecer” (Martins, 1985, p. 90).

Para Martins, as ações coletivas construídas pelos posseiros em seu dia a dia –

como o “empate” entre os seringueiros, as invasões de terras, além do conflito direto e,

por vezes, armado com jagunços – não se coadunavam com as lutas dos assalariados

rurais mediadas pelo sindicato. Este expressaria os conflitos dentro da “legalidade” que

deixou de ser observada pelo Estado, sendo o seu maior exemplo, segundo o autor, a

aglutinação de milhares de trabalhadores na região canavieira do Nordeste, algo

possível já que “todos eles têm praticamente idêntica relação com o mesmo objeto, que

é o capital, por meio do salário” (Ibidem, p. 93). As lutas, para o posseiro da fronteira

amazônica, teriam sentidos diferentes, porque diferentes eram as condições sociais em

que se encontravam: elas não se fundariam nas relações de produção, como ocorria com

os assalariados, mas na disputa pela manutenção do principal meio de produção que era

a terra. Dessa forma, nas palavras do autor, a luta pela “posse” da terra “envolve as

relações de propriedade e não as relações de trabalho; o problema não é o da

exploração, mas da expropriação” (Ibidem, p. 93, grifos no original). Nesse ponto,

vemos que, diferente de Palmeira, para o qual a diferenciação teórica desses processos

revelaria pouco da “indiferenciação prática”, sendo esta a de maior importância

heurística, no caso dos “posseiros” estudados por Martins, e para utilizarmos os termos

de Palmeira, havia uma diferenciação prática com importantes repercussões teóricas.

Para Martins, por conseguinte, a luta dos posseiros não se moldaria dentro da

“legalidade”, tal como a dos assalariados rurais do Nordeste, mas pelo o que seria

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“legítimo”, baseado na concepção de que a terra seria destinada ao trabalho e a quem

dela necessita (Ibidem, p. 95).

Para o grupo de antropólogos do Projeto Emprego as duas lutas não poderiam

ser dissociadas. Um dos pontos fundamentais da mobilização camponesa no Nordeste,

como já chamara a atenção Moacir Palmeira, era de que o processo de “exploração” não

estava dissociado do de “expropriação”, momentos analíticos distintos, mas que se

imiscuíam na realidade (o que, no entanto, não era sem consequências para a própria

análise da organização política camponesa). Lygia Sigaud, no texto “Luta política e luta

pela terra no Nordeste” (1983), explorou justamente esse ponto ao analisar as

campanhas salariais de 1979, 1980 e 1981, bem como a greve parcial de 1979 e a geral

de 1980 na Zona da Mata pernambucana. Segundo a autora, esses acontecimentos

teriam relação fundamental com a constatação de que, apesar da modernização e

expansão das relações assalariadas, houve aumento significativo da área cultivada com

agricultura de subsistência, baseada no trabalho familiar. Algo que soava estranho

àqueles para os quais as lutas salariais estavam em dissociação com o processo de

“campesinização”, desatentos à “dimensão política, pelo que revela em termos de luta

de classes numa determinada conjuntura histórica” (Sigaud, 1986, p. 77).

As disputas políticas na Zona da Mata de Pernambuco, de acordo com Sigaud,

estariam associadas às mudanças na plantation nordestina, sobretudo aquelas que

atingiram os moradores do engenho. Como já visto anteriormente, a relação implicada

na morada ligava-se a imperativos morais e a regras pessoais estabelecidas pelo

proprietário na concessão de benefícios (roçado ou sítio) para os trabalhadores e sua

família. As demandas por cana de açúcar no mercado externo e interno durante a década

de 1950, fizeram com que esses benefícios começassem a ser negados e os moradores,

organizados em ligas e sindicatos, passassem a se contrapor às diversas formas de

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expulsão do interior do engenho praticadas pelo proprietário. A partir dessas mudanças,

como assinalou a autora, “de elemento natural da morada e dom do proprietário a terra

se torna um objeto de luta” (Ibidem, p. 79, grifos no original). E ainda que não estivesse

em jogo uma alteração profunda de acesso à terra, posto que os moradores lutavam

pelas garantias embutidas na relação tradicional da morada, o tom “radical” das

mobilizações, afirmava a antropólogoa, parecia ter menos a ver com o objeto da luta do

que com a emersão, em um curto espaço de tempo, de uma “camada da população até

então inexpressiva politicamente” (Ibidem, p. 80).

A imbricação entre luta salarial e luta pela terra ganhou novas conotações a

partir do Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e do Estatuto da Terra (1964), criando

mecanismos legais e instâncias de resoluções de conflito que restringiram os arbítrios

dos proprietários. Dessa forma, a antropóloga caracterizou o período entre 1964 e 1979

como de lutas pela permanência dos trabalhadores em seus sítios através de

encaminhamentos de casos individuais à Justiça (Ibidem, p. 81). Mas as condições

haviam se alterado fundamentalmente porque a perda efetiva da terra e a

“interiorização” das relações implicadas na morada, mesmo com seu fim, gerou uma

espécie de “sentimento de privação” entre os trabalhadores. Dois acontecimentos

reforçaram esse “sentimento”: a aprovação da “ Lei do Sítio” (Decreto 57.020) de 1965,

que estabelecia a obrigatoriedade da cessão de terras de até dois hectares no interior dos

engenhos aos trabalhadores (constantemente burlado pelos proprietários); e a política de

compressão salarial de pós-1964, que teve o efeito, aos olhos dos trabalhadores, de que

somente o salário não era suficiente, e que o acesso à terra seria a solução.

Segundo Sigaud, as greves de 1979, com adesão de vinte mil trabalhadores, e a

de 1980, com adesão de duzentos e quarenta mil trabalhadores, representaram uma

inflexão nesse processo, ao conferirem à “Lei do Sítio” uma força de luta extraordinária,

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expressa na Convenção de 1979 e nos Dissídios de 1980 e 1981. A partir desse

momento, a luta pela terra ganhava status jurídico, e assim como o salário, passou a ser

alvo de disputas trabalhistas. Nesse sentido, ressaltava a autora, o acesso à terra deixa de

ser um “costume”, baseado na concessão de “dons” pelos proprietários, “para se tornar

um direito, como qualquer outro que se lutava para forçar os patrões a conceder”

(Ibidem, p. 85-86).

Embora os trabalhadores e dirigentes sindicais baseassem suas reivindicações

por terra segundo a lógica da plantation, ou seja, cobrando as garantias que existiam em

torno do sítio (como a livre disposição do cultivo de lavouras e criação de animais,

cessão de dois hectares de terras), a “Lei do Sítio” se apresentou como um obstáculo

(discriminando as culturas e limitando a criação de animais). Essa situação gerava

algumas consequências importantes para a dinâmica de lutas: a primeira delas era de

que a própria reivindicação de terra e as condições de sua cessão pelo proprietário

permaneciam como fonte de disputa; além disso, o acesso à terra assegurava ao

trabalhador um mínimo de subsistência durante o período de greve, o que permitia a

sustentação da mobilização apesar das agruras trazidas pela paralisação das atividades

no engenho. Outro ponto importante, segundo Sigaud, era o próprio sindicato, “esse

instrumento via de regra pensado como privativo dos operários, que cria(va) o espaço

político para a conquista da terra” (Ibidem, p. 91-92). Instância onde os trabalhadores

traçam diferentes estratégias de atuação e onde eram socializados na prática política.

Nessa nova etapa, ainda de acordo com a antropóloga, os sindicatos e suas pautas

coletivas de melhoria salarial e acesso à terra, ofereciam um poderoso obstáculo para as

novas estratégias criadas pelos proprietários, expressas, sobretudo, na tentativa de

“repovoar os engenhos” (depois de um período de expulsão dos moradores) sem a

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contrapartida da terra, situação que os trabalhadores não deixavam de aproximar em

seus dicrusos ao cativeiro das épocas passadas.

Palmeira e Sigaud não deixavam de atentar para as particularidades sociais

contidas em cada categoria social do campesinato. E, por isso, não buscavam atrelar

diretamente essas particularidades às suas expressões políticas, vendo, todavia, na

própria participação e mobilização camponesa as condições para sua efetividade e

potencialidade política. Dessa forma, as diversas reivindicações – por terra, condições

de trabalho, aumento salarial, cumprimento das leis trabalhistas - encontravam seus

significados no próprio desenrolar do processo de luta, e não necessariamente se

excluíam conforme certas instâncias econômicas e sociais definidoras de certas

categorias do campesinato (como posseiro da fronteira amazônica e trabalhadores rurais

no Nordeste). Foi assim que, em texto mimeografado de 1975, intitulado “Diferenciação

social e participação política do campesinato: primeiras questões”, Moacir Palmeira se

debruçou em ampla bibliografia que estabelecia a relação entre a estratificação social da

comunidade camponesa e a potencialidade política de cada um de seus estratos.

Observava o autor que o texto fora escrito tendo em vista as atividades docentes e de

pesquisa desenvolvidas no interior do PPGAS, sendo Otávio Velho “quem primeiro nos

chamou a atenção para a importância da problemática da diferenciação em casos de

campesinatos como o brasileiro que tendíamos a descartar em nome da contradição

maior entre camponeses e grandes proprietários de terras” (Palmeira, 1975, p. 12).

Segundo Palmeira, trabalhos “clássicos” envolvidos no debate sobre a

participação política do campesinato buscavam constantemente definir o “caráter

revolucionário ou não dessa ou aquela classe em virtudes intrínsecas ou taras seculares”,

espécie de “substancialismo” pouco atento às condições históricas (Ibidem, p. 1). No

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entanto, observava o autor, “introduzir ad hoc conteúdos históricos (...) não chega a

resolver o problema e é apenas indício de uma dificuldade” (Ibidem, p. 1, grifos no

original). Expressão disso era o procedimento, tomado, sobretudo, da literatura russa, de

correlacionar o nível de renda de estratos camponeses (rico, médio e pobre) e os

sentidos de suas atividades política. No caso russo, de acordo com o pesquisador, esse

tipo de análise teria alguma “‘consistência sociológica’” dado o peso da comunidade

(mir) sobre as unidades familiares, indicando que a diferenciação econômica camponesa

poderia ser um indício de transformação da organização coletiva. E mesmo dentro dessa

literatura, Lênin em particular, “no máximo, isso era, hipoteticamente concebido como

um primeiro momento” (Ibidem, p. 2). Segundo Palmeira, em relação ao Brasil aquela

distinção de estratos sociais camponeses giraria em falso: “não que inexista a

‘comunidade rural’ ou algum tipo de ‘aldeia’, como foi sugerido por Oliveira Vianna e

Lynn Smith e aceito por boa parte da comunidade intelectual. Apenas a ‘área de

incidência’ do controle da comunidade sobre seus membros é diferente” (Ibidem, p. 3).

O mir russo teria um controle mais direto e centralizado sobre as unidades familiares,

tendo o poder, por exemplo, de dispor e realocar o estoque de terras entre seus

membros, enquanto no Brasil a “comunidade” não teria senão controle indireto

(casamento, mecanismos de herança, ou “socialização”/distribuição de certos

elementos), sendo a unidade familiar camponesa a maior responsável pelo

gerenciamento de seus recursos e propriedade. Embora os sentidos das diferenciações

econômicas sejam distintos em cada caso, não seria prudente descartar os mecanismos

de atuação da comunidade sobre esse processo (como, ademais, a pesquisa de Doris

Rinaldi Meyer viria a demonstrar).

Como indicava Palmeira, outros autores, como Eric Wolf e Hamza Alavi,

tinham em vista os limites implicados no estabelecimento de uma relação direta entre

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“facções” do campesinato e suas manifestações políticas, e procuraram introduzir outras

variáveis, como a posição diante dos meios de produção, tipo de lealdade política,

isolamento ou integração, e formas de controle de recursos. Contudo, prosseguia

Palmeira, os autores não deixaram de sucumbir ao mesmo “substancialismo” de buscar

no “ser de classe” o seu caráter revolucionário ou conservador, e para isso “não importa

que variáveis a mais se possam introduzir na delimitação desse ‘ser’ que a sua

substância não será alterada” (Ibidem, p. 4). As análises desses autores tinham o mérito

de fornecer, na passagem de uma determinada conjuntura política, elementos para se

pensar as diversas movimentações desses “grupos substantivos” entre os estratos pobre,

médio e rico. Todavia, ressaltava Palmeira, nenhum dos autores questionava aquele

pressuposto,

como se as oposições entre classes se reproduzissem automaticamente nas contradições dentro dessas classes e como se fossem as classes meros agregados, sem considerar a mediação da política (i.e. do confronto entre as classes) e da conjuntura (i.e., da disposição num determinado momento de todas as forças sociais de uma determinada formação social) (Ibidem, p. 4).

Para se escapar dos termos colocados pelo debate, Palmeira propunha que se

investigasse, dentro da atividade política camponesa, “o que é que distingue esses

líderes dos seus liderados e daqueles que sequer obedecem ao seu comando o que não é

senão uma maneira diferente de fazer a pergunta clássica ‘por que estão ali eles e não

quaisquer outros’, a ‘origem de classe’ podendo ou não ser decisiva” (Ibidem, p. 6). O

exemplo dado pelo autor remetia às experiências dos sindicatos rurais no Nordeste,

onde a atividade política era decisiva para a escolha dos líderes, conforme assinalavam

as expressões “‘os trabalhadores da comunidade’”, os “‘trabalhadores com questão’”,

“‘os trabalhadores cujas questões passam pelo sindicato’” e “‘os trabalhadores que

comandam o movimento sindical’” (Ibidem, p. 6). Embora, para Palmeira, a questão

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possa parecer “tautológica”, no entanto, ela permitiria identificar fatores não

estritamente econômicos envolvidos na participação política do campesinato, já que

é combativo politicamente quem se organiza e não quem encarna não se sabe que virtudes de um determinado estrato social. E, para que determinado grupo se organize, o que é determinante não é o seu ‘ser de classe’ (ou fração de classe) mas o conjunto de contradições a que está submetido num determinado momento e (...) o aparato institucional dentro do qual serão vividas essas contradições (Ibidem, p. 7).

Para o antropólogo, essas “contradições” estariam referidas ao processo de

expropriação do campesinato e o grau de acumulação capitalista que o informa,

enquanto o “aparato institucional” diria respeito aos procedimentos jurídicos e legais

definidos pelo Estado para a regulação dos conflitos. Essas variáveis eram importantes

porque transversais às diferenciações de classe, como se poderia observar nos casos das

Ligas Camponesas nordestinas, cuja mobilização se dera principalmente angariando

camponeses que tinham possibilidade de verem seus conflitos resolvidos através do

Código Civil Brasileiro, argumento que se contrapunha a outros que afirmavam serem

os recrutados somente aqueles pertencentes às camadas mais “revolucionárias” (Ibidem,

p. 7). Fato semelhante ocorria com o sindicato, já que eram justamente os camponeses

que prosseguiam com processos em seu interior – aqueles que não eram encaminhados

imediatamente à justiça – que teriam maior participação nas decisões, e, como afirmava

Palmeira, se havia algum tipo de congruência entre os camponeses mais ativos e sua

extração de classe, “trata-se da conjugação de determinadas contradições dentro de

certos marcos institucionais, que deve ser explicado e que, de forma alguma, constitui

explicação para a participação política diferencial daquele campesinato” (Ibidem, p. 8).

Esclarecia o autor que não se tratava de negar a diferenciação camponesa,

dinâmica de fato presente ainda que como “reflexo das discussões ideológicas” (Ibidem,

p. 8), mas ela “vai aparecer não ao nível econômico imediato, ao nível da própria

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comunidade, mas ‘deslocada’, a um nível propriamente político” (Ibidem, p. 8-9).

Tomar a diferenciação em seu sentido estritamente econômico, sem atentar para as

particularidades que a envolvia no caso camponês, tinha repercussões na própria prática

política. Exemplo disso, segundo Palmeira, fora a formação de “bancadas” do Nordeste

e do Sul, divisão que acompanhava as designações de “ricos” e “pobres” com que se

identificavam os participantes, fato que deu origem inclusive a uma proposta de se

excluir da organização os pequenos proprietários ou aqueles que recorriam ao trabalho

assalariado. Advertia o autor que, contudo, “os ‘pobres’ não eram proletários rurais (e a

sub-representação dos proletários rurais é uma das características do movimento

sindical brasileiro), mas sim parceiros, arrendatários e pequenos proprietários que se

valem eventualmente também do trabalho assalariado” (Ibidem, p. 8) A questão, no

entanto, como já demonstravam as análises integradas no Projeto Emprego e, por

diversas vezes, reafirmada na produção esparsa de seus pesquisadores, era que a

discussão sobre enquadramento sindical – e, de resto, várias outras em matéria de

mobilização camponesa – desconsiderava que o fundamental não era a ocupação

individual, mas a sua integração na “família”, uma vez que o trabalho camponês fazia

parte das estratégias de reprodução da unidade doméstica, para a qual contribuíam os

rendimentos de diversas categorias de trabalhadores rurais ao mesmo tempo 96.

Para reafirmar a importância da participação política do campesinato na

mobilização desse ator, Palmeira ressaltava que era importante atentar para a própria

definição clássica de campesinato, que tomava como essencial a relação com a cidade,

96 As estratégias dos governos militares em frear o ímpeto organizativo dos trabalhadores rurais não se limitavam à repressão violenta, mas a mecanismos legais como o enquadramento sindical, que visavam justamente explorar as clivagens de classe. Em 2 de fevereiro de 1965, o governo de Castello Brasnco baixou a Portaria nº 71 que estabelecia a reunião em sindicatos das diferentes categorias de trabalhadores rurais, incluindo aí os autônomos em regime de propriedade familiar sem empregados. Algo que se alteraria com o Decreto-Lei nº 1.166, de 15 de abril de 1971, definindo por trabalhador rural aquele que presta serviço a um empregador rural e o proprietário que recorre a terceiros para atividade em regime individual ou coletivo. Cabia, a partir de então, ao camponês decidir sua vinculação ao sindicato patronal ou de trabalhadores.

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“não a cidade aglomeração, mas a cidade como poder externo”, e que “ser camponês

não significa simplesmente viver fora da aglomeração, mas antes de mais nada viver

fora da civitas, da cidade política” (Ibidem, p. 9, grifos no original). No entanto, de

“externo” aquele poder poderia se tornar “interno” com o desenrolar da luta política. A

busca pelo reconhecimento político geraria uma diferenciação interna na comunidade

camponesa com causas independentes das diferenças de fortuna. Isso porque, como

reforçava o antropólogo, a própria participação política seria um “diferenciador” – como

os sindicatos e as cooperativas - a partir do qual a própria diferença de bens poderia vir

a ocorrer.

Não sendo, portanto, o critério econômico o decisivo na participação política do

campesinato, mas o próprio envolvimento nas atividades políticas, qual seria, enfim,

perguntava-se Palmeira, o perfil das lideranças desses movimentos? Para respondê-la, o

antropólogo argumentava que era preciso fugir de constatações correntes sobre a falta

de lideranças “autênticas”, para cuja solução era muitas vezes reclamada a intervenção

das “camadas urbanas”. Negligenciavam esses analistas que os líderes desempenhavam

a função de “diferenciadores” através do paulatino desenrolar da prática política,

adquirindo conhecimentos do “código dominante” e estabelecendo relações com outros

círculos sociais e de classe, residindo especialmente nessas circunstâncais a

continuidade da liderança. E ainda que ao longo do processo de mobilização política

pudesse ocorrer o fechamento “corporativo” da associação, ou então a proeminência de

certa “comunidade” sobre outras, nas palavras de Palmeira, “a ‘educação’ dessas

lideranças, não veem os analistas, vem sempre no bojo de uma luta: é um privilégio de

toda uma classe, ou pelo menos, de toda uma comunidade investido em algumas

pessoas” (Ibidem, p. 10).

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Em outro texto de Palmeira, intitulado “A diversidade da luta no campo: luta

camponesa e diferenciação do campesinato” (1985), apresentado no seminário “Igreja e

questão agrária”, em 1983, questões relativas à participação política e suas

consequências foram retomadas97. O autor propunha investigar a mobilização dos

trabalhadores rurais “pelo lado das ‘relações políticas’” e não como decorrência direta

da “‘penetração do capitalismo’” e da diferenciação de classe, base do argumento para

que alguns estudiosos do tema descaracterizassem qualquer “sentido histórico” nas lutas

que ocorriam há anos, supostamente desatreladas da realidade e imersas em

contradições antigas, cujo o caminhar paulatino levaria a uma “eventual superação”

(Palmeira, 1985, p. 44). Ao centrar seu foco nas “relações políticas”, destacava Palmeira

que pretendia investigar as mobilizações camponesas que se deram no início da década

de 1960 e as que então ganhavam “novo impulso” entre o final da década de 1970 e

início da de 1980. Com isso, buscava evitar recair ou na “afirmação radical da

‘novidade’ do que está acontecendo, ou num tipo de continuísmo ingênuo que debita à

‘tradição revolucionária’, ou a algo no gênero, a eclosão das lutas sociais” (Ibidem, p.

44). Isso porque o interessava recompor a continuidade e a descontinuidade dessas lutas

a partir dos “deslocamentos de feixes de relações sociais e da introdução correlativa de

novas práticas sociais” (Ibidem, p. 44). Importante “deslocamento”, por exemplo, fora o

da Igreja que, agente ativo na mobilização dos camponeses em sindicatos, fazendo

frente às Ligas no pré-1964, tornou-se a principal responsável pela manutenção dessas

associações no período após o golpe, dado o afastamento de algumas de suas alas do

regime instalado.

97 Esse seminário foi realizado no Rio de Janeiro entre 23 e 25 de novembro de 1983 e organizado por Vanilda Paiva (1985). Nele estiveram assessores de diversos movimentos sociais no campo e pesquisadores, como Adbias Vilar de Carvalho, Ivo Poletto, Regina Novaes, Cândido Grzybowski, Pe. Ricardo Resende Figueira, entre outros.

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Advertia o antropólogo que era preciso atentar para o fato de que o movimento

dos trabalhadores rurais não acompanhava a “temporalidade” da história política

nacional, nem era similar àquela dos movimentos urbanos, haja vista que o pós-1968

seria marcado pelo “refluxo político” nas cidades, algo que só viria a ocorrer no campo

a partir de 1972 com as sucessivas intervenções e com a transferência de serviços

assistenciais, por parte do governo federal, aos sindicatos. Desse modo, segundo

Palmeira, a análise de uma conjuntura política, entendida como a disposição de

diferentes forças em confronto, deveria ser “redefinida” com a análise “em termos de

conjuntura para” (Ibidem,p. 46, grifos no original), sem, com isso, negar o “caráter

objetivo” de uma conjuntura política e reforçar, por outro lado, “avaliações

‘subjetivas’”, “mas porque, objetivamente, as mesmas forças não se dispõem da mesma

maneira para os grupos diferentemente posicionados no campo da luta de classes”

(Ibidem, p. 46). As condições não foram as mais favoráveis para o MSTR (Movimento

dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais), advertia Palmeira, mas foram importantes

para que a organização criasse mecanismos próprios de atuação política e organizasse os

trabalhadores em torno de disputas trabalhistas e agrárias, algo possível através de

atividades pedagógicas intensas que serviram para divulgação dos princípios do

sindicalismo – s exemplo do tema da reforma agrária, espécie de “cimento político” do

movimento. Dada a ausência de partidos de esquerda e o afastamento de setores mais

atuantes da Igreja, nesse último caso pelo menos até a metade dos anos 1970, o MSTR

desenvolveu uma “autonomia política” que, nas palavras do autor, “iria dar à CONTAG

crédito para promover a unificação (e até mesmo uma certa homogeneização) de vários

setores do movimento, dos mais atuantes aos mais conservadores, que a história passada

tendia a dividir” (Ibidem, p. 48)98.

98 No mesmo seminário, Ivo Poletto, então secretário nacional da CPT, expunha uma série de pontos

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No nível político, a que Palmeira se propôs analisar, a “continuidade” dos

sindicatos camponeses significava a “internalização da luta de classes no após 1964”

(Ibidem, p. 48), termo que expressava o deslocamento das grandes mobilizações do

período anterior à ditadura para os conflitos que se desenvolveram no interior do

processo produtivo. A continuidade das mobilizações, embora com diferenças, apontava

para a “diferenciação política” do campesinato e a rearticulação deste com o Estado.

Isso poderia ser visto na própria atuação do sindicato, cuja simples presença enfraquecia

a mediação do fazendeiro – como bem notara Palmeira em sua tese sobre a plantation –

apresentando-se como um “novo mediador” e utilizando as “leis”, antes acessíveis aos

trabalhadores somente através dos fazendeiros, nas disputas locais. Outras organizações

que não somente o sindicato – igrejas, partidos políticos, cooperativas – poderiam

desempenhar papel semelhante, uma vez que “a mobilização política do campesinato,

num certo sentido, cria o campesinato” (Ibidem, p. 49). Era o que se entrevia no

percurso do MSTR para forjar uma identidade política em torno da categoria de

“trabalhador rural”, servindo, nas palavras do antropólogo, para

desneutralizar simultaneamente o mais neutro (porque genérico) e menos neutro (pela referência ao trabalho) dos termos em curso no arsenal ideológico dominante (...) e inculcá-lo como um termo ‘naturalmente’ genérico para reunir todos os que vivem do trabalho na terra, posseiro ou pequeno proprietário, arrendatário ou parceiro, assalariado permanente ou assalariado temporário (Ibidem, p. 50).

sobre a luta camponesa que divergia daqueles de Moacir Palmeira. Assim, por exemplo, referia-se ao documento final do III Congresso dos Trabalhadores Rurais (1979), organizado pela CONTAG, enfatizando a postura de “estimular e apoiar iniciativas concretas de ocupação, conquista e defesa da posse”, contudo, o movimento sindical apenas se limitara à defesa da posse, em grande parte devido ao “distanciamento da classe por parte de muitos dirigentes sindicais”, apontando para o fato de que “as lutas estão levando à necessidade de renovar as direções sindicais e à necessidade de uma nova estrutura sindical” (Poletto, 1982: 140). Mais adiante na apresentação, Poletto fora incisivo, afirmando que “o peleguismo, a covardia e/ou a desorientação política estão minando o sindicalismo dos trabalhadores rurais e camponeses”, mas que, aos poucos, via crescer “um movimento sindicalista renovador, querendo transformar a estrutura sindical por meio de uma prática sindical combativa” (Ibidem, p. 147).

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Chamava atenção Palmeira que a unidade das lutas camponesas fazia parte de

uma construção política do próprio movimento dos trabalhadores, sendo a diversidade

dessas lutas constitutiva da unidade construída, e não sinônimo de fraqueza. Explicava o

autor que

a diversidade das lutas camponesas no Brasil hoje, tanto em termos de grupos – pequenos produtores, posseiros, assalariados – como de adversários – indústrias, grileiros, latifundiários e o próprio Estado -, e de objetos de disputa – preços mínimos, terra, salários etc. -, e a progressiva ampliação do horizonte de ação sindical (que hoje inclui problemas como a seca, e as enchentes) não pode esconder a coordenação efetiva dessas lutas e o seu significado (Ibidem, p. 51).

Ainda de acordo com o autor, tomar as mobilizações então em curso como

“novas” era fazer tabula rasa de um processo de longa duração que implicou a

rearticulação de posições sociais de diferentes atores e que se tornara fundamental para

o entendimento da questão agrária. Dentro dessa perspectiva de longa duração, o que

antes poderia ser tido como vitórias de pouca importância ou medidas paliativas, como

uma desapropriação, passava a ser visto, a partir de então, como passos fundamentais,

lutas “acumuláveis” dentro de um processo de luta por reconhecimento político por

parte do campesinato (Ibidem, p. 52). O mesmo valia para a reforma agrária que, nessa

perspectiva, poderia ter seu significado político-democrático ampliado, questionando o

discurso “tecnicista” hegemônico, preocupado estritamente com sua viabilidade

econômica.

5.2 Significado(s) da Reforma Agrária

Os escritos de Palmeira sobre a relação entre política e campesinato enfatizavam

que a própria mobilização desse grupo social estava atrelada à prática política, portanto,

a um longo processo de lutas, e não a qualquer “substancialismo” de classe. As

principais reivindicações dos camponeses no Brasil à época se aglutinavam em torno da

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demanda por reforma agrária, reivindicação antiga, mas que ganhara força e destaque

com a crescente nacionalização do movimento. Construída como bandeira de luta, a

reforma agrária tinha para alguns analistas a importância de unificar o movimento

camponês; para outros, no entanto, ao ganhar em abrangência, perdiam-se os

significados de demandas específicas que ficavam em segundo plano ou obscurecidas99.

As intervenções em debates públicos sobre a “reforma agrária” por integrantes do

Projeto Emprego, especificamente Moacir Palmeira e Afrânio Garcia Jr., é aqui

recuperada na tentativa de revelar como as experiências de pesquisa do grupo e os

trabalhos de assessoria mostravam um “campesinato em movimento”, que, inserido em

um longo processo de lutas, incorporou a bandeira da reforma agrária como modo de

reconhecimento político. A tese fundamental apresentada por Palmeira e Garcia Jr. era

de que a “reforma agrária”, naquela conjuntura, estruturava-se a partir de baixo, ou seja,

do próprio movimento camponês, e isso independente das avaliações de especialistas e

políticos sobre ela, e das imputações que eram feitas sobre sua viabilidade econômica.

99 Em texto de 1979, intitulado “Terra de negócio e terra de trabalho: contribuição para o estudo da questão agrária no Brasil” (1980), José de Souza Martins chamava a atenção para formas outras de ocupação da terra encontradas no “saber popular”, como a comunitária, efetuada pelos indígenas, a posse pelas famílias da fronteira, e a propriedade camponesa. Nele, o autor enfatizava a contraposição entre “terra de trabalho”, concepção baseada no saber popular e comunitário dos camponeses, e “terra de negócio”, termo que se refere ao avanço capitalista no campo e a comercialização da terra. Para Martins as formas alternativas de ocupação e trabalho na terra, caracterizadas por ele como “anticapitalistas”, estavam em contradição com a propriedade privada e a renda da terra nela implicada. Nesse sentido, medidas como a formação e incentivo de cooperativas teriam o efeito de amenizar, e apenas em algumas circunstâncias, os desníveis causados pela intermediação da comercialização de produtos dos pequenos produtos, ao canalizar parte dos lucros da venda para os próprios produtores. Contudo, segundo o autor, somente o reconhecimento de formas alternativas de propriedade da terra poderiam por em xeque o sistema que, de uma forma ou de outra, o camponês se achava inserido. Nas palavras do autor, “quando se fala em reforma agrária para solução desses problemas todos, é impossível esquecer que o capital já está embutido na propriedade fundiária capitalista. Do mesmo modo que é impossível ignorar ou marginalizar as formas populares de organização e as concepções populares de propriedade, com o seu direito implícito e semi-esboçado. Uma reforma agrária que não incorpore os projetos e formulações já revelados nas próprias lutas dos lavradores, que não combine as diferentes concepções e práticas alternativas de propriedade e que ao mesmo tempo não abra a possibilidade de crescimento desses regimes alternativos sem a tutela do capital, poderia se transformar num mero exercício de ficção” (Martins, 1980b, p. 66). Importante lembrar que esse mesmo texto, com partes dele reproduzidas integralmente, subsidiou o famoso documento “Igreja e Problemas da Terra”, o chamado “Documento de Itaici”, aprovado na XVIII Assembleia Geral da CNBB em 1980.

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Nos debates que se envolviam, os pesquisadores buscavam romper com a concepção

economicista de reforma agrária, entrevista nas posições – mesmo entre aqueles

favoráveis à sua implementação – de que tal medida só seria efetiva se adequada ao

desenvolvimento do “mercado interno”, segundo padrões modernos de produção. Para

Palmeira e Garcia Jr., o significado fundamental da reforma agrária, tal como colocada

pelos movimentos sociais, tinha a ver com o seu potencial político.

Em 1979, o CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) promoveu

seminário intitulado “Reforma Agrária: significado e viabilidade”, coordenado por

Abdias Vilar de Carvalho e Maria Conceição d´Incao. O seminário fora estruturado de

acordo com as seguintes questões: “dentro do atual estágio do desenvolvimento

capitalista no Brasil, com que características novas ressurge a proposta da reforma

agrária”, “quais as reivindicações presentes na luta pela reforma agrária?” (Carvalho &

D`Incao, 1982, p. 12). Dele participaram diversos especialistas sobre a questão agrária e

participantes de movimentos sociais ligados ao campesinato, como José Gomes da

Silva, José Graziano da Silva e Ivo Poletto, além de Moacir Palmeira e Afrânio Garcia

Jr.. Moacir Palmeira, o primeiro a falar, começara sugerindo que se contornassem os

termos em que o debate sobre reforma agrária se dava normalmente, ou seja, se o

avanço do capitalismo ainda comportava tal medida e, caso afirmativo, que tipo de

reforma agrária era a mais desejável. Propunha que se partisse, em suas palavras, “de

um fato. Esse fato é a existência objetiva de uma luta pela reforma agrária. Esse me

parece, no Brasil, atualmente, um fato insofismável e eu gostaria que as questões

partissem daí” (Palmeira, 1982, p.17). Esta constatação, segundo Palmeira, teria o efeito

de não se considerar a reforma agrária de forma genérica e abstrata, mas como “um

movimento real”, e, por isso, o tema apresentado pelo CEDEC, de “ressurgimento da

proposta de reforma agrária”, parecia-lhe inadequado (Ibidem, p. 17). Isso porque, para

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o pesquisador, mesmo durante o período de maior repressão, a luta pela reforma agrária,

em suas diversas formas organizativas, “em nenhum momento desapareceu” (Ibidem, p.

17).

Durante a ditadura, prosseguia o autor, a ideia de reforma agrária teve o duplo

efeito de reunir reivindicações as mais distintas de camponeses de várias regiões, a

exemplo dos pequenos proprietários do sul e dos assalariados da região úmida do

Nordeste, ao mesmo tempo que conferiu “sentido político” ao movimento, “fazendo

com que os conflitos pela posse da terra não desaparecessem como manifestações

isoladas de inconformismo e colocando o movimento, como um todo, na posição de

quem cobra do Governo uma decisão política” (Ibidem, p. 20).

A reconstituição histórica recente dos movimentos camponeses apontaria, mais

uma vez, de acordo com Palmeira, para a inadequação da proposta do CEDEC posto

que mais do que propriamente “ressurgimento” da reforma agrária, o que se tinha

naquele momento era um “quadro político diferente”, com um movimento sindical

fortalecido, com uma legislação agrária específica (o Estatuto da Terra), e um

reposicionamento da Igreja quanto à questão agrária. Para o autor, esse contexto

permitia que se escapasse do sentido geralmente implicado na ideia de reforma agrária,

que era “o peso muito grande aos seus aspectos e significado econômico”, sugerindo

aos debatedores que se discutisse “também o significado político da reforma agrária; o

significado político das lutas pela reforma agrária” (Ibidem, p. 20).

As intermináveis discussões sobre a viabilidade econômica da reforma agrária,

como em certa altura enveredara o debate no CEDEC, corria o risco, de acordo com

Palmeira, de se fazer tabula rasa de um longo processo de mobilizações coletivas,

questionando a real legitimidade desse tipo de demanda por parte dos trabalhadores

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rurais. Isso revelava, ainda segundo o autor, diferenças no tratamento entre

trabalhadores rurais e urbanos no tocante às manifestações:

veja bem, quando os operários na cidade lutam por melhores salários, ninguém ousa questionar a justeza dessa luta. No entanto, quando os camponeses falam em reforma agrária, sempre aparece algum espírito tecnocrático – peço desculpas aos que assim se consideram – para perguntar pela conveniência dessa luta. Meu Deus do céu! Suponho que os camponeses não têm que perguntar a ninguém se eles devem ou não lutar pela reforma agrária; isso é um fato (Ibidem, p. 67).

Para o antropólogo, a reforma agrária não era algo abstrato, nem um “projeto de

futuro”, para cuja realização dependeria o desenvolvimento de condições propícias, mas

se trataria de um “processo”, e como tal, “envolve lutas, conquistas, recuos e assim por

diante” (Ibidem, p. 68)100. O avanço das medidas de reforma agrária – ainda que muitas

vezes de forma paulatina, mas contumaz em seu afrontamento com a política agrária da

ditadura -, ampliaria a democracia, incorporando, na explicação de Palmeira, “os

excluídos da propriedade da terra”, aqueles que “não são reconhecidos, estão excluídos

da própria comunidade política” (Ibidem, p. 21). Para o antropólogo, a articulação pelo

movimento camponês em torno da reforma agrária colocava em xeque o próprio pacto

político estabelecido pós-1964, já que seu significado mais profundo e radical era

100 Talvez seja essa uma concepção fulcral de política que envolvia os embates da época. Era assim que, referindo-se às crescentes diferenças de estratégia para as lutas camponesas entre a CONTAG e a CPT, acirradas principalmente no final dos anos 1970, Moacir Palmeira declarou em depoimento que “a CPT negava a política, na época do famoso documento escrito pelo Ivo Poletto, que era um tipo de concepção que se chocava com a atividade da CONTAG” (Palmeira, Moacir apud Ricci, 1999, p. 97). Ivo Polleto era assessor da CPT e o documento citado por Palmeira se intitula o “III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais”, que apresentava as resoluções do Congresso da CONTAG realizado em 1979. Neste documento tornavam-se explícitas as críticas à estrutura hierárquica da CONTAG, muitas vezes desatrelada da realidade do povo, e a tendência à resolução dos conflitos por vias legais e administrativas, e não pela ação autônoma e organizada do campesinato. No seminário “Igreja e Questão Agrária”, essas mesmas questões foram discutidas e traduzidas por questões teóricas: segundo resumo dos debates feito por Vanilda Paiva, José de Souza Martins atribuía a importância do trabalho da Igreja à valorização do “caráter não-contratual” das lutas dos trabalhadores, como por exemplo a noção de “posse” e as implicações pela luta da terra nela implicadas. Sobre este ponto, Jorge Romano questionou Martins se esta valorização das relações não-contratuais “não contribuiria para reforçar relações tradicionais de dominação no campo e se a conquista da cidadania não estaria vinculada ao avanço das relações contratuais” (Paiva, 1985, p. 22). Martins respondera que, embora o sindicato enfraqueça essas relações tradicionais de dominação, ele não abarcaria todos os âmbitos da vida das pessoas e, em suas palavras, “o sindicato – ao contrário da Igreja – não tem um discurso sobre as relações de família ou vizinhança” (Ibidem, p. 23).

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transformação do camponês em “cidadão pleno”, e não a formação de uma “classe

média rural”, como advogavam “tecnocratas” defensores de uma visão estritamente

economicista da questão agrária (Ibidem, p. 21)101.

No mesmo seminário, Afrânio Garcia Jr. fez colocações muito próximas às de

Palmeira no tocante ao “ressurgimento” da bandeira da reforma agrária, chamando

atenção que ela sempre esteve presente nos Congressos Camponeses e, sobretudo, nas

lutas efetivas dos trabalhadores rurais. Conforme o pesquisador, a suposta ausência da

bandeira da reforma agrária nos anos 1970 estaria relacionada com a própria repressão

no campo, alterando as condições de emergência das reivindicações dos movimentos e

dando ensejo a equívocos de alguns analistas que julgavam certas lutas locais como não

tendo ligação com o processo mais amplo de reordenação da estrutura fundiária. Nas

palavras do antropólogo, “acho que a gente não deveria ver a reforma agrária apenas

como aspiração, ou se está ou não na cabeça dos camponeses, mas – como o Moacir

ressaltara no início – reforma agrária como uma expressão que está vinculada às lutas

concretas e essas lutas são fatos reais” (Garcia Jr., 1982, p. 40). Para Garcia Jr, portanto,

essas lutas foram “pensadas e travadas em termos não só do seu momento imediato,

como também de passos dentro da reforma agrária” (Ibidem, p. 40).

101 Moacir Palmeira fez referência ao seminário no CEDEC em seu memorial para professor titular, lembrando-o como ocasião em que “afirmei que a reforma agrária se colocava como questão independentemente das formulações que se fizessem em torno dela, e que o que estava em jogo era, antes de qualquer exigência econômica, a questão da cidadania (que, aliás, nos últimos anos, virou uma espécie de mote, esvaziada em muito do seu significado)” (Palmeira, 1994, p. 16). Em outro texto, intitulado “Modernização, Estado e questão agrária” (1989), Palmeira afirmava que o movimento dos trabalhadores rurais foi construindo um “projeto próprio de reforma agrária”, e que “projeto próprio não significa projeto elaborado, no isolamento, por um pequeno grupo de iluminados, nem, muito menos, um projeto que tenha brotado espontaneamente das bases. Trata-se de uma construção que se vai esboçando ao longo dos anos, em cima de exigências postas pelas lutas desenvolvidas em vários níveis, cristalizando-se em conclusões de encontros, seminários, tomadas de posição, declarações, etc., incorporando análises produzidas por intelectuais e avaliações dos que ocupam posições-chave no movimento (...)” (Palmeira, 1989, p. 103).

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Outro ponto que, segundo Garcia Jr., merecia ser discutido era como a

expropriação do trabalhador rural afetava o seu poder de barganha, isso porque “o fato

de estarem sendo expulsos da terra não significava que eles tenham encontrado um

outro espaço onde, efetivamente, sejam considerados pessoas plenamente integradas na

cidade” (Ibidem, p. 41). Deslocados na cidade e no campo, os trabalhadores rurais e

urbanos, prosseguia Garcia Jr., estariam excluídos de qualquer forma de participação e

se tornariam “objeto, muitas vezes, de despejo e, portanto, de manipulações, as mais

arbitrárias possíveis, do próprio Estado” (Ibidem, p. 41).

Outro ponto discutido pelo autor fora levantado em fala anterior por José Gomes

da Silva, o qual afirmava que os camponeses estavam interessados na terra, e não

propriamente no salário (Ibidem, p. 32). No entanto, para Garcia Jr., seria um equívoco

tomar a reivindicação pela terra como “uma reivindicação fundamental porque seria a

exclusão das outras, como se, por exemplo, salário; percentuais de arrendamento de

parceria; a resistência da expulsão da terra estivessem fora dessa reivindicação”

(Ibidem, p. 42). Como se pode perceber, Garcia Jr. retoma as teses de seus estudos e, de

modo geral, do grupo do Projeto Emprego, ao enfatizar a diversidade do campesinato e

as diferentes formas sociais que se articulam em suas relações interiores, mas agora, no

entanto, rebatendo para as manifestações políticas daquele grupo social. Dessa forma,

mais do que opor as reivindicações por melhores salários e aquelas pela posse da terra,

Garcia Jr. chamava a atenção para “essas duas coisas que, muito longe de se excluírem,

se articulam” (Ibidem, p. 43).

Em outro momento de discussão no seminário, a questão da diversidade do

campesinato ressurge quando, na fala de Abdias Vilar de Carvalho, pesquisador do

CEDEC, fora ressaltada a importância não só da propriedade familiar para a reforma

agrária, mas também das “formas coletivas de exploração da terra” (Ibidem, p. 52). Em

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relação a esse ponto do debate, Garcia Jr. chamava a atenção para uma série de

pesquisas que não permitiam simplificar as formas sociais camponesas quando se falava

em “bandeira unitária” da reforma agrária; contudo, em suas palavras, “ao mesmo

tempo, ao falar da unidade só dentro do campo, isso não exclui a diversidade,

absolutamente. É evidente que se isso é uma bandeira unitária, é porque a contradição

privilegiada foi contra o monopólio da terra, e, de jeito nenhum, esse fato elimina as

diferenças e diferenciações internas aos trabalhadores” (Ibidem, p. 62). Alertava Garcia

Jr. que o argumento da diversidade do campesinato era usado também para respaldar

posições “contra-reforma”, já que, “para mostrar que é impossível uma reforma agrária,

se fala que um país de 8 milhões de quilômetros apresenta situações diversas” (Ibidem,

p. 62). Daí a importância de uma bandeira política unitária que não esmaeça as

diferenças internas.

Para o autor, essa diversidade era o fator mesmo da persistente demanda por

reforma agrária, por conseguir aglutinar diferentes frações dos trabalhadores rurais e,

sobretudo, por não se constituir simplesmente em uma proposta teórica, mas “construída

em cima da luta” (Ibidem, p. 62). Isso porque o fundamental para Garcia Jr. era discutir

se “essa diversidade vai ser resolvida por um poder externo ao movimento dos

trabalhadores rurais, ao movimento popular, ou, ao contrário, o movimento popular vai

conseguir criar estruturas políticas para internalizar como enfrentar essas diversidades”

(Ibidem, p. 63). A colocação do autor em relação a esse ponto é elucidativa das questões

trazidas pelas pesquisas realizadas pelo Projeto Emprego ao debate:

como se algum movimento político, operário ou que seja, encontrasse uma uniformidade perfeita em todos os seus escalões e em todas as suas situações. Como se não fizesse parte das próprias relações sociais e do próprio movimento político uma diversidade de situações. Como se a própria criação de uma estrutura política eficaz não fosse exatamente dar conta dessa diversidade e construir uma unidade ao mesmo tempo. Então,

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esse fato de que há diversidade de situações, é lógico, não implica em que essas diversidades se constituam em problema fundamental comum, no qual lutam contra o inimigo comum, que também se unifica (Ibidem, p. 62-63).

E se a terra assumia centralidade nas reivindicações, “globalizando as outras”,

seria porque, na interpretação do autor, “a reforma agrária permite fazer um contraponto

às transformações sociais que vêm se operando e efetivamente não há nada de

inexorável nessas transformações sociais”, encampadas principalmente pela política

agrária concentradora de terra dos governos militares (Ibidem, p. 43). Além disso, a

reforma agrária, no sentido em que entende o autor, teria efeitos estruturais na sociedade

brasileira, haja vista que permitiria “quebrar o monopólio da terra, e quebrar o

monopólio da terra significa também quebrar o conjunto de questões que estão em jogo

nesse monopólio”. Isso poderia implicar o controle efetivo do processo produtivo pelo

trabalhador rural e sua autonomia política, contornando as mediações do poder local,

abrindo-se a ele, enfim, a possibilidade de se pleitear melhorias públicas básicas, como

escola e posto de saúde (Ibidem, p. 43).

Logo, a reforma agrária seria o elemento central de um conjunto de demandas

que propiciariam a democratização da sociedade brasileira, o que, nas palavras de

Garcia Jr., “quer dizer, a reforma agrária, muito ao contrário de ter um prazo líquido e

certo, é um processo em que coloca sempre em jogo a questão do Poder” (Ibidem, p.

44). Situação que ficava ainda mais patente naquele momento de gradual abertura do

regime militar, em que a reforma agrária poderia ter o duplo efeito de aglutinar os

movimentos sociais, rurais e urbanos, e abalar a estrutura política de sustentação da

política de modernização então em voga. E, como salientava o antropólogo, “por isso

mesmo a reforma agrária não é, de jeito nenhum, uma medida que se dê por si mesma”

(Ibidem, p. 44). Atrelada às relações de desigualdade, a demanda por reforma agrária

extrapolaria estritamente a demanda por terra e as questões técnicas relacionadas à sua

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implementação, estando envolvida, enfim, com a aquisição da “cidadania” e ampliação

da participação dos trabalhadores na vida política e social.

Em outra ocasião, questões próximas às do CEDEC foram discutidas em

seminário promovido pela FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e

Educacional) em fevereiro de 1980, que contou com a presença de participantes do

Projeto Emprego, como Moacir Palmeira, Afrânio Garcia Jr., Leilah Landim, Marie

France Garcia e Beatriz Heredia, além de especialistas sobre a questão agrária, como

Ricardo Abromavay, Leonilde Medeiros, Maria Nazareth Wanderley, José Eli da Veiga,

entre outros. Em seu editorial, a Revista Proposta, ligada à FASE e veículo de

publicação do debate, expunha que o objetivo era “o de promover uma discussão sobre

a problemática brasileira que não caísse nas artimanhas das abordagens acadêmicas mas

que evitasse também o confronto estéril de ‘modelos’ preconcebidos de Reforma

Agrária” (Revista Proposta, 1980, s/p). Um dos pontos mais controversos do debate

referia-se ao “Estatuto da Terra” (1964), o qual, para alguns dos participantes, era uma

ordenação jurídica de cunho conservador que já não mais correspondia aos avanços das

lutas no campo. Moacir Palmeira divergia dessa visão, ressaltando que o Estatuto

correspondia a uma “solução de compromisso”, tentando conciliar reivindicações dos

trabalhadores rurais, postas desde antes do golpe de 1964, e os interesses dos grandes

proprietários. Por conciliar interesses divergentes, afirmava Palmeira, “a gente não pode

cair num maniqueísmo de achar que a lei é simplesmente a expressão de dominação da

classe dominante”, e, por isso, a aplicação do Estatuto, com dispositivos importantes

para a concretização da reforma agrária, abria-se à disputa política, já que "nas leis cria-

se um certo tipo de compromisso, há sempre uma maneira de impor a vontade de uma

classe, mas tornando aceitável a vontade dessa classe” (Palmeira, 1980, p. 16). A lei e

sua aplicação estavam sob disputa dado o crescente vigor das mobilizações camponesas

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de então, como afirmava Afrânio Garcia Jr. em sua intervenção, mas, ao contrário dos

anos 1950 e 1960, a questão agrária surgia no debate público não como fator que

desencadearia o desenvolvimento do mercado interno, mas como demanda própria dos

trabalhadores rurais (Garcia Jr., 1980, p. 30).

Mas o ponto candente do debate surgiu quando foram feitas colocações de que

movimento camponês havia incorporado uma proposta de reforma agrária defensiva,

surgida no seio das “classes dominantes”, haja vista que a simples repartição da terra

não abalaria a estrutura agrária como um todo. Em resposta, Palmeira sugeria “inverter”

o ponto de vista a partir do qual a questão era formulada, propondo refletir se, de fato, a

“classe dominante” seria capaz de “absorver” a implantação de uma política de reforma

agrária. Palmeira retomava a análise sobre as mobilizações políticas camponesas

entendidas enquanto processo, afirmando que considerações sobre a proposta de

reforma agrária dos movimentos camponeses não poderiam desconsiderar “que esse

campesinato passou por uma experiência histórica determinada, durante todo o período

de recesso político e descenso que tivemos” (Palmeira, 1980, p. 36). Para clarear o

ponto, Palmeira recorreu ao exemplo de áreas atingidas por desapropriação, ressaltando

que o que ocorria nesses casos era “uma coisa mais ampla”, visto que “se você

desapropria uma fazenda hoje, no dia seguinte o pessoal de outra fazenda que está

vivendo esse mesmo tipo de problema vê que há uma alternativa para ele, esse negócio

tem o seu efeito multiplicador” (Ibidem, p. 37). Justamente por esse “efeito

multiplicador”, a demanda por reforma agrária não poderia ser pensada “na terra em si”,

já que ela estava implicada, nas palavras do pesquisador, em “uma série de relações

sociais” (Ibidem, p. 38). Dessa forma, Palmeira retomava as suas formulações sobre a

mobilização política do campesinato ao afirmar que era o próprio envolvimento na

política a variável forte da participação, e não a vinculação com dada estrutura

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econômica ou um suposto tradicionalismo de classe; e daí o sentido subjacente à sua

afirmação de que “esse pessoal está em movimento, está se defendendo, uma vez em

movimento ele pode avançar politicamente” (Ibidem, p. 38).

Nesta e nas outras intervenções públicas que reconstituímos ou mencionamos, é

notória a simbiose entre os conhecimentos adquiridos com a prática extracadêmica –

sobretudo de assessoria aos movimentos sociais – e os problemas teóricos e empíricos

de pesquisa. Embora seja inegável a circulação de temas, ideias e propostas entre as

duas práticas, a acadêmica e a extra-acadêmica, como momentos distintos, porém

interligados, algo afirmado pelos próprios pesquisadores em seus depoimentos, essa

postura não deixa de revelar que a própria atuação política pode ter também

rendimentos analíticos importantes. Isso porque o envolvimento em trabalhos extra-

acadêmicos de alguns dos integrantes do Projeto Emprego é revelador do círculo de

retroalimentação, típico das ciências sociais, entre questões teóricas, formuladas em

linguagem científica especializada, e as categorias surgidas no bojo da vida social, que

definem e redefinem diversos significados de ações individuais e coletivas (Giddens,

2003). No caso em análise, isso pode ser atestado no próprio modo pelo qual a

diversidade de um “campesinato em movimento”, incorporado como questão empírica e

de discussão teórica, revela-se ela mesma heurística para a compreensão da miríade de

movimentos que o período de abertura do regime ditatorial e a democratização viu

surgir, para além, ou justamente por causa, das disputas e das organizações políticas em

que esses pesquisadores se envolveram.

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Considerações Finais

“Foi de incerta feita – o evento” (Rosa, João Guimarães. Famigerado)

A interpretação de um “projeto” que já se tornou “ato” não é uma tarefa fácil

para o analista, como já nos advertia Alfred Schutz102. É preciso reconstituir, ainda que

analiticamente, “motivações”, “intenções” e “interesses” que estão emaranhados nas

redes de ações individuais e coletivas. A própria noção de “estoque de conhecimento”,

base sobre a qual se desenvolve a ação de “projetar” e a partir da qual o pesquisador

delimita o pano de fundo a que os agentes recorrem para dotar de coerência e

significado suas ações, é um instrumento analítico variável de acordo com a situação

sob enfoque. Todos esses conceitos, no entanto, só ganham inteligibilidade se

integrados numa formulação processual da ação de “projetar”, já que contingências

diversas atuam em diversos níveis, habilitando ou constrangendo, parcial ou

plenamente, a realização do “projeto”. A partir daí, não estamos mais somente no nível

cognitivo do indivíduo ou grupo que realiza o projeto, mas nos referimos também às

condições sociais que possibilita e define sua “eficácia”.

Nosso esforço foi trazer para o primeiro plano essas contingências e os sentidos

– intelectuais e políticos - assumidos pelo Projeto “Emprego” no contexto em que se

desenvolvera. Florestan Fernandes e Roger Bastide (1979, p. 135 et seq.) já haviam

chamado a atenção para a importância de, num projeto, delimitar-se os interesses

primeiros da pesquisa, cognitivos e teóricos por assim dizer, e os fatores intervenientes

de toda ordem que podem afetá-los. A diferenciação proposta pelos autores entre “plano

102 Em artigo recente que retoma a experiência de pesquisa do grupo do Projeto Emprego, Lygia Sigaud afirmava que “the collective dimension of our venture and the accumulation of capital were not the product of a carefully planned strategy:suggesting so would imply attributing our actions with a meaning we failed to give them at the time. At the outset everything was uncertain,including where we would end up” (Sigaud, 2012, p. 92).

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de estudo” e “plano de pesquisa” visava dar maior clareza a essas questões. O “plano de

estudo” estaria situado em nível mais abstrato, analisando-se critica e teoricamente os

conceitos e definindo “hipóteses diretrizes”; enquanto o “plano de pesquisa” lidaria com

questões mais pragmáticas, possibilidades reais de organização e realização do projeto,

operacionalização de conceitos em variáveis e técnicas de pesquisa. Sedi Hirano

retomou as diferenças entre “plano de estudo” e “plano de pesquisa” e as explorou mais

sistematicamente, afirmando que dependendo da ênfase posta em cada um daqueles

níveis, a pesquisa teria um perfil mais empírico ou teórico (Hirano, 1979, p. 90).

Contudo, seria necessário, segundo Hirano, que o pesquisador explicitasse as “variáveis

‘constrangedoras’ e ‘externas’ ao labor científico”, que poderiam ser de várias ordens,

orçamentária, de tempo e de que denomina “temas ‘congelados’”, ou seja,

“recomendação quanto ao tema de investigação pela instituição financiadora” (Ibidem,

p. 93). Gabriel Cohn (1979, p. IX) também ressaltou que as “contingências” tem papel

importante na concepção de um projeto e no seu andamento e, por isso, devem ser

entendidas “como problemas, ou seja, como algo que demanda uma reflexão séria e um

treinamento específico da inteligência para conduzir a bons resultados”. Retomando os

termos de Fernandes e Bastide (1979), poder-se-ia dizer que Cohn propunha uma

perspectiva não disjuntiva entre “plano de pesquisa” e “plano de estudo” para o

entendimento do andamento do projeto, afirmando que as contingências não estariam

somente no plano prático da pesquisa, mas, por vezes, se imiscuiriam, em maior ou

menor grau e de diversas formas, em seu objetivo teórico-cognitivo, tendo “o efeito de

disciplinar as reflexões mais gerais e amarrando o seu alcance e suas pretensões àquilo

que é diretamente relevante para o próprio exercício da pesquisa” (Ibidem, p. IX).

Outro problema que buscamos enfrentar foi a da concepção e realização de um

projeto de pesquisa coletivo, algo que exige a construção de certas bases comuns na

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definição de problemáticas, elaboração de hipóteses e seleção metodológica. Para

Gilberto Velho (1981, p. 33), um “projeto social” – poderíamos dizer coletivo -,

constituir-se-ia na “formação de grupos de indivíduos (...) que englobe, sintetize, ou

incorpore os diferentes projetos individuais”. Nesse caso, o projeto social não é assim

designado somente por sua referência ao “outro”, base de sua dimensão “comunicativa”,

o que seria, segundo Velho, inerente a qualquer projeto (individual inclusive). A

especificidade do “projeto social” seria a de que ele se assentaria na “percepção e

vivência de interesses comuns que pode ser os mais variados” (Ibidem, p. 33, grifos no

original). Recorrendo ao longo deste trabalho aos materiais empíricos de reuniões

internas e discussões externas do grupo de pesquisadores – sobretudo com as agências

financiadoras -, buscamos justamente mostrar a definição coletiva desses “interesses

comuns”, sem os quais não só as pesquisas individuais não seriam possíveis, mas o

próprio Projeto não se realizaria como tal. Como já alertavam Florestan Fernandes e

Roger Bastide (1979, p. 136) a construção de “interesses comuns”, como nos fala

Velho, seria uma dimensão fundamental de projetos coletivos em ciências sociais, que,

“como outras ciências, não dispõe de técnicas capazes de garantir a uniformidade de

ajustamento ao objeto” e, por conta disso, “tornar explícitos os princípios adotados na

preparação de um projeto de estudo parece ser, assim, a primeira condição para o

entendimento objetivo entre os pesquisadores que colaboram na mesma investigação”.

Mas, relacionado a isso, o projeto coletivo de pesquisa permite também a

exploração de “problemas” e investigação de “temas” que muitas vezes uma pesquisa

individual não abarcaria. Não se trata somente de uma questão quantitativa, mas

qualitativa: no Projeto Emprego esse ponto ganha sua melhor formulação na definição

das “situações-tipo”. Espécie de “meio-termo” entre os interesses dos pesquisadores e

das agências financiadoras, essa solução metodológica permitiu a delimitação empírica

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e teórica do estudo de grupos e mecanismos sociais que elucidavam as transformações

da plantation tradicional. Se o sistema de plantation, tal como analisado na tese de

Moacir Palmeira, sofrera modificações decisivas, isso não significava que mecanismos

tradicionais de dominação tivessem deixado de existir e novas formas dominação não

estivessem em vigência, conformando justamente um “sistema”, ou seja, um conjunto

de posições e oposições sociais que o próprio Projeto buscava compreender103. Isso se

mostra no modo pelo qual a incorporação no Projeto de novas frentes de pesquisa, como

a “fronteira”, foi realizada tomando as diversas relações estabelecidas com as áreas da

plantation nordestina (movimentação de famílias, trabalhadores, migrantes). A

compreensão desse “sistema social” mais amplo foi o que permitiu a junção de

preocupações variadas de pesquisa e a exposição final de seus relatórios.

O presente trabalho buscou justamente recompor esses movimentos constituintes

na elaboração do Projeto “Emprego”, articulando contingências de todas ordens e as

tentativas de controlá-las. Ao mesmo tempo, recorremos às negociações e discussões,

internas e externas, que conferiram seu caráter coletivo. No primeiro capítulo,

retomamos as discussões iniciadas no PPGAS em torno do conceito de campesinato,

mostrando como elas animaram a criação do Programa. A bibliografia sobre o assunto

foi fundamental inclusive para pesquisa entre povos indígenas, como propunha seu

principal formulador, Roberto Cardoso de Oliveira. A saída deste da coordenação do

Programa agravou um crise que começou com o fim do financiamento da Fundação

FORD. A principal estratégia encontrada pelos pesquisadores foi, portanto, buscar

103 Em artigo posterior ao Projeto Emprego, Palmeira (1989, p. 93) assim explicitou a importância da pesquisa coletiva na elucidação dessas mudanças no sistema de plantation: “note-se que não se trata apenas do desdobramento de papéis antes desempenhados pelos mesmos personagens sociais, nem tão somente da aproximação (ou da colocação em relação) de posições sociais antes, por assim dizer, vinculadas a universos sociais diferentes, mas também do aparecimento de posições e personagens novos, capazes de gerar interesses novos e de produzir grupos que assumam como seus esses interesses mas que só existem porque diminuíram as distâncias entre esses diferentes universos e porque se estruturou um novo sistema de posições”.

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novos financiamentos a partir de projetos de pesquisas, sobretudo, coletivos. Um núcleo

de pesquisadores – Moacir Palmeira, Otávio Velho, Lygia Sigaud, Afrânio Garcia Jr. e

José Sergio Leite Lopes – redigiram o Projeto Emprego, a partir do qual entraram em

contato com instituições internacionais para a obtenção de recursos financeiros. As

negociações e discussões com diversas agências financiadoras, capitaneadas por Garcia

Jr. e Leite Lopes, funcionários da FINEP, dariam enfim vigência ao Projeto em 1975,

que contaria ainda com o apoio do IBGE e IPEA. Reconstituindo a dimensão processual

da formulação do Projeto, vimos que suas soluções metodológicas foram em grande

medida fruto dessas negociações, espécie de “meio-termo” a que chegaram

pesquisadores e instituições financiadoras e que foram expressas nas definições das

“situações-tipo”.

Mas para se chegar a um bom termo dos diferentes interesses, o grupo de

pesquisadores do Projeto Emprego já haviam acumulado experiência de campo no

Nordeste, região de suma importância para as agências financiadoras, e discussões

teóricas sobre campesinato e questão agrária. No segundo capítulo, nosso intento foi de

mostrar como esse acúmulo de experiências de pesquisas conformou uma espécie de

“estoque de conhecimento” decisivo nas principais formulações do texto do Projeto

Emprego. A começar pela própria ênfase posta pelo Projeto na pesquisa de campo e na

etnografia, apresentadas às agência financiadoras como uma das principais

contribuições do grupo ao debate sobre distribuição de renda e desigualdade.

Característica essa que não se deve somente ao fato do Projeto ser formado por

antropólogos do PPGAS – o que é fundamental -, mas também à trajetória acadêmica de

seus principais formuladores e de seu coordenador, Moacir Palmeira. Por isso,

recompomos o contexto institucional da Escola Livre de Sociologia e Política e as

mudanças ali vividas da passagem de um ensino “diletante” para outro mais afinado

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com a prática de pesquisa empírica. Foi a partir dessa experiência, e já na França, que

Moacir Palmeira conduziu uma revisão teórica do debate sobre a questão agrária na

esquerda brasileira realizada em sua tese de doutoramento, mostrando como a

plantation poderia ser pensada como um “modo de produção específico” conformando

um sistema de posições e oposições sociais que não seria redutível às proposições

econômica e jurídicas sustentadas pelas teses feudalistas e capitalistas sobre as relações

sociais na agricultura. Palmeira avançou na proposição fundamental segundo a qual a

mediação do fazendeiro tornava o campesinato ligado, ainda que indiretamente, ao

mercado e submetido a formas de dominação pessoal, algo contido sinteticamente nas

relações que envolviam a “morada”. Distinto de seu congênere europeu, e distante de

ser um “proletário disfarçado”, o camponês da plantation viveria as transformações que

atingiriam esse sistema menos como “expropriação” dos meios de produção – algo de

que já era destituído – do que, na formulação de Palmeira, “expropriação das relações

sociais” que envolviam a morada. Esse era o fulcro da pesquisa de Lygia Sigaud sobre a

ideologia camponesa na região, na qual a remissão ao “passado”, precisamente às

relações expressas na “morada”, chocava-se com o “presente”, seja para denunciar as

formas de dominação vigentes, seja ainda para idealizar a vida no interior das grandes

fazendas. Não à toa, a plantation, com suas formas de imobilização da força de trabalho,

tornou-se o ponto central em torno do qual foram definidas as “situações-tipo” a serem

investigadas pelo Projeto Emprego.

No capítulo três, a construção das “situações-tipo” foi trazida à primeiro plano,

buscando ressaltar tanto a metodologia proposta quanto as discussões que conformaram

o caráter coletivo do Projeto Emprego. As discussões em torno da delimitação empírica

e da “representatividade” dos casos a serem estudados em relação a problemas mais

amplos de generalização e interpretação, serviram para estabelecer parâmetros mínimos

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de trabalho coletivo, além de traçar estratégias que respondessem aos interesses das

agências financiadoras. A abordagem etnográfica do Projeto se apresentava como

alternativa às generalizações estatísticas, tão prezadas por aquelas agências, sob a

justificativa de que medições desse tipo só teriam validade se referidas a certos recortes

analíticos especificados no trabalho de campo. Nos estudos camponeses, essas variáveis

muitas vezes se resumiam à “comunidade”, conceito que a partir dos denominados

“estudos de comunidade”, ganharam ampla repercussão e também críticas. Assim,

vimos que para o grupo de antropólogos do Projeto Emprego a “comunidade

camponesa” não deveria ser tomada como uma realidade bem delimitada de relações

sociais em uma área geográfica circunscrita, mas como um feixe de relações sociais,

que interligavam diferentes indivíduos e grupos entre si, bem como a conjugação de

formas de trabalho distintas segundo as estratégias de reprodução familiares. A seleção

das unidades sociais relevantes à análise partiria, portanto, do estudo etnográfico das

representações e práticas camponesas, e não seriam dadas de antemão pela referência

geográfica muitas vezes pressuposta no conceito de “comunidade”.

Mas se o “estoque de conhecimento” de pesquisas anteriores, bem como as

discussões internas que visavam dotar de caráter coletivo as pesquisas, foram

fundamentais para a formulação do Projeto Emprego e seu encaminhamento junto às

instituições financiadoras, não significa que seus resultados já pudessem ser entrevistos

a priori. No capítulo quatro, propusemos a avaliação dos “relatórios finais” do Projeto a

partir de dois eixos fundamentais: o primeiro é o diálogo estabelecido com as

instituições financiadoras a partir da revisão de conceitos econômicos, principalmente

os de “emprego” e “migração”, ressaltando-se a especificidade dos casos analisados e a

necessidade de se formular categorias e conceitos condizentes com eles; o segundo, diz

respeito ao sentido mais geral contido nos relatórios finais expresso no que chamamos

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de um “campesinato em movimento”, redes de relações que transpassavam posições e

espaços sociais, conformando uma perspectiva relacional desse ator. Perspectiva essa

que questionaria tanto as visões mais simplistas de uma proletarização do campesinato,

quanto aquelas que viam nas especificidades de alguma de suas categorias sociais, algo

como a prefiguração do curso de desenvolvimento das relações no campo – o que,

naquele contexto, era bem visível nas discussões sobre a “fronteira” e o “posseiro”.

Seria justamente essa noção de um “campesinato em movimento” que teria

ressonâncias nos trabalhos dos pesquisadores sobre a participação política dos

camponeses e nas discussões públicas que participaram. No capítulo cinco, vimos que a

ideia de um campesinato dinâmico, e não estático, colocava no centro das discussões a

prática política, entendida como um longo processo de aprendizagem e criação de

mediadores entre grupos camponeses e as diversas instituições – igreja, sindicato,

Estado, por exemplo. Essa centralidade da política teria ainda o efeito de questionar

visões que atrelavam a diferenciação econômica do campesinato com seu engajamento,

tomando as camadas mais “altas” desse grupo social como as mais combativas e as mais

“pobres” incapazes de quebrar o invólucro do “tradicionalismo” de que se revestiam.

Se, para os pesquisadores do Projeto, a dimensão política seria a variável forte, a

reforma agrária – sua viabilidade e atualidade – não deveria ser medida somente a partir

de critérios econômicos, mas pelo que fazia dela uma bandeira de luta. A terra não seria

somente um fim em si mesmo, mas uma reivindicação em torno da qual se juntariam

outras e criariam um efeito multiplicador entre os grupos camponeses, conferindo um

alargamento na própria noção de cidadania, naquele momento muito referenciada pelas

lutas urbanas. Se todo projeto traz consigo uma dimensão “pública”, “comunicativa”

por assim dizer (Velho, 1981, p. 27), tendo que dotar de sentido suas formulações, algo

que extrapolaria inclusive o próprio controle dos indivíduos, a noção de um

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“campesinato em movimento” encontraria suas ressonâncias, alcance e limites, no

próprio debate de que fez parte e do qual os pesquisadores do Projeto Emprego

participaram ativamente – seja em intervenções públicas, seja como assessores de

movimentos camponeses.

***

Colocamos como um dos nossos objetivos nesse trabalho reconstituir os

possíveis “sentidos” que um “projeto” pode encerrar em seu contexto histórico

específico. Contudo, pensamos que a etapa de contextualização histórica é fundamental

para a compreensão a mais exata possível desses sentidos, embora não precise ser um

um fim em si mesmo, já que elas podem guardar proposições heurísticas fundamentais

que ainda interpelam as ciências sociais contemporâneas (Botelho, 2009b e 2014; Brasil

Jr, 2013; Maia, 2008 e 2011), particularmente no que toca aos temas do campesinato e

da questão agrária. Grossi Porto & Siqueira (1997) propuseram um “percurso teórico”

de conceitos e categorias relacionadas à “pequena produção”, de modo a elucidar as

conexões entre contextos sociais e suas acepções específicas. Assim, segundo as

autoras, as diferentes perspectivas sobre a “pequena produção” no Brasil exprimiriam

não só as “transformações ocorridas na sociedade e de construção da explicação dessas

transformações”, mas também “relações de força entre correntes de pensamento (...)

pela busca do estabelecimento e da manutenção de espaços teóricos hegemônicos”

(Porto & Siqueira, 1997, p. 77). Nos anos 1950, de acordo com as autoras, a questão

agrária se tornou a um só tempo objeto teórico e centro de conturbadas disputas

políticas. Nesse contexto, o conceito de “campesinato” se apresentava como síntese de

interpretações diversas sobre a “revolução brasileira” e das possíveis mudanças que a

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luta contra as desigualdades no campo poderiam acarretar. Isso era revelado no fato do

conceito de “campesinato”, e as diversas categorias sociais nele incluídas – parceiros,

foreiros, arrendatários, moradores, sitiantes, ocupantes - não poder ser pensado sem seu

oposto, o “latifúndio”. Além disso, as lutas no campo – como as Ligas Camponesas –

impulsionavam reflexões mais detidas do conceito e sua adequação ao contexto social

brasileiro, muito distinto daquele cunhado por sua origem europeia.

Nos anos 1970, ainda segundo as autoras, a intervenção mais direta do Estado no

campo, inaugurando o que se convencionou chamar de “modernização conservadora”,

teria “despolitizado” o conceito de campesinato cedendo lugar ao de “pequena

produção”. Este ganharia maior operacionalidade através da discussão sobre as formas

de subordinação da produção camponesa ao capital, sua funcionalidade para a

acumulação capitalista, e as diversas estratégias de reprodução familiar e de resistência

à expropriação. Porto & Siqueira notaram, todavia, que o conceito de “pequena

produção” estaria mais associado a questões empíricas, enquanto o de “campesinato”

das décadas anteriores, em que pese sua carga ideológica, “guardava, em certo sentido,

sua função teórica referido às questões mais abrangentes do tipo contexto histórico do

grupo estudado” (Ibidem, p. 80). Esse seria, sobretudo, um momento de “trânsito

conceitual” do conceito de “campesinato” para o de “pequena produção”, tão bem

demonstrado, segundo as autoras, pelas pesquisas encaminhadas no PPGAS/MN desde

os anos 1960 e em seu esforço de depurar o conceito de “campesinato” através da

etnografia (Ibidem, p. 80).

Na década de 1980, de acordo com as autoras, o processo de perda da carga

teórica que já se iniciara com o conceito de “pequena produção” se tornou agudo. Com

a redemocratização do país e com a entrada da questão agrária na ordem do dia com as

discussões sobre PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária), multiplicaram-se os

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movimentos camponeses e identidades sociais que fortaleceram a demanda por terra.

Correlato a esse processo, nas palavras das autoras, aumentaram-se os estudos sobre

diversas populações rurais – sem-terra, barrageiros, assentados,...-, “estudos que do

ponto de vista do estatuto metodológico, caracterizam-se como estudos de caso, mas

nem sempre se constroem como referenciais empíricos para procedimentos direcionados

a possíveis generalizações” (Ibidem, p. 84). Sem operar a “ruptura” entre problema

social e problema sociológico essas pesquisas fariam com que o “conceito” de

campesinato perdesse sua carga teórica e se ramificasse em “categorias descritivas”,

como se tivessem um “potencial explicativo em si mesmas” (Ibidem, p. 87). Por outro

lado, no entanto, ressaltaram as autoras, haveria um esforço crescente de diálogo dessas

pesquisas com a de outras áreas, surgindo temáticas que perpassam tanto o “rural”

quanto o “urbano”, como seria possível entrever nas discussões sobre movimentos

sociais e violência, e na utilização de conceitos, entre outros, de identidade social,

cidadania e de gênero (Ibidem, p. 84). Diante desse novo cenário, as autoras não

propunham um simples regresso ao conceito de campesinato de décadas anteriores, mas

que se aprofundem as discussões sobre temas transversais ao “rural” e ao “urbano”, de

modo que aquelas categorias de forte carga empírica se submetam “à elaboração

teórica” (Ibidem, p. 87).

Em seu “Narrativas agrárias e a morte do campesinato” (2007), Mauro William

Barbosa de Almeida propõe um percurso semelhante ao de Porto & Siqueira, mas

chamou atenção para outros aspectos teórico-metodológicos envolvidos na miríade de

estudos sobre o campesinato na atualidade. O artigo se inicia com a separação de

estudos clássicos sobre campesinato segundo diversas “narrativas agrárias”, entre

outras, “culturas agrárias”, “sociedades parciais camponesas e ideologias camponesas”,

“campesinato como sistema econômico e como classe”, para formular se, de fato, o

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conceito de campesinato encontraria validade heurística ainda hoje. Para Almeida

(2007, p. 167), sob o conceito de “campesinato” se agruparia uma multiplicidade de

situações locais e empíricas que ganhariam inteligibilidade no interior de uma grande

“narrativa universal”. Esta definiria características gerais, como a tecnologia simples,

relações comunitárias e de parentesco, participação em circuitos econômicos regidos

pela dávida, que demarcariam o que se entenderia por campesinato. Restava, segundo

Almeida, indagar: essa “narrativa universal” perdera, de fato, sua conexão com a

realidade empírica, como enunciam alguns analistas com a “morte do campesinato”?

Segundo o antropólogo, seria preciso discernir “duas mortes”, a do conceito

propriamente dito e a das pessoas e situações que eram pensadas sob sua alçada. Para

Almeida, a resposta passa por um problema que toca as ciências sociais como um todo,

que teria a ver com o desgaste ou a perda do “poder de convicção” das grandes

narrativas (Ibidem, p. 168). Almeida notava, assim como Porto & Siqueira, que, ao

mesmo tempo que se divulgava o “fim do campesinato”, viu-se ressurgir discursos e

práticas de diversos “povos” e “comunidades” alicerçados em identidades múltiplas,

que aprofundariam as demandas por direitos e a democratização rural (Ibidem, p. 170).

Essa realidade parecia reforçar o argumento de que “‘a modernidade matou o

campesinato’”, dissolvido que estava em diversas partes. Todavia, segundo o autor, “se

abstraímos a categoria totalizante do campesinato, vemos que os traços culturais,

econômicos e ecológicos que eram associados a ela, embora desconjuntados entre si e

destacados na grande narrativa teórica da qual faziam parte, continuam na ordem do

dia” (Ibidem, p. 170). Isso porque subjacente à ideia do “fim do campesinato” residira

uma imagem desse ator como grupo social autocontido, encerrado em um território e

isolado do contato com o exterior. Para Almeida, seria o fim dessa imagem, algo como

um “fato social total”, que estaria no centro das discussões contemporâneas, e que

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revelaria, todavia, “uma pista para a vitalidade dos temas que antes estavam no domínio

do discurso do campesinato e do rural” (Ibidem, p. 172).

Com o enfraquecimento dos universais sociológicos, observar-se-ia, de acordo

com Almeida, a recuperação da abordagem culturalista do campesinato, com um “novo

nominalismo”, identificando diferentes coletividades, “acompanhado por um

igualmente vicejante voluntarismo histórico, que se expressa em inúmeros projetos de

refazer a história localmente à sombra da globalização” (Ibidem, p. 174). Em colocação

próxima a de Porto & Siqueira, Almeida afirma que a ideia de “comunidade local”

surgida nesse contexto, seria mais propriamente uma categoria política do que um

conceito (Ibidem, p. 177). Por isso, segundo o antropólogo, uma das apostas

contemporâneas para uma discussão teórica e empírica mais consistente em torno do

conceito de campesinato seria a de levar a sério a “variabilidade na escala e nos temas”,

algo que surgiu na própria irrupção de processos e situações antes contidas em diversas

narrativas agrárias (Ibidem, p. 179). E, ao contrário das indicações do argumento do

“fim do campesinato”, essa aposta poderia ter repercussões políticas, já que não se

negaria a “reforma agrária”, tomando seu sentido plural, com suas novas formas de luta,

como sinal de sua vitalidade. Por fim, alertava o antropólogo que reafirmar a vigência

de uma “reforma agrária” nesses moldes não “significa uma perigosa negação do

universalismo das lutas sociais unificadas sob a égide da modernidade”, mas “a

recuperação da diversidade social e política muitas vezes reprimida no passado”

(Ibidem, p. 180).

Pensamos que é nesse contexto de discussão renovada sobre o conceito de

campesinato que os estudos no âmbito do Projeto Emprego podem trazer contribuições

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heurísticas104. Ao dilema apontado pelos comentários de Porto & Siqueira e Almeida

em torno do conceito de campesinato - a relação entre categorias empíricas

(nominalismo) e conceitos balizados teoricamente, diversidade de categorias sociais e o

alcance do conceito de campesinato, a discussão sobre o local e o global -, a ideia de um

“campesinato em movimento” pode trazer profícuas sugestões, a começar pelo próprio

esforço de desreificação do conceito, que, como vimos, não levou ao seu esgotamento

analítico, mas à afirmação de uma perspectiva relacional que enfocava as redes tecidas

por indivíduos, famílias e grupos através de espaços sociais diversos.

A mesma concepção teórica de “campesinato em movimento”, que conferiu

sentido ao conjunto das pesquisas no âmbito do Projeto Emprego, serviria de esteio à

análise da atividade política desse ator na conjuntura de repressão e, posteriormente, de

paulatina abertura dos governos ditatoriais. A centralidade da dimensão política nessas

análises – em vez de única e exclusivamente da econômica – conferiu precedência à

prática e ao aprendizado dela decorrente para o entendimento dos movimentos sociais

camponeses. A ideia de “reforma agrária”, tal como debatida pelos pesquisadores em

debates públicos, deveria ser recuperada no interior do processo de lutas e não

supostamente em seus resultados econômicos. Conforme essa perspectiva, a “terra”

seria um elemento central de reivindicações dos movimentos camponeses, embora não

sendo um fim em si mesmo, já que ao redor dela girariam outras demandas - como a

manutenção de certas estruturas familiares, emprego, nível de vida – que poriam em

movimento o campesinato.

Os anos subsequentes mostrariam que a realidade do campo se tornaria cada vez

mais complexa, vivenciada por agentes e movimentos com novas aspirações. E se,

104 É importante lembrar a extensa coleção “História social do campesinato” (2008), editado pela UNESP em colaboração com o Núcelo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), na qual a “diversidade do campesinato” ocupa um lugar central no projeto.

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retomando o debate que percorremos acima, no contexto atual, a miríade de categorias

sociais de que se decompôs o campesinato levam alguns autores a suspeitar que esse

“conceito” perdeu grande parte de seu potencial analítico, sem grande carga teórica, é

preciso se perguntar se se trata do fim do campesinato, enquanto objeto empírico da

observação, ou do referencial teórico. A resposta incorrerá novamente no risco de tomar

a complexidade do campo pela descrição empírica, como se a validade científica e a

construção analítica decorresse diretamente da novidade do objeto. Ou, então, o perigo

inverso: na tentativa de domar aquela complexidade, substantivar novamente o conceito

de campesinato105. O avanço das pesquisas contemporâneas sobre campesinato e

questão agrária parecem estar atreladas, em grande medida, a esse impasse, e voltar a

formulações passadas, como aquelas que recuperamos nesse trabalho, pode nos ajudar

nessa resposta.

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