tese de evanildo bechara sobre a evolução da língua portuguesa

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 EVANILDO BECHARA AS FASES HISTÓRICAS DA LÍNGUA PORTUGUESA Tentativa de proposta de nova periodização Tese de concurso para Professor Titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminen- se  NITÉROI 1985

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Tese do Professor Evanildo Bechara sobre a evolução histórica da língua portuguesa

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  • EVANILDO BECHARA

    AS FASES HISTRICAS DA

    LNGUA PORTUGUESA

    Tentativa de proposta

    de nova periodizao

    Tese de concurso para Professor Titular de Lngua Portuguesa da Universidade Federal Fluminen-se

    NITROI

    1985

  • 2

    EVANILDO BECHARA

    As fases histricas da lngua portuguesa

    (Tentativa de proposta de nova periodizao)

    Tese de concurso para Professor Ti-tular de Lngua Portuguesa da Uni-versidade Federal Fluminense

    Niteri

    1985

  • 3

    A

    MARLIT

    Presena querida de todas

    as horas.

  • 4

    Por coincidncia, agradabilssima para mim, ponho o ponto final neste trabalho no dia 21 de ou-tubro, dia do aniversrio de nascimento de Said Ali. Eu, que muito aprendi com ele no convvio constan-te de tantos anos, e que continuo aprendendo na lei-tura permanente da sua obra, mentalmente dirijo-me a ele nesta hora para expressar-lhe o perene teste-munho da minha gratido e da minha saudade.

  • 5

    SUMRIO1

    1. Introduo ..............................................................................................................

    Captulo I: As vrias propostas de periodizao ..........................................................11

    2. As primeiras tentativas ......................................................................................11

    3. Antnio das Neves Pereira ................................................................................12

    4. Francisco Adolfo Coelho....................................................................................18

    5. Manuel Pacheco da Silva Jnior.........................................................................25

    6. Jos Leite de Vasconcelos .................................................................................29

    7. Carolina Michalis de Vasconcelos....................................................................32

    8. Augusto Epifnio da Silva Dias .........................................................................36

    9. Manuel Said Ali Ida............................................................................................41

    10. Paul Teyssier .....................................................................................................45

    Resumo ....................................................................................................................47

    Captulo II: Na tentativa de uma nova proposta ............................................................49

    1 fase: arcaica ..............................................................................................................50

    2 fase: arcaica mdia ...................................................................................................54

    3 fase: moderna ............................................................................................................62

    4 fase: contempornea ..................................................................................................65 1 A numerao das pginas, neste sumrio, a original, que no corresponde que vai editada aqui, por questes de formatao. Do mesmo modo, o sublinhado do original foi substitudo por itlico.

  • 6

    Concluses......................................................................................................................69

    Notas Introduo .........................................................................................................72

    Notas aos Captulos 1 e 2 ...............................................................................................74

    Bibliografia ................................................................................................................... .84

  • 7

    INTRODUO

    Pretende o presente trabalho contribuir para uma proposta de nova contribuio

    cronolgica das fases histricas da lngua portuguesa, um tanto diferente da lio ge-

    ralmente adotada pelos mestres nacionais e estrangeiros, em obras que tratam da diacro-

    nia da nossa lngua.

    Aqui e ali, o assunto tem merecido a ateno de estudiosos, e algumas das suges-

    tes apresentadas ou no se mostraram suficientemente convincentes, ou no foram le-

    vadas em considerao tal, que provocassem qualquer alterao na proposta de h muito

    corrente na literatura especialista.

    Ainda, recentemente, na verso brasileira de sua Histria de Lngua Portuguesa, o

    ilustre mestre francs Paul Teyssier, ao tratar do problema da periodicidade, assim se

    expressa:

    possvel determinar, na histria da lngua portuguesa do sculo XIV at aos dias atuais, perodos que permitam esclarecer-lhes satisfatoriamente a evoluo? No fcil a resposta. Alguns estudiosos distinguem na evoluo do portugus dois grandes perodos: o arcaico, que vai at Cames (sculo XVI), e o moderno, que comea com ele. Outros baseiam a sua periodizao nas divises tradicionais da histria Idade Mdia, Renascimento, Tempos Mo-dernos -, ou nas escolas literrias, ou simplesmente nos sculos... Trata-se, em verdade, de um problema muito complexo, que no ser abordado aqui. Contentar-nos-emos em isolar, na evo-luo histrica, vrios eixos que permitam ordenar, esclarecer e melhor compreender os fen-menos lingsticos (p. 35-36).

    Os dois perodos a que se refere Teyssier representam a proposta corrente nos tra-

    tadistas; mas a verdade que quem lida com textos antigos, lendo-os cronologicamente,

    percebe com facilidade o quanto elstico se mostra esse perodo arcaico, em cujo espao

    se compreendem fenmenos lingsticos to distintos. Na tentativa de aprofundar esta

    questo e procurar estabelecer certa ordenao no conjunto dos fenmenos arrolados,

    trago considerao da crtica judiciosa e especializada proposta de nova periodizao

    nas fases histricas da lngua portuguesa. Acredito que nessa proposta possam existir

  • 8

    ainda, como conseqncia, informaes que nos dem, de forma bastante precisa, uma

    idia do estado da lngua em diversos dos seus momentos histricos.

    Antes de qualquer considerao, impes-se decidir se a periodizao vai abarcar a

    lngua portuguesa em todas as suas fases, ou se teremos de distinguir um momento de

    predomnio de uma lngua a que muitos mestres chamam de galego-portuguesa e um

    outro em que o portugus se distingue mais nitidamente do galego.

    Teyssier adota a segunda dessas duas direes; considera uma fase galego-

    portuguesa que se estende, aproximadamente de 1200 a 1350, e outra a que se denomi-

    nou portugus europeu, e s para esta aplica a diviso tradicional em perodo arcaico e

    moderno.

    Prefiro submeter ao critrio de periodizao todo o momento histrico em que, fa-

    lando, ou escrevendo atravs de textos literrios ou no, se utilizou a lngua portuguesa,

    quer na fase dessa realidade complexa mas organicamente unitria do ponto de vista

    lingstico e representativa de uma unidade espiritual e cultural 2 que tem por base os

    falares da Galiza e do Norte de Portugal, quer no perodo em que, desgarrado politica-

    mente do galego, a nossa lngua prosseguiu sua trajetria at os nossos dias.

    Esta tem sido uma lio seguida pelos melhores estudiosos da filologia portuguesa

    e no h nem evidncias lingsticas nem razes de ordem tcnica que nos imponham

    ou aconselhem mudar a prtica tradicional. Est claro que eleito, entre o sculo XIII e

    meados do XIV, o galego-portugus como a lngua exclusiva da poesia lrica e a prati-

    cado no s por portugueses e galegos, mas ainda por castelhanos e leoneses, compo-

    nente fundamental do portugus contemplado como lngua histrica, e assim, portanto,

    o considero nesta tentativa de periodizao.

    2 So muitos significativas as informaes de dois ilustres gramticos, citados por Jos Pedro Machado: [ as ln-guas ] de Galiza e Portugal ... ambas eram antigamente quasi ha mesma, nas palavras, & nos diphtongos & pro-nunciao (Leo, Origem, cap. VI); ...galizia, donde la antigua (lengua) parece la misma que la Portuguesa, y la vezindade, y averse desde alli comenado la conquista, fue la causa de dilatarse la lengua (Origen), I, cap. 3, fl. 39). Tem o peso da autoridade de D. Ca Michalis de Vasconcelos a seguinte lio ... dou esta designao [galego-portuguesa] a todos os textos escritos na linguagem comum falada e escrita nos sculos XIII e XIV na faixa ociden-tal da pennsula, aqum e alm Minho, - com divergncias muito pequenas, to pequenas que no convm estabe-lecer divises (Lies, p. 333. O sublinhado meu). Se quisermos lembrar a velha e substancial Grammatik der portugiesischen Sprache de Reinhardstoettner (1878), que, quase sempre nas pegadas de Diez, reitera a identidade entre portugus e galego, a parte certo colorido dialetal e raros desvios de formas (p. 9).

  • 9

    Estabelecendo este elo histrico, a presente proposta procura basear-se na existn-

    cia de determinados fenmenos lingsticos e sua extenso no tempo, de modo que sir-

    vam de balizadores das fases aqui esboadas.

    evidente que a tarefa complexa por vrios motivos; primeiro, porque sabemos

    que uma lngua toda no se altera como um s sistema, o que, se verdade fora, permiti-

    ria mais fcil delimitao dos perodos histricos. Depois, h de se levar em conta a

    questo das variedades a que Coseriu chamou diafsicas dentro da lngua literria; as-

    sim, o prestgio do galego-portugus como lngua da poesia lrica dominante e exclu-

    sivo no perodo que se estende, aproximadamente de 1200 a 1350, sobrevive e se es-

    praia, como ainda na temtica, pela produo potica do perodo ps-trovadoresco refle-

    tida no Cancioneiro galego-castelhano, recolhido e editado por Henry Lang e que en-

    cerra composies lricas pertencentes ao perodo que vai de 1350 a 1450, quando as

    composies em prosa da mesma poca j revelam notveis progressos estilsticos e e-

    videntes diferenas no capo da gramtica e do lxico.3

    Durante algum tempo se discutiu se essa lngua galego-portuguesa veculo da poe-

    sia lrica trovadoresca no seria um produto literrio artificial, um jargo de escritores a

    servio do texto potico. Hoje est assente que tal modalidade lingstica era uma reali-

    dade, um idioma efetivamente representativo dos falares vivos na Galiza e no Norte de

    Portugal e espelho de uma identidade cultural e espiritual.

    Dessa maneira, este galego-portugus um corpus aproveitvel ao analista como

    documento de uma fase histrica do portugus. Entretanto, este valor documental do

    ponto de vista lingstico j assumir proporo diferente quando o galego-portugus

    passa a ser utilizado como simples veculo literrio da poesia lrica produzida no pero-

    do ps-trovadoresco, entre 1350 e 1450, divorciado da realidade lingstica praticada na

    poca, conforme, saciedade, nos revelavam os textos em prosa desse mesmo perodo.4

    3 Veja-se esta passagem do Marqus de Santilhana lembrada pelo incansvel estudioso portugus Jos Pedro Ma-chado, na sua edio da Origem da lngua portuguesa, de Duarte Nunes de Leo: esta arte que mayor se llama, el arte comun, creo, en los Reynos dee Galicia Portugal; donde non es dubdar que el exercicio destas sciencias mas que en ningunas otras regiones ni provincias de la Espaa se acostumbr; en tanto grado que non ha mucho tiempo qualesquier decidores trovadores destas partes, agora fuesen Castellanos, Andaluces, de la Estremadu-ra todas sus obras componian en lengua Gallega Portuguesa (Carta ao Condestvel D. Pedro, 14, p. 77) (p. 197 n. 1).

    4 Vale a pena lembrar que dos poemas galeguizantes compostos entre 1360 e 1425 no participaram os poemas portugueses, sendo a maioria de Castela ou Andaluzia. Quase todas as produes procedem do Cancioneiro de

  • 10

    E, conseqentemente, os fatos lingsticos a tardiamente veiculados no devem,

    creio eu, ser levados em conta na periodizao aqui proposta, sob pena de perturbar a

    efetiva realidade com apenas uma miragem. No perodo trovadoresco, o galego-

    portugus era uma lngua literria ( ou da literatura ); no perodo ps-trovadoresco, a-

    penas uma lngua de literatura, expresses com que distingo os dois valores lingsticos

    do galego-portugus, na falta de melhor denominao.

    Est claro que este fato no se confunde com a conhecida tendncia dos autores

    medievais de utilizar, nos seus textos, variedades de registro lingstico, ora empregado

    vulgares diferentes conforme os diversos gneros literrios, ora alternando dois ou mais

    vulgares numa mesma obra, com motivaes expressivas ou com variados intuitos esti-

    lsticos.5

    Incluem-se nestes casos de variedade diafsica as diferentes normas lingsticas

    encontradas numa mesma obra literria, diferenas que se explicam pela oposio entre

    a lngua do autor e a do texto mais antigo que para citar uma das possibilidades de o-

    corrncia esse autor transcreve. o caso do emprego da desinncia des da 2 pessoa

    do plural no Leal Conselheiro, de D. Duarte, obra redigida re 1428 e 1438. Ao contrrio

    do que j se pensou, podemos hoje afirmar que no so da autoria do culto rei apesar

    do conhecimento de latim que, com certeza, tinha as verses em prosa cita das no

    decorrer de alguns momentos do seu livro, mas, sim, provm de tradues preexistentes

    de que D. Duarte lana mo. Ora, isto nos enseja comparar dois momentos de lngua e

    da extrair informaes sobre o estado dela numa fase. Nesta linha, mestre Leite de Vas-

    concelos, em estudo publicado inicialmente nos Mlanges Chabaneau e, ao depois, in-

    serido no vol. I dos Opsculos (p. 307-311), mostrou que D. Duarte usa, na sua lngua

    corrente, as formas sincopadas de 2 pessoa do plural (dizee, fazees, etc.), enquanto, nos

    trechos transcritos, ocorre a desinncia na forma plena (dizede, fazedes, etc.). O mesmo

    mestre observou ainda que, por no ter atentado para tal circunstncia, outro mestre da

    envergadura de Adolfo Coelho, na Teoria da Conjugao em Latim e Portugus, deu

    precisamente os citados arcasmos do Leal Conselheiro como prova de que na obra de

    Baena. Para o problema da mistura do Galego e do Castelhano nessas produes, bem como os tropeos de Lang e de outros editores na reconstituio crtica e publicao dos poemas de importncia capital o estudo de Rafael Lapesa em Romance Philology, intitulado La lengua de la poesia lrica desde Macas hasta Villasandino.

    5 Para a questo do bilingismo e do plurilingsmo romnico, veja-se a indispensvel obra do mestre Giuseppe Ta-vani, I1 mistilinguismo letterario romanzo tra XII e XVI secolo, p. 74 e seguintes.

  • 11

    D. Duarte havia ainda coexistncia de formas sincopadas e no sincopadas, - quando es-

    tas, como fiz ver, so mais antigas (p. 311).

    Exemplo curioso o que nos d Joo de Barros. Nas Dcadas, talvez levado pelo

    estilo solene do gnero histrico, o escritor prefere usar como invariveis os adjetivos

    ptrios em es: nao portugus. Mas na Gramtica, por exemplo, s usa a forma flexi-

    onada: lngua portuguesa.

    Ainda uma vez se explica por variedade diafsica o conhecido verso de Cruz e

    Silva, no Hissope: A nossa portugus casta linguagem, passagem de que se tm servi-

    do os autores de gramtica histrica para argumentar que a invariabilidade do adjetivo

    em s se estendeu at o sculo XVIII. Em estudo a ser publicado, procurei mostrar que

    a inflexo que no ocorre em todo o Hissope outra vez -, se deve a pretender o autor

    satisfazer o purismo saudosista de seu personagem, fazendo reviver um fato de lngua j

    de todo abandonado, neste particular, no portugus moderno.

    Como se os escolhos acima citados no bastassem para tornar mais complexa a

    delicada tarefa do analista, surgem outros quase intransponveis, que praticamente dei-

    xam sujeita a permanente reviso toda e qualquer afirmao que se faa sobre a lngua

    portuguesa extratada da lio de textos mais recuados no tempo: o estado em que se a-

    cha a publicao de obras literrias do passado no que tange fidelidade textual e o es-

    tudo filolgico, gramatical e lexicolgico da lngua em que tais obras esto escritas.

    A primeira dificuldade que vem sendo vencida muito lentamente, graas aos es-

    foros individuais de alguns mestres nacionais e estrangeiros est ainda longe de, pelo

    volume de textos editados, poder tranqilizar o pesquisador. A segunda, essa teve corta-

    da uma rica tradio que entre ns se vinha sedimentando com os trabalhos entre ou-

    tros e s para ficar nos nossos de um Said Ali, um Pe. Augusto Magne, um Serafim da

    Silva Neto, um Ismael de Lima Coutinho, um Sousa da Silveira, em benefcio das mo-

    dernas especulaes e descries da Lingstica.

    Por isso, no presente trabalho, os fatos lingsticos escolhidos como fatores de ba-

    tizamento das fases histricas do portugus so os considerados fundamentais; medida

    que cada uma dessas fases for sendo mais profundamente estudada, est claro que o

    nmero desses fatos aumentar com certeza, podendo chegar o pesquisador a determinar

    com mais preciso at uma poro do lxico especfico de cada momento histrico.

  • 12

    Est claro, tambm, que um ou outro fato apontado como fenmeno batizador po-

    de, mui esporadicamente, ser relembrado noutra fase; que aqui me guiei e decidi pela

    freqncia relativa do emprego desses mesmos fenmenos lingsticos.

    Assentado, portanto, o propsito do presente trabalho e repassados alguns dos

    problemas preliminares que condicionam as asperezas e cautelas do percurso para a

    consecuo da tarefa, passarei a enumerar as mais importantes propostas de periodiza-

    o das fases da lngua portuguesa.

  • 13

    CAPTULO I

    AS VRIAS PROPOSTAS DE PERIODIZAO

    1. As primeiras tentativas

    Que a lngua portuguesa no estava parada no tempo e no espao, e que havia va-

    riaes idiomticas entre os homens consoante seu grau de instruo, sua idade, seu

    ambiente profissional, no faltando ainda observaes quanto a diferenas de sexo e at

    a possveis influncias de condies climticas na formao dos idiomas era o fato

    consabido entre os gramticos e fillogos do passado.6

    6 Pagliaro e Coseriu, com outros tericos da linguagem, nos puseram a par de conceito restrito em que se deve to-mar a conhecida lio de Meillet, freqentemente repetida, de que na lngua tout se tient. Segundo Coseriu, a fr-mula falsa, se aplicada s lnguas histricas, e discutvel, quando referida conexo interna das lnguas funcio-nais. Cf. deste mestre, Princpios de semntica estructural, 110-111. Trata-se tambm do assunto, com a profundi-dade de todos os seus artigos, o lingista noruegus L. Flydal, nos Estudios ofrecidos em honra a Llorach, Laten-ces et liaisons em franais.

    Ainda acerca das teorias da influncia do meio fsico sobre as lnguas, merecem ser lembradas estas consideraes do competentssimo Eugenio Coseriu:

    Em relaes muito diferentes precisamente numa ao direta do meio fsico sobre o falar pensaram certos es-tudiosos como H. Meyer-Benfers e H. Collitz, que tentaram explicar pelo ambiente de vida dos habitantes (plancie ou montanha) e pela influncia do clima sobre a fisiologia da articulao fenmenos lingsticos como a primeira mutao consonntica ocorrida nas lnguas germnicas e a segunda mutao do mesmo tipo, que caracteriza os di-aletos alto-alemes. Tais tentativas foram muito eficazmente criticadas, particularmente por E. Sapir e O. Jespersen, e o prprio problema geral das relaes entre ambiente fsico e linguagem que, mais que da geografia, seria o de uma ecologia lingstica costuma ser hoje considerado como inexistente ou como um falso problema. Isso no significa, porm, que tenha sido realmente superado ou resolvido em sentido negativo, e, com efeito, foi novamente proposto em poca recente. Na realidade, trata-se de um problema que no pode ser resolvido ou negado no cam-po prprio da lingstica, nem com meios exclusivamente lingsticos, e por isso os exemplos particulares, como os de Collitz ou outros exemplos anlogos ou contrrios -, no podem servir em nenhum sentido. A linguagem apre-senta efetivamente uma face fsico-fisiolgica, pertence tambm ao ser biolgico do homem. Portanto, as eventuais influncias do meio fsico no podem ser excludas a priori. A lingstica, porm, estuda a linguagem em certas con-dies dadas, e no o condicionamento dessas condies. Assim, pode estudar a influncia das grandes cidades sobre a histria das lnguas, mas no sua tarefa investigar como se formam as grandes cidades. De igual maneira, a lingstica pode estudar o condicionamento fisiolgico das linguagens, mas no pode investigar a influncia do clima ou de outros fatores sobre o fisiolgico: o problema duma ecologia da articulao , do ponto de vista lings-tico, um problema prvio, que a biologia deve propor e resolver.

  • 14

    O primeiro gramtico de nossa lngua j se mostrava atento a tais variedades, e

    aqueles que a ele se seguiram tinham tambm presentes essas diferenas, embora delas

    no tirassem partido, como hoje se faz, para a construo de um corpo orgnico de dou-

    trinas.

    Ferno de Oliveira, por exemplo, contrasta o uso da forma te em Garcia de Re-

    sende, Joo de Barros e mestre Baltasar, com o seu uso de at (Gramtica, XXXV),

    lembra que capapele, no tempo do rei Afonso Henriques, era nome de a certa vestidu-ra, uo que nemichalda, do tempo dos pais, vale o mesmo que nemigalha, que emprega,

    mas o termo antigo, ele o ouviu de uma velha de cento e dezesseis anos (XXXVI).

    Duarte Nunes de Leo declara na sua Orthographia:

    Veemos na lingoa Portuguesa, per quam differente maneira se screve agora do que se scre-via & pronunciava, no tempo antigo ate o elRei dom Joo o primeiro, que parece outra diffe-rente lingoagem (p. 191).

    O mesmo historiador e fillogo assim se expressa na Crnica Del Rei D. Joo I:

    Do tempo da Rainha D. Filippa e de seus filhos para c houve em Portugal na policia e tra-tamento das pessoas Reaes muita mudana, e bons estilos, e muita mudana, e bons estilos, e muita differena na lingoagem e nos conceitos (Cap. 86 apud J. Pedro Machado, Duarte Nunes de Leo, Origem, p. 199).7

    Informaes destes tipos poderiam ser acumuladas para todas as exigncias e gos-

    tos, mas, como podemos apreciar, a preocupao terminava no apontar o fato, sem mai-

    ores conseqncias.

    Se os gramticos de profisso estavam atentos a essas mudanas, bem mais obser-

    vadores dos usos lingsticos e suas variedades se mostravam os escritores que, com

    mais inteligncia, tiravam partido de suas investigaes. J citei o caso de D. Duarte no

    tocante ao emprego de desinncia de 2 pessoa do plural des, mas o exemplo acabado

    7 O velho gramtico e historiador toca num ponto importante para a explicao de ter usado o portugus como ln-gua dos diplomas cartoriais, abrindo acesso a ser tambm o veculo de outros textos. Durante algum tempo se ima-ginou que a substituio do vernculo gria alatinada dos tabelies e ao latim dos eclesisticos se deveu a uma i-mitao do que, para os documentos pblicos, fez Afonso X do espanhol. Joo Pedro Ribeiro combateu, com razo, essa idia e pensou em atribuir o fato da substituio do latim pelo vernculo ignorncia cada vez maior da lngua de Ccero. Explicao, sem dvida, melhor, mas, como diz Adolfo Coelho, insuficientemente, que ensina: A impor-tncia que o portugus adquiriu repentinamente, e que o fez adotar quase em todos os documentos pblicos, resul-tou da introduo da cultura potica na corte portuguesa. Aos tabelies e aos eclesisticos que sabiam escrever, e cujo nmero era pequenssimo, no podia mais repugnar o uso duma lngua que o rei empregava nas suas can-es (A lngua portuguesa, 27). Mais uma vez, em sua obra gramatical e histrica, o velho Duarte Nunes de Leo atribuiu o aperfeioamento da lngua verncula ao trabalho cultural da casa real: O que se causou por em Portugal haver reis e corte que a oficina onde os vocbulos se forjam e pulem e donde manam pra os outros homens ... (Origem, 244).

  • 15

    de tais utilizaes Gil Vicente que criam, com base ou com apoio nessa diversidade

    lingstica, todo o universo humano que enche a sua obra teatral. Mas isto j uma ou-

    tra longa histria que no est nos propsitos deste trabalho.

    2. Antnio das Neves Pereira

    Se est correto o resultado da pesquisa a que procedi, a primeiro sugesto organi-

    camente completa de uma periodizao das fases histricas da lngua portuguesa se de-

    veu a Antnio das Neves Pereira, a respeito de quem dois grandes mestres da Filologia

    Portuguesa assim se pronunciaram:8

    Neves Pereira era talvez o fillogo mais inteligente deste perodo [de 1779 a 1868], como o provam os seus escritos publicados nas Memor. de Litt. da Academia, vols. IV e V (J. Leite de Vasconcelos, Opsculos, IV, p. 883, de uma publicao datada de 1880).

    De todos aqueles acadmicos [da Academia Real das Cincias de Lisboa] o que manifesta mais atilado esprito filolgico Antnio das Neves Pereira (F. Adolfo Coelho, A lngua por-tuguesa [1881], p. 169).

    Neves Pereira divide em trs as pocas da lngua portuguesa e dos seus autores:

    1 poca: da fundao do Reino at o tempo dEl-Rei D. Afonso V (1432-1481), isto ,

    do sc. XII 2 metade do sc. XV.

    Neste perodo, como caractersticas lingsticas, Neves Pereira aponta:

    a) a variedade de ortografia das palavras, e nesta a pronncia, que indicam que

    nada ou pouco mais de nada havia de regras fixas (p. 181-182);

    b) vrias dices que hoje se julgam formadas por sncope ou contrao, e ver-

    dadeiramente eram mal derivadas do latim, ded modo que a respeito dos ori-

    ginais mais parecem vocbulos truncados, ou meias palavras, do que termos

    regulares: tais affam por aflio (p. 182)

    c) na conjugao dos verbos alguma irregularidade, conservando nalguns a

    propriedade do dialeto galiziano, como iva, ensinedes etc. (Ibid.);

    8 Mereceria um estudo parte a produo cientfica de Antnio das Neves Pereira e de alguns outros estudiosos do sculo XVIII, como Francisco Dias Gomes e Antnio Pereira de Figueiredo. Antnio Caetano do Amaral e Joo Pe-dro Ribeiro tm sido temas de importantes trabalhos crticos em Portugal. Como em geral falta referncia figura de Neves Pereira em boas enciclopdias portuguesas modernas por exemplo, a Verbo -, creio interessante acrescen-tar que Neves Pereira nasceu no Porto onde morreu em 1818. pertenceu Congregao do Oratrio e notabilizou-se como orador e professor. Escreveu algumas obras de bom mrito sobre filologia e gramtica portuguesa, das quais duas foram publicadas ns Memrias da Academia Real das Cincias.

  • 16

    d) a construo das frases pouco uniforme, e muitas vezes o nexo e disposio

    delas confusa (Ibid.).

    No contente com as explicaes acima, Neves Pereira ainda acrescenta judicio-

    samente:

    Alm disso observaremos que suposto no decurso desta poca fez a lngua portuguesa v-rias mudanas, que a distinguem, contudo muitas coisas passaram s outras pocas, como so: 1 a terminao de nomes e verbos em om, como perdom, forom, lerom etc., de que usou ainda na sua idade Pedro de Andrade Caminha. 2 Vrios termos gerados nesta primeira poca, como alfaqueque, redentor de cativos; barrag, concubina; e outros que se acham no Cdigo Manue-lino; coita, pena paixo, donde veio a palavra coitado, que ainda hoje dura; agua, pressa, ardi-leza, astcia, mas ardil da mesma origem ainda hoje vale; azinha logo, cedo; Fiza, confiana; favoreza favor, e outros semelhantes.

    E no s estes termos, mas ainda muito do primeiro dialeto se conserva em Ferno Lopes e Azurara, como se v nas vidas de D. Duarte, D. Afonso V, principalmente de forma neutra es-to, elo, aquelo, algo, al e ulo, ula, por qual, unho e unha por um, uma etc., e tambm i por a, hu por onde etc. (Ibid.)

    2 poca: do tempo dEl-Rei D. Joo II (1455-1495) AT d. Sebastio (1554-

    1578), posto que em quantos escreveram por este tempo at Joo de Barros, quase no

    se conhece notvel diferena antiga linguagem (p. 182-183).

    Para Neves Pereira, Joo de Barros deu um como novo tom lngua portuguesa,

    no tanto nas palavras por si s, porque ainda nele se acham muitas da idade anteceden-

    te, mas pelo teor e organizao da sua frase; de forma que ele foi o que criou e nutriu a

    fertilidade e riqueza dos autores da seguinte poca, e ainda hoje consultado por ho-

    mens que tm bom gosto so, como um dos melhores orculos da nossa lngua. Alm do

    seu engenho superior, no se pode duvidar que concorreu muito a grande erudio da

    lngua latina e grega que os seus antecessores no tinham, ou de que se no aproveita-

    ram como ele, para adiantar os progressos da nossa. Tambm crvel que a diferente

    comunicao que teve na Costa de Guin, onde foi Governador, seria causa para que vi-

    esse a deixar grande parte dos vocbulos informes e menos apurados que se acham nos

    outros escritores antes dele; como tambm, que a grande estimao que fizeram de seus

    escritos os autores que se lhe seguiram, devia de ser causa que perseverasse ainda at

    Vieira o uso de alguns vocbulos que ele empregou nas suas Dcadas. H contudo ainda

    nele bastante da antiga linguagem, conseqncia dos pequenos e vagarosos progressos

    que a lngua teve na primeira poca (p. 183).

  • 17

    Centrada essa 2 poca na lngua literria de Joo de Barros, so os seus usos lin-

    gsticos o que passa a servir de caracterizao gramatical dessa fase. Aqui Neves Perei-

    ra destaca os seguintes fatos:

    a) emprego da conjugao ca em lugar de porque, que parece virira em direitu-

    ra da francesa car, formada do latim quare, da qual usou Duarte Nunes, es-

    crevendo 50 anos depois de Barros, e ainda o P. Lucena, que escreveu pelo

    mesmo tempo (Ibid.);

    b) invariabilidade de gnero dos nomes designativos de naes acabados em s,

    dizendo no feminino gente portugus, mulher portugus etc.;

    c) invariabilidade de gnero nos nomes verbais acabados em or, como cidade

    competidor, mulher inventor, nossa defensor etc. (Ibid.);

    d) outras vezes, seguindo a terminao dos nomes, faz femininos os que ns

    hoje fazemos masculinos, seguindo o uso do latim: a cometa, clima mida, uma paradoxa. Cisma, que entre ns significando separao da obedincia

    Igreja, masculino, e significando imaginao, i.e., pensamento inquie-

    to, feminino, em Barros tem sempre este segundo gnero. O mesmo usa do

    nome fim ora masculino, ora feminino (p. 183-184)

    3 poca : do reinado de D. Sebastio at os tempos de Neves Pereira, que faz di-

    ferena mais de duzentos e vinte anos.

    Para o nosso fillogo a particular propriedade desta poca um idiotismo e forma

    de frase tal como o que hoje praticam os bons escritores (p. 184).

    E explica por que se refere ao idiotismo:

    Falo do idiotismo, porque se atendermos s palavras por si s, podia-se desde o P. Vieira para c constituir uma diferente poca (Ibid.).

    Percebe-se, pela citao acima, que Neves Pereira, falando do idiotismo, ope o

    termo palavra considerada em si, de modo que o idiotismo deve ser tomado aqui em

    sentido restrito para referir-se aos locucionais, cuja significao no decorre das dos

    vocbulos componentes e da sua articulao sinttica; exs.: dar as da Vila-Diogo, cho-

    rar pitanga (Mattoso Cmara , Dicionrio6), 223).

    A seguir, Neves Pereira arrola os escritores que espelham esse perodo lingstico:

  • 18

    Os que se tm por autores clssicos nesta idade so: Fr. Lus de Sousa, Fr. Bernardo de Bri-to, o P. Joo de Lucena, Jacinto Freire de Andrade, Amador Arrais, o P. Vieira; este e Jacinto Freire so os que menos usaram dos antigos vocbulos. Dos poetas os mais clebres so: Fran-cisco S de Miranda, Ferreira, Bernardes, Pedro de Andrade Caminha, Cames. Houve nesta idade o que costuma ser a coisa de maior vantagem para a perfeio das lnguas, isto , a cul-tura da poesia, porque, segundo o autor da vida de Antnio Ferreira, o melhor daquela idade ou eram poetas ou os tinham em grande apreo. (p. 184)

    As citaes foram deliberadamente extensas de modo que o leitor pudesse entrar

    na lio inteira do ilustre fillogo portugus, o primeiro em tentar uma periodizao das

    fases histricas da lngua portuguesa. De tudo o que a ficou dito se percebe claramente

    que a periodizao se baseia mais em elementos da lngua. Cada perodo se caracteriza,

    fundamentalmente, pelo lxico, pelo torneio da frase, pelo uso efetivo que um escritor

    ou um grupo de escritores faz do idioma. Interessa mais ao estudioso acompanhar a evo-

    luo do estilo do que a evoluo da lngua.

    , por assim dizer, uma viso filolgica mais do que lingstica, e isto por no tra-

    ir, mas refletir, os ideais e os propsitos da indagao dos especialistas em estudos de

    linguagem, por aquela quadra.

    Entretanto, Portugal pouco a pouco ia-se avizinhando aos progressos dos estudos

    lingsticos realizados, principalmente, na Alemanha, Inglaterra e na Frana. Quando a

    lingstica histrica e comparada, no campo da Romanstica, divulgou os trabalhos de

    Frederico Diez, logo depois essas idias chegavam aos centros culturais portugueses

    com os trabalhos pioneiros de Francisco Adolfo Coelho.

    Foi este mestre quem, dentro de uma preocupao agora mais lingstica, esboou

    a segunda proposta de periodizao das fases histricas do portugus, apelando ainda

    como no podia deixar de ser para o vocabulrio, mas enfatizando e aprofundando a

    lista de caractersticas idiomticas no nvel da fontica e da fonologia e da morfossinta-

    xe. Cessa de todo a nfase referncia de particularidade de estilo e de construo or-

    namental da frase.

    A viso mais filolgica do que lingstica, que apontei na poca em que Neves Pe-

    reira viveu e norteou seus estudos foi, parece-me, o responsvel por uma confuso entre

    lngua e retrica, confuso denunciada pelo prprio estudioso do sc. XVIII:

    ( ... ) no posso dissimular uma perversa opinio que tenho achado arraigada em muitos ali-s doutos, e que at deles tem dimanado para a mocidade com bem prejuzo da Literatura Por-tuguesa, e nasce este erro de muitos confundirem o estilo da lngua da eloqncia ou estilo dos assuntos (Op.cit., 160).

  • 19

    3 Francisco Adolfo Coelho

    Com o volume intitulado A lngua portuguesa: fonologia, etimologia, morfologia

    e sintaxe, publicado pela Universidade de Coimbra, em 1868, procurou Adolfo Coelho

    introduzir em Portugal as investigaes de Frederico Diez com vistas a um estudo do

    organismo da nossa lngua e da sua formao (p. VI).

    Apesar do seu carter ainda incipiente, fcil supor o fermentar de idias que tal

    obra motivou no sentido de procurar dar cunho mais rigorosamente cientfico aos traba-

    lhos de natureza lingstica que ento se empreendiam no pas irmo, pas onde havia

    pessoas ilustres ainda embaladas pela teoria de que a nossa lngua no representava a

    continuao ininterrupta do latim corrente falado, mas do cltico, como ocorrera com

    Antnio Ribeiro dos Santos, falecido em 1818.

    Um reflexo da influncia benfazeja do livrinho de Adolfo Coelho nos jovens estu-

    diosos de ento, pode-se ver no fato de que o primeiro livro de lingstica que leu Leito

    de Vasconcelos, nos idos de 1877, por indicao do eruditssimo Epifnio Dias, foi exa-

    tamente essa obra inovadora.9

    No captulo que estuda o portugus lngua escrita (p. 25-29), Adolfo Coelho a-

    companha perfunctoriamente a evoluo do idioma ainda preso s diferenas de estilo

    (cf. p. 27) e ensaia uma diviso entre um perodo de sincretismo e outro, posterior da

    disciplina gramatical; no primeiro, um escritor diz, por exemplo, som outro sum, aque-

    le sou, o mesmo emprega at as trs formas (p.29).

    Numa obra de mesmo ttulo e sada em 1881, integrante de um pretendido Curso

    de literatura nacional para uso dos liceus10 , Adolfo Coelho aperfeioa o livrinho de

    9 Leite de Vasconcelos, Epiphanio Dias, 41.

    10 Este Curso ed literatura nacional estava programado para trs volumes de que s os dois primeiros saram: A ln-gua portuguesa. Noes de glotologia geral e especial portuguesa (Porto, 1881); Noes de literatura antiga e me-dieval, como introduo ao estudo da literatura portuguesa (Porto, 1881); Noes de literatura portuguesa. Do pri-meiro chegaram a sair trs edies (3 ed.; Porto, 1896), enquanto a segunda nunca passou da edio de 1881. O terceiro ficou apenas no planejamento. Talvez tambm intimamente relacionados a esse Curso estariam os Princ-pios Gerais de Literatura (retrica e potica), de cuja preparao fala o autor em nota de rodap da p. 2 das Noes de literatura antiga e medieval. Alis, vivendo Adolfo Coelho numa poca de intensa ebulio cultural e social, na-tural que muitos foram os seus projetos de realizao no campo da Lingstica, da Educao, da Etnografia, da Lite-ratura e do Folclore. Merecem de todos ns a melhor ateno e aplausos os estudos de Rogrio Fernandes que es-creveu importante trabalho intitulado As idias pedaggcas de F. Adolfo Coelho (Lisboa, Instituto Gulbenkian de Ci-ncia, 1973) e editou de Adolfo Coelho Para a histria da instruo popular, pelo mesmo Instituto, 1973.

  • 20

    1868 e, quanto ao tema destas consideraes, apresenta-nos uma lio bem mais ampla

    do que fizera anteriormente. Por isso, considero a sua sugesto como a 2 proposta de

    periodizao das fases histricas da lngua portuguesa.

    A novidade desta proposta consiste em trazer baila dois pontos de vista aparen-

    temente distintos: os efeitos normativos da existncia de uma literatura gramatical e le-

    xicolgica, e as mudanas lingsticas propriamente ditas.

    a) Primeira diviso

    Tomando por base a existncia duma literatura gramatical e lexicolgica, que tem necessa-riamente como resultado fixar e determinar dum modo mais ou menos considervel as formas e tipos sintticos da lngua, dividimos a histria da lngua em dois perodos: o perodo de sincre-tismo e o perodo de disciplina gramatical.

    Perodo de sincretismo. Este perodo caracterizado essencialmente pelo emprego de duas ou mais formas duma mesma palavra, de dois ou mais processos sintticos de igual funo, concorrentemente, ou por escritores diversos da mesma poca ou at pelo mesmo escritor (p. 155-156).

    Passa a seguir Adolfo Coelho a enumerar alguns exemplos ilustrativos desse per-

    odo, lembrando que, em geral, se trata de formas antigas ou populares que convivem

    com formas eruditas ou formas novas alteradas das populares; do primeiro caso, entre

    outros, alude a piadade ao lado de piedade reformada por influncia do latim pietate,

    enquanto do segundo, arrola sodes, soes (sois) num mesmo escritor do sc. XV (Fr. Jo-

    o Claro) (Ibid.).

    Entre os exemplos de sintaxe, nosso autor cita o caso de lhe empregado freqen-

    temente como plural ao lado de lhes, o infinitivo flexionado usado alternativamente com

    o no flexionado em casos anlogos e a ocorrncia da preposio sem com o infinitivo

    (sem saber) e gerndio (sem sabendo).11

    Por fim, A. Coelho lembra que, em todos os escritores desse perodo, so freqen-

    tes:

    1) as frases ou perodos duma construo pouco lgica, conquanto clara em geral; 2) cons-trues espordicas em portugus, que depois desaparecem, mas que se tornaram tpicas nou-tras lnguas romnicas.

    Exemplos do primeiro caso: Em que seja (conquanto eu seja) lavradora/Bem vos hei de res-ponder (Gil Vicente).

    11 Quanto a lhe e lhes indicativos de plural, A. Coelho lembra Cames, mas a verdade que em Os Lusadas o vate s usa de lhe para singular e plural. Veja-se a excelente edio comentada por Epifnio Dias.

  • 21

    Exemplos do segundo caso: a) emprego partitivo da preposio de com o artigo: ... arrumar a caravela / E deitar do junco nela (Gil Vicente); Semeae das favas (idem); b) emprego do arti-go antes de um e outro (o um e o outro, freqentemente no sculo XIV) (p. 157).

    Este perodo de sincretismo, segundo A. Coelho, se estende at o fim do sculo

    XVI.

    Perodo da disciplina gramatical

    Os trabalhos das gramticos e lexiclogos tendem principalmente a exercer uma influncia uniformizadora, para a qual concorrem de modo considervel os escritores de nome que se preocupam da regularidade da forma. Essa uniformizao oferece sempre grandes dificuldades, porque nenhuma regra h a que ela se possa submeter. Qual , por exemplo, prefervel das duas formas: fructo e fruito? Qual das duas construes comear de dizer e comear a dizer? Quais os casos em que se deve empregar o infinitivo pessoal, se nenhuma regra constante se v ob-servada pelos melhores clssicos? So as questes dessa natureza que os gramticos tm que resolver, sem que nenhum critrio verdadeiro, seguro, os guie na maior parte dos casos, tendo pois que dar solues dogmticas nesses casos.

    O aparecimento da cultura gramatical no indica necessariamente o termo do perodo de sincretismo duma lngua: para que esse perodo se possa considerar terminado mister que pe-lo menos a indeciso das formas fique reduzida a um mnimo, porque uma fixao completa de formas no possvel. A lngua portuguesa apresenta ainda hoje numerosas formas duplas com a mesma funo, sobre cujo emprego pode hesitar (...); mas relativamente sua fase medieval o portugus a partir do sculo XVI vai-se tornando uma lngua tendendo de cada vez mais para a regularidade de formas que ele teria alcanado se uma Academia de lngua tivesse influ-enciado sobre ele, como influenciaram a Academia da da Crusca sobre o italiano, a Academia francesa sobre o francs e a Academia espanhola sobre o espanhol.12.

    Com restries, pois, podemos considerar o aparecimento da literatura gramatical portugue-sa no sculo XVI, as gramticas de Joo de Barros e Ferno dOliveira, como fechando o pri-meiro e abrindo o segundo perodo da lngua, no ponto de vista da nossa primeira diviso (p. 157-158).

    O primeiro em achar lacunosa a proposta de uma periodizao com base nos efei-

    tos da ao de uma disciplina gramatical que, a bem verdade, Portugal nunca propi-

    ciou, ao contrrio do esforo desenvolvimento pelas Academias aqui lembradas foi seu

    prprio idealizador, Adolfo Coelho. Por isso, o mestre sugere a segunda proposta que,

    em parte, se articula com a primeira, j que ele mesmo se incumbe de faze-lo, ao encer-

    rar a segunda sugesto, com suas palavras:

    Como se v, nesta diviso, o primeiro perodo com a fase de transio corresponde ao per-odo de sincretismo, de primeira diviso; o segundo perodo da segunda diviso ao perodo de disciplina gramatical da primeira (p. 161).

    b) Segunda Diviso 12 Sobre a influncia de uma Academia na uniformizao da lngua portuguesa vejam-se as consideraes de Ro-bert Ricard lembradas por Celso Cunha (Lngua portuguesa e realidade brasileira, p. 69 e ss.) e a bibliografia a in-dicada pelo mestre brasileiro.

  • 22

    A primeira diviso em perodos da histria da lngua portuguesa no assenta sobre um fato orgnico, interno lngua, mas sim sobre um fato exterior, de caracteres, como vimos, mal de-finidos. Uma verdadeira diviso histrica deve basear-se sobre fatos orgnicos, sobre algumas alteraes mais ou menos considerveis porque a lngua tenha passado, como transformaes fonticas generalizadas. Partindo deste princpio dividiremos a histria do portugus escrito em dois perodos: o primeiro comea com a apario dos mais antigos documentos em portugus (fins do sculo XII)13 e acaba pelo comeo do sculo XV; o segundo perodo segue-se primeiro depois duma fase de transio e prolonga-se ainda.

    Primeiro Perodo. Neste perodo teve a lngua a sua primeira grande poca literria, repre-sentada principalmente nos Cancioneiros do Vaticano, da casa Brancuti e da Ajuda, compreen-dendo composies de poetas do tempo de D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso e ainda anterio-res ao primeiro.

    A lngua literria empregada naqueles Cancioneiros, sem dvida mais unitria que a lngua falada, mas no uma lngua artificial, como se pretendeu , pois que todas as formas dela, com exceo de alguma rara de origem provenal, pertenciam evidentemente lngua falada, essa lngua literria apresenta-se em geral como uma notvel perfeio, e excelentemente adaptada por muitos trovadores s formas mtricas, que ento se cultivavam.

    Indicaremos alguns dos caractersticos da lngua neste perodo: 1) A segunda pessoa do plural dos tempos verbais termina sempre em des, exceto no per-

    feito, em que termina em tes, como hoje, tendo o s anterior obstado ao abrandamento de t em d 914

    2) As formas latinas da terceira declinao latina em one(m) correspondem sempre as formas em om, como sermom, oraom, enliom (electionem).

    3) Diversas formas em que duas vogais idnticas se acharam em contato por sncope dum som no as apresentam ainda contradas numa s; tais so viir (lat. venire), teer (lat. te-nere), seer (lat. sedere), leer (lat. legere), riir (lat. ridere). Nas pocas mais antigas des-te perodo aparecem constantemente formas como moa (lat. mola), depois perigo.

    4) Numerosas formas que depois foram modificadas, por influncia da analogia, conser-vam-se fiis aos tipos latinos, observadas as leis fonticas da lngua: assim dizia-se pa-resco, gradesco, etc., e no pareo, gradeo, que resultam da influncia das formas em que o c se acha antes do e ou i (p. 158-160).

    Antes de passar ao segundo perodo, A. Coelho lembra ao leitor que este momento

    apresenta outras numerosas particularidades lexicolgicas e gramaticais, algumas das

    quais se acham indicadas em diferentes partes desta obra (Ibid.).

    Segundo Perodo. Entre este perodo e o antecedente h uma fase de transio, cujos limites no possvel marcar com grande preciso. Essa fase de transio caracterizada principal-mente pelos dois fatos seguintes:

    1) mudana das terminaes em om (acentuadas e no acentuadas) em ao;

    2) sncope do d na maior parte das formas verbais em ades, edes, ides.

    Esses dois fenmenos no se deram de sbito: entre om e o mister admitir pelo menos o intermedirio ; entre uma forma como partides e partis houve a intermdia partiis.

    A oscilao entre essas antigas formas, as intermedirias, e as novas, durou cerca dum scu-lo.

    13 Sabe-se hoje, depois dos estudos do P. Avelino de Jesus e de Lus Filipe Lindley Cintra, que os primeiros docu-mentos at hoje conhecidos datam do sc. XIII.

    14 Embora persista a explicao fontica dada por A. Coelho, est claro que no perfeito no temos marcas pessoais, como nos outros casos, mas, sim, temporais, que acumulam as indicaes gramaticais de pessoa.

  • 23

    No Cancioneiro de Resende as formas antigas em om esto constantemente representadas por formas em o (escritas tambnm com am).

    Gil Vicente emprega ainda simultaneamente formas como dizede e dizei (p. 160-161)

    Consoante esta segunda proposta de A. Coelho, a lngua portuguesa pode ser divi-

    dida em dois momentos histricos: dos primeiros documentos at o comeo do sculo

    XV (como uma fase de transio para o seguinte) e da em diante, aqui tambm com

    uma curta fase de transio entre o abandono de antigas formas j modificadas e o sur-

    gimento, em geral, das modernas por que so conhecidas.

    V-se a precariedade tambm dessa segunda proposta, porm de justia salientar

    que representa um largo progresso. Estava, assim, aberta a estrada promissora para a su-

    gesto que hoje reina vitoriosa nos compndios de diacronia da lngua portuguesa.

    Note-se que at aqui tais perodos no receberam nenhuma denominao de ar-

    caico ou moderno.

    Por fim, note-se ainda que a A. Coelho escapavam informaes que foram sendo

    acumuladas pelas pesquisas sobre lngua portuguesa antiga; j vimos op engano que ne-

    le observou Leite de Vasconcelos quanto s formas verbais em des em D. Duarte. Pa-

    relelo a esta desinncia pessoal, poderemos fazer o mesmo reparo, quando escapou ao

    mestre a diferena entre lngua literria e lngua de literatura, ao declara que G. Vicente

    entrega simultaneamente dizede e dizei. Ora, se no tempo de D. Duarte, j predomina-

    vam as formas sincopadas, na poca de G. Vicente essas formas s se explicam como

    artifcios literrios para caracterizar, no seu teatro, segunda a lio competente de Paul

    Teyssier, certains personnages fminins bien caracterise (La langue de Gil Vicente,

    193).

    Sendo, portanto, um fato de lngua de literatura, e no um fato de lngua literria

    de G. Vicente (dentro da nossa provisria nomenclatura), as formas em des do seu tea-

    tro no tm valor documental para a problema da periodizao das fases histricas da

    lngua portuguesa.

    4- Manuel Pacheco da Silva Jnior

    Entre os nomes exponenciais da primeira gerao de fillogos brasileiros que abe-

    beraram as lies de Frederico Diez, diretamente, e de Adolfo Coelho, manda a justia

  • 24

    colocar num dos primeiros lugares Manuel Pacheco da Silva Jnior. Desde cedo notabi-

    lizou-se pela profundidade de conhecimentos e extensas leituras no mais destacados

    mestres da filologia e da lingstica da poca. Interessou-se por vrios setores da lngua

    e deixou-nos uma obra que est espera de ser reavaliada. Se mais no escreveu, deve-

    se o fato sua curta existncia, alm dos acanhados veculos de divulgao cientfica

    entre ns, ontem e hoje incrivelmente to parecidos, no ambiente cultural e universitrio

    do Brasil.

    Assim que em 1878 aparece a Introduo de sua Gramtica histrica (154 pgi-

    nas) e pasma ver a bibliografia estrangeira a consultada, riqueza que difcil explicar

    no Rio de Janeiro e em mais alguns centros culturais do Brasil ento, s possvel ingen-

    tes esforos pessoais de um Pacheco da Silva Jr., de um Aureliano Pimentel, dum Joo

    Ribeiro, entre outros. Sem dvida, deve-se tambm nisto tudo pr em relevo o empenho

    do imperador Pedro II em adotar o colgio Pedro II e a Biblioteca Nacional de uma rica

    bibliografia estrangeira.

    Nesta obra, era natural que o autor teria que enfrentar o problema da periodizao

    aqui estudado, numa poca em que o assunto estava ainda nos seus primeiros passos.

    Pacheco da Silva divide a histria do portugus em trs perodos: antigo, mdio e

    moderno (p. 50-62).

    O perodo antigo abarca os sculos XIII e XIV, j que a fase trovadoresca dos

    Cancioneiros foi escrita, segundo equvoco do nosso autor, em galego (galesiano).

    No declinar do sculo XIV j denotar a preferncia por novas formas (sua p. sa, legtimo p. ldimo, dispensa p. dispensaom, eram p. erom, logar por logo, secular p. segrar, mesura p. medida, meatade p. metade, porque p. ca, quieto p. quedo, ntegro p. inteiro, plano p. cho (...). E assim originaram-se grande nmero de duplas, porque a maior parte desses vocbulos j pertencia ao fundo da lngua, j tinham uma forma popular (...).

    J ostensiva a diferena na obra e estrutura; comeam a aparecer certos idiotismos e a si-nonmia; a ortografia torna-se mais uniforme; cai a consoante das desinncias verbais em ades, -ade, -edes, -ede, etc. (aes, ais, ae, es, ...); os particpios presentes em ante, -ente, -inte so substitudos pelas formas em ando, -endo, -indo; comea o emprego dos superlativos em ssimo ;15 tendem a desaparecer os particpios em udo e os pretendidos galeguismo (xe p. se, quigessem p. quisessem, etc.). A revoluo erudita estendem-se morfologia, a alterao fon-tica revela-se na ortografia. (p. 52).

    15 O assunto mereceria um estudo em profundidade. No vejo informaes maiores em dois livros especializados, e bons, sobre a lngua de D. Duarte no Leal Conselheiro: o de Russo Morphology and Sintax of The Leal Conselheiro e o de Roberts Orthography, Phonology and Word Study of the Leal Conselheiro, ambos da escola de lusitanistas americanos sob a orientao de Edwin Bucher Williams.

  • 25

    O perodo mdio abarca o sculo XV. nesse sculo que aparecem as celebradas

    crnicas em lngua verncula com Ferno Lopes (...), Gomes Eanes Azurara (...) e com

    Rui de Pina ... (p. 52).

    O perodo moderno inicia-se no sculo XVI.

    O sculo XVI a fase mais brilhante, o perodo ureo da histria literria de Portugal; a li-teratura abraa as formas mais vrias e produz uma raa soberana; comea o portugus moder-no que apesar da influncia hispano-itlica fixa muitas das suas formas.

    (...) Da influncia itlica e da competncia com a escola greco-romana resultou mais puris-mo para a lngua, em muito superior do sculo XV na forma, propriedade, harmonia do teci-do da frase, naturalidade da expresso, simplificao da sintaxe.

    Logo nas primeiras dcadas do sculo XVI nota-se esse rpido desenvolvimento da lngua, que todavia ainda se ressente de irregularidades, locues obscuras, frases arrevezadas, cons-trues viciosas e imperfeies (umas provenientes do uso, outras peculiares a cada escritor), perodos estirados defeito geral em nossos clssicos alastrando s vezes uma vasta pgina (...); uso descompassado dos relativos que, qual; engano (ainda que raro) no emprego dos tem-pos dos verbos ou na sua regncia (conquanto no estava; s quando mais estimados querem ser ouvidos); emprego da forma pronominal lhe para ambos os nmeros (no Cancioneiro, em F.M. Pinto, Manuel Bernardes, Lucena); formao dos tempos compostos com particpios pas-sivos (tinham uns vendidas e deixadas, outros deixadas as armas), alm do emprego de pala-vras j naqueles tempos antiquadas (empara, trouveram, heregia, aprefiar, ingrs, increvel ...), anfibologias, assonncias e consonncias, etc.

    (...) As mais importantes modificaes no sistema fontico so a persistncia da troca do b pelo v e vice-versa e do l pelo r (frol, craro, grorea, pranta, ingrs...); a queda do d mdio em todas as 2as pessoas do plural (digaes, fareis, ... por digades, faredes). A 1 pessoa do singular do verbo ser pronunciavam-se uns som com J. de Barros, outros sou ou so, e outros tambm com Ferno de Oliveira com o breve (so); a combinao dos elementos fnicos derma as for-mas Pu-la mo por pus a mo, tododia por todo o dia, amarado seu Deus, plo em lugar de por o, no por em o, etc.

    (...) As alteraes mrficas mais de notar so: a fixao em ido dos particpios dos verbos da 2 conjugao (recebido recebendo, mantido mantendo ...), a preferncia quinhentista pelo emprego adverbial do adjetivo (pronto, raro ... por prontamente, raramente), a fixao do infi-nitivo pr (=poner, poer), do advrbio at, te (=atta, ata), do plural dos nomes em o, dos parti-cpios presentes, a perda de alguns sufixos temticos. A corrente erudita, mais que nunca mani-festa no sculo XVI, deu origem s formas atuais tracto, acto, baptismo ... que correspondiam s populares trauto, auto, batismo, atc.

    Na estrutura da fraseologia que raras e quase nulas foram as alteraes, se as procurarmos orgnicas. Entre outras notaremos o emprego do verbo comear sem a preposio ou seguido de de (comeou dizer antre si, Morais, Palm.; comeou de lhe perguntar, Barros), do verbo de-sobrigar seguido de a etc. Mas estas alteraes sintticas so devidas mais influncia do esti-lo dos escritores do que a evoluo lingstica, e a prova est em que tambm diziam comear a, desobrigar de, etc.

    Na segunda metade do sculo que a lngua adquire maior polimento. Nota-se a suavidade do estilo e louania no dizer, a maior conciso e harmonia da frase, gravidade e compostura, pureza da locuo, propriedade e abastana de termos, simplificao da sintaxe.

    Para a formao da lngua e o progresso da literatura, muito da literatura, muito contribui Cames. No foi ele o criador da lngua portuguesa, mas foi o primeiro que com ardimento admirvel lhe deu vitalidade e permanncia, simplificando o estilo e no gramtica que per-tencem as alteraes sintticas.

    Fixa-se a lngua, que constituiu o portugus moderno (Op.cit., p. 53-56).

  • 26

    5- Jos Leite de Vasconcelos

    A este mestre de tantos ramos do saber deve a Filologia Portuguesa numerosas i-

    niciativas e numerosas contribuies. Umas delas , sem dvida, a proposta de periodi-

    zao das fases histricas do idioma que mais conseguiu a aprovao dos estudiosos

    posteriores.

    No propsito deste trabalho em qual das obras Leite de Vasconcelos lanou

    primeiro a sua proposta de periodizao; mas pode-se dizer que ela j vinha sendo pen-

    sada havia muito, talvez at nas pegadas da sugesto de Adolfo Coelho, cuja obra A ln-

    gua portuguesa era muito citada pelo mestre. Assim, no livro A evoluo da linguagem,

    dissertao inaugural apresentada Escola Mdico-Cirrgica do Porto, em 1886, co-

    menta:

    O pargrafo antecedente mostrou-nos que as lnguas se alteram constantemente; assim, quem no se socorrer a um vocabulrio, no poder hoje ler com prontido qualquer poesia dos nossos mais antigos Cancioneiros. Em Gil Vicente, e ainda em Cames, existem muitos termos que precisam de traduo. H pois sempre em todas a lnguas um perodo arcaico, e um pero-do moderno (Opsculos, I, 114).

    Em 1891, num Curso de lngua portuguesa arcaica, ensina Leite de Vasconcelos:

    Eu chamo portugus arcaico a lngua que comea a transparecer debaixo das formas do la-tim brbaro do sc. IX, e chega at o sc. XVI. Ento principia o perodo moderno (Opscu-los, I, 231).

    Mas foi pelas Lies de filologia portuguesa (1 ed. 1911) que a proposta definiti-

    va ganhou adeptos:

    As palavras e expresses portuguesas que transparecem nos documentos latino-barbricos constituem o que costumo chamar portugus proto-histrico, que a primeira fase do portu-gus arcaico. Esta primeira fase pode dizer-se que durou at o sc. XII, pois em tal poca prin-cipiou a escrever-se a nossa lngua, ou pelo menos dento que datam os mais antigos docu-mentos portugueses que possumos16. Do sculo XII aos meados do XVI, a lngua diferena-se bastante da atual: a lngua arcaica propriamente dita.

    Distinguimos pois os seguintes perodos do portugus: 1) arcaico ou antigo, do sculo IX, e mais particularmente do sc. XII, aos meados do sc. XVI; 2) moderno, do sc. XVI ao sc. XX. Nestas duas classes h ainda subdivises (Lies, 16).

    Infelizmente dessas subdivises, que eu sabia, nunca se ocupou o mestre.

    De modo sistemtico encontramos nos Textos arcaicos a relao das caractersti-

    cas gramaticais do portugus arcaico: 16 Para a poca dos textos iniciais em lngua portuguesa remeto o leitor para as observaes contidas na nota 8 deste captulo.

  • 27

    a) Na fontica:

    distino entre s e e entre s intervoclico e z;

    a diferena entre ch e x;

    uso de om, correspondente ao moderno o, em formas da 3 decl.; como sermom, aom, e em terminaes verbais, como quiserom, amrom, ouverom, onde em latim havia unt;

    hiato entre vogais que depois se contraram, como caente, creer, geeral, poboo (sncope de cadente-, credere, generale-, populu-);

    manuteno de nasalidade que posteriormente desapareceu ou fez desenvolver novos sons, como ter

  • 28

    pesquisadora no perde a oportunidade de apontar crticas elasticidade do balizamen-

    to:

    O perodo arcaico prolonga-se at 1500 ou mesmo ainda mais alm dessa data.

    A lngua no fica de modo algum inalterada. Bastantes dos fenmenos que a distinguem desaparecem depois de 1350, outros perduram ainda um sculo; vrios subsistem at ao sculo XVI. A pronncia a de la, por ex.: com ressonncia nasal do u conserva-se em livros que so geralmente considerados clssicos e modelares; nos prprios Lusadas, cuja linguagem ningum se lembra de tratar de arcaica. Em geral pode, contudo, dizer-se que o portugus mo-derno comea no tempo de Renascimento, depois de alguns humanistas, - guinado-se pelos gramticos latinos, - haverem comparado sistematicamente as formas portuguesas com as lati-nas, escolhendo entre as variantes da mesma palavra que eram usuais, as mais consentneas com o gnio da lngua ptria. No se cifra s nisso a atividade de Ferno de Oliveira e Joo de Barros; e a par dela h a dos poetas que enriqueceram o vocbulo com ressurreio greco-latinas. Claro que os limites entre os dois perodos so vagos, e que houve uma poca de tran-sio. O que dissemos do latim vulgar e do neolatim, tem aplicao tambm aqui: Uma lngua no nasce em dia e hora certa, nem evoluciona num momento de um estado a outro. Algumas transformaes realizam-se muito devagar; outras muito depressas.

    Pessoalmente achamos extenso demais o tempo que se assimila ao perodo arcaico.

    Quatro sculos e sculos fecundos em feitos histricos e obras literrias, de Sancho I at D. Manuel! Das cantigas trovadorescas ao Cancioneiro Geral, com versos de Bernardim Ribeiro e S de Miranda! Do Sirvents aos que deram os castelos ao Bolonhs como no deviam, Exor-tao da Guerra e Barca do Inferno de Gil Vicente! Dos primeiros documentos pblicos em prosa, to cheios d irregularidades e mesmo de barbarismos, s Crnicas de Rui Pina e ao Cla-rimundo de Joo de Barros!

    Dividimo-lo por isso em dois: o perodo trovadoresco at 1350; e o da prosa histrica ver-dadeiramente nacional: o das Crnicas de Lopes, da ingenuamente linda Crnica do Condest-vel D. Nunlvares Pereira e da do Infante Santo, o sacrificado de Tanger.

    Durante os reinados de D. Pedro, o cruel Justiceiro, D. Fernando o Formoso, e parte ainda do de D. Joo I, as musas emudeceram. O provenalismo morrera de inanio, aps sculo e meio de grande eflorescncia. Pelas lutas com Castela, depois da vitria de Aljubarrota, que excitaram febrilmente a atividade nacional, a lngua tambm experimentou notveis alteraes. Disciplinou-se um pouco mais; progrediu na fixao da morfologia; sobretudo quanto s fle-xes de nomes e verbos. Principiando a concentrar-se e avigorar-se, contraiu tambm vogais idnticas, numa s, pronunciando por ex.: ver, ser, crer, s, d, m, em lugar de veer, creer, so, do, maa, formas que s de longe apontavam nas poesias trovadorescas, como licenas poticas de que os autores se servem a medo, envergonhados talvez de acolher tais modos de dizer familiares ou vulgares.

    Abreviaram tambm a 2 pessoa do plural, deixando de dizer amades, quereres, partides. Ambas estas transformaes, e muitas outras, eram fatos consumados na primeira metade do sculo XV (Lies, 19-20).

    Depois destas judiciosssimas consideraes da mesma Carolina, com o peso de

    sua autoridade incontestvel, vemos que se impe subdivises no dilatadssimo perodo

    de tempo compreendido na denominao portugus arcaico, imposio tambm j assi-

    nalada, como anunciava Adolfo Coelho e Leite Vasconcelos, nas suas propostas de pe-

    riodizao, transcritas anteriormente.

  • 29

    Passa a seguir D. Carolina a repetir (naturalmente por j terem lembradas pelo seu

    antecessor), quais as principais caractersticas do portugus arcaico na fase galego-

    portuguesa:

    Em geral todas as formas esto mais prximas do latim vulgar. So mero reflexo delas.

    Mesmo na conjugao cada forma provm isoladamente, como vocbulo distinto e inde-pendente, do tipo modelo, ao passo que na lngua moderna a analogia, a tendncia de igualar na construo o que igual nas suas funes, sistematizou e regularizou bastante as flexes dos verbos.

    Se os galego-portugueses diziam, por ex.: moiro, cmio e coimo, drmio, arco, perco, men-o, seno porque tais so os representantes foneticamente exatos de morio (por morior), co-medo, ardeo, perdeo, mentio, sentio os psteros preferiram tirar dos infinitivos morrer, co-mer, dormir, arder, mentir, sentir, os presentes regulares ou analgicos morro, como, durmo, ardo, minto, sinto.

    Do mesmo modo temos imperativos e 3as pessoas do singular do presente do indicativo e mesmo do subjuntivo que terminam em r, l, n, s, z, e no em -e, como na fase moderna: Fer de ferir (cuja 1 pessoa era feiro); sal, dol, sol, de sair, doer, soer, ma, de manere, pon de ponere; perdon na frmula Deus me perdon e ps na expresso em que me ps como equivalente de custe o que custar; faz, diz, luz, etc.

    Assim mesmo se dizia paresco, gradesco, nasca, jazca, e no pareo, gradeo, naa, jaa (ou jaza) que resultaram da influncia do infinitivo e de mais formas em que o c se acha antes de e ou i.

    O pretrito dos verbos chamados irregulares acaba em i na 1 pessoa do singular e em o na 3; pugi, quigi, dixi representam posui, quaesii, dixi; puso, quiso, so galego-castelhanos mais primitivamente comuns tambm aos povos do Minho.

    Havia as j citadas formas em des na 2 pessoa do plural amades, quereres, partides terminaes agora conservadas apenas quando o d est precedido de nasal como em tendes, vindes, pondes e em ides.

    O particpio da 2 conjugao era em -udo, ventudo, temudo, sabudo.

    Os substantivos e adjetivos em or, em s e em nte eram uniformes para os dois gneros; p. ex.: senhor, portugus. O trovador chamava amada a cada passo mia senhor.

    Distinguia-se entre alguns pronomes possessivos tonos (conjuntos) e tnicos (absolutos). A par de ma senhor havia senhor mia, e j de longe em longe senhor minha; ta f e a f tua; sa vinda e a vinda sua.

    Na sintaxe havia a variabilidade do particpio como em francs e castelhano antigo, em fra-ses como a f que me havia jurada; o partitivo beber do vinho, semear da favas; pleonasmo na negao pr-verbal nenhum (por ningum) non o disse.

    No estilo e curioso o abuso da copulativa e em proposies subordinadas.

    Foneticamente h alguns traos importantes: Distino absoluta rigorosa na pronncia (e conseqentemente na grafia que tenta reproduzir aquela veridicamente e o consegue menos mal) entre ss (forte) inicial e medial e que se pronunciava ts: paao

  • 30

    -Om (escrito , -on, -om) corresponde s formas latinas da 3 declinao em one, -oraon, defenson, razom, prijom, leijom (prisione, laesione), e a unt em formas verbais como ouvereom

  • 31

    justamente neste conceito que se emprega a expresso nos seguintes pargrafos

    da Sintaxe: 3, 19; 27, 2; 28, e, 1, obs,; 40, 1; 63, b. 1-4; 67; 81,3; 84b. obs.; 84c; 96;

    104; 105.a; 108; 110, a, 1 obs.; 110, a 3 obs.; 114; 129; 138; 142, a, obs.; b, 2; 225;

    228, a; 230; 236, d, obs.; 236, f; 274, c, obs. 2; 292; 316, b, 2, obs. 2; 325, a; 350, a,

    obs. 2; 358; 380, 12; 400, a) e c); 404; 406; 407, 2; 414, a; 425; 431, c; 432, obs. e 462,

    2.

    Desta longa lista apenas fogem ao conceito de portugus arcaico acima exposto os

    pargrafos 66, b, 1-4 (veja-se o 103); 358 e 3801, b. Antes de mais nada, bom acres-

    centar que tais passagens se acham em pginas no revistas por Epifnio, e que o fos-

    sem, so ilhas perdidas em vasto oceano de citaes.

    No pargrafo 66, b, 4, duvidoso dizer-se categoricamente que o autor cita Os

    Lusadas como exemplificao de um fenmeno lingstico do portugus arcaico. Pare-

    ce tratar-se de apenas uma observao parte sobre a predominncia parte sobre a

    predominncia de mi ainda na epopia camoniana.

    Por portugus moderno entendia Epifnio a lngua literria de que se serviram os

    escritores do sculo XIX para c ou, mais propriamente, que remontava ao sculo XVII-

    I. Por uma nota exarada no pargrafo 66, a, Obs. 1, v-se corroborada esta conceituao

    de perodo moderno da lngua portuguesa: ocorre (o emprego de lhe aplicado ao plu-

    ral) s vezes nos prprios escritores modernos, nomeadamente em Bocage ...

    Alis o autor no faz mais do que repetir o que j havia escrito em 1870, na Gra-

    mtica prtica, p. 121 202, Obs. 6. Por este dado, v-se que o conceito de portugus

    moderno j antigo na nomenclatura gramatical adotada por Epifnio, embora, parece,

    de modo um tanto no sistemtico, pois que, aludindo ao mesmo fato lingstico ocorri-

    do na sua edio de Os Lusadas (I, 18) fala o mestre em portugus antigo.

    Uma outra vez na Sintaxe histrica, o autor alude denominao portugus mo-

    dernssimo (cf. 136, b), que se h de tomar como sinnima de portugus moderno. O

    testemunho lingstico do prprio autor muitas vezes chamado a documentar essa fase

    do idioma.

    Dividida assim a lngua portuguesa nestas duas fases histricas maiores, era ne-

    cessrio dar um passo a mais, j que os objetivos da Sintaxe histrica , diante de uma

    soma enorme de fatos lingsticos arrolados, deviam impor delimitaes mais rgidas,

  • 32

    principalmente para poder distinguir um punhado de fenmenos que se desenvolveram

    entre o portugus arcaico e o moderno, assim como outros que, comeados numa fase,

    transitaram para a seguinte desta necessidade teria sado a proposta da insero de uma

    nova fase a que Epifnio chamou portugus arcaico mdio.

    Ficar, por certo, surpreendido o leitor que, entendendo o portugus arcaico mdio

    o longo perodo de ativiodade lingstica que vais dos fins da primeira metade do sculo

    XVI at o sculo XVIII, encontra na Sintaxe histrica o que fato comum os Portu-

    galiae Monumenta Historica ou os Cancioneiros medievais juntos a autores quinhentis-

    tas e seiscentistas como documentos literrios dessa fase da lngua portuguesa, como

    ocorre, entre numerosos outros, no pargrafo 250:

    O port. arc. mdio antepunha freqentemente a um o artigo definido:

    assy pla huma parte como pla outra (Foros da Guarda, L. et Consuet. 332, P. Mon. Hist.) h... o outro (Heitor Pinto, I, 126). Os hs ... hos outros (Diego Aff., 154)

    Se o leitor, alis como seria de esperar, assim proceder, que viu o port. Arc. m-

    dio sob apenas um dos dois prismas segundo os quais Epifnio concebeu esse perodo.

    Muitos fatos lingsticos no esperaram as luzes da primeira metade do sculo XVI para

    se despedir do uso corrente ou da lngua literria. Estes fatos caracterizam o portugus

    arcaico. Todavia outros, mais bafejados pela sorte, resistiram moda de inovaes, mas

    se foram enfraquecendo e caindo em olvido com o correr dos tempos. A fora conser-

    vadora, porm, no foi tal, que os fizesse alcanar o sculo XVIII, e vieram o escurecer

    do dia no meio da jornada. J esta srie de fatos iria caracterizar o portugus arcaico

    mdio.

    Mas o conceito desta fase no poderia ficar, como no ficou, adstrito a essa pro-

    duo lingstica. O portugus arcaico mdio tinha de enquadrar tambm a srie de a-

    quisies novas de sintaxe que apareceram nos sculos XVI e XVII, independentemente

    do portugus arcaico. Esta nota caracterstica da linguagem dos quinhentistas e seiscen-

    tistas dedixa-nos antever um conceito confuso, ou, pelo menos, pouco rigoroso, do por-

    tugus arcaico mdio, tal como o entendia o autor da Sintaxe histrica. Basta observar-

    mos que duas ordens diferentes de fatos lingsticos servem para caracterizar um e ni-

    co perodo histrico. A longa lista de pargrafos em que o autor se refere a esta poca

    comprova a veracidade de minha concluso: 2, b, 4, Obs.; 6; 7; 11, a; 28, d; 30, c; 48, b;

    66, a, Obs. 1; 83, e; 85, 3, Obs.; 86, b, Obs.; 92, a; 94; 103, e, Obs.; 111; 118, 3, Obs.;

  • 33

    123, c, Obs.; 128, c; 129; 133, e; 138; 167, a, 2; 183, b; 190, 5; 192, 2, b; 215, 4, b; 216,

    d; 218, c; 228, b; 231, a. Obs.; 236, b; 250, e; 256, b, 2; 257; 258, b, Obs. 4; 267, a,

    Obs. 1; 270, 6, Obs.; 271, a, Obs.; 271, f; 273, a, 2; 280; 280, b; 284, 1; 284, 6, 1; 288,

    Obs.; 297, b; 313, a; 314, 7, 2, Obs.; 316, b, 2, Obs.; 325, a, Obs. 3; 341; 349; 354; 356,

    c; 367; 372; 373; 394, a; 397, a; 408; 412; 414, a, Obs.; 414, b; 417; 428, b; 431, c; 431,

    d; 431, f; 431, g e 454, c, Obs. 2.

    Apenas dois pargrafos fogem ao conceito do portugus arcaico mdio aqui exa-

    rado e, de modo algum, tiram a fora da lista acima: 110, a, Obs. 2 e 208, b, onde s se

    abonamos fatos lingsticos arrolados com exemplificao extrada de autores da fase

    arcaica. Se so falhas, so falhas naturais num trabalho de difcil composio como a

    sintaxe, a que o autor no deu a ltima demo.

    Ocorre, outrossim, em um ou outro pargrafo, a falta de escritores posteriores

    primeira metade do sculo XVI e anteriores ao XVIII, como exemplos do portugus ar-

    caico mdio, segundo se observa nos pargrafos 143, b; 236, c e 457.

    Desde o momento em que Epitfio no tinha a preocupao de separar o portu-

    gus arcaico do portugus arcaico mdio, servia-se da expresso de sentido geral escri-

    tores antigos, conforme transparece dos pargrafos 29, b, 6; 57, b, 6, Obs.; 61, a; 66, a,

    Obs. 3 (falar popular antigo); 72; 93, b, 1; 104, b. Obs.; 230; 252, b, Obs. 1 e 375, a.

    Por outro lado, era reservada a denominao portugus clssico e, conseqente-

    mente, escritores clssicos, para designar o chamado perodo de ouro da poesia e prosa

    portuguesas, isto , respectivamente, os sculos XVI e XVII e seus representantes: 29, a,

    1, Obs.; 52, b; 84, a e 85, 2.

    Certo ou errado, o conceito de Epifnio Dias sobre o portugus arcaico mdio,

    assim que o temos de interpretar para que possamos compreender inmeros pargrafos

    da sua Sintaxe histrica: o perodo que enlaa no somente os fenmenos lingsticos

    que, desconhecidos do portugus arcaico, se desenvolveram e desapareceram entre os

    sculos XVI e XVIII, mas tambm a continuao do uso arcaico, continuao esta que

    no chegou a viver sob o signo da fase moderna do idioma. Em outros termos: a deno-

    minao portugus arcaico mdio engloba os fenmenos da lngua arcaica e da fase se-

    guinte, levando-os alm do sculo XVI e aqum do sc. XVIII.

  • 34

    oportuno ressaltar aqui, outrossim, que, se por um lado, houve preocupao de

    Epifnio Dias com levar em considerao fenmenos que pertencessem ao perodo ar-

    caico mdio, parece que esta mesma preocupao deixou de existir no tocante aos fe-

    nmenos que vieram luz entre os sculos XVI e XVII e o portugus moderno. natu-

    ral que, estudando historicamente a sintaxe portuguesa, o autor no tivesse chegado de

    modo mais profundo e definitivo a esta fase mais moderna do idioma.

    8- Manuel Said Ali Ida

    Estudando historicamente a lngua portuguesa, no poderia escapar a um mestre

    genial como Said Ali o problema da periodizao, para atender ao propsito de sua Le-

    xeologia (1921) e de sua Formao de palavras e sintaxe do portugus histrica (1923)

    que integram a primitivamente Gramtica do portugus histrico eu, pela fora de tra-

    dio editorial, teve de passar a Gramtica histrica da lngua portuguesa, contrariando

    um modo original de conceber o estudo diacrnico do idioma partindo dos primeiros

    documentos em vernculo, em vez de partir do latim. Mais uma vez o mestre revelava

    suas aptides pedaggicas, partindo, nas exposies aos alunos, do conhecido para o

    desconhecido.

    Retornando ao problema da periodizao, Said Ali apresenta, no prlogo da Lexe-

    ologia, sua proposta inovadora:

    Distinto no portugus histrico17 dous perodos principais. O portugus antigo, que se es-creveu at os primeiros anos do sculo XVI, e o porttugues moderno. A esta segunda fase per-tencem j a Crnica de Clarimundo (1520), de Joo de brros, as obras de S de Miranda, escri-tas entre 1526 e 1558, as de Antnio Ferreira, a crnica de Palmerim de Inglaterra e outros tra-balhos literrios produzidos por meados do sculo. Robustecida e enriquecida de expresses novas a linguagem usada nas crnicas desta poca, que relatam os descobrimentos em frica e sia e os feitos das armas lusitanas no Oriente, culmina o apuro e gosto do portugus moderno nos Lusadas (1572). o sculo da Renascena literria, e tudo quanto ao depois se escreve a continuao da linguagem desse perodo.

    No ficou, nem podia ficar, estacionrio o portugus moderno; e assim temos de designar pelos qualificativos quinhentistas, seiscentistas a linguagem prpria das respectivas eras. Re-servo a denominao de portugus hodierno para as mudanas caractersticas da falar atual cri-adas ou fixadas recentemente ou recebidas do sculo XIX, ou que porventura remontam ao s-culo XVIII (p. IV).

    Eis, portanto, sua nova proposta:

    17 Entende o mestre por portugus histrico o largo perodo decorrido desde o tempo que se conhece o portugus como lngua formada e usada em documentos (Prlogo Gramtica histrica, VI).

  • 35

    Portugus antigo: dos primeiros documentos escritos at os primeiros anos do

    sculo XVI.

    Portugus moderno: da at o sc. XX, subdividido em portugus quinhentista,

    seiscentista e setecentista.

    Portugus hodierno: do sc. XIX ou do XVIII ao sc. XX.

    Depois de estabelecer essa sua proposta, acrescenta Said Ali:

    Limites entre os diversos perodos no podem ser traados com vigor. Alteraes lingsti-cas no dependem de calendrio, nem do ano em que o sculo acaba ou comea. Alm disso, autores h cuja atividade literria se exerce, parte num sculo, parte no imediato. O que deve-mos entender por linguagem quinhentista, seiscentista, etc., a maneira de falar dominante em grande parte da respectiva era, ou nela principalmente. Dizeres peculiares a qualquer das po-cas continuam muitas vezes a ser usados por alguns dos escritores do perodo seguinte.

    Ignora-se a data ou momento exata do aparecimento de qualquer alterao lingstica. Nes-te ponto nunca ser a linguagem escrita, dada a sua tendncia conservadora, espelho fiel do que se passa na linguagem falada. Surge uma inovao, formulada acaso por um o poucos indiv-duos; se tem a dita de agradar, no tarda a generalizar-se o seu uso no falar do povo. A gente culta e de fina casta repele-a, a princpio, mas com o tempo sucumbe ao contgio. Imita o vul-go, seno escrevendo com meditao, em todo o caso no trato familiar e falando espontanea-mente. Decorrem muitos anos, at que por fim a linguagem literria, no vendo razo para en-jeitar o que todo o mundo diz, se decide tambm a aceitar a mudana. Tal , a meu ver, a expli-cao no somente de fatos isolados, mas ainda do aparecimento de todo o portugus moderno.

    No de crer que poucos anos depois de 1500, quase que bruscamente e sem influxo de i-dioma estranho, cessassem em Portugal inveterados hbitos de falar e se trocasse o portugus antigo em portugus moderno. Nem podemos atribuir a escritores, por muito engenho artstico que tivessem, aptides e autoridade para reformarem a seu sabor o idioma ptrio e sua gramti-ca. Consistiria a sua obra antes em elevar categoria de linguagem literria o falar comum, principalmente o das pessoas educadas, tornando-o mais elegante e desterrando locues que lhe dessem aspecto menos nobre. Este falar comum remontaria aos tempos de Rui de Pina e Zurara ou se usaria talvez antes. Mas os escritores antigos evitavam afastar-se da prtica rece-bida de seus avs, e, posto que muitas concesses tivessem de fazer ao uso para serem entendi-dos, todavia propendiam mais a utilizar-se de recursos artificiais que dessem ao estilo certo a de gravidade e acima do vulgar.

    O sculo XVI, descerradas as cortinas que encobriam o espetculo de novos mundos, e da-da a facilidade de pr a leitura das obras literrias ao alcance de todos, graas ao desenvolvi-mento da imprensa, devia fazer cessar a superstio do passado, mostrar o caminho do futuro e ditar a necessidade de se exprimirem os escritores em linguagem que todos entendessem. Re-solveram-se a faz-lo. Serviram-se da linguagem viva de fato, como o demonstram os dilogos das comdias de ento, que reproduzem o falar tradicional da gente do povo. Trariam estes di-logos os caractersticos gramaticais do portugus antigo, se fosse este ainda o idioma corrente (Op. cit., p. IV e V).

    Pelas consideraes acima e as que vm a seguir, V-se que mestre Said Ali ente-

    dia que, no portugus antigo ou arcaico, se poderiam estabelecer duas subdivises bem

    ntidas, como, alis, j fizeram Carolina Michalis de Vasconcelos: um patrimnio lin-

    gstico anterior ao inicio da prosa histrica e outro iniciado com ela, ou se usaria tal-

    vez antes.

  • 36

    Embora Said Ali no propusesse datas pois as considerava prematuras diante do

    estado em que se achavam, quela quadra, os estudos e as edies de textos de lngua

    antiga - , essas suas consideraes correm mito prximas quilo de D. Carolina quando

    afirmava que dividia o portugus arcaico em duas fases: o perodo trovadoresco at

    1350 eo da prosa histrica verdadeiramente nacional, com as Crnicas de Ferno Lopes

    frente.

    Por fim, cabe aqui transcrever as consideraes de Said Ali sobre a dificuldade de

    periodizao, dificuldade que no minimizei no presente trabalho:

    Nos sculos que precederam a era quinhentista claro que a linguagem sofreu tambm evo-luo. Entre os antigos autos de partilha e a crnica de D. Joo I palpvel a diferena. Seria contudo prematura qualquer subdiviso do portugus antigo, pois que nos faltam ainda muitos documentos e de vrios cdices publicados reta a saber a data certa em que foram pela primeira vez escritos (Op.cit., p. V).

    9- Paul Teyssier

    O notvel mestre francs a quem todos devemos um profundssimo estudo sobre a

    lngua de Gil Vicente e um informadssimo manual de lngua portuguesa com a abran-

    gncia do portugus de Portugal e do Brasil alm de vrios outros estudos importantes

    e originais retoma, na sua Histria da lngua portuguesa, o problema da periodizao,

    conforme se viu no incio deste trabalho.

    Segundo a lio do mestre francs em parte ainda nas pegadas de D. Carolina

    Michallis de Vasconcelos -, a histria da lngua portuguesa est dividida em dois gran-

    des momentos: o primeiro, em que o portugus no se distingue do galego, falado na

    provncia (hoje espanhola) da Galiza, e que se estende at o sculo XIV (de 1200 a a-

    proximadamente 1350), e o segundo momento, o que chama portugus europeu, que vai

    do sculo XIV aos nossos dias.

    justamente este segundo momento que o mestre Teyssier divide em arcaico

    (que vai do sc. XIV a Cames, no sculo XVI) e o moderno (que comea com ele e se

    estende at nossos dias).

    Das pginas 24 a 33, traa Teyssier um esboo do sistema gramatical do galego-

    portugus e, das pginas 40 a 74, comenta, com muita propriedade e erudio, os fen-

  • 37

    menos lingsticos mais importantes que estremam essa fase primitiva das fases subse-

    qentes do portugus europeu do sculo XVI aos nossos dias.

    Nessas pginas da Histria da lngua portuguesa, Teyssier rene e resume, com

    mo de mestre, dados importantes da diacronia do portugus, frutos que so da pesquisa

    no s de notveis historiadores do nosso idioma, mas ainda oriundos de pesquisas pes-

    soais. Infelizmente, ressaltar o valor dessa contribuio extrapola os limites e os objeti-

    vo do presente trabalho.

    *

    * *

    Verifica-se, portanto, que a periodizao corrente nos manuais de gramtica hist-

    rica da lngua portuguesa foi esboada por Adolfo Coelho e aperfeioada por Leite de

    Vasconcelos. A proposta de Said Ali de considerar uma nova fase a partir do sculo

    XVIII ou sculo XIX, o portugus hodierno - , apesar da sua extrema validade, no foi

    tomada em considerao pelos autores brasileiros e portugueses. J a sugesto de Epif-

    nio Dias, pelo fato de no ter o mestre explicitado sua lio e pela ambivalncia do con-

    ceito em que tomou a fase a que chamou portugus arcaico mdio, jamais mereceu se-

    quer referncia especial nos livros especializados em histria da lngua portuguesa.

    Assim sendo, podem-se resumir as principais propostas de periodizao aqui e-

    xaminadas, com exceo, naturalmente, das primeiras tentativas arroladas no incio des-

    te captulo, em que no se cogitou do estabelecimento de fases histricas organicamente

    concebidas, bem como das consideraes pouco pertinentes diacronia da lngua portu-

    guesa tecidas pelo historiador e fundador da cincia diplomtica em Portugal, Joo Peri-

    ador e fundador da cincia diplomtica em Portugal, Joo Pedro Ribeiro, na Dissertao

    V Sobre o idioma, estilo e ortografia dos nossos documentos e monumentos (Disser-

    taes chronologicas e criticas, tomo I, 181-198):

    1) Antnio das Neves Pereira

    1 poca: da fundao do Reino a D. Afonso V

    2 poca: D. Joo II D. Sebastio

    3 poca: D. Sebastio XVIII

  • 38

    2) F. Adolfo Coelho

    1 diviso:

    a) Perodo de sincretismo: incios ao surgimento de uma literatura gramatical e le-

    xicolgica (XVI)

    b) Perodo de disciplina gramatical: XVI aos nossos dias

    2 diviso:

    a) fins do sc. XIII comeo do XV

    b) curta fase de transio (XV-XVI) at nossos dias

    3) M. Pacheco da Silva Jnior

    a) antigo: XIII-XIV

    b) mdio: XV

    c) moderno: a partir do sc. XVI

    4) J. Leite de Vasconcelos

    a) arcaico ou antigo: XII meados do sc. XVI

    b) moderno: XVI-XX

    5) Carolina Michalis de Vasconcelos

    a) arcaico (perodo trovadoresco: XII-1350

    ( prosa histrica: 1350-XVI

    b) moderno: XVI aos nossos dias

    6) A. Epifnio da Silva Dias

    a) arcaico: XII fins da 1 metade do sc. XVI

    b) arcaico mdio: ambguo

    c) moderno: XVIII ou XIX-XX

    7) M. Said. Ali

    a) antigo: XII aos primeiros anos do sc. XVI

  • 39

    (quinhentista: primeiros anos de 1500 1599

    b) moderno (seiscentista: 1600-1699

    (setecentista: 1700-1799

    c) hodierno: XVIII ou XIX-XX

    8) Paul Teyssier

    - perodo galego-portugus: XIII-1350 (aproximadamente)

    ( arcaico: XIV-XVI (Cames)

    - perodo portugus europeu (moderno: XVI (Cames) at aos nossos dias.

  • 40

    CAPTULO II

    NA TENTATIVA DE UMA NOVA PROPOSTA

    Examinadas, cuidadosamente, as sugestes at aqui apresentadas e levando-se em

    conta os resultados das investigaes dos historiadores da lngua portuguesa, apresento,

    neste captulo, considerao dos estudiosos, a seguinte proposta de periodizao das

    fases histricas da lngua portuguesa, tomando-se como pontos de referncia fenmenos

    lingsticos balizadores com privilgio, por motivos fceis de entender, dos fatos mor-

    folgicos e sintticos sobre os fonticos, fonolgicos e lexicais:

    Fases histricas da lngua portuguesa

    a) arcaica: vai do sc. XIII ao final do XIV b) arcaica mdia: vai do sc. XV 1 metade do sc. XVI c) moderna: vai da 2 metade do sc. XVI ao final do sc. XVII d) contempornea: vai do sc. XVIII ao XX

    Passo a enumerar as razes de ordem lingstica que, suponho, justificam os limi-

    tes fixados no quadro acima, insistindo, mais uma vez, na lio dos mestres que previ-

    nem no se poderem traar com mais rigor os limites entre os diversos perodos histri-

    cos de uma lngua, j que, consoante as palavras de Said Ali, as alteraes lingsticas

    no dependem de calendrio, nem ms do ano em que o sculo acaba ou comea

    (Gramtica histrica, IV). J disse noutro lugar e creio oportuno repetir: guiei-me fun-

    damentalmente pela freqncia relativa do emprego da forma lingstica eleita como ba-

    liza, sem deixar de levar em conta a evidncia da variedade diafsica para caracterizar

    um gnero literrio ou determinados tipos de personagens de obras literrias.

    evidente, outrossim, que, como toda proposta, esta de carter provisrio, pois

    que a continuidade das pesquisas sincrnicas e diacrnicas estas, hoje, mais raras que

    aquelas nos pode confirmar os limites estabelecidos ou ento ir revelando a freqncia

  • 41

    de outros fatos lingsticos at aqui postos na penumbra que passe a recomendar subdi-

    vises naturais num balizamento que abarca um discurso de tempo relativamente largo.

    *

    * *

    1 fase: arcaica