evanildo bechara ensino da gramatica opressao liberdade

Upload: eduardevertom3097

Post on 13-Jul-2015

2.147 views

Category:

Documents


90 download

TRANSCRIPT

ENSINO DA GRAMTICA OPRESSO? LIBERDADE? EVANILDO BECHARA SRIE PRINCPIOS 1 a escola e a chamada crise do idioma A crise com que a escola se defronta tem razes mais profundas do que uma simples verificao da escassez de recurso e do desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docente e discente. A nosso ver, uma anlise mesmo superficial permite apontar trs ordens de crises independentes, mas estreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ao da escola. Recebendo o aluno j possuidor de um saber lingstico prvio limitado oralidade, a escola no o leva a desenvolver esse potencial enriquecendo a sua expresso oral e permitindo-lhe criar, paralelamente, as condies necessrias para uma traduo cabal, efetiva e eficiente, expressiva e coerente (falando ou escrevendo) de suas idias, pensamentos e emoes. A primeira crise na ordem institucional, na prpria sociedade, que, de uns tempos para c, seguindo as pegadas de uma tendncia mundial do aps-guerra, privilegiou o coloquial, o espontneo e o expressivo, renovando, consideravelmente, a lngua popular e o argot. Este movimento, positivo em sua essncia, trouxe, pela incompreenso e modismo de muitos, uma conseqncia nefasta, medida que o privilegiamento da oralidade estimulou o desprestgio da tradio escrita culta, j que se defendeu sem ser praticado afetivamente pelos escritores, pois nunca deixaram de contemplar a sua obra como arte que o verdadeiro bom estilo aquele que se aproxima da espontaneidade popular, ou, ento, aquele que se despe da artificialidade do estilo cultivado. A desinformao das pessoas e a crescente substituio da leitura pelos meios de comunicao de massa no permitiram ver o quanto havia de erro na suposio de que os modernistas, aceitando a decisiva influncia popular, admitiram todas as alteraes de linguagem, ainda aquelas que destruam as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma, como dizia Machado de Assis. Tudo vlido na lngua, desde que se logre comunicar-se. A tendncia influenciou decisivamente os costumes lingsticos de tal modo que, no portugus do Brasil, a distncia entre o nvel popular e o nvel culto ficou to marcada que, se assim prosseguir, acabar chegando a se parecer com o fenmeno verificado no italiano ou no alemo, por exemplo, com a distncia entre um dialeto e outro. A expanso vitoriosa da crnica, especialmente da crnica do quotidiano vazada em lngua tambm do quotidiano, alargou a influncia do coloquial dentro da escola, j que as antologias para fins didticos so praticamente constitudas de crnicas. O coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um elaborado e consciente artesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal no dia-a-dia de sala de aula. O resultado que os alunos, no sendo alertados para o propsito estilstico que ins pira a opo lingstica, limitando-se a essa leitura, tm perdido o contacto com os tradicionais textos clssicos e, com isto, a oportunidade de extrair deles subsdios para o seu enriquecimento idiomtico, especialmente no campo da sintaxe e do lxico. E assim perde a escola o apoio que lhe poderia dar a literatura no aperfeioamento da educao lingstica dos alunos. A segunda crise na universidade, j que a lingstica ainda no conseguiu constituir-se definitivamente, desdobrando-se em diversas lingsticas que discutem seu objeto, suas tarefas e suas metodologias. Apresentadas ora paralela ora conflitivamente, a verdade que as teorias lingsticas ainda no chegaram a consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrio funcionalintegral do saber elocucion do saber idiomtico e do saber expressivo.

A terceira crise na escola, na medida em que, no se fazendo as distines necessrias entre gramtica geral, gramtica descritiva e gramtica normativa, a ateno do professor se volta para os dois primeiros tipos de gramtica, desprezando justamente a gramtica normativa que deveria ser o objeto central de sua preocupao e, em conseqncia, despreza toda uma srie de atividades que permitiriam levar o educando educao lingstica necessria ao uso efetivo do seu potencial idiomtico. 2 Linguagem e educao lingstica Tradicionalismo e mudana O ttulo educao lingstica no novo nem cedo conseguiu impor-se tal como hoje se procura entender. Comeou por merecer certa preocupao entre os lingistas, passando depois a ser considerado, entre pedagogos e professores, um domnio puramente tcnico-didtico. Hoje se constitui num promissor campo de pesquisa e de resultados para a lingstica e a educao, pondo claro, como bem disse o professor italiano Raffaele Simne, que a linguagem no apenas uma matria escolar entre as outras, mas um dos fatores decisivos ao desenvolvi mento integral do indivduo e, seguramente, do cidado. L fora, os resultados de estudos empreendidos por conhecidos representantes da pesquisa lingstica e educacional j repercutiram nos programas e currculos das universidades e das escolas de ensino mdio. Entre ns, onde tem sido tnue o fluxo de influncia cientfica dessas pesquisas, explodiu uma reao ao que se convencionou chamar pejorativamente tradicionalismo e a mudana que se fazia necessria em vrios pontos acabou por produzir resultados desastrosos. oportuno lembrar que, de todos os componentes do currculo das escolas de ensino mdio, foram os textos destinados ao ensino de lngua portuguesa os que mais sofreram com a onda novidadeira, introduzindo, alm da doutrina discutvel, figuras e desenhos coloridos to extemporneos e desajustados, que aviltaram o tradicionalismo e insultaram a dignidade por que sempre se pautaram os textos escolares entre ns. A comparao entre um livro para ensino da lngua portuguesa e outro para o ensino da matemtica, da histria ou da geografia, quase nos leva a retirar o primeiro da linha do que se costuma chamar compndio didtico, para inclu-lo no rol dos antigos e coloridos almanaques distribudos ao incio de cada ano, como os tornados clebres almanaques do Capivarol, esquecido produto farmacutico. Muito lucrariam os alunos se esses produtos de uma pretendida revoluo educacional guardassem a dignidade e a soma de boas informaes que caracterizaram o Almanaque Garnier, por exemplo. J que estamos fazendo uma crtica a certas inovaes perturbadoras e pouco producentes que muitos compndios, luz de uma didtica formal ou informal, pretenderam introduzir no ensino da lngua portuguesa, na dcada de 60, cabe um comentrio acerca do privilegiamento da lngua oral, espontnea, em relao lngua escrita. Deveu-se o fenmeno, cremos ns, a duas ordens de fatores: uma de natureza lingstica, outra de natureza poltica. As cincias da linguagem vieram patentear que as lnguas histricas so fenmenos eminentemente orais e que o cdigo escrito outra coisa no seno um equi valente visvel do cdigo oral, que, de falado e ouvido, passa a ser escrito e lido. Assim sendo, a lingstica norte-americana, especialmente ela, pde desenvolver rgidos e precisos modelos de descrio de lnguas indgenas que jamais conheceram, de modo sistemtico, a trans posio escrita do discurso falado. Esta possibilidade de uma metodologia com rigor cientfico aplicada a lnguas grafas parece que estimulou em muitos estudiosos bloomfieldianos certa desateno ao cdigo escrito, considerando-o at campo que extrapolava a investigao lingstica, Tal atitude chegou a provocar a crtica de Gleason, autor de um dos melhores manuais de lingstica descritiva de orientao norte-americana. Essa viso distorcida da realidade incentivou outro passo adiante dado por alguns lingistas, tambm em geral norte-americanos; a crtica natureza normativa da gramtica tradicional, com a defesa de

que se deve deixar a lngua livre de qualquer imposio. Um desses lingistas, Robert Hall, em 1950, chegou a intitular ou a aceitar esse ttulo pela editora a um livro seu de divulgao lingstica: Leave your language alone [ a sua lngua em paz], ttulo que, a bem da verdade ou de alguma mudana de orientao, foi alterado na 2. edio. Portanto, vieram pela porta da prpria lingstica e se instalaram nas salas de aula de lngua portuguesa esse privilegiamento do cdigo oral eni relao ao escrito e certa desateno a normas estabelecidas pela tradio e conservadas ou recomendadas no uso do cdigo escrito padro. Por isso, assistiu-se entre ns, na dcada de 60, a um insurgimento contra o ensino da gramtica em sala de aula; em vez de dot-la de recursos e medidas que a tornassem um instrumento operativo e de maior resistncia s crticas que justamente lhe eram endereadas desde h sculos, resolveram muitos professores e at sistemas estaduais de ensino aboli-Ia, sem que trouxessem, sala de aula, nenhum outro sucedneo que, apesar das falhas, pudesse sustentar-se pelo espao curto de uma nica gerao. A bem da verdade, cabe-nos dizer que j se assiste, a partir da dcada de 70, a uma reao a esse estado de coisas, e os livros didticos mais recentes voltam a insistir no padro culto da linguagem, quer nas recomendaes da gramtica normativa, quer atravs da incluso e seleo de textos, literrios ou no, que refletem esse padro. Ainda insistindo nessa ordem de idias, interessante lembrar a indulgncia e at certo elogio com que Ferdinand de Saussure comenta a tarefa da gramtica tradicional, de inspirao grega. Logo na introduo do Cours de linguistique gnrale, ao referir-se polissemia do termo gramtica, diz que essa gramtica tradicional est fundada na lgica e desprovida de toda a viso cientfica e desinteressada da prpria lngua, porquanto o que se pretende unicamente dar regras para distinguir as formas corretas das incorretas; uma disciplina normativa, muito distante da observao pura, o seu ponto de vista necessariamente restrito 2 A outra ordem de fatores procede da poltica, ou, para no desmerecer uma atividade nobre, de certas teses populistas e demaggicas, especialmente no que concerne educao lingstica de adultos, segundo as quais de vem os oprimidos ficar com sua prpria lngua e no aceitar a da classe dominante. Ora, a educao lingstica pe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o saber lingstico prvio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicao social, mas tambm no lhe furta o direito de ampliar, enriquecer e variar esse patrimnio inicial. As normas da classe dita opressora e dominante no sero nem melhores nem piores, ou as normas da lngua literria no sero nem melhores nem piores do que as usadas na lngua coloquial. Como bem lembrou o professor Raffaele Simone , enquanto a posio populista perpetua a segregao lingstica das classes subalternas, a edu cao lingstica dever ajudar a sua liberao. A tese populista do ponto de vista democrtico to falha quanto a tese que combate, pois ambas insistem num velho erro da antiga educao lingstica, j que ambas so de natureza monolnge, isto , s privilegiam uma variedade do cdigo verbal, ou a modalidade dita culta (da classe dita dominante ou opressora), ou a modalidade coloquial (ou da classe dita oprimida). Gramtica e ensino Quem lida com o ensino da gramtica na escola sabe que uma lngua histrica (como a portuguesa, a inglesa, a alem, a italiana etc.) um conjunto de sistemas que apresentam entre si coincidncias e diferenas, tais como observamos na comparao de outros sistemas lingsticos. De modo que nenhum falante conhece toda uma lngua histrica, mas sim usa uma variedade sintpica (um dialeto regional), sinstrtica (um nvel social) e sinfsica (um estilo de lngua). claro que esse mesmo falante est altura de entender mais de um sistema lingstico de sua lngua histrica, pois que est em condies de reconhecer que existem outros falantes que utilizam a lngua diferentemente dele. Chega at t perceber uma diacronia, pois que reconhece em muitos usos o ar da arcaicidade ou de novidade que assumem certos usos que pratica para extrair deles recursos estilsticos ou que ouve ou l a outrem. Assim sendo, a rigor, cada modalidade da lngua tomada homognea e unitariamente, ou, em outros ter mos, toda lngua funcional como a entende o lingista Eugenio Coseriu tem a sua gramtica

como reflexo de uma tcnica lingstica que o falante domina e que lhe serve de intercomunicao na comunidade a que pertence ou em que se acha inserido. Como bem lembra esse mestre, constitui aspecto fundamental da linguagem o manifestar-se ela sempre como lngua: conquanto criao, isto , produo contnua de elementos novos, e, portanto, neste sentido, liberdade, por outro lado, a linguagem , ao mesmo tempo, historicidade, tcnica histrica e tradio, vnculo com outros falantes presentes e passados: em suma, solidariedade com a histria atual e com a histria anterior da comunidade dos falantes (. . .). No se trata, entretanto, de uma limitao da liberdade (como vez por outra se pensa), mas da dimenso histrica da linguagem, que coincide com a prpria historicidade do homem. Alis, a liberdade humana no arbtrio individual, liberdade histrica e, como quer que seja, a lngua no se impe ao indivduo (em bora isso freqentemente se costume dizer): o indivduo dispe dela para manifestar sua liberdade de expresso. Cada poro de falantes homognea e unitria no se equivoca lingisticamente ao usar a tcnica histrica especfica para manifestar sua liberdade de expresso. Neste sentido, cada falante um poliglota na sua prpria lngua, medida que dispe da sua modalidade lingstica e est altura de descodificar mais algumas outras modalidades lingsticas com as quais entra em contacto, quer aquela utilizada pelas pessoas culturalmente inferiores a ele, como aquelas a servio das pessoas culturalmente superiores a ele. Na escola antiga, o professor cometia o erro de entender como a lngua aquela modalidade culta literria ou no refletida no cdigo escrito ou na prtica oral que lhe seguia o modelo, de todo repudiando aquele saber lingstico aprendido em casa, intuitivamente, transmitido de pais a filhos. Hoje, por um exagero de interpretao de liberdade e por um equvoco em supor que uma lngua ou uma modalidade imposta ao homem, chega-se ao abuso inverso de repudiar qualquer outra lngua funcional, que no seja aquela coloquial, de uso espontneo na comunicao cotidiana. Em ambas as atitudes h realmente opresso, na medida em que no se d ao falante a liberdade de escolher, para cada ocasio do intercmbio social, a modalidade que melhor sirva mensagem, ao seu discurso. No fundo, a grande misso do professor de lngua materna no ensino da lngua estrangeira o problema outro transformar seu aluno num poliglota dentro de sua prpria lngua, possibilitando-lhe escolher a lngua funcional adequada a cada momento de criao e at, no texto em que isso se exigir ou for possvel, entremear v rias lnguas funcionais para distinguir, por exemplo, a modalidade lingstica do narrador ou as modalidades praticadas por seus personagens. Assim sendo, haver opresso em impor, indistintamente, tanto a lngua funcional da modalidade culta a todas as situaes de uso da linguagem, como a lngua funcional da modalidade familiar ou coloquial, nas mesmas circunstncias, a todas as situaes de uso da linguagem, pois que ambas as atitudes no recobrem a complexa e rica viso da lngua como fator de manifestao da liberdade de expresso do homem. Por outro lado, haver liberdade quando se entender que uma lngua histrica no um sistema homogneo e unitrio, mas um diassistema, que abarca diversas realidades diatpicas (isto , a diversidade de dialetos regionais), diastrticas (isto , a diversidade de nvel social) e &afsicas (isto , a diversidade de estilos de lngua), e que cada poro da comunidade lingstica realmente possui de direito sua lngua funcional, que resulta de uma tcnica histrica especfica. Cada valor lingstico que a descrio cientfica depreende s se ope realmente a cada outro valor dentro de uma mesma lngua funcional. Comparar, na descrio, um valor lingstico de determinada lngua funcional com outra lngua funcional cometer, na sincronia, o mesmo erro que antigamente se fazia ao se comparar determinado fato em dois ou mais estdios histricos da lngua. Por exemplo, ao se ensinar o uso tripartido dos demonstrativos este/esse/aquele, no se dir que esta a prtica da lngua portuguesa, mas de certas lnguas funcionais do portugus, como, por exemplo, a modalidade literria culta. Realmente, quem quiser utilizar-se, por algum estmulo cultural ou convenincia estilstica mas sempre dentro de sua liberdade de opo na escolha da lngua

funcional que melhor lhe sirva ao intuito de expresso da lngua funcional culta literria, ter de observar essa sintaxe dos demonstrativos. J, por exemplo, essa norma distinta da norma da lngua familiar ou coloquial (ai. Umgangssprache), em que a diviso se faz apenas entre este uma vez que se muda a ptica da distino: na modalidade culta literria a distino se faz em consonncia com as trs pessoas do discurso, enquanto na modalidade familiar ou coloquial, a distino entre os conceitos perto/longe. claro que, dentro da liberdade de criao de que goza cada lngua funcional em se servir dos valores lingsticos do sistema que se sobrepe a todas as lnguas funcionais concretizadas no discurso, a modalidade coloquial ou familiar pode retomar a distino (aqui uma distino sobre outra distino, isto e, longe/perto + pessoa do discurso) que leva em conta as pessoas do discurso e fazer uso de expresses como: 1 pessoa perto esse aqui 2 pessoa perto esse a 3 pessoa longe aquele ali, acol Em vista disto, no se pode, a rigor, fazer uma descrio lingstica de uma lngua histrica em sua plenitude; a descrio s pode abranger um corpus homogneo e unitrio, vale dizer, uma lngua funcional: sintpica, sinstrtica e sinfsica. As variedades lingsticas que no apresentam oposio de valor so apenas fatos de arquitetura da lngua, ou de estrutura externa, de uma lngua funcional. As variedades que apresentam oposio de valor, constituem fatos de estrutura, ou de estrutura interna, tomando-se aqui os termos arquitetura e estrutura nas acepes propostas por L. Flydal e retomadas por Eugenio Coseriu. A no-considerao desses fatos e de outros, que os modernos lingistas vm pondo em relevo, tem permitido certa crtica injusta gramtica escolar, que vista como a descrio da prpria lngua em sua totalidade histrica, como a descrio do nico uso possvel da lngua. O ensino dessa gramtica escolar, normativa, v lido, como o ensino de uma modalidade adquirida, que vem juntar-se (no contrapor-se imperativamente!) a outra, transmitida, a modalidade coloquial ou familiar. Como bem lembrou o inesquecvel mestre Matoso Cmara, a gramtica normativa em o seu lugar parte, imposto por injunes de ordem prtica dentro da sociedade. um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer lingstica sincrnica com preocupaes normativas. Acredito que o ensino da gramtica normativa resulta da possibilidade de que dispe o falante de optar, no exerccio da linguagem, pela lngua funcional que mais lhe convm expresso. Resulta, portanto, da liberdade de escolha que oferece uma lngua histrica considerada em sua plenitude. uma lngua adquirida cuja tcnica histrica lhe cabe ser ensinada. Transformar essa lngua funcional no modelo universal para todas as situaes de expresso um ato de opresso tanto quanto privilegiar a modalidade coloquial e familiar sobre todas as demais lnguas funcionais disposio dos falantes. Problema diferente acompanhar a descrio de cada lngua funcional a que serve de base gramtica escolar normativa e aquela que reflete o conjunto de normas da modalidade familiar ou coloquial e as alteraes por que passa. claro que h necessidade constante de, em cada uma delas, verificar se as normas depreendidas num determinado momento persistem noutro momento do devenir histrico da linguagem humana. Educao lingstica hoje Trataremos agora de pr em relevo em que aspectos tcnicos e operativos a moderna concepo de educao lingstica contrasta com a antiga e de que maneira dessas diferenas resultam novas condies de funcionamento da linguagem, para cuja consecuo sero necessrias mu danas, s vezes profundas, na metodologia do ensino da lngua portuguesa e no

preparo dos professores que a iro ensinar. Entretanto no se veja a educao lingstica que aqui se prope como uma superposio de dados lingsticos, psicolgicos, didticos e sociolingsticos, deixando aos que nos acompanham a tarefa ingrata de fazer-lhes a sntese ou, quase sempre, o embaralhamento. Conforme acentua Raffaele Simone, desta educao lingstica pro posta tero de surgir conseqncias muito srias. Entre es tas, a exigncia de que toda a produo de materiais didticos para a escola seja profundamente renovada nas idias, procedimentos e estratgias, luz do confronto entre a ao cientfica da universidade e a da experincia dos professores a quem est confiada a tarefa operativa da educao lingstica. Como observa ainda Raffaele Simone , o sistema de educao lingstica tradicional, contra o qual nos batemos, a manifestao especfica de um programa educacional global, cujo sinal instintivo era e ser discriminatrio e seletivo, autoritrio e injusto; . , enfim, o rgido sis tema de processos pragmticos e organizacionais em que este complexo de teoria e ideologia pode transpor-se atividade educativa quotidiana: os currculos (com suas preferncias, suas excluses, suas nfases), as atividades didticas (com os mecanismos que tendem a valorar a criana ou que, ao contrrio, a ignoram), a organizao geral da atividade escolar (com seus horrios, com sua seca separao entre as disciplinas, com o portugus reduzido a disciplina entre as outras e como as outras), a formao dos professores (com sua total, mas no casual, ignorncia das propriedades do potencial lingstico que tm de ensinar) . O centramento na linguagem O primeiro grande ponto que distingue a educao lingstica aqui proposta, da tradicional, que ela agora pretende deixar de ser uma educao centrada na lngua para centrar-se na linguagem. Significa isto que a educao lingstica anseia hoje sair do antigo glotocentrismo, para extrair todos os recursos de uma organizao pronta para poder significar, no dizer do lingista ingls M. A. K. Halliday, que amplia a expresso com que Saussure se refere linguagem como organizao pronta para falar 6 Como a linguagem uma pura faculdade, torna-se possvel que o homem se expresse atravs de sinais fnico -acsticos (como nas lnguas entendidas no seu sentido mais geral), ou de sinais pertencentes a lnguas (aqui entendidas em sentido restrito, como cdigos de comunicao) no-verbais. Centrado como era o aprendizado na lngua verbal escrita e nas suas regras de estrutura e combinaes, punha-se de lado o complexo e rico papel da linguagem no ato de comunicao entre pessoas que vivem em sociedade. Est aqui, cremos, o ponto nevrlgico de uma antiga discusso, que, bem entendido, poder oferecer orientaes mais seguras, mais estimulantes e mais produtivas entre saber portugus e saber gramtica, duas capacidades diferentes, posto que extremamente conexas. As funes da linguagem Outro campo frtil de pesquisa e de mbito operativo o que diz respeito s funes da linguagem, ou seja, os diversos fins a que se destinam os enunciados lingsticos. As funes da linguagem, j postas em evidncia por Bhler, mereceram desde cedo a preocupao dos integrantes do Crculo Lingstico de Praga que sobre elas, especialmente Roman Jakobson, escreveram pginas que se consideraram definitivas at o final da dcada de 60. Como sabemos, levando em conta os cinco elementos necessrios a toda comunicao lingstica emissor, receptor, contexto, cdigo e contacto Jakobson distinguiu as seis seguintes funes: referencial (centrada a mensagem no contexto), emotiva (no emissor), conativa (no receptor), ftica (no contacto), metalingstica (no cdigo) e potica (na mensagem). No incio da dcada de 70, Halliday, em estreita ligao com o grupo de Basil Bernstein, retomou, em ter mos radicalmente novos, a problemtica das funes da linguagem e elaborou, sem pretender esgotar, uma pro posta de sete funes: instrumental, reguladora, interativa ou interpessoal, pessoal, heurstica, imaginativa e representativa.

A primeira--funo, a mais ligada aos modelos da linguagem da criana, a instrumental, atravs da qual se usa a linguagem para obter que determinadas coisas sejam feitas; a funo do Eu quero. A segunda funo, intimamente relacionada com a instrumental, a reguladora, quando se usa a linguagem para regular o comportamento de outrem, a ponto de determinar que se faa ou se deixe de fazer algo desse modo, e no de outro: Voc deixar a mame muito triste se no for dormir agora. Muito prxima da funo reguladora a funo interpessoal, que consiste no uso da linguagem para estabelecer uma interao entre a pessoa e os outros, para incluir ou excluir esses outros do grupo a que a pessoa pertence, para impor status ou para contestar um status imposto, enfim, para manifestar o humor, o ridculo, a decepo e a persuaso. A quarta funo a pessoal, que, muito prxima da anterior, usa a linguagem para manifestao de sua prpria individualidade. Como bem diz Halliday , no se est aqui falando simplesmente de uma linguagem como expresso de desejos e atitudes, mas sim e tambm de um elemento pessoal na funo interativa da linguagem. A funo heurstica da linguagem consiste na indagao da realidade, no uso da linguagem para agir como instrumento na soluo de problemas, na aprendizagem ou no conheci mento de como a linguagem torna essa pessoa capaz de explorar o ambiente em que se insere ou que tem diante de si. A funo imaginativa estabelece uma relao entre a pessoa e o seu ambiente, mas o faz de modo diferente. Aqui a pessoa se serve da linguagem para criar seu prprio mundo, eventualmente imaginrio, mas como desejado. Finalmente, a funo representativa, atravs da qual se faz uma comunicao sobre algo, se expressam pensa mentos. Halliday chega a adiantar, com base numa conhecida tese de Bernstein, que, se fato que o insucesso escolar decorre principalmente de uma insuficincia lingstica, esta insuficincia deve ser entendida como ignorncia ou controle inadequado das funes da linguagem. Por outro lado, lembra que h limitaes no pro cesso de apresentao e aprendizagem, por parte da criana, das funes da linguagem, devendo o professor estar atento evoluo psicocronolgica do aluno, bem como funes ou formas de funes mais complexas s lhe podem ser levadas mediante procedimento educ centrado nesse objetivo. dentro dessa prospectiva, segundo Raffaele Simone 8, que possvel reinterpretar em termos mais inteligentes e atuais a conhecida oposio bernsteiniana entre cdigo restrito e cdigo elaborado, que no se diferenciariam pela amplitude de vocabulrio e de sintaxes que compreendem, mas pelo insuficiente controle das funes ou pelo controle de uma lista reduzida de funes. Para R. Simone , sem entrar em pormenores, a pro posta de Halliday est mais prxima dos objetivos da educao lingstica do que as funes apontadas por Jakobson, e acentua que desenvolver a linguagem, em todas as suas funes, significa no apenas dotar a criana de um cmodo instrumento para superar as dificuldades tcnicas impostas pela educao, mas, e sobretudo, permitir-lhe o acesso a uma variedade de atmosferas que doutra maneira lhe estariam vedadas ou s lhe seriam parcialmente acessveis: o conhecimento (ainda o cientfico, pelo menos nos nveis iniciais, consoante as importantes indagaes de Vygotskij), a socializao, a percepo de si mesma enquanto organismo funcionante e enquanto membro de uma unidade cultural definida, a estabilizao do prprio carter, e assim por diante. Por outro lado, desenvolver apenas algumas funes da linguagem o mesmo que limitar a formao da criana, reduzindo-a mbitos a que lhe d acesso a restrita lista de funes que conhea. Saber fazer com a linguagem tudo o que permitido fazer no significa to-somente adquirir capacidades lingsticas, porm apropriar-se de uma gama de capacidades de outro gnero, estreitamente vinculadas evoluo global da pessoa. Educao lingstica e sistema educacional A educao lingstica orientada por um modelo terico com base cientfica e com possibilidades de ser operacionalizada a ponto de promover modificaes e enriquecimentos na competncia lingstica de provocar, como natural conseqncia, uma reforma de currculo e de atividades didticas. O currculo tradicional que se pe em execuo com vistas educao lingstica se mostra, em geral, na prtica, antieconmico, banal, inatural e, por isso mesmo, improdutivo. Antieconmico por ensinar aos alunos fatos da lngua que eles, ao chegarem escola, j dominam, graas ao saber lingstico prvio (como a funo distintiva dos fonemas, a morfologia flexiva e a sintaxe elementar); banal, porque o tipo de informaes que so subministradas aos alunos nada ou pouco adiantam capacidade

operativa do falante, limitando-se, quase sempre, a fornecer-lhes capacidade classificatria, e, como a lngua no um rol de nomenclatura, a banalidade do aprendizado atinge as propores de um novo suplcio de Tntalo; inatural, porque muitas vezes segue o caminho estruturalmente inverso direo do desenvolvimento lingstico dos alunos, partindo dos componentes lingsticos no dotados de significao para os dotados dela; por exemplo, da fontica e fonologia para a morfologia e, depois, a sintaxe e a semntica. nosso dever enfrentar esse problema, concorrendo para sua soluo. Mas, para esta luta, no basta a colaborao dos que militam na escola de todos os nveis; as autoridades federais e estaduais devero concorrer com os recursos, sempre parcos, de que dispuserem, e o grande concurso que no poder faltar o da sociedade brasileira como um todo, pois o destino da educao se confunde com o prprio destino dessa mesma sociedade. O papel do professor de lngua materna A escola como um todo harmnico e cada matria como um componente desta orquestra tm como escopo e fim essencial a cultura integral dos educandos. A tarefa do professor de lngua materna no que tange execuo de uma poltica de educao lingstica deve ampliar-se e enfileirar-se no rol dos componentes curriculares que permitam chegarem os alunos a essa cultura integral de que falam muitos programas de ensino secundrio. Desde logo, convm ressaltar que no s atravs da aula de lngua portuguesa que o aluno chegar a essa cultura integral; todas as matrias que lhe so ministradas concorrem para esse objetivo maior. Mas acreditamos que na aula de lngua portuguesa que se abre maior espao para tais oportunidades. Ao entrar no mundo maravilhoso das informaes que veiculam os textos literrios e no-literrios, modernos e antigos, ter o professor de lngua materna a ocasio propcia para abrir os limites de uma educao especificamente lingstica. Compete-lhe primeiro ministrar aos seus alunos contedos capazes de lev-los compreenso do mundo que os cerca, nos mais variados campos do saber. Tambm certo que no desejamos ampliar a tarefa do professor portuguesa, j de si complexa e di fcil, para transform-lo num professor de cultura geral; mas queremos insistir no fato de que tal professor, com base nas informaes de um material que constante e amplamente utiliza em aula, pode, ao lado da educao lingstica que lhe compete especificamente ministrar, oferecer a seus alunos numerosos subsdios ou para diretamente enriquecer a sua cultura nas reas do saber, ou os estimulando a ler e consultar uma bibliografia especializada para que atinjam essa cultura integral. tambm evidente que o. primeiro mestre a se beneficiar desse enriquecimento cultural dos educandos o prprio professor de lngua materna, porquanto, ampliando os seus conhecimentos numa rea de maior extenso, os alunos tero primeiro mais assunto para comunicar a seus semelhantes, e depois estaro mais aptos a traduzi-los com maior eficincia e com maior preciso idiomtica. Tambm desejamos enfatizar que esta nossa viso no simplesmente repete um conhecido procedimento didtico de correlao horizontal de matrias constantes dos cursos de 1.0 e 2.0 graus, mas o enriquece com o aproveitamento de outras cincias que podem ser trazidas sala de aula, sem preocupao de rigorosa sistematizao. So informaes ministradas ao sabor da oportunidade, mas veiculadas com o propsito certo de contribuir para a cultura integral do aluno. A primeira rea do saber a merecer a constante preocupao formativa do professor de lngua materna a prpria linguagem e a sua manifestao concreta atravs das lnguas histricas (portuguesa, inicialmente). Melhor do que ns, di-lo o genial lingista italiano Antonino Pagliaro: Como em todas as cincias, o valor humano da gramtica, antes de ser didtico e normativo, formativo. Ele leva a mente a refletir sobre uma das criaes mais importantes e humanamente mais vinculativas, de cuja constituio, de outro modo, nos no preocuparamos mais do que com o mecanismo da circulao do sangue ou da respirao (pelo menos enquanto funcionam bem!). Com tudo a palavra uma atividade consciente, e a adeso a um sistema lingstico diferente daquele a que pode ramos chamar natural, como a aquisio de uma lngua comum, , em substncia, um fato de ordem volitiva. A reflexo sobre a constituio e os valores desse sistema desenvolve e aperfeioa a conscincia lingstica que tambm uma conscincia esttica; simultaneamente e por meio das

anlises das correlaes e das oposies que constituem o seu carter funcional, habitua a mente a descobrir no pensamento discursivo as formas que foram elevadas a uma funo cognoscitjva mais alta no pensa mento racional 10 O contacto com uma lngua nos permite observar numerosos fatos de ordem extralingstjca que atuam nas relaes entre palavras e coisas, lngua e pensamento, O primeiro deles , sem dvida, o que vrios lingistas denominam afetividade e que vem a ser uma srie de alteraes e desvios causados na lngua pelos estados psquicos emocionais em que est envolvido o falante. Estas transformaes afetam todo o material lingstico, dos sons estrutura das palavras, da seleo vocabular construo das frases. Nesta ordem de fatores, viram tambm alguns psicanalistas, com Freud frente e, s vezes, com certo exagero , a origem de muitos erros de fala e de escrita nos chamados pensamentos marginais, que, existentes com represso no subconsciente, reaparecem e influem no enunciado de fosSos pensamentos, sem que disso, muitas vezes, nos demos conta. As pesquisas da linguagem Estes estados afetivos se traduzem por complexos mecanismos lingsticos e extralingsticos que os falantes deflagram no seu potencial lingstico e que tm merecido anlises dos investigadores da linguagem humana. No s a utilizao artstica dos fonemas, o trnsito do acento intelectual ao acento afetivo, a perda da fora expressiva de certos vocbulos que passam a elementos gramaticais banalizados, a colocao do adjetivo com re percusses no sentido do sintagma, mas tambm o emprego de determinados componentes lingsticos servem para sugerir situaes psicolgicas ou at marcas de traos emocionais de personagens. interessante, por exemplo, o emprego que da interjeio hein faz Jos Lins do Rego para caracterizar exclusivamente os estados de presso psicolgica nas situaes anormais que enfrenta o capito Lula de Holanda no romance Fogo morto, como, por exemplo, nesta passagem, onde o excesso de repetio parece querer pr pelos olhos do leitor esta particularidade: Amizade gritou Seu Lula ento o senhor me aparece para me ameaar e ainda me fala em amizade, hein? Pois o que lhe digo, estou na paz. No fao acordo nenhum, hein? no fao acordo nenhum, hein? Amlia, vem c. E quando Amlia chegou, o homem se levantou com respeito. Olha, Amlia, este homem est a com a histria de (p. 178 da 10..a ed. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1970.) O estudo dos elementos vivos da lngua, especial mente da lngua falada como investigou a disciplina conhecida pelo nome de geografia lingstica conforme a praticaram Gilliron, Jaberg e Jud, entre outros , mostrou as conseqncias advindas da necessidade que sente o homem de exprimir-se com clareza, evitando confuses ou rudos na mensagem, provocados especialmente pela homonmia ou homofonia. Por outro lado, estas pesquisas mostram a pouca eficcia expressiva dos vocbulos de pequeno volume fontico, o que leva, quase sempre, a serem os monosslabos substitudos, no devenir histrico, por concorrentes de maior extenso. Parece que se repete na vida da linguagem o mesmo princpio de sobre vivncia do mais forte em detrimento do mais fraco, taI como ocorre na vida e seleo animal. Dentro deste princpio, ou muitos monosslabos no resistem ao do desgaste fontico atravs do tempo, ou o vocbulo afetado aumenta, com auxlio de elementos prepositivos ou pospositivos, o seu volume fontico e garante a sua sobrevivncia na lngua, quando no opta por buscar uma nova palavra, do prprio acervo domstico ou de em prstimo a Outro idioma. Outra lio que as pesquisas da vida da linguagem nos revelam a ntima relao entre lngua e cultura, no pressuposto de que a histria da lngua significa, para os adeptos da chamada escola idealista com Vossier frente , histria artstica no sentido mais lato do termo, pois representa um ramo da histria da cultura. Mudado o eixo da causalidade lingstica para o campo da histria cultural, tenta-se buscar para as transformaes ocorridas no idioma razes diferentes das que comumente a escola positivista prescreve. Assim, por exemplo, o incremento do chamado artigo partitivo em francs passou a ser explicado, pelos idealistas, no mais pela criao nova com que

contou essa lngua suprir o enfraquecimento e posterior ausncia da pronncia do -s final, por volta de 1300, p a oposio gramatical singular/ /plural, mas por uma nova atitude espiritual do povo francs que, nessa poca, se acostumou a tratar o todo com viso de comerciante, para quem tudo objeto de medida e trfico, contvel e divisvel. Ainda sem sair do campo das cincias lingsticas, pode o professor ampliar o conhecimento reflexivo do idioma nacional e do mundo objetivo que circunda o falante atravs do estudo e anlise metdica do vocabulrio, importante e extensa zona da lngua que, pelo me nos na concepo tradicional, escapa jurisdio da gramtica. Estudando atentamente o vocabulrio, estabelece o professor, perante seus alunos, a estreita relao que existe entre as palavras e as coisas que, como j preceituava este sempre atual Comnio na sua Didactica magna, em 1627, no devem ser estudadas separadamente, uma vez que as coisas separadas das palavras nem existem, nem se entendem; mas enquanto esto unidas, existem aqui ou alm e desempenham esta ou aquela funo Infelizmente entre ns no surtiram os efeitos esperados as inteligentes propostas, no mbito do aprendizado do vocabulrio, de Charles Bally, no famoso Trait de stylistique franaise; nem mesmo os esforos do padre Carlos Spitzer no seu precioso Dicionrio analgico da lngua portuguesa, nem os do Prof. Firmino Costa no seu Vocabulrio analgico, nem os do Prof. Antenor Nascentes com o precioso Tesouro da fraseologia brasileira, nem tampouco as pesquisas de Joo Ribeiro nas Frases feitas e nas Curiosidades verbais representaram estmulos suficientemente fortes para que da se passasse a um es tudo sistemtico do lxico portugus dentro do mbito da educao lingstica em nvel de 1.0 e 2. graus. S modernamente contamos com tmidos ensaios cuja influncia benfazeja ainda no se fez sentir. Em livro didtico e nas excelentes e sempre atuais Instrues metodolgicas para execuo do programa de portugus que redigiu em 1942 para o Ministrio de Edu cao e Cultura, s conhecemos a exceo do mestre Sousa da Silveira que, especialmente nos Trechos seletos, deu vrias boas amostras de como se pode interessar inteligentemente o aluno para, atravs do estudo do vocabulrio, alargar os seus horizontes de cultura, relacionar a lngua portuguesa com outras reas do saber humano e despertar no educando o gosto do termo prprio ou a preocupao da busca da palavra mais expressiva. Enveredando pelo estudo do vocabulrio colhido em textos literrios, encontra o professor ensejo suficiente para alargar os horizontes culturais de seus alunos. Uma passagem como aquela de Machado de Assis, no famoso Aplogo da agulha e do novelo de linha, quando o escritor compara os dedos geis da costureira, preparando o vestido da baronesa, com os galgos de Diana para dar a isto uma cor potica permite ao mestre variadas informaes: a primeira, de ordem lingstica, sobre o valor de galgo em contraposio a co, cachorro, ressaltando o aspecto literrio do termo em relao a seus correspondentes ou similares da mesma rea semntica, mas nem por isso com eles combinveis nesta e noutras situaes contextuais; a repousa o primeiro componente daquilo que Machado chamou, com propriedade, a cor potica. O outro componente a aluso fonte, da Mitologia, pois que Diana era, entre os romanos, a deusa da caa. Est aberto o caminho para o professor mostrar o quanto o texto literrio em lngua portuguesa deve a esse recurso potico da Mitologia, de modo que o seu conhecimento se torna imprescindvel a quem desejar descodificar corretamente as freqentes aluses que prosadores e especialmente poetas fazem s divindades mitolgicas greco-romanas. Velhos costumes As vezes, a lngua repositrio de velhos costumes que se apagaram e por isso mesmo, sem a intervenincia da explicao do professor, a palavra ou expresso se mostra ao aluno totalmente destituda de sua fora significativa. Quem no conhece, por exemplo, o modo de dizer: Isso no lhe custou nem um copo dgua? Pois bem. A expresso , como lembrou o nosso maior folclorista Lus da Cmara Cascudo, com base em Alexandre Herculano, uma reminiscncia de multas mnimas para o homicdio do magistrado em conseqncia da de negao de justia 12

Outro costume lembrado pelo referido folclorista o puxo de orelha aos estudantes rebeldes boa disciplina ou ao bom ritmo de estudos. Para os romanos, as orelhas eram a sede da memria, pois estavam consagradas deusa Memria, Mnemosine. O puxo de orelha valia por um processo mnemnico para que o faltoso no se esquecesse de suas obrigaes. Da o costume de puxar as orelhas a algum para que se lembre de alguma coisa, usana vigente nos tempos modernos. Por isso que na stira Apokolokintosis, Sneca faz que Hrcules puxe a orelha de Dispiter para lembrar-lhe que deveria favorecer a Cludio na seqncia dos elogios fnebres dirigidos a esse imperador num esforo a mais para a divinizao. Talvez at, por extenso semntica e valorizao expressiva, esteja nessa relao entre orelha e memria, para denotar aquilo que pelas suas qualidades digno de ser lembrado, o estmulo iniciador do to antigo quanto enigmtico gesto de pegar no lbulo da orelha e exclamar complementariamente da pontinha, da pontinha da orelha, ou, de maneira sinttica, daqui. O gesto parece antiqssimo, e de Portugal chegou at ns. Os literatos portugueses registraram o gesto e a expresso, e os vemos, por exemplo, em Ea de Queirs, quando, em A ilustre casa de Ramires, D. Antnio Vila- lobos convida Gonalo Mendes Ramires: Ouve l! Tu queres hoje cear no Gago, comigo e com o Joo Gouveia? Vai tambm o Videirinha e o violo. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que comprei esta manh a uma mulher da Costa por cinco tostes. Assado peio Gago!... Entendido, hein? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abade de Chandin. Conheo o vinho. daqui, da ponta fina. E Tit, com dois dedos, delicadamente, sacudiu a ponta mole da orelha 13 Na Frana, vinho de uma orelha aquele de excelente qualidade e que se ope ao de duas orei/ias; segundo Cmara Cascudo, os gestos franceses relativos ao vinho duma orelha e vinho de duas orelhas era inclinar a cabea para um lado ou mov-la vrias vezes, duma para outra orelha, desaprovativamente (Op. cit., 155). Um campo interdisciplinar O trabalho do fillogo na manipulao, editorao e explicao do texto literrio o leva a pedir subsdios a vrias disciplinas auxiliares. Entre outras e sem esgotar a lista, alm daquelas especificamente lingsticas ou com elas muito relacionadas (a lingstica, a teoria da litera tura, a teoria da comunicao, a ecdtica, a paleografia, por exemplo) fillogo haurir conhecimentos na est tica, no direito, na histria, na geografia, na etnologia, na etnografia, na filosofia, na teologia, no folclore, na histria da cultura. Trabalhando e explicitando o texto aos seus alunos, a tarefa do professor de lngua materna muito menos complexa, embora isto no signifique que seja muito me nos ampla e muito mais fcil. Da a necessidade de ter esse mestre a seu dispor, em casa e no lugar onde exerce a sua atividade profissional, uma bibliografia seleta onde seus conhecimentos, de toda sorte, possam ser amplia dos e suas dvidas possam ser elucidadas. Da tambm a necessidade de uma renovao nos livros didticos, para que contenham, em doses homeopticas e a nvel do desenvolvimento psicolgico e cultural dos seus leitores, esse tipo de informao complementar sua educao lingstica No menos importante ser tambm o papel do professor universitrio, quer o de lngua portuguesa ou filologia portuguesa no Instituto de Letras , quer o professor de didtica de lngua ou glotodidtica no mesmo institUtO ou na Faculdade de Educao , no sentido de estimular o futuro mestre a nutrir-se dessas informaes e a conhecer uma bibliografia bsica do que lhe ser til na atividade dentro de sala de aula, incutindo neles que sua tarefa maior no fazer de seus alunos um futuro universitrio, um futuro gramtico, fillogo ou lingista, um futuro literato, mas um cidado til e operante na sociedade de que vai tomar parte ativa. 3 O ensino da lngua portuguesa Entre a experincia e as regras

O ensino da lngua materna, desde os gregos e os ro manos, passando pela Idade Mdia e Renascimento at chegar a nossos dias, sempre se confundiu com o aprendizado da gramtica escolstica. Como sabemos, essa gramtica es encerra um conjunto discretamente orgnico elaborado pela Antigidade clssica, a partir de Aristteles e dos esticos, sistematizado pela Idade Mdia e pelo Renascimento, apurado, ao depois, pela filosofia que alimentou a escola de Port-Royal, e retomado, bem ou mal, por algumas correntes lingsticas mais recentes, depois de uma interrupo provocada pela crise do idealismo alemo, no sculo XIX, e o conseqente advento do mtodo histricocomparativo nos domnios da cincia da linguagem. Tem muita razo o genial lingista Antonino Paglia ro 1 quando aponta um equvoco na discusso dos primeiros filsofos sobre se a gramtica seria empeiria, isto , experincia em ato, pura e simples, ou se seria tchne, tcnica, vale dizer, um complexo de regras, de noes, coordenadas por um critrio e destinadas a preencher uma finalidade. Na realidade, a gramtica melhor mereceria, para o lingista italiano, o nome de epistme, cujo significado abrange conjuntamente o saber terico e o saber prtico. Atravs dos anos veio a escola procurando ensinar a lngua materna e as estrangeiras atravs do aprendizado dessa gramtica escolstica sem que ficassem bem definidos os limites da eficcia de mtodo. Esse ensino acabava dando frutos entre os alunos, muito mais pela participao consciente e adeso a um sistema lingstico diferente daquele a que poderamos chamar natural, do que pela manipulao das regras e conceitos aprendidos na aula de gramtica. Mais valiam aos alunos, para aquisio dos recursos idiomticos que lhes permitissem desenvolver e aperfeioar as formas de expresso mais elevadas, o convvio com os textos escritos e o contacto com as pessoas que, falando ou escrevendo, manejavam cabalmente o idioma, do que a lio de gramtica ou o exemplo vivo do gramtico, em geral mau escritor por ter embotada a espontaneidade de expresso pelo permanente policiamento de obedincia s regras por ele ensinadas. Um palco de erudio Com o passar dos tempos, a gramtica se foi enriquecendo com os dados novos trazidos pelos progressos da cincia, da linguagem, e a sala de aula se foi trans formando num palco de erudio que acabava por definhar aqueles jovens alunos ainda no amadurecidos para as prelees universitrias a que os submetiam seus professores. Prefaciando a Sintaxe da lngua portuguesa do professor Leopoldo da Silva Pereira, aparecida em 1858, assim se queixava o mestre Said Ali da situao do ensino naquela quadra, reclamao que cabe como luva aos tempos atuais: Em matria de ensino no h, que me conste, disciplina que nestes dois a trs lustros tanto se tenha mal tratado como a lngua nacional, e o mais curioso que justamente o intuito de metodizar o estudo da gramtica, dando-lhe um cunho cientfico, produziu na prtica um resultado negativo; foram os mestres em busca do mtodo e da ordem e trouxeram-nos a indisciplina. Mas este paradoxo torna-se compreensvel se atendermos a que os nossos professores, em grande parte, embora muito conhecedores da matria que ensinam, no tm o necessrio preparo pedaggico para saber o que se deve ensinar s crianas e o que deve ser reservado para crebros j desenvolvidos capazes de compreender o valor de certas generalizaes e abstraes. Tais professores sabem geralmente tudo menos pedagogia e cuidam que basta empanturrar os espritos em via de formao com toda a sorte de conhecimentos elevados, para que as pobres criaturas as assimilem com a mesma facilidade com que eles, os mestres, as adquiriram. Sentem o indomvel prurido de transmitir as novidades cientficas, quaisquer que sejam, a todos os que os ouvem; e como reduzido o nmero dos adultos dispostos a deliciar-se com a audio dessas ridas doutrinas, procuram as suas vtimas nos meninos que, como alunos, tm o dever de prestar ateno aos mestres, nessas plantas tenrinhas que com um excesso de adubo cientfico definham em vez de se desenvolverem. Joo Ribeiro e o vazio da anlise lgica Com o influxo das gramticas para o francs, ingls e alemo, especialmente as obras de Mason e de Becker, introduziu-se no ensino do portugus a chamada anlise lgica, que, levada ao exagero e a um vazio de s se servir a si mesma, passou a ser, entre muitos professores, o centro de preocupao de sua aula. Quem tinha competncia e habilidade para no transformar seu curso em puras aulas desse

tipo de atividade escolar, procurou novos caminhos. Joo Ribeiro, por exemplo, nas clebres Notas finais sua Gramtica 2, curso superior, assim se manifesta: . .1 sou pessoalmente infenso s doutrinas gerais de anlise lgica, no porque sejam errneas ou inadaptveis ao ensino, mas porque no ensinam coisa alguma do idioma. As questes de anlise lgica so as que mais excitam o interesse dos professores brasileiros. Creio que haver excesso nesta paixo e que resulta do propsito de explicar analiticamente muitas das palavras, idias e frases que so pensadas e s valem como atos sintticos. Nas minhas lies de portugus feitas no Pedagogium do Rio de Janeiro, a anlise lgica foi completamente eliminada por intil e insignificante. Sempre me pareceu que conhecidos os termos essenciais da proposio, todo estudo ulterior e pormenorizado de divises, subdivises e classificaes de frase e talhos de frase, nada ou quase nada aproveita a quem quer estudar a lngua verncula, e faz parte do que antigamente se chamava Gramtica geral filosfica ou sistema mais ou menos lgico aplicvel a todas as lnguas. Tenho visto que muitos alunos de portugus sabem talvez analisar; mas no sabem ler, nem entender o que lem, e ainda menos escrever corretamente, sem falar aqui do que ignoram da histria da lngua. O mtodo que adotei nas minhas aulas foi o da anlise dos vocbulos, isto , a sua formao histrica, a dos elementos morfolgicos e prosdicos, a boa pronncia, a certa significao, o emprego sinttico, a sinonmia, a colocao, as flexes e variaes, isto , em uma palavra, o sentido e a forma, que s se compreendem cabalmente na frase ou no discurso (p. 490). O mtodo adotado por Joo Ribeiro nas aulas do Pedagogium j aparece, por exemplo, com pequenas variaes, nas Noes de anlise fontica, etimolgica e sintxica de Pacheco da Silva Jnior e Jos Ventura Bscoli, sadas em 1888. Um dos mestres que mais se bateram contra o excesso da anlise lgica entre ns foi o professor Silva Ramos, da excelncia de cujas aulas no Colgio Pedro II so unnimes os testemunhos de quantos foram seus alunos e especialmente a atividade magisterial de um Sousa da Silveira. Seus conselhos de como pode o professor pro ceder em sala de aula merecem ser aqui lembrados. No artigo intitulado Explicar ou complicar?, publicado no nmero inicial da Revista de Filologia Portuguesa, em 1924, comenta: Assim se procedia na aula de portugus: lido o trecho, o estudante, por si, ou com o auxlio do mestre, procurava explicar-lhe o sentido, para o qu punha na ordem direta as inverses, substituindo os vocbulos por sinnimos, apontando a significao de cada palavra e as acepes em que podia ser tomada, e, uma vez por outra, convertia o verso em prosa [ . .1 Cumpre-me dizer que, no programa de portugus do Colgio Pedro II, elaborado pelo alto esprito do Conde de Laet, na qualidade de catedrtico do Externato e que tive a honra de subscrever, como catedrtico do Internato, o maior espao dado aos exerccios prticos de composio: cartas, descries, pequenas narrativas; apenas no 2. ano se alude anlise lgica. nesses exerccios que o professor corrige aos alunos os vcios de expresso, em regra, os mesmos que se ouvem c fora, na boca de muitas pessoas que aprende ram a analisar. Tinha muita gente no teatro Assisti o baile Estive a tua espera e voc no apareceu No fala que me perturbas A trs anos que moro nesta casa Conquanto lhe no conhecesse, j lhe estimava, pelas ausncias que me faziam do senhor Aqui no h esse livro, mas pode-se-o mandar buscar No me dou bem nessa terra [ terra onde est]. Fazendo do estudo da gramtica um fim em si mesma, pde-se facilmente observar que tal atividade nem ministrava aos alunos, atravs do conhecimento das normas gramaticais, o conhecimento da lngua, nem tampouco a habilidade expressiva. Num pas como o Brasil, onde as variedades diatpicas so menos acentuadas do que em outras naes, em que a lngua standard ou nacional tem de concorrer com a forte vitalidade dos dialetos locais, a ao do professor se apresenta, neste particular, mais fcil. Mas mesmo assim, trazem os alunos para a escola variedades lingsticas diastrticas ou de carter sociocultural que cabe levar em conta. Enquanto a lngua de casa traduz cabalmente as noes de um mundo e de uma vivncia reduzida, a lngua da escola ir prepar-los, acompanhando o seu desenvolvimento psicolgico e cultural, para descobrir no pensamento discursiVo as formas que foram elevadas a uma funo cognoscitiva mais alta no pensamento racional. Formao, aperfeioamento e controle das competncias lingsticas

Entramos, assim, num dos escopos principais da educao lingstica, que consiste em obviar um dos erros graves do ensino tradicional, vale dizer, no cometer o engano de transformar o monolingismo coloquial do aluno que chega escola no monolingismo culto do aluno que dela se despede. No cabe instituio de ensino a simples substituio da norma coloquial usada na lngua funcional do aluno pela norma culta usada na lngua funcional da escola. Como j se disse, caber ao professor e escola como um todo transformar o aluno num poliglota dentro da sua prpria lngua histrica a portuguesa, em nosso caso. Por outro lado, os objetivos da educao lingstica no se esgotam aqui, mas prosseguiro no esforo metdico e sistemtico de permitir ao aluno cabal controle das diversas funes da linguagem na utilizao dos re cursos expressivos. Em termos gerais, podemos dizer que o objetivo precpuo da escola consiste na formao, aperfeioamento e controle das diversas competncias lingsticas do aluno. Em artigo intitulado Para uma renovao da didtica da lnguamaterna a, o lingista italiano Vincenzo Lo Cascio explana consideraes to oportunas sobre a matria, que, na verdade, nos podem servir como pontos de um programa didtico que o professor deve desenvolver na escola. Em primeiro lugar, Lo Cascio distingue dois tipos de competncia lingstica: A: competncia da descodificao (ou receptiva); B: competncia da produo lingstica (ou ativa). Estas duas distines no domnio da competncia lingstica comportam trs componentes: (1) competncia gerativa (ou lingstica); (II) competncia comunicativa; (III) competncia dos instrumentos lingsticos, isto , competncia dos canais lingsticos e semiticos em geral e da interao desses. No mbito desta ltima competncia devero ser distinguidas mais precisamente (1) competncia auditiva (a) em nvel receptivo A