introdução com evanildo bechara

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ENSINO DA GRAMÁTICA OPRESSÃO? LIBERDADE? EVANILDO BECHARA SÉRIE PRINCÍPIOS 1 a escola e a chamada crise do idioma A crise com que a escola se defronta tem raízes mais profundas do que uma simples verificação da escassez de recurso e do desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docente e discente. A nosso ver, uma análise mesmo superficial permite apontar três ordens de crises independentes, mas estreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ação da escola. Recebendo o aluno já possuidor de um saber lingüístico prévio limitado à oralidade, a escola não o leva a desenvolver esse potencial — enriquecendo a sua expressão oral e permitindo-lhe criar, paralelamente, as condições necessárias para uma tradução cabal, efetiva e eficiente, expressiva e coerente (falando ou escrevendo) de suas idéias, pensamentos e emoções. A primeira crise é na ordem institucional, na própria sociedade, que, de uns tempos para cá, seguindo as pegadas de uma tendência mundial do após-guerra, privilegiou o coloquial, o espontâneo e ‘o expressivo, renovando, consideravelmente, a língua popular e o argot. Este movimento, positivo em sua essência, trouxe, pela incompreensão e modismo de muitos, uma conseqüência nefasta, à medida que o privilegiamento da oralidade estimulou o desprestígio da tradição escrita culta, já que se defendeu — sem ser praticado afetivamente pelos escritores, pois nunca deixaram de contemplar a sua obra como arte — que o verdadeiro bom estilo é aquele que se aproxima da espontaneidade popular, ou, então, aquele que se despe da artificialidade do estilo cultivado. A desinformação das pessoas e a crescente substituição da leitura pelos meios de comunicação de massa não permitiram ver o quanto havia de erro na suposição de que os modernistas, aceitando a decisiva influência popular, admitiram todas as alterações de linguagem, ainda aquelas que destruíam “as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma”, como dizia Machado de Assis. “Tudo é válido na língua, desde que se logre comunicar-se.” A tendência influenciou decisivamente os costumes lingüísticos de tal modo que, no português do Brasil, a distância entre o nível popular e o nível culto ficou tão marcada que, se assim prosseguir, acabará chegando a se parecer com o fenômeno verificado no italiano ou no alemão, por exemplo, -com a distância entre um dialeto e outro. A expansão vitoriosa da crônica, especialmente da crônica do quotidiano vazada em língua também do quotidiano, alargou a influência do coloquial dentro da escola, já que as antologias para fins didáticos são praticamente constituídas de crônicas. O coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um elaborado e consciente artesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal no dia-a-dia de sala de aula. O resultado é que os alunos, não sendo alertados para o propósito estilístico que ins pira a opção lingüística, limitando-se a essa leitura, têm perdido o contacto com os tradicionais textos “clássicos” e, com isto, a oportunidade de extrair deles subsídios para o seu enriquecimento idiomático, especialmente no campo da sintaxe e do léxico. E assim perde a escola o apoio que lhe poderia dar a literatura no aperfeiçoamento da educação lingüística dos alunos. A segunda crise é na universidade, já que a lingüística ainda não conseguiu constituir-se definitivamente, desdobrando-se em diversas lingüísticas que discutem seu objeto, suas tarefas e suas metodologias. Apresentadas ora paralela ora conflitivamente, a verdade é que as teorias lingüísticas ainda não chegaram a consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrição funcional- integral do saber elocucion do saber idiomático e do saber “expressivo”.

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Page 1: Introdução Com Evanildo Bechara

ENSINO DA GRAMÁTICA

OPRESSÃO? LIBERDADE?

EVANILDO BECHARA

SÉRIE PRINCÍPIOS

1

a escola e a chamada crise do idioma

A crise com que a escola se defronta tem raízes mais profundas do que uma simples verificação da escassez de recurso e do desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docente e discente.

A nosso ver, uma análise mesmo superficial permite apontar três ordens de crises independentes, mas estreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ação da escola. Recebendo o aluno já possuidor de um saber lingüístico prévio limitado à oralidade, a escola não o leva a desenvolver esse potencial — enriquecendo a sua expressão oral e permitindo-lhe criar, paralelamente, as condições necessárias para uma tradução cabal, efetiva e eficiente, expressiva e coerente (falando ou escrevendo) de suas idéias, pensamentos e emoções.

A primeira crise é na ordem institucional, na própria sociedade, que, de uns tempos para cá, seguindo as pegadas de uma tendência mundial do após-guerra, privilegiou o coloquial, o espontâneo e ‘o expressivo, renovando, consideravelmente, a língua popular e o argot.

Este movimento, positivo em sua essência, trouxe, pela incompreensão e modismo de muitos, uma conseqüência nefasta, à medida que o privilegiamento da oralidade estimulou o desprestígio da tradição escrita culta, já que se defendeu — sem ser praticado afetivamente pelos escritores, pois nunca deixaram de contemplar a sua obra como arte — que o verdadeiro bom estilo é aquele que se aproxima da espontaneidade popular, ou, então, aquele que se despe da artificialidade do estilo cultivado. A desinformação das pessoas e a crescente substituição da leitura pelos meios de comunicação de massa não permitiram ver o quanto havia de erro na suposição de que os modernistas, aceitando a decisiva influência popular, admitiram todas as alterações de linguagem, ainda aquelas que destruíam “as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma”, como dizia Machado de Assis. “Tudo é válido na língua, desde que se logre comunicar-se.”

A tendência influenciou decisivamente os costumes lingüísticos de tal modo que, no português do Brasil, a distância entre o nível popular e o nível culto ficou tão marcada que, se assim prosseguir, acabará chegando a se parecer com o fenômeno verificado no italiano ou no alemão, por exemplo, -com a distância entre um dialeto e outro.

A expansão vitoriosa da crônica, especialmente da crônica do quotidiano vazada em língua também do quotidiano, alargou a influência do coloquial dentro da escola, já que as antologias para fins didáticos são praticamente constituídas de crônicas.

O coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um elaborado e consciente artesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal no dia-a-dia de sala de aula. O resultado é que os alunos, não sendo alertados para o propósito estilístico que ins pira a opção lingüística, limitando-se a essa leitura, têm perdido o contacto com os tradicionais textos “clássicos” e, com isto, a oportunidade de extrair deles subsídios para o seu enriquecimento idiomático, especialmente no campo da sintaxe e do léxico.

E assim perde a escola o apoio que lhe poderia dar a literatura no aperfeiçoamento da educação lingüística dos alunos.

A segunda crise é na universidade, já que a lingüística ainda não conseguiu constituir-se definitivamente, desdobrando-se em diversas lingüísticas que discutem seu objeto, suas tarefas e suas metodologias. Apresentadas ora paralela ora conflitivamente, a verdade é que as teorias lingüísticas ainda não chegaram a consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrição funcional-integral do saber elocucion do saber idiomático e do saber “expressivo”.

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A terceira crise é na escola, na medida em que, não se fazendo as distinções necessárias entre gramática geral, gramática descritiva e gramática normativa, a atenção do professor se volta para os dois primeiros tipos de gramática, desprezando justamente a gramática normativa que deveria ser o objeto central de sua preocupação e, em conseqüência, despreza toda uma série de atividades que permitiriam levar o educando à educação lingüística necessária ao uso efetivo do seu potencial idiomático.

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Linguagem e educação lingüística

“Tradicionalismo” e mudança

O título educação lingüística não é novo nem cedo conseguiu impor-se tal como hoje se procura entender. Começou por merecer certa preocupação entre os lingüistas, passando depois a ser considerado, entre pedagogos e professores, ç um domínio puramente técnico-didático. Hoje se constitui num promissor campo de pesquisa e de resultados para a lingüística e a educação, pondo claro, como bem disse o professor italiano Raffaele Simõne’, que a linguagem não é apenas uma “matéria” escolar entre as outras, mas um dos fatores decisivos ao desenvolvi mento integral do indivíduo e, seguramente, do cidadão.

Lá fora, os resultados de estudos empreendidos por conhecidos representantes da pesquisa lingüística e educacional já repercutiram nos programas e currículos das universidades e das escolas de ensino médio.

Entre nós, onde tem sido tênue o fluxo de influência científica dessas pesquisas, explodiu uma reação ao que se convencionou chamar pejorativamente tradicionalismo e a mudança — que se fazia necessária em vários pontos — acabou por produzir resultados desastrosos.

Ë oportuno lembrar que, de todos os componentes do currículo das escolas de ensino médio, foram os textos destinados ao ensino de língua portuguesa os que mais sofreram com a onda novidadeira, introduzindo, além da doutrina discutível, figuras e desenhos coloridos tão extemporâneos e desajustados, que aviltaram o tradicionalismo e insultaram a dignidade por que sempre se pautaram os textos escolares entre nós. A comparação entre um livro para ensino da língua portuguesa e outro para o ensino da matemática, da história ou da geografia, quase nos leva a retirar o primeiro da linha do que se costuma chamar compêndio didático, para incluí-lo no rol dos antigos e coloridos almanaques distribuídos ao início de cada ano, como os tornados célebres almanaques do Capivarol, esquecido produto farmacêutico. Muito lucrariam os alunos se esses produtos de uma pretendida revolução educacional guardassem a dignidade e a soma de boas informações que caracterizaram o Almanaque Garnier, por exemplo.

Já que estamos fazendo uma crítica a certas inovações perturbadoras e pouco producentes que muitos compêndios, à luz de uma didática formal ou informal, pretenderam introduzir no ensino da língua portuguesa, na década de 60, cabe um comentário acerca do privilegiamento da língua oral, espontânea, em relação à língua escrita.

Deveu-se o fenômeno, cremos nós, a duas ordens de fatores: uma de natureza lingüística, outra de natureza política. As ciências da linguagem vieram patentear que as línguas históricas são fenômenos eminentemente orais e que o código escrito outra coisa não é senão um equi valente visível do código oral, que, de falado e ouvido, passa a ser escrito e lido. Assim sendo, a lingüística norte-americana, especialmente ela, pôde desenvolver rígidos e precisos modelos de descrição de línguas indígenas que jamais conheceram, de modo sistemático, a trans posição escrita do discurso falado.

Esta possibilidade de uma metodologia com rigor científico aplicada a línguas ágrafas parece que estimulou em muitos estudiosos bloomfieldianos certa desatenção ao código escrito, considerando-o até campo que extrapolava a investigação lingüística, Tal atitude chegou a provocar a crítica de Gleason, autor de um dos melhores manuais de lingüística descritiva de orientação norte-americana.

Essa visão distorcida da realidade incentivou outro passo adiante dado por alguns lingüistas, também em geral norte-americanos; a crítica à natureza normativa da gramática tradicional, com a defesa de

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que se deve deixar a língua livre de qualquer imposição. Um desses lingüistas, Robert Hall, em 1950, chegou a intitular ou a aceitar esse título pela editora a um livro seu de divulgação lingüística: Leave your language alone [ a sua língua em paz], título que, a bem da verdade ou de alguma mudança de orientação, foi alterado na 2. edição.

Portanto, vieram pela porta da própria lingüística e se instalaram nas salas de aula de língua portuguesa esse privilegiamento do código oral eni relação ao escrito e certa desatenção a normas estabelecidas pela tradição e conservadas ou recomendadas no uso do código escrito padrão.

Por isso, assistiu-se entre nós, na década de 60, a um insurgimento contra o ensino da gramática em sala de aula; em vez de dotá-la de recursos e medidas que a tornassem um instrumento operativo e de maior resistência às críticas que justamente lhe eram endereçadas desde há séculos, resolveram muitos professores e até sistemas estaduais de ensino aboli-Ia, sem que trouxessem, à sala de aula, nenhum outro sucedâneo que, apesar das falhas, pudesse sustentar-se pelo espaço curto de uma única geração.

A bem da verdade, cabe-nos dizer que já se assiste, a partir da década de 70, a uma reação a esse estado de coisas, e os livros didáticos mais recentes voltam a insistir no padrão culto da linguagem, quer nas recomendações da gramática normativa, quer através da inclusão e seleção de textos, literários ou não, que refletem esse padrão.

Ainda insistindo nessa ordem de idéias, é interessante lembrar a indulgência e até certo elogio com que Ferdinand de Saussure comenta a tarefa da gramática tradicional, de inspiração grega. Logo na introdução do Cours de linguistique générale, ao referir-se à polissemia do termo gramática, diz que essa gramática tradicional está “fundada na lógica e desprovida de toda a visão científica e desinteressada da própria língua”, porquanto o que se pretende é “unicamente dar regras para distinguir as formas corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito distante da observação pura, o seu ponto de vista é necessariamente restrito” 2

A outra ordem de fatores procede da política, ou, para não desmerecer uma atividade nobre, de certas teses populistas e demagógicas, especialmente no que concerne à educação lingüística de adultos, segundo as quais de vem os “oprimidos” ficar com sua própria língua e não aceitar a da classe dominante.

Ora, a educação lingüística põe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o saber lingüístico prévio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicação social, mas também não lhe furta o direito de ampliar, enriquecer e variar esse patrimônio inicial. As normas da classe dita “opressora” e “dominante” não serão nem melhores nem piores, ou as normas da língua literária não serão nem melhores nem piores do que as usadas na língua coloquial. Como bem lembrou o professor Raffaele Simone , “enquanto a posição populista perpetua a segregação lingüística das classes subalternas, a edu cação lingüística deverá ajudar a sua liberação”.

A tese populista do ponto de vista democrático é tão falha quanto a tese que combate, pois ambas insistem num velho erro da antiga educação lingüística, já que ambas são de natureza “monolíngüe”, isto é, só privilegiam uma variedade do código verbal, ou a modalidade dita “culta” (da classe dita “dominante” ou “opressora”), ou a modalidade coloquial (ou da classe dita “oprimida”).

Gramática e ensino

Quem lida com o ensino da gramática na escola sabe que uma língua histórica (como a portuguesa, a inglesa, a alemã, a italiana etc.) é um conjunto de sistemas que apresentam entre si coincidências e diferenças, tais como observamos na comparação de outros sistemas lingüísticos. De modo que nenhum falante conhece toda uma língua histórica, mas sim usa uma variedade sintópica (um dialeto regional), sinstrática (um nível social) e sinfásica (um estilo de língua). claro que esse mesmo falante está à altura de entender mais de um sistema lingüístico de sua língua histórica, pois que está em condições de reconhecer que existem outros falantes que utilizam a língua diferentemente dele. Chega até t perceber uma diacronia, pois que reconhece em muitos usos o ar da arcaicidade ou de novidade que assumem certos usos que pratica — para extrair deles recursos estilísticos — ou que ouve ou lê a outrem.

Assim sendo, a rigor, cada modalidade da língua tomada homogênea e unitariamente, ou, em outros ter mos, toda língua funcional — como a entende o lingüista Eugenio Coseriu — tem a sua gramática

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como reflexo de uma técnica lingüística que o falante domina e que lhe serve de intercomunicação na comunidade a que pertence ou em que se acha inserido.

Como bem lembra esse mestre, “constitui aspecto fundamental da linguagem o manifestar-se ela sempre como língua: conquanto ‘criação’, isto é, produção contínua de elementos novos, e, portanto, neste sentido, ‘liberdade’, por outro lado, a linguagem é, ao mesmo tempo, ‘historicidade’, técnica histórica e tradição, vínculo com outros falantes presentes e passados: em suma, solidariedade com a história atual e com a história anterior da comunidade dos falantes (. . .). Não se trata, entretanto, de uma limitação da liberdade (como vez por outra se pensa), mas da dimensão histórica da linguagem, que coincide com a própria historicidade do homem. Aliás, a liberdade humana não é arbítrio individual, é liberdade histórica e, como quer que seja, a língua não se ‘impõe’ ao indivíduo (em bora isso freqüentemente se costume dizer): o indivíduo ‘dispõe’ dela para manifestar sua liberdade de expressão”.

Cada porção de falantes homogênea e unitária não se equivoca lingüisticamente ao usar a técnica histórica específica para manifestar sua liberdade de expressão. Neste sentido, cada falante é um poliglota na sua própria língua, à medida que dispõe da sua modalidade lingüística e está à altura de descodificar mais algumas outras modalidades lingüísticas com as quais entra em contacto, quer aquela utilizada pelas pessoas culturalmente inferiores a ele, como aquelas a serviço das pessoas culturalmente superiores a ele.

Na escola antiga, o professor cometia o erro de entender como a língua aquela modalidade culta — literária ou não — refletida no código escrito ou na prática oral que lhe seguia o modelo, de todo repudiando aquele saber lingüístico aprendido em casa, intuitivamente, transmitido de pais a filhos.

Hoje, por um exagero de interpretação de “liberdade” e por um equívoco em supor que uma língua ou uma modalidade é “imposta” ao homem, chega-se ao abuso inverso de repudiar qualquer outra língua funcional, que não seja aquela coloquial, de uso espontâneo na comunicação cotidiana.

Em ambas as atitudes há realmente opressão, na medida em que não se dá ao falante a liberdade de escolher, para cada ocasião do intercâmbio social, a modalidade que melhor sirva à—mensagem, ao seu discurso.

No fundo, a grande missão do professor de língua materna — no ensino da língua estrangeira o problema é outro — é transformar seu aluno num poliglota dentro de sua própria língua, possibilitando-lhe escolher a língua funcional adequada a cada momento de criação e até, no texto em que isso se exigir ou for possível, entremear vá rias línguas funcionais para distinguir, por exemplo, a modalidade lingüística do narrador ou as modalidades praticadas por seus personagens.

Assim sendo, haverá opressão em “impor”, indistintamente, tanto a língua funcional da modalidade culta a todas as situações de uso da linguagem, como a língua funcional da modalidade familiar ou coloquial, nas mesmas circunstâncias, a todas as situações de uso da linguagem, pois que ambas as atitudes não recobrem a complexa e rica visão da língua como fator de manifestação da liberdade de expressão do homem.

Por outro lado, haverá “liberdade” quando se entender que uma língua histórica não é um sistema homogêneo e unitário, mas um diassistema, que abarca diversas realidades diatópicas (isto é, a diversidade de dialetos regionais), diastráticas (isto é, a diversidade de nível social) e &afásicas (isto é, a diversidade de estilos de língua), e que cada porção da comunidade lingüística realmente possui de direito sua língua funcional, que resulta de uma técnica histórica específica.

Cada valor lingüístico que a descrição científica depreende só se opõe realmente a cada outro valor dentro de uma mesma língua funcional.

Comparar, na descrição, um valor lingüístico de determinada língua funcional com outra língua funcional é cometer, na sincronia, o mesmo erro que antigamente se fazia ao se comparar determinado fato em dois ou mais estádios históricos da língua.

Por exemplo, ao se ensinar o uso tripartido dos demonstrativos este/esse/aquele, não se dirá que esta é a prática da língua portuguesa, mas de certas línguas funcionais do português, como, por exemplo, a modalidade literária culta. Realmente, quem quiser utilizar-se, por algum estímulo cultural ou conveniência estilística — mas sempre dentro de sua “liberdade” de opção na escolha da língua

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funcional que melhor lhe sirva ao intuito de expressão — da língua funcional culta literária, terá de observar essa sintaxe dos demonstrativos.

Já, por exemplo, essa norma é distinta da norma da língua familiar ou coloquial (ai. Umgangssprache), em que a divisão se faz apenas entre este uma vez que se muda a óptica da distinção: na modalidade culta literária a distinção se faz em consonância com as três pessoas do discurso, enquanto na modalidade familiar ou coloquial, a distinção é entre os conceitos “perto”/”longe”. É claro que, dentro da liberdade de criação de que goza cada língua funcional em se servir dos valores lingüísticos do sistema que se sobrepõe a todas as línguas funcionais concretizadas no discurso, a modalidade coloquial ou familiar pode retomar a distinção (aqui uma distinção sobre outra distinção, isto e, “longe”/”perto” + “pessoa do discurso”) que leva em conta as pessoas do discurso e fazer uso de expressões como:

1ª pessoa — perto esse aqui

2ª pessoa — perto esse aí

3ª pessoa — longe aquele ali, acolá

Em vista disto, não se pode, a rigor, fazer uma descrição lingüística de uma língua histórica em sua plenitude; a descrição só pode abranger um corpus homogêneo e unitário, vale dizer, uma língua funcional: sintópica, sinstrática e sinfásica.

As variedades lingüísticas que não apresentam oposição de valor são apenas fatos de arquitetura da língua, ou de estrutura externa, de uma língua funcional.

As variedades que apresentam oposição de valor, constituem fatos de estrutura, ou de estrutura interna, tomando-se aqui os termos arquitetura e estrutura nas acepções propostas por L. Flydal e retomadas por Eugenio Coseriu.

A não-consideração desses fatos e de outros, que os modernos lingüistas vêm pondo em relevo, tem permitido certa crítica injusta à gramática escolar, que é vista como a descrição da própria língua em sua totalidade histórica, como a descrição do único uso possível da língua. O ensino dessa gramática escolar, normativa, é vá lido, como o ensino de uma modalidade “adquirida”, que vem juntar-se (não contrapor-se imperativamente!) a outra, “transmitida”, a modalidade coloquial ou familiar.

Como bem lembrou o inesquecível mestre Matoso Câmara, “a gramática normativa É em o seu lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupações normativas”.

Acredito que o ensino da gramática normativa resulta da possibilidade de que dispõe o falante de optar, no exercício da linguagem, pela língua funcional que mais lhe convém à expressão. Resulta, portanto, da “liberdade” de escolha que oferece uma língua histórica considerada em sua plenitude.

É uma língua “adquirida” cuja técnica histórica lhe cabe ser “ensinada”.

Transformar essa língua funcional no modelo universal para todas as situações de expressão é um ato de “opressão” tanto quanto privilegiar a modalidade coloquial e familiar sobre todas as demais línguas funcionais à disposição dos falantes.

Problema diferente é acompanhar a descrição de cada língua funcional — a que serve de base à gramática escolar normativa e aquela que reflete o conjunto de normas da modalidade familiar ou coloquial — e as alterações por que passa. É claro que há necessidade constante de, em cada uma delas, verificar se as normas depreendidas num determinado momento persistem noutro momento do devenir histórico da linguagem humana.

Educação lingüística hoje

Trataremos agora de pôr em relevo em que aspectos técnicos e operativos a moderna concepção de educação lingüística contrasta com a antiga e de que maneira dessas

diferenças resultam novas condições de funcionamento da linguagem, para cuja consecução serão necessárias mu danças, às vezes profundas, na metodologia do ensino da língua portuguesa e no

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preparo dos professores que a irão ensinar. Entretanto não se veja a educação lingüística que aqui se propõe como uma superposição de dados lingüísticos, psicológicos, didáticos e sociolingüísticos, deixando aos que nos acompanham a tarefa ingrata de fazer-lhes a síntese ou, quase sempre, o embaralhamento. Conforme acentua Raffaele Simone, desta educação lingüística pro posta terão de surgir conseqüências muito sérias. Entre es tas, a exigência de que toda a produção de materiais didáticos para a escola seja profundamente renovada nas idéias, procedimentos e estratégias, à luz do confronto entre a ação científica da universidade e a da experiência dos professores a quem está confiada a tarefa operativa da educação lingüística.

Como observa ainda Raffaele Simone , o sistema de educação lingüística tradicional, contra o qual nos batemos, é “a manifestação específica de um programa educacional global, cujo sinal instintivo era e é ser discriminatório e seletivo, autoritário e injusto; . é, enfim, o rígido sis tema de processos pragmáticos e organizacionais em que este complexo de teoria e ideologia pode transpor-se à atividade educativa quotidiana: os currículos (com suas preferências, suas exclusões, suas ênfases), as atividades didáticas (com os mecanismos que tendem a valorar a criança ou que, ao contrário, a ignoram), a organização geral da atividade escolar (com seus horários, com sua seca separação entre as “disciplinas”, com o português reduzido a disciplina entre as outras e como as outras), a formação dos professores (com sua total, mas não casual, ignorância das propriedades do potencial lingüístico que têm de ensinar) “.

O centramento na linguagem

O primeiro grande ponto que distingue a educação lingüística aqui proposta, da tradicional, é que ela agora pretende deixar de ser uma educação centrada na língua para centrar-se na linguagem. Significa isto que a educação lingüística anseia hoje sair do antigo glotocentrismo, para extrair todos os recursos de uma organização pronta para “poder significar”, no dizer do lingüista inglês M. A.

K. Halliday, que amplia a expressão com que Saussure se refere à linguagem como organização pronta “para falar” 6

Como a linguagem é uma pura faculdade, torna-se possível que o homem se expresse através de sinais fônico

-acústicos (como nas “línguas” entendidas no seu sentido mais geral), ou de sinais pertencentes a “línguas” (aqui entendidas em sentido restrito, como códigos de comunicação) não-verbais.

Centrado como era o aprendizado na língua verbal escrita e nas suas regras de estrutura e combinações, punha-se de lado o complexo e rico papel da linguagem no ato de comunicação entre pessoas que vivem em sociedade.

Está aqui, cremos, o ponto nevrálgico de uma antiga discussão, que, bem entendido, poderá oferecer orientações mais seguras, mais estimulantes e mais produtivas entre “saber português” e “saber gramática”, duas capacidades diferentes, posto que extremamente conexas.

As funções da linguagem

Outro campo fértil de pesquisa e de âmbito operativo é o que diz respeito às funções da linguagem, ou seja, os diversos fins a que se destinam os enunciados lingüísticos. As funções da linguagem, já postas em evidência por Bühler, mereceram desde cedo a preocupação dos integrantes do Círculo Lingüístico de Praga que sobre elas, especialmente Roman Jakobson, escreveram páginas que se consideraram definitivas até o final da década de 60. Como sabemos, levando em conta os cinco elementos necessários a toda comunicação lingüística — emissor, receptor, contexto, código e contacto — Jakobson distinguiu as seis seguintes funções: referencial (centrada a mensagem no contexto), emotiva (no emissor), conativa (no receptor), fática (no contacto), metalingüística (no código) e poética (na mensagem).

No início da década de 70, Halliday, em estreita ligação com o grupo de Basil Bernstein, retomou, em ter mos radicalmente novos, a problemática das funções da linguagem e elaborou, sem pretender esgotar, uma pro posta de sete funções: instrumental, reguladora, interativa ou interpessoal, pessoal, heurística, imaginativa e representativa.

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A primeira--função, a mais ligada aos modelos da linguagem da criança, é a instrumental, através da qual se usa a linguagem para obter que determinadas coisas sejam feitas; é a função do Eu quero. A segunda função, intimamente relacionada com a instrumental, é a reguladora, quando se usa a linguagem para regular o comportamento de outrem, a ponto de determinar que se faça ou se deixe de fazer algo desse modo, e não de outro: Você deixará a mamãe muito triste se não for dormir agora. Muito próxima da função reguladora é a função interpessoal, que consiste no uso da linguagem para estabelecer uma interação entre a pessoa e os outros, para incluir ou excluir esses outros do grupo a que a pessoa pertence, para impor status ou para contestar um status imposto, enfim, para manifestar o humor, o ridículo, a decepção e a persuasão.

A quarta função é a pessoal, que, muito próxima da anterior, usa a linguagem para manifestação de sua própria individualidade. Como bem diz Halliday , não se está aqui falando simplesmente de uma linguagem como expressão de desejos e atitudes, mas sim e também de um elemento pessoal na função interativa da linguagem. A função heurística da linguagem consiste na indagação da realidade, no uso da linguagem para agir como instrumento na solução de problemas, na aprendizagem ou no conheci mento de como a linguagem torna essa pessoa capaz de explorar o ambiente em que se insere ou que tem diante de si. A função imaginativa estabelece uma relação entre a pessoa e o seu ambiente, mas o faz de modo diferente. Aqui a pessoa se serve da linguagem para criar seu próprio mundo, eventualmente imaginário, mas como é desejado. Finalmente, a função representativa, através da qual se faz uma comunicação sobre algo, se expressam pensa mentos.

Halliday chega a adiantar, com base numa conhecida tese de Bernstein, que, se é fato que o insucesso escolar decorre principalmente de uma insuficiência lingüística, esta insuficiência deve ser entendida como ignorância ou controle inadequado das funções da linguagem.

Por outro lado, lembra que há limitações no pro cesso de apresentação e aprendizagem, por parte da criança, das funções da linguagem, devendo o professor estar atento à evolução psicocronológica do aluno, bem como funções ou formas de funções mais complexas só lhe podem ser levadas mediante procedimento educ centrado nesse objetivo. Ê dentro dessa prospectiva, segundo Raffaele Simone 8, que é possível reinterpretar em termos mais inteligentes e atuais a conhecida oposição bernsteiniana entre “código restrito” e “código elaborado”, que não se diferenciariam pela amplitude de vocabulário e de sintaxes que compreendem, mas pelo insuficiente controle das funções ou pelo controle de uma lista reduzida de funções.

Para R. Simone , sem entrar em pormenores, a pro posta de Halliday está mais próxima dos objetivos da educação lingüística do que as funções apontadas por Jakobson, e acentua que desenvolver a linguagem, em todas as suas funções, “significa não apenas dotar a criança de um cômodo instrumento para superar as dificuldades técnicas impostas pela educação, mas, e sobretudo, permitir-lhe o acesso a uma variedade de atmosferas que d’outra maneira lhe estariam vedadas ou só lhe seriam parcialmente acessíveis: o conhecimento (ainda o científico, pelo menos nos níveis iniciais, consoante as importantes indagações de Vygotskij), a socialização, a percepção de si mesma enquanto organismo funcionante e enquanto membro de uma unidade cultural definida, a estabilização do próprio caráter, e assim por diante. Por outro lado, desenvolver apenas algumas funções da linguagem é o mesmo que limitar a formação da criança, reduzindo-a âmbitos a que lhe dá acesso a restrita lista de funções que conheça. Saber fazer com a linguagem tudo o que é permitido fazer não significa tão-somente adquirir capacidades lingüísticas, porém apropriar-se de uma gama de capacidades de outro gênero, estreitamente vinculadas à evolução global da pessoa”.

Educação lingüística e sistema educacional

A educação lingüística orientada por um modelo teórico com base científica e com possibilidades de ser operacionalizada a ponto de promover modificações e enriquecimentos na competência lingüística

de provocar, como natural conseqüência, uma reforma de currículo e de atividades didáticas.

O currículo tradicional que se põe em execução com vistas à educação lingüística se mostra, em geral, na prática, antieconômico, banal, inatural e, por isso mesmo, improdutivo. Antieconômico por ensinar aos alunos fatos da língua que eles, ao chegarem à escola, já dominam, graças ao saber lingüístico prévio (como a função distintiva dos fonemas, a morfologia flexiva e a sintaxe elementar); banal, porque o tipo de informações que são subministradas aos alunos nada ou pouco adiantam à capacidade

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operativa do falante, limitando-se, quase sempre, a fornecer-lhes capacidade classificatória, e, como a língua não é um rol de nomenclatura, a banalidade do aprendizado atinge as proporções de um novo suplício de Tântalo; inatural, porque muitas vezes segue o caminho estruturalmente inverso à direção do desenvolvimento lingüístico dos alunos, partindo dos componentes lingüísticos não dotados de significação para os dotados dela; por exemplo, da fonética e fonologia para a morfologia e, depois, a sintaxe e a semântica.

É nosso dever enfrentar esse problema, concorrendo para sua solução. Mas, para esta luta, não basta a colaboração dos que militam na escola de todos os níveis; as autoridades federais e estaduais deverão concorrer com os recursos, sempre parcos, de que dispuserem, e o grande concurso que não poderá faltar é o da sociedade brasileira como um todo, pois o destino da educação se confunde com o próprio destino dessa mesma sociedade.

O papel do professor de língua materna

A escola como um todo harmônico e cada matéria como um componente desta orquestra têm como escopo e fim essencial a cultura integral dos educandos.

A tarefa do professor de língua materna no que tange à execução de uma política de educação lingüística deve ampliar-se e enfileirar-se no rol dos componentes curriculares que permitam chegarem os alunos a essa cultura integral de que falam muitos programas de ensino secundário.

Desde logo, convém ressaltar que não é só através da aula de língua portuguesa que o aluno chegará a essa cultura integral; todas as matérias que lhe são ministradas concorrem para esse objetivo maior. Mas acreditamos que é na aula de língua portuguesa que se abre maior espaço para tais oportunidades. Ao entrar no mundo maravilhoso das informações que veiculam os textos literários e não-literários, modernos e antigos, terá o professor de língua materna a ocasião propícia para abrir os limites de uma educação especificamente lingüística. Compete-lhe primeiro ministrar aos seus alunos conteúdos capazes de levá-los à compreensão do mundo que os cerca, nos mais variados campos do saber.

Também é certo que não desejamos ampliar a tarefa do professor portuguesa, já de si complexa e di fícil, para transformá-lo num professor de cultura geral; mas queremos insistir no fato de que tal professor, com base nas informações de um material que constante e amplamente utiliza em aula, pode, ao lado da educação lingüística que lhe compete especificamente ministrar, oferecer a seus alunos numerosos subsídios ou para diretamente enriquecer a sua cultura nas áreas do saber, ou os estimulando a ler e consultar uma bibliografia especializada para que atinjam essa cultura integral.

É também evidente que o. primeiro mestre a se beneficiar desse enriquecimento cultural dos educandos é o próprio professor de língua materna, porquanto, ampliando os seus conhecimentos numa área de maior extensão, os alunos terão primeiro mais assunto para comunicar a seus semelhantes, e depois estarão mais aptos a traduzi-los com maior eficiência e com maior precisão idiomática.

Também desejamos enfatizar que esta nossa visão não simplesmente repete um conhecido procedimento didático de correlação horizontal de matérias constantes dos cursos de 1.0 e 2.0 graus, mas o enriquece com o aproveitamento de outras ciências que podem ser trazidas à sala de aula, sem preocupação de rigorosa sistematização. São informações ministradas ao sabor da oportunidade, mas veiculadas com o propósito certo de contribuir para a cultura integral do aluno.

A primeira área do saber a merecer a constante preocupação formativa do professor de língua materna é a própria linguagem e a sua manifestação concreta através das línguas históricas (portuguesa, inicialmente). Melhor do que nós, di-lo o genial lingüista italiano Antonino Pagliaro:

“Como em todas as ciências, o valor humano da gramática, antes de ser didático e normativo, é formativo. Ele leva a mente a refletir sobre uma das criações mais importantes e humanamente mais vinculativas, de cuja constituição, de outro modo, nos não preocuparíamos mais do que com o mecanismo da circulação do sangue ou da respiração (pelo menos enquanto funcionam bem!). Com tudo a palavra é uma atividade consciente, e a adesão a um sistema lingüístico diferente daquele a que pode ríamos chamar natural, como a aquisição de uma língua comum, é, em substância, um fato de ordem volitiva. A reflexão sobre a constituição e os valores desse sistema desenvolve e aperfeiçoa a consciência lingüística que é também uma consciência estética; simultaneamente e por meio das

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análises das correlações e das oposições que constituem o seu caráter funcional, habitua a mente a descobrir no pensamento discursivo as formas que foram

elevadas a uma função cognoscitjva mais alta no pensa mento racional” 10

O contacto com uma língua nos permite observar numerosos fatos de ordem extralingüístjca que atuam nas relações entre palavras e coisas, língua e pensamento, O primeiro deles é, sem dúvida, o que vários lingüistas denominam “afetividade” e que vem a ser uma série de alterações e desvios causados na língua pelos estados psíquicos emocionais em que está envolvido o falante. Estas transformações afetam todo o material lingüístico, dos sons à estrutura das palavras, da seleção vocabular à construção das frases. Nesta ordem de fatores, viram também alguns psicanalistas, com Freud à frente — e, às vezes, com certo exagero —, a origem de muitos erros de fala e de escrita nos chamados pensamentos marginais, que, existentes com repressão no subconsciente, reaparecem e influem no enunciado de fosSos pensamentos, sem que disso, muitas vezes, nos demos conta.

As pesquisas da linguagem

Estes estados afetivos se traduzem por complexos mecanismos lingüísticos e extralingüísticos que os falantes deflagram no seu potencial lingüístico e que têm merecido análises dos investigadores da linguagem humana.

Não só a utilização artística dos fonemas, o trânsito do acento intelectual ao acento afetivo, a perda da força expressiva de certos vocábulos que passam a elementos gramaticais banalizados, a colocação do adjetivo com re percussões no sentido do sintagma, mas também o emprego de determinados componentes lingüísticos servem para sugerir situações psicológicas ou até marcas de traços emocionais de personagens. Ë interessante, por exemplo, o emprego que da interjeição hein faz José Lins do Rego para caracterizar exclusivamente os estados de pressão psicológica nas situações anormais que enfrenta o capitão Lula de Holanda no romance Fogo morto, como, por exemplo, nesta passagem, onde o excesso de repetição parece querer pôr pelos olhos do leitor esta particularidade:

— Amizade — gritou Seu Lula — então o senhor me aparece para me ameaçar e ainda me fala em amizade, hein?

— Pois é o que lhe digo, estou na paz.

— Não faço acordo nenhum, hein? não faço acordo nenhum, hein? Amélia, vem cá.

E quando Amélia chegou, o homem se levantou com respeito.

— Olha, Amélia, este homem está aí com a história de

(p. 178 da 10..a ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1970.)

O estudo dos elementos vivos da língua, especial mente da língua falada como investigou a disciplina conhecida pelo nome de geografia lingüística — conforme a praticaram Gilliéron, Jaberg e Jud, entre outros —, mostrou as conseqüências advindas da necessidade que sente o homem de exprimir-se com clareza, evitando confusões ou ruídos na mensagem, provocados especialmente pela homonímia ou homofonia. Por outro lado, estas pesquisas mostram a pouca eficácia expressiva dos vocábulos de pequeno volume fonético, o que leva, quase sempre, a serem os monossílabos substituídos, no devenir histórico, por concorrentes de maior extensão. Parece que se repete na vida da linguagem o mesmo princípio de sobre vivência do mais forte em detrimento do mais fraco, t’aI como ocorre na vida e seleção animal. Dentro deste princípio, ou muitos monossílabos não resistem à ação do desgaste fonético através do tempo, ou o vocábulo afetado aumenta, com auxílio de elementos prepositivos ou pospositivos, o seu volume fonético e garante a sua sobrevivência na língua, quando não opta por buscar uma nova palavra, do próprio acervo doméstico ou de em préstimo a Outro idioma.

Outra lição que as pesquisas da vida da linguagem nos revelam é a íntima relação entre língua e cultura, no pressuposto de que a história da língua significa, para os adeptos da chamada escola idealista — com Vossier à frente —, história artística no sentido mais lato do termo, pois representa um ramo da história da cultura. Mudado o eixo da causalidade lingüística para o campo da história cultural, tenta-se buscar para as transformações ocorridas no idioma razões •diferentes das que comumente a escola positivista prescreve. Assim, por exemplo, o incremento do chamado artigo partitivo em francês passou a ser explicado, pelos idealistas, não mais pela criação nova com que

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contou essa língua suprir o enfraquecimento e posterior ausência da pronúncia do -s final, por volta de 1300, p a oposição gramatical singular/ /plural, mas por uma nova atitude espiritual do povo francês que, nessa época, se acostumou a tratar o todo com visão de comerciante, para quem tudo é objeto de medida e tráfico, contável e divisível.

Ainda sem sair do campo das ciências lingüísticas, pode o professor ampliar o conhecimento reflexivo do idioma nacional e do mundo objetivo que circunda o falante através do estudo e análise metódica do vocabulário, importante e extensa zona da língua que, pelo me nos na concepção tradicional, escapa à jurisdição da gramática. Estudando atentamente o vocabulário, estabelece o professor, perante seus alunos, a estreita relação que existe entre as palavras e as coisas que, como já preceituava este sempre atual Comênio na sua Didactica magna, em 1627, não devem ser estudadas separadamente, “uma vez que as coisas separadas das palavras nem existem, nem se entendem; mas enquanto estão unidas, existem aqui ou além e desempenham esta ou aquela função”

Infelizmente entre nós não surtiram os efeitos esperados as inteligentes propostas, no âmbito do aprendizado do vocabulário, de Charles Bally, no famoso Traité de stylistique française; nem mesmo os esforços do padre Carlos Spitzer no seu precioso Dicionário analógico da língua portuguesa, nem os do Prof. Firmino Costa no seu Vocabulário analógico, nem os do Prof. Antenor Nascentes com o precioso Tesouro da fraseologia brasileira, nem tampouco as pesquisas de João Ribeiro nas Frases feitas e nas Curiosidades verbais representaram estímulos suficientemente fortes para que daí se passasse a um es tudo sistemático do léxico português dentro do âmbito da educação lingüística em nível de 1.0 e 2.° graus. Só modernamente contamos com tímidos ensaios cuja influência benfazeja ainda não se fez sentir.

Em livro didático e nas excelentes e sempre atuais Instruções metodológicas para execução do programa de português que redigiu em 1942 para o Ministério de Edu cação e Cultura, só conhecemos a exceção do mestre Sousa da Silveira que, especialmente nos Trechos seletos, deu várias boas amostras de como se pode interessar inteligentemente o aluno para, através do estudo do vocabulário, alargar os seus horizontes de cultura, relacionar a língua portuguesa com outras áreas do saber humano e despertar no educando o gosto do termo próprio ou a preocupação da busca da palavra mais expressiva.

Enveredando pelo estudo do vocabulário colhido em textos literários, encontra o professor ensejo suficiente para alargar os horizontes culturais de seus alunos. Uma passagem como aquela de Machado de Assis, no famoso Apólogo da agulha e do novelo de linha, quando o escritor compara os dedos ágeis da costureira, preparando o vestido da baronesa, com

“os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética”

permite ao mestre variadas informações: a primeira, de ordem lingüística, sobre o valor de galgo em contraposição a cão, cachorro, ressaltando o aspecto literário do termo em relação a seus correspondentes ou similares da mesma área semântica, mas nem por isso com eles combináveis nesta e noutras situações contextuais; aí repousa o primeiro componente daquilo que Machado chamou, com propriedade, “a cor poética”. O outro componente é a alusão à fonte, da Mitologia, pois que Diana era, entre os romanos, a deusa da caça. Está aberto o caminho para o professor mostrar o quanto o texto literário em língua portuguesa deve a esse recurso poético da Mitologia, de modo que o seu conhecimento se torna imprescindível a quem desejar descodificar corretamente as freqüentes alusões que prosadores e especialmente poetas fazem às divindades mitológicas greco-romanas.

Velhos costumes

As vezes, a língua é repositório de velhos costumes que se apagaram e por isso mesmo, sem a interveniência da explicação do professor, a palavra ou expressão se mostra ao aluno totalmente destituída de sua força significativa. Quem não conhece, por exemplo, o modo de dizer:

“Isso não lhe custou nem um copo d’água”?

Pois bem. A expressão é, como lembrou o nosso maior folclorista Luís da Câmara Cascudo, com base em Alexandre Herculano, uma reminiscência de multas mínimas para o homicídio do magistrado em conseqüência da de negação de justiça 12

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Outro costume lembrado pelo referido folclorista é o puxão de orelha aos estudantes rebeldes à boa disciplina ou ao bom ritmo de estudos. Para os romanos, as orelhas eram a sede da memória, pois estavam consagradas à deusa Memória, Mnemosine. O puxão de orelha valia por um processo mnemônico para que o faltoso não se esquecesse de suas obrigações. Daí o costume de puxar as orelhas a alguém para que se lembre de alguma coisa, usança vigente nos tempos modernos. Por isso é que na sátira Apokolokintosis, Sêneca faz que Hércules puxe a orelha de Diéspiter para lembrar-lhe que deveria favorecer a Cláudio na seqüência dos elogios fúnebres dirigidos a esse imperador num esforço a mais para a divinização.

Talvez até, por extensão semântica e valorização expressiva, esteja nessa relação entre orelha e memória, para denotar aquilo que pelas suas qualidades é digno de ser lembrado, o estímulo iniciador do tão antigo quanto enigmático gesto de pegar no lóbulo da orelha e exclamar complementariamente É da pontinha, é da pontinha da orelha, ou, de maneira sintética, é daqui.

O gesto parece antiqüíssimo, e de Portugal chegou até nós. Os literatos portugueses registraram o gesto e a expressão, e os vemos, por exemplo, em Eça de Queirós, quando, em A ilustre casa de Ramires, D. Antônio Vila- lobos convida Gonçalo Mendes Ramires:

Ouve lá! Tu queres hoje cear no Gago, comigo e com o João Gouveia? Vai também o Videirinha e o violão. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que comprei esta manhã a uma mulher da Costa por cinco tostões. Assado peio Gago!... Entendido, hein? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abade de Chandin. Conheço o vinho. É daqui, da ponta fina. E Titó, com dois dedos, delicadamente, sacudiu a ponta mole da orelha 13

Na França, vinho de uma orelha é aquele de excelente qualidade e que se opõe ao de duas orei/ias; segundo Câmara Cascudo, os “gestos franceses relativos ao vinho duma orelha e vinho de duas orelhas era inclinar a cabeça para um lado ou movê-la várias vezes, duma para outra orelha, desaprovativamente” (Op. cit., 155).

Um campo interdisciplinar

O trabalho do filólogo na manipulação, editoração e explicação do texto literário o leva a pedir subsídios a várias disciplinas auxiliares. Entre outras e sem esgotar a lista, além daquelas especificamente lingüísticas ou com elas muito relacionadas (a lingüística, a teoria da litera tura, a teoria da comunicação, a ecdótica, a paleografia, por exemplo) filólogo haurir conhecimentos na esté tica, no direito, na história, na geografia, na etnologia, na etnografia, na filosofia, na teologia, no folclore, na história da cultura.

Trabalhando e explicitando o texto aos seus alunos, a tarefa do professor de língua materna é muito menos complexa, embora isto não signifique que seja muito me nos ampla e muito mais fácil. Daí a necessidade de ter esse mestre a seu dispor, em casa e no lugar onde exerce a sua atividade profissional, uma bibliografia seleta onde seus conhecimentos, de toda sorte, possam ser amplia dos e suas dúvidas possam ser elucidadas. Daí também a necessidade de uma renovação nos livros didáticos, para que contenham, em doses homeopáticas e a nível do desenvolvimento psicológico e cultural dos seus leitores, esse tipo de informação complementar à sua educação lingüística

Não menos importante será também o papel do professor universitário, quer o de língua portuguesa ou filologia portuguesa — no Instituto de Letras —, quer o professor de didática de língua ou glotodidática no mesmo institUtO ou na Faculdade de Educação —, no sentido de estimular o futuro mestre a nutrir-se dessas informações e a conhecer uma bibliografia básica do que lhe será útil na atividade dentro de sala de aula, incutindo neles que sua tarefa maior não é fazer de seus alunos um futuro universitário, um futuro gramático, filólogo ou lingüista, um futuro literato, mas um cidadão útil e operante na sociedade de que vai tomar parte ativa.

3

O ensino da língua portuguesa

Entre a experiência e as regras

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O ensino da língua materna, desde os gregos e os ro manos, passando pela Idade Média e Renascimento até chegar a nossos dias, sempre se confundiu com o aprendizado da gramática escolástica. Como sabemos, essa gramática es encerra um conjunto discretamente orgânico elaborado pela Antigüidade clássica, a partir de Aristóteles e dos estóicos, sistematizado pela Idade Média e pelo Renascimento, apurado, ao depois, pela filosofia que alimentou a escola de Port-Royal, e retomado, bem ou mal, por algumas correntes lingüísticas mais recentes, depois de uma interrupção provocada pela crise do idealismo alemão, no século XIX, e o conseqüente advento do método histórico-comparativo nos domínios da ciência da linguagem.

Tem muita razão o genial lingüista Antonino Paglia ro 1 quando aponta um equívoco na discussão dos primeiros filósofos sobre se a gramática seria empeiria, isto é, “experiência em ato, pura e simples”, ou se seria téchne, técnica, vale dizer, um complexo de “regras”, de noções, coordenadas por um critério e destinadas a preencher uma finalidade. Na realidade, a gramática melhor mereceria, para o lingüista italiano, o nome de epistéme, cujo significado abrange conjuntamente o saber teórico e o saber prático.

Através dos anos veio a escola procurando ensinar a língua materna e as estrangeiras através do aprendizado dessa gramática escolástica sem que ficassem bem definidos os limites da eficácia de método. Esse ensino acabava dando frutos entre os alunos, muito mais pela participação consciente e adesão a um sistema lingüístico diferente daquele a que poderíamos chamar natural, do que pela manipulação das regras e conceitos aprendidos na aula de gramática. Mais valiam aos alunos, para aquisição dos recursos idiomáticos que lhes permitissem desenvolver e aperfeiçoar as formas de expressão mais elevadas, o convívio com os textos escritos e o contacto com as pessoas que, falando ou escrevendo, manejavam cabalmente o idioma, do que a lição de gramática ou o exemplo vivo do gramático, em geral mau escritor por ter embotada a espontaneidade de expressão pelo permanente policiamento de obediência às regras por ele ensinadas.

Um palco de erudição

Com o passar dos tempos, a gramática se foi enriquecendo com os dados novos trazidos pelos progressos da ciência, da linguagem, e a sala de aula se foi trans formando num palco de erudição que acabava por definhar aqueles jovens alunos ainda não amadurecidos para as preleções universitárias a que os submetiam seus professores.

Prefaciando a Sintaxe da língua portuguesa do professor Leopoldo da Silva Pereira, aparecida em 1858, assim se queixava o mestre Said Ali da situação do ensino naquela quadra, reclamação que cabe como luva aos tempos atuais:

“Em matéria de ensino não há, que me conste, disciplina que nestes dois a três lustros tanto se tenha mal tratado como a língua nacional, e o mais curioso é que justamente o intuito de metodizar o estudo da gramática, dando-lhe um cunho científico, produziu na prática um resultado negativo; foram os mestres em busca do método e da ordem e trouxeram-nos a indisciplina. Mas este paradoxo torna-se compreensível se atendermos a que os nossos professores, em grande parte, embora muito conhecedores da matéria que ensinam, não têm o necessário preparo pedagógico para saber o que se deve ensinar às crianças e o que deve ser reservado para cérebros já desenvolvidos capazes de compreender o valor de certas generalizações e abstrações. Tais professores sabem geralmente tudo menos pedagogia e cuidam que basta empanturrar os espíritos em via de formação com toda a sorte de conhecimentos elevados, para que as pobres criaturas as assimilem com a mesma facilidade com que eles, os mestres, as adquiriram. Sentem o indomável prurido de transmitir as novidades científicas, quaisquer que sejam, a todos os que os ouvem; e como é reduzido o número dos adultos dispostos a deliciar-se com a audição dessas áridas doutrinas, procuram as suas vítimas nos meninos que, como alunos, têm o dever de prestar atenção aos mestres, nessas plantas tenrinhas que com um excesso de adubo científico definham em vez de se desenvolverem.”

João Ribeiro e o “vazio” da análise lógica

Com o influxo das gramáticas para o francês, inglês e alemão, especialmente as obras de Mason e de Becker, introduziu-se no ensino do português a chamada análise lógica, que, levada ao exagero e a um vazio de só se servir a si mesma, passou a ser, entre muitos professores, o centro de preocupação de sua aula. Quem tinha competência e habilidade para não transformar seu curso em puras aulas desse

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tipo de atividade escolar, procurou novos caminhos. João Ribeiro, por exemplo, nas célebres Notas finais à sua Gramática 2, curso superior, assim se manifesta:

“ . .1 sou pessoalmente infenso às doutrinas gerais de análise lógica, não porque sejam errôneas ou inadaptáveis ao ensino, mas porque não ensinam coisa alguma do idioma. As questões de análise lógica são as que mais excitam o interesse dos professores brasileiros. Creio que haverá excesso nesta paixão e que resulta do propósito de explicar analiticamente muitas das palavras, idéias e frases que são pensadas e só valem como atos sintéticos. Nas minhas lições de português feitas no Pedagogium do Rio de Janeiro, a análise lógica foi completamente eliminada por inútil e insignificante. Sempre me pareceu que conhecidos os termos essenciais da proposição, todo estudo ulterior e pormenorizado de divisões, subdivisões e classificações de frase e talhos de frase, nada ou quase nada aproveita a quem quer estudar a língua vernácula, e faz parte do que antigamente se chamava Gramática geral filosófica ou sistema mais ou menos lógico aplicável a todas as línguas. Tenho visto que muitos alunos de português sabem talvez analisar; mas não sabem ler, nem entender o que lêem, e ainda menos escrever corretamente, sem falar aqui do que ignoram da história da língua. O método que adotei nas minhas aulas foi o da análise dos vocábulos, isto é, a sua formação histórica, a dos elementos morfológicos e prosódicos, a boa pronúncia, a certa significação, o emprego sintático, a sinonímia, a colocação, as flexões e variações, isto é, em uma palavra, o sentido e a forma, que só se compreendem cabalmente na frase ou no discurso” (p. 490).

O método adotado por João Ribeiro nas aulas do Pedagogium já aparece, por exemplo, com pequenas variações, nas Noções de análise fonética, etimológica e sintáxica de Pacheco da Silva Júnior e José Ventura Bóscoli, saídas em 1888.

Um dos mestres que mais se bateram contra o excesso da análise lógica entre nós foi o professor Silva Ramos, da excelência de cujas aulas no Colégio Pedro II são unânimes os testemunhos de quantos foram seus alunos e especialmente a atividade magisterial de um Sousa da Silveira. Seus conselhos de como pode o professor pro ceder em sala de aula merecem ser aqui lembrados. No artigo intitulado “Explicar ou complicar?”, publicado no número inicial da Revista de Filologia Portuguesa, em 1924, comenta:

“Assim se procedia na aula de português: lido o trecho, o estudante, por si, ou com o auxílio do mestre, procurava explicar-lhe o sentido, para o quê punha na ordem direta as inversões, substituindo os vocábulos por sinônimos, apontando a significação de cada palavra e as acepções em que podia ser tomada, e, uma vez por outra, convertia o verso em prosa [ . .1 Cumpre-me dizer que, no programa de português do Colégio Pedro II, elaborado pelo alto espírito do Conde de Laet, na qualidade de catedrático do Externato e que tive a honra de subscrever, como catedrático do Internato, o maior espaço é dado aos exercícios práticos de composição: cartas, descrições, pequenas narrativas; apenas no 2.° ano se alude à análise lógica. É nesses exercícios que o professor corrige aos alunos os vícios de expressão, em regra, os mesmos que se ouvem cá fora, na boca de muitas pessoas que aprende ram a analisar. Tinha muita gente no teatro — Assisti o baile — Estive a tua espera e você não apareceu — Não fala que me perturbas — A três anos que moro nesta casa

— Conquanto lhe não conhecesse, já lhe estimava, pelas ausências que me faziam do senhor — Aqui não há esse livro, mas pode-se-o mandar buscar — Não me dou bem nessa terra [ terra onde está].”

Fazendo do estudo da gramática um fim em si mesma, pôde-se facilmente observar que tal atividade nem ministrava aos alunos, através do conhecimento das normas gramaticais, o conhecimento da língua, nem tampouco a habilidade expressiva. Num país como o Brasil, onde as variedades diatópicas são menos acentuadas do que em outras nações, em que a língua standard ou nacional tem de concorrer com a forte vitalidade dos dialetos locais, a ação do professor se apresenta, neste particular, mais fácil. Mas mesmo assim, trazem os alunos para a escola variedades lingüísticas diastráticas ou de caráter sociocultural que cabe levar em conta. Enquanto a língua de casa traduz cabalmente as noções de um mundo e de uma vivência reduzida, a língua da escola irá prepará-los, acompanhando o seu desenvolvimento psicológico e cultural, para descobrir no pensamento discursiVo as formas que foram elevadas a uma função cognoscitiva mais alta no pensamento racional.

Formação, aperfeiçoamento e controle das competências lingüísticas

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Entramos, assim, num dos escopos principais da educação lingüística, que consiste em obviar um dos erros graves do ensino tradicional, vale dizer, não cometer o engano de transformar o monolingüismo coloquial do aluno que chega à escola no monolingüismo culto do aluno que dela se despede. Não cabe à instituição de ensino a simples substituição da norma coloquial usada na língua funcional do aluno pela norma culta usada na língua funcional da escola. Como já se disse, caberá ao professor e à escola como um todo transformar o aluno num poliglota dentro da sua própria língua histórica — a portuguesa, em nosso caso.

Por outro lado, os objetivos da educação lingüística não se esgotam aqui, mas prosseguirão no esforço metódico e sistemático de permitir ao aluno cabal controle das diversas funções da linguagem na utilização dos re cursos expressivos.

Em termos gerais, podemos dizer que o objetivo precípuo da escola consiste na formação, aperfeiçoamento e controle das diversas competências lingüísticas do

aluno.

Em artigo intitulado “Para uma renovação da didática da língua—materna a”, o lingüista italiano Vincenzo Lo Cascio explana considerações tão oportunas sobre a matéria, que, na verdade, nos podem servir como pontos de um programa didático que o professor deve desenvolver na escola.

Em primeiro lugar, Lo Cascio distingue dois tipos de competência lingüística:

A: competência da descodificação (ou receptiva); B: competência da produção lingüística (ou ativa). Estas duas distinções no domínio da competência lingüística comportam três componentes:

(1) competência gerativa (ou lingüística);

(II) competência comunicativa;

(III) competência dos instrumentos lingüísticos, isto é, competência dos canais lingüísticos e semióticos em geral e da interação desses.

No âmbito desta última competência deverão ser distinguidas mais precisamente

(1) competência auditiva

(a) em nível receptivo A<( competência da leitura

(3) competência verbal

(b) em nível produtivo B<( competência da escrita

No que tange, enfim, à educação lingüística será necessário distinguir entre

(1) enumeração das competências e hierarquias, existentes ou possíveis, entre elas, e

(2) processos de aprendizagem e desenvolvimento de tais competências.

A competência da descodificação ou receptiva com porta os seguintes desdobramentos:

(1) Competência gerativa do sistema lingüístico da comunidade (isto é, do núcleo familiar ou social a que pertencemos), e, mais precisamente:

(a) competência categorial: competência gradual das categorias gramaticais da língua (verbos, orações, subordinantes, nomes, traços semânticos e sintáticos etc.)

(b) competência lexical: competência dos elementos lexicais pertencentes ao sistema lingüístico em estudo, suas relações e seus referentes;

(c) competência fonológica: capacidade de distinguir e reconhecer os sons característicos desse sistema lingüístico;

(d) competência derivacional: capacidade de aplicar uma série finita de regras para entender uma infinidade de combinações lingüísticas (chamadas textos ou ora ções) dos elementos componentes desse mesmo sistema lingüístico;

(e) competência de gramaticalidade e aceitabilidade:

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capacidade de distinguir elementos e combinações consideradas próprias do sistema lingüísticos que o falante aprendeu daqueles outros que não fazem parte dele;

(f) competência lógico-semântico conhecimentos das relações entre estruturas lingüísticas, significados e realidades cognitivas e portanto habilidade no saber identificar as mensagens, transformar os dados lingüísticos em estruturas lógicas e Conceituais.

A competência comunicativa comporta: -

(a) coltêiiita avaliativa, em fase da descodificação: avaliação dos significados objetivos das mensagens percebidas e confronto delas com os contextos e as situações específicas em que são empregados;

(b) competência intersemjótjca: capacidade de integrar as informações que sejam consideradas como dadas na situação e no contexto, com as estruturas lingüísticas percebidas, e com as informações procedentes de outros sistemas semióticos e que acompanham as informações lingtiísticas;

(c) competência, em nível da compreensão do sistema lingüístico nacional: a língua “mãe” ou “oficial” de toda a nação e que pode ser diferente da referida competênçia gerativa;

(d) competência das variedades lingüísticas: registros, diassistema, diglossia.

(III) A competência dos instrumentos lingüísticos, e, mais precisamente:

(a) competência auditiva: capacidade de ouvir com fins de comunicação, técnica da seleção e da compreensão global ou minuciosa das mensagens percebidas;

(b) competência da versão gráfica da mensagem:

saber ler, não apenas como tradução de signos gráficos em símbolos lingüísticos mas também como descodificação e avaliação das mensagens transmitidas através da escrita.

Até aqui vimos a competência da descodificação; quanto ao segundo aspecto, a competência da produção lingüística, Lo Cascio assinala:

(1)

Competência gerativa ou “criativa”, e, mais precisa-

mente:

(a) competência de conversão lógico-semântica: capacidade de traduzir mensagens, conceitos, pensamentos em formas lingüísticas;

(b) competência derivacional: no âmbito do sistema lingüístico eleito, capacidade de gerar, com um conjunto finito de regras de um determinado sistema lingüístico, seqüências lingüísticas, orações, textos (e, portanto, significados) infinitos, pertencentes ao mesmo sistema lingüístico. Para tanto são necessárias as seguintes competências:

(1) competência lexical: competência que é mais restrita do que a que pertence ao grupo de competências de descodificação, já que, lendo ou ouvindo, entendemos muito mais palavras e orações do que aquelas que efetivamente sabemos produzir por nossa própria conta;

(2) competência categoria!: o conjunto de regras e categorias já mencionadas para o mesmo tipo de competência quando tratamos da descodificação;

(3) competência transformacional: capacidade de utilizar seqüências lingüísticas e expandi-las com outras seqüências do mesmo sistema lingüístico.

(II) Competência comunicativa, que comporta as seguintes variedades:

(a) competência seletiva dos informes: seleção dos pontos de vista e portanto dos produtos (output) lingüísticos mais adequados para transmitir determinadas informações numa determinada situação ou contexto, isto é, noção da paráfrase e das relações entre as várias construções da !íngua, habilidade para relacionar o próprio saber lingüístico com os dados de sua execução;

(b) competência intersemiótica: capacidade de usar e dosar diversos sistemas semióticos conforme as circunstâncias, bem como capacidade de integrá-los. Consta pelo menos de duas partes:

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(1) competência avaliativa em fase de descodificação: avaliação das próprias intenções, conhecimento da mensagem que se deseja transmitir, orientação sobre a situação de comunicação e a manipulação dos elementos lingüísticos para a consecução dos es- copos visados. Ordenamento eventual de tais propósitos em estruturas seriadas;

(2) competência de predição: capacidade de análise dos efeitos pretendidos ou que serão pretendi dos no descodificador (feedback);

(c) competência do uso dos códigos restritos, isto é, implícitos;

(d) competência do uso dos códigos elaborados, isto é, explícitos, que se servem menos dos contextos ou de informações imaginadas como “dados”;

(e) competência dos outros códigos lingüísticos; em primeiro lugar, competência da língua materna;

(f) competência das variedades lingüísticas (registros, estilos etc.).

(III) Competência dos instrumentos lingüísticos, e, mais precisamente:

(a) competência verbal: saber falar, exprimir-se verbalmente, isto é, não recorrendo constantemente a gestos;

(b) competência gráfica: saber escrever, quer dizer, traduzir a signos gráficos as expressões lingüísticas; (c) competência da expressão escrita: saber comunicar-se através da linguagem escrita, linguagem que requer uma habilidade diferente na avaliação dos contextos e em geral o uso de um código mais elaborado, isto é, explícito e que exige, em qualquer caso, que a mensagem seja estruturada em séries.

Importância da atividade oral

Depois deste quadro que, apesar de esquemático, se apresenta como de muita utilidade para o trabalho docente, Lo Cascio enfatiza a prioridade da competência verbal. Quase sempre a escola enfatiza as suas preocupações com o “ensinar a ler e a escrever”, como se se tratasse de ensinar dois códigos que constituem uma alternativa que substitui a realidade lingüística quotidiana. Seria necessário, acentua o lingüista italiano, que se pro Pusesse inicialmente ensinar a “falar”, não só como instrumento de expressão mas também como instrumento social de comunicação para todas as ocasiões.

Neste sentido, o ensino lingüístico na escola deverá partir da atividade oral, pois que constitui a base para a aquisição ideal de quase todas as competências lingüísticas de que falamos atrás. Mas vale a pena lembrarmos, ainda com Lo Cascio, que a função do professor deve ser a de um estimulador, que não deve também perder de vista a sua missão programaticamente corretiva.

Este exercício não só promoverá um desenvolvimento de uma habilidade e de um hábito de falar, de verbalizar, mas ainda de reflexão, de formulação de idéias, sobre a própria atividade lingüística.

Destaca-se, desta maneira, o papel catalisador do professor de língua, em sala de aula, ponto de partida e de convergência para que o aluno desenvolva hábitos de falar com eficiência, desembaraço, correção e certa elegância, além da aquisição e assimilação do conhecimento. Com isto, pretendemos pôr nos devidos termos a tese de que o professor, sob a alegação de falar a língua do seu aluno, mais facilmente se aproxima dele e do seu mundo. A estratégia vale como movimento inicial, e não como uma atitude permanente para que se instaure em sala de aula aquilo a que podemos bem chamar de “mesmice idiomática”, onde o mestre fala a língua do aluno por lhe faltar competência para utilização de um nível mais adequado com os seus compromissos de educador. Também com isto não desejamos que retorne à sala de aula aquele professor de palavras difíceis e retórica vazia.

A presença do verdadeiro professor ajudará ao aluno na percepção e individualização das mensagens recebidas, estimulará a formação da competência receptiva dos educandos, permitindo-lhes transformar as informações que a eles chegam em categorias e estruturas do seu mundo capa zes de ser expressas por eles mesmos, através da sua competência produtiva.

Pela eficácia da mensagem

Num ambiente escolar como o nosso, em que a perseguição ao erro de português e a sua correção pratica mente preenchem todo o espaço da educação lingüística, vale a pena insistir na seguinte lição

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do mestre italiano que estamos citando: quando se fala de ação corretiva, obvia mente não estamos querendo entender a procura do erro de gramática e a correção dele, mas sim um exame da eficácia com que foi estruturada a mensagem. Pouco importa, nessa fase da atividade escolar, se a criança comete um erro de gramática; é bem mais importante analisar com ela se o que queria dizer ficou compreensível aos outros. Torna-se necessário ajudá-la a encontrar as palavras que lhe faltavam para prosseguir na transmissão do que estava comunicando e colocá-la em condições de não se deixar influenciar ou perturbar pelos distúrbios que condicionam a sua execução.

Lo Cascio é um mestre do presente, porém nos é muito confortador aproximar essa lição do lingüista italiano à de um mestre brasileiro do passado, Manuel Bonfim, que já nas suas excelentes Lições de pedagogia, no início do século, também assim relaciona o uso da língua com a estruturação lógica da mensagem:

“De modo geral, os defeitos de linguagem só se corrigem na reforma do pensamento. Os próprios erros de sintaxe banal são defeitos de elaboração; têm importância para a elucidação íntima, e não simplesmente para a comunicação dos pensamentos. Cada um deles indica, nitidamente, que a representação afirmada na consciência não foi a que devera ser” .

A educação lingüística não descurará do importante papel desempenhado pelo processo de audição da mensagem, quando a descodificação concentrará sua atenção naquilo que mais importa a quem ouve uma seqüência lingüística. Como bem, lembra Lo Cascio, uma notícia dada pela rádio italiana sobre o Brasil pode despertar particular e diferente interesse ao apaixonado pela caça, ao biólogo, ao estudioso de etnologia, ao cidadão ou operário que aspira a emigrar para estas plagas. Cada um, diante de uma mensagem que capta, a percebe e a filtra consoante o seu interesse permanente ou ocasional. Muitas vezes até o nosso ouvinte privilegia certos aspectos da informação que lhe transmitimos sem que nós tenhamos tido qualquer interesse em dar-lhes o relevo despertado. Por isso, deverá a escola ensinar aos alunos a estratégia do ouvir, permitindo-lhes assumir uma atitude de concentração nos pontos mais importantes da informação, uma atitude de seleção e hierarquização dos aspectos substantivos e adjetivos da mensagem, bem como saber avaliar os procedimentos de argumentação da pessoa com que falam.

Igual atenção deverá merecer da escola o ensino da leitura, da redação da aula de gramática. Para finalizar, diremos alguma coisa a respeito desta última atividade, tendo em vista os muitos desconcertos que sobre a gramática se tem ouvido e praticado em sala de aula.

Segundo Lo Cascio, uma gramática descritiva destina da ao ensino da língua materna deverá ter como objetivo explicitar ao aluno o sistema lingüístico que ele já conhece e especialmente fazê-lo entender que a língua, além de ser um veículo de expressão e criatividade, é também instrumento de comunicação, é instrumento social e que por isso se organiza segundo as funções que deve cobrir. Uma gramática pedagógica descritiva deve além disso escla recer quais são os elementos fundamentais dos sistemas lingüísticos; só em última análise deverá proceder à adequada denominação e definição das categorias. Esses nomes técnicos e sua classificação correta são menos importantes do que a proposta de exercícios que ministrem ao educando o desenvolvimento do pensamento e o apto desempenho de suas competências lingüísticas receptivas e produtivas.

Como bem esclareceu Antonino Pagliaro, no seu livro já citado, a reflexão sobre a constituição e os valores desses sistemas desenvolve e aperfeiçoa não só uma cons ciência lingüística, mas ainda uma consciência estética, ao permitir que saiamos do nosso complexo mundo inte rior para o complexo mundo interior do nosso semelhante.

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A lingilística, a gramática escolar e o ensino da língua portuguesa

A gramática tenta codificar e fixar o chamado uso idiomático. Desta maneira, ela assume um papel originariamente didático. Entretanto, como pretende fixar esse mesmo uso, a gramática passa a ser dogmática, na medida em que se reveste da prerrogativa de ser uma gramática acadêmica ou de autoridades. E aí, ao agasalhar certos usos e ao repudiar outros, ela se vê na contingência de dar os porquês,7i of explicações: assim, aspira a ser científica. E é aí nesse momento que ela assume um

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terceiro papel, aquele que, pelos interesses teóricos, a faz aproximar-se, às vezes invadir e outras tantas confundir-se com a lingüística.

Mas é claro que a gramática não se confunde com a lingüística, tendo em vista os próprios objetivos de cada uma. Enquanto a primeira, normativa, registra o uso idiomático da modalidade padrão, a segunda, como ciência, estuda a linguagem articulada nos seus polifacetados as pectos e realizações.

Podemos, com Wagner e Pinchon, dizer que o ensino dessa gramática normativa pertence mais à educação que à instrução: ele pretende mostrar ao falante como dizer isso e repelir aquilo para atender aos usos e seleções esperados de uma pessoa culta. É uma atitude modelar diante da língua, igual à que deve assumir ao se dirigir aos mais velhos ou ao sair de um elevador, por exemplo, entre outras "boas maneiras”.

O ensino da gramática com intuitos eminentemente normativos tem-se aproveitado das teorias lingüísticas dominantes.

No século passado predominaram na lingüística as teorias histórico-evolutivas que, dentro de sala de aula, repercutiram, entre outros aspectos, na idéia de que o presente da língua se explicava pelo passado e que a fase atual do idioma resultava de uma “corrupção” de fase anterior. Daí nasceu o prestígio dos escritores lusitanos dos séculos XVI e XVII, e, como conseqüência, a ausência de autoridades brasileiras, exceção feita, rarissimamente, àquelas que entre nós refletiam o prestígio dos usos portugueses. A Antologia nacional de Fausto Barreto e Carlos de Laet (e mais ainda na primeira versão de Fausto Barreto e Vicente de Sousa) é bem um exemplo dessa fase da modalidade culta baseada em autoridades “clássicas”.

Daí também a preocupação historicista de que se reveste a reforma do ensino de línguas, especialmente da materna, que norteou o programa elaborado por Fausto Barreto, em 1887, e donde derivaram as gramáticas portuguesas escritas por brasileiros que fizeram época até os primeiros decênios do séc. XX, quer entre nós, quer entre portugueses: João Ribeiro, Pacheco da Silva Júnior e Lameira de Andrade, Maximino Maciel, Alfredo Gomes, Ernesto Carneiro Ribeiro e, anterior, mais independente e defeituosa, Júlio Ribeiro.

O primeiro eco das modernas idéias lingüísticas, ins pirado exatamente em Ferdinand de Saussure, surgiu na década de 20, com as gramáticas redigidas por M. Said Ali: curiosamente um renovador da gramaticografia portuguesa sem ter sido nunca professor da disciplina, pois era catedrático de alemão do Colégio Militar e Colégio Pedro II, estudioso da geografia e adaptador de excelentes compêndios para o ensino do francês e do inglês a brasileiros.

O primeiro reflexo do ensinamento saussuriano na obra de Said Ali recaiu sobre a dicotomia sincronia/ diacronia, perfeitamente explicável num momento em que a visão exclusiva historicista dominava a descrição e o ensino das línguas.

O Curso de lingüística geral do mestre genial saíra, póstumo, em 1916, e já em 1919, no prefácio à 2. ed. das Dificuldades da língua portuguesa Said Ali se referia à proveitosa introdução no estudo do português da lição de Saussure.

Partindo do legítimo conceito de diacronia em Saussure, Said Ali ideou uma Gramática do português histórico (note-se que o mestre brasileiro, ainda tendo presente a lição do lingüista genebrino, não usou a denominação gramática histórica, mesmo escrevendo um livro com intuito ao programa oficial vigente na época, e só por este motivo aceitou a alteração de título proposta pelo editor para Gramática histórica, na 2. edição). Em vez de seguir o caminho em geral percorrido pelos manuais do gênero, do latim ao português, imaginou um estudo diacrônico do português arcaico ao português moderno, duas sincronias tão válidas quanto a anterior. A inovação não foi entendida pelos seus contemporâneos que, não só não lhe acolheram o livro (teve apenas duas edições em vida do autor, sendo “redescoberto” só depois que os estudos lingüísticos da década de 60 vieram validar a iniciativa do mestre brasileiro!), mas ainda lhe condenaram a idéia de escrever uma gramática histórica sem latim, chegando a atribuir a influências de amizade o 1.0 prêmio Francisco Alves concedido à obra, em 1921.

Ainda na Gramática secundária da língua portuguesa procurou expurgar os defeitos de uma descrição que confundisse sincronia com diacronia, e sua preocupação foi em geral bem sucedida, a ponto de sobre ela dizer Matoso Câmara que se trata de uma “admirável síntese didática”.

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Mais modernamente os compêndios gramaticais vie ram, em parte, a beneficiar-se de outros ensinamentos presentes no Curso de lingüística geral de Ferdinand de Saussure: caracterização dos valores opositivos dos fone mas, distinguindo-se, assim, a pertinência dos traços fonéticos como diferenciadores de vocábulos e as diversas realizações fonéticas geradoras de “variantes”. Grosso modo, estavam os compêndios distinguindo fonemas de sons, fonologia de fonética. Entra aí a influência do Círculo Lingüístico de Praga, que, se não estou engana do, aparece pela primeira vez entre nós, em livro didático, na 2 edição da Gramática portuguesa (1945) do eminente mestre paulista Mário Pereira de Sousa Lima.

A dicotomia langue/parole abriu para nós o campo fértil da estilística, e as gramáticas mais recentes puderam distinguir o uso idiomático do recurso estilístico, aquele selecionado pela norma vigente na comunidade, este inédito, episódico, quase individual, a serviço de um intuito estético. Pôde o gramático compreender que estilística não se confunde com gramática, e se aquela aparece inserida num compêndio gramatical, é porque este, verdadeira gaveta de sapateiro, por erro de tradição, encerra algumas disciplinas que não lhe dizem, a rigor, respeito, como, por exemplo, a versificação.

A seguir, o estruturalismo americano nos pôs luz a alguns problemas de análise mórfica, e assim puderam os compêndios gramaticais de língua portuguesa distinguir derivação de flexão (mormente na descrição do gênero nos nomes), a conceituação da parassíntese e do hibridismo (este ainda numa flagrante confusão entre sincronia e diacronia), o problema das vogais temáticas e das desinência de gênero (livro/aluno em Oposição a zero/ /aluna), a descrição mórfica do verbo (amaria composto dos dois verbos amar + ria ou forma simples Constituída dos morfemas am - a - ria, tomada -ria como desinência modo-temporal de futuro do pretérito do indicativo) e tantos outros fatos.

Não pautado por simples xenofobia (como, por exemplo, o caso de Macedo Soares), mas com preocupações de alicerçar-se em bases lingüísticas, já alguns autores, como Said Ali, tinham mostrado que a língua portuguesa podia admitir uma norma lusitana e outra brasileira, ambas igualmente válidas. Assim, estudava-se, por exemplo, a colocação dos pronomes pessoais objetivos. Esta linha de ação ensejou a que Sousa da Silveira enfatizasse a exemplificação de suas Lições de português com brasileiros dos dois últimos séculos, abrindo definitiva Possibilidade de análise lingüística em corpus até então descurado.

Outra renovação que a gramática escolar hauriu na lingüística, mais precisamente na sociolingüística, foi a certeza de que a língua comporta, além dos dialetos regionais (ou Variedades diatópicas), os dialetos sociais (Ou variedades diastráticas), de modo que não se pode pensar que a realização idiomática só se faça ou só se possa fazer na modalidade culta, postergando de todo a modalidade coloquial, a língua transmitida de pais a filhos. Fez-se, ainda, a diferença entre língua escrita e língua oral, e prestou-se atenção a que a língua literária se pauta eminentemente na utilização dos recursos idiomáticos para fins estéticos.

A gramática gerativa e transformacional se preocupou em reformular, entre outras coisas, o estudo da sintaxe, mas até agora foram Poucos ou nenhuns os resultados de sua influência Positiva aproveitados pela gramática escolar.

Ultimamente, alguns teóricos da linguagem, como Eugenio Coseriu, têm desenvolvido algumas pesquisas em questões que se mostram bastante aproveitáveis para unia melhor descrição da língua, refletindo-se, desse modo, na construção da gramática escolar. Desejo citar aqui o conceito de língua funcional como imperativo da análise lingüística. Uma língua histórica — como a portuguesa, francesa, espanhola etc. — não é bem um sistema lingüístico, mas sim um diassistema, um conjunto mais ou menos complexo de “dialetos” (variedades diatópicas), de “níveis de língua” (variedades diastráticas) e de “estilos” (variedades diafásicas). Assim, não basta para uma perfeita descrição estrutural da língua encará-la enquanto técnica sincrônica do discurso, mas precisa ainda apresentar-se unitária e homogênea, vale dizer, ser um só dialeto (sintópica), num só nível (sinstrática) e num só estilo de língua (sinfásica). Esta técnica lingüística unitária e homogênea assim entendida é o que se pode chamar língua funcional. Como ensina Eugenio Coseriu, o adjetivo funcional encontra aqui sua justificação porque somente esta língua entra efetivamente nos discursos. Só numa língua funcional, e não numa língua histórica em sua plenitude (por ser uma coleção de línguas funcionais), é que têm validade as oposições, estruturas e funções que se encontram numa tradição idiomática.

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Partindo deste conceito de língua funcional, caberá à gramática normativa, levando-se em conta a política do idioma a ser adotada na escola, precisar que técnica lingüística unitária e homogênea deverá descrever em especial. Dizemos em especial, porque o que em geral ocorre é que todo falante, dentro de sua língua histórica, é “plurilíngüe” ou “poliglota”, isto é, ao lado de uma técnica que considera normal como sua, consegue distinguir “desvios” dessa técnica, que pertencem a outras línguas funcionais existentes na referida língua histórica considerada em sua plenitude.

A língua portuguesa admitirá, por exemplo, construções como há fatos tem fatos / têm fatos / houveram fatos, que se distribuem por línguas funcionais diferentes. Talvez na língua funcional que utilize há fatos, também se registre a regência chegar a casa, enquanto chegar em casa só apareça naquelas outras línguas funcionais onde ocorre tem fatos / têm fatos ou houveram fatos. E assim por diante.

Desse modo, a glotodidátjc não pode, sem uma análise mais profunda, adotar como normais na gramática escolar “desvios” da chamada língua só pelo peso da sua freqüência na chamada língua coloquial ou familiar.

A gramática escolar deverá, com o auxílio da lingüística, determinar que língua funcional será objeto de sua descrição e que línguas funcionais servirão de confronto nos “desvios” a serem apontados aos seus leitores.

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O ensino de língua portuguesa nos cursos universitários

Ê justo, apesar de paradoxal, que se pare para pôr em discussão este ponto: por que a língua portuguesa está cada vez menos conhecida de nossos alunos?

Tentarei ressaltar brevemente alguns pontos que considero nevrálgicos para um melhor desempenho dos professores egressos de nossos cursos superiores de Letras.

A lingüística e disciplinas afins

Em primeiro lugar, a lingüística e disciplinas afins, sem dúvida, carreiam elementos imprescindíveis e indispensáveis à formação do professor de língua portuguesa, mas não pretendem substituir esse professor pelo professor de lingüística, ou de teoria da comunicação, por exemplo.

O que se quer que a lingüística informe ao futuro professor de línguas, entre outros temas, dentro do objetivo de construir uma teoria da estrutura e das funções da linguagem e das línguas, é o conceito e limites da disciplina; a natureza da linguagem e o concretizar-se através das línguas; o fato lingüístico e seus aspectos teóricos; as línguas, suas regularida e seu devenir na história; os procedimentos para a análise lingüística sincrônica e dia- crônica e seus reflexos na teoria da gramática geral e da gramática particular de uma dada língua, para que o professor de português, por exemplo, não se preocupe em defini, o adjetivo em português, pois que o conceito de adjetivo deve ser o mesmo em todas as línguas; deve sim, em sala de aula, insistir nas características do comporta mento desta classe em português, características que o fazem diferir do adjetivo em francês ou em inglês.

Lingüística e gramática tradicional

O que, de modo algum, compete à lingüística é ser o pelourinho da gramática tradicional, apontando-lhe os erros mas não a enriquecem com sucedâne mais eficazes. Lingüistas do porte de Saussure, desde os início da lingüística contemporânea, já ressaltaram as qualidades da gramática tradicional, dentro das limitações da sua proposta pedagógica é Mais recentemente, Lyons (língua e lingüística Zahar, 1982) declara que “ultimamente os lingüistas vêm adotando uma perspectiva mais equilibrada quanto à contribuição que a gramática tradicional [ . .} vem prestando ao desenvolvimento de sua disciplina” (p. 47). E importa lembrar que o mesmo lingüista, falando do conceito de flexão, declara, acerca da gramática tradicional: “Se bem explicada e precisamente formulada, a abordagem tradicional é pelo menos tão boa quanto qualquer outra alternativa que tenha sido até agora apresentada” (Id., ibid., p. 101).

Infelizmente muita gente não traça com a devida segurança os limites desses campos, e transforma, assim, a aula de língua portuguesa numa aula de lingüística de objetivos bem diferentes.

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Uma nomenclatura que se aplica ao lingüista pode ter utilização restrita na aula de português; mas muita gente vê, por exemplo, em SINTAGMA a pílula salvadora para combater todos os males de um péssimo ensino da língua materna.

Língua materna e línguas estrangeiras

Outros — com pior conseqüência — não conseguem fazer a distinção entre o ensino da língua materna e o ensino das segundas línguas ou línguas estrangeiras. Daí advém um grave erro que se está incutindo na aula de português: tratar a língua materna (e ensiná-la!) como se fosse uma língua estrangeira.

Sabemos todos que a metodologia difere num e noutro ensino, e confundi-los é minimizar a potencialidade dos recursos do aprendizado do vernáculo.

Como conseqüências perigosas, senão danosas, do mau emprego da lingüística na aula de português, pode mos citar:

a) o empobrecimento da língua escrita culta nas atenções do professor;

b) o embaralhamento do conceito de norma lingüística, em especial para a língua escrita.

Que o lingüista enfatize a língua oral, bem conhecemos as razões que o levam a isso, porquanto a universalidade dos idiomas se patenteia na sua oralidade.

Mas o professor de língua portuguesa, sem desprestigiar o valor da língua coloquial — erro, aliás, da antiga geração de mestres —, deve centrar sua atenção no padrão culto, que presidirá à produção lingüística do educando, falando ou escrevendo.

Vê-se que se confundiram os conceitos e níveis de língua oral e língua escrita, língua coloquial e língua culta, com graves prejuízos para a orientação do ensino do português.

Que a língua coloquial esteja presente no ensino da língua estrangeira, compreende-se, porque aí o aluno tem de se adequar à realidade única que o professor lhe põe diante dos olhos, pela mesma razão pragmatista que sempre acompanha o aprendizado de uma outra língua. Mas, no tocante à língua materna, esse nível de aprendizado já lhe é conhecido pela espontaneidade da língua transmitida no lar e no convívio da comunidade lingüística em que se desenvolveu o aluno.

A esse saber lingüístico prévio a escola acrescenta uma língua adquirida, pautada pelos padrões lingüísticos que vigem nas pessoas escolarizadas e que se esperam do desempenho de uma pessoa culta ou aspirante a esse nível de cultura.

É claro que, em se tratando da língua materna a serviço da escola, não basta que os professores e alunos se contentem com a simples e balbuciante transmissão de idéias e sentimentos. E à escola, principalmente à escola de l.° e 2.° graus, é que cabe ministrar esse ensino, sob a orientação segura e eficiente do professor de língua portuguesa e de todos os agentes com que conta para tal fim. Tem-se de compreender que o professor de português não é o único agente de que dispõe a escola para deflagrar o aprendizado da língua vernácula.

O conhecimento da língua portuguesa

Os erros apontados acima extrapolaram os limites dos alunos e chegaram ao próprio professor de português que, ensinando a desacreditar os padrões da língua escrita e culta, acabaram eles mesmos por desconhecer esses padrões.

Não é raro ouvir-se de um mestre entrosado com as idéias de Saussure, HjelmsieV e Jakobson uma série de 0 em péssimo português, algumas das quais nocivas à própria eficiência da comunicação.

É claro que não falamos aqui do “rancismo” gramatical, mas de pequeflir1as noções de conjugação de verbo (“quando eu ver. . .“), de emprego de pronomes (“para mim fazer. . .“), que tornam perplexo qualquer professor da “velha guarda”.

Quando alguns traduzem, fazem-no para um pidgin de difícil filiação, tornando o novo texto bem mais com plexo de entendimento do que o original, em língua estrangeira.

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Esses são os engastados na ciência lingüística, que é, como a entendem, uma pseudociência. Os verdadeiros lingüistas, quando escrevem, primam no vernáculo; veja-se, por exemplo, um Sapir, um Bloomfieid, um Fries, um Bolinger, para só falar dos de língua inglesa.

Entre nós, o que acontece? Conviver com os bons autores, antigos e modernos, é tido como sinal de “cafonice”. E, com isto, o padrão da língua culta vai sendo esquecido por aqueles que a deveriam saber por profissão.

Esse tipo de lingüística, entre nós, fez soçobrar a filologia; ao contrário, aliás, do que acontece nos países onde a verdadeira lingüística está em pleno apogeu.

Com essa ignorância, estamos cedendo a palma aos estrangeiros que vão estudando a língua portuguesa mais que os nacionais.

Com as sempre raríssimas exceções, quem dentre nós

estuda a tradição dos temas que preocuparam um Said

Ali, um Sousa da Silveira, um Antenor Nascentes, um

José Oiticica, um Serafim da Silva Neto, um Ismael de

Lima Coutinho, senão um Harri Meíer, um Joseph Piei, um

Joan Corominas, um Yakob Maikiel, um Giuseppe Ta vani, todos estrangeiros?

Por tudo isto, deve a Universidade, nas aulas de língua portuguesa, ao lado da descrição científica de sua gramática, voltar à tarefa de transmitir os padrões da língua escrita culta, através do aturado convívio dos clássicos brasileiros e portugueses de todas as épocas.

Os colégios de aplicação

Outro ponto que há de merecer a acurada atenção dos cursos de formação de professor de língua portuguesa é o que diz respeito aos procedimentos pedagógicos a serem utilizados em sala de aula. Pouco aproveita o profundo conhecimento teórico que o professor venha a ter de sua disciplina, se lhe faltam as condições mínimas do saber didático-pedagógico que lhe permitam desvendar ao aluno os segredos de sua ciência.

Isto se consegue com o inter-relacionamento dos institutos de com as faculdades de educação e com os colégios de aplicação.

Vivemos num clima de desconfiança ou de auto-afirmação; essas instituições fazem, com os seus isolamentos, uma grande vítima que é o futuro professor, cuja ação negativa se desdobrará no insucesso das aulas e na insatisfação de seus alunos.

Falta o suficiente entrosamento dos cursos de Letras e da prática dos colégios de aplicação, entrosamento que será salutar para o bom desempenho do futuro professor. Outras vezes, o entrosamento existe, mas chega ao aluno universitário muito tarde, e é mais cômodo bater a estrada conhecida do que retroceder e adotar métodos e procedi mentos mais eficazes.

O foro de idéias

Acredito que nos está faltando a ATMOSFERA UNIVERS1TA vale dizer, um conjunto de condições favoráveis que permitem o sucesso no desempenho da ação universitária, no estudo, na pesquisa e nos seus reflexos na pedagogia do ensino de línguas, isto é, na gloto didática.

Torna-se importante que as autoridades federais, estaduais e municipais de ensino concorram com os subsídios necessários para que se criem, entre o magistério brasileiro, modestas revistas — mas de rigorosa publicação periódica — que se constituam num foro de idéias que, depois de expostas e amplamente debatidas, possam ser introduzidas experimentalmente em sala de aula, para o exame da validade e alcance pedagógicociefltí Estas publicações de aparência modesta seriam o lugar certo para que lingüistas, filólogos, gramáticos professores, educadores, bibliotecários, escritores, filósofos, políticos e quantos técnicos existam, possam trazer à discussão temas e problemas das especialidades que, de algum modo, os aproximam.

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Com isto, estaríamos corrigindo uru erro muito difundido entre nós, pelo qual o canal das inovações, renovações e revoluções da ciência e da pedagogia seja o livro didático destinado a inocentes vítimas do processo reformista: os pobres, incautos e desprotegidos alunos.

Estimulo ao magistério

Focalizamos aqui apenas alguns aspectos dos problemas que afligem, na Universidade, a formação dos professores de língua portuguesa. Os problemas são muitos, mas não de solução impossível.

O nosso professorado, apesar de toda sorte de desamparo que, por todos esses anos, tem recaído sobre os seus ombros, tem-se mostrado vigilante no seu aperfeiçoa mento e confiante em dias melhores. Isto já é um bom sin para o êxito de uma reação inteligente.

Mas a verdade é que esse professorado já está dando mostras de certa inquietude e de certa desilusão, como comprova a fuga do magistério em direção a outras ocupações de salários menos vis. Isto porque as soluções estão tardando mais do que deviam, mais do que é possível suportar.

A sociedade brasileira, através de todas as suas agências de educação, deve despertar para os problemas que afligem o professorado, sob pena de encontrá-lo in capaz de lutar pela sua redenção.

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Vocabulário crítico

Ágrafa (língua): aquela que não possui escrita, por servir a uma comunidade que não atingiu certo nível de civilização.

Análise gramatical: segundo o lingüista Eugenio Coseriu, é a gramática que investiga o nível individual da linguagem, isto é, de um texto determinado. Através da aná lise gramatical, este tipo de gramática identifica as funções gramaticais efetivamente expressas num dado texto (cf. gramática).

“Argot”: o mesmo que o port. gíria e jargão ou o inglês slang, é, em sentido restrito, uma língua especial baseada num “vocabulário parasita que empregam os membros de um grupo ou categoria social com a preocupação de se distinguirem da massa dos sujeitos falantes” (Marouzeau apud Matoso Câmara, Dic. de filologia e gramática, s.v. gíria).

Arquitetura das línguas: segundo o romanista norueguês Leiv Flydal, a diversidade interna da língua, ou, como ensina Coseriu, a coexistência, numa mesma língua histórica (v.), de formas diferentes para funções análogas ou vice-versa. Assim, arquitetura se distingue de

estrutura das línguas (v.); por exemplo, o emprego dos verbos haver e ter nas orações de valor existencial (há livros, tem livros) é um fato de arquitetura, e não de estrutura, porque são fatos que pertencem a línguas funcionais (v.) distintas.

Clássico (escritor, texto): o que apresenta correção gramatical que se pode apontar como padrão esperado nas pessoas de cultura e que, por isso, pode servir de linguagem modelar nas classes escolares.

Código: sistema de signos convencionais que permite a organização da mensagem emitida pelo falante e en tendida (descodificada) pelo ouvinte. A língua é um código.

Código verbal: é o sistema de signos convencionais constituído pela língua (os sons e os sinais escritos), em oposição a códigos não-verbais, como a gesticulação, o desenho, os sinais mecânicos etc.

Competência: termo utilizado por Chomsky (ingi. competence) para indicar o conjunto de conhecimentos lingüísticos que o falante, mais ou menos inconsciente- mente, possui, e se contrapõe a performance, que é o uso efetivo da língua realizado pelo falante.

Contacto (ou canal): meio pelo qual são transmitidos os signos do código, como, por exemplo, na comunicação oral, o ar através do qual se transmitem esses signos ou, na comunicação escrita, uma página de texto.

Contexto: conjunto de outros elementos ou condições que estão relacionados com um elemento do discurso e que contribuem para dar-lhe ou precisar-lhe um significado.

“Corpus”: determinado texto ou conjunto determinado de textos objeto de investigação e análise.

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Derivação: processo de formação de novas unidades léxicas com auxílio de prefixos e/ou sufixos ou, para outros teóricos, só com sufixos, já que as novas formas com

prefixos passam a integrar outro processo criativo, chamado composição.

Descrição (a respeito de línguas): procedimento de análise pelo qual se procura precisar as funções das cate gorias verbais próprias de uma língua e descrever o esquema material de sua expressão.

Descrição funcional integral: descrição que aspira a dar uma idéia precisa do saber idiomático efetivo dos fa lantes de uma língua histórica.

Desinência zero: ausência de traço formal ou semântico numa unidade lingüística que se opõe a outra unidade dotada desse traço, como, em português, a desinência de singular em livro é zero por não conter a desinência de plural que aparece em livros.

Diacronia: consideração que se faz da língua em seu desenvolvimento histórico; existe uma diacronia subjetiva, própria dos falantes, e uma diacronia objetiva, que resulta do estudo do historiador da língua, havendo constantemente a possibilidade de uma não coincidir com a outra (cf. sincronia).

Dia fásica: denominação cunhada por Eugenio Coseriu, à semelhança dos termos diatópica (v.) e dia (v.), para designar as variedades “estilísticas” entre os diversos tipos de modalidade expressiva (do grego diá “através de” e phásis “expressão”). São exemplos, entre outros, de variedades diafásicas as diferenças entre língua falada e língua escrita, língua “de uso” (ai. Umgangssprache) e língua literária, entre o modo de falar familiar e o solene, entre a linguagem corrente e a linguagem burocrática ou oficial. Podem-se apontar diferenças dentro de algumas dessas variedades, como, por exemplo, na língua literária, a diferença entre poesia e prosa, e, dentro da própria poesia, a diferença entre poesia lírica e poesia épica etc. À unidade integrante das variedades diafásicas Coseriu chama sinfásica.

Diassistema: conjunto mais ou menos complexo de variedades diatópicas (v.), diastráticas (v.) e dia! ásicas (v.) que integram uma língua histórica (v.).

Diastrática: denominação proposta pelo romanista norueguês L. Flydal para designar as variedades de “níveis” entre os diferentes estratos socioculturais de uma comunidade lingüística (do gr. diá “através de” e lat. stratum “camada”). As variedades diastráticas são mais acentuadas em sociedades onde há profundas diferenças entre as diversas camadas sociais. São exemplos de variedades diastráticas as diferenças entre língua culta e língua popular. À unidade integrante das variantes diastráticas chama-se sinstrática.

Diatópica: denominação proposta por Flydal para designar as variedades de “dialetos” entre os diferentes espaços geográficos em que uma língua histórica é falada (do grego diá “através de” e tópos “lugar”). As variedades diatópicas podem ser apontadas •nos tipos regionais de língua comum (um tipo “nordestino”, um tipo “sulista”, um tipo “carioca” etc.) ou, mais fáceis de delimitação nas -variedades das línguas históricas f ala das por países diversos, como o português do Brasil e de Portugal. À unidade integrante das variedades diatópicas chama-se sintópica.

Diglossia: possibilidade de coexistência, no sujeito falante, do dialeto regional e da língua comum oficial, adquirida na escola. Difere do bilingüismo à medida que este pressupõe a coexistência de códigos lingüísticos diferentes, no sujeito falante, que pode usar indistinta mente qualquer das línguas. Em certos autores, diglossia é entendida como sinônimo de bilingüismo, enquanto outros consideram diglossia a aptidão que uma pessoa demonstra em usar outra língua, além da materna.

Ecdótica: denominação introduzida por H. Quentin para designar a disciplina que estabelece as normas método

lógicas e que preside à pesquisa dos problemas técnicos inerentes a edições de textos antigos e modernos, com vistas a assegurar-lhes a originalidade e a exatidão textuais. Para muitos autores, ecdótica é sinônimo de crítica textual.

Educação lingüístiCa: atividade que tem por objetivo o desenvolvimento das aptidões verbais do sujeito falante, estreitamente ligada com sua correta socialização, com seu desenvolvimento psicomotor e com a maturação de todas as suas capacidades expressivas e simbólicas.

Emissor: aquele que, na comunicação, produz uma mensagem segundo as regras do código utilizado.

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Estilística: disciplina que estuda a língua nas suas funções de “expressão” e de “apelo”, no esquema de K. Bühler, enquanto a gramática a estuda na função “representativa”.

Estilo: “lato sensu, a maneira típica por que nos exprimimos lingüisticamente, individualizando em função da nossa linguagem” (Matoso Câmara).

Estrutura das línguas: segundo Flydal, fato que consiste na existência de correlaçõeS sistemáticas (traduzidas por oposições funcionais na expressão e no conteúdo) das unidades de uma mesma língua funcional (v.).

Flexão: procedimento morfológico que permite variar um vocábulo para expressão de determinadas categorias gramaticais existentes numa dada língua. Este procedi mento pode consistir em acrescentar morfema fora do radical (flexão externa), subtrair, alternar ou reduplicar morfema dentro do radical (flexão interna).

Funções da linguagem: diversos fins que são atribuídos aos enunciados. A conceituação e a especificação das funções variam de acordo com as diversas correntes teóricas da lingüística. O psicólogo alemão Karl Bühler apresentava um esquema tripartido: presefltaÇã0, expressão e apelo; o lingüista russo Roman Jakobson relacionava-as aos elementos necessários da comunicação:

emissor ou remetente (função emotiva), receptor ou destinatário (função conativa), ao código (função me talingüística), no contexto (função referencial), no contacto (função tática) ou na mensagem em si (função poética). Já o lingüista inglês M. A. K. Hailiday, em estreita ligação com o grupo de Basil Bernstein, apresentou proposta, sem esgotar o assunto, de sete funções:

instrumental (uso da língua para obter que certas coisas sejam feitas); reguladora (para regular o comportamento de outrem, a ponto de determinar que se faça ou se deixe de fazer algo desse modo, e não de outro); inter- pessoal (para estabelecer uma interação entre a pessoa e os outros, impor status ou contestar um status imposto, para manifestar o humor, o ridículo, a decepção e a persuasão); pessoal (para manifestar sua própria individualidade); heuristica (indagação da realidade para agir como instrumento na solução de problemas); imaginativa (para estabelecer uma relação entre a pessoa e seu ã e, finalmente, representativa (para fazer uma comunicação sobre alguma coisa).

Glotodidática: disciplina que, baseada em critérios lingüísticos, tem por objeto o ensino das línguas — materna ou estrangeiras.

Gramática: disciplina lingüística que estuda os atos lingüísticos nos três níveis da linguagem distinguidos por Eugenio Coseriu: o universal (correspondente ao falar em geral), o histórico (correspondente a uma língua histórica) e o individual (correspondente ao discurso ou texto). Assim, teremos três tipos de gramática: a gramática geral (designação preferível a universal), a gramática descritiva (v.) e a análise gramatical (v.). Ao lado dessas três gramáticas científicas, há uma de pura

seleção da norma culta, chamada gramática normativa (v.).

Gramática descritiva: estudo das tradições lingüísticas consideradas como sistemas. Não lhe cabe, como ensina Coseriu, definir, mas descrever as categorias verbais depreendidas numa dada língua, suas funções e procedimentos gramaticais.

Gramática geral: ramo da lingüística teórica que estuda os fundamentos dos conceitos gramaticais, as funções e os procedimentos gramaticais.

Gramática gerativa e transformacional a que trata das relações, expressamente das relações de equivalência entre estrutura superficial e a chamada estrutura pro funda.

Gramática normativa (também chamada do bom uso): corpo de recomendações de como se deve dizer, subjetivamente selecionadas e fixadas por larga tradição entre os falantes de nível superior de uma comunidade, especialmente no uso escrito. É uma gramática que tem finalidades didáticas.

Gramática tradicional: denominação vaga que se aplica à tradição teórica ou à prática de descrever uma língua desenvolvida por uma corrente do passado. Entre os gerativistas, a denominação se aplica ao estruturalismo americano de feição bloomfieldiana (orientada pelo lingüista Leonard Bloomfield); entre os comparatistas do séc. XIX e ainda hoje entre nós, a denominação se refere à tradição

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gramatical greco-latina. O precursor imediato da gramática gerativa é essa gramática tradicional, segundo declarações do próprio Chomsky.

Hibridismo: procedimento de formação lexical com ele mentos oriundos de línguas diferentes.

Língua culta/padrão: modalidade de língua, especialmente escrita, que, como diz Matoso Câmara, “serve para as comunicações mais elaboradas da vida social e para as atividades superiores do espírito”, e constitui o substrato da língua comum ou nacional, que se superpõe às variedades regionais.

Língua familiar/coloquial: modalidade de língua, especial mente oral, de expressão espontânea entre pessoas escolarizadas, mas que não apresenta a coerência e a fixidez das formas gramaticais nem o cuidado e a elaboração do léxico da língua culta.

Língua funcional: língua que se delimita dentro da língua histórica e que se caracteriza por ser um corpus homogêneo e uniforme, vale dizer, uma variedade sintópica (v.), sinstrática (v.) e sinfásica (v.).

Língua histórica: conjunto constituído historicamente de técnicas lingüísticas em geral não homogêneas, mas que apresentam uma unidade ideal e assim identificadas

pelos falantes dessa língua: língua portuguesa, língua espanhola, língua alemã etc.

Norma: tudo o que espontânea e prontamente se diz numa comunidade lingüística. A norma lingüística se opõe a anormal, enquanto a norma da gramática normativa se opõe a incorreto. Não há inteira coincidência entre as duas normas porque, em geral, a lingüística se adianta à sua codificação pela gramática normativa.

Padrão: (cf. língua culta).

Parassíntese: processo de formação lexical com utilização concomitante de prefixo e sufixo.

“Pidgin”: língua simplificada nascida do contacto de comunidades diferentes; em sentido restrito, aplica-se a uma língua mista falada nos portos da China (pidgin-English), com base no vocabulário inglês e adaptada ao sistema gramatical chinês. Pidgin é a pronúncia de formada do inglês business.

Receptor ou destinatário: aquele que, na comunicação, recebe e descodifica uma mensagem elaborada dentro das regras de um determinado código.

Registro: utilização que cada falante faz dos níveis de língua para adequar-se ao saber idiomático do interlocutor.

Saber elocucional saber falar em geral, considerado enquanto técnica.

Saber lingüístico capacidade de formar corretamente orações ditas ou inéditas numa determinada língua.

Sincronia: consideração que se faz da língua sem levar em conta o tempo, isto é, estudada só num momento determinado do seu devenir histórico (cf. diacronia).

Sinfásica: (cf. diafásica).

Sinstrática (cf. diastrática).

Sintópica: (cL diatópica).

Sociolingüística: disciplina lingüística que estuda as diferenças Lingüísticas em relação à estratificação social.

Vogal temática: elemento acrescido ao radical e que serve de característica mórfica de um conjunto de vocábulos do mesmo grupo nominal ou verbal.