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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM GEOGRAFIA
TERRITORIALIDADE DOS FLANELINHAS/GUARDADORES DE
CARROS: DISCUSSÕES SOBRE A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO
PÚBLICO NOS BAIRROS CIDADE ALTA, PETRÓPOLIS E TIROL DE
NATAL-RN
CLÁUDIA EUGÊNIA LOPES DA SILVA
NATAL-RN
2017
1
CLÁUDIA EUGÊNIA LOPES DA SILVA
TERRITORIALIDADE DOS FLANELINHAS/GUARDADORES DE
CARROS: DISCUSSÕES SOBRE A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO
PÚBLICO NOS BAIRROS CIDADE ALTA, PETRÓPOLIS E TIROL DE
NATAL-RN
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Anelino Francisco da Silva
NATAL-RN
2017
2
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Silva, Claudia Eugenia Lopes da.
Territorialidade dos flanelinhas/guardadores de carros:
discussões sobre a apropriação do espaço público nos bairros
Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN / Claudia Eugenia Lopes da Silva. - 2017.
123f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-graduação e Pesquisa em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Anelino Francisco da Silva.
1. Espaço público. 2. Territorialidade. 3.
Flanelinhas/guardadores de carros. 4. Apropriação. 5. Natal (Rio
Grande do Norte). I. Silva, Anelino Francisco da. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 341.221(813.2)
3
COMPOSIÇÃO DA BANCA DE DEFESA DA DISSERTAÇÃO
PROF. DR. ANELINO FRANCISCO DA SILVA
Orientador
PROF. DR. JOSÉ ERIMAR DOS SANTOS
Membro
PROF. DR. JOSÉ LACERDA ALVES FELIPE
Membro
4
À minha família, que sempre me deu força, coragem e um
apoio incondicional em todos os momentos. Amo vocês!
5
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus, por mais uma realização e por derramar tantas
bênçãos e maravilhas em minha vida! Por ser minha fortaleza nos momentos de
dificuldade e minha luz nos momentos de incerteza. Agradeço pelo dom da vida e
pela graça da saúde e coragem para seguir firme na caminhada, mesmo diante dos
obstáculos e dificuldades, tornando, assim, o meu fardo mais leve.
Aos meus pais, que sempre foram os meus maiores incentivadores. Vocês
são os meus maiores exemplos! Obrigada por acreditarem em mim, e mais que isso,
por possibilitar a minha dedicação integral aos estudos e por me permitir alcançar
conquistas como esta. Obrigada pela torcida, pelas palavras de carinho, conforto e
encorajamento. Pela companhia nas noites em claro, por toda preocupação, pelo
apoio, carinho, amor... Pela fé depositada em mim! Não há palavras para descrever
minha gratidão e o meu amor por vocês.
A minha irmã, Heloisa, por toda ajuda, pelo apoio, por torcer e vibrar com as
minhas conquistas... Orgulho-me de ser sua irmã e agradeço pelo orgulho que sei
que também tens de mim.
Ao meu namorado, amigo e companheiro de todas as horas, Igor, por todos
os momentos compartilhados. Agradeço por ter tido você junto a mim em mais essa
etapa de nossas vidas. Mais uma conquista juntos! Obrigada pela imensa ajuda e
pela compreensão. Pelos momentos de carinho, amor e afeto, que tornaram a
caminhada mais leve. Agradeço pelo incentivo, pela cumplicidade e, principalmente,
por acreditar em mim. (Amo você!)
A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pela formação de
qualidade e por todas as oportunidades concedidas.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pela oportunidade e pelo auxílio durante o desenvolvimento da pesquisa.
Ao meu orientador, o Professor Dr. Anelino Francisco da Silva, pela acolhida,
por todos os diálogos, pela solicitude, pela paciência, por me proporcionar
experiências enriquecedoras e por conduzir essa orientação e nossa pesquisa com
tanta tranquilidade. Agradeço pelas ricas contribuições, pela atenção, pela amizade
e pela confiança depositada.
6
A minha turma, por todos os momentos compartilhados durante esses dois
anos.
A todos os professores, desde a educação básica até aqui, que contribuíram
de forma positiva com a minha formação.
Por fim, não há como listar o nome de todas as pessoas que fazem parte
dessa conquista. Agradeço a todos que direta ou indiretamente contribuíram para
minha formação acadêmica, profissional e pessoal e a todos que torceram e
vibraram com mais essa vitória.
7
A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o
que ninguém ainda pensou sobre aquilo que todo mundo vê.
(Arthur Schopenhauer)
8
RESUMO
Atualmente, é cada vez mais evidente a presença de flanelinhas/guardadores
de carros na paisagem urbana das cidades brasileiras. Esses sujeitos se apropriam
de parcelas do espaço público, definindo seu uso e organização, com o intuito de
exercer uma atividade que lhes garanta renda. Encontram nesta atividade, uma
maneira de subsistência (no trabalho por conta própria), que se realiza no âmbito do
setor informal da economia urbana. Como decorrência dessa apropriação do espaço
público, verificamos o desencadeamento de diversos conflitos de ordem social,
econômica, política e cultural. Nesse sentido, este trabalho objetiva analisar a
territorialidade expressa pelos flanelinhas/guardadores de carros através da
apropriação de parcelas do espaço público dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e
Tirol de Natal-RN. Essa reflexão pauta-se na discussão acerca dos conceitos de
espaço, território e territorialidade, entre outros elementos teóricos que dão suporte
à compreensão da dinâmica espacial estabelecida por estes sujeitos no espaço
público. Leva em consideração a influência e controle que os
flanelinhas/guardadores de carros têm sobre o espaço apropriado, a organização
que os mesmos estabelecem no seu território, bem como os conflitos instituídos
entre os sujeitos que atuam nessa atividade e os demais indivíduos afetados por
esta. Para o desenvolvimento da pesquisa, realizaram-se alguns procedimentos
teórico-metodológicos, como: revisão bibliográfica (sobretudo a partir de Sack
(1986), Raffestin (1993), Haesbaert (1997, 1999, 2007), Saquet (2009, 2011, 2015),
Valverde (2007), Albagli (2004), Idalino (2012), Cacciamali (1982, 2000), Araújo
(2009), Freire (2005), Fernandes (2005, 2009), dentre outros); pesquisa de campo
(observação e realização de entrevistas estruturadas), pesquisa documental e
produção fotográfica. Tais procedimentos nos possibilitaram compreender que a
territorialidade dos flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN se constitui de materialidades e imaterialidades que
podem ser percebidas a partir das formas de apropriação, organização, influência e
controle que estes sujeitos estabelecem no seu território.
Palavras-chave: territorialidade; flanelinhas/guardadores de carros; apropriação;
espaço público; Natal-RN.
9
ABSTRACT
Nowadays, the presence of flanelinhas/car keepers in the urban landscape of
Brazilian cities is increasingly evident. These subjects appropriated portions of the
public space, defining their use and organization, in order to exercise an activity that
guarantees them income. They find in this activity a way of subsistence (in self-
employment), which takes place within the informal sector of the urban economy. As
a consequence of this appropriation of the public space, we have seen the
unleashing of various conflicts of a social, economic, political and cultural order. In
this sense, this work aims to analyze the territoriality expressed by flanelinhas/car
keepers through the appropriation of portions of the public space of the Cidade Alta,
Petrópolis and Tirol districts of Natal-RN. This reflection is based on the discussion
about the concepts of space, territory and territoriality, among other theoretical
elements that support the understanding of the spatial dynamics established by these
subjects in the public space. It takes into account the influence and control that the
flanelinhas/car keepers have on the appropriate space, the organization that they
establish in their territory, as well as the conflicts established between the subjects
that work in this activity and the other individuals affected by it. For the development
of the research, some theoretical and methodological procedures were carried out,
such as: bibliographical review (mainly from Sack (1986), Raffestin (1993),
Haesbaert (1997, 1999, 2007), Saquet (2009, 2011, 2015), Valverde (2007), Albagli
(2004), Idalino (2012), Cacciamali (1982, 2000), Araújo (2009), Freire (2005) and
Fernandes (2005, 2009). Field research (observation and application of structured
interviews), documentary research and photographic production. These procedures
enabled us to understand that the territoriality of the flanelinhas/car keepers of the
Cidade Alta, Petrópolis and Tirol districts of Natal-RN is constituted of materialities
and immaterialities that can be perceived from the forms of appropriation,
organization, influence and control that these subjects establish Territory.
Keywords: Territoriality. Flanelinhas/Car keepers. appropriation. Public space. Natal-
RN.
10
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1 Meio de transporte e objetos pessoais do
flanelinha/guardador de carros na Rua Campos Sales
(Tirol)
77
Fotografia 2
Instituto de radiologia localizado entre a Avenida Afonso
Pena e a Rua Jundiaí (Tirol): apontado como um dos
estabelecimentos que promove elevada rotatividade de
automóveis nas proximidades da sua localização.
77
Fotografia 3
Cardioclínica localizada na Rua Jundiaí (Tirol): apontado como um dos estabelecimentos que promove elevada rotatividade de automóveis nas proximidades da sua localização.
78
Fotografia 4 Espaço público da Rua Rodrigues Alves (Petrópolis) constituído por área de estacionamento e amenidades (árvores-sombra).
79
Fotografia 5 Instalação clandestina e improvisada de água em
espaço público da Rua Campos Sales (Tirol). 79
Fotografia 6 Espaço público amplo na Rua Afonso Pena (Petrópolis)
destinado a estacionamento. 80
Fotografia 7 Caçamba de lixo demarcando limite do território de
flanelinha/guardador de carros na Rua Jundiaí (Tirol). 83
Fotografia 8 Poste demarcando limite do território de flanelinha/guardador de carros da Rua Jundiaí (Tirol).
83
Fotografia 9 Flanelinha/guardador de carro em seu território na Rua Floriano Peixoto (Petrópolis)
84
Fotografia 10 Objetos que remontam a presença do flanelinha/guardador de carros neste espaço.
85
Fotografia 11 Amenidade presente em território de flanelinha/guardador de carros na Rua Afonso Pena (Tirol).
103
Fotografia 12
Flanelinha/guardador de carros recebendo “pagamento” pela utilização de seu serviço e de vaga de estacionamento no seu território na Rua Coronel Bezerra (Cidade Alta).
104
Fotografia 13 Território de flanelinha/guardador de carros delimitado a partir da apropriação de espaço público destinado a estacionamento na Rua Jundiaí (Tirol).
105
Fotografia 14 Flanelinha/guardador de carros vigiando os carros estacionados em seu território na Avenida Afonso Pena (Tirol).
106
Fotografia 15 Flanelinha/guardador de carros auxiliando na manobra de um carro para estacionar em seu território na Rua Floriano Peixoto (Petrópolis).
106
11
Fotografia 16 Flanelinha/guardador de carros lavando carro em seu território na Rua Açu (Tirol).
107
Fotografia 17 Flanelinha/guardador de carros presente e vigilante em seu território na Rua Floriano Peixoto (Petrópolis).
108
Fotografia 18 Flanela e cadeira remetendo a presença de flanelinha/guardador de carros na Rua Açu (Tirol).
108
12
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 Percentual de trabalhadores empregados com carteira assinada (ou militares e estatuários), segundo os anos de estudo – 2000.
45
Gráfico 2 Faixa etária dos flanelinhas/guardadores de carros 72
Gráfico 3 Participação na renda familiar 73
Gráfico 4 Grau de instrução dos flanelinhas/guardadores de carros
73
Gráfico 5 Tempo na atividade de flanelinha/guardador de carros 74
Gráfico 6 Atribuição à escolha pela atividade de flanelinha/guardador de carros
75
Gráfico 7 Atribuição à escolha da área para desenvolvimento da atividade de flanelinha/guardador de carros
81
Gráfico 8 Posicionamento dos condutores a respeito da atividade dos flanelinhas/guardadores de carros
87
13
LISTA DE MAPAS
Mapa 1
Localização dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol
de Natal-RN, com destaque para as ruas que compõem
nosso lócus de pesquisa.
20
Mapa 2 Quantidade de estabelecimentos, por tipologia, nos bairros de Natal-RN
21
Mapa 3 Concentração e distribuição dos flanelinhas/guardadores de carros dos/nos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN
101
14
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Densidade demográfica dos munícipios que compõem a região metropolitana de Natal-RN - 1970/2000.
38
Tabela 2 Densidade dos tipos socioespaciais em relação às categorias sócio-ocupacionais em Natal-RN e região metropolitana – 2000.
41
Tabela 3 Indicadores do mercado de trabalho de Natal-RN (1991/2000).
43
Tabela 4 Pessoas com 10 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência da pesquisa (censo 2000) por posição na ocupação e grupos de anos de estudo.
44
15
LISTA DE SIGLAS
ASG – Auxiliar de Serviços Gerais
DENATRAN – Departamento Nacional de Trânsito
DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
DP – Delegacia de Polícia
DRT – Delegacia Regional do Trabalho
FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia Estatística
SEADE – Sistema Estadual de Análise de Dados
SEMOB – Secretaria de Mobilidade Urbana
SEMTHAS – Secretaria Municipal de Trabalho, Habitação e Assistência Social
16
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 18
2 FLANELINHAS/GUARDADORES DE CARROS NO ESPAÇO PÚBLICO:
PRESSUPOSTOS DO SURGIMENTO DA ATIVIDADE NO CONTEXTO
SOCIOECONÔMICO E POLÍTICO DAS CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE
TRABALHO NO BRASIL 29
2.1 Precarização das condições e relações de trabalho no Brasil – (1970 a
1990) 30
2.2 Setor informal da economia urbana: um abrigo para os trabalhadores
por conta própria 34
2.3 O contexto do mercado de trabalho de Natal-RN 38
2.4 A regulamentação e criminalização da atividade dos
flanelinhas/guardadores de carros 47
3 DO ESPAÇO AO TERRITÓRIO: SOBRE O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO
ESPACIAL 53
3.1 Espaços públicos: da origem à definição da noção 58
3.2 O espaço público na perspectiva das Ciências Sociais e da Geografia 63
3.3 Apropriação de parcelas do espaço público dos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN por flanelinhas/guardadores de carros 71
3.3.1 Perfil dos flanelinhas/guardadores de carros que se apropriam de parcelas
do espaço público dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN 73
3.3.2 Características da apropriação de parcelas do espaço público dos bairros
Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN pelos flanelinhas/guardadores de
carros 76
4 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: SOBRE AS DINÂMICAS TERRITORIAS
E ESTRATÉGIAS DE INFLUÊNCIA E CONTROLE NO TERRITÓRIO 90
17
4.1 Território e relações de poder 91
4.2 Influência e controle no território: sobre a definição e teoria da
territorialidade humana 95
4.3 A configuração e organização territorial dos flanelinhas/guardadores de
carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN 100
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 112
REFERÊNCIAS 114
APÊNDICE A 119
APÊNDICE B 121
ANEXO A 122
ANEXO B 123
18
1 INTRODUÇÃO
Diariamente milhares de pessoas circulam em seus automóveis pelo centro
das cidades brasileiras, por motivos diversos, como: ida ao trabalho, realização de
negócios, compras, lazer, entre outros. As áreas centrais e/ou aquelas que
apresentam uma grande quantidade de serviços e de estabelecimentos comerciais
são sempre áreas que atraem e concentram essa circulação. Dessa forma, quando
transitamos por esses locais, por diversas vezes encontramos dificuldades para
estacionar devido à grande quantidade de automóveis e à precária e/ou inadequada
estrutura e organização das vias públicas no que tange às vagas de
estacionamento.
Não bastasse isso, nos deparamos, ainda, com outra situação (que acaba por
agravar a problemática): a apropriação de áreas nas vias públicas por
flanelinhas/guardadores de carros1 - sujeitos que se apropriam de parcelas do
espaço público com intuito de exercer uma atividade que lhes garanta renda. Grande
parte desses sujeitos se concentra no centro das cidades, ou em outros espaços
que comportem um relevante número de serviços bem consolidados e de
estabelecimentos comerciais, devido à dinâmica suscitada por estes locais que
proporcionam a eles, tendo em vista a atividade que exercem2, auferir maior renda,
visto que essa atividade está diretamente ligada à circulação de pessoas em seus
automóveis.
Essa forma de utilização do espaço público, caracterizada pela ação dos
flanelinhas/guardadores de carros, que se apropriam de áreas nas vias públicas e
nelas definem suas próprias regras e normas, tem sido alvo de diversos conflitos
com as pessoas que fazem uso destes espaços, pois estas se dizem “obrigadas” a
pagar por um “serviço” não solicitado, por medo de sofrer algum tipo de retaliação
por parte do flanelinha/guardador de carros. Ou seja, ao utilizar o espaço público –
gerido pelo Estado e de uso livre pela sociedade – faz-se necessário o pagamento
de uma “contribuição”, gorjeta ou, em muitos casos, valor fixado pelos
flanelinhas/guardadores de carros.
1 O termo “flanelinha” advém do objeto simbólico de representação deste grupo: um “certo tec ido de
lã” denominado “flanela”, e remete-se a “pessoa que, em troca de gorjeta, vigia veículos estacionados nas ruas”. (FERREIRA, 2010, p. 353). 2 Os flanelinhas/guardadores de carros apontam vagas para os condutores, manobram e/ou auxiliam
na baliza dos automóveis, vigiam e lavam os carros, além de prestarem tantos outros serviços para as pessoas que transitam em seus automóveis nas imediações de sua ação.
19
Nessa perspectiva, percebemos a relevância do estudo da territorialidade dos
flanelinhas/guardadores de carros, quando verificamos a presença, cada vez mais
crescente destes sujeitos no cenário das cidades brasileiras e, sobretudo, quando
observamos a dinâmica cotidiana estabelecida no espaço público entre estes
sujeitos e aqueles afetados por esta atividade, pois trata-se de uma dinâmica de
caráter dual – ora negativa, ora positiva – que varia de acordo com inúmeros fatores,
dentre eles a originalidade do grupo, que está intimamente relacionada à intensão
por trás da ação desses sujeitos.
Isto porque, por se tratar de um grupo que se encontra à margem da
sociedade, ou seja, um grupo social excluído, os flanelinhas/guardadores de carros
são muitas vezes discriminados pela sociedade da qual fazem parte, diante de um
estereótipo de criminalidade, visto que vez ou outra a imprensa noticia a prática de
delitos e furtos por “flanelinhas/guardadores de carros” (anexo A).
Aliado a isso, outro fator que contribui para esta condição é o fato de
criminosos e vândalos se aproveitarem do discurso dos “verdadeiros”
flanelinhas/guardadores de carros, na condição de “trabalhadores”, para se
denominarem muitas vezes como “flanelinhas/guardadores de carros”, porém com
outras motivações e interesses – cometer crimes como: extorsão, roubo,
vandalismo, agressão, entre outros. Isto porque, apesar da atividade ser embasada
pelo decreto nº 79.797, de 8 de junho de 1977, que regulamenta o exercício das
profissões de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, a que se
refere a lei nº 6.242, de 23 de setembro de 1975 e dá outras providências (SOLEIS,
2015), não há uma fiscalização efetiva.
Por outro lado, acreditamos que, mesmo não possuindo respaldo nas leis
trabalhistas e se apropriando de espaços públicos, os “verdadeiros”
flanelinhas/guardadores de carros acabam, por vezes, contribuindo de forma positiva
para o bom funcionamento do espaço público, uma vez que organizam o território,
exercendo um papel que cabe ao Estado, mas que é, por vezes, negligenciado ou
inadequadamente executado. Assim, em certa medida, beneficiam as pessoas que
fazem uso deste espaço cotidianamente ou, pelo menos, minimizam as dificuldades
encontradas pelos condutores de automóveis diante da precariedade estrutural das
vias públicas.
20
A escolha dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN como
dimensão empírica do nosso estudo (mapa 1), decorre do fato destes apresentarem
uma presença maciça de flanelinhas/guardadores de carros e por apresentarem
características semelhantes e de fundamental importância para a atividade destes
sujeitos, principalmente a grande quantidade de estabelecimentos comerciais e de
serviços, a presença de diversos órgãos e estabelecimentos públicos, de esfera
municipal, estadual e federal, dentre outros (mapa 2), os quais suscitam a
característica primordial para a atividade destes sujeitos: a intensa circulação de
pessoas em seus automóveis e parada momentânea nestes espaços. Além disso,
esses bairros estão interconectados por importantes vias e avenidas da cidade que
cortam seus territórios. Desse modo, se constituem como uma das principais áreas
de atração e interesse dos flanelinhas/guardadores de carros da/na cidade.
21
Mapa 1: Localização dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, com destaque para as ruas que compõem nosso lócus de pesquisa.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Elaboração cartográfica: Cláudia Silva e Luiz Perônico, 2017.
22
Mapa 2: Quantidade de estabelecimentos, por tipologia, nos bairros de Natal-RN
Fonte: CNEFE, 2010. Elaboração cartográfica: Cláudia Silva e Luiz Perônico, 2017.
23
Com base no mapa 2, percebemos que o bairro Cidade Alta se destaca,
principalmente pelo elevado número de bancos e serviços financeiros, além dos
estabelecimentos comerciais e de serviços diversos. Enquanto isso, Petrópolis e
Tirol se destacam pela elevada concentração dos serviços de saúde da cidade em
seu território. Dessa forma, esses bairros apresentam um considerável fluxo de
capital, pessoas e veículos, posto que tratam-se de lugares de trabalho, realização
de negócios, serviços, compras, entre outros. Contudo, a expansão e o crescimento
dos referidos bairros não têm acontecido em consonância com a aplicação de
investimentos, por parte do poder local, em infraestruturas que atendam à dinâmica
lhes suscitada. Com isso, estes bairros apresentam diversos problemas relacionados
à intensa circulação de pessoas e veículos em seu território, dentre os quais
destacamos os problemas referentes às vagas de estacionamento e ao transporte
público urbano.
De acordo com dados do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN),
em 2001 a Cidade de Natal-RN possuía uma frota de 100.988 automóveis. Em 2004
eram 116.884. Já em 2010 esse número subiu para 171.467 e em 2016 já somavam
218.403 automóveis. Ou seja, em 15 anos, houve um aumento de,
aproximadamente, 53,76% na frota de automóveis de Natal-RN.
Até dezembro de 2016, os automóveis que circulavam na cidade de Natal
somavam quase a metade (42,80%) do total de automóveis de todo o Rio Grande do
Norte, que corresponde a 489.097. Em contrapartida, a quantidade de ônibus e
micro-ônibus circulando em Natal era de, respectivamente: 1.448 e 983 em 2001;
1.681 e 993 em 2004; 2.142 e 1106 em 2010; e 2.622 e 1.322 em 2016. Ou seja, em
15 anos houve um aumento de, aproximadamente, 44,77% na quantidade de ônibus
e 25,64% no número de micro-ônibus de Natal (DENATRAN, 2016).
Assim, podemos considerar que esse aumento considerável da frota de
automóveis de Natal-RN a cada ano, deve-se, em parte, à ineficiência e/ou
precariedade do sistema de transporte público local, tanto pela questão de números
de veículos quanto pela qualidade destes. Isto porque, apesar do relativo
crescimento da frota de ônibus e micro-ônibus a cada ano, este ainda não supre,
satisfatoriamente, a dinâmica cotidiana da cidade, o que, por sua vez, intensifica o
sentimento de necessidade do automóvel particular e, consequentemente, ocasiona
24
esse grande fluxo de automóveis nos bairros mais movimentados da cidade, como é
o caso de Cidade Alta, Petrópolis e Tirol.
Apesar desse aumento da frota e do fluxo de automóveis nestes bairros, não
se verifica investimentos significativos, seja no sistema de transporte público, para
diminuir a quantidade de automóveis que circulam pela cidade, seja no ordenamento
territorial destes bairros, que apresentam diversas ruas e avenidas exclusivas para a
circulação de veículos, porém não apresentam um satisfatório número de espaços
reservados a estacionamentos, sejam públicos ou privados, o que faz com que na
hora de estacionar os automóveis, os condutores encontrem bastante dificuldade.
Nesse contexto, os flanelinhas/guardadores de carros se aproveitam dessa
dificuldade que os condutores de automóveis enfrentam cotidianamente, para
exercer uma atividade que lhes garanta o sustento. Nos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN, esses sujeitos se apropriam, demarcam e até loteiam
parcelas das vias públicas que se destinam ao estacionamento – as quais, cabe
ressaltar, já são insuficientes –, tomando para si, através da sua territorialidade, o
controle, domínio e até mesmo o “direito” sob o referido espaço. Assim, os
condutores que já encontram dificuldade para estacionar ficam, ainda,
condicionados aos serviços e ao “pedaço”3 dos flanelinhas/guardadores de carros
para conseguir uma vaga de estacionamento.
Apesar de se tratar de um tema facilmente perceptível em nosso cotidiano,
ainda são poucas as discussões relativas a essa temática. Em nossas pesquisas,
raros trabalhos científicos referentes a essa problemática – a esse grupo
especificamente – foram encontrados. Nesse sentido, o nosso estudo tem o intuito
de iniciar/enfatizar o debate acerca desse tema, sob o viés geográfico, abrindo
espaço para futuras discussões e abordagens sobre o referido assunto. Desse
modo, acreditamos estar contribuindo para a discussão e/ou desenvolvimento
científico de um tema ainda pouco explorado, porém empiricamente vivenciado por
toda a sociedade que compõe o espaço urbano brasileiro.
Sendo assim, pretendemos com o desenvolvimento da pesquisa, responder
alguns questionamentos e inquietações referentes à territorialidade dos
flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de
Natal-RN, tais como: Em que contexto socioeconômico e político surge a atividade
3 Os flanelinhas/guardadores de carros utilizam este termo para designar a sua área de atuação e
controle, ou seja, o seu território.
25
dos flanelinhas/guardadores de carros? Como esse grupo se apropria do espaço
público e quais os conflitos gerados em decorrência disso? Como se organizam no
território? Que influência e controle têm sobre os espaços apropriados?
Nesse sentido, nosso objetivo é analisar a territorialidade expressa pelos
flanelinhas/guardadores de carros através da apropriação e controle de parcelas do
espaço público dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, buscando
discutir o contexto socioeconômico e político em que surge essa atividade,
caracterizar o processo de apropriação de parcelas do espaço público por estes
sujeitos e os conflitos gerados em decorrência desse processo, caracterizar, ainda, a
configuração/organização que adotam no território apropriado, bem como
compreender a influência e o controle que estabelecem nesse processo de
apropriação e organização de parcelas do espaço público.
Para a realização desse trabalho, adotamos alguns procedimentos teórico-
metodológicos, tais como: revisão bibliográfica, pesquisa de campo e levantamento
(visando à coleta de dados), pesquisa documental e produção fotográfica.
Realizamos a revisão bibliográfica, que visa “[...] colocar o pesquisador em
contato com o que já se produziu a respeito do seu tema de pesquisa” (PÁDUA,
2005, p. 55), que nos possibilitou aprofundar os conhecimentos acerca da temática
escolhida para a presente pesquisa, bem como para construir o aporte teórico
necessário para a realização desse estudo. Desta forma, esse procedimento
significa para aquele que pesquisa:
[...] revisar todos os trabalhos disponíveis, objetivando selecionar tudo o que possa servir em sua pesquisa [...] afinar suas perspectivas teóricas, processar e objetivar seu aparelho conceitual. Aproveita para tornar ainda mais conscientes e articuladas suas intenções [...] (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 112).
Posteriormente, prosseguimos com a pesquisa de campo que, conforme
aponta Marconi e Lakatos (2004), é utilizada com o objetivo de conseguir
informações e/ou conhecimentos sobre um determinado problema (a territorialidade
dos flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de
Natal-RN). Consiste, ainda, na observação, de fatos e fenômenos tal como ocorrem
espontaneamente, na coleta de dados a eles referentes e no registro de variáveis
que se presume relevantes para analisá-los. Assim, através da pesquisa de campo,
26
tornou-se possível, sobretudo, nos familiarizarmos com a nossa dimensão espacial e
as relações estabelecidas neste.
Realizamos o primeiro momento da pesquisa de campo, na qual procedemos
com a identificação, delimitação e mapeamento da
concentração/distribuição/organização dos flanelinhas/guardadores de carros no
nosso recorte empírico, bem como a realização de levantamento com esses sujeitos,
visando à obtenção de dados prévios e de um diagnóstico sobre a nossa
problemática. Para isso, percorremos os bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de
Natal-RN, em diferentes dias e horários, objetivando a realização dos procedimentos
anteriormente citados, como também a observação de aspectos que consideramos
importantes para esta pesquisa.
Cabe salientar que, durante todo o processo de desenvolvimento da
pesquisa, trabalhamos com a observação, visto que o nosso recorte empírico faz
parte do nosso cotidiano e nos possibilitou diariamente diversas constatações, pois
A observação é uma técnica de coleta de dados para conseguir informações e utiliza os sentidos na obtenção de determinados aspectos da realidade. Não consiste apenas em ver e ouvir, mas também em examinar fatos ou fenômenos que se desejam estudar (MARCONI; LAKATOS, 2004, p. 190).
Ressaltamos, ainda, que a técnica de pesquisa de campo a qual adotamos,
neste primeiro momento, foi a do tipo exploratória, visto que os estudos exploratórios
são:
(...) investigações de pesquisa empírica cujo objetivo é a formulação de questões ou de um problema, com tripla finalidade: desenvolver hipóteses, aumentar a familiaridade do pesquisador com um ambiente, fato ou fenômeno, para a realização de uma pesquisa futura mais precisa ou modificar e clarificar conceitos. [...] Obtém-se freqüentemente descrições tanto quantitativas quanto qualitativas do objeto de estudo, e o investigador deve conceituar as inter-relações entre as propriedades do fenômeno, fato ou ambiente observado (MARCONI; LAKATOS, 2004, p. 187).
Depois do primeiro momento da pesquisa de campo, demos continuidade ao
trabalho com a pesquisa documental em fontes estatísticas, como o Instituto
Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) e na legislação brasileira, em busca de
referencias à atividade dos flanelinhas/guardadores de carros; tendo em vista a
produção de uma base de dados desse amparo a nossa análise.
Por conseguinte, concretizamos o segundo momento da pesquisa de campo,
no qual realizamos as entrevistas estruturadas junto aos flanelinhas/guardadores de
carros e aos condutores de automóveis dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de
27
Natal-RN. Esse recurso nos possibilitou respostas imediatas para as informações
desejadas no trabalho, admitindo tudo aquilo que não pode ser revelado por escrito
e propiciando um diálogo aberto entre o entrevistador e o entrevistado.
Ademais, a produção fotográfica também foi utilizada como procedimento de
pesquisa, visto que nos possibilitou registrar e analisar particularidades do
comportamento e das características desse grupo social no território. “[...] as
fotografias que podem ser utilizadas em investigação educacional qualitativa podem
ser separadas em duas categorias: as que foram feitas por outras pessoas e
aquelas que o investigador produziu” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 184). Nessa
perspectiva, trabalhamos, no presente estudo, com os dois tipos de fotografias,
visando à captura e expressão daquilo que é do nosso interesse.
Por fim, prosseguimos com a organização e análise dos dados coletados,
que, aliados às leituras realizadas, são a base para as discussões apresentadas a
seguir.
Visto isso, estruturamos o presente trabalho em 5 (cinco) seções, a saber:
Seção 1 – Introdução: Esta seção apresenta e contextualiza a temática
referente à territorialidade dos flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade
Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, indicando, assim, o nosso objeto de estudo; a
relevância do tema tratado; conta ainda com a justificativa, as questões e objetivos
de pesquisa, os pressupostos teóricos, o percurso metodológico de desenvolvimento
do trabalho e a apresentação de sua estrutura.
Seção 2 – Flanelinhas/guardadores de carros no espaço público:
pressupostos do surgimento da atividade no contexto socioeconômico e
político das condições e relações de trabalho no Brasil: Esta seção apresenta o
referencial teórico e metodológico que norteia a discussão apresentada sobre:
precarização das condições e relações de trabalho (IDALINO, 2012); (MATTOSO,
1999); (NORONHA, 2003); (SANTOS, 2005); (SANTOS, 2008); setor informal da
economia urbana e trabalhadores por conta própria (CACCIAMALI, 1982 e 2000);
(FERREIRA, 2007); (LIMA; SOARES, 2002); mercado de trabalho de Natal-RN
(ARAÚJO, 2009); (FREIRE, 2005); (PESSOA, 2015); e regulamentação e
criminalização da atividade dos flanelinhas/guardadores de carros (HORTA, 2010); e
(PAULA, 2013).
28
Seção 3 – Do espaço ao território: sobre o processo de apropriação
espacial: Esta seção apresenta a discussão acerca da apropriação do espaço
público e baseia-se na literatura construída sobre a noção de espaço público,
principalmente as contribuições que tratam desde a sua origem até a maneira como
esse se traduz nos dias de hoje. Apresentamos, também, contribuições acerca da
dicotomia conceitual do público versus o privado, visando ampliar a nossa
compreensão referente às apropriações conferidas aos espaços públicos.
Caracterizamos, ainda, o modo como os flanelinhas/guardadores de carros se
apropriam dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, bem como os
conflitos que são decorrentes de tal prática socioespacial. Nesse sentido,
recorremos, principalmente, a autores como: (VALVERDE, 2007); (CERQUEIRA,
2013); (ANDRADE; JAYME; ALMEIDA, 2009); (INDOVINA, 2002); (GOMES, 2012);
(SERPA, 2004); (LOPES, 2012); (CARLOS, 1996); (SOBARZO, 2006); (LOBODA,
2009); (SAQUET, 2011); (CASTRO, 2002).
Seção 4 – Território e territorialidade: sobre as dinâmicas territoriais e
estratégias de influência e controle no território: Esta seção apresenta a
discussão sobre o território e as dinâmicas que lhe são inerentes. Baseia-se nos
estudos de (FERNANDES, 2005 e 2009); (RAFFESTIN, 1993); (CUNHA; SILVA,
2007); (SILVA, 2009); (SACK, 1986); (ALBAGLI, 2004); (SAQUET, 2015);
(FOUCAULT, 1988); (HAESBAERT, 2007); (SOUZA, 2000). Apresentamos uma
caracterização do território dos flanelinhas/guardadores de carros e a organização
que estes adotam nos seus territórios nos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de
Natal-RN. Ademais, discute-se, ainda, sobre a territorialidade e as formas de
influência e controle, que estes sujeitos estabelecem em seus territórios.
Seção 5 – Considerações finais: Esta seção apresenta nossas
conclusões e considerações a respeito do trabalho e da discussão aqui posta. Não
pretende encerrar o assunto, pelo contrário, busca dar margem para novas
discussões e possibilidades de estudo desta problemática.
29
2 FLANELINHAS/GUARDADORES DE CARROS NO ESPAÇO PÚBLICO:
PRESSUPOSTOS DO SURGIMENTO DA ATIVIDADE NO CONTEXTO
SOCIOECONÔMICO E POLÍTICO DAS CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE
TRABALHO NO BRASIL
Os flanelinhas/guardadores de carros são trabalhadores excluídos e
marginalizados, tanto pelo mercado – sob a égide capitalista – quanto pela
sociedade da qual fazem parte, e se constituem em um grupo social que expressa
no espaço público da cidade, transformado em território, a sua territorialidade e, a
partir desta, suas aspirações, enquanto classe trabalhista não reconhecida. Essa
atividade situa-se, frequentemente, na fronteira entre o informal e o ilegal, pois
refere-se a uma atividade, na maioria da vezes, não classificada legalmente
enquanto emprego ou trabalho – apesar da existência de uma lei e decreto federais4
que dispõem sobre a regulamentação dessa atividade – e, que se realiza num
contexto de condições extremamente precárias.
Esses sujeitos são vistos, pela grande maioria da população, como
trabalhadores informais de rua que oferecem um serviço desqualificado, isto é, “não
demandado pela sociedade” (IDALINO, 2012, p. 19-20). Consideramos que esses
trabalhadores informais encontram na atividade, uma maneira de subsistência (no
trabalho por conta própria), que se realiza no âmbito do setor informal da economia
urbana.
Entretanto, antes de analisarmos, mais especificamente, esse setor da
economia urbana que serve de “abrigo” para o trabalho dos flanelinhas/guardadores
de carros e a classificação que lhes é dada neste, faz-se necessária uma
contextualização acerca das condições e relações de trabalho no Brasil,
principalmente a partir da década de 1970 – período no qual o país passou por
profundas transformações que refletiram diretamente no seu mercado de trabalho –,
para compreender os possíveis fatores e/ou processos que conduziram esses
trabalhadores para fora do mercado de trabalho formal, ou seja, do setor formal da
economia urbana.
4 A saber, Lei nº 6.242/1975 e Decreto nº 79.797/1977.
30
2.1 Precarização das condições e relações de trabalho no Brasil – (1970 a
1990)
Nas últimas décadas do século XX, o Brasil passou por intensas
transformações sociais, políticas e econômicas que contribuíram profundamente
para o atual cenário da estrutura econômica do país e do seu mercado de trabalho,
sobretudo no que concerne à geração e distribuição de empregos. Essas
transformações dizem respeito, principalmente, a processos e fenômenos, como a
modernização do campo, a urbanização acelerada, a desregulamentação
econômica, a acentuada concentração de renda, dentre outros.
Percebemos que ao longo do século XX, o processo de urbanização brasileira
demonstra uma crescente aproximação com o processo da pobreza, no qual o locus
passa a ser, cada vez mais, as cidades. Estas, por sua vez, tornam-se o lugar de
todos os capitais e trabalhos, isto é, o palco de numerosas atividades “marginais” do
ponto de vista tecnológico, organizacional, financeiro, previdenciário, fiscal e
comercial (SANTOS, 2005).
Na América Latina, a discussão sobre “marginalidade” decorre,
principalmente, das análises a respeito da modernização como sinônimo de
urbanização acelerada e metropolização nos países desta região, as quais se
mostravam dominantes nos anos 1960 e 1970. No Brasil, particularmente, inúmeros
centros urbanos apresentaram um acelerado crescimento, que acabou por agravar a
situação de marginalização social, que se manifestou, de forma mais clara, no tecido
urbano das grandes cidades através do crescimento das favelas, da violência
urbana e das atividades informais (LIMA; SOARES, 2002).
Segundo Mattoso (1999), ao longo do século XX, o Brasil teve uma história de
crescimento econômico, mobilidade social, geração de empregos e concentração de
renda. Viabilizou-se no pós-guerra – a partir de uma ampla inserção internacional
qualificada por meio do processo de substituição de importações – um dos mais
intensos processos de industrialização e urbanização, que culminou na sua
transformação, em poucas décadas, de um país de base agrário-exportadora, para
uma das maiores e mais dinâmicas economias do mundo.
Essa transformação na estrutura econômica do Brasil, de agrário-exportadora
para industrial-urbana, se caracterizou pela elevada geração de empregos formais,
com efetiva capacidade de incorporar ao mercado de trabalho urbano, parcelas
31
significativas de uma população constituída por uma elevada taxa de crescimento
demográfico, e um significativo contingente de pessoas expulsas do campo
(MATTOSO, 1999).
Entretanto, vale ressaltar que, essa mudança ocorrida na base econômica do
Brasil – decorrente da expansão do sistema capitalista de produção – esteve
atrelada à crescente modernização e mecanização do campo, que acabou
resultando na expulsão da população rural para os grandes centros urbanos. Nesse
sentido, à medida que esse fenômeno tornava-se mais intenso, fez-se perceptível o
descompasso entre o crescimento demográfico e as oportunidades de empregos
geradas nos grandes centros urbanos, que, por sua vez, não comportavam uma
infraestrutura que atendesse a essa significativa massa populacional (HORTA,
2010).
Dessa forma, na década de 1980 verificou-se uma mudança na dinâmica do
mercado de trabalho brasileiro, que experimentou pela primeira vez com
intensidade, o surgimento do desemprego urbano, da deterioração das condições e
relações de trabalho, bem como a ampliação da informalidade. No entanto, o
desemprego e a precarização observadas nesse período foram relativamente baixas
devido à preservação das estruturas industriais e produtivas, além do fato de
estarem vinculadas ao processo inflacionário e às intensas oscilações do ciclo
econômico desta década (MATTOSO, 1999).
Conforme verificado por Pessoa e Dias (2015), nesse período os países de
capitalismo desenvolvido enfrentaram uma grave crise que se traduziu no que,
convencionalmente denomina-se “crise estrutural do capital”. Essa crise, inicialmente
verificada por volta da década de 1970 e aprofundada, sobretudo, na década de
1980, obrigou a realização de uma profunda reestruturação da economia e do
Estado, visando restabelecer a dinamicidade e estabilidade econômica e social
experimentada por esses países no segundo pós-guerra. No Brasil, essas mudanças
refletiram tanto na retração do trabalho formal, como também na acentuação das
inúmeras formas de “trabalhos atípicos”, onde ganharam destaque a terceirização, a
precarização e a informalidade.
Segundo Noronha (2003) até o final da década de 1980 a “informalidade” era
percebida pela maioria dos especialistas como um problema endêmico. Ou seja,
prevalecia a ideia de que essa “informalidade” era herança de uma economia semi-
32
industrializada e, desta forma, o seu fim tratava-se de uma questão de tempo e
desenvolvimento. Todavia, este autor supõe que, em termos de mercado de
trabalho, o início da década de 1990 representou uma ruptura crescente no
movimento de formalização do trabalho, verificado nas décadas anteriores.
Nos anos 1990, o baixo crescimento econômico aliado à racionalização, à
modernização da produção e à liberalização comercial-financeira refletiu ainda mais
no nível de emprego. Neste período, verificou-se uma diminuição na criação de
novos postos de trabalho e um significativo aumento do desemprego e de outras
formas de trabalho, ligadas à economia não formal e ao setor de serviços (SANTOS,
2008).
Constatou-se que nos últimos anos da década de 1990, a performance
produtiva não foi somente “medíocre” e decorrente dos efeitos das oscilações do
ciclo econômico sobre o mercado de trabalho. A geração de emprego também
sofreu
[...] as conseqüências profundamente desestruturantes de um processo de retração das atividades produtivas acompanhado do desmonte das estruturas preexistentes, sem que se tenha colocado no lugar outras capazes de substituí-las (MATTOSO, 1999, p. 11-14).
Diante dessas mudanças na estrutura econômica do Brasil, Idalino (2012, p.
44) ressalta como consequência negativa para os trabalhadores a ocorrência,
considerável, do aumento do desemprego estrutural. Este tipo de desemprego não é
fruto de recessões ou depressões transitórias, decorre, sim, “da própria estrutura
socioeconômica criada e mantida pelo sistema de produção capitalista globalizado.
O desemprego estrutural, assim, tende a se estender por longos prazos” (IDALINO,
2012, p. 44).
Aponta Mattoso (1999), que o Brasil nunca havia convivido com um
desemprego tão elevado, quanto o verificado na década de 1990. Muito menos com
um grau crescente de precarização das condições e relações de trabalho, que
culminou no crescimento vertiginoso do trabalho temporário, precário, por tempo
determinado, terceirizado, sem renda fixa, em tempo parcial, enfim, de milhares de
bicos que se difundiram por todo o país.
Então, “a cidade, onde tantas necessidades emergentes não podem ter
resposta, está [...] fadada a ser tanto o teatro de conflitos crescentes como o lugar
geográfico e político da possibilidade de soluções” (SANTOS, 2005, p.11). Assim, a
cidade, em seu modelo econômico e a sua estrutura física, torna-se geradora e
33
mantedora da pobreza, evidenciando os contrastes econômicos e sociais a ela
inerentes, como é o caso da problemática que se efetiva com as práticas dos
flanelinhas/guardadores de carros.
Mattoso (1999) aponta ainda, com base nas pesquisas do IBGE e do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) -
Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), que no final da década de 1990 no
Brasil, mais de 50% das pessoas ocupadas das grandes cidades se encontravam
em algum tipo de informalidade, boa parte sem registro e garantias mínimas como:
aposentadoria; Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); seguro
desemprego; dentre outros.
Dessa forma, o desemprego verificado nesse período é, ainda, acompanhado
por uma nítida redução dos salários e pela precarização das condições e relações
de trabalho5, que se dão, sobretudo, com o aumento de práticas trabalhistas
flexíveis, sem estabilidades e, muito menos, garantias sociais (SANTOS, 2008).
Como consequência desse processo de flexibilização das práticas trabalhistas, por
sua vez,
[...] tem-se a expansão e a intensificação do trabalho informal que, sob a lógica de um discurso transformador, propaga a alternância de função no processo produtivo, ou seja, o empregado de hoje pode tornar-se o empregador de amanhã. Este processo, no entanto, tende a obscurecer as relações de exploração e marginalização a que são submetidos os trabalhadores que, movidos por um discurso utópico de tornar-se patrão, investem todos os seus bens e sua força de trabalho e de sua família, em busca da ideia de trabalho autônomo, livre e por conta própria (IDALINO, 2012, p. 48-49).
Como consequência desse conjunto de mudanças ocorridas no mundo do
trabalho, o fenômeno da informalidade se intensifica e passa a transformar, cada vez
mais, trabalhadores formais em informais, ou seja, “realizadores de atividades em
que as funções são precarizadas e, consequentemente, os precariza na condição de
força produtiva do sistema” (IDALINO, 2012 p. 17).
Nessa perspectiva, Idalino (2012) enfatiza que as condições e relações de
trabalho além de sofrerem uma reformatação, também reproduzem e transformam
formas antigas. Desse modo, os trabalhos e as atividades – reproduzidas, criadas e
5 Neste trabalho, entendemos a precarização do trabalho, assim como Mattoso (1999, p. 8), enquanto
o aumento do cunho precário das condições de trabalho, com expansão do trabalho assalariado sem carteira e do trabalho por conta própria. Já a precarização das relações de trabalho dizem respeito ao “processo de deterioração das relações de trabalho, com a ampliação da desregulamentação, dos contratos temporários, de falsas cooperativas de trabalho, de contratos por empresa ou mesmo unilaterais” (MATTOSO, 1999, p. 8).
34
recriadas – que estão fora dos modelos do período antecedente, se apresentam com
baixos rendimentos e com a ausência de vínculo trabalhista e de contribuições
sociais. Todavia, são de fundamental importância para a manutenção e reprodução
do capital.
Entendemos que independente da denominação empregada – flanelinha,
guardador, pastorador ou vigia de carros –, é indiscutível o fato de que o surgimento
da atividade exercida por esses sujeitos se insere nesse amplo contexto social,
econômico, político e porque não dizer cultural, que envolve as diversas
transformações ocorridas, sob a lógica capitalista, no espaço urbano e no mercado
de trabalho dos países subdesenvolvidos, principalmente aquelas advindas da
industrialização, da migração rural-urbana, de uma urbanização combinada e
desigual, do desemprego estrutural, da precarização do trabalho e das relações de
trabalho e do processo de informalização do trabalho.
2.2 Setor informal da economia urbana: um abrigo para os trabalhadores por
conta própria
O mercado de trabalho brasileiro, no contexto da urbanização e
industrialização, se formou sob uma perspectiva dual, onde de um lado temos um
segmento limitado a trabalhadores mais qualificados, com vínculos estáveis, melhor
remunerados – setor formal –, e do outro um segmento constituído pela maioria dos
trabalhadores, no qual predominam os vínculos precários, o subemprego e o
trabalho por conta própria – setor informal (IDALINO, 2012).
Contudo, esse dualismo inicial, foi sendo gradativamente substituído pela
ideia de “complementaridade desse informal em relação às atividades formais, como
produto da expansão do capitalismo em áreas periféricas” (LIMA; SOARES, 2002, p.
163-64). Assim, passou a ser visto não mais como algo marginal, mas sim
necessário ao processo de acumulação.
Desse modo, segundo Lima e Soares (2002), para os trabalhadores, não se
tratava mais de uma reserva ao emprego industrial – urbano/formal – mas um modo
de inserção num mercado que mantinha relações estruturais de funcionalidade com
a formalidade, uma vez que,
[...] o mercado formal de trabalho é responsável por alimentar suas próprias “franjas”, pois ao excluir indivíduos em idade de trabalho os projeta para as margens, restando-lhes como saída única reinventar formas de sobrevivência dentro do mesmo sistema que os “vomita”. As condições de
35
“flanelinhas” e lavadores de carro é uma espécie de regurgitar que o sistema capitalista, em sua modalidade contemporânea, finda por promover. (IDALINO, 2012, p. 132)
Nessa perspectiva, entendemos que a origem do trabalho informal no Brasil
não se deu de forma tão diferente dos outros países da América Latina, onde a
migração do campo para os centros urbanos contribuiu para a consolidação do
excedente de mão-de-obra urbana que, acabou por desencadear o desemprego em
massa e, por consequência, a disseminação da informalidade (IDALINO, 2012).
A ideia de informalidade foi explicitada pela primeira vez em 1970, em um
estudo sobre a economia do Quênia. Desde então, o termo “informalidade” passou
por inúmeras qualificações, ao longo dos anos, constituindo-se enquanto um termo
polêmico, dotado de inúmeras interpretações, significações e usos que variam,
principalmente, de acordo com a compreensão e intenção de cada um que se dispõe
a estudá-lo (FILGUEIRAS; DRUCK; AMARAL, 2004).
Nesse sentido, desde a sua origem, o conceito de “informalidade” abrange um
enorme leque de situações profundamente distintas, que comungam da
desregulação estatal na sua organização e funcionamento, tais como economia
informal, mercado informal, setor informal, trabalho informal, dentre outros (LIMA;
SOARES, 2002). Entretanto, cada termo deste representa uma situação diferente,
marcada por características semelhantes – advindas da informalidade – porém com
enfoques e usos diferenciados.
A noção “economia informal”, por exemplo, corresponde ao conjunto de
trabalhos, atividades, relações econômicas e rendas que se realizam
desconsiderando a legislação vigente específica. Pode representar, ainda,
fenômenos muito diferentes, como: terceirização; microempresas; evasão e
sonegação fiscais; contratação ilegal de trabalhadores assalariados; comércio de rua
ou ambulante; trabalho em domicílio; trabalho temporário; entre outros
(CACCIAMALI, 2000). Ou seja, trata-se de um termo de enfoque amplo, que engloba
todos os aspectos econômicos que se realizam à margem da legislação.
O setor informal, por sua vez, se constitui enquanto um dos segmentos dessa
economia. Este abriga em si uma série de atividades, ocupações e trabalhos
informais. É aqui, mais especificamente, que os flanelinhas/guardadores de carros –
através da “criação” ou “recriação” de uma atividade tida pela maioria das pessoas
como desnecessária – encontram uma forma de sobreviver e participar de um
36
mercado de trabalho que, regido pelo sistema capitalista, é cada vez mais
competitivo e excludente.
De acordo com Ferreira (2007), um dos fatores que distinguem o setor formal
do informal é a concepção de que este último é composto por atividades econômicas
que se desenvolvem a margem da lei, ou seja, a organização do trabalho se dá fora
das formas contratuais legais. Logo, o setor informal não organiza sua produção
com base no trabalho assalariado. Este diz respeito ao “[...] conjunto de produtores
que, de posse dos meios de trabalho, desenvolvem suas atividades baseadas na
própria força de trabalho” conforme interpretou Cacciamali (1982, p. 5).
Segundo Ferreira (2007), dois enfoques se destacam quando se trata da
informalidade, um de caráter econômico e outro de caráter social. O econômico –
concebe o setor informal como uma alternativa precária, no qual os trabalhadores
aqui inseridos perderam seus empregos no mercado de trabalho formal e, por não
ter uma qualificação adequada, se veem obrigados a buscar, através de uma
atividade informal, a sua sobrevivência/sustento. Sob esse enfoque, o setor informal
é visto como resultado do desenvolvimento capitalista, uma vez que este é o gerador
de um exército industrial de reserva que impossibilita, desta forma, a inserção de
todos os trabalhadores em atividades formais.
Já o enfoque social – considera que o ingresso do trabalhador no setor
informal não acontece, necessariamente, por falta de qualificação ou opção no
mercado de trabalho formal, mas sim pela escolha consciente da maioria daqueles
que compõem esse setor. Sob esse enfoque, o setor informal é concebido enquanto
um setor heterogêneo, constituído por sujeitos motivados pela estratégia de
sobrevivência, mas também por uma alternativa de vida (FERREIRA, 2007).
Nessa concepção, o setor informal é o conjunto daqueles que, ao perderem seus empregos no mercado formal, não tiveram alternativa senão migrar para a informalidade (tendo esta atividade como única estratégia de sobrevivência). Além disso, há aqueles que já trabalharam formalmente e optaram por ingressar no setor informal pelos mais diversos motivos (por exemplo: desejo de autonomia em relação a horário, patrões; impedimentos familiares - como relação a maridos e filhos -; possibilidade de obter maiores rendimentos em relação ao mercado formal) [...] (FERREIRA, 2007, p. 15).
Diante do exposto, entendemos que a informalidade e o termo “informal”,
refere-se não a um objeto de estudo, mas sim à análise de um processo de
mudanças estruturais em curso na economia e na sociedade. Este, o qual
37
Cacciamali (2000) denomina “Processo de Informalidade”, incide, por sua vez, na
redefinição das formas de inserção dos trabalhadores na produção, das relações de
produção e dos processos de trabalho e de instituições. Em decorrência desse
processo de informalidade, temos, ainda, ao menos dois fenômenos principais:
O primeiro diz respeito à reorganização do trabalho assalariado, ao evolver das relações de trabalho criadas, ampliadas ou recriadas nesse âmbito. [...] Essas relações freqüentemente são apreendidas através de [...] formas de trabalho assalariado não registrado junto aos órgãos da seguridade social, mas também podem revelar contratações (legais ou consensuais) sob outros modos [...]. Apresentam, entretanto, uma característica comum: sua vulnerabilidade, ou seja, a insegurança da relação de trabalho e na percepção da renda; a ausência muitas vezes de qualquer regulamentação laboral e de proteção social [...]; o uso flexível do trabalho (horas e múltiplas funções); e freqüentemente menores salários, principalmente para os menos qualificados (CACCIAMALI, 2000, p. 163-164).
O segundo fenômeno, se refere ao trabalho por conta própria e a outras
estratégias de sobrevivência pelas quais as pessoas que apresentam dificuldades
para ingressar no mercado de trabalho, se reempregar ou mesmo por opção, obtém
renda. Cabe ressaltar que esses grupos estão, geralmente, inseridos em ocupações
de baixa produtividade (CACCIAMALI, 1982). Em outras palavras, esse “Processo
de Informalidade pode ser representado e acompanhado por duas categorias de
trabalhadores que são predominantes no processo: os assalariados sem registro e
os trabalhadores por conta própria” (CACCIAMALI, 2000, p. 166).
Nessa perspectiva, Cacciamali (2000) assinala que no caso da categoria dos
trabalhadores por conta própria – da qual consideramos pertencente à atividade
desempenhada pelos flanelinhas/guardadores de carros –, os trabalhadores estão
criando uma ocupação, relacionada, sobretudo, à prestação de serviços, com o
intuito de se auto-empregar. Esse grupo se caracteriza pelo baixo nível de
produtividade com o qual operam e compreende indivíduos, que dispõem de um
baixo nível de capital físico e humano.
Esses sujeitos são simultaneamente patrões e empregados e trabalham
diretamente na produção – ou como no caso dos flanelinhas/guardadores de carros
– na prestação de um serviço. Nesse processo, podem ainda se utilizar de familiares
ou ajudantes assalariados enquanto uma extensão do seu próprio trabalho. Aqui,
não há a pretensão de acumulação ou obtenção de uma rentabilidade equiparada a
de mercado, mas sim a obtenção de um montante que lhes possibilite a sua
subsistência e da sua família (CACCIAMALI, 2000). A inserção nessa categoria
decorre, principalmente,
38
[...] da escassez de empregos aderentes às características da força de trabalho, em especial seu capital humano, e pode constituir-se, em determinadas situações, uma alternativa à miséria. É uma forma de trabalho que se estende através de indivíduos motivados por dificuldades de reemprego, ou de ingresso no mercado de trabalho, ou que se encontram inativos em famílias com renda familiar baixa, podem ser aposentados que auferem pensões insuficientes, ou até podem ser indivíduos que optaram por essa forma de inserção diante das dificuldades de se adaptarem em trabalhos assalariados (CACCIAMALI, 2000, p. 167).
Portanto, o processo de informalidade deve ser associado aos diferentes
modos de inserção no trabalho que decorrem dos processos de reformatação das
economias em escalas mundial, nacional e local. Assim, para que entendamos
melhor o contexto que permeia o surgimento da atividade dos
flanelinhas/guardadores de carros na cidade de Natal-RN, faz-se necessária uma
caracterização da reformatação da economia nesse âmbito local, assim como das
transformações ocorridas no espaço urbano e no mercado de trabalho da cidade.
2.3 O contexto do mercado de trabalho de Natal-RN
A instabilidade econômica verificada no Brasil no período compreendido a
partir dos anos 1970 e, aprofundada, principalmente, entre as décadas de 1980 e
1990, contribuiu, profundamente, para o agravamento de problemas relacionados à
estrutura econômica do país, que reflete, sobretudo, no mercado de trabalho – seja
nacional, regional ou local – através do elevado crescimento do desemprego e de
novas formas de trabalhos, que se realizam de forma desregulamentada e
precarizada. Nesse sentido,
[...] é importante reportar-se ao fato de que nos anos [19]90 ocorreu na economia brasileira, e na de Natal em particular, um processo de modernização tecnológica com conseqüências nefastas para o mercado de trabalho. Nesse sentido, os investimentos realizados pelas empresas foram, em grande parte, destinados à modernização tecnológica, com impactos expressivos na produtividade e no emprego. Assim, por exemplo, o processo de modernização do parque industrial da Região Metropolitana de Natal, notadamente do parque têxtil, bem como do setor bancário, de telecomunicações e de distribuição de energia elétrica, com geração de desempregados ou de empregos terceirizados, foram responsáveis, em parte, pelo desempenho do mercado de trabalho da cidade na década passada (FREIRE, 2005, p. 35).
Nessa perspectiva, Araújo (2009) pontua que, em decorrência das mudanças
ocorridas neste período, na esfera internacional e nacional, a cidade de Natal,
capital do Estado do Rio Grande do Norte, também passou por profundas
transformações. Estas dizem respeito, principalmente, à reprodução de algumas
39
tendências análogas às ocorridas nas grandes cidades, como por exemplo: o
acelerado crescimento demográfico; o desemprego; a marginalização social; a
precarização do trabalho; e a expansão das atividade informais.
Até meados da década de 1950, Natal-RN exibia um processo de
urbanização incipiente e em desenvolvimento, o qual era impulsionado, sobretudo,
pela concentração populacional e de serviços. A instalação da base americana –
durante a Segunda Guerra Mundial – em Parnamirim, causou significativas
mudanças nas feições da cidade de Natal e na dinâmica populacional e econômica.
Desse período em diante, a cidade passou por outros surtos de urbanização,
principalmente entre as décadas de 1970 e 1980, seguindo a tendência nacional de
industrialização e crescimento urbano (PESSOA, 2015).
Conforme aponta Araújo (2009), no que concerne à densidade demográfica,
Natal/RN cresce de forma assustadora. Em 1970 havia atingido a soma de mais de
1.500 hab./km². Já em 1991, somavam-se mais de 3.500 e, em 2000, atingiu a
marca de mais de 4.200 hab./km² (Tabela 2).
Tabela 1: Densidade demográfica dos munícipios que compõem a região metropolitana de Natal-RN - 1970/2000.
Municípios
Período
1970 1980 1991 2000
Ceará Mirim 52,22 55,22 71,81 85,95
Extremoz 66,75 65,3 110,92 145,30
Macaíba 59,47 63,84 88,71 112,05
Monte Alegre 52,02 65,77 75,54 89,83
Natal 1.563,45 2.465,36 3.588,92 4.212,40
Nísia Floresta 30,15 31,97 44,63 60,99
Parnamirim 115,00 209,06 502,08 988,82
São G. do Amarante 72,27 118,22 174,51 266,55
São J. do Mipibu 59,07 69,74 96,05 119,11
RMN - - - 383,31
Fonte: ARAÚJO, 2009.
40
Essas altas taxas de crescimento demográfico são responsáveis pelo
acelerado processo de concentração populacional em um limitado espaço territorial.
Diante disso, surgem – de forma, altamente concentrada, no espaço e no tempo –
vários problemas inerentes à demanda especificamente urbana, dentre esses a
absorção insuficiente no mercado de trabalho formal (ARAÚJO, 2009). A isso,
[..] deve-se acrescentar que a exemplo do restante do país e da região, também no Rio Grande do Norte as funções de “amortecedores sociais” de muitos dos subsetores do terciário [...] foram ampliadas no período de 1970 a 1989, devido não apenas ter sido um período de crise permanente na economia nacional, que desaqueceu os investimentos industriais, mas, também, por conta do intenso processo de urbanização pelo qual passou as grandes regiões do país; e pelos anos de seca, sobretudo na década de 1970, que contribuíram para a migração da população de muitos estados nordestinos em direção às cidades de porte médio, notadamente suas capitais (ARAÚJO, 2009, p. 256).
Nessa perspectiva, a migração da população rural, no âmbito potiguar, deve-
se ao fato de que mais de 90% do território do Rio Grande do Norte encontra-se no
semiárido, e, desta forma, verifica-se neste poucas faixas de terras férteis, uma
agricultura, preponderantemente, de subsistência, e uma pecuária que depende
significativamente de projetos sociais elaborados pelo Estado e por alguns
municípios. Diante da ineficácia das políticas de manutenção do homem no campo
aliada à falta de condições mínimas – por parte dos municípios – para atender as
suas populações, esses fatores acabam se constituindo como propulsores da
migração em direção à capital do estado – Natal – e aos munícipios vizinhos.
Isto porque nestes espaços, principalmente na capital, a população interna
encontra uma melhor infraestrutura e oferta de serviços, embora haja a tendência à
deteriorização de quantidade e qualidade (ARAÚJO, 2009). Além disso, deve-se
levar em consideração que
[..] a política macroeconômica praticada na década de 1990 atingiu a
economia nacional em sua totalidade. Por conta dessa política, algumas estruturas produtivas do estado do Rio Grande do Norte sofreram o impacto da reestruturação a que foram submetidas, o que, por sua vez, fez com que parte da mão-de-obra, anteriormente empregada migrasse [...] sobretudo a capital do estado, em busca de alguma forma de subsistência (ARAÚJO, 2009, p. 283).
Outro fator importante, no que concerne à migração para a capital do estado
no período compreendido entre as décadas de 1970 e 1990, era a demanda de
mão-de-obra para a construção de conjuntos habitacionais na cidade, que
acabavam contribuindo para a elevada concentração demográfica em Natal-RN.
Esses trabalhadores induzidos à capital, a partir da oferta de emprego, fixavam
41
residência na cidade para trabalhar nessas construções. Contudo, após a conclusão
destas, esses trabalhadores, por não terem qualificação adequada para outros tipos
de empregos e devido à elevada concentração demográfica, acabavam não sendo
absorvidos pelo mercado de trabalho e ficavam desempregados.
Nesse sentido, tornou-se comum ver trabalhadores de rua criando e/ou
recriando novas atividades informais. Um exemplo disso é a atividade exercida pelos
flanelinhas/guardadores de carros nos espaços públicos dos centros urbanos das
grandes, médias e pequenas cidades (IDALINO, 2012). No caso dos
flanelinhas/guardadores de carros da cidade de Natal-RN, podemos inferir – com
base na (Tabela 3), que os inclui na categoria “biscateiros” – que boa parte dos
sujeitos que compõem essa atividade são aqueles oriundos da migração rural-
urbana verificada no estado, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, conforme
já apontado.
42
Tabela 2: Densidade dos tipos sócio-espaciais em relação às categorias sócio-ocupacionais em Natal-RN e região metropolitana – 2000.
CATEGORIAS SÓCIO-OCUPACIONAIS
TIPOS SÓCIO-ESPACIAIS
SUPERIOR
MÉDIO
POPULAR-OPERÁRIO
AGRÍCOLA
Grandes Empregadores 2,9 0,3 0,3 0,1
Dirigentes do Setor Público 2,5 0,4 0,5 0,2
Dirigentes do Setor Privado 3,3 0,2 - 0,2
Profissionais Autônomos de Nível Superior 2,3 0,6 0,4 0,1
Profissionais Estatuários de Nível Superior 2,6 0,5 0,2 0,2
Profissionais Empregados de Nível Superior 3,0 0,3 0,1 0,1
Professores de Nível Superior 2,5 0,5 0,3 -
Pequenos Empregadores 2,2 0,6 0,3 0,2
Artistas e Similares 1,4 0,9 0,6 0,3
Ocupações de Supervisão 1,5 0,9 0,4 0,1
Ocupações de Escritório 1,5 0,8 0,7 0,5
Ocupações Técnicas 1,7 0,8 0,3 0,1
Ocupações da Saúde e Educação 1,0 1,0 1,4 0,7
Ocupações da Justiça, Segurança Púbica e Correios 1,4 1,0 0,5 0,2
Trabalhadores do Comércio 0,9 1,1 0,7 0,4
Prestadores de Serviços Especializados 0,7 1,2 0,9 0,6
Trabalhadores da Indústria Moderna 0,5 1,3 0,9 0,4
Trabalhadores da Indústria Tradicional 0,5 1,2 1,1 0,9
Operários da Construção Civil 0,4 1,2 1,4 0,9
Trabalhadores dos Serviços Auxiliares 0,5 1,3 0,8 0,7
Prestadores de Serviços Não Especializados 0,4 1,3 0,9 0,8
Ambulantes e Biscateiros 0,8 1,0 1,2 1,6
Trabalhadores Domésticos 0,7 1,2 0,8 0,8
Agricultores 0,1 0,4 4,5 8,4
Fonte: PESSOA, 2015.
Analisa Freire (2005) que na década de 1990, a cidade de Natal-RN foi
marcada por um intenso processo de precarização do mercado de trabalho. Entre
1991 e 2000, o número de pessoas desempregadas em Natal mais que triplicou. O
número de pessoas procurando emprego, por sua vez, com base nos censos de
43
1991 e 2000, saltou de aproximadamente 18,5 mil para mais de 57 mil indivíduos.
Em função disso – e do fato que o número de pessoas desocupadas cresceu num
ritmo maior que o de pessoas ocupadas – a taxa de desocupação da cidade subiu
de 7,78% no ano de 1991 para 18,08% em 2000.
Podemos concluir que, nesse período, de cada dois (2) trabalhadores que
entraram no mercado de trabalho de Natal, um (01) o fez na condição de ocupado e
o outro ingressou nesse mercado na condição de procurando emprego. “Isso
significa dizer que a expansão do emprego na cidade no decorrer dos anos 1990 foi
suficiente para criar ocupações para apenas metade das pessoas que estavam
entrando no mercado de trabalho” (FREIRE, 2005, p. 14).
Para Freire (2005), neste período, o mercado de trabalho da cidade de Natal-
RN, foi marcado pelo acentuado crescimento das ocupações por “conta própria”, que
acenderam num ritmo bem mais acentuado que o das ocupações de “empregados”.
Este trabalho por conta própria se qualifica, sobretudo, pelas longas jornadas de
trabalho, pela inexistência de garantias sociais e pelas baixas remunerações. Com
isso, podemos dizer que o tipo de postos de trabalhos gerados na década de 1990
em Natal-RN, se caracterizava, principalmente, pelo seu caráter de precariedade.
A crescente precarização do mercado de trabalho da cidade de Natal-RN
evidencia-se nos seguintes indicadores: “em 1991 cerca de 27,75% da PEA de Natal
estava desocupada ou em ocupações por conta própria; em 2000 esse número
saltou para 39,32%” (FREIRE, 2005, p. 15) (Tabela 4).
44
Tabela 3: Indicadores do mercado de trabalho de Natal-RN (1991/2000)
1991 2000 VARIAÇÃO ABSOLUTA
VARIAÇÃO RELATIVA
VARIAÇÃO ANUAL
PEA 237.593 318.820 81.227 34,19 9.025
Ocupados 219.104 261.171 42.067 19,20 4.674
Desocupados 18.489 57.649 39.160 211,80 4.351
Taxa de Desocupação (%) 7,78 18,08
Empregados 167.035 192.798 25.763 15,42 2.863
Empregadores 7.389 9.584 2.195 29,71 244
Conta Própria 43.765 55.485 11.720 26,78 1.302
Outra Condição 915 3.304 2.389 261,09 265
Empregados (%) 76,24 73,82
Empregadores (%) 3,37 3,67
Conta Própria (%) 19,97 21,24
Outra Condição (%) 0,42 1,27
Fonte: FREIRE, 2005.
Freire (2005) aponta para outro aspecto que se destaca no mercado de
trabalho de Natal-RN, na virada do século XX para o século XXI. Este diz respeito à
quantidade de mão-de-obra ocupada com base na categoria de ocupação (Tabela
5). Constatou-se que nesse período a maioria absoluta dos trabalhadores ocupados
encontrava-se na situação de “empregados”. Depois, tínhamos a categoria de
trabalhadores por “conta própria”, que eram responsáveis por, aproximadamente,
1/5 dos postos de trabalho da cidade neste período. Já a categoria “empregadores”,
apresentava um percentual baixo, ficando apenas em terceiro lugar.
45
Tabela 4: Pessoas com 10 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência da pesquisa (censo 2000) por posição na ocupação e grupos de anos de
estudo.
GRUPOS DE ANOS DE ESTUDO
Posição na ocupação Total Sem instrução e menos de 1
ano
1 a 3 anos
4 a 7 anos
8 a 10 anos
11 a 14 anos
15 anos ou mais
Não determinados
Total 261.171 13.352 26.735 63.660 44.478 80.343 30.630 1.973
Empregados 192.798 8.285 17.738 45.218 33.770 62.944 23.421 1.423
Empregadores 9.584 123 297 1.140 1.069 3.907 3.028 20
Conta Própria 55.485 4.848 8.344 16.133 8.092 12.657 4.092 508
Não remunerados em ajuda a membro do domicílio
3.043 77 294 1.079 688 794 89 21
Trabalhadores na produção para o próprio consumo
261 19 61 91 49 41 - -
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Empregados 73,82 62,05 66,35 71,03 75,93 78,34 76,46 72,12
Empregadores 3,67 0,92 1,11 1,79 2,40 4,86 9,89 1,01
Conta Própria 21,24 36,31 31,21 25,34 20,01 15,75 13,36 25,75
Não remunerados em ajuda a membro do domicílio
1,17 0,58 1,10 1,69 1,55 0,99 0,29 1,06
Trabalhadores na produção para o próprio consumo
0,10 0,14 0,23 0,14 0,11 0,05
Fonte: FREIRE, 2015.
Apesar desse padrão se manter o mesmo em todos os grupos de anos de
estudos, cabe ressaltar que, o peso de cada uma dessas categorias de ocupação
varia segundo o nível educacional daquela população ocupada. Dessa forma, para
os sujeitos que possuem um baixo nível de escolaridade, o peso principal ainda é de
ocupados na categoria “empregados”, no entanto, quase 1/3 deles estão ocupados
em atividades por “conta própria”. Já para os trabalhadores com um maior nível de
escolaridade, o peso das ocupações por “conta própria” declina sucessivamente,
enquanto que o peso das categorias “empregados” e “empregadores” aumentam
(FREIRE, 2005).
Com base nessas informações, podemos dizer que o nível de escolaridade
reflete, significativamente, no tipo de ocupação em que o individuo vai conseguir se
46
inserir. Dessa forma, aqueles indivíduos que possuem um elevado nível escolar, se
inserem, com mais facilidade, no mercado de trabalho, seja na categoria de
“empregados” ou até mesmo como “empregadores”. Em contraste a isso, aqueles
indivíduos, como é caso dos flanelinhas/guardadores de carros da cidade de Natal-
RN, que possuem um menor nível escolar, encontram dificuldades para se inserir no
mercado de trabalho segundo a categoria “empregados”. Logo, são obrigados, na
maioria das vezes, a recorrer às atividades situadas na categoria por “conta própria”.
Freire (2005) correlaciona os anos de educação formal do trabalhador às
características de sua incorporação no mercado de trabalho (Gráfico 3). Com base
neste, fica evidente que o acesso a um trabalho formalizado, com carteira assinada
(ou militares e estatuários), e a garantia de maiores benefícios sociais – tais como
férias remuneradas, décimo terceiro, etc. – está intimamente relacionado a um maior
nível de escolaridade do trabalhador. Nessa perspectiva, somente metade dos
trabalhadores com um menor nível de escolaridade – 1 (um) ano de instrução –
estão empregados com carteira assinada (ou como militares e estatuários).
Enquanto isso, 90% daqueles que possuem um elevado nível de escolaridade –
mais de 15 (quinze) anos de estudos – estão nessas condições.
Gráfico 1: Percentual de trabalhadores empregados com carteira assinada (ou militares e estatuários), segundo os anos de estudo – 2000.
Fonte: FREIRE, 2005.
Isso demonstra, claramente, que a educação formal, ou seja, elevado nível
educacional, é condição extremamente importante para acesso a trabalhos formais,
que proporcionam um maior nível de estabilidade e proteção social. Nesse sentido,
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Seminstrução emenos de 1
ano
1 a 3 anos 4 a 7 anos 8 a 10 anos 11 a 14 anos 15 anos oumais
50,27 51,74 58,57
70,66
80,94 89,54
47
ficam restritas aos trabalhadores com menor nível de escolaridade – como é o caso
dos flanelinhas/guardadores de carros – as ocupações sem carteira assinada e o
trabalho por conta própria, que proporcionam uma menor estabilidade e proteção
social (FREIRE, 2005).
Esse autor salienta que, na virada do século XX para o século XXI, existiam
em Natal – de um total de 260 mil postos de trabalho – quase 115 mil postos de
trabalho precários, distribuídos entre trabalhadores sem carteira assinada (56 mil),
trabalhadores não remunerados (3 mil) e trabalhadores por conta própria (55 mil)
(FREIRE, 2005).
Assim, atividade dos flanelinhas/guardadores de carros surge em Natal-RN,
como uma forma de trabalhadores desempregados suprirem as suas necessidades
de subsistência. Nesse sentido, essa atividade se origina enquanto uma estratégia
de sobrevivência em meio a um contexto de elevado desemprego e precariedade
das condições e relações de trabalho. É importante salientar que, nos dias de hoje a
opção por essa atividade assume também um outro caráter, que diz respeito não
somente a uma estratégia de subsistência, mas também a opção voluntária pelo
trabalho por conta própria – devido à vantagens como: ser seu próprio chefe e não
pagar contribuições trabalhistas (o que, por sua vez, pode gerar um problema, ou
séria dificuldade a sua futura aposentadoria).
2.4 A regulamentação e criminalização da atividade dos
flanelinhas/guardadores de carros
Apesar da, cada vez mais crescente, presença dos flanelinhas/guardadores
de carros nos centros urbanos das cidade brasileiras, a grande maioria da
população desconhece que essa atividade é regulamentada como profissão desde a
década de 1970. Segundo Paula (2013) o motivo da regulamentação dessa
atividade deriva da situação socioeconômica brasileira vivenciada durante a década
de 1960 e início da década de 1970, quando se verificava nas grandes cidades, um
elevado número de desempregados que encontravam nas ruas, uma forma de
garantir sua renda e subsistência.
Nesse período tinham-se, principalmente, os engraxates e os lavadores de
veículos. Estes últimos ofereciam seu serviço – lavar os luxuosos automóveis nas
vias públicas - em troca de gorjetas, e para isso utilizavam baldes, panos surrados –
48
a flanela que hoje dá nome a atividade – e água obtida nas residências vizinhas.
Dessa forma, esses sujeitos encontravam na via pública e nos proprietários de
veículos - formados pela elite da época – uma forma de garantir o sustento (PAULA,
2013).
Nesse contexto, a Lei Federal que dispõe sobre o exercício da profissão de
guardador e lavador autônomo de automóveis, datada de 23 de Setembro de 1975,
[...] foi promulgada no governo do então presidente, Ernesto Geisel, num período em que, conforme vimos anteriormente, o Brasil vivia um intenso processo de industrialização. A impossibilidade de absorção da mão-de-obra pelas grandes indústrias ensejou a realocação da força de trabalho excedente, em atividades do setor Terciário, para o fim de atender a necessidades que exigiam qualificação e remuneração muito baixas (HORTA, 2010, p. 33).
Nessa perspectiva, diante das dificuldades que o Estado encontrava para
gerar trabalhos formais para o chamado exército industrial de reserva, a
promulgação da Lei nº 6.242/1975, se mostrava enquanto uma “tentativa de
institucionalização do trabalho informal, sob o pretexto da sua transitoriedade para a
formalidade, por meio do avanço da modernização brasileira” (HORTA, 2012, p. 33-
34).
Decerto que a Lei nº 6.242/1975 em seu art. 1º, dispõe que o exercício da
profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores depende de
um registro realizado na Delegacia Regional do Trabalho (DRT) competente. No art.
3º, exige como condição para a concessão desse registro, a apresentação, pelo
interessado, de alguns documentos, tais como: prova de identidade; atestado de
bons antecedentes; certidão negativa dos cartórios criminais de seu domicílio; prova
de estar em dia com as obrigações eleitorais; e prova de quitação com o serviço
militar (HORTA, 2010).
A exigência dessa documentação pela Lei nº 6.242/[19]75 visa a “afastar do exercício da atividade os indivíduos que portem antecedentes comprometedores, deixando o campo aberto àqueles que, dela realmente necessitados, preencham condições mínimas”, nos termos da justificativa do Projeto de Lei nº. 88/73, anteriormente mencionado. Evidencia-se, nesse ponto, a prevalecente intenção do legislador em distinguir, dentre os guardadores e lavadores de veículos, aqueles que exercem a atividade de forma responsável, daqueles que recorrem a ela sob a forma da criminalidade (HORTA, 2010, p. 34).
Cabe ressaltar que o art. 4° desse projeto de lei versa sobre o local onde a
atividade do flanelinha/guardador de carros se realizará e torna claro que a
designação da localização para realização da atividade deve ser feita pela
49
autoridade municipal responsável. Desse modo, ao contrário do que ocorre em
muitas cidades brasileiras, cabe somente à instância municipal responsável, o poder
de delimitar espaços para a realização da atividade.
Com a publicação da Lei nº 6.242/1975, sobreveio o Decreto nº 79.797/1977,
que regulamenta a profissão de lavador e guardador autônomo de veículos e define
as suas atribuições, dentre elas, de acordo com o art. 3°, o guardador de veículos
deverá atuar em áreas externas públicas, destinadas a estacionamentos, cabendo a
eles orientar ou efetuar o encostamento e desencostamento de veículos nas vagas
existentes, predeterminadas ou marcadas.
Esse decreto define em seu art. 5º, que quando autorizada pela Delegacia
Regional do Trabalho, a atividade do lavador e guardador autônomo de veículos
exercida em locais públicos explorados pelo poder público, terá afiançado um
percentual sobre o valor total cobrado aos usuários. Este, por sua vez, destina-se:
ao pagamento dos serviços prestados pelos guardadores e lavadores autônomos de
veículos automotores; à remuneração dos serviços administrativos do sindicato,
cooperativa, ou associação, não excedente de dez por cento do valor total cobrado
dos usuários; à remuneração do órgão público, municipalidade ou empresa estatal,
pela manutenção, sinalização e marcação das áreas de estacionamento e não
excedente de vinte por cento do valor total cobrado do usuário. Ademais, o art. 6º
deste decreto, exige que os guardadores e lavadores de veículos utilizem um cartão
de identificação, fornecido pelo sindicato, cooperativa ou associação, onde houver,
para fins de identificação ao usuário e à fiscalização dos órgãos públicos e
sindicatos (HORTA, 2010).
Ora, essa tentativa de regulamentação – a Lei nº 6.242/1975 – agonizou em
sua ineficácia. Somente diante da elevada desestruturação do mercado de trabalho
e, por conseguinte, do volume de transtornos ocasionados por essa atividade foi que
as autoridades municipais se voltaram à legislação, a fim de definir normas para a
atuação dos guardadores e lavadores de veículos.
Apesar da existência dessa proposta de regulamentação, ainda se faz notório
o processo de criminalização dos flanelinhas/guardadores de carros, diante do
desconhecimento e, principalmente, não cumprimento – tanto por parte dos
flanelinhas/guardadores de carros, quanto das próprias autoridades municipais –
das condições, sobre as quais versam a Lei nº 6.242/1975 e o decreto Decreto nº
50
79.797/1977, para o exercício legal da profissão de lavador e guardador autônomo
de veículos.
Além disso, o flanelinhas/guardadores de carros passam por um processo de
estigmatização e intolerância, tanto por não reproduzirem sua força de trabalho,
como por estarem vulneráveis à criminalidade – o que acaba por causar medo e
insegurança na população, que os vê, constantemente, enquanto uma ameaça à
vida e à propriedade privada (HORTA, 2010). Temos, ainda, o fato de que vez ou
outra, a imprensa noticia a prática de pequenos delitos e furtos por
“flanelinhas”/guardadores de carros, o que acaba contribuindo para a estigmatização
e criminalização desses sujeitos e da sua atividade.
Ademais, ainda de acordo com Horta (2010), é notório que a intolerância à
atividade dos flanelinhas/guardadores de carros é ainda maior quando comparada à
de outras ocupações que compõem o setor informal. Isso porque inicialmente, tinha-
se a espontaneidade na contribuição dos motoristas aos flanelinhas pelos serviços
prestados. Contudo, essa espontaneidade foi passando, cada vez mais, a ter um
caráter de obrigatoriedade, devido à intimidação, expressa ou encoberta, exercida
por tais trabalhadores, da qual decorria, em certas ocasiões, o efetivo dano ao
veículo ou ao próprio motorista. Nessa perspectiva, esse grau de intolerância deve-
se ao fato de que, na atividade do flanelinha/guardador de carros, o motorista é
frequentemente constrangido a pagar por um serviço não solicitado.
Nessas circunstâncias, a figura ameaçadora do guardador de veículos, amplamente difundida entre a população, aliada aos sentimentos de medo, apreensão e ansiedade que inspiram, são preocupações que passam a reclamar medidas de segurança a serem tomadas pelas autoridades públicas [...] (HORTA, 2010, p. 73).
O clamor público pela segurança contra a ação dos flanelinhas/guardadores
de carros passou a exigir a atuação do Estado, que apresentou como resposta a
criminalização da conduta dos flanelinhas/guardadores de carros6. O Projeto –
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que passa a vigorar acrescido do
artigo 160-A – dispõe sobre a pena de detenção, de 1 a 3 anos e multa, para aquele
que solicitar ou exigir, para si ou para terceiro, a qualquer título, dinheiro ou
6 Tramita no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº. 4501/2008, cuja proposta é a inserção, no
Código Penal, de um “subtipo” que enquadra a atividade dos flanelinhas/guardadores de carros como crime de extorsão indireta.
51
qualquer vantagem, sem autorização legal ou regulamentar, a pretexto de explorar a
permissão de estacionamento de veículo alheio em via pública.
Nessa perspectiva, essa proposta de criminalização da conduta dos
flanelinhas/guardadores de carros se constitui enquanto a outra face da moeda.
Trata-se de uma resposta, instrumentalizada pelo direito penal, dada pelo Estado no
intuito de proteger os interesses da burguesia dominante. Entretanto, essa estratégia
utiliza-se do capital político e imprime a falsa ideia de punição dos “criminosos”,
quando, na verdade, as raízes do problema residem nas contradições estruturais
próprias das relações de produção capitalista e exigem soluções muito mais
complexas (HORTA, 2010).
No âmbito local, em Natal-RN a Lei 29/2010, aprovada na Câmara Municipal,
que regulamenta a profissão dos flanelinhas/guardadores de carros, nunca foi
sancionada. Pelo texto original desta lei, seria de responsabilidade da Secretaria de
Mobilidade Urbana (SEMOB) e da Secretaria Municipal de Trabalho, Habitação e
Assistência Social (SEMTHAS) o cadastramento destes trabalhadores, a designação
das áreas em que poderiam atuar, a fiscalização da atividade, e a organização e
distribuição materiais de identificação, como crachás e camisetas (PORTAL NO AR,
2015) (anexo B).
Vigorando-a, criaria-se, ainda, uma cooperativa dos flanelinhas/guardadores
de carros, que seria responsável por recolher contribuições dos mesmos para
benefícios com previdência e plano de saúde. Essa lei não só limitava o exercício da
profissão, já que era preciso ter registro na DRT e atestado de bons antecedentes
criminais, como estabelecia punições para casos de descumprimento das normas.
Contudo, vale ressaltar que, em Natal-RN, nada disso se concretizou.
Em entrevista a jornal, a secretária adjunta de operacionalização da
SEMTHAS, Ilzamar Pereira, afirma que a regulamentação da lei dos
flanelinhas/guardadores de carros não é a resposta para o problema: “regularizar
uma atividade informal não é a solução. Nós temos um papel frente a essas pessoas
enquanto assistência social, mas não é o de reafirmá-lo nessa condição, e sim de
retirá-lo, mas dando a elas um novo horizonte” (TRIBUNA DO NORTE, 2014).
Ainda segundo reportagem da Tribuna do Norte (2014), o 1° Distrito Policial
(DP) é a única unidade de polícia que possui um cadastramento de
flanelinhas/guardadores de carros. Este abrange a circunscrição dos bairros Ribeira,
52
Cidade Alta e parte de Petrópolis e Tirol. Segundo Jaime Severo, chefe de
investigações da 1ª DP, o cadastramento foi feito no final de 2013 e cerca de 80
flanelinhas possuem registro com foto na delegacia (número que não se aproxima
nem de perto da realidade observada atualmente).
Não existe, por parte do Estado, nenhum plano que envolva os
flanelinhas/guardadores de carros até o presente momento. Houve algumas tentativas
passadas de incorporá-los a projetos de estacionamentos rotativos que já foram
pensados e idealizados várias vezes, porém que nunca saíram do papel. Ademais,
nenhum órgão do Estado, mesmo aqueles que teriam sido designados a esta tarefa,
dispõem de um número exato e atual da quantidade de flanelinhas/guardadores de
carros de Natal-RN.
Dessa forma, o que percebemos nos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de
Natal-RN é um verdadeiro descaso para com a problemática dos
flanelinhas/guardadores de carros. Isto porque, apesar da notória presença desses
sujeitos nesses espaços, o poder público não se mobiliza, seja para regularizá-los
(cumprindo aquilo que está previsto em lei, como já mencionado anteriormente),
redirecioná-los a outros tipos de trabalhos ou mesmo para desterritorializá-los dos
espaços os quais se apropriaram.
53
3 DO ESPAÇO AO TERRITÓRIO: SOBRE O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO
ESPACIAL
Para compreendermos a territorialidade expressa pelos
flanelinhas/guardadores de carros em áreas nas vias públicas dos bairros Cidade
Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, optamos por uma reflexão conduzida pelo
diálogo sobre a tríade: espaço, território e territorialidade. Isto porque, o espaço
concebido como base material onde se manifestam as ações dos sujeitos sociais, é
transformado em território a partir de uma apropriação concreta e/ou simbólica, que
resulta em uma territorialidade, conceito chave que move o presente estudo e torna-
se fundamental para este, uma vez que se constitui no vivido de um grupo particular
ou coletivo, quando esse exerce o poder em dado espaço geográfico estabelecendo
a relação espaço-tempo (RAFFESTIN, 1993).
Argumenta Raffestin (1993), ser fundamental compreender que o espaço
antecede o território. Este último se forma a partir do espaço e é o resultado de uma
ação conduzida por relações de dependência em qualquer nível. A transformação do
espaço em território, pois, decorre do processo de apropriação de um espaço,
concreta ou abstratamente, onde, dessa forma, o ator "territorializa" o espaço
(RAFFESTIN, 1993). .
O espaço pode ser concebido, ainda, enquanto um conjunto de formas e
funções que representam relações sociais. Essas, por sua vez, se apresentam como
testemunho de uma história, pois se referem tanto a representações de relações
sociais do passado, quanto do presente, além, e principalmente, daquelas que estão
acontecendo perante os nossos olhos e que se manifestam através de processos e
funções (SANTOS, 2004).
Podemos apreender que “o espaço de uma grande cidade capitalista
constitui-se, em um primeiro momento de sua apreensão, no conjunto de diferentes
usos da terra justapostos entre si” (CORRÊA, 1989, p. 7). Para o autor, a cidade é
também o lugar onde as diferentes classes sociais vivem e se reproduzem. Desta
forma, o espaço urbano assume uma dimensão simbólica que é, todavia, variável
segundo os diferentes grupos sociais, etários, étnicos, etc. A cidade, desse modo,
está fadada a ser tanto o palco de conflitos crescentes como o lugar geográfico e
político da possibilidade de soluções (SANTOS, 2005).
54
O território é um espaço onde se projetou uma ação, seja ela constituída de
energia ou informação, e que revela relações marcadas pelo poder. Esse se
sustenta no espaço, mas não é o espaço. Trata-se de uma produção, devido a todas
as relações que envolvem e se inscrevem num campo de poder, a partir do espaço.
Assim, qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a
imagem desejada de um território (RAFFESTIN, 1993).
Território é derivado das palavras latinas terra e torium – as quais juntas
significam “terra que pertence a alguém” – e compreende um lugar de escalas
variadas no qual os atores, com suas territorialidades, escalas de atuação e redes,
põem em curso processos complexos de interação entre sistemas de objetos e
sistemas de ações (BOZZANO, 2009). Nessa perspectiva,
[...] desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo - especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no "territorium" são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por outro lado, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de plenamente usufrui-lo, o território pode inspirar a identificação (positiva) e a efetiva "apropriação" (HAESBAERT, 2007, p. 20).
A apropriação, de acordo com Saquet (2011), possui três significados
principais: a) como posse, propriedade, controle, domínio – individual e/ou coletivo –
por sujeitos presentes ou ausentes do espaço apropriado por meio de mecanismos e
mediadores materiais e imateriais; b) denota delimitação, parcelamento, divisão e,
ainda c) uso, influência, interferência e utilização de objetos, instrumentos,
máquinas, ruas, edificações, homens, enfim, do espaço e da natureza. As
apropriações, mais estáveis ou temporárias, dependem das intencionalidades, dos
anseios, das aspirações, dos objetivos, enfim, das relações sociais e das práticas
espaciais, temporais e territoriais, todas concretizadas nas relações entre sociedade
e natureza, materializando-se e/ou imaterializando-se nas paisagens e nos lugares.
Território, desta maneira, na concepção de Haesbaert (1997), deve ser
compreendido não apenas sob uma perspectiva tradicional de poder político – de
dominação e/ou controle político, sob uma perspectiva de apropriação simbólica e
identitária. Nesse sentido, entendemos que o território envolve sempre, e ao mesmo
tempo, porém em diferentes graus de intensidade e correspondência, uma dimensão
simbólica/cultural – através de uma identidade territorial conferida pelos grupos
sociais, como forma de "controle simbólico" sobre o espaço onde vivem, sendo
55
também, portanto, uma forma de apropriação – e uma dimensão mais concreta, de
caráter político/disciplinar – a apropriação e ordenação do espaço como forma de
domínio e disciplinarização dos indivíduos (HAESBAERT, 2004, P. 94).
Percebe-se que o território apresenta, além do caráter político, um nítido
caráter cultural, especialmente quando os agentes sociais são grupos étnicos,
religiosos ou outras identidades. Território é, de fato, um importante instrumento da
existência e reprodução do agente social que o criou e o controla. E nos tempos
atuais, território – impregna-se de significados, símbolos e imagens –, que se
constitui em um dado segmento do espaço, via de regra delimitado, que resulta da
apropriação e controle por parte de um determinado agente social, um grupo
humano, uma empresa ou uma instituição (ROSENDAHL, 2005, p. 12933).
Dessa forma, território deve ser visto não apenas sob uma perspectiva de
dominação e/ou controle político, mas também sob uma perspectiva de apropriação
simbólica e identitária, que por sua vez,
[...] é uma identidade social definida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das idéias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos processos de identificação social. […] De forma muito genérica podemos afirmar que não há território sem algum tipo de identificação e valoração simbólica (positiva ou negativa) do espaço pelos seus habitantes (HAESBAERT, 1999, p. 172).
Portanto, ainda segundo Haesbaert (1999) trata-se de uma identidade onde
um dos aspectos fundamentais para sua estruturação encontra-se na alusão ou
referência a um território, tanto no sentido simbólico quanto no concreto. Deste
modo, a identidade social é também territorial quando o referente símbolo central
para a construção desta identidade parte do ou transpassa o território.
A territorialidade, por sua vez, está intimamente relacionada ao modo como
as pessoas usam a terra, como organizam-se no espaço e como dão sentido ao
lugar, pois, ela é melhor pensada não como algo biologicamente motivada, mas sim
como algo enraizada socialmente e geograficamente. Além disso, o seu uso
depende de quem está influenciando e controlando o quê e quem, nos contextos
geográficos de espaço, lugar e tempo (SACK, 1986).
Portanto, reforça-se que:
[...] a territorialidade para os humanos é uma estratégia geográfica poderosa para controlar pessoas e coisas através de um controle de área. Os territórios políticos e a propriedade privada da terra podem ser as suas
56
formas mais familiares, mas a territorialidade ocorre em vários graus e em inúmeros contextos sociais. Ela é usada nas relações do dia-a-dia e nas organizações complexas. [...] é uma expressão geográfica primária do poder social (SACK, 1986, p. 6).
As territorialidades possuem caráter intencional, envolvendo objetivos e
metas, além de estratégias de poder que necessitam, fundamentalmente, ser
apreendidas e explicadas como instantes e processualidades sócio-espaciais-
territoriais. Tais práticas são processos históricos e geográficos de poder,
subordinação, aculturação, identificação, interação, exploração, entre outros
(SAQUET, 2011).
Deste modo, a territorialidade não é apenas "algo abstrato", num sentido que
muitas vezes se reduz ao caráter epistemológico. Ela é também uma dimensão
imaterial, no sentido ontológico de que, enquanto "imagem" ou símbolo de um
território, existe e pode inserir-se efetivamente como uma estratégia político-cultural,
mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente manifestado
(HAESBAERT, 2007, p. 25).
Apesar de se caracterizar como uma imaterialidade, a territorialidade pode ser
percebida de forma concreta no espaço geográfico a partir das relações contidas
nela e dos comportamentos expressos no território, posto que trata-se de “uma
forma de comportamento espacial” (SACK, 1986, p. 3).
Assim, entendemos a territorialidade, de acordo com a análise realizada por
Saquet (2011), em quatro níveis que se correlacionam: 1) como relações sociais,
identidades, diferenças, nós, disparidades e conflitualidades; 2) como apropriações,
concretas ou simbólicas, do espaço geográfico, implicando dominações e
delimitações; 3) como condutas, intencionalidades, anseios e necessidades e, por
fim, 4) como práticas espaço-temporais, multidimensionais, concretizadas nas
relações entre sociedade e natureza, ou seja, relações sociais dos homens entre si
(de poder) e com a natureza exterior através de mediadores materiais (técnicas,
tecnologias, instrumentos, máquinas, entre outros) e imaterialidades
(conhecimentos, saberes e ideologias). Assim, constatamos que a territorialidade é,
ao mesmo tempo, processual e relacional.
Abordamos em nossa leitura investigativa as relações sociais e
conflitualidades que permeiam a territorialidade dos flanelinhas/guardadores de
carros nos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, assim como as
formas de apropriação, delimitação e dominação exercidas por esses sujeitos no
57
nosso espaço empírico e as condutas e intencionalidades que permeiam essa
territorialidade.
Como vimos no capítulo anterior, diante do descaso por parte do poder
público quanto à regularização ou criminalização efetiva da atividade dos
flanelinhas/guardadores de carros, bem como da omissão quanto à defesa da
legitimidade do espaço público e do direito coletivo sobre esse espaço, os
flanelinhas/guardadores de carros demarcam, loteiam e se apropriam indevidamente
de parcelas do espaço público dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-
RN.
Ao se apropriar desses espaços para exercer uma atividade informal que visa
garantir-lhes renda, esses sujeitos impõe aos outros usuários destes espaços as
suas próprias regras e normas, que por sua vez, vão de encontro àquilo que o
espaço público sugere. E o que o espaço público sugere? É na perspectiva de
esclarecer isto que optamos por iniciar este capitulo apresentando uma breve
discussão acerca da noção de espaço público, afim de que, posteriormente, sejamos
capazes de caracterizar o modo como os flanelinhas/guardadores de carros se
apropriam desses espaços nos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN,
bem como os conflitos que são decorrentes de tal prática socioespacial.
Pretendemos discutir estas questões, baseando-se na literatura construída
sobre a noção de espaço público, principalmente as contribuições que tratam desde
a sua origem até a maneira como esse conhecimento se traduz nos dias de hoje.
Em seguida, buscamos apresentar contribuições acerca da dicotomia conceitual do
público versus o privado, visando ampliar a nossa compreensão referente às
apropriações conferidas aos espaços públicos.
Essa discussão se dá na perspectiva de entender como esse espaço está
estruturado e as transformações por quais sua definição passou no decorrer da
evolução da sociedade contemporânea. Essa reflexão nos obriga a pensar o espaço
enquanto um produto, um recurso e uma prática (política, social e simbólica).
Ademais, interessa-nos também, refletir sobre a apropriação, tanto material como
imaterial, que ocorre, frequentemente, nesses espaços, uma vez que no nosso
recorte espacial, bem como em outros espaços públicos, a materialidade e a
imaterialidade estão justapostas e possuem influências recíprocas.
58
Aliado a isso, abordamos exemplos concretos de espaços públicos – os
bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, no sentido de uma aplicação
empírica dos conceitos discutidos, buscando elucidar, principalmente, os elementos
característicos da apropriação e controle dos flanelinhas/guardadores de carros,
bem como os conflitos políticos e sociais decorrentes dessa apropriação nesses
espaços.
3.1 Espaços públicos: da origem à definição da noção
Atualmente, muitos estudos tratam da questão do espaço público urbano e
das práticas socioespaciais que se realizam nestes. No entanto, acreditamos que
para se entender a noção de espaço público é necessário antes se entender a que
se refere o termo “público”.
A palavra “público” deriva do latim publicus e enquanto adjetivo possui
inúmeras definições, dentre elas: “Do, ou relativo, ou pertencente ou destinado ao
povo, à coletividade”; “Relativo ou pertencente ao governo de um país”; “Que é do
uso de todos; comum”; “Aberto a quaisquer pessoas”; “Conhecido de todos;
manifesto, notório” ou ainda, “Que se realiza em presença de testemunhas, em
público; não secreto” (FERREIRA, 2004).
O termo “espaço público”, por sua vez, abrange um leque de análises
possíveis, que tratam da sua função, estrutura, caráter semântico, político, social,
simbólico, dentre outros. Ainda assim, pra se entender efetivamente o espaço
público é necessário deixar de lado as análises isoladas e partir para uma
abordagem ampla, que permita contemplar as diversas faces e abordagens
referentes a este termo.
No que diz respeito à concepção da noção espaço público, esta sempre
esteve permeada por distintas definições. Isto se deve, sobretudo, ao fato de, na
área acadêmica, as discussões referentes a estes espaços, serem extremamente
diversas. Diferentes áreas e variadas pesquisas dão conta da questão do espaço
público urbano - principalmente a filosofia, o urbanismo, as ciências sociais e a
geografia -, todavia, isso não esgota a necessidade de novas análises e
abordagens.
De acordo com Valverde (2007) a enunciação mais precisa da noção de
espaço público foi realizada por filósofos, na primeira metade do século XX.
59
Contudo, os marcos da origem da ideia que serviram como base para essa
enunciação se encontravam no século XVIII, mais precisamente, nos Estado-Nações
europeus, que demonstravam maturidade e evolução de suas leis, funções e de
seus cidadãos. Nesse sentido, quando se fala na origem de uma esfera pública, faz-
se alusão à transformação do Estado e de suas responsabilidades nesse período.
Nesse sentido, Valverde aponta a necessidade de que:
[...] é preciso compreender que a origem da noção de espaço público se encontra na composição de uma dupla matriz. De um lado, se encontra a inspiração nos seus pensadores e formadores de opinião, que se apoiavam na imagem da cultura clássica grega para conferir um novo sentido aos ideais democráticos que foram criados no passado. Por outro lado, a secularização progressiva da sociedade e as inovações técnicas a partir do século XVIII permitiram o acúmulo de conhecimentos, de riquezas, a realização de obras por parte do poder público e a racionalização e humanização do poder (VALVERDE, 2007, p. 87).
As dificuldades que surgem em detrimento da origem da noção de espaço
público repousam, sobretudo, nos problemas oriundos da separação precisa do que
é público e o que é privado. Além disso, outra dificuldade reside na emergência de
uma dimensão social que se estabelece entre o público e o privado. Desta forma,
este autor ressalta, ainda, que a contribuição da filosofia referente à noção de
espaço público foi marcada, também, por uma tentativa de separação entre as
esferas pública, privada e social (VALVERDE, 2007).
De uma forma genérica, o entendimento sobre essa oposição público/privado,
tão amplamente discutida, costuma repousar na distinção daquilo que é visível por
todos e do que é da ordem da esfera privada, que remete a família/lar. O espaço
privado nesse sentido, diz respeito, basicamente, ao espaço de acesso restrito e
regulado, que não sofre interferência exterior e onde atividades não possuem
visibilidade social. O espaço público, por sua vez, seria o inverso dos elementos
relacionados à noção de espaço privado, ou seja, um espaço de acesso livre/de
todos, que proporciona uma visibilidade social e que confere aos indivíduos total
liberdade de interação e circulação.
De fato, as implicações referentes à fragilidade entre o público e o privado
ainda perduram. Ressaltamos que o espaço público e a esfera pública são termos
relacionáveis, todavia sua definição não deve repousar, simplesmente, na oposição
ao outro. Desse modo, apesar das suas especificidades que lhes são próprias, não
há como entender as dinâmicas que ocorrem no espaço público sem entender a
60
constituição da esfera pública e os limites fragilizados entre esta e a esfera privada
desde a queda do Império Romano. (CERQUEIRA, 2013).
Conforme aponta Cerqueira (2013), desde o declínio do Império Romano até
os dias de hoje, a esfera pública e a esfera privada tiveram seus limites fragilizados
e sobrepostos, constantemente. As discussões e atividades eram ambientalizadas
em apenas uma destas. Já na era moderna verifica-se, então, a emergência de uma
outra esfera - a social -, que surge da fluidez dos limites das esferas pública e
privada. Na sociedade moderna, o público e o privado não desfrutam mais do poder
organizador que tinham na antiguidade. A sociedade foi transformando-se ao longo
do tempo até que essa dicotomia (público/privado) cedesse lugar a uma comunidade
onde o destaque das dinâmicas humanas reside na sua dimensão social.
Na interpretação de Valverde (2007) a esfera pública seria caracterizada a
partir de elementos como a política, a igualdade entre os seus participantes e os
valores universais. Nesta esfera, não seriam assentadas as questões locais, mas
sim aquilo que fosse universal. Entretanto, vale salientar que política, igualdade e
universalidade possuíam significados extremamente singulares na Grécia Antiga.
Desta forma, a afirmação indicada pelos gregos de que a esfera pública se
caracterizava pela discussão política admite um significado diferente daquele
verificado nos dias atuais.
Corroborando essa ideia, Cerqueira (2013) assinala que na antiguidade, os
limites da esfera pública e da esfera privada eram consonantes com os limites da
vida política e da vida no lar, respectivamente. Ou seja,
[...] De um lado, a esfera da pólis com as atividades (discurso e ação) relativas a um mundo comum; do outro lado, a esfera do lar, da família e de tudo que fosse relativo a manutenção da vida, a suprir as necessidades. A esfera pública era lócus das atividades nobres, que no contexto, resumia-se à vida política, o ser político era aquele que se devotava inteiramente ao interesse da cidade, desempenhando apenas as atividades mais nobres – o discurso e a ação. Os limites eram impostos de uma esfera para outra, de maneira geral, a esfera pública impunha os limites da esfera privada. Mas apesar de as atividades desenvolvidas nas diferentes esferas sofrerem hierarquização (sobrepondo o discurso e a ação a todas as outras atividades) elas coexistiam numa relação de contrários, mas também de retroalimentação: a existência da esfera privada, do lar, da família, subsidiava e vida na esfera pública (CERQUEIRA, 2013, p. 40).
Nesse contexto têm-se, ainda, a esfera social, caracterizada, principalmente,
pelos anseios e necessidades sociais que deveriam ser satisfeitas através do
trabalho e atividades manuais que visassem garantir a sobrevivência. Assim, por um
61
lado o Estado passou a intervir mais diretamente em assuntos relacionadas a esta
esfera, abrindo caminhos para que estas necessidades fossem transformadas em
políticas públicas, obras e reformas. E por outro lado, a família passou a ter uma
menor representatividade nos assuntos privados de um indivíduo, possibilitando uma
abertura maior para que este último participasse da construção de uma esfera social
(VALVERDE, 2007). Ainda nessa perspectiva,
[...] a esfera social exerce hoje uma grande influência sobre a esfera pública, pressionando a sua estrutura jurídica, modificando os seus espaços, estabelecendo dinâmicas informais e lutando por interesses que não estão vinculados a pretensa universalidade da esfera pública. Essa esfera também pressiona a esfera privada, quebrando o isolamento da família e participando diretamente da maneira como a personalidade se forma. Ao exercer essas forças na esfera social, a sociedade cria laços com a esfera pública e a esfera privada, mantendo atualizado o ordenamento político, mas comprometendo o alcance de suas atividades, pois vincula os seus resultados com as necessidades de diferentes grupos sociais
(VALVERDE, 2007, p. 96-97).
Percebemos assim, que a filosofia preocupou-se, substancialmente, com os
estudos referentes à noção de espaço público relacionando-os a estudos abstratos
de uma ordem política, não conseguindo desenvolver, significativamente, o estudo
do espaço público enquanto espaço físico/concreto. Deste modo, deixando um
pouco de lado essa discussão filosófica e partindo para análise do espaço público
por seus elementos, características e dinâmicas próprias, podemos apontar que
algumas ciências tiveram a preocupação de priorizar o estudo da noção do espaço
público a partir da dimensão concreta deste, como é caso do urbanismo, por
exemplo.
No que se refere à concepção urbanística acerca da noção de espaço
público, Valverde (2007) aponta que a simples representação do conjunto de formas
de um determinado espaço deixa der ser, obrigatoriamente, o ponto de partida de
um projeto arquitetônico. Apesar desta representação ainda merecer destaque, uma
das características marcantes do urbanismo se refere à relativização da importância
da estética e da forma. Isto porque, nessa perspectiva de estudo, a forma do espaço
público passou a ser concebida através da função que este irá desempenhar e dos
usuários a qual este espaço irá servir.
A característica reflexionada nos remete ao fato de que a abordagem do
urbanismo acerca da noção de espaço público busca suprir a visão anterior, e
simplista, de que o arquiteto seria responsável por uma análise voltada,
62
basicamente, à ornamentação do espaço. Agora, esta análise vai além, está muito
mais vinculada ao planejamento e delineamento da cidade buscando qualificar e
sinalizar os espaços públicos a partir da sua importância e a usabilidade do ponto de
vista, principalmente, da população.
A perspectiva do urbanismo acerca do espaço público se organizou por meio
do ordenamento do espaço físico/concreto e de sua indicação de uso e importância.
Além disto, procurou contribuir com uma lógica de ação que se constituía de
técnicas e valores estéticos, definidos a partir do ponto de vista do indivíduo ou
grupos, e não mais com base nos projetos do Estado e da burguesia. Assim, o
espaço público, sob o viés urbanístico, buscava atribuir “maior controle sobre a vida
social que se desenrolava nas cidades, tentando estabelecer as condições para que
a situação de atraso, congestionamento e falta de higiene do urbano no século XIX
pudesse ser superados [...]” (VALVERDE, 2007, p. 110).
Portanto, essa lógica de ação, proposta pelo urbanismo, delineava e
ordenava o espaço público com base nas motivações e necessidades sociais e
coletivas, deixando de lado os anseios e decisões particulares. Concebe, Valverde
(2007), que a noção de espaço público sugerida pelos urbanistas teria suma
importância pelo fato de instituir que o conjunto de formas de um determinado
espaço tem influência sobre a dinâmica social que ali se desenrola. Assim,
[...] chamamos atenção para o fato de que os espaços públicos não são desenvolvidos como uma extensão de outro projeto, de outro debate, mas sim a partir de uma construção intencional. Não é a construção de um novo lugar no qual a política institucional vai se desenrolar que caracteriza a perspectiva urbanística da noção de espaço público: são as praças, largos, áreas comuns que ganham tratamentos em suas formas no intuito de receber determinados usos e destacar certos significados, usando para tanto objetos que já se encontrariam presentes na localidade e acrescentando outros mais apropriados a nova ordem desejada (VALVERDE, 2007, p. 104-105)
Ressaltamos que a abordagem urbanística trata a noção de espaço público
enquanto um espaço físico/concreto, diferentemente da filosofia, onde a discussão
pautava-se, sobretudo, num teor abstrato de ordem política e nas dinâmicas
comunicativas, nos atores e na lógica geral do espaço público.
Estes dois campos do conhecimento são, de certo modo, os precursores da
concepção de espaço público. Porém, outros campos do conhecimento também
trabalharam esta noção e se tornam imprescindíveis para a continuidade desta
discussão, uma vez que nos apresentam características que se assemelham e
63
diferem das já apresentadas, porém com ideias mais atuais e voltadas para aquilo
que, efetivamente, tomamos como espaço público neste trabalho. Assim é o caso
das ciências sociais e da geografia.
Adotamos a noção de espaço público enquanto categoria de análise
geográfica, na tentativa de compreender os espaços públicos dos bairros Cidade
Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN (recorte empírico deste trabalho), e suas práticas
socioespaciais - especificamente a apropriação dos flanelinhas/guardadores de
carros sobre o espaço público destes bairros - a fim de sermos capazes de
caracterizar esta apropriação, bem como os conflitos que são decorrentes - e
próprios - de tal prática socioespacial, neste determinado espaço.
3.2 O espaço público na perspectiva das Ciências Sociais e da Geografia
Sob a ótica das ciências sociais, os espaços públicos são concebidos como
lugares que possibilitam tipos de interações específicas e diferentes daquelas
observadas nos espaços privados. Logo, nos espaços públicos, esta interação
repousa na tendência a se submeter a certas situações sociais. Dentre estas
situações, podemos tomar como exemplo a exposição a diferentes pessoas - posto
que se trata de um espaço aberto a todos - e a algumas convenções - como
respeitar o direito do outro ao uso desse mesmo espaço. Neste espaço, as
hierarquias e as diferenças sociais são efêmeras e relativamente suspensas, uma
vez que neste predomina a igualdade de direitos no que concerne a utilização e à
apropriação do espaço (ANDRADE; JAYME; ALMEIDA, 2009).
De acordo com Castro (2002) essa noção de público não é inerente a um
espaço, mas sim a uma construção política e social que deriva da combinação de
diversos fatores, sobretudo dos usos atribuídos; da acessibilidade; do sentido que é
conferido por certo grupo social; do reconhecimento/reencontro; da tensão entre o
estrangeiro/anônimo; e da dialética entre proximidade e distância física e social.
Indovina (2002) chama atenção para a alusão ao espaço público não no
sentido mais restrito do termo, mas sim na perspectiva de uso público. Ou seja, a
atenção passa a voltar-se mais na função e menos na propriedade/gestão a qual,
nesta lógica, pode ser tanto pública quanto privada.
Quando se faz referência ao espaço de uso público, pode-se levar em
consideração as seguintes características: a propriedade (se pública ou privada); o
64
custo de acesso (se gratuito ou pago); os limites de uso (se ilimitado ou limitado; à
duração; se específico a certos grupos de cidadãos; entre outros); as restrições do
seu uso (se permitido falar ou não; fotografar ou não; entre outros) (INDOVINA,
2002).
Ao agregarmos os parâmetros expostos à universalidade do uso, os espaços
de propriedade pública, de acesso gratuito e ilimitado, que não se restringem a
determinados grupos de cidadãos serão os espaços que melhor representam a
noção de espaço público. Em oposição, um espaço de propriedade privada, com
acesso pago e limitado, que apresentam fortes restrições de uso, se constitui - em
relação ao primeiro - como um espaço privado (INDOVINA, 2002).
Cabe ressaltar que o critério da acessibilidade se baseia no subentendimento,
de uma forma genérica, de que é o livre acesso e circulação no espaço que confere
a este a qualidade de público. Enquanto que, em contraposição, a restrição e o
condicionamento desse acesso e circulação no espaço, é o que confere a este a
qualidade de privado.
Andrade, Jayme e Almeida (2009) chamam atenção para o fato de que o
espaço só se torna público a partir das ações que dão sentido a determinados
espaços e que, por sua vez, também são influenciadas por estes. Dessa maneira,
essa reflexão
[...] não se volta para a dimensão da esfera pública como “espaço” – não necessariamente físico – de expressão da vida pública, próprio de uma sociedade democrática, como as câmaras e assembléias, os conselhos, as associações e os movimentos populares. Embora essa distinção [...] seja importante, cabe registrar que tais dimensões não são excludentes, até porque o espaço público mantém suas qualidades de esfera pública. Mas trata-se aqui de priorizar a investigação dos tipos de sociabilidade e de controle existentes nos espaços públicos da cidade, onde se desenrola a vida cotidiana de seus cidadãos. (ANDRADE; JAYME; ALMEIDA, 2009, p. 133).
Em suma, os espaços públicos, na compreensão dos cientistas sociais, são
lugares que representam a vida e a história das cidades; lugares de convivência que
proclamam estilos de vida, relações de poder e formas de apropriação por diferentes
grupos sociais e que se constituem, assim, como lugares segmentados, identitários
e simbólicos (ANDRADE; JAYME; ALMEIDA, 2009).
Diante do exposto até o momento, percebemos que a proposta de um modelo
concebido e as discussões acerca da noção de espaço público marcou
consideravelmente diversos campos do conhecimento, principalmente a partir do
65
embasamento fornecido pela filosofia e pelo urbanismo nos séculos XIX e XX. É a
partir deste marco que diversos estudos surgiram, no sentido de questionar, criticar
e, principalmente, contribuir com novos elementos, como é o caso das Ciências
Sociais, já apresentado, e da Geografia, que veremos a seguir, a qual também se
preocupou em refletir e dispor sua contribuição referente à noção de espaço público.
Conforme aponta Valverde (2007) a perspectiva expressa pela geografia
busca se colocar entre as abordagens filosófica e urbanística - apresentadas
anteriormente -, estabelecendo, desta maneira, uma nova contribuição. Nesta, a
articulação entre política e planejamento se manifesta a partir da perspectiva
espacial. Faz-se saber que a abordagem geográfica se fragmentou em duas linhas
importantes.
Segundo Valverde (2007, p. 136-138) aquela é caracterizada pelo
republicanismo, pela nostalgia e pela funcionalidade do espaço público. Referimo-
nos ao republicanismo, aludindo a uma ampla tradição intelectual que agrupa
filósofos, urbanistas, cientistas políticos e cientistas sociais. As discussões
apresentadas sob essa perspectiva repousam na defesa do papel do espaço para a
organização da vida política, para a sua significação e para a sua renovação. Esse
ponto de vista se caracteriza, ainda, pela defesa e conservação de certos valores e
comportamentos, evitando a perda do seu sentido original e a deterioração do seu
poder de intermediação entre Estado e sociedade. Sob essa lógica, o espaço
público é concebido como matéria não apropriável, ainda que possa ser usado como
espaço de representação, contanto que os princípios democráticos não sejam
feridos.
Já a segunda linha, assinalada por Valverde (2007), é caracterizada pelo
discurso marxista, no qual o espaço público é percebido enquanto um campo de
forças no qual a luta de classes ganha lugar, ansiando alcançar uma revolução
política e social. Nessa conformação, o espaço público é proclamado enquanto uma
“arena privilegiada através da qual os grupos excluídos e marginalizados ganhariam
visibilidade, se articulariam e agiriam em prol do reconhecimento dos seus direitos e
da sua força” (VALVERDE, 2007, p. 148).
Apesar das diferenças na designação da noção de espaço público e dos
fenômenos que nele se manifestam, os geógrafos republicanos e marxistas
concordam em alguns pontos:
66
[...] Em primeiro lugar, ambas as tendências consideram o espaço público fundamentalmente através de seu caráter político, seja este marcado por uma valorização de suas instituições e ritos formais, seja este colocado em destaque pelos movimentos sociais de contestação. Em segundo lugar, republicanos e marxistas vêem uma crise latente nesse tipo de espaço, fato que é derivado de um desvio da publicidade de seus objetivos e atribuições originais. Em terceiro lugar, apesar de sua crise, tanto republicanos quanto marxistas julgam que é através do espaço público que será possível realizar uma renovação do pacto entre sociedade e Estado (VALVERDE, 2007, p. 160).
Especificamente ao contexto brasileiro, as bases ”geográficas” para análise
do espaço público repousam, principalmente, no estudo precursor de Gomes (2002)
que busca compreender o espaço público na cidade contemporânea e apresentar
uma contribuição geográfica para este entendimento. Em sua análise, associa as
noções de espaço público e cidadania e ressalta, ainda, o papel do Estado na
configuração do espaço público urbano. Ademais, defende a ideia de que na
geografia, as pesquisas voltadas à noção de espaço público devem orientar-se pelo
aspecto concreto/físico destes espaços, não deixando de lado, ao mesmo tempo, as
práticas e dinâmicas sociais que nestes se desenrolam.
Segundo Gomes (2012), o termo “espaço público” vem sendo utilizado, nas
mais variadas áreas de estudo e contextos. Sob essa perspectiva, alguns críticos se
utilizam dessa diversidade para disseminar dúvidas sobre a pertinência da utilização
deste termo tão complexo. Aponta ainda, que na base deste problema está a
questão do uso, pois a partir deste têm-se dois tipos de compreensão do espaço
público:
[...] no primeiro, há uma referência concreta a uma área física (praças, ruas, jardins, equipamentos etc.) e uma preocupação de planejamento urbano; já no segundo tipo, a referência é a um espaço abstrato, teórico, fundamento da vida política e democrática, objeto de análise da ciência política. Assim, por um lado, planejadores e urbanistas tendem a evitar a discussão propriamente política ou tratá-la de forma simplista; por outro, os cientistas políticos estão propensos a trabalhar a ideia do espaço público como uma esfera abstrata e imaterial. Dificilmente, essas duas dialogam ou se interligam em um mesmo discurso (GOMES, 2012, p. 19-20).
Serpa (2004) assinala que essa questão é pertinente, contudo ressalta a
notória dificuldade que muitos pesquisadores têm em relacionar os elementos
políticos e sociais de uma esfera pública urbana às características estruturais e
formais dos espaços públicos concretos. Assim, na análise geográfica do espaço
público urbano, forma e conteúdo são indissociáveis, uma vez que são - ao mesmo
tempo - produtos e processos, e uma discussão sobre este tema ocorre,
fundamentalmente, pela complexa articulação entre os aspectos que conferem
67
“concretude” à esfera pública urbana e aqueles de caráter mais abstrato, que
demonstram necessidade de uma abordagem subjetiva do problema.
De acordo com Serpa (2004) uma abordagem desse tipo necessita basear-se
na discussão da noção de ação política e cidadania e, falando mais propriamente
em uma noção geográfica, passa também pela análise da acessibilidade. Esta não é
unicamente física, mas igualmente simbólica, e a apropriação dos espaços públicos
urbanos apresentam efeitos que transpõem o delineamento físico de ruas, parques,
praças, entre outros.
A acessibilidade se encontra intimamente vinculada “a demarcação dos
territórios urbanos, à alteridade, contrapondo uma dimensão simbólica (e abstrata) à
concretude física dos espaços públicos urbanos” (SERPA, 2004, p. 22). Nesse
sentido, se o adjetivo “público” se refere a uma acessibilidade incondicional e
generalizada, espera-se que um espaço acessível a todos signifique algo além do
simples acesso físico a espaços “abertos” e de uso coletivo.
Temos clareza que, apresentar uma definição exata acerca da noção de
espaço público é profundamente difícil. Isto porque, trata-se de um termo complexo,
abordado por diversos campos do conhecimento sob os mais diferentes contextos.
No entanto, entendemos que o espaço público assume diferentes formas e funções
e deve ser concebido, como o espaço da diferença, dos conflitos, mas também, das
possiblidades, das identificações e da transformação socioespacial. É um espaço,
seja material ou imaterial, construído por diversos agentes e através de diferentes
dinâmicas.
Nesse sentido, Loboda (2009) define os espaços públicos na cidade
contemporânea enquanto expressão de um espaço em constante redefinição. Desta
forma, estes espaços ora se mostram enquanto locais relegados ao esquecimento
através da perda de algumas de suas principais funções (encontro; convivência;
interação) ou por assumirem funções diferentes; e ora se evidenciam através de
políticas de promoção destes espaços, enquanto locais de espetáculo na cidade
moderna a partir de imagens simbólicas que lhes são particulares na relação
espaço-tempo. Este autor, ressalta, também, o contrário, ou seja, o espaço público
como expressão do processo de produção da cidade, das suas contradições e
conflitos. Sob esta perspectiva, este espaço torna-se o lugar das possibilidades, do
ato político, da intervenção, da reivindicação e do improviso.
68
Consideramos o espaço público, assim como o expresso por Gomes (2012),
enquanto lugar onde os problemas são evidenciados e significados, um terreno onde
se exprimem e experimentam tensões. Nesse, o conflito se transforma em debate, e
a problematização da vida social é posta em cena. Esse espaço se constitui, por
isso, em uma arena de debates, e também em um terreno de reconhecimento e de
inscrição dos conflitos sociais. Por isso, os espaços públicos são marcadores
fundamentais da transformação social.
Essas implicações são de fundamental importância nas atuais circunstâncias,
pois permitem que compreendamos os espaços públicos não apenas a partir de
elementos concretos da estrutura da cidade, mas também a partir dos seus usos,
formas e apropriações, já que, nos espaços públicos, experimentam-se diversas
manifestações.
Em suma, o olhar geográfico sobre o espaço público deve levar em
consideração tanto a sua configuração física, como o tipo de práticas e dinâmicas
sociais que nele se desenvolvem. É sob essa lógica que entendemos que a
“concretude” das formas nada mais é do que o resultado/produto das práticas
socioespaciais num determinado espaço-tempo. Desta forma, este espaço passa a
ser visto como um conjunto indissociável entre as formas e as práticas sociais
(GOMES, 2002, p. 172).
Aponta Serpa (2009), dois pontos importantes na definição de espaço público.
O primeiro, diz respeito a sua representação subjetiva e cultural, que se articula à
análise entre os espaços públicos, a sociabilidade e o resultado desta articulação na
apropriação desses espaços na contemporaneidade; Sob essa perspectiva, este
autor acrescenta que o espaço público é, também, “espaço simbólico, da reprodução
de diferentes ideias de cultura, da intersubjetividade que relaciona sujeitos e
percepções na produção e reprodução dos espaços banais e cotidianos” (SERPA,
2007, p. 9). Já o segundo ponto, por sua vez, se refere ao espaço público enquanto
mercadoria, sentido que se conforma com o atual cenário urbano.
Analisa Cerqueira (2013, p. 86), “não há como falar em espaço público na
contemporaneidade sem mencionar a influência do consumo nessa dinâmica”. Isto
porque, as relações capitalistas foram incorporadas, de tal forma, aos valores e
costumes, que acabou gerando consequências na forma de compreensão e
69
apropriação do espaço público. O consumo, por seu turno, passou a determinar
formas e projetos no espaço.
Com base nesta acentuação do consumo, Lopes (2012) afirma que essa nova
forma de mercantilização do espaço urbano desmonta, em certa medida, a
percepção de espaço público enquanto responsabilidade exclusiva do Estado e
limita-o às funções de conservador dos direitos individuais e da ordem social. Já o
setor privado, enquanto assegurador das ações do consumo, passa a conciliar e
satisfazer certas necessidades individuais e particulares.
Nesse sentido, a legitimidade do Estado enquanto órgão conservador da
justiça comum e da ordem social se fragiliza, uma vez que a não representação do
interesse coletivo em detrimento do interesse particular deslegitima as ações
estatais diante da sociedade que, nessa conformação, não se identifica,
representativamente, com a política estatal (LOPES, 2012).
Parece inapropriado e até difícil de acreditar quando se fala em
mercantilização de espaços públicos. No entanto, nos bairros Cidade Alta, Petrópolis
e Tirol de Natal-RN este contexto se materializa a partir das práticas socioespaciais
e da apropriação dos flanelinhas/guardadores de carros. Isto porque, apesar de não
existir nenhum documento que assegure a posse de determinado espaço público ao
flanelinha/guardador de carros, e muito menos que o possibilite a negociação de tal
espaço - uma vez que se trata de um espaço púbico, que como já vimos é um
espaço de todos, de uso coletivo, de encargo do Estado quanto à gestão e
manutenção - a compra/aluguel de espaços apropriados por estes sujeitos, nestes
bairros, são mais comuns do que imaginamos.
Alguns flanelinhas/guardadores de carros relataram, durante as nossas
entrevistas, que adquiriram o seu “pedaço” a partir da compra do que antes era o
“pedaço” de outro flanelinha/guardador de carros (em uma das entrevistas
realizadas o flanelinha/guardador de carros informou que na época, há uns 20 anos
atrás, pagou 800 reais pela compra do espaço no qual trabalha hoje). Outros
relataram, ainda, que às vezes alugam o seu “pedaço”, sob a forma de diária,
quando não podem ir trabalhar (por qualquer motivo); e, até mesmo, que diversas
vezes já receberam propostas de compra daquele determinado espaço (entre as
proposta mencionadas, o valores variaram de 1.000 a 3.500 reais). Nesta lógica,
70
torna-se, mais que evidente, a mercantilização do espaço público, conforme reflexão
realizada.
Desta forma, a lógica formal e de distribuição dos espaços públicos, bem
como sua apropriação, passam a acompanhar a lógica mercantilista. Assim sendo, o
espaço público passa a ser “mercadoria para o consumo de poucos, dentro da lógica
de produção e reprodução do sistema capitalista na escala mundial” (SERPA, 2007,
p.9).
Segundo os apontamentos de Lopes (2012) as individualidades intrínsecas
aos sujeitos podem ser percebidas ao longo do seu processo de socialização e, de
maneira mais visível, quando se pensa as diversas formas de uso dos espaços
estabelecidas por estes sujeitos. Estes usos demarcam territórios, padronizam
comportamentos e códigos de conduta, criam identidades, dentre outros. Nesse
sentido, estes traços que podem ser percebidos, sobretudo, a partir de uma análise
do cotidiano.
Nessa perspectiva, o cotidiano não diz respeito apenas às atividades
rotineiras e/ou a atos isolados, pois no cotidiano se efetivam as coações e se geram
as possibilidades. Desse modo, por um lado, o cotidiano institui a tendência global
da propagação do consumo de massa e a incursão de um estilo de vida associado a
valores do consumo e das necessidades criadas e, por outro lado, abrange a
possibilidade de superação, de insurgências e da criação do novo (CARLOS, 1996).
Assim, os espaços públicos e a relação público/privado são considerados,
neste trabalho, principalmente, como produtores e produtos da apropriação. Nesse
sentido, os bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN – e mais
especificamente as suas ruas –, enquanto espaços públicos, permitem analisarmos
a interação público-privado na apropriação pelo uso definido nas práticas cotidianas.
Entendemos que a rua se constitui enquanto um dos principais exemplos de
espaço público estruturante da cidade. A palavra “rua” significa “[...] do latim ruga,
posteriormente sulco, caminho. Via pública para circulação urbana, total ou
parcialmente ladeada de casas” (FERRREIRA, 2004). Apesar de apresentar,
etimologicamente, uma definição tão simples, ela é um dos mais importantes
elementos da morfologia urbana e para a realização da vida social.
A rua é um espaço multifuncional. Isto porque, suas funcionalidades existem,
porém não são exclusivas e/ou únicas. Possivelmente é o único lugar onde o ócio, a
71
ação inespecífica, ou, até esmo, a simples observação se confunde com um
comportamento funcional sem que haja a necessidade de se declarar sua intensão.
Ao mesmo tempo, a presença nela pode ser justificada a partir de inúmeras
possibilidades. A simples presença nela já confere uma imediata legitimidade. Deste
modo, entendemos que “a rua pode ser vista como a unidade fundamental e mínima
desse homem público” (GOMES, 2012, p. 27).
Loboda (2009, p. 36) apregoa que as práticas socioespaciais ganham
sentidos a partir dos usos executados, vivenciados e percebidos pelos diferentes
indivíduos sociais, seja através das situações mais comuns como o simples passar,
ou por meio das práticas nas quais a relação do sujeito com o espaço público se
mostra de forma mais incisiva através do seu uso e apropriação para necessidades
diárias. De tal modo, as práticas socioespaciais são intermediárias da apropriação
da cidade ou parte dela, incluindo os espaços públicos.
3.3 Apropriação de parcelas do espaço público dos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN por flanelinhas/guardadores de carros
Nessa conjuntura, as análises referentes à apropriação procuram examinar a
sua relação com o cotidiano e as possibilidades de transformação a partir da
apropriação dos espaços públicos. É nessa perspectiva que, neste trabalho,
abordaremos a noção de apropriação no sentido de apropriação dos espaços
públicos, através do uso, para a realização da vida das pessoas no seu cotidiano.
Desta forma, as relações entre a produção e apropriação desses espaços pelo uso
podem ser lidas na horizontalidade, como uma metáfora aos percursos das pessoas
no espaço, as quais em seu dia-a-dia, constroem - e são construídas -, modificam - e
são modificadas - e dão – encontram - sentidos ao (no) espaço público (SOBARZO,
2006).
Na interpretação deste autor,
[...] os usuários e as suas maneiras de se apropriar do espaço constituem uma superação da racionalidade planejada e dominante que tenta se impor na cidade. O espaço da apropriação é o espaço do usuário; o espaço do vivido. A vida cotidiana remete à relação entre espaços de representação (vividos, concretos, subjetivos, apropriados) e as representações do espaço (abstratas, objetivas, dominadoras) (SOBARZO, 2006, p. 104).
A apropriação, de acordo com Saquet (2011), possui três significados
principais: a) como posse, propriedade, controle, domínio – individual e/ou coletivo –
72
por sujeitos presentes ou ausentes do espaço apropriado por meio de mecanismos e
mediadores materiais e imateriais; b) denota delimitação, parcelamento, divisão e,
ainda c) uso, influência, interferência e utilização de objetos, instrumentos,
máquinas, ruas, edificações, homens, enfim, do espaço e da natureza. As
apropriações, mais estáveis ou temporárias, dependem das intencionalidades, dos
anseios, das aspirações, dos objetivos, enfim, das relações sociais e das práticas
espaciais, temporais e territoriais, todas concretizadas nas relações entre sociedade
e natureza, materializando-se e/ou imaterializando-se nas paisagens e nos lugares.
A apropriação confere significado ao espaço público, relacionando as esferas
do público e do privado. Nesse sentido, a apropriação se constitui enquanto um
prolongamento do privado no público - que se efetua a partir do uso -, e de uma
“privatização corporal”, uma vez que é efetuada pelo corpo do individuo que se
estende da casa (espaço privado) e vai “conquistando” para seu uso, realização da
vida e reprodução, uma parcela do espaço público (“pedaços” da cidade, a
exemplo), determinados por suas trajetórias (SOBARZO, 2006). Ainda segundo este
autor, isto demonstra o descaso com a esfera do público, uma vez que essas
atitudes são alimentadas pela concepção - do senso comum - do público enquanto
uma terra de ninguém e/ou como aquilo que é do Estado e do qual é permitido tirar
vantagem.
Nessa perspectiva, compreendemos que os espaços públicos dos bairros
Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN estão inseridos num contexto do
cotidiano da cidade, que expressam contradições, lutas, conflitos e possibilidades.
Trata-se de um espaço que se manifesta, extremamente, complexo e que vai muito
além do que a concepção contrastante público/privado pode conceber.
É de suma importância, refletir sobre a apropriação do bairro enquanto uma
experiência coletiva que gera a sensação pertencimento – nosso bairro, nossa
praça, nossa rua, nosso lugar, nosso “pedaço”. Essa apropriação admite sair do
corpo e da casa para a comunidade. Além disso, “permite o reconhecimento, que
não se esgota no fato de se reconhecer diferente, mas a partir disso ser capaz de
perceber a injustiça dessa diferença, produto dos conflitos expressos no espaço
urbano” (SOBARZO, 2006, p. 107-108).
73
3.3.1 Perfil dos flanelinhas/guardadores de carros que se apropriam de parcelas do
espaço público dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN
É importante apresentar uma breve caracterização desses
flanelinhas/guardadores de carros, para que possamos, dentre outras coisas,
entender as motivações e os objetivos que estão por trás da realização desta
atividade e, da consequente/possibilitadora, apropriação.
Os flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e
Tirol de Natal-RN observados em nossa pesquisa7, são exclusivamente homens,
com idade (em sua maioria) superior aos 40 anos (gráfico 4). Aproximadamente 77%
destes sujeitos estão fora da faixa etária, usualmente, aceita no mercado de
trabalho, o que dificulta, significativamente, a busca por um emprego formal. Fato
este, que eles mesmos salientaram nas entrevistas como sendo um dos motivos
pelos quais não conseguem e/ou não buscam, na atualidade, um trabalho “formal”.
Gráfico 2: Faixa etária dos flanelinhas/guardadores de carros
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Esses flanelinhas/guardadores de carros são, ainda, chefes de família e,
desta forma, os principais – senão únicos – responsáveis pela renda familiar (gráfico
5).
7 As entrevistas foram realizadas com 30 flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN
74
Gráfico 3: Participação na renda familiar
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Não possuem qualificação escolar - 80% dos entrevistados não possuem nem
o Ensino Fundamental I completo (gráfico 6) - ou mesmo profissional, requerida para
outros tipos de atividades e, principalmente, para os empregos ditos “formais”.
Gráfico 4: Grau de instrução dos flanelinhas/guardadores de carros
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Entretanto, mesmo diante das dificuldades enfrentadas, seja pela idade, pela
falta de qualificação ou por tantos outros motivos, estes sujeitos encontram na
atividade de flanelinha/guardador de carros, que não requer qualquer qualificação
profissional, a possibilidade de realização/satisfação de suas necessidades.
75
Apenas 7% dos flanelinhas/guardadores de carros afirmaram possuir
cadastro, na 1ª DP, para exercer a atividade, apesar da maioria dos
flanelinhas/guardadores de carros estarem nessa atividade e atuando no mesmo
local há bastante tempo, entre 10 e 40 anos (gráfico 7). Isto nos remete ao fato de
que a atividade, bem como sua presença nos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol
de Natal-RN, é bastante antiga. Tão antiga que a imagem de muitos destes sujeitos
já está cristalizada nos espaços por eles apropriados. Ao mesmo tempo, torna-se
mais nítida, a omissão e o descaso do Estado diante dessa apropriação indébita e
da situação socioeconômica destes indivíduos que perdura por tanto tempo sem
qualquer ação de coibição e/ou redirecionamento destes sujeitos para outros postos
de trabalho ou, mesmo, para programas de assistência social.
Gráfico 5: Tempo na atividade de flanelinha/guardador de carros
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Por outro lado, ressaltamos que, muitos destes flanelinhas/guardadores de
carros já exerceram outras atividades antes desta, como, por exemplo: Auxiliar de
Serviços Gerais (ASG); agricultor; jardineiro; pescador; servente de pedreiro;
embalador; maqueiro; conferente de carros; entre outros. Constatamos que, 70%
destes sujeitos exerciam atividades profissionais com carteira assinada, mas diante
da baixa renda obtida com o trabalho, do desemprego, dentre outros fatores
apresentados por eles nas entrevistas, acabaram tendo que procurar outros meios
para se manter.
Diante disto, 27% dos flanelinhas/guardadores de carros entrevistados
explicaram que optaram por esta atividade por falta de emprego no mercado de
37%
76
trabalho “formal”. Enquanto isso, 53% dos entrevistados expôs que escolheu esta
atividade por opção própria, pelo simples fato de ser uma atividade mais rentável,
flexível e de serem seus próprios chefes (gráfico 8).
Gráfico 6: Atribuição à escolha pela atividade de flanelinha/guardador de carros
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Ademais, 53% destes flanelinhas/guardadores de carros, exercem outras
atividades para complementar a sua renda mensal. Ou seja, quando não estão
trabalhando como flanelinha/guardador de carros (sobretudo, nos finais de semana),
trabalham, principalmente, fazendo “bicos” e como vendedor ambulante nas praias
da cidade, uma vez que durante o final de semana não há relevante movimento nos
bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN.
3.3.2 Características da apropriação de parcelas do espaço público dos bairros
Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN pelos flanelinhas/guardadores de carros
Neste tópico, identificamos e caracterizamos - a partir da pesquisa de campo
e da discussão posta até o presente momento - alguns aspectos da configuração
urbana dos espaços públicos dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN
que influenciam, facilitam e possibilitam a apropriação dos flanelinhas/guardadores
de carros, percebida em determinados espaços destes bairros. Estes aspectos
dizem respeito, sobretudo, a elementos como: localização; infraestrutura; usos e
27%
53%
Falta de emprego formal nomercado de trabalho
Falta de oportunidade
Escolha própria
20%
77
funcionalidades; fluxo/circulação; dentre outros; que merecem destaque neste
trabalho.
Em primeiro lugar, compreendemos assim como Albagli (2004), que dar nome
ao território se constitui como uma das primeiras características de apropriação. A
partir desta nomeação se identifica o território e se transmite sua existência aos
outros, fazendo referência a uma porção específica da superfície terrestre. Assim é
com os flanelinhas/guardadores de carros, entendemos que ao tomarem o termo
“meu pedaço” para designar determinado espaço, já se verifica um teor de posse
nessa nomeação, que, por sua vez, proporciona sensação de intimidade e
familiarização entre este sujeito e o território, bem como um incômodo e/ou
estranhamento entre os demais membros da sociedade e este espaço específico (o
“pedaço” de alguém).
Constatamos, também, que a localização de determinado espaço público no
bairro é um dos elementos que merece destaque no processo de apropriação para a
atividade dos flanelinhas/guardadores de carros. Isto porque, a proximidade do
espaço apropriado ao bairro de residência do sujeito - que se locomove, em boa
parte, a pé ou de bicicleta (fotografia 1) entre a casa e o “local de trabalho” -, bem
como a proximidade deste espaço a estabelecimentos comerciais e de serviços
(fotografia 2 e 3) - que determinam a rotatividade naquele espaço -, são exemplos
de fatores que vão contribuir ou não para a atratividade de determinado espaço e,
consequentemente, sua apropriação.
78
Fotografia 1: Meio de transporte e objetos pessoais do flanelinha/guardador de carros na Rua Campos Sales (Tirol)
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da autora (2016)
Fotografia 2: Instituto de radiologia localizado entre a Avenida Afonso Pena e a Rua Jundiaí (Tirol): apontado como um dos estabelecimentos que promove elevada
rotatividade de automóveis nas proximidades da sua localização.
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da autora (2016)
79
Fotografia 3: Cardioclínica localizada na Rua Jundiaí (Tirol): apontado como um dos estabelecimentos que promove elevada rotatividade de automóveis nas
proximidades da sua localização.
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da autora (2016)
Outro fator que pode ser elencado é a infraestrutura do espaço a ser
apropriado - se comporta ou não vagas para estacionamento, se possui amenidades
(como árvores que forneçam sombra) (fotografia 4), se possui acesso a água e/ou
possibilidade de instalação (fotografia 5), dentre outros -, uma vez que estes
possibilitarão ou não o desenvolvimento da atividade de flanelinha/guardador de
carros.
80
Fotografia 4: Espaço público da Rua Rodrigues Alves (Petrópolis) constituído por área de estacionamento e amenidades (árvores-sombra).
Fonte: Google Maps (2016)
Fotografia 5: Instalação clandestina e improvisada de água em espaço público da Rua Campos Sales (Tirol).
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da autora (2016)
81
Podemos citar, também, os usos e funcionalidades percebidos no espaço a
ser apropriado para a atividade dos flanelinhas/guardadores de carros, uma vez que
se o espaço já foi pensado no sentido de parada/estacionamento de carros
(fotografia 6), bem como se são propícios à lavagem de carros, por exemplo,
acabam facilitando, significativamente, a atividade dos flanelinhas/guardadores de
carros e, por conseguinte, o desejo de apropriação daquele espaço.
Figura 6: Espaço público amplo na Rua Afonso Pena (Petrópolis) destinado a estacionamento.
Fonte: Google Maps (2016)
Além destes, temos, ainda, enquanto elemento importante nesse processo de
apropriação de espaços públicos por flanelinhas/guardadores de carros, o
fluxo/circulação percebido nas proximidades deste espaço, pois é a partir deste
elemento que a presença e a atividade destes sujeitos se farão útil ou não naquele
espaço. Assim como também será um fator determinante na quantia arrecada com
esta atividade neste espaço, uma vez que quanto maior o fluxo/circulação, maior
será a procura por vagas de estacionamento e, consequentemente, as gorjetas
pagas em função do serviço prestado. Vale ressaltar que, um elevado
fluxo/circulação especificamente/pontualmente no espaço a ser apropriado,
82
configura-se ao contrário, como um fator negativo a apropriação, já que eliminam, de
forma significativa, as possibilidades de parada momentânea de automóveis nestes
espaços.
Acreditamos, nesse sentido, que os elementos apresentados acima, se
configuram enquanto os principais fatores levados em conta pelos
flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de
Natal-RN, quando estes avaliam a possibilidade, facilidade e, mesmo, a qualidade
do “pedaço” para o exercício da atividade e, consequente apropriação.
Apesar disto, através das entrevistas, constatamos que a maioria destes
flanelinhas/guardadores de carros não escolheu, necessariamente, o espaço a ser
apropriado para a realização da atividade (gráfico 9), pois dificilmente encontra-se,
nos referido bairros, espaços “não-apropriados” que sejam propícios a esta
atividade.
Gráfico 7: Atribuição à escolha da área para desenvolvimento da atividade de flanelinha/guardador de carros
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Dessa forma, a opção por seu espaço de atuação deriva, principalmente, de
fatores como: trabalho anterior se localizar próximo ao local que se apropriou; a
morte do flanelinha/guardador de carros que ocupava o lugar anteriormente;
quantidade de vagas para estacionamento e/ou intensa circulação de pessoas e
veículos; convite/indicação feito por algum conhecido que já trabalhava nesta
27%
83
atividade; ou até mesmo, por ser um lugar já da família, que passa de geração para
geração.
Um indivíduo ou grupo social, ao apropriar-se de um território, estabelece um
conjunto de intervenções relacionadas às suas concepções éticas/morais, ao seu
nível tecnológico e às suas escolhas políticas. Estas intervenções projetam-se
espacialmente na forma de estruturação, subdivisão, organização e gestão de
território, abrangendo um conjunto de ações – nas dimensões material e imaterial –
cuja consequência é a produção de um território (ALBAGLI, 2004).
Na constante apropriação e produção do território, existem indivíduos e
grupos sociais com suas normas, regras, princípios, intenções, objetivos,
representações e características políticas, econômicas, e culturais, próprias. Há uma
diversidade de arranjos sociais e territoriais, que vão desde o indivíduo, passando
pela família e pelas organizações de localidades rurais e de bairros, até grandes
organizações políticas e/ou empresariais e/ou culturais. Existem diferenças políticas,
culturais e, também, desigualdades econômicas, bem como traços comuns entre
pessoas, famílias, empresas, associações, dentre outros (SAQUET, 2009).
Ao se demarcar uma área - sua área - aquele que se apropria passa a
identificar este espaço como sua propriedade e vai se constituir como um território
no qual nem todas as relações instituídas serão iguais. Por outro lado, “criar-se-á
uma subjetividade, uma identidade com aquele espaço construindo assim através da
sua apropriação, uma territorialidade” (MEDEIROS, 2009, p. 219).
Desse processo de apropriação de uma parcela da extensão terrestre resulta
a delimitação de uma área, na qual um individuo ou grupo social exerce domínio.
Este processo pode ser marcado por conflitos e disputas com outros indivíduos ou
grupos que ocasionalmente reclamem a mesma parcela da superfície terrestre
(ALBAGLI, 2004).
A apropriação de um determinado espaço pelos flanelinhas/guardadores de
carros decorre também, e fundamentalmente, da delimitação física deste espaço.
Esta geralmente é feita a partir de elementos físicos (fotografias 7 e 8) que
demarcam o espaço de cada um, como por exemplo: postes, caçambas de lixo,
sinais de trânsito, quadras, cavaletes, cones de sinalização, árvores e até
marcações no chão feitas à tinta, improvisadas por eles próprios.
84
Fotografia 7: Caçamba de lixo demarcando limite do território de flanelinha/guardador de carros na Rua Jundiaí (Tirol).
Fonte: Google Maps (2016)
Fotografia 8: Poste demarcando limite do território de flanelinha/guardador de carros da Rua Jundiaí (Tirol).
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da autora (2016)
O seja, nestes bairros, os flanelinhas/guardadores de carros se apropriam de
alguns “pedaços” do espaço público, para o seu uso e realização da vida, através –
85
simplesmente – da delimitação/demarcação de determinada área e da sua presença
constante (fotografia 9) e/ou de algo que remonte a sua presença naquele
determinado espaço, como por exemplo: baldes; cadeiras; flanelas; bolsas;
bicicletas entre outros (fotografia 10).
Fotografia 9: Flanelinha/guardador de carro em seu território na Rua Floriano Peixoto (Petrópolis)
Fonte: Google Maps (2016)
86
Fotografia 10: Objetos que remontam a presença do flanelinha/guardador de carros neste espaço.
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da autora (2016)
Durante as entrevistas, os flanelinhas/guardadores de carros relataram que o
que garante, efetivamente, o espaço a eles, é justamente essa presença. Por isso
mesmo que, apesar de ser uma atividade flexível - visto que eles que determinam
seus horários - eles trabalham, quase que unanimemente (97% dos entrevistados),
de forma bem regular: de segunda a sexta-feira, no período de 07h00min da manhã
às 18h00min da noite8.
Eles relatam, ainda, que é de suma importância se fazer presente
rotineiramente no seu “pedaço” e que, por isto, caso aconteça algum imprevisto que
o impossibilite de ir algum dia, é necessário “mandar” alguém no lugar dele
(geralmente algum membro da família) ou, até mesmo, alugar9 o espaço durante tal
dia, para não correr o risco de surgir outro querendo ocupar o seu espaço. O que 8 A única exceção que encontramos referente a isso foram dois irmãos que residem em outra cidade
(São José de Mipibu) e que, desta forma, saem às 14h00min da tarde devido ao horário do ônibus da volta para casa. 9 Esta prática é bem comum entre os flanelinhas/guardadores de carros, contudo alguns apontam que
não a fazem com o receio de, se algo acontecer com o carro de alguém, a culpa recair sobre ele - resultando na descredibilidade do seu trabalho -, uma vez que aquele é o “pedaço” dele (de sua responsabilidade) e que tal pessoa estaria o representando.
87
não se pode, em hipótese nenhuma, é deixar o espaço livre de qualquer referência à
sua presença.
Diante do exposto, se torna possível compreender como se dá o processo de
apropriação de parcelas do espaço público dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e
Tirol de Natal-RN pelos flanelinhas/guardadores de carros, já que - através das
discussões apresentadas (anteriormente), da nossa pesquisa de campo, entrevistas
e, principalmente, observações -, podemos constatar, entre outras coisas, que esta
apropriação se dá, quase tanto concretamente, através da demarcação física do
território, quanto simbolicamente, por meio da apropriação do espaço por e a partir
do corpo do sujeito (presença) e/ou da representação deste/a.
Chegamos a outro aspecto importante, a apropriação dos espaços públicos
não tem necessariamente que ser negativa. Contudo, o espaço público transforma-
se, para certos grupos da população, e em determinados momentos, num espaço de
poder quando certos grupos colocam em prática estratégias de ocupação e
condutas que visam à exclusividade (CASTRO, 2002, p. 59). Desta forma,
Embora o espaço público possa ser um modo de aprendizagem de outras formas de sociabilidade e da própria diferença, não implica que o confronto com o outro produza necessariamente um sentimento de conivência e reconhecimento. Tornando as diferenças palpáveis, o confronto pode conduzir a uma exacerbação dos preconceitos e a tensões conflituais. Esta exigência parece resultar de um certo desconhecimento do modo de funcionamento dos grupos e de uma grande dificuldade em se distinguir no comportamento do outro o que é efectivamente da ordem da agressão ou da intimidação. É perante esta “incapacidade” de se interpretarem as intenções dos outros que se gera o sentimento de insegurança e algumas das dificuldades de coexistência de grupos sociais muito heterogéneos (CASTRO, 2002, p. 59).
Nesse sentido, as relações observadas entre os flanelinhas/guardadores de
carros e os demais sujeitos que participam das dinâmicas dos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN são extremamente diversas. Há quem ache a
atividade e a apropriação dos flanelinhas/guardadores de carros completamente
inaceitáveis (40% dos condutores de automóveis entrevistados), já que se trata de
um espaço público, e há, também, quem seja até mesmo a favor (45% dos
condutores de automóveis entrevistados)10 (gráfico 10), uma vez que acreditam que
estes sujeitos estão apenas tentando garantir uma renda da forma que conseguem.
10
Considerando 20 condutores de automóveis enquanto universo de entrevistados.
88
Gráfico 8: Posicionamento dos condutores a respeito da atividade dos flanelinhas/guardadores de carros
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
O relacionamento com os condutores de automóveis que circulam nas
imediações da ação destes flanelinhas/guardadores de carros são bem divididos.
Muitos ignoram e condenam a presença deles em determinado espaço. Enquanto
outros utilizam, com frequências, os serviços disponibilizados pelos
flanelinhas/guardadores de carros – “pastorada”, lavagem e manobra – e, até
mesmo, outros que vão além do que estes sujeitos estão propondo (com a
realização das entrevistas junto aos condutores, verificamos que alguns vão além da
utilização dos serviços comuns dos flanelinhas/guardadores de carros, solicitando
outros, como: pagar contas, limpar calçadas, dentre outros desta natureza).
Já a relação dos flanelinhas/guardadores de carros com os proprietários dos
estabelecimentos próximos ao seu espaço de ação, conforme verificado na nossa
pesquisa de campo, é tranquila, na medida do possível. Aqueles que são
indiferentes à atividade e a estes sujeitos optam por manter distância e pouco
contato, enquanto que outros se aproveitam da presença desses sujeitos. Durante
as entrevistas, um ou outro flanelinha/guardador de carros, afirmou que alguns
proprietários acham ruim quando eles não estão presentes naquele espaço, pois
eles ajudam e proporcionam mais comodidade aos clientes deles. Além disso,
muitos desses “clientes” ajudam com cestas básicas e presentes de fim de ano.
No que concerne à relação entre os próprios flanelinhas/guardadores de
carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, tornou-se possível
15%
89
observar a existência de uma consciência territorial e coletiva por parte destes
sujeitos, visto que existem acordos e consensos entre eles, e que a relação primária
estabelecida entre eles é o respeito. Não descartamos a possível existência de
conflitos entre eles, porém durante a pesquisa de campo e as entrevistas com estes
flanelinhas/guardadores de carros, isto não foi constatado.
.
90
4 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: SOBRE AS DINÂMICAS TERRITORIAS
E ESTRATÉGIAS DE INFLUÊNCIA E CONTROLE NO TERRITÓRIO
Quando um indivíduo se apropria de determinado espaço, de forma concreta
ou abstrata - como é o caso dos flanelinhas/guardadores de carros - este sujeito
transforma-o em um território. Todavia, é necessário compreender que os termos
“espaço” e “território” não são equivalentes.
Segundo Fernandes (2005, p. 26) o espaço é parte da realidade, logo, é
multidimensional. As pessoas produzem espaços ao se relacionarem e são, ao
mesmo tempo, frutos dessa multidimensionalidade. Nessa perspectiva, uma análise
conceitual efetiva requer a definição do espaço como “composicionalidade” e como
“completitude”. Como “composicionalidade” porque, compreende e só pode ser
compreendido a partir de todas as dimensões que o constitui. E como
“completitude”, pois possui a qualidade de ser um todo, mesmo sendo uma parte.
No que concerne à produção do espaço, esta acontece através das relações
sociais. Estas são produtoras, principalmente, de espaços fragmentados e
conflitivos. Esta produção de fragmentos de espaços deriva das intencionalidades
envoltas nas relações sociais, uma vez que elas determinam as interpretações e
ações propositivas que projetam a totalidade como parte. Ou seja, o espaço em sua
qualidade “completiva” é apresentado simplesmente como um fragmento
(FERNANDES, 2005).
O espaço é concebido, de certo modo, como uma matéria-prima preexistente
a qualquer prática da qual será o objeto quando um ator manifestar a intenção de
dele se apoderar. É o local de possibilidades. O território, por sua vez, se sustenta
no espaço, mas não é o espaço. Trata-se de uma produção a partir do espaço.
Sendo assim, qualquer projeto no espaço, expresso, sobretudo, por relações de
poder e controle, revela a imagem desejada de um território (RAFFESTIN, 1993).
Assim, entendemos que a intencionalidade determina a representação do
espaço e se constitui numa forma de poder e num:
[...] modo de compreensão que um grupo, uma nação, uma classe social ou até mesmo uma pessoa utiliza para poder se realizar, ou seja, se materializar no espaço [...]. A intencionalidade é uma visão de mundo, ampla, todavia una, é sempre uma forma, um modo de ser, de existir. Constitui-se em uma identidade. Por esta condição, precisa delimitar para poder se diferenciar e ser identificada. E assim, constrói uma leitura parcial de espaço que é apresentada como totalidade (FERNANDES, 2005, p. 27).
91
As práticas sociais caracterizam e distinguem os territórios e, da mesma
forma, também se diferenciam no território. Dessa maneira, “Poder” e “Território” se
fundamentam nesta análise, mas não são as únicas formas de se entender a
utilização do território. São, sim, elementos que podem colaborar para a abordagem,
em determinados momentos, da produção desse território (CUNHA; SILVA, 2007).
As distinções e as práticas sociais dependem do conjunto de forças que
operam no espaço territorial e dos interesses que se encontram em jogo em
determinados momentos históricos. A classificação dos territórios, então, se realiza
através de suas territorialidades e por meio da multiplicidade de processos e
fenômenos que se realizam no seu território e qualificam as práticas que os atores
sociais desenvolvem a partir do uso do território (SILVA, 2009).
A Territorialidade, deste modo, conforma um panorama para as concepções
do espaço e relações espaciais humanas. Aponta, ainda, para o fato de que as
relações espaciais humanas não são neutras, ou seja, a interação humana - o
movimento e o contato – pressupõe, também, questões de transmissão de
informação e energia, a fim de afetar, influenciar e controlar as pessoas e os
acessos às fontes. Sendo assim, as relações espaciais humanas são decorrências
da influência e poder (SACK, 1986).
Em suma, neste capítulo buscamos discutir o território e as dinâmicas que lhe
são inerentes, a fim de caracterizar o território dos flanelinhas/guardadores de carros
e a organização que estes adotam nos espaços apropriados nos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN, bem como compreender as influência e controle,
enquanto territorialidade, que estabelecem nesses territórios.
4.1. Território e relações de poder
O conceito de território é construído historicamente e remete a diferentes
contextos e escalas, como, por exemplo, a nação, a região, a cidade, o bairro, a
casa. Sendo assim, o território é objeto de análise sob diferentes perspectivas:
jurídico-política, sociológica, antropológico-cultural, bioecológica, geográfica - que
aqui se pretende -, dentre outras. Cada uma concebe o território de uma maneira e,
segundo, abordagens específicas (ALBAGLI, 2004).
Todavia, em qualquer sentido, o território tem a ver com a definição e
delimitação de um espaço por e a partir de relações de poder. Este, de acordo com
92
Haesbaert (2007), não diz respeito somente ao tradicional "poder político". Trata-se
do poder tanto no sentido mais explícito do termo, ou seja, de dominação, como,
também, no sentido mais implícito ou simbólico, de apropriação. Nesse sentido, o
território torna-se palco de processos e relações, onde diferentes atores sociais
definem práticas espaciais de poder e territorialidades (CUNHA; SILVA, 2007).
Toda ação que a sociedade desenvolve realiza-se e materializa-se no
território através de relações sociais entre os mais diversos níveis nas escalas -local,
nacional e global -, intervindo na vida política, social, econômica e cultural das
sociedades. Destarte, a territorialização das ações presentes no território,
“conduzida” por atores sociais, é caracterizada a partir da distinção de interesses
que compeliram posicionamentos diferentes ocasionando conflitos no território.
Portanto, os atores sociais possuem, por meio de seus interesses, posicionamentos
que delimitam seus poderes no território, definindo e redefinindo suas
territorialidades (SILVA, 2009)
O território sob o viés geográfico é aquele das relações e das múltiplas
materialidades sociais/territorialidades. É o território político-econômico-social-
cultural, no qual as práticas, dos diferentes atores sociais, se materializam, sejam
elas internas ou externas ao território. É, por excelência, a institucionalização do
poder e é nele que se torna possível evidenciar os conflitos de interesses, sobretudo
entre a institucionalização do poder (poder formal) e os poderes que lhes são
paralelos (poder informal), os quais procuram satisfazer-se convergindo ou
divergindo dele (SILVA, 2009).
O poder, nessa perspectiva, se caracteriza enquanto relações de forças que
excedem a atuação do Estado e que envolvem, e estão envolvidas, em outros
processos da vida cotidiana, tais como: o lugar de trabalho, as universidades, a
igreja, entre outros. Significa, ainda, relações sociais conflituosas e heterogêneas
que são variáveis, segundo a sua intencionalidade. Sendo assim, o território, diante
da multidimensionalidade do mundo, admite múltiplos significados, a partir de
territorialidades complexas, plurais e em unidade. Deste modo, os significados do
território variam conforme se modifica a compreensão das relações de poder
(SAQUET, 2015) e, por isso, faz-se necessário nos determos um pouco no conceito
de poder antes de voltarmos, propriamente, ao território.
93
A princípio cabe destacarmos, assim como Raffestin (1993) a ambiguidade
presente no termo “poder”, ainda que seja apenas devido à escrita maiúscula ou
minúscula. O “Poder”, é mais familiar, mais marcante e mais habitual quando se
mostra na qualidade de nome próprio. Isto porque, há uma confusão entre Estado e
Poder, na qual ao considerar que o Poder é o Estado acaba-se mascarando o poder,
no contexto de nome comum.
O poder, com a minúscula, se oculta atrás do Poder, com a maiúscula.
Quanto maior for sua presença em todos os lugares, melhor ele se oculta. Está
presente no delineamento de cada ação e em cada relação. É traiçoeiro, se
beneficia de todas as fissuras sociais para assim introduzir-se até o íntimo do
homem. Enquanto "Poder", nome próprio, é mais simples de circundar, pois se
manifesta através dos aparelhos complexos que controlam os indivíduos, dominam
os recursos e encerram o território. Consequentemente, é o mais perigoso e
preocupante, incita a desconfiança pela própria ameaça que representa. Contudo,
ainda mais perigoso é aquele que não se vê, ou que não mais se vê já que se
acreditou tê-lo vencido, sentenciando-o à prisão domiciliar (RAFFESTIN, 1993).
De uma forma geral, o poder não se dá, não se troca e nem se retoma. Ele se
exerce, ou seja, só existe em ação. Ele não é, fundamentalmente, manutenção e
reprodução de relações econômicas, mas sim, e acima de tudo, uma relação de
força (FOUCAULT, 1988). Ele está presente nas ações do Estado, das empresas,
das instituições, dos próprios indivíduos, ou seja, nas relações sociais que se
realizam na vida cotidiana, objetivando a dominação e o controle sobre os homens e
as coisas. “O poder é inerente às relações sociais, que substantivam o campo de
poder” (SAQUET, 2015, p. 33).
Nessa acepção, o poder transfigura-se nas relações imbrincadas no uso do
território, materializado ou imaterializado por meio das formas de ação dos atores
sociais. Desta maneira, o poder é uma relação instituída entre interesses
divergentes com finalidades específicas de utilização do território. Por conseguinte,
os conflitos gerados a partir desta divergência nos interesses e fins do uso do
território também se constituem como formas de poder. O poder se conforma então,
como uma intencionalidade política do território, utilizado a fim de se atingir
determinado objetivo, e um de seus artifícios é o convencimento do outro (SILVA,
2009).
94
Raffestin (1993) pronuncia que, no que concerne aos meios mobilizados, o
poder é definido por uma combinação variável de informação e energia. A partir da
presença destes dois elementos, é possível dizer que existem poderes com forte
componente informacional ou, inversamente, com forte componente energético.
Ainda nesse sentido, o poder utiliza seus meios para visar os “trunfos”, que podem
ser a população, o território ou os recursos, ou seja:
O poder visa o controle e a dominação sobre os homens e sobre as coisas. [...] colocamos a população em primeiro lugar: simplesmente porque ela está na origem de todo o poder. Nela residem as capacidades virtuais de transformação; ela constitui o elemento dinâmico de onde procede a ação. [...]. O território não é menos indispensável, uma vez que é a cena do poder e o lugar de todas as relações, mas sem a população, ele se resume a apenas uma potencialidade, um dado estático a organizar e a integrar numa estratégia. Os recursos, enfim, determinam os horizontes possíveis da ação. Os recursos condicionam o alcance da ação (RAFFESTIN, 1993, p. 53).
O território é, por excelência, o espaço político, o campo de ação destes
trunfos. Por isto mesmo, se constitui enquanto um trunfo particular, recurso e
obstáculo, continente e conteúdo, simultaneamente. Quanto à informação e à
energia, elas desempenham um papel fundamental, que não pode e nem deve ser
subestimado, posto que tornam complementares as duas faces da medida de todas
as coisas. (RAFFESTIN, 1993).
Todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, “funcional” e
“simbólico”, uma vez que as relações de poder têm no espaço um elemento
indissociável tanto na realização de funções como na produção de significados.
Logo, seria possível discorrer sobre:
[...] dois grandes "tipos ideais" ou referências "extremas" frente às quais podemos investigar o território: um, mais funcional, priorizado na maior parte das abordagens, e outro, mais simbólico, que vem se impondo em importância nos últimos tempos. Enquanto "tipos ideais" eles nunca se manifestam em estado puro, ou seja, todo território "funcional" tem sempre alguma carga simbólica, por menos expressiva que seja, e todo território "simbólico" tem sempre algum caráter funcional, por mais reduzido que pareça (HAESBAERT, 2007, p. 23).
A constituição, a dinâmica e a diferenciação dos territórios podem ser vistas
ainda, a partir de uma variedade de dimensões interrelacionadas, tais como: física -
características geoecológicas e recursos naturais e aquelas resultantes dos usos e
das práticas dos atores sociais; sociopolítica - meio para dinâmicas sociais e
relações de poder e dominação; econômica - formas de organização espacial dos
processos sociais de produção, consumo e comercialização; e simbólico/cultural - a
95
apropriação simbólica de uma parcela do espaço por determinado grupo, ou, ainda,
um conjunto especifico de relações culturais afetivas e identitárias entre um grupo e
lugares particulares (ALBAGLI, 2004).
O território também é marcado por limites e fronteiras que são produtos e
ferramentas da construção de territorialidades. Entretanto, os territórios não são
simplesmente áreas contíguas e estáveis, separadas por limites e fronteiras. No
território verificam-se, também, superposições e instabilidades dentro de seus
próprios limites, através de territorialidades diversas.
4.2 Influência e controle no território: sobre a definição e teoria da
territorialidade humana
A territorialidade foi (e é ainda, em muitos casos) usualmente entendida como
um princípio jurídico ligado à base territorial dos Estados. Nesse sentido, diz respeito
à territorialidade das leis, normas e regras, que se justapõem às coisas e aos
habitantes de um país, e cuja sua contrapartida é a extraterritorialidade. Entretanto,
a territorialidade contempla mais do que uma definição jurídica e não se refere
somente à territorialidade do Estado (ALBAGLI, 2004, p. 27).
A noção de territorialidade também foi muito discutida nos estudos de
biólogos e críticos sociais, que a concebem enquanto um atributo do comportamento
animal. Segundo estes estudiosos, e esta linha de pensamento, a territorialidade nos
humanos seria então parte de um instinto agressivo que é, também, próprio de
outros animais territoriais (SACK, 1986).
A etologia (ramo da ciência que se debruça sobre o estudo do comportamento
animal) introduziu, na década de 1920, novas abordagens acerca da noção de
territorialidade a partir da troca do estudo de indivíduos de laboratórios - isolados e
em condições artificiais - para o estudo de sociedades animais em seu meio natural.
Sob esta lógica, o território animal se constitui enquanto abrigo ou “nicho" e é
comumente definido como a área de vivência, reprodução e segurança. Este é
delimitado, fundamentalmente, a partir de condições do ambiente físico, tais como:
clima, vegetação, tipo de solo e da presença e interação com outros animais
(ALBAGLI, 2004).
Em outras palavras, sob o viés da etologia, o conceito de territorialidade foi
definido como o comportamento de um organismo vivo, a fim de tomar posse de seu
96
território e defendê-lo contra outros membros de sua própria espécie. A
territorialidade, de mera qualidade jurídica, passou, assim, a ser vista como sistema
de comportamento. Todavia, propõe-se, hoje, desassociar a noção de territorialidade
daquele sentido de defesa elementar do espaço vital de sobrevivência, optando por
tratá-la como predicado humano e evitando transposições diretas entre os sentidos
de animalidade e humanidade. (ALBAGLI, 2004).
A noção de territorialidade foi introduzida, também, aos estudos das Ciências
Sociais e Humanas como, por exemplo: a Sociologia, a Antropologia e Geografia. É
sob esta perspectiva que adotamos a compreensão de Sack (1986) no sentido de
uma estratégia espacial de individuo ou grupo para afetar, influenciar e controlar
pessoas, fontes, fenômenos e relações, principalmente a partir da delimitação e da
afirmação do controle sobre determinada área, esta sendo denominada: território.
Sob o viés geográfico a territorialidade se constitui como uma forma de
comportamento espacial.
Haesbaert (2007) realiza uma revisão teórica sobre as diversas concepções
de territorialidade propostas, e enumera através dos seguintes aspectos: 1) a
territorialidade num enfoque mais epistemológico, enquanto abstração; condição
genérica - teórica - para a existência do território; 2) a territorialidade num sentido
bem mais ontológico: a. como materialidade (controle físico do acesso por meio do
espaço material); b. como imaterialidade (controle simbólico, por meio de uma
identidade territorial); c. como espaço vivido, conjugando materialidade e
imaterialidade.
Aliando estas concepções poderíamos ter uma leitura que separa e distingue
claramente territorialidade e território. Neste sentido, teríamos assim:
a) Territorialidade como concepção mais ampla que território [...] tanto como uma propriedade de territórios efetivamente construídos quanto como "condição" (teórica) para a sua existência [...]. b) Territorialidade praticamente como sinônimo de território: a territorialidade como qualidade inerente à existência, efetiva, do território, condição de sua existência. c) Territorialidade como concepção claramente distinta de território, em dois sentidos: 1. territorialidade como domínio da imaterialidade [...] definida [...] enquanto "abstração" analítica e enquanto dimensão imaterial ou identidade territorial. 2. territorialidade como domínio do "vivido" [...] ou do não institucionalizado, frente ao território como espaço formal institucionalizado [...] d) Territorialidade como uma das dimensões do território, a dimensão
simbólica (ou a "identidade territorial") [...] (HAESBAERT, 2007, p. 26).
Em um nível individual, a territorialidade diz respeito ao espaço pessoal
imediato - em muitos contextos, sobretudo o cultural, considerado um espaço
97
inviolável -, e em nível coletivo, a territorialidade torna-se, além disto, uma forma de
regular os processos sociais e de reforçar a identidade da comunidade ou grupo ou
comunidade (ALBAGLI, 2004). Corroborando esta ideia, Souza (2000) afirma que na
forma singular, a territorialidade remeteria a algo profundamente abstrato. Já as
territorialidades, no plural, denotam as formas gerais nas quais podem ser
classificados os territórios segundo sua dinâmica, atributos, entre outros.
Ao passo que a territorialização é consequência da expansão do território -
ininterrupto e contínuo - a territorialidade, por sua vez, é a manifestação do
desenvolvimento das relações sociais conservadoras dos territórios, as quais
produzem e reproduzem ações próprias ou apropriadas. Como atributo humano, a
territorialidade é condicionada por normas sociais e valores culturais que variam, de
sociedade para sociedade, e de um período para outro. É resultante de processos
de socialização e da interação, mediada pelo espaço, entre seres humanos
(ALBAGLI, 2004).
Podemos pensar, então, em quatro grandes finalidades ou objetivos da
territorialização, que podem, ou não, ser acumulados e/ou distintamente valorizados
com o passar do tempo: Primeiro, como abrigo físico, meio de produções e/ou fonte
de recursos; Segundo, enquanto identificação de grupos através de indicativos
espaciais (primordialmente pela própria construção de limites e fronteiras); Terceiro,
como controle e/ou disciplinarização por meio do espaço; E quarto, enquanto
construção e controle de redes e conexões (principalmente fluxos de pessoas,
informações e mercadorias) (HAESBAERT, 2007).
A territorialidade reflete a multidimensionalidade do vivido territorial pela
sociedade em geral e/ou pelos membros de um grupo/coletividade. Os homens
vivem o processo territorial e o produto territorial, ao mesmo tempo, por intermédio
de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas (RAFFESTIN, 1993).
Então, como bem aponta Saquet (2009), a territorialidade se efetiva em todas as
relações cotidianas, ou melhor, ela corresponde às relações sociais cotidianas no
trabalho, na rua, na família, na igreja, na praça, enfim, na cidade/urbano, no
rural/agrário e nas relações urbano/rurais de forma múltipla e híbrida.
A territorialidade poder ser expressa como a soma das relações entre o
sujeito e o seu meio. Contudo, não se refere a uma equação matemática, mas sim a
uma totalidade de relações biossociais em interação. Desta maneira, a
98
territorialidade pode ser definida, ainda, “como um conjunto de relações que se
originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a
maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema” (RAFFESTIN,
1993, p. 160).
Segundo Sack (1986), três relações interdependentes, contidas na definição,
explicam a lógica e os significados dos efeitos da territorialidade:
Primeiro, [...] a Territorialidade deve envolver uma forma de classificação por área. Quando alguém diz que alguma coisa ou [...] coisas, em um quarto são dele ou estão fora do limite para você [...], ele está usando uma área para classificar ou determinar coisas em uma categoria como dele, não sua [...]. Segundo, [...] deve conter uma forma de comunicação. Isto pode envolver uma marca ou sinal, tal como é comumente encontrada em uma fronteira. Ou uma pessoa pode criar uma fronteira, através de um gesto [...]. uma fronteira territorial, pode ser somente a forma simbólica que combina uma afirmação sobre a direção no espaço e uma afirmação sobre a posse ou exclusão. Terceiro, cada exemplo de Territorialidade deve envolver uma tentativa no esforço de controlar o acesso sobre a área e as coisas dentro dela ou restringir a entrada das coisas de fora. De maneira mais geral, cada exemplo deve envolver uma tentativa de influenciar as interações (SACK,1986, p. 23-24).
A territorialidade reflete desta forma, o vivido territorial em todo seu alcance e
em suas múltiplas dimensões – social, política, econômica e cultural. Institui-se,
portanto, uma dialética socioespacial. As práticas sociais são conformadas na
relação com seu meio, adquirindo contornos singulares em áreas específicas e
articulando-se nas diversas escalas. Do mesmo modo, estas práticas moldam os
territórios, imprimem nestes as marcas de suas intervenções e decisões sobre os
mesmos (ALBAGLI, 2004).
A teoria da territorialidade Humana desenvolvida por Sack (1986) é, segundo
ele, tanto empírica quanto lógica e, nos permite desta forma, entender a
territorialidade tanto no âmbito de sua definição (estrutura lógica), quanto no âmbito
de um processo espacial que se manifesta em um dado contexto sócio-histórico.
Como já vimos, a definição de territorialidade contém três facetas inter-
relacionadas: deve propor uma forma de classificação por área; uma forma de
comunicação por fronteira; e uma forma de reforço ou controle. Contudo, diversos
outros efeitos potenciais podem estar ligados a estas três facetas. Assim, a soma
destes efeitos potenciais mais os três originais nos levam a quatorze combinações
de características (SACK, 1986).
Todavia, este autor ressalta que, o número preciso de efeitos potenciais não é
o ponto crítico da teoria, pois estes podem ser reduzidos a menos de dez ou
99
quatorze. Segundo ele, o ponto crítico reside na definição de territorialidade, pois
esta “deve ser rica o suficiente para delimitar o alcance das vantagens potenciais
oferecidas por uma estratégia territorial e um nível de generalidade que seja preciso
e útil” (SACK, 1986, p. 32). Dessa forma, a teoria da Territorialidade Humana se
constitui a partir da especificação desses efeitos, da forma como eles estão
conectados um ao outro e das condições sobre as quais eles serão empregados.
Conforme aponta o referido autor:
As primeiras três tendências são derivadas da definição de Territorialidade. As outras que não são inteiramente deriváveis da definição, nada mais estão do que, logicamente, interrelacionadas e ligadas a ela. Chamando, a seguinte análise de teoria, não significa que nós estamos impondo um método mecânico para as pessoas e os seus usos do território, pelo contrário, a teoria apresentará os efeitos do território como possibilidades que vão do físico ao simbólico. [...] pela teoria queremos dizer que nós podemos desvendar um sete de proporções, que são ao mesmo tempo, empiricamente e logicamente interrelacionados e que podem dar sentido às ações complexas. Em outras palavras, a teoria pode nos ajudar a entender e a explicar [...]. (SACK, 1986, p. 33)
A teoria é apresentada em duas partes: o campo dos efeitos e tendências; e
os seus usos nos casos e contextos históricos. Na primeira parte, conceitua a
territorialidade de forma abstraída dos múltiplos contextos sócio-históricos, o que
possibilita a descrição da lógica interna da Territorialidade (SACK, 1986). Neste
primeiro momento, apresenta, especifica e exemplifica as tendências e os efeitos
potenciais da territorialidade, além disso, apresenta ainda diversas combinações
entre essas tendências e efeitos potenciais. Já na segunda parte da teoria, nos
apresenta a tipos particulares de contextos sociais e históricos, aos quais podemos
empregá-las.
Para tornar mais claro e visível a estrutura complexa da teoria, Sack (1986) se
utiliza de uma analogia da ciência física (uma analogia à estrutura atômica - suas
valências e a tabela periódica). Assim, a primeira parte da teoria diz respeito ao
exame da estrutura atômica da territorialidade: as três facetas, anteriormente citadas
(a classificação, a comunicação e o reforço), que seriam o seu “núcleo”; E as dez ou
quatorze combinações primárias dos efeitos potenciais e das tendências seriam as
suas “valências”. Estas, por sua vez, formam as ligações potenciais que são
esboçadas, quando e se a Territorialidade for usada. Já a segunda parte diz respeito
à projeção da Territorialidade em uma tabela periódica de tipos de organizações
sócio-históricas, as quais sugerem que existem ligações que podem ser esperadas
quando certos contextos usam a territorialidade.
100
Deste modo, Sack (1986) aponta que a teoria da Territorialidade nos ajuda a
especificar os efeitos mais prováveis de ocorrer dentro das organizações sociais
complexas. A tarefa da teoria da Territorialidade, portanto, é desvendar os possíveis
efeitos da Territorialidade em níveis gerais - para englobar suas múltiplas formas - e
também específicos - para iluminar seus exemplos particulares.
4.3 A configuração e organização territorial dos flanelinhas/guardadores de
carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN
Segundo Sack (1986), quando criamos um território, existe a possibilidade de
estarmos criando um tipo específico de local. Por este motivo é importante
distinguir/diferenciar os territórios entre si e de outros locais comuns. Diferentemente
destes últimos, os territórios demandam esforço constante para estabelecer e
mantê-lo. Eles são resultados de estratégias para afetar, controlar e influenciar
pessoas, coisas, fenômenos e relações. Ao circunscrever coisas no espaço ou em
um mapa - como, por exemplo, quando se delimita uma área para ilustrar onde uma
indústria está concentrada, ou seja, identificar locais, áreas ou regiões no censo
comum - não estamos, necessariamente, criando um território, propriamente dito.
Esta delimitação só se torna um território, quando os seus limites e fronteiras são
utilizados para afetar e influenciar o comportamento ou para controlar o acesso.
Desta forma, devemos distinguir os territórios, num primeiro momento,
conforme aqueles que os constroem, sejam eles indivíduos, o Estado, empresas,
grupos sociais/culturais, entre outros. Os objetivos do controle social no território,
através de uma territorialidade, variam de acordo com o grupo, o próprio indivíduo
(conforme a diferença de gênero, a exemplo), ou a sociedade/cultura. Assim sendo,
controla-se determinada área geográfica, ou seja, delimita-se um território, a fim de
afetar, influenciar e/ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos (SACK,
1986).
Nessa perspectiva, o território é marcado por relações sociais, que são
produto e, ao mesmo tempo, produtores de novas configurações territoriais. A partir
da definição de diferentes práticas sociais e territorialidades é que se revelam
diferentes interesses, oriundos de distintos atores sociais que no território
manifestam, em diferentes contextos históricos, seus objetivos, anseios e práticas
101
sociais, econômicas, políticas e culturais. Por conseguinte, inúmeros conflitos, de
diferentes âmbitos, são gerados envolvendo o território e o poder (SILVA, 2009).
As relações sociais são definidas através de práticas distintas e
espacializadas no território. Traduzem um arranjo que pode ser apresentado sob a
forma de governo, no sentido de organização política, e que abrange a organização
sociopolítica de diferentes atores sociais que consolidam suas ações no território.
Toda ação que a sociedade desenvolve materializa-se no território por meio de
relações sociais entre os mais variados níveis nas escalas políticas, sociais,
econômicas e culturais (CUNHA; SILVA, 2007).
A dinâmica territorial deriva das interações entre as dimensões do território,
desta forma, quando compreendemos o território em sua totalidade,
compreendemos a sua multidimensionalidade. Ou seja, ao analisar o território
através de uma ou mais dimensões, trata-se apenas de uma opção, o que não
implica desconsiderar as outras dimensões. Estas são constituídas pelas condições
construídas pelos atores sociais em suas práticas com a natureza e entre si. Assim,
as múltiplas dimensões do território são produzidas a partir de relações sociais,
ambientais, econômicas, políticas, e culturais (FERNANDES, 2009).
As diferenças territoriais, deste modo, residem tanto nas suas próprias
características físicas e sociais, como no modo como em que se inserem em
estruturas mais vastas. “Cada território é, portanto, moldado a partir da combinação
de condições e forças internas e externas, devendo ser compreendido como parte
de uma totalidade espacial” (ALBAGLI, 2004, p. 27).
Diante disso, buscamos caracterizar a configuração e organização do
território dos flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e
Tirol de Natal-RN (mapa 3), a partir da conexão das noções e conceitos
apresentados (anteriormente) aliados às observações e entrevistas obtidas em
campo.
102
Mapa 3: Concentração e distribuição dos flanelinhas/guardadores de carros dos/nos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN
Fonte: Pesquisa de Campo, 2016. Elaboração cartográfica: Cláudia Silva e Luiz Perônico, 2017.
103
Com base nas observações realizadas durante a pesquisa de campo e,
também, nas entrevistas realizadas junto aos flanelinhas/guardadores de carros,
constatamos que a disposição destes sujeitos no espaço público dos bairros Cidade
Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, se dá, em boa parte, a partir da divisão das
quadras dos bairros. Verifica-se a “repartição” de uma quadra em dois ou mais
“pedaços” que se destinam a dois ou mais flanelinhas/guardadores de carros. Em
alguns casos, a quadra é dividida por dois destes sujeitos, cada qual tomando conta
do seu “pedaço”. Em outros, constatamos ainda mais subdivisões e/ou o
compartilhamento de um mesmo “pedaço” (geralmente quando são membros de
uma mesma família).
A caracterização se apresenta dividida, para fins didáticos, a partir das
dimensões que constituem o território (física, sociopolítica, econômica e
cultural/simbólica). Nessa perspectiva, a dimensão física do território dos
flanelinhas/guardadores de carros apresenta elementos “naturais” e, também,
resultantes de usos e práticas sociais, que se caracterizam enquanto
potencialidades para as práticas territoriais destes sujeitos, como, por exemplo, a
infraestrutura, bem como amenidades naturais (a exemplo, árvores que fornecem
sombra e abrigo) (fotografia 11). Algumas destas, se constituem não só como
potencialidades, como também, aspectos fundamentais para o território destes
sujeitos.
104
Fotografia 11: Amenidade presente em território de flanelinha/guardador de carros na Rua Afonso Pena (Tirol).
Fonte: Google Maps (2016)
Entendemos, assim como Fernandes (2009), que pelo fato do território ser
multidimensional e se constituir como uma totalidade, as disputas territoriais se
desdobram em todas as suas dimensões. Contudo, no território dos
flanelinhas/guardadores de carros, estas disputas estão mais comumente
relacionadas a essa dimensão física, posto que os elementos que a compõem –
como os já apresentados – acabam, por vezes, determinando o grau de qualidade
deste território quanto aquilo se objetiva/intenciona neste. Portanto, as disputas
territoriais ocorrem nos âmbitos sociopolítico, econômico e simbólico, mas no caso
do território dos flanelinhas/guardadores de carros dos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN, cabe destacar as disputas na dimensão física.
Já a dimensão sociopolítica deste território nos permite observar as relações
estabelecidas entre os flanelinhas/guardadores de carros, os condutores de
automóveis e próprio território dos primeiros, posto que são relações de poder -
onde os primeiros controlam e influenciam, a partir da “oferta de um serviço” (que
remete, implícita ou explicitamente, a necessidade de um pagamento), o acesso e
permanência dos segundos neste território (fotografia 12) .
105
Fotografia 12: Flanelinha/guardador de carros recebendo “pagamento” pela utilização de seu serviço e de vaga de estacionamento no seu território na Rua
Coronel Bezerra (Cidade Alta).
Fonte: Google Maps (2016)
Desta dimensão e, também, das relações incumbidas nesta, resultam alguns
conflitos (já evidenciados no capítulo anterior), uma vez que os
flanelinhas/guardadores de carros enfrentam, muitas vezes, a resistência dos
condutores de automóveis ao controle/influência que exercem sobre estes. Esta
resistência reside, sobretudo, muito mais ao fato do território do flanelinha/guardador
de carros se formar a partir da apropriação, delimitação e demarcação de um
espaço público (fotografia 13), do que pela própria atividade que desempenham.
106
Fotografia 13: Território de flanelinha/guardador de carros delimitado a partir da apropriação de espaço público destinado a estacionamento na Rua Jundiaí (Tirol).
Fonte: Google Maps (2016)
Nesse sentido, o exercício do poder para o controle do espaço (poder no
espaço) inclui a capacidade de modificação/definição das normativas legais de uso e
ocupação do solo, as definições sobre política tributária, a implementação de
infraestrutura, serviços e investimentos (SOBARZO, 2006). E é isto que ocorre no
território dos flanelinhas/guardadores de carros. Eles modificam uma normativa legal
já existente que servia aos propósitos dos condutores (e público em geral), para
definir sua próprias normativas a fim de exercer o seu poder e controle e, assim,
atingir seus objetivos naquele território.
A dimensão econômica, do território dos flanelinhas/guardadores de carros
dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN, se caracteriza, por sua vez,
a partir da utilização e organização deste território para fins lucrativos. Este é
pensado e conformado para o exercício de uma atividade que lhes garanta renda –
vigiar (fotografia 14), auxiliar na manobra (fotografia 15) e lavar (fotografia 16) os
carros das pessoas que estacionam em seu território.
107
Fotografia 14: Flanelinha/guardador de carros vigiando os carros estacionados em seu território na Avenida Afonso Pena (Tirol).
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da Autora (2016)
Fotografia 15: Flanelinha/guardador de carros auxiliando na manobra de um carro para estacionar em seu território na Rua Floriano Peixoto (Petrópolis).
Fonte: Pesquisa de Campo (2016)
Foto: Acervo da Autora (2016)
108
Fotografia 16: Flanelinha/guardador de carros lavando carro em seu território na Rua Açu (Tirol).
Fonte: Google Maps (2016)
Além disto, constata-se, ainda, a comercialização do território, já que muitos
fanelinhas/guardadores de carros “adquirem” determinado “pedaço”, como chamam,
a partir da compra (conforme constatado nas entrevistas). A caracterização desta
dimensão do território do flanelinha/guardador de carros revela, ainda, a principal
intenção destes sujeitos na apropriação do espaço e delimitação do território: a
obtenção de renda.
Ademais, no que concerne à dimensão simbólico/cultural, este território
evidencia uma apropriação e poder que são, sobretudo, simbólicos, uma vez que
ambos se dão através da vigilância e presença dos fanelinhas/guardadores de
carros (fotografia 17), bem como de objetos que remetam a sua presença (fotografia
18) neste espaço delimitado.
109
Fotografia 17: Flanelinha/guardador de carros presente e vigilante em seu território na Rua Floriano Peixoto (Petrópolis).
Fonte: Google Maps (2016)
Fotografia 18: Flanela e cadeira remetendo a presença de flanelinha/guardador de carros na Rua Açu (Tirol).
Fonte: Google Maps (2016)
110
Além disso, muitas das estratégias que os flanelinhas/guardadores de carros
utilizam para influenciar e controlar a área são simbólicas, como, por exemplo, a
posse do território e a exigência de um pagamento para utilizar esta área. O território
destes sujeitos é aberto, não possuem cancelas, portões, muros ou fachadas, ao
mesmo tempo, estes flanelinhas/guardadores de carros não abordam as pessoas
especificando que ao estacionar terão que pagar e/ou quanto irão ter que pagar.
Estas informações estão compreendidas justamente no poder (simbólico) que se
exerce continuamente através da presença e vigilância. Supõe, ainda, um sistema
minucioso de coerções escancaradas e, também, “veladas” (FOUCAULT, 1988)
As formas com que configuram e organizam os seus territórios, revela
características próprias deste grupo, em específico. O sentido do território está
diretamente ligado às distintas territorialidades que os atores sociais materializam
através da força de suas relações de poder. Procurar desenvolver estratégias de
desenvolvimento sócio-econômico-político-cultural passa a ser o objetivo dos atores,
que necessitam garantir suas territorialidades (SILVA, 2009).
Este sistema territorial é tanto um meio quanto um fim. Como meio, significa
um território, uma organização territorial, mas como fim conota uma ideologia da
organização. É deste modo, alternadamente ou de uma só vez, meio e finalidade
das estratégias. Toda combinação territorial cristaliza informação e energia,
constituídas por códigos. Como objetivo, este sistema territorial pode ser
interpretado a partir das combinações estratégicas feitas pelos atores e, como meio,
pode ser decifrado através dos custos e dos ganhos que acarreta para os atores. O
sistema territorial é, assim, produto e meio de produção (RAFFESTIN, 1993).
Diante do exposto, as imagens territoriais revelam as relações de produção e,
por conseguinte, relações de poder, e é decifrando-as que se aproxima à estrutura
profunda. Do Estado ao indivíduo, transitando por todas as organizações, sejam elas
pequenas ou grandes, encontram-se atores sintagmáticos que "produzem" o
território. Em diferentes graus, em momentos distintos e em lugares diversos, somos
todos atores sintagmáticos que “produzem” territórios. Todos nós combinamos
informação e energia, que organizamos com códigos em função de certos objetivos.
Todos nós traçamos estratégias de produção, que colidem com outras estratégias
em variadas relações de poder (RAFFESTIN, 1993).
111
Em suma, quaisquer que sejam os objetivos de uma sociedade e qualquer
que seja a escala geográfica (local, nacional ou global), uma sociedade, enquanto
uma organização complexa, precisará da territorialidade para empregar os esforços,
apontar as responsabilidades e impedir que as pessoas fiquem umas nos caminhos
das outras. A territorialidade possui as suas próprias potencialidades para afetar e
controlar, e algumas destas podem ser avessas aos objetivos da sociedade. Como
um componente do poder, a territorialidade não é simplesmente um modo de criar e
manter a ordem, mas sim um mecanismo para criar e manter boa parte do contexto
geográfico por meio do qual nós experimentamos e damos sentido ao mundo
(SACK, 1986).
112
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o desenvolvimento do presente estudo, observamos que o espaço
público se constitui enquanto espaço de diversas representações sociais e culturais,
formas de uso e apropriação, e que evidencia, de forma mais acentuada nos países
subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil, relações sociais, econômicas, políticas
e culturais conflituosas que desencadeiam diversos problemas. Dentre esses, uma
problemática comum à diversas cidades brasileiras, que diz respeito à territorialidade
dos flanelinhas/guardadores de carros.
Na cidade de Natal-RN, a situação não é diferente. Os bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol, alguns dos mais movimentados da cidade, apresentam em seu
cenário urbano a forte presença destes sujeitos, que se apropriam de parcelas das
vias públicas para exercer uma atividade que lhes garanta renda/sustento, visto que
estes bairros se constituem, predominantemente, como um local de realização de
negócios, compras, serviços, lazer, entre outros, e que, desta forma, apresenta uma
intensa circulação de pessoas em seus automóveis e a parada momentânea nestes
espaços - condição básica para essa atividade.
Assim, ao longo do desenvolvimento do presente trabalho, procuramos
responder a alguns questionamentos, levantados por nós, referentes à
territorialidade dos flanelinhas/guardadores de carros. Esses questionamentos se
desdobravam, fundamentalmente, na apropriação e configuração da territorialidade
expressa por estes sujeitos no espaço público dos bairros Cidade Alta, Petrópolis e
Tirol de Natal-RN, bem como no controle e influência que estes sujeitos possuem
sobre os seus territórios (frutos da apropriação).
Tornou-se possível, do mesmo modo, conhecer um pouco do contexto de
surgimento desta atividade, da organização destes sujeitos em seus espaços
apropriados, assim como, as formas de controle e influência estabelecidas nos seus
territórios e, também, das relações instituídas entre os que atuam nesta atividade e
aqueles indivíduos que são afetados de alguma forma por esta.
Apesar dos resultados não se constituírem em uma realidade generalizada,
posto que trata-se de um estudo com recorte empírico específico (os bairros Cidade
Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN), acreditamos que a realização do presente
trabalho contribui para a abertura da discussão e/ou desenvolvimento científico de
um tema ainda pouco explorado em Natal-RN, bem como em outras cidades
113
brasileiras, porém empiricamente experimentado por toda a sociedade que compõe
o espaço urbano. Ademais, contribui como caminho para possíveis abordagens
dessa problemática, sob as mais diversas esferas – seja social, econômica, política
ou cultural.
114
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APÊNDICE A – Guia para entrevista com os flanelinhas/guardadores de carros dos bairros
Cidade Alta, Petrópolis e Tirol de Natal-RN
GUIA PARA ENTREVISTAS (FLANELINHAS)
LOCAL DA ENTREVISTA:_________________________________________________ DATA: ______/_______/_______.
CARACTERIZAÇÃO DO ENTREVISTADO
1. Idade ______ 2. Naturalidade:__________________
2.1 Porque se mudou para Natal-RN e há quanto tempo reside aqui? (caso seja de outra cidade)
3. Bairro que reside ________________________________
4. Como se desloca para seu local de trabalho/casa?
5. Escolaridade
j Ensino Fundamental I j Ensino Fundamental II j Ensino Médio j Ensino Superior j Analfabeto
6. Estado civil?
j Solteiro j Casado j Viúvo j União estável j Divorciado
7. Tem filhos/dependentes? Quantos?
Sim:_____________________
Não
8. É o responsável pela renda familiar (Chefe de família)? j Sim/Único responsável j Sim/Um dos responsáveis j Não
9. Tempo na atividade: ______________________________
10. Possuía outra atividade antes da de flanelinha? Qual?
Sim: ___________________________________
Não
11. Possui carteira de trabalho? j Sim j Não
12. Já trabalhou com a carteira assinada? j Sim j Não
13. Contribui para a previdência social?
Sim. Enquadramento:_____________________
Não
14. Exerce algum outro trabalho (extra)? Qual?
Sim: ___________________________________
Não
15. Renda j Até 1 salário mínimo j Entre 1 e 2 salários mínimos j Mais de 2 salários mínimos
16. O que o levou a trabalhar como flanelinha? (porque
optou por essa atividade)?
17. Você possui algum tipo de cadastramento para exercer
essa atividade?
Sim. Onde? _____________________________
Não 18. Se possível, trocaria esse trabalho por um no mercado
formal? Por quê?
Sim: ___________________________________
Não:___________________________________
CARACTERIZAÇÃO DO TRABALHO
19. Há quanto tempo trabalha nesse local? ______________
20. O senhor precisou da permissão de alguém para começar
a trabalhar aqui? De quem? Como começou a trabalhar aqui?
Sim:____________________________________
Não:____________________________________
21. O que o levou a trabalhar nesse local (porque aqui e não outro)?
22. Já trabalhou em outro local? Qual? Porque saiu de lá?
Sim: ___________________________________
Não
23. Você possui dias e horários fixos de trabalho? Quais?
Sim: _____________________________
Não
24. Como o senhor delimita o seu espaço de trabalho? Esse espaço tem quantas vagas?
25. Esse é um bom local para se trabalhar? Por quê?
Sim: ___________________________________
Não: __________________________________
26. Como é a rotatividade nesse local? Quantos carros o senhor vigia por dia?
27. Já tentaram “ocupar/tomar” esse espaço do senhor?
Sim: ___________________________________
Não: __________________________________
28. Como controla seu espaço de trabalho para que outros
120
não venham para cá?
29. Trabalha sozinho ou mais alguém trabalha com/pro
senhor? O rendimento é dividido ou individual?
30. Quando não pode vir, como procede? Tem alguém pra
substituí-lo?
31. Quais os serviços que o senhor oferece aqui? Valores.
32. Onde consegue água para lavar os carros?
33. E água pra beber e/ou se precisar ir ao banheiro?
34. Num dia bom quanto o senhor tira? E num dia ruim?
35. Como flanelinha, quais os problemas que você enfrenta
diariamente?
CARACTERIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO
36. Você e os outros que trabalham como flanelinha possuem algum tipo de organização/representação (associação, por exemplo)? j Sim j Não
37. Os seus colegas/os que trabalham aqui também como
flanelinha, vieram para a rua por motivos parecidos ou diferentes dos seus?
38. Como é a relação entre vocês flanelinhas? Cada um
respeita o espaço do outro? Tem disputas pelo lugar? Tem uma hierarquia?
39. Como é a relação com o comércio/estabelecimentos
daqui da área?
40. E a relação com as pessoas que trabalham aqui no
bairro? Elas deixam os carros sob o seu cuidado?
Sim: ___________________________________
Não: __________________________________
41. A maioria das pessoas que deixam os carros aos seus cuidados trabalha aqui ou são pessoas que vem por outros motivos (negócios, compras, lazer...)?
42. As pessoas que utilizam seus serviços diariamente, como
ela pagam? Existe algum acordo entre vocês?
43. Como é o relacionamento com os motoristas (em geral), a maioria respeita ou discrimina o trabalho de vocês?
44. Quais dificuldades você encontrou quando começou a
trabalhar na rua? E hoje, as dificuldades são as mesmas?
OBRIGADA PELAS INFORMAÇÕES!
121
APÊNDICE B – Guia para entrevista com os condutores de automóveis dos bairros Cidade Alta,
Petrópolis e Tirol de Natal-RN
GUIA PARA ENTREVISTAS (CONDUTORES)
LOCAL DA ENTREVISTA:_________________________________________________ DATA: ______/_______/_______.
CARACTERIZAÇÃO DO ENTREVISTADO
1. Idade _________
2. Bairro que reside ________________________________
3. Escolaridade
j Ensino Fundamental I j Ensino Fundamental II j Ensino Médio j Ensino Superior j Analfabeto
4. Profissão:_______________________________________
5. Motivo da ida a este local?
6. Vem a este local com frequência?
Sim
Não
7. Qual sua opinião sobre a infraestrutura (relacionada a estacionamentos) desse local?
8. Onde costuma estacionar?
9. Percebe a presença de flanelinhas nesse local?
Sim:___________________________________
Não:___________________________________ 10. O que acha da presença do flanelinha nesse espaço?
11. É a favor ou contra a atividade dos flanelinhas? Por quê?
A favor:________________________________
Contra:_________________________________
Indiferente:_____________________________
12. Utiliza algum serviço do flanelinha? Quais?
Sim:___________________________________
Não
13. Quando utiliza algum serviço do flanelinha, quanto costuma pagar?
14. Já se sentiu ameaçado por um flanelinha?
Sim
Não
15. Já presenciou um flanelinha ameaçando alguém ou provocando dano a algum veículo?
Sim:___________________________________
Não
16. O que o poder público poderia fazer para resolver essa
situação?
OBRIGADA PELAS INFORMAÇÕES!
122
ANEXO A – Manchetes de notícias locais relativas a delitos cometidos por
flanelinhas/guardadores de carros
Fonte: COSTA, 2011.
Fonte: GIOVANNI, 2011
Fonte: NOMINUTO.COM, 2008
Fonte: TRIBUNA DO NORTE, 2012
123
ANEXO B – Reportagem referente à lei dos flanelinhas/guardadores de carros em
Natal-RN
Fonte: TRIBUNA DO NORTE, 2012