terra : revista de artes e letras (florianópolis, 1920-21) · estética moderna. a publicação...
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Terra: Revista de Artes e Letras (Florianópolis, 1920-21) Cecília de Sousa Reibnitz1
RESUMO
A Revista Terra foi uma publicação de caráter efêmero que surgiu em Florianópolis entre
1920 e 1921. Os poucos estudos que a mencionam destacam sua relação com movimentos
literários como o Romantismo e o Parnasianismo. No entanto, tais análises deixam de fora
outras dimensões da publicação e a rotulam de forma a ignorar que as temáticas ali tratadas
foram amplas e irregulares. Neste sentido, proponho entendê-la a partir de diferentes estudos
sobre o modernismo, o que poderia apontar para outras de suas facetas. Para além de notícias
e textos literários, a revista também apresentou um forte apelo visual, propondo determinada
estética moderna. A publicação possui elementos decorativos identificados com o estilo art
nouveau, há a presença de fotos destacando a “alta sociedade” catarinense, uma sessão
ricamente ilustrada relativa ao cinema estadunidense, além de inúmeras ilustrações e charges.
Além disso, as contribuições de Di Cavalcanti e J. Carlos parecem ter sido importantes para
legitimar e qualificar a nova revista catarinense. A partir da análise principalmente de uma
ilustração de Di Cavalcanti que acompanha um poema e de fotografias da (alta) sociedade
local procuro entender algumas relações com a modernidade colocadas pela Revista Terra,
pensando em como estas imagens acionaram um imaginário social.
Palavras-chave: Revista Terra; Modernismo; Florianópolis.
RESUMEN
La Revista Terra fue una publicación de carácter efímero que surgió en Florianópolis entre
los años de 1920 y 1921. Los pocos estudios que la mencionan destacan su relación con
movimientos literarios como el Romanticismo y el Parnasianismo. Sin embargo, estos análisis
no indican otras dimensiones de la publicación y la rotulan de manera a ignorar que las
temáticas allí trabajadas fueran amplias e irregulares. En este sentido, propongo entenderla a
partir de distintos estudios sobre el modernismo, el cual podría apuntar para otras de sus
facetas. Afuera noticias y textos literarios, la revista también presentó una fuerte invocación
visual, proponiendo determinada estética moderna. La publicación tiene aspectos decorativos
identificados con el estilo art nouveau, existen imágenes fotográficas que destacan la “alta
1 Graduanda na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Email: [email protected].
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sociedad” de Santa Catarina, una sección muy ilustrada referente al cinema de los Estados
Unidos, además de inúmeras ilustraciones y dibujos críticos humorísticos. Las contribuciones
de Di Cavalcanti y J. Carlos deben haber sido importantes para legitimar y cualificar la nueva
revista de Santa Catarina. Desde la analice de una ilustración de Di Cavalcanti que acompaña
un poema y de fotografías de la (alta) sociedad local, intento comprender algunas relaciones
con la modernidad señaladas por la Revista Terra, pensando en la manera con que estas
imágenes accionaron un imaginario social.
Palabras clave: Revista Terra, Modernismo, Florianópolis.
No final de março de 1920 aparece na cidade de Florianópolis uma nova publicação
mensal, é a “Terra – revista de artes e letras”. A revista é extensa e constitui-se de contos
literários e poemas com uma ilustração ao final de cada texto. Suas páginas são pequenas, o
leitor logo nota que o papel de impressão é de ótima qualidade e que sua aparência remete a
características da chamada art nouveau. Mantêm-se certo padrão, com um uma linha
vermelha emoldurando cada uma das 32 páginas – este é o único elemento colorido por
enquanto. Seus diretores são homens do campo político ou possuem ligação com as
instituições de ensino, são, portanto, bastante conhecidos na cidade: Altino Flores, Ivo
d’Aquino e Othon d’Eça.
O texto das primeiras páginas parece indicar os caminhos que a publicação pretende
tomar. Para tanto é feito um balanço da literatura brasileira contemporânea, na qual
prevaleceria uma larga onda de imitação, com ausência de originalidade. Indica-se a saída: o
cosmopolitismo - o “grande ideal de Goethe” da literatura universal. Conclui-se que por essas
razões “TERRA não quer restringir o seu ambito artistico ás fronteiras do nosso Estado. O
homem actual deve estender o olhar por horizontes mais dilatados. Delimitar terreno de acção
para o espirito é agrilhoá-lo. O pensamento só é fecundo quando é livre” 2.
Com as primeiras páginas tendo apresentado tal direcionamento, o leitor poderia
intrigar-se neste mesmo número com a narrativa sobre “O Tropeiro”3 que trata de personagens
regionais e de uma “cena típica” vivida por eles, ou com o conto “O Itajahy” 4 que tem como
tema o rio e seus pescadores. Parecendo ainda mais contraditório seria o fato de na edição do 2 Revista Terra, n.1 – março de 1920, p.1. Autoria: Altino Flores. Optou-se por manter a grafia original nas citações da Revista Terra e nos demais jornais da época citados. 3 Idem, p.7. Autoria: Crispim Mira. 4 Idem, p.31, 32. Autoria: Alberto Barbosa.
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mês seguinte o próprio Altino Flores, autor das palavras de introdução da revista, ter
oferecido um texto de nome “Casamentos cá da terra”, no qual descrevia a natureza, os tipos
humanos, o casamento e a pobreza da cidade de Florianópolis. Surgem também outras
aparentes dissonâncias neste segundo número: um desenho de página inteira de Di Cavalcanti,
um dos futuros grandes nomes do modernismo brasileiro, e uma tradução de Stéphane
Mallarmé. Já no mês de maio, no terceiro número da publicação, nosso leitor se depararia
com os versos de Olavo Bilac e a primeira aparição de um nome que seria tão caro à revista:
Hercílio Luz. De fato, o conteúdo dos três primeiros números da Revista Terra não manteria
um mesmo padrão. Mas nota-se, sobretudo, que em vários deles há uma curiosa quantidade de
referências a personagens da literatura clássica greco-romana e grande parte das narrativas
apresenta uma tonalidade romanticista, com exaltação ao amor e à natureza e um olhar
voltado para o passado.
A partir do quarto número, a revista se tornaria semanal e seu conteúdo passaria a ser
mais próximo ao de um periódico. No entanto, ainda que tenha modificado o sentido original,
mantêm-se certo espaço literário, bem como críticas e comentários sobre a literatura e os
escritores do estado. Além das notícias sociais, políticas e mesmo esportivas, há colunas
dedicadas à História, às regras ortográficas da língua portuguesa e outros temas mais locais
como, por exemplo, a coluna com os aniversariantes e notas sobre o domingo. Os elementos
iconográficos também se diversificam e aumentam de quantidade, temos desenhos,
fotografias e charges.
Depois do sétimo número a revista assumiria seu caráter regional no próprio nome:
“Terra – Revista semanal Catharinense”. Lucas Boiteux assina a coluna intitulada “História
Catharinense” na quinta edição da revista, que se manteria com certa regularidade até seus
números finais. Logo, porém, acrescentou-se outra seção de nome “Synthese historica da
Independencia”, de forma a demonstrar a intenção de não se circunscrever apenas ao âmbito
estadual, à “pequena pátria catarinense”, mas integrar-se também à “grande pátria” brasileira5.
Esta tensão entre o nacional e o regional é, assim, inerente à Revista.
A Revista possui um viés moralizador, discernindo atitudes que devem ou não ser
tomadas pela população. Contribuir para as estatísticas do censo, por exemplo, é um dever a
que são chamados seus leitores para colaborar com progresso do país – e esta informação é
repetida inúmeras vezes ao longo das edições. A cena artística da cidade também possui um
5 A noção de “pequena pátria catarinense” se refere à tese da autora Janice Gonçalves (GONÇALVES, 2006).
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papel importante. O gênero do teatro de Revista aparece como um espetáculo libidinoso,
imoral e severamente condenado. O teatro lírico, ao contrário, demonstrava agradar-lhes e a
Revista instigava as famílias a comparecerem a estes espetáculos: “não vemos melhor
opportunidade para os srs chefes de família darem, aos seus, algumas noites de fina arte
theatral” 6. Assim, com um discurso moralizador, a Revista Terra indicava o tipo de
espetáculo que deveria e que não deveria ser compartilhado por seus leitores.
Com todos estes destaques pontuais procurei aqui fornecer um panorama que
proporcionasse uma ideia da pluralidade de referências contidas na Revista. Não pretendo
apagar nem amenizar suas aparentes contradições a fim de encaixá-la em determinado
conceito ou categoria. São, sobretudo, seus fragmentos que me interessam e é a partir deles
que procurarei reconstruir a revista e entender o pensamento de seus contribuidores mais
assíduos.
Nos poucos estudos em que aparece, a Revista Terra é entendida como vinculada aos
movimentos do Romantismo e do Parnasianismo (com letras maiúsculas) e ressalta-se sua
importância para a formação da Academia Catarinense de Letras7. Ainda que seja visível a
influência destes movimentos em alguns dos escritores ali presentes, não seria possível
generalizar para a publicação inteira de forma a homogeneizá-la ou compreendê-la dentro de
uma categoria fechada. A pluralidade de autores, as diferentes “gerações” e correntes
intelectuais que ali circularam não recebem nesses estudos qualquer destaque. Por exemplo,
ao lado dos jovens diretores da Revista, como o literato Othon d’Eça que viria a concluir seu
curso de “Ciências Jurídicas e Sociais” na Universidade do Rio de Janeiro ainda durante a
publicação da Revista, estava o conhecido poeta Araújo Figueiredo que participara do “Grupo
das Ideias Novas”, pertencendo ao íntimo círculo de amizades de Cruz e Sousa.
Quanto à Academia Catarinense de Letras, esta própria instituição entende a Revista
Terra como importante para sua formação: “congregando intelectuais de tendências várias e
abrindo caminho para o surgimento da Sociedade Catarinense de Letras” 8 - esta sociedade se
formou ainda em 1920 e quatro anos mais tarde passaria a denominar-se Academia
Catarinense de Letras. No entanto, em alguns estudos que aparece, a Revista é considerada a
expressão do pensamento dos intelectuais da “geração da academia” e dessa forma também se
apaga a pluralidade de ideias que ali veicularam. Destacam-se então basicamente algumas
6 Revista Terra, n.18 – 31 de outubro de 1920. Sem autor. 7 Análise feita principalmente a partir das obras de Carlos Humberto Corrêa (1996, 1997) e Celestino Sachet (1974 e 2012). 8 Site da Academia Catarinense de Letras: http://www.aclsc.ufsc.br/paginas/historia.htm. Acesso em nov./2012.
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citações escritas por Altino Flores em uma coluna intitulada “Artes e Letras” – elegem-se as
ocasiões em que esta coluna tratou de críticas à falta de escritores catarinenses ou sobre a
vontade de se criar uma academia.
Mais do que identificar a Revista Terra como veículo que difundia ideais do
romantismo e do parnasianismo, proponho identificar nela aspectos da modernidade (ou da
antimodernidade). Neste sentido me é cara a concepção de Antoine Compagnon ao analisar a
modernidade baudelairiana. De acordo com este entendimento todos os artistas modernos
trariam em si também o seu oposto: a resistência à modernidade - seriam, assim, divididos,
por vezes dilacerados. Desta forma, Compagnon coloca que não é possível entender esta
categoria a partir de um pensamento geométrico que se atém a definições concretas, pois nelas
se anulariam todas as ambiguidades, “não sejamos tentados pela miragem da síntese:
mantenhamos as contradições, por natureza insolúveis; evitemos reduzir o equívoco próprio
ao novo, como valor fundamental da época moderna” (COMPAGNON, 2003, p.15).
Para o sociólogo Renato Ortiz, o modernismo no Brasil expressou-se como um
projeto; a modernização e o desenvolvimento se identificavam com elementos de uma
identidade que se tinha a intenção de construir. A proposta dos intelectuais que almejaram
alcançá-la não seria algo palpável, pois o país possuía tradição em excesso. O movimento do
modernismo, “era sobretudo uma projeção. Não é por acaso que a partir de 1924 o
modernismo se identifica com a questão nacional, pois tratava-se de construir um país que
pudesse de fato espelhar a intenção utopicamente imaginada” (ORTIZ, 1994, p.188).
Pode-se dizer que o desejo de ser moderno também esteve presente em Florianópolis,
uma vez que a busca pelo desenvolvimento e pelo progresso se fazia sentir nas
transformações pelas quais passava a cidade e nos novos hábitos que se almejava implementar
na população. Campanhas de profilaxia, como a prática da polícia sanitária, tentativa de
erradicação da pobreza (ou sua exclusão de determinadas áreas) e reformas urbanas seriam
realizadas para permitir o progresso e a modernização da cidade, conforme o modelo adotado
na capital do país. Esse era o arquétipo de modernidade e de progresso que as páginas da
Revista Terra apresentaram de forma acentuada.
Com todas as suas categorias ambivalentes, podemos aproximar os escritores da
Revista ao conceito de “modernistas antimodernos” trazido por Peter Gay. Este grupo é
tratado como os “excêntricos” que formaram tensões no campo modernista. Eles
concordariam com os demais no ataque às verdades estabelecidas em suas áreas de atuação,
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mas, por outro lado, também rejeitavam toda, ou quase toda, a cultura contemporânea. Eram,
neste sentido, contrários à própria época.
Para Peter Gay, os modernistas antimodernos ampliaram e complicaram ainda mais os
contornos do grande movimento do modernismo – e é nesse sentido que acredito estar a
contribuição da Revista Terra para o modernismo brasileiro.
O modernismo, nesta concepção seria formado por ideias contraditórias, um
movimento visto pela unidade na diversidade, no qual se identificariam características
comuns, formando um único quadro mental estético e um estilo identificável: o estilo
modernista, “tal como um acorde” (GAY, 2009, p.19). Acredito que esta metáfora musical do
acorde é perfeita para explicar a composição que o autor exprimiu, pois seriam então notas
diferentes identificáveis como um conjunto - assim fazem sentido juntas, não se pode separá-
las sob pena de se perder a sonoridade formada. Acredito ser pertinente analisar o
modernismo desta maneira: diferentes modernismos que compõe um campo próprio e que na
verdade todas essas dissidências o constituem e são inerentes à sua forma.
Quanto ao cenário do movimento modernista brasileiro, Monica Pimenta Velloso
critica o paradigma de 1922, a partir da qual se tornou recorrente o uso de categorias como
“pré-modernismo”, “antecedentes”, “vazio cultural” para definir o panorama artístico
intelectual brasileiro na virada do XIX para o XX – o que aconteceu nas primeiras décadas do
século XX passa a ser considerado uma espécie de premonição para os temas de 1922. Perde-
se assim a especificidade de cada grupo e anula-se a rica polissemia e ambiguidade da qual se
reveste o termo. A partir da década de 1980 inicia-se a problematização do modernismo
brasileiro nos estudos históricos, de forma a combater a narrativa hegemônica construída e
empreendida pelas vanguardas paulistas que atuaram ao longo das décadas de 1930 a 1950.
Angela de Castro Gomes, outra importante autora a trabalhar com o modernismo
brasileiro, procura momentos e espaços diferenciados que possibilitam a multiplicidade de
modernidades e modernismos, apontando para uma “variedade de projetos de modernização,
que se expressam por numerosas, mas não arbitrárias, estéticas modernistas” (GOMES, 1999,
p.12). A partir desta definição, acredito que também se está trabalhando com uma concepção
de modernismo que, ao mesmo tempo em que se aponta para sua pluralidade, se entende
como um campo próprio e, nesse sentido, singular.
A cidade é vista por Angela de Castro Gomes como uma “arena cultural”, onde
variados e até contraditórios sentidos sociais se defrontam. E assim, examina a produção
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como um material capaz de indicar outros projetos estéticos, outras interpretações alternativas
para o que se entendia e desejava postular como Brasil moderno - para além do projeto
canonizado pela perspectiva da modernidade paulista a partir da Semana de 1922.
Neste trabalho de Gomes, portanto, é essencial o espaço da rua, este entendido como
lugar de sociabilidade por excelência - a vida boêmia e a convivência com a população
marginal dão um dos traços definidores da modernidade carioca. O que também já havia sido
apontado no trabalho de Monica Pimenta Velloso sobre o modernismo do Rio de Janeiro
(1996).Velloso propõe a legitimação dos cafés literários enquanto canais de sociabilidade
cultural, lugar privilegiado de onde se observa o Brasil. O que por sua vez não deixa de trazer
polêmicas e divergências como, por exemplo, entre os intelectuais ditos boêmios e os ditos
acadêmicos. Foi esta discussão que esteve presente entre Machado de Assis e Emílio
Menezes, quando aquele queria impedir que Menezes entrasse na Academia de Letras devido
à vida boêmia que levava nos cafés.
É mais ou menos esta a situação que se encontra também em Florianópolis quando da
criação de nossa academia: certos poetas foram taxados de forma pejorativa como “menores”
- sendo justamente estes os que possuíam maior inserção e origem nos meios populares da
cidade. A Revista Terra seria então um instrumento dos intelectuais acadêmicos que
objetivavam legitimar a si mesmos e ao seu campo de atuação exprimindo e legitimando sua
própria mentalidade.
Acredito que as categorias de mentalidades e imaginário são, assim, importantes para
compreender o papel da Revista Terra dentro da cidade em seu contexto. A história das
mentalidades surge dentro da tradição intelectual da escola dos Annales, em um momento de
necessário diálogo entre da História com outras ciências humanas. Seus métodos
estruturalistas, com ênfase na continuidade e na longa duração são alvos de muitas críticas,
devido a alguns exageros a que foi levada. Carlo Ginzburg, por exemplo, critica a categoria de
mentalidade coletiva pelo fato de que algumas vezes os resultados de determinada
investigação acerca de um pequeno extrato da sociedade são ampliados de forma a abarcar um
século inteiro9. Tais críticos tendem a preferir trabalhar com o conceito de imaginário,
categoria tida como mais sólida - entendida como um conjunto de representações e parte
fundamental da existência de determinado grupo, que lhe confere identidade.
9 Conforme estudo de Márcia Janete Espig (1998).
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No entanto, acredito que uma categoria não exclui a outra e, se bem trabalhada, a
história das mentalidades pode produzir bons resultados. As mentalidades consideram a
articulação entre o desejo do indivíduo e a formação de um senso coletivo, não necessita
unicamente da abordagem da longa duração, permitindo entender como a sociedade vai
alterando sua maneira de ver e experimentar as coisas. Já o imaginário se preocupa mais com
o social do que com o indivíduo, parte de uma ideia abstrata de coletivo e procura explicar
processos contingenciais em determinado evento.
Para Philippe Ariès, a história das mentalidades refere-se especialmente às
mentalidades de tempos passados, isso porque a crença do homem entre o século XVIII e o
início do XX que estava certo da permanência da superioridade da sua cultura se debilitou.
Agora o homem “vê culturas diferentes e igualmente interessantes onde o historiador
reconhecia uma civilização e barbáries” (ARIÈS, 1988, p.172).
O estudo das mentalidades se foca muito mais naquilo que Ariès denominou de “não-
consciente” coletivo, que é
mal percebido, ou totalmente despercebido pelos contemporâneos, porque, é óbvio, faz parte dos dados imutáveis da natureza, ideias recebidas ou ideias no ar, lugares-comuns, códigos de conveniência e de moral, conformismos ou proibições, expressões admitidas, impostas ou excluídas dos sentimentos e dos fantasmas (idem, p.174).
Quanto ao estudo das mentalidades, Bronislaw Baczko (1985) foi e continua sendo
referência para a área. Baczko entende o imaginário como conjunto de representações e
ideias-imagem de uma sociedade e do que com ela se relaciona. Assim como outros autores,
como Chartier e Bourdier, Baczko defende que a representação é a realidade. Assim, o
exercício do poder passa pelo imaginário coletivo e sobre ele se operam disputas de controle
para o êxito da dominação simbólica.
Baczko afirma que “o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo
que constitui um apelo a ação, um apelo a comportar-se de determinada maneira” (BACZKO,
1985, p.311). O dispositivo do imaginário modela os comportamentos dos indivíduos,
podendo até mesmo leva-los para uma ação comum.
Evelyne Patlagean também reflete sobre o imaginário, concluindo que “cada cultura,
portanto cada sociedade, e até mesmo cada nível de uma sociedade complexa, tem seu
imaginário” (PATLAGEAN, 1988, p.291). Nesse sentido, a Revista Terra se faz importante
por permitir estudar determinada mentalidade e imaginário de uma época. Alguns autores
como Carlos Humberto Corrêa afirmam que “nenhuma outra publicação refletiu tanto o
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pensamento dominante da intelectualidade catarinense de uma época, quanto esta revista em
seus vinte e quatro números” (CORRÊA, 1997, p.147).
A partir da estética veiculada nesta Revista, principalmente analisando uma ilustração
e uma fotografia ali presentes, procuro agora entender esta mentalidade que se expressou em
seu interior também a partir de imagens.
Nos estudos em que a Revista Terra aparece, não há nenhuma abordagem acerca das
imagens e da estética veiculadas na publicação. Apesar de que, ao que tudo indica, sua faceta
artística foi bastante admirada pelo público florianopolitano, as notícias encontradas nos
jornais da época qualificam a publicação tanto pelas suas qualidades literárias, quanto pelas
artísticas. Ainda que a ênfase das notas publicadas aponte mais para a questão literária,
também se destacava as “caprichadas ilustrações”, “magníficas charges”, “apurado gosto
artistico” das edições circuladas e a palavra “bella” é constantemente utilizada para qualificá-
la. A ideia presente na citação a seguir foi recorrente nestas notas, encontradas tanto no Jornal
Republica quanto em O Estado, ambos de Florianópolis: “Com charges, photographias da
actualidade e texto escolhido, a bella revista catharinense logrará com certeza, com o numero
de amanhã, mais um êxito surprehendente” 10 .
A questão da recepção é extremamente delicada, pois não foram encontrados durante a
pesquisa muitos documentos que permitissem trabalhar com esta área. Não se sabe a
quantidade de exemplares publicados em cada número, mas, de acordo as notas publicadas
nos jornais O Estado e Republica, a Revista Terra muitas vezes esgotava suas vendas em um
único dia. A seguinte nota indica esta popularidade “a pezar de augmentada, a edição de Terra
exgotou-se logo as primeiras horas da manhã, o que prova sua grande aceitação”11.
Tampouco se sabe se a Revista era vendida em outras cidades de Santa Catarina, pois apesar
de a publicação se colocar como porta-voz do estado, nenhum dos jornais pesquisados de fora
da capital continha notícias a seu respeito.
Muitas vezes eram citados os autores das imagens publicadas, principalmente quando
se tratava de ilustrações. Os destaques e os elogios apareciam ainda mais frequentes quando a
colaboração vinha de fora da cidade: Carlos Reis, “ilustre pintor portuguez”; “glorioso lapis
de Correia Dias” 12; “dr. Cavalcante” (sic), “festejado illuminurista carioca”13 e em outra
10 Jornal Republica, 21/08/1920. 11 Jornal Republica, 07/09/1920. 12 Jornal O Estado, 06/11/1920. 13 Jornal República, 09/05/1920.
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notícia “Di Cavalcanti, um dos mais primorosos artistas brazileiros”14; “bello quadro de
Greuze”15; “bellos trabalhos”16 de J. Carlos etc. No entanto, ainda que menos destacados, os
artistas locais também apareciam, é o caso de Ary Tolentino, tido como “talentoso artista
catharinense”17.
Parece que a colaboração que vinha de fora do estado contribuía de certa forma para
legitimar a publicação da Revista. Assim, os desenhos de Di Cavalcanti e de J. Carlos além de
aparecerem no interior das edições serviram também, por vezes, como capas. No que diz
respeito a estas capas, muitas delas foram fotografias – na maioria das vezes com paisagens
ou imagens de atores de cinema ou teatro – e desenhos. Pelo menos seis ilustrações serviram
como capa da Revista, sendo que apenas uma destas talvez seja de autoria catarinense18,
enquanto as outras são de autores do Rio de Janeiro. Há duas imagens de Di Cavalcanti, uma
de J. Carlos, uma de Correia Dias (com a caricatura de Alberto de Oliveira – poeta
parnasiano), e outra de Gottuzzo (sobre o qual a Revista escreve: “é um dos artistas nacionais
mais curiosos pela feição realista dos seus trabalhos” 19).
Escolheu-se aqui falar um pouco mais a respeito de uma das imagens de Di
Cavalcanti, que, aliás, aparece duas vezes na Revista Terra: no segundo número
acompanhando um poema e como capa do décimo segundo. Analisa-se aqui sua primeira
aparição, uma vez que o texto que acompanha a imagem lhe permite mais leituras (figura 1).
Esta imagem é feita em tons de azul, mostra uma mulher em primeiro plano e um homem
mais ao fundo. Olhando apenas para a imagem, sem considerar o poema que se encontra ao
lado na página anterior, percebemos que os personagens estão em um ambiente que não
parece ser identificável, com o que poderia ser uma grande cortina do lado direito, ao qual a
imagem feminina está sobreposta, e do lado esquerdo, atrás do homem, uma parede com
esparsas linhas quadriculares. Entre os dois personagens há a presença de duas velas com
chamas ondulantes, colocadas acima de figuras que parecem ser flores.
14 Jornal Republica, 21/08/1920. 15 Jornal Republica, 14/08/1920. 16 Jornal Republica, 19/08/1920. 17 Jornal Republica, 19/08/1920. 18 Não foi possível averiguar de onde seria o artista Nemesio Dutra. 19 Revista Terra, n.21, p.1.
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Figura 1. Revista Terra, n.2 – abril de 1920, p.36, 37.
Acervo: Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina.
A mulher olha para um horizonte mais acima de sua cabeça, com expressão serena,
tranquila e, sobretudo, sonhadora - indicados pela expressão relaxada e suas sobrancelhas algo
arquejadas. Seu rosto é comprido e fino, com um queixo representado por uma estranha linha
circular; o nariz é delicado e os olhos são bem demarcados com uma linha escura e grossa; os
olhos possuem uma cor de azul mais claro, igual aos seus cabelos, e parecem não estar
focalizando nada. Chama a atenção também as linhas que vão dos olhos até a sobrancelha,
como se fosse o próprio formato da ossadura da cabeça, mas muito mais acentuado,
conferindo mais profundidade ao olhar. Segura o que poderia ser um grande leque que cobre
parte de seu corpo e em suas mãos se destacam dois grandes anéis. Está vestida de forma
elegante, com um vestido, talvez, embora não vemos muito abaixo de sua cintura; a roupa, em
todo caso, deixa seu colo a mostra. O cabelo não é comprido chegando apenas até o começo
de seu grande pescoço. Sua expressão é contrastada com a do homem, que olha para frente e
para baixo, uma mão apoia o rosto, com ar pensativo também, mas, talvez, insatisfeito, ou
mesmo furioso - o que é visível por sua boca contraída e cenho franzido -, talvez por algum
motivo relacionado à mulher. Está vestido formalmente, com terno escuro e gravada listrada,
o corpo não se parece em uma posição confortável e descontraída como o da mulher. Em seu
cabelo, muito escuro, se vê as linhas que lhe dá textura e indicam seu penteado, e essas linhas
são mais ásperas e descontínuas que as do cabelo feminino, cujos traços são finos e vão desde
a raiz até as pontas, seguindo o contorno de sua cabeça.
No fundo, muitas linhas são visíveis, sendo que as cortinas possuem traços verticais
mais acentuados, enquanto a parede traz riscos mais finos, uma no sentido vertical recortada
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por quatro horizontais, e da altura em que o homem está para baixo elas não são tão
geométricas. Na gravura há um grande espaço para o fundo, os personagens aparecem apenas
da metade para baixo da imagem. Por último, entre a cortina e a parede outro elemento que
aprece são riscos irregulares que lembram finos galhos de uma planta e preenchem um espaço
“vazio” da imagem.
A coloração em azul confere à ilustração um ar frio e distante, como se fosse uma
imagem congelada de tempos mais pretéritos. A obra recebe o nome “Crepuscular” e se
encontra na página ao lado de um poema de mesmo nome, cuja autoria pertence a Olegário
Marianno. Este poeta apareceu algumas vezes ao longo das publicações da Revista Terra,
principalmente nas edições do primeiro formato da revista, que possuía uma proposta mais
literária. O poeta é considerado um dos representantes do movimento do parnasianismo na
cidade de Florianópolis20. O historiador Nicolau Sevcenko considera Olegário Marianno
como pertencente a uma camada do grupo que denomina os “vencedores”, pois gozavam de
enorme sucesso e prestígio pessoal, elevando a posições de proeminência no regime e de guias incondicionais do público urbano. Essa nova camada seria a dos plenamente assimilados à nova sociedade, os favorecidos com as pequenas e grandes sinecuras, os habitués das conferências elegantes e dos salões burgueses, de produção copiosa e bem remunerada. Autores da moda porque assumem o estilo impessoal e anódino da Belle Époque. São os triunfadores do momento, e a sua concepção de cultura pode ser figurada na fórmula com que Afrânio Peixoto outro representante ilustre dessa casta especial, definiu a literatura: ‘o sorriso da sociedade’(SEVCENKO, 2008, p.130).
Desta forma, seus livros eram sempre publicados, o escritor trajava o melhor do
figurino europeu e possuía enorme prestígio social. Além de poeta, era cronista, escritor de
revistas, acadêmico e ainda possuía um emprego rendoso na administração da Ilha das
Cobras21.
Este poema encontrado na Revista Terra evoca “as cinzas da recordação”, de uma
mulher que foi querida “e um veneno de Amor que foi mortal!”. Não é possível, por ora, saber
se a ilustração foi feita para o poema, o poema para a ilustração, ou se meramente teriam em
comum a semelhança do nome (creio que improvável), porém colocados lado a lado na
Revista, um influencia a leitura do outro. Dessa forma a expressão do homem parece evocar
as lembranças e talvez arrependimentos ou tristezas de um amor passado que permanece na
memória: “Ha sempre um beijo dado na penumbra. / E um gesto lendo e triste que ficou... / E
nesse gesto vago se vislumbra / Toda a historia do tempo que passou...”. Podemos imaginar
que a imagem retrata exatamente essa estrofe, assim, o homem ao fundo estaria evocando a 20
De acordo com Celestino Sachet (1974). 21 MICELI, apud SEVCENKO, 2008, p.30
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imagem de sua amada - a mulher em primeiro plano seria a figuração de seu pensamento. Os
seguintes versos sugerem que esta mulher possa estar morta: “Desfolhando-se em petalas de
flôr... / Teve uma vida breve de corolla. / Que passe! É mais uma alma que se estiola... / Meu
Amor! meu Amor! meu pobre Amor”. Nesse caso, as velas e as flores devem ser o seu túmulo
e a expressão sonhadora no rosto da mulher remeteria a este distanciamento. O fundo escuro
atrás da imagem da mulher talvez signifique que ela se encontra em outro lugar, ou mesmo
outra “cena”, por isso se pareceria uma grande cortina teatral. A expressão do homem, nesse
caso, é mais de perplexidade e tristeza. Pode ser que aquele fosse o dia da morte de sua
amada, por isso os trajes formais, e assim permaneceu diante do túmulo a imaginar a mulher
amada depois do entardecer, no crepuscular – crepuscular nesse caso poderia remeter à tarde
que se vai ou ao amor que se finda.
A imagem, bem como a estética da Revista de modo geral, possui elementos
decorativos identificados com o estilo art nouveau relacionado ao período da belle époque.
Esta tendência artística apareceu nas últimas décadas do século XIX e início do XX no
continente europeu. Esteve relacionado à arquitetura, ao design, à pintura e às artes gráficas,
sendo que a distinção entre belas artes e artes aplicadas era totalmente alheia ao espírito do art
nouveau, o qual não aceitava qualquer tipo de hierarquia nas artes e ofícios. Nesse sentido, o
trabalho com as artes gráficas em revistas, jornais e cartazes se fazia importante por atingir
um público pretensamente maior, servindo como suporte para sua divulgação.
Para o historiador da arte, Giulio Argan, o art nouveau se propaga como uma
verdadeira “moda” na Europa, representado o gosto da burguesia moderna adepta do
progresso industrial - seria uma “expressão típica do espírito modernista” (ARGAN, 1992,
p.199). Relaciona-se, então à sociedade industrial e ao “fetichismo da mercadoria”,
apresentando o caráter de uma arte de elite, quase de corte, agradando, sobretudo, a burguesia
urbana. Assim, a Revista Terra esteticamente também pode ser relacionada com a
modernidade, ainda que uma modernidade que não pretendesse atingir sociedade por inteiro,
restringindo-se às camadas mais abastadas. Para além desta ilustração, muitos detalhes
presentes nas páginas da Revista indicam sua proximidade estética com este movimento.
O art nouveau surge como contraposição a duas tendências que se observava nas artes
plásticas: o estilo “histórico”, com sua ênfase retrospectiva, fria e acadêmica; e ao
naturalismo, que apresentaria interesse excessivo pelo sórdido e vulgar, por cenas sombrias e
triviais do cotidiano. Dessa forma, os artistas art nouveau queriam basear sua arte na
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realidade presente ou mesmo em visões futuristas, o que justificaria que os termos usados para
se referir a estas obras fazem referências à modernidade e inovação. Quanto à oposição ao
naturalismo, os artistas propunham uma distinta idolatria à natureza, não em seu aspecto mais
sórdido e realista, e sim no sentido da imitação da natureza em sua essência, suas formas
orgânicas. Por isso a imagem de Di Cavalcanti nos traz figuras florais sob velas de chamas
sinuosas. Por isso também há o estranho elemento que lembra galhos contorcidos de uma
planta “preenchendo” um espaço “vazio” da cena.
Optava-se no art nouveau pela beleza e elegância e pelo aspecto decorativo, ou seja,
por modernidades estilísticas bem mais do que temáticas sociais - ainda que um aspecto não
excluísse o outro, como no caso do próprio Di Cavalcanti principalmente em seu trabalho “Os
Fantoches da Meia-Noite”. Mas, no geral não há nada que revele uma clara consciência da
problemática social do desenvolvimento industrial; os artistas do movimento acreditavam que
seu dever público era criar imagens de um mundo de felicidade e belezas universais.
Quanto à cor os tons predominantes seriam frios, pálidos e transparentes – como no
caso os tons de azul na imagem “Crepuscular”. Há também a recusa da proporção de
equilíbrio simétrico, com acentuados desenvolvimentos na altura ou largura e andamentos
geralmente ondulados. A imagem de Di Cavalcanti na Revista Terra é, de fato, muito pouco
simétrica ou geométrica, excetuando-se as linhas verticais e horizontais do fundo predominam
traços muito mais curvos.
Antes de ser o conhecido pintor das mulatas do modernismo brasileiro, Di Cavalcanti
tivera, portanto, uma faceta menos estudada, atuando como ilustrador em jornais e revistas
ilustradas e com uma inclinação para o estilo art nouveau. Di Cavalcanti também foi o
principal realizador de desenhos e ilustrações simbolistas no Brasil, com características mais
soturnas, subjetivas e tensas do que as obras em art nouveau, as quais possuem o estilo
ornamental em primeiro lugar. Ana Paula Simioni, ao estudar sobre a produção do artista
anterior ao ano de 1922, destaca que suas características principais seriam o tom de mistério e
a complexidade de suas obras, a presença de motivos florais, a forte utilização do negro, de
elementos orientais e sinuosas e a exploração da imagem feminina.
A mulher era, assim, o tema predileto da arte do fim do século, e não apenas no Brasil.
Era uma figura portadora de sexualidade e não mais a mulher mitológica dos quadros
acadêmicos. No art nouveau, os cabelos longos se tornam um importante elemento de
decoração, sem possuir a carga simbólica que denotava nas pinturas simbolistas, para os quais
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carregaria uma psique amedrontada. Desde esse momento, antes de pintar as mulatas, a figura
feminina já se tornava o tema mais retratado por Di Cavalcanti, sendo os cabelos, de acordo
com Simioni, um dos elementos iconográficos mais explorados. Apesar do destaque dado a
figura feminina na imagem “Crepuscupar”, seus cabelos não parecem possuir demasiada
ênfase, ainda que seja possível perceber um grande cuidado no traçado de suas linhas. Estes
cabelos curtos, por outro lado, parecem possuir alguma relação com a figura da “Melindrosa”
de J. Carlos – a mulher moderna e burguesa que se falará logo adiante.
Audrey Beardsley, um ilustrador inglês do final do século XIX, fora a grande
influência de Di Cavalcanti no início do século XX. Para o inglês, a mulher foi também um
dos seus temas principais, sendo vista como a tentação e a ameaça, encantada por sua própria
beleza. Em suas obras, Beardsley explora os contornos do corpo feminino, os elementos
orientais (como a figura do pavão), e desenvolve linhas simplificadas, curvas, por vezes
formadas por pontos minúsculos. Seus traços requintados, finos e ágeis, com grande presença
dos elementos decorativos com apelo à natureza.
Di Cavalcanti, no entanto, não absorveu uma de suas características fundamentais: o
teor satânico e demoníaco de seus desenhos. E tampouco a mulher de “Crepuscular” possui
muita relação com a mulher ameaçadora do artista inglês.
Outro ponto a ser destacado para se compreender esta ilustração de Di Cavalcanti na
Revista Terra foi a particularidade de suas relações pessoais. Enquanto muitos artistas da
época se fechavam em grupos específicos, como o dos parnasianos e dos simbolistas - entre
os quais havia uma rivalidade acentuada, não se cumprimentavam e tampouco não escreviam
nos mesmos periódicos - Di Cavalcanti, devido a suas heranças familiares e às relações que
foram sendo construídas ao longo da vida, circulava entre os dois grupos. Esse fato também o
tornou um elo importante entre os intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo, o que, de
acordo com Ana Paula Simioni (s/d), rendeu-lhe o papel de articulador do grupo que mais
tarde se auto proclamaria modernista. Talvez essa mesma flexibilidade de circular entre
diferentes grupos que o tenha feito publicar um uma recente publicação do sul do país: a
Revista Terra.
Sobre a imagem feminina que a Revista Terra apresenta, pode-se dizer que o discurso
que se veicula a partir das figuras da mulher é incrivelmente variado: ora se destaca a atriz
estrangeira, ora a moça da “nossa alta sociedade”, ou então a figura da “melindrosa” – como
chama o desenho da capa do nono número da Revista feito por J. Carlos. Estas diferentes
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construções são encontradas por vezes em um mesmo exemplar da Revista e sugerem uma
imagem multifacetada, porém quase complementar. Assim, um modelo não parece excluir o
outro, fazem parte de um mesmo pensamento moderno, complexo e aparentemente
contraditório.
A imprensa brasileira das primeiras décadas do século XX teve a preocupação de
formular o modelo da mulher ideal, de acordo com Ilka Cohen. A historiadora Joana Maria
Pedro ao estudar a construção discursiva da figura da mulher na imprensa de Desterro e
Florianópolis relaciona a emergência de imagens idealizadas à formação de esfera pública
burguesa. Tal emergência se dá na década de 1850 devido a uma nova configuração da elite -
vinda principalmente do comércio e transporte de mercadorias, pois o período marca a
definitiva inclusão da economia catarinense no circuito do comércio agrário-exportador
brasileiro. Esta elite em construção encontrava nos jornais uma forma de expansão de suas
aspirações de ascensão social, expondo ali modelos idealizados para os sujeitos que se
construíam. As mulheres aparecem então como referenciais de distinção na construção social,
devendo ser destinadas exclusivamente às funções de esposas, mães, donas-de-casa – são
“símbolos de status, de um ‘brilho’ recém adquirido” (PEDRO, 1994 p.28).
Desta forma os textos sobre as mulheres tinham a função de estabelecer papeis
femininos definidores de distinção na sociedade local. A esposa ideal é aquela que ajuda o
marido e não cria mais despesas, a mãe ideal é a mãe instruída, pois além da escola a
educação deveria ser ministrada pela mãe no lar.
A autora trabalha com discursos textuais, não fazendo referências a imagens gráficas.
No entanto, muitas das fotografias da Revista Terra, principalmente os “instantâneos” da
saída da catedral, parecem condizer com este papel feminino desejado pelas elites da cidade já
a partir da metade do século XIX. Ao que parece, estas fotografias despertavam interesse no
público da Revista Terra e quiçá pelas próprias fotografadas, que podiam ver suas imagens
em uma revista bem conceituada – se dessem sorte ficariam ainda lado a lado com um
“clichê” de uma estrela do cinema. O jornal Republica chamou a atenção para estas
fotografias da Revista Terra: “entre os vários clichés, destacam-se os que representam os
instantâneos apanhados no Domingo, apòs a Missa da Cathedral, vendo-se elegantes
senhoritas e senhoras do nosso ‘set’”22.
22 Jornal Republica, 31/08/1920.
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Merece destaque também um retrato da edição de número nove intitulado “A nossa
alta sociedade”, abaixo se tem o nome da moça: “Srta. Jöe Collaço” e até mesmo, o que era
incomum na Revista, o nome do fotógrafo: Carmo (que o jornal Republica informa ser o “sr.
photographo Arthur Carmo”23– fotógrafo de seu próprio jornal). A página dedicada a esta
imagem se difere das demais, lembrando o papel utilizado nas primeiras edições da Revista,
há inclusive uma linha vermelha que contorna parcialmente as margens (figura 2). A
fotografia não está completa, aparece apenas o rosto e o colo coberto da moça, com contornos
irregulares, “artístico”. A imagem está no centro da página, há bastante espaço em branco
proporcionando ainda mais destaque à figura, a qualidade da fotografia também é superior em
relação à maioria das outras fotos encontradas na Revista. A moça tem a cabeça inclinada e
olha graciosamente para um ponto quase na direção da câmera que a fotografou. O olhar, o
cabelo bem penteado e o lenço com que cobre a parte de trás da cabeça e os ombros lhe dão
uma aparência serena e ao mesmo tempo lhe conferem certa importância e distinção. De fato,
a figura que se constrói neste retrato deveria certamente ter a função de representar as
“mulheres honestas” e não as “mulheres faladas” 24, sendo o próprio espelho da mulher
idealizada.
Figura 2. Revista Terra, n.9 – 29 de agosto de 1920.
Acervo: Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina.
23 Idem. 24 Conforme a terminologia utilizada no trabalho de Joana Maria Pedro (1994)
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O historiador Boris Kossoy ressalta que devemos compreender a imagem fotográfica
enquanto documento/representação, contendo em si múltiplas realidades e ficções. Desta
forma, “decifrar a realidade interior das representações fotográficas, seus significados
ocultos, suas tramas, realidades e ficções, as finalidades para as quais foram produzidas é a
tarefa fundamental a ser empreendida” (KOSSOY, 2012, p.45). Susan Sontag (2004) também
aponta importantes reflexões para compreendermos o papel da fotografia, a autora coloca que
“fotografar é atribuir importância. Provavelmente não existe tema que não possa ser
embelezado; além disso, não há como suprimir a tendência, inerente a todas as fotos, de
conferir valor a seus temas” (SONTAG, 2004, p.41). O retrato de Jöe Collaço deve ser
entendido dentro destas reflexões. Seu destaque dentro da Revista Terra é emblemático – ao
realizar a montagem da Revista se teve o trabalho de dedicar-lhe uma página especial, com
papel diferente e uma moldura vermelha, além de conferir à fotografia um tratamento
particular. Todo esse destaque evidencia que a imagem da moça não representa apenas aquela
figura em particular, não é apenas Jöe Collaço que está refletida ali, ela representa toda uma
imagem que se deseja ter das mulheres de “nossa alta sociedade”.
Kossoy ainda reflete sobre o que implica o tratamento dado à fotografia quando
veiculada em determinado meio de comunicação, uma vez que a edição possui o intuito de
direcionar a leitura dos receptores, de forma a melhor conduzir, ou “controlar” ao máximo o
ato de recepção. O tratamento cuidadoso que a imagem recebe irá influenciar no processo de
apropriação dos leitores quando passam a construir sua interpretação. Para Susan Sontag, “as
fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos
direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver”
(SONTAG, 2004, p.13). É nesse sentido que as imagens fotográficas contribuem para formar
em nossa memória um arquivo visual de referência, a partir do qual modificamos nossa
maneira de ver e entender o mundo. A “alta sociedade” catarinense deveria, com a
contribuição desta imagem - além de outras em que figuram mulheres elegantes à saída da
missa - entender-se e construir-se pautada nestes modelos.
Portanto, a fotografia de Jöe Collaço contribui para expressar o caráter elitista da
Revista e fixar um modelo da mulher da alta sociedade a ser seguido. Podemos de certa forma
contrapor esta imagem ao desenho de J. Carlos que serve de capa para a edição de número
nove, intitulado “Melindrosa”. A imagem possui vivas cores vermelhas nas vestimentas da
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mulher: salto alto, vestido e um grande chapéu. A melindrosa era, de acordo com Ilka Cohen,
a ameaça ao modelo da mulher “perfeita” enquanto esposa, mãe e dona de casa:
o mundo do consumo invadia o universo feminino não com a propaganda de panela, produtos de limpeza e linha de bordar, mas com a sugestão de modernidade que se configurava na imagem ‘da mulher esportiva, liberada, que fumava cigarros e dirigia automóveis, engendrando o estereótipo [...] da melindrosa’ na observação de Ana Luiza Martins. As exigências do mercado prenunciavam a transformação do padrão (COHEN, 2008, p.118).
Há ainda uma seção com grande quantidade de imagens fotográficas na Revista Terra,
chamada “Figuras da téla e do palco” – porém aqui, os atores masculinos também aparecem.
Esta seção é repleta de adjetivos que demonstrava o olhar de seus escritores em relação ao
cinema, estimulando seu público a apreciá-los da mesma maneira.
O principal destaque da seção da Revista foi dado às fotografias, que eram em geral de
um único ator, mas por vezes também de determinada cena de filme. Eram feitos então
comentários a respeito da beleza do artista como referência a um ideal estético do período. A
grande maioria dos atores e filmes que possuíram espaço na seção era dos Estados Unidos, há
a citação de um único filme brasileiro, um italiano e outros franceses. Além disso, algumas
capas da Revista foram de atores ou filmes e a penúltima capa da Revista Terra teve a foto de
Italia Fausta, grande atriz do teatro nacional. No entanto, no interior da seção, o teatro não foi
mencionado - apesar do título de “Figuras da téla e do palco” apenas as figuras da tela tiveram
espaço. O que não quer dizer que a Revista não aludisse ao teatro, em muitas ocasiões existe
esta referência.
A seção “Figuras da téla e do palco”, contribuiu para a formação de gostos e valores
também no tocante à cena cultural. Nesse sentido, a Revista Terra levava para seus leitores
uma imagem congelada, fixa, dos seus ídolos, aproximando os rostos e corpos das estrelas
admiradas aos leitores. Ao se posicionar com admiração pela indústria cinematográfica,
principalmente estadunidense, formulou uma narrativa própria sobre as novas formas de
diversão e entretenimento que a cena artística do cinema propiciava neste espaço. Assim,
compactuavam-se valores e gostos, construindo representações, identidades e identificações.
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