terra, poder e lutas sociais no campo brasileiro - do golpe à apoteose do agronegócio

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  • 7/25/2019 Terra, Poder e Lutas Sociais No Campo Brasileiro - Do Golpe Apoteose Do Agronegcio

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    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p. 73 - 111ISSN 1517-4689 (verso impressa) 1983-1463 (verso eletrnica) 73

    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO:DO GOLPE APOTEOSE DO AGRONEGCIO (1964-2014)

    Joo Mrcio Mendes Pereira1Paulo Alentejano2

    Resumo: O artigo analisa as lutas sociais e polticas que tm configurado as relaes depoder no campo brasileiro e discute os principais contornos e termos da questo agrriano pas ao longo das ltimas cinco dcadas. A nfase recai sobre os processosorganizativos, a dinmica da correlao de foras na sociedade civil e as aes doEstado brasileiro para conservar ou transformar a estrutura agrria e a agricultura.

    Palavras-chave:Questo agrria; Estado; Agronegcio; Movimentos Sociais; Reformaagrria.

    LAND, POWER AND SOCIAL STRUGGLES IN THE BRAZILIANCOUNTRYSIDE: FROM COUP TO THE APOTHEOSIS OF AGRIBUSINESS

    (1964-2014)

    Abstract:The article analyzes the social and political struggles that have shaped thepower relations in rural Brazil and discusses the main outlines and terms of the agrarianquestion in the country over the last five decades. The emphasis is on organizational

    processes, the dynamics of the correlation of forces in civil society and the actions ofthe Brazilian state to conserve or transform the agrarian structure and agriculture.

    Keywords: agrarian question; state; agribusiness; social movements; agrarian reform.

    No h ameaa mais sria democracia do que desconhecer os direitos do

    povo; no h ameaa mais sria democracia do que tentar estrangular a vozdo povo e de seus legtimos lderes, fazendo calar as suas mais sentidasreivindicaes. Estaramos, sim, ameaando o regime se nos mostrssemossurdos aos reclamos da Nao, que de norte a sul, de leste a oeste, levanta oseu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma

    agrria, que ser como complemento da abolio do cativeiro para dezenas de

    milhes de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condies demisria.

    1Doutor em Histria pela UFF, professor adjunto do Departamento de Histria e Relaes Internacionaisda UFRRJ, professor do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFRRJ e professor colaborador doPrograma de Ps-Graduao em Desenvolvimento Territorial na Amrica Latina e Caribe da UNESP. E-mail: [email protected] Doutor em Desenvolvimento e Agricultura pela UFRRJ, professor adjunto do Departamento deGeografia da UERJ, professor do Programa de Ps-Graduao em Geografia da FFP/UERJ, do Programade Ps-Graduao em Desenvolvimento Territorial na Amrica Latina e Caribe da UNESP e professor

    colaborador do Programa de Ps-Graduao em Ensino de Cincias, Ambiente e Sociedade daFFP/UERJ. E-mail: [email protected]

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

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    Presidente Joo Goulart, 13 de maro de 1964, comcio na Central do Brasil,Rio de Janeiro.

    O pensamento neodesenvolvimentista centrado na produo e no lucro,defendido pela direita e por setores de esquerda, exclui e trata como empecilho

    povos indgenas, quilombolas e camponeses. A opo do governo brasileiro porum projeto neodesenvolvimentista, centrado em grandes projetos e naexportao de commodities, agrava a situao de excluso e de violncia.Consequentemente, no atende as pautas estruturais e no coloca a reformaagrria no centro da agenda poltica, gerando forte insatisfao dasorganizaes sociais do campo, apesar de pequenos avanos em questesperifricas.

    Manifesto das organizaes sociais do campo3, 28 de fevereiro de 2012.

    Este artigo analisa as lutas sociais e polticas que tm configurado as relaes de

    poder no campo brasileiro nos ltimos cinqenta anos, a fim de estabelecer os principaiscontornos e termos da questo agrria existente no pas. A nfase recai sobre os

    processos organizativos, a dinmica da correlao de foras na sociedade civil e as

    aes do Estado brasileiro. O texto se inicia com breves consideraes sobre o quadro

    poltico existente no agro dos anos 1950 at o golpe civil-militar de 1964. Em seguida,

    analisa a poltica agrria e agrcola do regime ditatorial, dando nfase ao processo de

    modernizao da agricultura e suas principais contradies. Depois, aborda as disputas

    em torno da reforma agrria durante a transio democrtica. Na sequncia, discute operodo dos governos Collor e Itamar Franco, que demarca um momento de transio

    para o neoliberalismo. A anlise se concentra, depois, nas lutas ocorridas durante os

    dois mandatos de Cardoso e Lula da Silva, chegando ao governo de Dilma Rousseff.

    Ditadura e modernizao da agricultura

    Entre a dcada de 1940 e o golpe de 1964 houve intensa e extensa mobilizao

    social no campo brasileiro, atingindo a maioria dos estados. Atravs de formas variadas

    de organizao, os camponeses ganharam visibilidade no espao pblico e se afirmaram

    politicamente no cenrio nacional. Fez parte dessa trajetria a concorrncia entre

    agentes que disputavam a representao desse grupo social, como a Igreja Catlica e

    3 Assinado por: Associao dos Povos Indgenas do Brasil (ABIP); CRITAS Brasileira; ConselhoIndigenista Missionrio (CIMI); Comisso Pastoral da Terra (CPT); Confederao Nacional deTrabalhadores na Agricultura (CONTAG); Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

    Familiar (FETRAF); Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Movimento Campons Popular(MCP); Movimento de Mulheres Camponesas (MMC); Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA);Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Via Campesina Brasil.

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    partidos polticos, em particular, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em lutas por

    terra, melhores condies de trabalho e direitos, os trabalhadores resistiram a tentativas

    de expulso por grandes proprietrios, realizaram marchas e protestos em cidades,

    organizaram congressos prprios, conduziram greves no campo, acamparam s margens

    de grandes fazendas e comearam a ocupar algumas delas para obrigar o governo

    federal a desapropri-las. Ao longo de duas dcadas, tais lutas se traduziram numa

    linguagem comum a diversos atores sociais e acabaram convergindo na defesa de uma

    ampla reforma agrria no pas (cf. CAMARGO, 1981; IANNI, 1984; MEDEIROS,

    1989).

    No se tratava de um tema restrito quele universo social nem tampouco s

    fronteiras nacionais. Com o incio da guerra fria, a promoo do desenvolvimento dos

    pases do Terceiro Mundo emergiu como projeto poltico liderado pelos Estados Unidos

    para impedir a metstase do comunismo. Para tal, o governo Truman lanou em 1949

    o Programa Ponto IV, que previa assistncia tcnica e financeira a pases considerados

    subdesenvolvidos. As diretrizes do Ponto IV mencionavam a necessidade de modernizar

    estruturas agrrias consideradas atrasadas e ineficientes, embora, na prtica, aes

    reformistas tenham sido combatidas pelos EUA e seus aliados, como mostrou a

    derrubada do governo Arbenz na Guatemala em 1954. Mesmo assim, havia uma crtica

    propagada desde Washington em relao concentrao da propriedade da terra e seus

    efeitos socioeconmicos. Com a vitria da revoluo cubana, essa crtica se somou

    preocupao de que a agitao social comprometesse a ordem poltica na regio. Em

    troca de ajuda econmica, a Aliana para o Progresso props, em 1961, que os governos

    realizassem reformas agrrias moderadas. A iniciativa deu poucos resultados, mas o

    posicionamento de Washington contribuiu para apoiar a discusso sobre a necessidade

    de reformar a estrutura agrria nacional por razes de eficincia econmica e eqidade

    social.Ainda a nvel internacional, uma referncia com forte influncia no pensamento

    econmico latino-americano naquele perodo era a Comisso Econmica para a

    Amrica Latina e Caribe (CEPAL). Para os cepalinos, desenvolvimento e

    subdesenvolvimento constituam um nico processo e s podiam ser entendidos nos

    marcos da economia mundial. A superao do subdesenvolvimento se daria com uma

    industrializao por substituio de importaes, a qual dependia da remoo de

    obstculos, como a estrutura agrria dualista, baseada na dicotomia latifndio-

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    minifndio. Assim, caberia reforma agrria distribuir de maneira mais equilibrada a

    propriedade da terra, a fim de tornar a agricultura mais funcional industrializao.

    O debate no Brasil era influenciado por esse contexto mais amplo. A crtica ao

    latifndio estava no centro do debate sobre a superao dos problemas fundamentais

    da nao durante os anos 1950 e incio da dcada seguinte. Para diversas correntes, a

    alta concentrao da propriedade da terra era a principal responsvel pelo quadro de

    baixa produtividade, atraso tecnolgico e relaes de trabalho arcaicas que caracterizava

    a agricultura, sendo considerada um obstculo estrutural industrializao. Mais do que

    isso: do ponto de vista poltico, o latifndio era visto como a base de um sistema de

    dominao que privava os camponeses de direitos e condies dignas de vida.4

    Disputada por foras sociais variadas e enquadrada em projetos polticos concorrentes, a

    reforma agrria aparecia ento no centro do amplo movimento popular em favor das

    reformas de base que deveriam resolver os grandes problemas nacionais. Em outras

    palavras, impulsionada por fatores externos e internos, houve naquele perodo uma

    confluncia de diferentes concepes de desenvolvimento e perspectivas polticas que

    convergiram para a crtica concentrao privada de terras e a defesa da reforma agrria

    por setores diversos e amplos da sociedade brasileira como medida de justia social e

    progresso econmico.

    Assim, em 1962, o governo Goulart criou a Superintendncia de Reforma

    Agrria (SUPRA) e, no ano seguinte, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto do

    Trabalhador Rural (ETR), estendendo a legislao trabalhista ao campo, aps vinte anos

    de atraso em relao s cidades. Ainda em 1962 tambm ocorreu a regulamentao do

    sindicalismo rural, levando rpida proliferao de sindicatos de trabalhadores rurais

    em todos os estados.5Esse processo culminou no final do mesmo ano na criao da

    Confederao Nacional de Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), que passou a

    centralizar a representao sindical dos trabalhadores rurais, categoria jurdicaimposta pela legislao que abarcava as diversas fraes (parceiros, meeiros,

    arrendatrios, posseiros, pequenos agricultores, assalariados permanentes e temporrios,

    entre outras) do campesinato. No mesmo perodo, formaram-se tambm o Movimento

    dos Agricultores Sem Terra (MASTER), no estado do Rio Grande do Sul, e as Ligas

    4

    A legislao trabalhista criada a partir de 1930 durante o primeiro governo Vargas (1930-45) no foiestendida ao campo. Assim, enquanto o pas se industrializava, o latifndio se manteve como umterritrio de mando pessoal fora do universo legal.

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    Camponesas, no Nordeste.

    No dia 13 de maro de 1964, o presidente assinou o decreto que previa a

    desapropriao para fins de reforma agrria das terras localizadas ao longo de 10 km das

    margens de rodovias, ferrovias e audes construdos pelo governo federal. Dois dias

    depois, em meio intensa mobilizao popular e sindical pelas reformas de base,

    Goulart enviou mensagem ao Congresso propondo mudanas legais que viabilizariam

    uma reforma agrria. Era uma resposta moderada s mobilizaes camponesas que

    exigiam reforma agrria na lei ou na marra(BRUNO, 1997: 97; MENDONA, 2011:

    40). Poucos dias depois ocorreu o golpe civil-militar.6

    As entidades patronais rurais se envolveram profundamente na articulao do

    golpe. A Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e a Sociedade Rural Brasileira

    (SRB), por exemplo, atuaram em frentes variadas, advogando a defesa do direito

    sagrado de propriedade.7 Enquanto a SNA se posicionava abertamente contra a

    reforma agrria, a SRB era a favor do parcelamento de terras pblicas (jamais de

    terras privadas) e da cooperativizao empresarial de pequenos agricultores

    (MENDONA, 2011).

    Contudo, o principal argumento das entidades patronais contra as crticas

    econmicas ao latifndio era o de que o setor agrcola havia sido abandonado pelo

    Estado e era penalizado pela poltica econmica favorvel indstria. Se houvesse o

    devido apoio estatal e uma poltica econmica adequada afirmavam elas , a

    rentabilidade e a produtividade do setor aumentariam, beneficiando o conjunto da

    populao rural (MEDEIROS, 1983).

    O golpe interrompeu pela violncia um ciclo de lutas populares que reivindicava

    a implantao, consolidao e ampliao de direitos sociais e trabalhistas no campo e

    nas cidades, ao mesmo tempo em que afirmou a hegemonia do capital monopolista

    internacional (MENDONA, 2011). Contudo, a represso no foi suficiente paraeliminar a crtica ao latifndio e as expectativas populares em torno da reforma agrria.

    5Como a lei autorizava apenas um sindicato de trabalhadores por municpio, houve uma corrida entrediversas foras polticas (principalmente o PCB e setores ligados Igreja Catlica) em busca doreconhecimento legal dos seus sindicatos. Cf. Medeiros (1989: 78).6O termo de Ren Dreifuss (1984) e designa um golpe de classe, de perfil empresarial-militar, com oapoio de Washington.7Fundada no Rio de Janeiro em 1896, a SNA tinha bases sociais nacionais e representava os interesses degrandes proprietrios ligados s cadeias produtivas menos dinmicas do pas, que disputavam a lideranadentro da classe dominante com a burguesia cafeeira paulista. Entre 1930 e 1964, a SNA se tornou a fora

    hegemnica no aparelho de Estado. Por sua vez, a SRB foi fundada na cidade de So Paulo em 1919,tinha base social regional e representava a burguesia cafeeira paulista, agregando tambm empresrios dosetor exportador, de beneficiamento de produtos agrcolas e industriais. Cf. Mendona (2011).

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    Assim, embora imediatamente anulasse o decreto referente desapropriao de terras s

    margens de rodovias federais, o governo encaminhou a elaborao do Estatuto da Terra

    (ET), aprovado pelo Congresso em novembro de 1964. Alm disso, o Congresso

    cuja maioria havia bloqueado nos anos anteriores diversos projetos de reforma agrria

    tambm aprovou a mudana do artigo da Constituio de 1946 que exigia pagamento

    de indenizao prvia e em dinheiro em caso de desapropriao, permitindo o

    pagamento em ttulos da dvida pblica interna resgatveis a longo prazo. Essa medida

    havia sido uma das principais reivindicaes dos camponeses nos anos anteriores

    (GOMES DA SILVA, 1987; MEDEIROS, 1989).

    Depois de catorze verses diferentes, o ET foi definido oficialmente mais como

    uma lei de desenvolvimento rural do que de reforma agrria. Imbudo da ideologia do

    planejamento e da racionalidade tcnica, continha duas partes distintas, uma voltada

    para o desenvolvimento e outra para a reforma (cf. GRAZIANO DA SILVA, 1985;

    GOMES DA SILVA, 1996; MARTINS, 1981 e 1984; BRUNO, 1997). Os imveis

    rurais foram tipificados como minifndios(reas inferiores a um mdulo rural,8portanto

    insuficientes para prover o sustento de uma famlia), latifndios por explorao (rea

    entre um e 600 mdulos, com ndice de explorao econmica inferior mdia

    regional), latifndios por extenso(rea superior a 600 mdulos, independentemente da

    atividade econmica) e empresas rurais(rea entre um e 600 mdulos, caracterizadas

    por nvel adequado de aproveitamento do solo, explorao racional, cumprimento da

    legislao trabalhista e preservao dos recursos naturais). O objetivo da reforma seria

    promover melhor distribuio da terra (...), a fim de atender aos princpios de justia

    social e ao aumento da produtividade. O caminho para isso seria a extino gradual de

    minifndios e latifndios. O ideal de propriedade e explorao econmica era a

    empresa, como tal isenta de desapropriao e da qual, na verdade, decorriam todos os

    demais conceitos. O latifndio se converteria em empresa por meio de tributaoprogressiva, medidas de apoio tcnico e financeiro ou desapropriao (em caso de

    conflito social).9

    8Mdulo rural uma unidade de medida, expressa em hectare, que busca refletir a interdependncia entrea dimenso, a situao geogrfica do imvel rural, a forma e as condies do seu aproveitamentoeconmico. Um mdulo representa, assim, o tamanho varivel que uma unidade deve ter para viabilizar asubsistncia de uma famlia.9A Constituio Federal de 1969 estabeleceu os Ttulos da Dvida Agrria (TDAs) como ttulos da dvida

    pblica interna por meio dos quais o Estado indeniza o valor da terra nua desapropriada, enquanto as

    benfeitorias deviam ser pagas em dinheiro. Aps dois anos de carncia, podiam ser resgatadosanualmente pelos seus detentores em percentuais variveis, no prazo mximo de 20 anos. Pelo decreto554 de 1969, o valor das indenizaes passou a se vincular aos valores declarados pelos proprietrios para

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    Alm dessas categorias, inmeras outras foram consagradas pela fora dessa e

    de outras leis do perodo, constituindo uma infraestrutura conceitual e legal que passou

    a servir de base no apenas para a atuao dos governos (federal e eventualmente

    estaduais) e do Poder Judicirio, como tambm para a luta dos camponeses. Erguia-se,

    junto com a legislao, no apenas uma maneira de categorizar e classificar o meio

    rural, mas tambm um campo de disputas polticas e jurdicas. A prpria noo genrica

    de trabalhador rural imposta pela legislao acabou alijando outros termos como

    referncia para o reconhecimento de reivindicaes pelo Estado, tornando-se central

    para a atuao da CONTAG durante os anos 1970 e 1980 (PALMEIRA, 1985;

    MEDEIROS, 1989).

    Junto com a aprovao do ET ocorreu a extino da SUPRA e a criao de dois

    novos rgos: o Instituto Brasileiro de Reforma Agrria (IBRA), subordinado

    Presidncia da Repblica, e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrrio (INDA),

    ligado ao Ministrio da Agricultura. A duplicidade de rgos institucionalizava a ciso

    poltica entre reforma e desenvolvimento.

    Embora o ET permitisse a promoo de uma reforma agrria com vis

    modernizante e produtivista, que tinha apoio de parte do governo em seus primeiros

    meses, a poltica da ditadura acabou seguindo a via da modernizao conservadora da

    agricultura, dispensando a reforma agrria (cf. GRAZIANO DA SILVA, 1982; IANNI,

    1979 e 1979A; DELGADO, 1985; GONALVES NETO, 1997; PALMEIRA e LEITE,

    1997). Tal via promoveu uma mudana expressiva na base tcnica e produtiva do setor

    agrcola mediante a adoo de mecanizao intensiva e o uso de agrotxicos,

    fertilizantes qumicos e sementes selecionadas, favorecendo a concentrao da produo

    em grandes propriedades.

    Diversos instrumentos foram manejados para viabilizar essa modernizao,

    destacando-se o crdito subsidiado, atravs do Sistema Nacional de Crdito Rural,criado em 1965. Concedido em doses elevadas para a agricultura patronal do eixo

    Centro-Sul do pas, privilegiou produtos destinados exportao ou vinculados a

    programas energticos, como o Programa Nacional do lcool (Prolcool), criado logo

    aps a crise do petrleo de 1973. Alm do crdito, o Estado tambm financiou pesquisa

    fins de pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR). Porm, esse decreto no era seguido pelostribunais, que entendiam que o valor da indenizao tinha de estar de acordo com valores de mercado. Em

    1979, o Tribunal Federal de Recursos julgou inconstitucional o decreto 554/69, restituindo o critrio dovalor de mercado para o pagamento de indenizaes de terras desapropriadas. Cf. Gomes da Silva (1987 e1989); Graziano da Silva (1985).

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    agrcola, assistncia tcnica e ensinos tcnico e superior necessrios formao de

    profissionais especializados.

    Outro instrumento largamente utilizado foi o incentivo fiscal direcionado para

    subsidiar a compra de grandes extenses de terras por empresrios urbanos, sobretudo

    nas regies Norte e Nordeste. Essas operaes eram estimuladas por meio de renncia

    fiscal sobre o Imposto sobre Produtos Industrializados e o Imposto de Renda,

    permitindo a aplicao macia de capital financeiro na aquisio de imveis rurais.

    Tambm se fez uso amplo da concesso de incentivos fiscais e crdito subsidiado para

    estimular a instalao de capitais privados nacionais e estrangeiros na regio amaznica,

    incluindo tambm as regies Nordeste e Centro-Oeste, atravs de iniciativas como a

    criao de plos agropecurios e minerais. Como se no bastasse, praticou-se uma

    poltica de transferncia macia de terras pblicas para agentes privados, atravs de

    licitaes e leiles que beneficiavam grandes proprietrios de terras e grupos industriais

    e financeiros. Desse modo, milhes de hectares do patrimnio nacional foram

    subtrados para engordar o monoplio privado.

    Tambm se fez uso largamente da Poltica de Garantia de Preos Mnimos,

    favorecendo as (maiores) unidades de beneficiamento e processamento, como

    cooperativas e agroindstrias, o que contribuiu para consolidar as cadeias de produo e

    comercializao do setor agroindustrial no pas.

    Por tudo isso, no difcil concluir que, mais do que um simples mediador de

    interesses, o Estado foi o protagonista desse processo. Por meio de agncias e agentes

    estatais,10 a terra rural se tornou um negcio altamente lucrativo no Brasil durante a

    ditadura.

    A via conservadora de modernizao da agricultura brasileira seria impensvel

    sem a conjuntura internacional extremamente favorvel, tanto pela alta demanda por

    exportaes agrcolas como pela abundncia de crdito barato. De todo modo, a suatrajetria mostrou que a reforma agrria no era condio indispensvel para o

    desenvolvimento do capitalismo no campo. Embora, por essa via, milhes de hectares

    permanecessem ociosos ou subutilizados servindo como ativos financeiros privados

    custa dos cofres pblicos , houve significativo aumento da produo e da

    produtividade no meio rural, crescente tecnificao da agricultura, ampliao da

    agroindstria nacional e estrangeira, expanso da fronteira agrcola para o Centro-Oeste

    10O aparelho de Estado sofreu algumas modificaes, como a substituio do IBRA e do INDA peloInstituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) em 1970.

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    do pas (com frequncia, sobre terras indgenas e camponesas) e aumento da

    diferenciao social do campesinato. Houve tambm forte ingerncia do capital

    financeiro na esfera produtiva, favorecendo a integrao de capitais industriais e

    bancrios no setor agropecurio. Tal processo reconfigurou o latifndio. Ainda que

    continuasse a existir sob formas atrasadas, personificadas na figura do coronel e

    seus jagunos, a grande propriedade da terra se converteu em ativo monopolizado por

    grupos econmicos altamente concentrados de diferentes fraes e cada vez mais

    financeirizado. Essa transformao se tornariapoliticamentevisvel nos anos 1980.

    Os efeitos socioeconmicos dessa via de desenvolvimento capitalista sobre o

    conjunto da populao rural foram dramticos. Dentre eles, destacaram-se o aumento da

    concentrao da propriedade da terra, a concentrao de renda, a acelerao do xodo

    rural (cerca de 30 milhes de pessoas entre 1960-80), o incremento da explorao da

    fora de trabalho, a ampliao do processo de expropriao de camponeses (tanto dos

    que viviam como dependentes dentro dos grandes domnios como dos produtores

    autnomos), a deteriorao ambiental e a piora nas condies de vida da maioria dos

    trabalhadores.

    No campo, a ditadura encarcerou, torturou e assassinou militantes das Ligas

    Camponesas, sindicalistas comunistas e da esquerda catlica (cf. CARNEIRO e

    CIOCARI, 2010), bem como interveio nos sindicatos de trabalhadores rurais de diversas

    formas, chegando a fechar muitos deles. Porm, o regime no extinguiu os sindicatos

    nem a CONTAG, e muito menos a legislao trabalhista. Muitos dos sindicatos que

    haviam sido formados pela Igreja Catlica para disputar influncia com os comunistas e

    a esquerda catlica foram relativamente poupados de interveno e, em 1965, o governo

    federal suspendeu a interveno na CONTAG. Graas ao desses sindicalistas e,

    sobretudo, da CONTAG, a partir de 1968 ressurgiu uma rede sindical nacional que se

    consolidaria na dcada seguinte (cf. MARTINS, 1981; PALMEIRA, 1985;MEDEIROS, 1989; NOVAES, 1991; RICCI, 1999).

    Num contexto repressivo, a ao da CONTAG foi fundamental para difundir e

    articular referncias comuns dentro do vasto e diferenciado universo sindical rural. O

    legalismo que havia caracterizado o sindicalismo cristo antes do golpe sobreviveu e

    marcou profundamente as prticas sindicais da entidade no perodo posterior. O ETR e

    o ET foram utilizados como instrumentos para a implementao de direitos trabalhistas

    que o patronato se recusava a cumprir. Ao apelar para o Judicirio como espao depublicizao e resoluo de conflitos, a mediao sindical difundiu a aplicao da lei,

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 82

    fazendo avanar, lenta e conflitivamente, a institucionalizao das relaes entre patres

    e empregados, tensionando e, s vezes, rompendo com formas tradicionais de

    dominao. Buscando controlar os sindicatos, a ditadura os atrelou ao Ministrio do

    Trabalho e, a partir de 1972, utilizou essas entidades como um dos veculos de extenso

    da assistncia social aos trabalhadores do campo. Com isso, os sindicatos se tornaram

    agentes de mediao para o acesso a benefcios como aposentadorias, penses, auxlio-

    funeral e servios de sade, o que ampliou a sua presena entre os camponeses, mas

    tambm atraiu o interesse de foras locais em apoiar a criao dessas entidades e mant-

    las sob a sua tutela.

    Alm da aplicao dos direitos trabalhistas, a CONTAG defendia o direito

    terra, tambm previsto na legislao, e por essa via manteve viva a crtica ao latifndio

    e a defesa da reforma agrria. medida que a modernizao da agricultura avanava, os

    camponeses eram pressionados a abandonarem suas terras. Os conflitos agrrios,

    inicialmente de forma dispersa e atomizada, comearam a se avolumar. Diante deles,

    normalmente a CONTAG encaminhava medidas administrativas e legais e apelava a

    congressistas e autoridades em Braslia, com base no ET, reivindicando a

    desapropriao da rea em litgio, enquanto sindicatos municipais e federaes

    estaduais atuavam com mais nfase em escala local. Essa prtica consolidou um perfil

    de atuao, embora resultasse em poucas conquistas concretas.

    A gradativa intensificao dos conflitos no campo foi respondida pelo governo

    por meio de diversas iniciativas, alm da represso. Uma delas foi a promoo de

    projetos de colonizao em reas de expanso da fronteira agrcola nas regies Centro-

    Oeste e Norte, cujo objetivo era esvaziar a presso por terra que comeava a crescer,

    especialmente na regio Sul, onde os efeitos da modernizao eram mais acelerados, e

    no Nordeste, onde tenses acumuladas desde o pr-1964 voltavam a emergir (IANNI,

    1979; MARTINS, 1981 e 1984). Inscrita em um projeto geopoltico mais abrangente deocupao de fronteiras supostamente vazias, a colonizao foi propagandeada pelos

    militares como sinnimo de reforma agrria e, normalmente, ocorreu junto com alguns

    grandes projetos de desenvolvimento financiados pelo Estado (como rodovias,

    hidroeltricas e extrao de minrios). No interior e em torno desses projetos cresceu a

    apropriao privada de terras pblicas e em posse de camponeses e indgenas, com

    freqncia mediante o uso da violncia.

    Nesse perodo, a ao de parte da Igreja Catlica se tornou fundamental nas lutaspor terra no Brasil. A partir da mudana de atitude de membros da instituio em favor

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    PEREIRA & ALENTEJANO

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 83

    dos pobres e oprimidos, simbolizada na Conferncia de Medelln e na Teologia da

    Libertao, uma srie de iniciativas foram realizadas no sentido de impulsionar

    transformaes polticas e sociais no meio rural. Em particular, destacou-se a atuao da

    Comisso Pastoral da Terra (CPT). Fundada em 1975, essa entidade passou a

    desempenhar um papel de denncia, mediao, vocalizao e organizao de grupos

    sociais submetidos a condies de explorao e violncia. A partir de uma leitura

    bblica, condenava a propriedade privada da terra para fins de lucro e especulao como

    fonte de injustia social. Em 1980, essa viso foi formalizada num documento

    Confederao Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que condenava a terra de

    explorao em defesa da terra de trabalho (sem o recurso explorao do trabalho

    alheio).

    No final dos anos 1970 e incio da dcada seguinte, as lutas sociais no campo

    assumiram nova configurao e magnitude. A modernizao da agricultura e as demais

    polticas implementadas pelo regime de exceo haviam produzido ou acelerado

    transformaes profundas no mundo do trabalho e na vida social, ao mesmo tempo em

    que os canais existentes de representao sindical ou poltica no eram capazes ou

    suficientes para processar e encaminhar as reivindicaes. Assim, constituam-se no

    bojo das lutas novos sujeitos sociais, como atingidos por barragens, seringueiros, sem

    terra, assalariados rurais e pequenos agricultores (MARTINS, 1984; GRZYBOWSKI,

    1987; MEDEIROS, 1989).

    O sindicalismo rural, em particular, era pressionado por fora e por dentro. O

    modo de atuao da CONTAG era cada vez mais criticado pelo legalismo excessivo,

    por no estimular a mobilizao e organizao da base, pela baixa capacidade de

    presso e pelo assistencialismo de muitos sindicatos. As direes de muitos sindicatos

    passaram a ser disputadas por grupos de oposio, que propunham novas formas de luta.

    A CPT e os sindicalistas prximos Teologia da Libertao foram agentes importantesna crtica ao sindicalismo tradicional. Essas disputas produziram dois efeitos

    importantes. Por um lado, a CONTAG teve de se readequar. Assim, em 1979, a

    entidade reafirmou a reforma agrria ampla, geral, massiva, imediata e com ampla

    participao dos trabalhadores como a sua grande bandeira de luta. Por outro lado, as

    disputas no interior da CONTAG se ligaram ao movimento de crtica estrutura

    sindical corporativista e s prticas vigentes no sindicalismo como um todo, conhecido

    como novo sindicalismo. Desse movimento surgiu, em 1983, a Central nica dosTrabalhadores (CUT) estreitamente ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT),

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    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 84

    fundado em 1980 e muitos sindicalistas rurais a ela se vincularam, passando a

    disputar sindicatos, federaes e bandeiras com a CONTAG.11Em 1986, a CUT criou a

    Secretaria Nacional dos Trabalhadores Rurais, transformada dois anos depois no

    Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais (DNTR). Essas instncias

    organizavam os sindicatos cutistas(cf. FERRANTE, 1994; MEDEIROS, 2010).

    Na mesma conjuntura, em 1984, fundou-se o Movimento dos Trabalhadores

    Rurais Sem Terra (MST). Resultado de uma confluncia de processos econmicos e

    experincias sociais, o MST logo se distinguiu pela nfase dada s ocupaes de terras,

    que mobilizavam famlias inteiras (e no apenas o chefe de famlia), no exigiam

    qualquer tipo de filiao formal (como os sindicatos) e tinham como objetivo pressionar

    o Estado para que desapropriasse imveis rurais e assentasse as famlias mobilizadas.

    De acordo com essa perspectiva, a negociao com o Estado tinha de ser pautada pela

    presso coletiva, e no por expedientes legais ou acordos de gabinete entre lideranas.

    Terra no se ganha, se conquista e ocupao a nica soluo eram as consignas

    ento evocadas. A partir das ocupaes, o MST desenvolveu mtodos de organizao

    que formariam uma identidade poltica prpria (cf. CALDART, 2000; FERNANDES,

    2000; CARTER, 2010).

    Avanos e limites da transio democrtica

    Como em outros pases da regio, o incio da transio democrtica no Brasil

    ocorreu em meio guinada neoliberal internacional liderada pelos EUA, ganhando

    ainda mais fora na Amrica Latina com a crise da dvida externa, detonada em 1982, e

    a subseqente adoo de programas de ajuste estrutural do Banco Mundial (BIRD) e do

    FMI. O colapso do modelo econmico e a gesto da crise impactaram negativamente a

    economia brasileira durante toda a dcada de oitenta. Rapidamente, o foco da polticaeconmica se ajustou para a reduo do dficit em transaes correntes, por meio da

    gerao de grandes supervits na balana comercial, ancorados principalmente na

    exportao de produtos primrios. Os saldos comerciais se tornaram, ento, a principal

    fonte de divisas de que o governo faria uso para bombear renda aos credores no exterior.

    11

    A base do novo sindicalismo consistia na defesa da liberdade e da autonomia em relao ao controle doEstado. A CONTAG, por outro lado, defendia a manuteno da unicidade sindical (um sindicato porcategoria profissional por municpio), conforme estabelecia a legislao.

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    PEREIRA & ALENTEJANO

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 85

    A poltica de desvalorizao cambial acabou por compensar, em moeda

    nacional, as perdas de receitas em dlares dos exportadores brasileiros provocadas pela

    queda dos preos internacionais das commoditiesagrcolas, o que garantiu o aumento da

    produo ao longo da dcada a soja, por exemplo, representava no final dos anos

    1980 mais de 40% da produo agrcola brasileira (DELGADO, 2009: 14). Ao mesmo

    tempo, os subsdios ao setor agropecurio continuaram bastante expressivos, porm

    mais seletivos, priorizando determinadas cadeias agroindustriais (como a

    sucroalcooleira e a do trigo). Por fim, praticamente at o final dos anos 1980, o setor

    agrcola se beneficiou com a manuteno de taxas de juros reais negativas (LEITE,

    2011: 60). Em outras palavras, a ao do Estado no setor agropecurio ocorreu de modo

    ainda mais seletivo em favor de alguns grandes agentes econmicos, custa do

    estrangulamento financeiro do prprio Estado.

    Enquanto o modelo econmico vigente entrava em colapso, no campo e nas

    cidades aumentava a presso popular no apenas pela volta do regime democrtico, mas

    pela efetiva democratizao social. Logo, porm, os limites da transio se tornariam

    visveis com o pacto pelo alto que derrota a campanha por eleies diretas

    presidncia (FERNANDES, 1985).

    Apesar dos limites do processo em curso, a coalizo de governo acabou

    incorporando foras polticas heterogneas e at contraditrias. Assim, diante da

    dramaticidade da violncia no campo,12do aumento dos conflitos e das mobilizaes

    camponesas, o governo federal criou em maro de 1985 o Ministrio da Reforma e do

    Desenvolvimento Agrrio (MIRAD). Nelson Ribeiro, ligado ala progressista da Igreja

    Catlica, assumiu o MIRAD e indicou Jos Gomes da Silva, fundador da Associao

    Brasileira de Reforma Agrria (ABRA) e um dos formuladores do ET, para a

    presidncia do INCRA.

    Em maio de 1985, durante o IV Congresso da CONTAG, o presidente daRepblica anunciou a proposta de Plano Nacional de Reforma Agrria (PNRA). Ao

    mesmo tempo em que se selava o apoio da CONTAG ao governo, o anncio dava a

    entender que a hora da reforma agrria havia chegado (DINCAO, 1990: 99;

    GRAZIANO DA SILVA, 1985: 58; GOMES DA SILVA, 1987: 80). O que se

    propunha? A afirmao da desapropriao como principal instrumento de obteno de

    terras, e no como recurso excepcional; o pagamento de indenizao pelas terras

    12Somente em 1985 foram assassinados 211 trabalhadores rurais e 326 foram presos. De 1979 a 1988foram assassinadas 1.304 pessoas envolvidas em lutas por terra (ABRA, 1989).

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 86

    desapropriadas com base no valor do imvel declarado pelos prprios proprietrios para

    fins de cobrana fiscal;13a centralidade do programa de assentamentos de famlias sem

    terra, relegando outras aes (como colonizao, titulao e tributao) condio de

    medidas complementares; a fixao da meta de assentamento de 7 milhes dos

    estimados 10,5 milhes de trabalhadores sem terra ou com terra insuficiente no prazo de

    15 anos; o estabelecimento de reas prioritrias de reforma agrria previsto no ET

    , nas quais haveria uma concentrao de assentamentos, o que rompia com o padro

    de interveno pontual em focos de conflito; a participao das organizaes de

    representao de trabalhadores rurais em todas as fases do processo.

    O MST foi contra a proposta, considerando-a tmida. Quatro meses antes, em

    seu I Congresso, o movimento j havia se posicionado por uma reforma agrria sob

    controle dos trabalhadores, baseada na desapropriao de todos os imveis rurais

    superiores a 500 hectares, pela redistribuio imediata de terras pblicas (estaduais e

    federais) e pela desapropriao das terras de empresas multinacionais. Alm disso, na

    mesma ocasio, o MST condenou o ET como instrumento legal criado pela ditadura

    para modernizar o latifndio, considerando-o inadequado para viabilizar uma reforma

    agrria. Essa posio era compartilhada pela CUT. Quando a proposta de PNRA foi

    anunciada, o MST fez uma srie de ocupaes no Sul do pas, buscando no apenas

    afirmar a sua posio de independncia em relao ao governo e a sua oposio ao

    pacto poltico conservador que sustentava a transio democrtica, mas tambm se

    firmar como principal porta-voz dos sem terra e da bandeira da reforma agrria.

    A CONTAG, por sua vez, mesmo apoiando a proposta, esboou crticas aos

    limites do ET, mas considerou que abrir mo dele resultaria num vazio legal prejudicial.

    Algumas resolues do IV Congresso inclusive divergiam dos parmetros estabelecidos

    pela legislao em vigor. Uma delas era a proposta de desapropriao de empresas

    rurais; outra era a de pagamento das benfeitorias em TDAs; defendia-se, ainda, aelaborao de uma nova lei de reforma agrria a ser apresentada futura assemblia

    constituinte (MEDEIROS, 1989: 170). Contudo, como parte do apoio ao governo, a

    CONTAG descartou realizar ocupaes de terra.

    A proposta de PNRA nada tinha de radical, salvo a inteno de aplicar ao

    mximo possvel as potencialidades reformistas do ET. Para isso, dava nfase ao uso da

    13

    Como tal declarao era sempre muito abaixo do valor de mercado para que a cobrana do impostofosse menor, a medida equivalia a uma penalizao dos proprietrios pelo no cumprimento da funosocial da propriedade.

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    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 87

    desapropriao mediante pagamento de indenizao em TDAs e sob o valor declarado

    pelos proprietrios para fins de cobrana fiscal o que reduzia o valor das

    indenizaes em cerca de 60% (GOMES DA SILVA, 1987: 65). Esse havia sido o

    ponto central do debate e dos embates polticos s vsperas do golpe de 1964. Aps

    duas dcadas a mesma questo voltava tona. Porm, os tempos eram outros. O foco da

    proposta era a desapropriao de latifndios improdutivos, mantidos para fins de

    especulao, seguindo uma viso produtivista que poupava os latifndios produtivos.

    Esperava-se, com isso, que a fora dos proprietrios de terra atrasados seria menor do

    que nos anos 1960, dado a modernizao da agricultura. Porm, foi da regio Sudeste,

    particularmente do estado de So Pauloo mais rico e industrializado do pas que

    emergiu a reao mais intransigente proposta (VEIGA, 1990: 130). Como afirmou um

    personagem da poca: exatamente porque dirigimos o fogo contra a especulao,

    acertamos o corao do sistema, sem nos darmos conta disso(PALMEIRA, 1994: 56).

    Os grandes veculos de comunicao iniciaram uma campanha anti-reformista,

    com a inteno de aterrorizar a populao com a idia de iminente convulso social

    no campo e caos na agricultura, acusando a proposta de socialista por pretender

    confiscar a propriedade privada (VEIGA, 1990: 82-83; GOMES DA SILVA, 1987:

    74).

    A Confederao Nacional da Agricultura e Pecuria do Brasil (CNA)14realizou

    um congresso logo aps o anncio da proposta para debat-la e delinear formas de ao,

    exigindo ao final a demisso do ministro Ribeiro. Contudo, durante o congresso

    emergiram divergncias no interior da CNA, com um grupo assumindo a inevitabilidade

    da reforma agrria e procurando se antecipar e dirigir o processo de acordo com os seus

    interesses, contra outro grupo que se posicionou radicalmente contra as ocupaes de

    terra e qualquer proposta de reforma (BRUNO, 1997: 51). Do segundo grupo surgiu,

    ento, a Unio Democrtica Ruralista (UDR), aglutinando predominantementepecuaristas do Sudeste e do Centro-Oeste que desenvolviam atividades em bases

    extensivas e temiam a possibilidade de que seus imveis fossem caracterizados como

    improdutivos (MENDONA, 2011: 61). Rapidamente, a UDR se destacou no cenrio

    nacional por conclamar proprietrios a se armarem contra as ocupaes de terra. Em

    torno da defesa intransigente do direito de propriedade, a entidade conseguiu aglutinar

    14

    Criada em janeiro de 1964, a CNA integra a estrutura sindical corporativa do pas pelo lado patronal.Essa estrutura formada por mais de dois mil sindicatos patronais rurais de base municipal, que sorepresentados por 27 federaes estaduais (uma em cada estado).

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 88

    proprietrios de todo pas modernos e atrasados, grandes, mdios e pequenos

    contra qualquer tentativa reformista. Com o objetivo de garantir maior liberdade de

    ao, a UDR no se institucionalizou como as entidades patronais tradicionais,

    disputando com elas a condio de principal porta-voz dos produtores rurais do pas

    (cf. DREIFUSS, 1989: 69-70; TAVARES, 1989: 25; BRUNO, 1997: 56).

    A categoria produtor rural emergiu nesse perodo como instrumento de

    combate poltico e formao de identidade social, com o objetivo de substituir a imagem

    do latifundirio, negativa, por outra, positiva, associada ideia genrica de produo. A

    referncia ao monoplio privado da terra era, assim, apagada, negando-se a

    concentrao da propriedade como uma expresso da estrutura de poder existente na

    sociedade. Ao camuflar a desigualdade entre os proprietrios, a categoria forjava uma

    falsa horizontalidade entre todos os produtores. Com pequenas variaes entre si, as

    entidades patronais passaram ento a veicular o discurso da competncia tcnica e da

    eficincia econmica, pressionando o governo federal por polticas agrcolas adequadas.

    Gestavam-se as bases do que se chamaria depois de agronegcio.

    As presses foram de tal intensidade que, entre maio e outubro de 1985, quando

    a verso final do PNRA foi aprovada, a proposta original havia sido bastante modificada

    aps doze verses diferentes.15 Na seqncia, o ministro e o presidente do INCRA

    foram desestabilizados e deixaram seus cargos. Na ocasio foram institudas diversas

    normas legais que restringiam ainda mais o processo desapropriatrio, como o decreto

    n 2.363/87 que isentava reas em produo, independentemente da sua extenso, de

    desapropriao (FERREIRA et al, 2009: 162). Em 1989, o prprio MIRAD foi extinto e

    a responsabilidade pela reforma agrria passou para o Ministrio da Agricultura,

    espao tradicional de representao e articulao do patronato rural. Quanto

    implementao do PNRA, a meta de assentamento era de 1.400.000 famlias, em

    43.090.000 hectares, durante o perodo de 1985-89. Porm, apenas 10,5% do total das

    15 As principais alteraes foram: a) a nfase na negociao com os proprietrios em lugar dadesapropriao, transformando a desapropriao em medida excepcional e esvaziando, com isso, a ideiade penalizao do latifndio; b) a impreciso da definio de imvel produtivo, preservando todolatifndio, fosse por explorao ou por extenso, desde que uma pequena parcela estivesse em produo(surgia, assim, a figura jurdica bizarra do latifndio produtivo); c) o empobrecimento da discusso sobrea funo social da propriedade, dada a nfase na produtividade ou no da terra; d) iseno dadesapropriao de imveis rurais onde houvesse grande incidncia de contratos de parceria earrendamento contrariando a leitura do ET e as reivindicaes das organizaes camponesas, que

    condenavam tais relaes como expresses da explorao do trabalho e fontes de conflitos; e) a nodefinio de reas prioritrias de reforma agrria. Cf. Fachin (1985); Graziano da Silva (1985); Gomes daSilva (1987).

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    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 89

    terras foram arrecadadas e 6,4% do total de famlias foram assentadas (LEITE e

    VILA, 2007: 83).

    Com a derrota da proposta do PNRA, as organizaes camponesas deslocaram

    suas energias para a disputa na Assemblia Nacional Constituinte (1987-88). De fato, o

    tema reforma agrria condensou os embates de classe mais acirrados de todo o

    processo legislativo. Diversas organizaes levaram adiante a Campanha Nacional por

    Reforma Agrria,16propondo uma emenda popular que recolheu mais de um milho e

    duzentas mil assinaturas. O cerne da proposta consistia na ideia de obrigao social da

    propriedade, cujo descumprimento resultaria em sanes que variavam da perda

    sumria indenizao pelo valor declarado para fins de cobrana fiscal. Propunha

    tambm a fixao do limite mximo de propriedade que uma pessoa fsica ou jurdica

    poderia ter, a ser calculado de acordo com parmetros regionais.

    As entidades patronais tambm se mobilizaram. A UDR, por exemplo, realizou

    marchas, passeatas, recrutamento de jovens, campanhas de persuaso em escolas e

    universidades, propaganda em meios de comunicao, cooptao de lideranas locais e

    lobby no Congresso, alm de organizar milcias em propriedades ameaadas de

    invaso(Cf. DREIFUSS, 1989; BRUNO, 2008; MENDONA, 2011). Por outro lado,

    para se dissociar da imagem de truculncia da UDR e disputar a hegemonia no interior

    do patronato rural, a OCB17patrocinou a articulao da Frente Ampla da Agropecuria

    Brasileira (FAAB), envolvendo a CNA e a SRB. Na reta final, a FAAB e a UDR

    convergiram em bloco na defesa incondicional do direito de propriedade e da livre

    iniciativa para bloquear qualquer possibilidade de reforma, com o apoio dos

    representantes do empresariado urbano-industrial e do capital internacional. Tal como

    nos anos 1960, no se assistiu ao apoio de setores progressistas e modernos da

    burguesia nacional reforma agrria.

    Embora a Constituio de 1988 tenha, por presso popular, alargado a esfera dedireitos da cidadania no Brasil18, o mesmo no pode ser dito em relao

    16Ao todo, a proposta foi subscrita por 17 entidades, entre elas CONTAG, CPT, CNBB, CUT e ABRA.17Fundada em 1969 por lideranas paulistas, a Organizao das Cooperativas Brasileiras (OCB) se tornoua entidade nacional nica de representao do cooperativismo agroindustrial com a Lei Nacional doCooperativismo de dezembro de 1971. Nutrindo-se das relaes com o governo ditatorial, beneficiou-sede convnios com rgos pblicos que lhe renderam recursos decisivos para a sua ascenso entre asentidades patronais da agroindstria. Mediante o hbil uso da ideologia da democracia e do igualitarismoentre cooperativados de portes distintos, cumpriu um papel fundamental na construo do projeto poltico

    de modernizao empresarial e internacionalizao da agroindstria brasileira durante os anos 1990. Cf.Mendona (2011).18Com a extenso, entre outras medidas importantes, do direito de voto aos analfabetos.

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 90

    democratizao do acesso terra. verdade que, pela primeira vez, a expresso

    reforma agrria apareceu num texto constitucional. fato tambm que, retomando o

    ET, definiu-se que a propriedade deve cumprir a sua funo social, definida como

    aproveitamento racional, utilizao adequada dos recursos naturais e preservao do

    meio ambiente, cumprimento da legislao trabalhista e explorao que favorea o bem-

    estar de trabalhadores e proprietrios. Contudo, a definio dos critrios de

    cumprimento da funo social permaneceu bastante ambgua ( exceo do que se

    refere legislao trabalhista). O texto apagou qualquer referncia ao latifndio, no

    estabeleceu o limite mximo de propriedade da terra, no adotou o dispositivo da perda

    sumria e no definiu os assentados como pblico prioritrio da poltica agrcola, como

    reivindicavam as organizaes camponesas. Alm disso, manteve no Judicirio a

    deciso sobre a imisso de posse para fins de desapropriao, dando margem

    morosidade jurdica e, assim, ao atraso na implementao de assentamentos.

    Quanto s desapropriaes, estabelece prvia e justa indenizao em TDAs,

    resgatveis em at 20 anos, a partir do segundo ano, com a garantia de preservao do

    valor real. Desse modo, consolidou a tendncia de remunerao dos proprietrios com

    base em valores de mercado, premiando, ao invs de punir, a propriedade que

    descumpre a sua funo social.19

    O texto constitucional tornou a pequena e a mdia propriedades rurais (inferiores

    a 15 mdulos fiscais)20no passveis de desapropriao para fins de reforma agrria,

    bem como a propriedade produtiva. A regulamentao do que seria considerada

    propriedade produtiva ficou a cargo de legislao complementar, o que s ocorreria

    cinco anos depois. Enquanto isso, o vazio legal inviabilizou as desapropriaes.

    Com a aprovao da Lei Agrria em fevereiro de 1993, os modestos dispositivos

    constitucionais sobre reforma agrria foram regulamentados. A impreciso do termo

    propriedade produtiva foi mantida, deixando margem para que fosse interpretadojuridicamente como equivalente ora a terra frtil, ora a terra em produo. A

    19Essa tendncia se agravou aps 1995, quando os TDAs foram aceitos como meio de pagamento no nosprocessos de privatizao de empresas pblicas, convertendo-se em moeda paralela e ativo financeirocom boa liquidez.20O mdulo fiscal uma unidade de medida, tambm expressa em hectare, fixada para cada municpio,que leva em conta: o tipo de explorao predominante; a renda obtida com a explorao predominante;outras exploraes existentes no municpio que, embora no predominantes, sejam expressivas em funoda renda ou da rea utilizada; o conceito de propriedade familiar estabelecido no Estatuto da Terra.

    Atualmente, o mdulo fiscal serve de parmetro para a classificao do imvel rural quanto suadimenso, sendo: a) minifndio (inferior a 1 mdulo; b) pequena propriedade (entre 1 e 4 mdulos; c)mdia propriedade (entre 4 e 15 mdulos); d) grande propriedade (superior a 15 mdulos).

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    PEREIRA & ALENTEJANO

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 91

    consequncia, no primeiro caso, seria a destinao de terras infrteis (imprprias

    atividade agrcola) reforma agrria. No segundo caso, o resultado seria a proteo

    contra a desapropriao caso alguma parcela fosse explorada economicamente, mesmo

    que descumprisse outros critrios da funo social (explorando trabalho anlogo

    escravido21 ou degradando o meio ambiente, por exemplo). Desse modo, essa

    impreciso jurdica deu espao para interpretaes que desde ento valorizam o critrio

    econmico em detrimento dos critrios ambiental e trabalhista.

    Alm disso, diferentemente da desapropriao por utilidade pblica (paga em

    dinheiro), em que o proprietrio s pode questionar na Justia o valor da indenizao,

    no caso da desapropriao para fins de reforma agrria o proprietrio pode questionar o

    mrito da ao, o que lhe possibilita manejar o rito processual a seu favor e, assim,

    atrasar o incio do processo de assentamento por tempo indeterminado, ou, em casos

    extremos, reverter processos de desapropriao mesmo aps a criao de assentamentos.

    Essa legislao estabeleceu mecanismos que atribuem ao Judicirio a deciso

    sobre diversos pontos vitais operacionalizao de qualquer poltica fundiria, criando

    condies para a judicializao crescente da questo agrria. Isso deu relevo ao fato de

    que a socializao jurdica predominante entre os operadores da lei no Brasil era e

    ainda pautada por uma viso de direito de propriedade como algo inviolvel e

    absoluto (FACHIN, 1993: 2), o que alimenta uma postura desfavorvel aos sem terra

    por parte da maioria dos juzes que julgam os conflitos agrrios no pas.

    A correlao de foras institucionalizada na Constituio de 1988 e na legislao

    subsequente inviabilizou a realizao de uma reforma agrria de carter estrutural e

    massivo no Brasil. O marco legal permite, no mximo, uma poltica de assentamentos,

    suscetvel a variaes de acordo com a conjuntura.

    Passada a batalha constitucional, o captulo seguinte da luta de classes no Brasil

    foi a eleio presidencial de 1989. Durante a campanha eleitoral, dos 22 concorrentes adisputa acabou polarizada entre Collor e Lula. Os movimentos populares voltaram s

    ruas, ao mesmo tempo em que greves pipocavam por todo o pas, exigindo reformas

    sociais profundas. Enquanto isso, foras empresariais e militares agitavam bandeiras

    como o anticomunismo, a modernizao do pas, a luta contra a corrupo e os

    21 O conceito de trabalho anlogo escravido designa uma relao de explorao i) na qual, porviolncia ou fraude, o trabalhador no consegue se desligar do patro, ii)quando obrigado a trabalhar

    contra sua vontade, iii)quando sujeito a condies desumanas de trabalho ou iv) forado a trabalhartanto que o seu corpo no suporta. A Organizao Internacional do Trabalho reconhece o conceitobrasileiro.

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 92

    privilgios do funcionalismo pblico. Uma campanha de terrorismo ideolgico foi

    orquestrada para afirmar a ideia de que o pas vivia uma guerra interna(DREIFUSS,

    1989: 266-294). O resultado eleitoral representou a derrota de um projeto democrtico-

    popular alimentado por uma dcada de lutas sociais no campo e nas cidades. Ao mesmo

    tempo tinha fim a guerra fria e emergia o Consenso de Washington.

    Neoliberalismo e poltica agrria nos governos Collor e Itamar

    O governo Collor (1990-92) deu incio ao neoliberalismo no pas. Entre outras

    medidas, promoveu uma poltica econmica que deteriorou severamente as condies

    de vida e de emprego no campo e nas cidades. Em nome do combate a privilgios na

    administrao pblica e da modernizao administrativa, avanou no desmantelamento

    do modelo de interveno do Estado na agricultura que havia operado at a dcada de

    1980, por meio da reduo drstica do volume de recursos para a poltica agrcola, da

    liquidao da poltica de estoques pblicos de alimentos, da abertura comercial

    unilateral e da extino da Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural.

    O INCRA permaneceu praticamente paralisado por falta de recursos, e para a sua

    direo foi indicado um latifundirio ligado UDR.

    O tratamento dado s lutas populares se resumiu represso e criminalizao.

    Alm disso, esse governo no efetuou nenhuma nova desapropriao para fins de

    reforma agrria, tanto pela falta de vontade poltica como pela ausncia de

    regulamentao dos dispositivos constitucionais. Por sua vez, os assentamentos

    existentes foram abandonados sua prpria sorte. Enquanto isso, o governo buscou

    estimular outros instrumentos de obteno de terras segundo a lgica mercantil, como a

    criao de bolsas de arrendamento. Por outro lado, em alguns poucos estados o bloqueio

    da esfera federal foi substitudo parcialmente pela ao pontual de governos estaduais,mediante o uso da desapropriao por utilidade pblica (que indeniza os proprietrios

    em dinheiro) e de terras pblicas estaduais para assentar famlias sem-terra. No raro,

    tais governos buscavam com isso neutralizar a presso social a eles direcionada e

    aumentar o seu capital poltico-eleitoral (MEDEIROS, 2002; FERREIRA et al., 2009).

    J o governo Itamar (1992-94) fez uma inflexo no tratamento aos movimentos

    sociais do campo. Pela primeira vez, um presidente da repblica se reuniu com

    representantes do MST, reconhecendo a organizao como interlocutor legtimo.Pessoas com trnsito e credibilidade entre movimentos sociais foram nomeadas para a

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    PEREIRA & ALENTEJANO

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 93

    direo do INCRA no incio de 1993. Alm disso, com a aprovao da Lei Agrria em

    maio do mesmo ano, os modestos dispositivos constitucionais sobre reforma agrria

    foram regulamentados, viabilizando a realizao de desapropriaes. O tema voltou a

    ter algum espao na agenda governamental, tanto pela presso dos movimentos sociais

    como pela sua associao com o combate fome. Porm, no contexto de

    implementao do Plano Real (programa de estabilizao monetria), presses polticas

    variadas dentro e fora do governo minaram a execuo desse tmido programa de

    reforma agrria. Assim, apenas 23 mil famlias foram assentadas em 152 projetos (cf.

    STDILE e FERNANDES, 1999; MEDEIROS, 2002; FERREIRA et al., 2009).

    A experincia do governo Cardoso (1995-2002)

    frente de um projeto radical de transnacionalizao da economia brasileira, o

    governo considerou o grande volume de capitais no mercado financeiro internacional

    como sinnimo do fim da restrio externa que marca o capitalismo dependente. Com

    isso, a poltica de gerao de saldos comerciais da dcada anterior foi abandonada

    (DELGADO, 2010: 92). Por outro lado, a enorme liquidez internacional, a manuteno

    de taxas de juros domsticas bastante elevadas e a sobrevalorizao cambial praticada

    at 1998 os trs pilares do sucesso do Plano Real , combinados com a

    liberalizao comercial unilateral e o desmonte do modelo de regulao da agricultura,

    provocaram efeitos drsticos no setor agrcola brasileiro. O volume de importaes

    agrcolas disparou, alcanando patamar sem precedentes (DELGADO, 2009: 20). Por

    outro lado, o declnio acentuado dos preos agrcolas no foi contrabalanado por

    polticas de sustentao de preos, impactando severamente a renda agrcola. Na

    agricultura familiar, fortemente golpeada, houve abandono de atividades e

    estabelecimentos em escala significativa.Quanto reforma agrria, o tema figurou de modo lateral na disputa eleitoral de

    1994. Ainda assim, os principais candidatos (Lula e Cardoso) se posicionaram a favor

    da medida, mas davam-lhe contedos distintos (CARVALHO FILHO, 2001). O

    programa de Lula considerava-a como uma poltica de carter estrutural e propunha o

    assentamento de 800 mil famlias sem terra em quatro anos, embora fosse vago a

    respeito da fonte de recursos para tanto. A desapropriao figurava como o principal

    instrumento de redistribuio de terras. De outro lado, o programa de Cardoso prometiaassentar 280 mil famlias em quatro anos, mas sem qualquer pretenso de mudana

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 94

    estrutural, tratando o assunto de forma assistencialista, como medida de alvio da

    pobreza rural.

    Entretanto, a confluncia de trs fatores durante os anos de 1995-97 contribuiu

    para alterar radicalmente a conjuntura agrria. O primeiro foi a repercusso nacional e

    internacional alcanada pela violncia policial contra as aes de trabalhadores rurais

    em Corumbiara, em agosto de 1995, e principalmente em Eldorado dos Carajs, em

    abril de 1996. Ambos os episdios resultaram em dezenas de trabalhadores mortos e

    alimentaram uma srie de protestos no Brasil como no exterior contra a violncia no

    campo e a favor da reforma agrria.

    O segundo fator foi o aumento das ocupaes de terra em praticamente todo o

    pas. O MST era a fora organizativa principal desse processo, mas em alguns estados

    sindicatos ligados CONTAG tambm cumpriam esse papel. Em particular, ganharam

    visibilidade as ocupaes no Pontal do Paranapanema regio caracterizada pela

    grilagem de terras pblicas localizada no estado de So Paulo. Diversas lideranas do

    MST foram presas e a tenso social aumentou com a violncia da polcia e de grupos

    armados a servio de latifundirios.

    Outro fator decisivo foi a realizao bem-sucedida da Marcha Nacional por

    Reforma Agrria, Emprego e Justia. Organizada pelo MST, a marcha durou trs

    meses e saiu de diversos pontos do pas, chegando capital em 17 de abril de 1997, um

    ano depois do massacre em Eldorado dos Carajs. Apesar do descaso das autoridades e

    da campanha de desqualificao dos grandes meios de comunicao, a marcha

    conseguiu furar o bloqueio miditico e ganhar a simpatia de parte da opinio pblica

    urbana. Aos sem terra se somaram, ento, os sem teto, os sem emprego, entre

    outros, reunindo cerca de cem mil pessoas nas ruas de Braslia na primeira manifestao

    de massas contra as polticas neoliberais.

    Tais acontecimentos no apenas deram alta visibilidade s ocupaes de terra e bandeira da reforma agrria, como tambm projetaram o MST na cena poltica nacional

    e internacional. quela altura, esse movimento j no podia mais ser tratado como

    simples caso de polcia, nem ignorado em suas reivindicaes.

    A resposta do governo federal veio logo aps o massacre de Eldorado dos

    Carajs, com a criao do Ministrio Extraordinrio de Poltica Fundiria (MEPF). O

    MEPF incorporou o INCRA at ento subordinado ao Ministrio da Agricultura e

    ambos foram ligados diretamente Presidncia da Repblica (MEDEIROS, 2002). O

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    PEREIRA & ALENTEJANO

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 95

    MEPF realizou um conjunto de iniciativas, com o objetivo de aliviar as tenses no

    campo e debilitar a ascenso poltica do MST.

    Em primeiro lugar, logo em 1996 fez alteraes no Imposto Territorial Rural

    (ITR), alegando que promoveria uma reforma agrria mediante tributao progressiva.

    No deu certo, dada a fora poltica dos latifundirios no Estado, e a evaso fiscal

    continuou bastante elevada (90% em 1997), mas muita propaganda foi feita.

    Em segundo lugar, em junho de 1997, uma srie de medidas foi tomada no

    sentido de agilizar o processo de desapropriao, baratear as indenizaes aos

    proprietrios e acelerar o assentamento de famlias (MEPF, 1998). Nem todas foram

    aplicadas e algumas no surtiram efeito relevante, mas sinalizava-se com isso a

    preocupao do governo em acelerar a sua capacidade de resposta presso social

    (MEDEIROS, 2002).

    Em terceiro lugar, iniciou-se a desfederalizao da reforma agrria, transferindo

    para estados e municpios a competncia para conduzir os processos de obteno de

    terras e assentamento, convertendo-os em objetos de barganha negociados localmente

    (MEPF, 1997). Tal poltica contrariava a posio de todas as organizaes camponesas,

    que sempre reivindicaram a federalizao do tema. Alm disso, combinada com outras

    medidas, permitia a incorporao de entidades sindicais e exclua o MST da

    participao em algumas polticas pblicas, dividindo o universo das organizaes

    camponesas e fomentando a sua concorrncia mtua.

    Tais iniciativas se davam num contexto de represso s lutas sociais no campo,

    mediante o recurso Polcia Federal para monitorar os sem terra, a realizao de

    despejos de ocupantes de forma truculenta e ilegal e a priso de lideranas. At a

    extrema direita agrria voltou a se rearticular em algumas regies, mobilizando

    instrumentos privados de violncia, com frequncia reforados pela polcia e pelo

    Judicirio estaduais (CARVALHO FILHO, 2001). Abertamente, entidades patronaispregavam o uso da fora contra as ocupaes.

    Ao mesmo tempo, os principais veculos de comunicao passaram a disseminar

    uma imagem positiva do governo Cardoso em relao reforma agrria e uma imagem

    negativa dos movimentos sociais, em particular do MST. Em geral, a mdia contrastava

    os dados oficiais que exaltavam e tambm inflavam o aumento do nmero de

    famlias assentadas, enquanto os sem terra e o MST eram associados a baderna,

    violncia, corrupo e no vocao para a agricultura.

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    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 96

    Por fim, o governo deu incio reforma agrria assistida pelo mercado

    RAAM (BINSWANGER e VAN ZYL, 1996). Propagada pelo BIRD, tal proposta

    prescrevia a concesso de financiamento para trabalhadores rurais pobres comprarem

    terras negociadas de maneira voluntria e direta com os proprietrios. Por essa transao

    patrimonial os proprietrios seriam pagos previamente em dinheiro a preo de mercado,

    enquanto os compradores assumiriam os custos de aquisio da terra. Junto com o

    emprstimo, os compradores receberiam uma quantia varivel de subsdio para

    investimentos em infraestrutura e produo. Esse mecanismo estimularia a barganha

    pelo imvel, pois quanto menor fosse o preo da terra, mais recursos sobrariam para

    investimentos. Em outras palavras, a RAAM constitua uma operao de compra e

    venda de terras entre agentes privados financiada pelo Estado, acrescida de subsdio

    varivel. Politicamente, tal modelo se inseriu nas estratgias de alvio da pobreza rural

    do BIRD complementares s polticas de ajuste macroeconmico.

    Para os tcnicos do BIRD, o Brasil oferecia condies ideais para a RAAM,

    porque estava em curso uma poltica econmica que impactava regressivamente o

    tecido social rural, existia enorme demanda por terra e havia uma tendncia de queda do

    preo dos imveis rurais em algumas regies. Por sua vez, pelo lado do governo, era

    preciso no apenas responder ao aumento da presso social por terra, mas tambm

    pautar a maneira pela qual a questo agrria deveria ser processada poltica e

    institucionalmente. Foi essa convergncia de interesses que possibilitou a introduo da

    RAAM no Brasil (PEREIRA, 2007 e 2010).

    O primeiro projeto desse gnero comeou em agosto de 1996 no estado do

    Cear. Dessa pequena experincia nasceu o projeto-piloto Cdula da Terra (PCT),

    estendendo-a para os outros quatro estados, por meio de novo emprstimo aprovado

    pelo BIRD em abril de 1997. O PCT financiaria a compra de terras por 15 mil famlias

    em 4 anos, mas a expectativa era posteriormente financiar um milho de famlias em atseis anos (BIRD, 1997). O Nordeste foi escolhido como alvo, pois l se concentrava a

    populao rural pobre do pas. Desse modo, diante de uma elevada demanda por terra,

    estimava-se que sua implantao ocorreria rapidamente. O projeto financiava a compra

    de qualquer imvel rural, inclusive aqueles passveis de desapropriao, e foi criticado

    pelo MST e pela CONTAG como expresso do neoliberalismo e incapaz de

    democratizar a estrutura agrria.

    Enquanto isso, a maioria governista aprovou no Congresso em fevereiro de 1998a criao do Banco da Terra. Tratava-se de um fundo pblico capaz de captar recursos

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    PEREIRA & ALENTEJANO

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 97

    de diversas fontes, inclusive internacionais, para financiar a compra de terras por

    trabalhadores rurais (MEPF, 1999). Ou seja, sem qualquer avaliao sobre as

    experincias em curso e contra a posio de todos os movimentos de trabalhadores

    rurais, o Congresso aprovou a criao de um instrumento para viabilizar a

    implementao da RAAM em escala nacional.

    O governo federal fez uso de intensa propaganda para divulgar as supostas

    vantagens do novo modelo, ao mesmo tempo em que as ocupaes de terra eram

    criminalizadas. Baseada na ideia de acesso negociado e sem conflitos, a propaganda

    foi direcionada tanto para o pblico mobilizado em ocupaes e acampamentos, como

    para o potencialmente mobilizvel. Tratava-se, assim, de premiar os que optassem

    pela transao de mercado em detrimento dos que ocupavam terras e acampavam s

    margens de rodovias.

    Concomitantemente, em resposta presso dos movimentos sociais que

    reivindicavam uma poltica pblica de educao nos assentamentos de reforma agrria,

    o governo federal criou em abril de 1998 o Programa Nacional de Educao na Reforma

    Agrria (PRONERA). Voltado inicialmente para a alfabetizao de jovens e adultos, o

    programa teve depois as suas atividades estendidas para a formao tcnica e os nveis

    fundamental, mdio e superior de ensino. Os recursos alocados para financi-lo, porm,

    foram baixos.

    O segundo mandato de Cardoso se iniciou em 1999 com a crise do Plano Real e

    a adoo de um programa de ajuste fiscal acordado com o FMI. Nesse contexto, a

    poltica de ajuste externo se alterou novamente. Retomando a estratgia abandonada em

    1994, implementou-se a poltica de gerao de saldos comerciais externos para suprir o

    dficit em conta-corrente. Tal como havia ocorrido na crise de 1982, os setores

    primrio-exportadores foram acionados para gerar esse saldo. Nesse momento, uma

    palavra ecoou com fora na grande mdia: agronegcio. Termo genrico criado edifundido por entidades patronais especialmente a ABAG22, o agronegcio foi

    ento alado posio de salvador da economia brasileira. Numa interpretao

    crtica, porm, agronegcio designa uma associao do grande capital agroindustrial

    com a grande propriedade fundiria. Essa associao realiza uma aliana estratgica

    22 A Associao Brasileira de Agribusiness (ABAG) foi criada em 1993 por lderes da OCB, com o

    objetivo de articular todas as demais entidades patronais rurais. A entidade teve papel central na difusoda noo de agronegcio como um setor da economia marcado por atributos como vocao, excelnciatcnica e modernidade. A ABAG agrega entidades muito variadas, como bancos pblicos e privados e os

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 98

    com o capital financeiro, perseguindo o lucro e a renda da terra, sob patrocnio de

    polticas de Estado(DELGADO, 2010: 93).

    A estratgia de governo adotada consistia na combinao de quatro iniciativas:

    a)o investimento prioritrio em infraestrutura territorial para criar economias externas,

    meios de transporte e vias de escoamento para o exterior; b)a reorganizao do sistema

    pblico de pesquisa agropecuria para sintoniz-lo com as demandas das grandes

    empresas agroindustriais; c)a baixa regulao do mercado de terras, a fim de viabilizar

    o controle privado sobre recursos fundirios necessrios expanso da agropecuria; d)

    a desvalorizao cambial, que elevou a rentabilidade do setor exportador (DELGADO,

    2010: 94).

    Ao lado dessa estratgia, o governo se concentrou em: a) descentralizar o

    programa de reforma agrria para estados e municpios; b) terceirizar e privatizar

    atividades e servios tcnicos vinculados aos assentamentos (como assistncia tcnica);

    c) titular os assentados em trs anos, a fim de lhes cobrar pelo imvel rural

    desapropriado; d)transferir para os assentados o nus de diversas atribuies antes da

    competncia do INCRA (como topografia, demarcao de lotes, etc); e) manter o

    programa de reforma agrria como poltica de alvio da pobreza rural, sem pretenses de

    mudana estrutural; f)reprimir as ocupaes de terra e estrangular economicamente o

    MST, vetando a liberao de recursos pblicos para atividades com ele relacionadas;g)

    implementar a RAAM em larga escala, por meio do Banco da Terra (cf. MEPF, 1999 e

    1999a; ALENTEJANO, 2000).

    Diante da represso s lutas por terra e da implantao da RAAM, os

    movimentos de trabalhadores rurais buscaram maior unidade poltica no Frum

    Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo.23O Frum encaminhou em outubro

    de 1998 um pedido de investigao ao Painel de Inspeo do BIRD, com uma srie de

    crticas e denncias contra o PCT. Em maio de 1999, o Painel julgou improcedentestodos os argumentos do Frum e no recomendou diretoria do BIRD a investigao

    solicitada. O governo brasileiro usou tal recusa como prova da eficincia do projeto.

    Trs meses depois, com base em documentos que continham inmeras irregularidades e

    indcios de corrupo na gesto do PCT, o Frum solicitou nova investigao ao Painel,

    recebendo nova resposta negativa (SAUER e WOLFF, 2001).

    maiores veculos de comunicao do pas, o que ilustra o grau de ramificao do agronegcio. Cf.Mendona (2011: 214-215).

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    PEREIRA & ALENTEJANO

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 99

    Foi ento que a direo da CONTAG decidiu negociar com o BIRD e o governo

    federal a criao de um novo programa de crdito fundirio, semelhante aos anteriores,

    mas com algumas modificaes. A partir de ento, a CONTAG continuou a classificar o

    PCT e o Banco da Terra como RAAM, mas passou a diferenci- los do seu programa,

    considerando-o uma linha de crdito complementar reforma agrria. Com isso, o

    emprstimo do BIRD prometido para o Banco da Terra foi redirecionado para o novo

    programa. A unidade poltica do Frum contra a implantao da RAAM se quebrou e,

    aps embates internos, esse tema foi abandonado.

    Diversas avaliaes mostraram a incapacidade da RAAM promover o

    desenvolvimento econmico e a justia social no campo no Brasil e em outros pases,

    razo pela qual esse modelo no substitui uma reforma agrria redistributiva (BORRAS,

    2007; SAUER, 2009; PEREIRA, 2007, 2010 e 2012). Mesmo com melhorias tcnicas

    que aperfeioassem programas desse gnero aumentando, p.ex., mecanismos de

    participao e transparncia por meio da mediao sindical, tais medidas no seriam

    suficientes para superar os limites estruturais desse modelo, como a dependncia da

    oferta de terras por parte de proprietrios e a incapacidade de democratizar a estrutura

    fundiria e alcanar escala social, dado o pagamento prvio em dinheiro e a preo de

    mercado.

    Em 2001-02, o governo Cardoso realizou duas aes importantes. A primeira foi

    o cadastramento de solicitaes de acesso terra nas agncias dos correios de todo pas.

    Mediante intensa propaganda nos meios de comunicao, a campanha prometia uma

    reforma agrria sem conflitos. O nmero de pessoas cadastradas chegou a 839.715,

    mas no h notcia de que alguma tenha sido assentada. A segunda ao consistiu na

    proibio por dois anos de vistoria pelo INCRA de reas ocupadas, o que inviabilizava a

    concluso dos processos de desapropriao.

    Se, enquanto categoria poltica, os sem terra ganharam notoriedade ao longodos anos noventa, mais impacto teve a dos agricultores familiares. Alguns fatores

    foram decisivos para a sua emergncia, entre os quais: a)o aumento da diferenciao

    social do trabalho na agricultura; b)o declnio do peso poltico dos assalariados rurais;

    c)as disputas no interior do movimento sindical de trabalhadores rurais, particularmente

    entre a CONTAG e o DNTR-CUT; d)a avaliao sobre os efeitos da modernizao da

    agricultura e do neoliberalismo e a convico crescente da necessidade de um modelo

    23O Frum foi criado em 1995 e congregava quela altura mais de 30 organizaes, entre as quais MST eCONTAG.

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    TERRA, PODER E LUTAS SOCIAIS NO CAMPO BRASILEIRO: DO GOLPE APOTEOSE DOAGRONEGCIO (1964-2014)

    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 100

    alternativo de desenvolvimento rural, mais democrtico e inclusivo, porm nos

    marcos do capitalismo; e)a reflexo no interior do movimento sindical sobre o papel da

    agricultura familiar no desenvolvimento, tomando como referncia principal a

    experincia europia (FAVARETO, 2006; MEDEIROS, 2001 e 2010).

    As mobilizaes conduzidas pela CONTAG e pelo DNTR-CUT e a progressiva

    convergncia entre elas resultaram na filiao da CONTAG CUT em 1995, levando

    extino do DNTR. Resultaram tambm na criao do Programa Nacional de

    Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), em 1996, consagrando como

    categoria poltica os agricultores familiares24. A difuso dessa categoria reconfigurou

    os termos do debate sobre polticas pblicas de produo, comercializao, crdito,

    agroindustrializao, cooperativismo, alm da prpria reforma agrria que perdeu

    centralidade na pauta do movimento sindical. Contudo, as divergncias entre o

    sindicalismo cutista e o contaguiano prosseguiram numa disputa permanente em torno

    da condio de porta-voz do conjunto da agricultura familiar (MEDEIROS, 2010;

    PICOLOTTO, 2011).

    Por outro lado, a fora que tal categoria adquiriu no plano da identidade poltica,

    catapultada pelo reconhecimento estatal, somou-se ao seu deslizamento para a anlise

    do mundo rural, resultando no abandono do conceito de campesinato durante os anos

    1990. O MST e a Via Campesina se ocuparam de resgatar esse conceito como

    identidade poltica e instrumento de anlise durante a dcada de 2000, ora de forma

    complementar, ora de forma concorrente ao conceito de agricultura familiar,

    dependendo do antagonista, o que claramente denota a existncia de uma disputa pela

    representao de segmentos do mundo do trabalho rural e pela forma de categoriz-lo

    (VIA CAMPESINA, 2002; MEDEIROS, 2010; MST, 2013).

    Os governos Lula (2003-10) e Dilma (2011-14)

    A vitria de Lula nas eleies de 2002 foi um marco na histria brasileira. Aps

    trs derrotas, o candidato do PT finalmente chegava presidncia da repblica, apoiado

    24Posteriormente, a lei n 11.326/2006 definiria o agricultor familiar como o produtor que no possui reasuperior a quatro mdulos fiscais e utiliza mo-de-obra majoritariamente familiar nas atividades doestabelecimento, retirando delas a sua renda principal e dirigindo-as com a sua famlia. Vale ressaltar que

    o IBGE incorporou a definio de agricultura familiar da referida lei, o que pela primeira vez permitiuidentificar no censo agropecurio (realizado a cada dez anos) de 2006 o seu tamanho e a sua distribuioespacial. Porm, categorias como agronegcio ou agricultura patronal no tm definio oficial.

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    PEREIRA & ALENTEJANO

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    por uma ampla coalizo poltica que inclua foras populares e conservadoras. A

    esperana venceu o medo, afirmava o marketingde Lula, j eleito, sinalizando uma

    mudana de rota aps mais de uma dcada de neoliberalismo. Porm, os compromissos

    de campanha, a promessa de que no haveria ruptura de contratos, a composio dos

    ministrios, o perfil da base de apoio no Congresso, as primeiras medidas adotadas

    como uma reforma da previdncia social regressiva em direitos e, sobretudo, a

    poltica econmica implementada, logo evidenciaram que no haveria ruptura na

    estrutura de poder do pas.

    Ainda assim, o incio do governo foi marcado por enorme expectativa por parte

    de trabalhadores e movimentos sociais pela realizao de uma efetiva reforma agrria.

    Apostando na ao governamental, o nmero de ocupaes e de famlias acampadas

    organizadas pelo MST disparou, recolocando a questo no centro da agenda poltica.

    Pessoas indicadas pela organizao foram nomeadas para a direo do INCRA.

    A reao patronal foi imediata, sob a forma de violncia contra trabalhadores e

    ativistas, que voltou aos patamares dos anos 1980 (IPEA, 2011: 238). O Poder

    Judicirio tambm foi acionado nos estados, exarando ordens de prises e aes de

    despejo de reas ocupadas, chegando a nmeros recordes. Uma campanha nos

    principais meios de comunicao criminalizava os movimentos sociais, em particular o

    MST, e acusava duramente o governo federal de omisso ou conivncia.

    Enquanto isso, por encomenda do governo, uma equipe de pesquisadores

    coordenada por Plnio de Arruda Sampaio elaborava uma proposta de Plano Nacional de

    Reforma Agrria. Baseada em estudos consistentes, a proposta mostrou a existncia de

    terra disponvel para a reforma agrria em todos os estados da federao, contrariando o

    discurso das entidades patronais rurais. Alm disso, a proposta evidenciou a existncia

    de uma demanda potencial estimada em seis milhes de famlias sem terra ou

    minifundirias, uma demanda emergencial de cerca de 180 mil famlias acampadas euma demanda explcita da ordem de 1 milho de famlias, constituda pelo pblico

    registrado nos correios em 2001 e pelos acampados. A proposta, ainda, estabelecia a

    meta de um milho de famlias assentadas entre 200407 e retomava a ideia de reas

    reformadas,com o objetivo de superar o carter pontual da poltica de assentamentos e

    promover sinergia entre polticas pblicas (crdito, sade, educao, infraestrutura, etc).

    Assim, para o IBGE, os estabelecimentos agropecurios que no se encaixam na definio de agriculturafamiliar so simplesmente etiquetados como agricultura no-familiar.

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    Tempos Histricos Volume 18 1 Semestre de 2014 p.73 - 111 102

    O custo e os meios de financi-la tambm foram expressamente detalhados, reafirmando

    a sua viabilidade.

    A proposta foi entregue ao governo em outubro de 2003 e contava com o apoio

    total dos movimentos de trabalhadores rurais. O governo federal, porm, rejeitou o

    documento e, em seu lugar, anunciou o II PNRA, com metas muito menores. Alguns

    dias antes o presidente do INCRA e sua equipe (indicados pelo MST) j haviam sido

    demitidos, em nome da governabilidade.

    Entre outras metas, o II PNRA previa at 2006 o assentamento de 400 mil novas

    famlias; a regularizao da posse de 500 mil famlias; a extenso do crdito fundirio

    para 130 mil famlias por meio do recm criado Programa Nacional de Crdito

    Fundirio (PNCF), financiado pelo BIRD; fornecimento de assistncia tcnica,

    capacitao, crdito e polticas de comercializao para todos os assentados em reas de

    reforma agrria; a promoo da igualdade de gnero nos assentamentos; titulao de

    terras em posse de remanescentes de quilombos. Previa-se tambm a atualizao dos

    ndices de produtividade da agropecuria.25

    Mesmo com metas modestas e inferiores s da proposta recusada pelo governo,

    o desempenho do II PNRA ficou aqum do anunciado. o que se pode depreender das

    tomadas de posio dos principais interessados no assunto. Em carta entregue ao

    presidente Lula em outubro de 2005, o MST criticou a poltica agrria em curso,

    denunciando o descumprimento das metas de assentamento, o abandono de milhares de

    famlias acampadas e a no atualizao dos ndices de produtividade. Ao mesmo tempo,

    criticava o apoio poltico e financeiro dado ao agronegcio.

    Em maro de 2006, seis o