tereza cristina nascimento frança tese apresentada como requisito final … · 2017-11-22 ·...

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SELF MADE NATION: DOMÍCIO DA GAMA E O PRAGMATISMO DO BOM SENSO Tereza Cristina Nascimento França Tese apresentada como requisito final para a obtenção do título de Doutor em Relações Internacionais. Área de concentração: História das Relações Internacionais do Brasil Professor Orientador: Amado Luiz Cervo Brasília 2007

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UNIVERSIDADE DE BRASLIA

INSTITUTO DE RELAES INTERNACIONAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO

SELF MADE NATION:

DOMCIO DA GAMA E O PRAGMATISMO DO BOM SENSO

Tereza Cristina Nascimento Frana

Tese apresentada como requisito final para a obteno do ttulo de Doutor em Relaes Internacionais.

rea de concentrao: Histria das Relaes Internacionais do Brasil

Professor Orientador: Amado Luiz Cervo

Braslia

2007

ii

AGRADECIMENTOS

Bertrand Russel em sua autobiografia destacou um espao reservado aos afetos

e busca do conhecimento. E, como ele, eu tambm no ousaria no privilegiar este

espao ainda mais com uma pesquisa que se estendeu por quase treze anos e que me

proporcionou a oportunidade de conhecer um largo nmero de pessoas de vrios lugares

do mundo. Um tempo que pareceu por vezes longo, outros curtos demais, mas em que

eu aprendi muito. Um tempo em que muitas vezes eu tive a impresso de estar olhando

a vida por cima do ombro de outrem... Destarte, permito-se proferir vrios

agradecimentos e pedir desculpas se algum no foi lembrado.

Ao Arquivo Histrico do Itamaraty: a Isabel Regina Pessoa Correia, pela

amizade e pela compreenso, ao Sr. Sebastio, pela pacincia infinita com as listas

interminveis de pastas de pesquisa, ao embaixador Joo Hermes da Fonseca, pela

presteza, pelas conversas e pelo memorvel passeio ao museu, e ao diretor lvaro da

Costa Franco.

Academia Brasileira de Letras, em especial a Alberto da Costa e Silva, pelo

apoio institucional e pela ajuda no acesso aos arquivos; a Alberto Venncio Filho, pela

excelncia das conversas; a Luiz Antonio de Souza, pela presteza, conhecimento e

disposio pessoal; a Maria Oliveira e Paulino Leme, pela pacincia e ajuda nos

arquivos. A Luciano de Faro Mendes de Almeida, fotgrafo do quadro de Domcio da

Gama disponvel no salo da Academia Brasileira de Letras, pela permisso dada para

mostrar a sua foto do quadro de Domcio da Gama.

Fundao Joaquim Nabuco, pela permisso de utilizao dos documentos do

seu arquivo; ao Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, biblioteca da Notre Dame

University, Lima Library; Secretaria de Educao de Petrpolis, atual ocupante da

casa do baro do Rio Branco, no somente por haver me granjeado a entrada, como

tambm pela permisso para fotografar a casa.

Aos meus professores: Regina Wanderley, um dos mais importantes e

constantes apoios da minha vida profissional; a Niclio Csar Tonelli, in memoriam; ao

professor Francisco Luiz T. Vinhosa, cuja sugesto de procurar a UnB foi fundamental

para todo o desenrolar deste trabalho, pois foi graas a ela que embarquei nesta viagem;

iii

ao Prof. Dr. Jos Flvio Sombra Saraiva, por sua generosidade em permitir que eu

trabalhasse a seu lado em sala de aula; ao Professor Antonio Augusto Canado

Trindade, pelo incentivo aos estudos jurdicos;

banca de avaliao desta tese: Profa. Dra. Tnia Maria Gomes Pechir

Manzur, Prof. Dr. Antonio Lessa, Prof. Dr. Estevo Chaves Rezende Martins, Prof. Dr.

Clodoaldo Bueno, Prof. Dr. Eugnio Vargas Garcia, pela participao. Ao meu mui

querido orientador, Prof. Dr. Amado Luiz Cervo, especialmente por haver apostado em

mim, mesmo sem me conhecer. Alm de ser um profissional mpar, o respeito que voc,

Amado, tem por seus alunos um exemplo que procurarei seguir ao longo de toda a

minha vida profissional.

funcionria Odalva, pela sua amizade e carinho. E atravs dela, aos demais

funcionrios da ps-graduao. Aos meus alunos, de vrios lugares, no somente pela

presena durante o processo de escrita, como tambm pela ajuda na pesquisa ou mesmo

interesse no tema.

Aos amigos. No nomearei a todos porquanto abarcam vrios lugares do

mundo. Mas guardo na lembrana diversas manifestaes de carinho acompanhadas da

pergunta corriqueira e indefectvel: Como vai o Domcio? Em especial, me permito

nomear Carlos Eduardo Vidigal e Denise Lcia Camatari Galvo. Ao Vidigal pelas

reunies de trabalho para compartilhar idias, surtos, e principalmente pela troca de

experincias sobre os respectivos trabalhos passados, atuais e futuros. Apesar da

distncia temporal das nossas teses, criamos uma boa parceria argentina. Denise, pela

pacincia auditiva, ajuda na leitura, na correo e pelo apoio.

famlia, pela compreenso e pacincia infinitas desde quando optei por

embarcar nas searas dos muitos livros que sempre fui juntando. O apoio de vocs

sempre foi a minha pedra fundamental. Sem o seu suporte no teria havido estrutura

para nada. A Deus.

iv

Dedico esta tese a Domcio da Gama, cuja viso de histria coincide com a minha: Desde o segredo da vaga cochichado ao ouvido at ao clamor dos turbilhes raivosos, escuto e entendo a voz do mar que a Histria.

minha me, flor da minha vida.

v

SUMRIO

Agradecimentos ..................................................................................................................... ii

Abreviaturas utilizadas ......................................................................................................... ix

Lista de Figuras ...................................................................................................................... x

Resumo ................................................................................................................................. xi

Abstract ................................................................................................................................ xii

Introduo .............................................................................................................................. 1

Captulo 1 Domcio da Gama: Do Ambiente e Influncias Individualidade ................... 4

1.1 - O tempo da histria: o papel da biografia na Histria-Memria 4

1.1.2 Esquadrinhando a Zona de Penumbra 12

1.1.3 - O Recinto Pblico e o Privado 18

1.2 - O Indivduo Domcio da Gama 21

1.2.1 - Aprendizado informal: Influncias de Raul Pompia e Capistrano de Abreu 28

1.2.2 - Na rota do Tagus: Queirz, Prado e Rio Branco 32

1.3 - Da Literatura Diplomacia 42

1.3.1 - A Repblica e a reao dos brasileuropios 47

Captulo 2 Uma Questo de Fronteiras: Domcio da Gama entre a Literatura e a

Diplomacia ........................................................................................................................... 54

2.1 - A Questo de Palmas 57

2.1.1 - Da Escolha dos Integrantes para a Misso Brasileira em Washington 63

2.1.2 - A Nomeao de Domcio da Gama para a Misso de Palmas 66

2.2 Entre a Academia Brasileira de Letras e o Ministrio das Relaes Exteriores 83

2.2.1 - A Cadeira 33 90

2.2.2 - O Exame de Entrada no Ministrio das Relaes Exteriores 98

2.3 Aposentadoria de Joo Chinchila? 102

2.3.1 - Secretariar o Baro no Itamaraty ou Permanecer na Europa? 110

vi

Captulo 3 Domcio da Gama e o Gabinete de Petrpolis .............................................. 122

3.1 A Funo de Domcio da Gama no Gabinete de Petrpolis 127

3.1.1 A Questo Acreana 132

3.1.2 O Tratado de Petrpolis 142

3.2 Os Mosqueteiros Intelectuais de Rio Branco 149

3.3 A Movimentao do Meio Diplomtico e a Reforma da Secretaria 156

Captulo 4 Fim do In Partibus: Domcio da Gama na Repblica do Peru ..................... 162

4.1 O Longo Fim do In Partibus 162

4.1.1 - No Compasso da Questo Acreana 170

4.1.2 - Fatuidades Humanas em torno da Legao de Lima 179

4.2 Enviado Extraordinrio e Ministro Plenipotencirio no Peru 185

4.2.1 - A Cadncia das Negociaes Tratadsticas 192

4.3 Tecendo Relaes Humanas 198

Captulo 5 Conseqncias do Sistema do Bombo: Domcio da Gama e as Antinomias

Argentinas de 1908 ............................................................................................................ 203

5.1 O Sistema do Bombo e o Equilbrio Regional 203

5.1.2 Um Crescendo de Hostilidades Regionais: O Longo Ano de 1908 212

5.2 Domcio da Gama na Argentina 225

5.2.1 O Fator Estanislao Zeballos 232

5.2.2 As Foras Profundas de um Sforzando: O Telegrama n 9 versus o Tratado

Geral de Arbitramento 236

5.3 O Incidente Gama-La Plaza no Jockey Club de Buenos Aires 249

5.3.1 Em Busca do Diminuendo: A Diplomacia da Franqueza versus a Diplomacia da

Desconfiana 260

Captulo 6 Self Made Nation: Gnese e Legado do pensamento diplomtico de

Domcio da Gama .............................................................................................................. 271

6.1 O Self Made Nation de Domcio da Gama 277

6.1.1 Estados Unidos da Amrica: Dois embaixadores, duas vises 282

6.2 O Caso da valorizao do Caf 288

6.2.1 Da morte do baro do Rio Branco ascenso de Lauro Mller 296

6.2.2 Domcio da Gama e Lauro Mller 300

vii

6.4 O Self Made Nation na Pan American Society 311

6.4.1 A Dimenso poltica de Domcio da Gama 315

6.4.2 - A Projeo das Idias de Domcio da Gama 326

Concluses ......................................................................................................................... 331

Anexos: .............................................................................................................................. 337

A) Cronologia de Domcio da Gama 337

B) Conveno Especial de Commercio, Navegao Fluvial, Extradio e Limites

Brasil e Peru assinado em 23 de outubro de 1851. 342

C) Tratado de 1885 344

D) Decreto especial do presidente Jurez Celman de 3 de dezembro de 1889,

reconhecendo a Repblica brasileira 345

E) Tratado de Montevidu 25 de janeiro de 1890 346

F) Laudo Arbitral de 1895 Brasil/ Argentina 348

G) O Tratado de Petrpolis, ou Permuta de territrios e outras compensaes entre o

Brasil e a Bolvia, foi assinado em 17 de novembro de 1903. 350

H) Verso do telegrama numero 9 publicada nos jornais argentinos em 30 de outubro

de 1908 354

I) O telegrama numero 9 apresentado pelo Brasil ao governo argentino e aos jornais

argentinos 355

J) Tratado da Lagoa Mirim Brasil/Uruguai de 30 de outubro de 1909 357

Fontes e Bibliografia: ......................................................................................................... 361

A) Fontes Primrias ........................................................................................................... 361

Arquivos da Academia Brasileira de Letras Rio de Janeiro 361

Arquivo Histrico do Itamaraty Rio de Janeiro 363

Arquivos da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro 365

Arquivos da Fundao Joaquim Nabuco(FJN). Recife. 366

Arquivos do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) Rio de Janeiro. 367

Arquivo da Catholic University of America (CUA) Washington. 374

Domcio da Gama 374

B) Fontes Impressas ........................................................................................................... 374

viii

Anais Brasileiros 375

Anais Norte-americanos 375

Artigos e pginas da Internet 376

C) Referncias bibliogrficas ............................................................................................. 380

D) Teses e dissertaes ...................................................................................................... 393

E) Entrevistas e Palestras ................................................................................................... 394

F) Documentario ................................................................................................................ 394

ix

ABREVIATURAS UTILIZADAS

ABL Academia Brasileira de Letras

ACD Arquivo da Cmara dos Deputados

ACN Arquivo do Congresso Nacional

ADG Arquivo Domcio da Gama

AGA Arquivo Graa Aranha

AHI Arquivo Histrico do Itamaraty

ALN Arquivo da Liga das Naes

AN Arquivo Nacional

APBRB Arquivo particular do baro do Rio Branco

ASGA Arquivo Sylvino Gurgel do Amaral

ASF Arquivo do Senado Federal

BN Biblioteca Nacional

CCN Coleo Coelho Netto

CDG Coleo Domcio da Gama

CUA Catholic University of Amrica

FCRB Fundao Casa de Rui Barbosa

FUNDAJ Fundao Joaquim Nabuco

IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

MDB Misses Diplomticas Brasileiras

NARA National Archives and Records Administration

PRO Public Record Office - Londres.

x

LISTA DE FIGURAS

Grfico 1 Grfico da Produo intelectual de Domcio da Gama.

Mapa 1 Arquivos da Diplomacia Brasileira - Mapas Histricos. A questo de Palmas.

Mapa 2 Mapa da Linha Verde - FONTE: GOES, Synsio Sampaio. Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas Aspectos da descoberta do continente da penetrao do territrio brasileiro extra-Tordesilhas e do estabelecimento das fronteiras da Amaznia. Pg. 136.

Foto 1 Foto tirada em Petrpolis na ocasio da assinatura do tratado de Petrpolis.

Foto 2 Foto tirada pela autora em ocasio de uma visita casa da Westphalia, em Petrpolis.

Mapa 3 Proposta de Hernn Velarde sobre as trs zonas.

Foto 3 Frete e verso do telegrama n 9 enviado por Lisboa legao brasileira em Buenos Aires.

Foto 4 Contedo do telegrama n 9 recebido pela Legao brasileira em Buenos Aires.

Foto 5 New York Herald, 28 de maio de 1912.

Foto 6 Charge sobre Domcio da Gama.

Foto 7 e 8 Domcio da Gama.

Foto 9 Foto tirada por ocasio de uma visita Exposio Universal de Paris em 1889. Sentados, da esquerda pra direita: o baro do Rio Branco, Eduardo Prado, SantAnna Nery e Ramalho Ortigo. Em p: Domcio da Gama, visconde de Cavalcanti, Ladislau Neto, o baro do Estrela e o baro de Albuquerque

Foto 10 e 11 Domcio da Gama com a famlia de Ea de Queiroz, e com Ea.

Foto 12 Legao brasileira em Londres: Sentados: Graa Aranha, Joaquim Nabuco e Manoel de Oliveira Lima. Em p: Sylvino Gurgel do Amaral e Domcio da Gama

Foto 13 Equipe da Questo de Palmas.

Foto 14 Jantar oferecido pelo baro do Rio Branco a Domcio da Gama por ocasio de sua partida para os Estados Unidos da Amrica.

Foto 15 Domcio da Gama por volta dos vinte anos.

Foto 16 Retrato de Domcio da Gama que est na sala do Baro no Palcio Itamaraty.

Foto 17 Duas das ltimas fotos de Domcio da Gama

Foto 18 Telegrama n 9 apresentado pelo Brasil ao governo argentino e aos jornais argentinos.

xi

RESUMO

Domcio da Gama foi um diplomata que zelou pelos interesses do Brasil de

modo muito particular. Guiado por sua prpria norma de conduta, entendia que, caso

fosse necessrio, deveria estragar a sua prpria situao em nome dos interesses

nacionais. Vigilante e atento a tudo o que interessava ao Brasil, foi, antes de tudo, uma

pessoa que optou por no chamar a ateno para si.

Seu legado para a insero internacional do Brasil foi uma viso de um Brasil

forte por mrito prprio, e no utilizando o marchar se possvel de Rio Branco ou ainda

o marchar com de Lauro Mller. Nesta viso altaneira e exigente de um comportamento

com densidade nacional, enquanto um bloco de condies fundamentais derivadas e

instrumentais, percebe-se o quanto o pensamento de Domcio da Gama era diferente dos

seus coetneos, visionrio, ao pensar alm de sua poca. Ao estabelecer a proteo dos

interesses nacionais como condio sine qua non para a preservao da identidade

nacional em negociaes internacionais, ele criou um limite fundamental entre as

pretenses dos estados, seus relacionamentos e ingerncias internas. Domcio da Gama

estabeleceu interesses nacionais enquanto paradigmas para a insero do Estado nas

relaes internacionais, por no acreditar em amizades coletivas. Ao considerar que o

hbito intervencionista norte-americano beirava os limites da descortesia internacional,

ele pareceu vislumbrar um cenrio que estaria em andamento cem anos depois.

xii

ABSTRACT

Domcio da Gama was a diplomat who watched over Brazilian interests in a

very particular way. Guided for his own norms of behavior, he understood that if

necessary he should ruin his personal situation on behalf of national interests. Paying

attention to everything what concerned Brazil he was above all a person who chose not

to attract attention for himself. His legacy for the international insertion of Brazil was a

perception of an autonomous, self-made country, neither employing Rio Branco's

"possible marching", nor Lauro Mller's "still marching with".

From this point-of-view, for behaving consistently with national demands,

considering existing constraints, Domcio da Gama was different from his contemporary

personalities. For practicing thoughts beyond his epoch, he was a visionary. Protecting

national interests as sine qua non condition for national identity preservation at

international negotiations, he created a fundamental line between states' intents, their

relationships and internal interventions. Domcio da Gama consolidated national

interests as paradigms for state's insertion in international relations, for not believing in

collective friendships. Considering that North-American interventionism was near

international discourtesy, he glimpsed a scenario that would become reality about one

hundred years later.

xiii

Para perseverar preciso crer, e s no corao se alimenta a f, a paixo patritica.

Domcio da Gama

Foi um tempo singularmente nobre.

Domcio da Gama

Falar o nome de um morto faz-lo reviver novamente

Preceito egpcio

1

INTRODUO

Por que estudar Domcio da Gama? Joaquim Nabuco, em seu dirio, escreveu que

Domcio da Gama era um caso dessa rara, esquisita, intocvel, sensibilidade de tantos

brasileiros, que intimida o esprito, mas forma o carter e, por tal razo, esse sentimento

deveria ser estudado. O tempo de vida de Domcio da Gama se entrelaa com o do baro

do Rio Branco, que teve, dentre o seu rol de capacidades, a peculiaridade de saber angariar

ajudantes competentes, tendo construdo em torno dele uma pliade com a qual listou

sucessivas vitrias diplomticas, que o permitiu profissionalizar e modernizar o Ministrio

das Relaes Exteriores. Domcio da Gama fez parte dessa equipe como um dos mais

prximos, seno o mais imediato, de Rio Branco, sendo, na mesma proporo, um dos

menos conhecidos pela historiografia. Foi exatamente a falta de informaes que iniciou

esta pesquisa treze anos atrs. Busquei, atravs de pequenas informaes pessoais,

engastar, como se fosse um quebra-cabeas, um caminho de pesquisa, para assim

estabelecer o quanto esta invisibilidade seria hipottica ou no. Por meio de quatro

indicaes profissionais dele, que foi jornalista, gegrafo, acadmico e diplomata, que

determinaram-se inicialmente os lugares de memrias a serem pesquisados: Academia

Brasileira de Letras, Arquivo Histrico do Itamaraty, Instituto Histrico e Geogrfico

Brasileiro, Biblioteca Nacional e Arquivo Nacional. Cada um destes lugares guardava um

aspecto pessoal ou profissional de Domcio da Gama, o que indicava tambm a

necessidade de reunio dos dados.

Os vinte e quatro anos de amizade entre Domcio da Gama e Rio Branco

confirmavam a necessidade de o recorte sobre Domcio da Gama versar necessariamente

pelos tempos Rio Branco, para verificar se ele foi uma parte proativa da pliade ou apenas

um seguidor de ordens. No entanto, ao direcionar a pesquisa para uma tese de doutorado,

instou-se a necessidade de um recorte temtico que pudesse ser tratado em um espao

tempo de quatro anos. Por essa razo, o presente estudo no ir cobrir a biografia completa

de Domcio da Gama, e sim um recorte de suas idias, concernentes a um programa de

doutorado, deixando a necessria e requerida continuidade para um momento posterior.

Porm, mesmo com a deciso de trabalhar idias sobre um recorte temporal e biogrfico

adequado a perguntas especficas, haveria a necessidade de composies estruturais

biogrficas que trouxessem tona a vida pessoal de Domcio da Gama, para que se

2

pudesse chegar ao diplomata. Assim sendo, uma estrutura de tratamento biogrfico foi

montada para a presente tese, e utilizada enquanto recorte para tratar das idias de Domcio

da Gama.

Estabelecida tal escolha metodolgica, o tempo passou a ser revisitado e tratado

no somente enquanto eixo temtico, como tambm de modo cronolgico, para que se

percebesse a importncia da ao independente de Domcio da Gama. Foi neste desenrolar

que se desenvolveu o seu comportamento e seu modo de pensar a insero diplomtica do

Brasil no mundo, que ele chamou de Self Made Nation. Deste modo, o objetivo primrio

desta tese buscar o escopo humano de Domcio da Gama, mais do que simplesmente

buscar nexo em suas aes, para, a partir da, ler seus atos diplomticos enquanto uma ao

heurstica nica. Com isso, tm-se trs grandes objetivos. O primeiro busca enquadr-lo na

historiografia atual e entender o porqu do silncio em torno de sua figura. Abordada no

primeiro captulo, identifica-se uma zona de penumbra, sendo uma construo terica

instrumental para localizar o lugar de Domcio da Gama na historiografia, entre a memria

comum e a memria enquadrada, ou seja, na zona de penumbra.

O segundo objetivo surgiu do acompanhar da vida de Domcio da Gama, que, de

correspondente estrangeiro e escritor, havia se encaminhado para a diplomacia, trazendo

luz no somente os bastidores das negociaes de fronteiras, mas como o incio da srie

crise pessoal entre continuar nas letras ou seguir a diplomacia. Nessa crise interpunha-se a

criaturizao de Domcio da Gama ante Rio Branco. Essa idia foi dividida em trs

momentos iniciais criatura imbricada, criatura tutelada e criatura sob a sombra e dois

finais a continuidade imposta e a tentativa de sada. Estes ltimos so fundamentais para

o entender o terceiro e maior objetivo deste estudo e ttulo desta tese: o Self Made Nation.

Esse objetivo na verdade uma hiptese sobre como Domcio da Gama pensava a insero

sistmica do Brasil no contexto internacional. Em lugar de se buscar uma traduo do

termo, optou-se por manter a grafia original, conforme expressada por Domcio da Gama.

A prpria expresso Self Made Nation, bem como a idia do pragmatismo do bom

senso, reflete o raciocnio de Domcio da Gama, ao pensar uma incluso sistmica

internacional do Brasil de modo pragmtico, por autoescolha, e no por indicao ou para

marchar conforme instrues de outro estado. A singularidade de tal pensamento est no

3

somente atrelada a sua temporalidade, mas tambm ao modo como ela surgiu e foi

defendida. Por esta razo, a anlise sofre uma mudana na sua apresentao. At 1908, o

tempo cronolgico se apresenta corrido para ento, nos dois captulos restantes, se

apresentar ligado a dois anos especficos: 1908 e 1912. Esta escolha demarcatria deveu-se

apresentao do Self Made Nation, a um apontamento da existncia deste pensamento

singular, por sua apario e utilizao temporal. Em 1908, na Argentina, Domcio da Gama

retomou uma idia cara a ele o no-intervencionismo e o no-gerencionamento de um

Estado em outro , antiga em seu pensamento, defendendo o Brasil, sustentado por ordens

superioras, mas se portando conforme o seu prprio pensamento. Assim, em 1912, ele

defendeu o Self Made Nation por ocasio de um banquete da Sociedade panamericana em

Nova Iorque, quando exps ao meio diplomtico o seu pensamento e suas idias.

4

CAPTULO 1 DOMCIO DA GAMA: DO AMBIENTE E INFLUNCIAS

INDIVIDUALIDADE

Cada pessoa, mergulhada em si mesma, comporta-se como se fora estranha ao destino de todas as demais. Seus filhos e seus amigos constituem para ela a totalidade da espcie humana. Em suas transaes com seus concidados, pode misturar-se a eles, sem, no entanto v-los; toca-os, mas no os sente; existe apenas em si mesma e para si mesma. E se, nestas condies, um certo sentido de famlia ainda permanecer em sua mente, j no lhe resta sentido de sociedade.

Alxis de Tocqueville

A memria sempre pertence a nossa poca e est intimamente ligada ao presente eterno; a histria uma representao do passado.

Pierre Nora

1.1 - O TEMPO DA HISTRIA: O PAPEL DA BIOGRAFIA NA HISTRIA-MEMRIA

A histria, como dizia Lucien Febvre, no se aprende, se compreende. Ao

defender a necessidade de no criar barreiras entre a ao e o pensamento, Febvre afianou

que a ligao entre a histria e a vida era atrelada por mil passos sutis: entre as condies

diversas e sincrnicas, de existncia dos homens: condies materiais, condies tcnicas,

condies espirituais. a que a histria encontra a vida.1 E, com isso, defendeu,

juntamente com Marc Bloch, um cole des Annales vivo, porque viver mudar. adaptar-

se a um mundo perpetuamente escorregadio. E com a vida deveria haver um envolvimento

e no o contentamento em presenciar da costa o que se passava no mar em fria. Ao

homem, ser social e objeto da histria, no cabe a imutabilidade. Capturando a frmula de

Gustave Monod, deve-se aperceber da sua situao de homem simultaneamente no tempo

e no espao, 2 para assim entender o tempo e a prpria histria.

A proposta dos Annales era repensar novas abordagens do passado em

colaborao com as cincias sociais por meio da busca de alternativas metodolgicas e

1 FEBVRE, Lucien. Combates pela Histria. Lisboa: Editorial Presena, 1977, vol. 1, p. 55. 2 FEBVRE, Lucien. Idem, p. 65.

5

tericas compatveis com o objetivo do trabalho, a histria-problema. Esse jeito de fazer

histria revolucionou o olhar da histria tradicional, que at ento estava organizada em

torno do feito dos grandes homens. Ao trazer o indivduo comum para o cerne do fazer

histrico, a Escola dos Annales provocou os historiadores. Marc Bloch advertiu, lembrando

Henri Pirenne, que um erudito que no gostasse de olhar ao redor de si talvez devesse ser

mais prudente e renunciar ao ttulo de historiador e merecesse o nome de antiqurio.3

Assim como a vida, o tempo tem um continuum que est perpetuamente sendo mudado. E

de tal anttese surgem os grandes problemas da pesquisa histrica4. O olhar do historiador

o que faz a histria existir. A partir desse momento cria-se uma relao nica, marcada

pela causalidade e a previsibilidade, avanos e recuos que a histria submete qualquer

homem que adentre seu curto ou, mesmo, longo labirinto de temporalidade.

Os tempos histricos, com a anlise da relao entre o presente e o passado, suas

duraes e rupturas, foram amplamente desenvolvidos por outro pesquisador dos Annales,

Fernand Braudel. Sua long dure,5 foi uma revoluo epistemolgica do conceito do tempo

histrico, com suas permanncias e realidades duradouras nos processos histricos, das

relaes do ser humano com o meio e nas formas de vida coletiva. Braudel,6 ao examinar

os arcabouos histricos, abriu o foco da anlise do historiador para o meio e as estruturas

relacionais e, com isso, chamou a ateno para o fator tempo e suas velocidades. Braudel

ento afirmou que a histria no foi feita somente pelos grandes homens e, por causa disso,

o historiador deve desviar seu olhar deles e buscar a histria dos grupos humanos. Os

acontecimentos da histria so tais quais feixes de tempos, cuja velocidade e diversidade

to imprevisvel quanto o mar, que, s vezes, tomado de mars profundas, violentas,

outras vezes, tranqilo e sem mudanas visveis. rapidez dos acontecimentos, ele

contraps a vida material, criando duas velocidades temporais de anlise: o meio no qual o

3 BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da histria ou, O ofcio de historiador. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2002. 4 Idem. 5 Segundo Braudel, a histria situa-se em trs escales: a concepo positivista onde a histria dos acontecimentos que se insere no tempo curto; a meia encosta, uma histria conjuntural, com um ritmo mais lento e em profundidade a histria estrutural de longa durao, que pe em questo os sculos. 6BRAUDEL, Fernand. O Mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Filipe II. Lisboa: Martins Fontes, 1983. 2v. BRAUDEL, Fernand. Une vie pour l'histoire. Magazine Littraire, n.212, p.18-24, nov.1984, p. 24.

6

homem vivia e o tempo individual de circulao dos homens e das idias.7 Com isso, ele

infere que h, de fato, dois tempos. Uma rpida oscilao de acontecimentos, que ele

nomeia de pequenas ondas na superfcie do mar, e a gua profunda, onde est a histria

mais lenta dos grupos humanos.

De tal modo, o espao-tempo, buscando e incorporando construes de recproco

entendimento, se inseriu como um caminho em busca da problemtica de trabalho, e seus

possveis desdobramentos assentaram-se como o maior desafio dos historiadores dos

Annales. No largo horizonte da histria total, cujo maior atrativo talvez esteja no fato de

que avana como procisso espanhola, dois passos para frente e um para trs, pois cada

progresso completado coloca novos problemas. Como disse Marc Bloch, o tempo humano

sempre ser rebelde uniformidade do tempo do relgio.8 O fato de cada sociedade e, por

conseguinte, o indivduo, viver em um arcabouo temporal prprio, concomitante idia

de o tempo ser o senhor dos destinos e das aes, permite que a linearidade do tempo

venha a confundir quem nele vive.

Portanto, nas anlises do tempo cotidiano e das mentalidades, a vida cotidiana s

tem valor histrico e cientfico no seio de uma abordagem dos sistemas histricos que

contribuem para explicar o seu funcionamento.9 A complexidade de tais relaes impede

que se ignorem tais aspectos, principalmente se um indivduo, como o presente objeto de

estudo, Domcio da Gama, viveu entre sculos profundamente marcados pela mudana de

diferentes velocidades temporais histrico-sociais, como os sculos XIX e XX. Pensando

com Alain Corbin, o sculo XIX marcado pela aprendizagem dos tempos curtos, da

preciso.10 J o sculo XX, em contrapartida, um tempo determinado, breve e

interessante.11 Hobsbawm, ao comparar os dois sculos, usa a imagem de um trem subindo

a ladeira que, quando alcana o topo, vem a descer sem controle. Apesar de o sculo XX

haver primado pelos extremos e pelas massas, pelo progresso cientfico e tecnolgico, no

7 Idem. 8 BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Op. Cit., 2002. 9 LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval. Rio de Janeiro: Edies 70, 1990. 10 VIDAL, Laurent. Alain Corbin o prazer do historiador. Revista Brasileira Histria, Jan./Jun 2005, vol.25, no.49, p.11-31. ISSN 0102-0188. 11 HOBSBAWM, Eric A Era dos Extremos - O breve sculo XX 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995; HOBSBAWM, Eric Tempos interessantes: uma vida no sculo XX. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.

7

significou, necessariamente, parafraseando Goethe em Fausto, a melhoria das relaes

humanas.

Uma das maiores operaes em curso na histria a histria-memria, cujo mote

principal est em identificar um pas, um grupo, uma aldeia ou um indivduo. A memria

que, por conta do seu poder, descobre como anonimizar um indivduo , antes de qualquer

coisa, a essncia da identidade,12 da a sua impossibilidade de ser dissociada das

lembranas do passado e da tradio. Para Pierre Nora, o fato de a memria apelar para a

emoo, o saber e os sentidos, tanto quanto para o culto aos grandes nomes, a faz se

prender a tudo e a nada, e a uma impresso para captar o aspecto mais secreto da histria.13

Nora assinala que h dois tipos de memria: uma tradicional (imediata) e uma

transformada por sua passagem em histria. Ele ressalta que, na medida em que

desaparece a memria tradicional, ns nos sentimos obrigados a acumular religiosamente

vestgios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visveis do que foi.14

Assim, os sentimentos, as memrias e as frustraes pessoais, no devem ser excludos

desta anlise, por conta de duas vises pilares para este trabalho: Pierre Renouvin e

Giovanni Levi. Renouvin afirma que os valores so, sem dvida alguma, uma faceta

fundamental das foras profundas e estudar as relaes internacionais sem levar em alta

linha de conta concepes pessoais, mtodos, relaes sentimentais do homem de Estado

seria negligenciar um fator importante s vezes essencial 15.

Giovanni Levi assevera que toda biografia integra implicitamente uma teoria de

ao, pois a personagem central da histria um ser tanto racional como irracional, que

guiado por seus interesses e por suas paixes. A inclinao natural, para o autor de uma

biografia, apoiar-se em um modelo que associe uma cronologia ordenada, uma

personalidade coerente e estvel, aes sem inrcia e decises sem incertezas.16 Desse

12 LE GOFF, Jacques Memria in Enciclopdia Einaudi, Memria - Histria (trad.) Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, vol.1, p.46. 13 NORA, Pierre Lieux de mmoire. Paris: Gallimard, 1997. 14 NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria, So Paulo, n. 10, dez. 1993, p.15. 15 RENOUVIN, Pierre e DUROSELLE, Jean, Introduo Histria das Relaes Internacionais. So Paulo: DIFEL, 1967, p 6. 16 LEVI, Giovanni. "Usos da biografia", in FERRREIRA, M. de M. & AMADO, J. (orgs.), Usos & abusos da histria oral.Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 2000.

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modo, para Levi, a biografia torna-se importante para observar as maneiras pelas quais os

sistemas normativos de uma poca funcionam, sendo que para ele nenhum destes sistemas

suficientemente organizado para eliminar toda possibilidade de escolha consciente, de

manipulao ou interpretao das regras, de negociao. A biografia ressalta que estes

sistemas normativos nunca esto isentos de contradies.

Dessa maneira, a perspectiva levantar aquilo que Domcio da Gama foi capaz de

fazer e se ele interagiu com esses sistemas. Assim sendo, o fio condutor deste trabalho

repousa na permanente tenso entre a esfera individual e a coletiva. O incio se dar

necessariamente pela busca dos aspectos pessoais da vida de Domcio da Gama e sua

insero no meio, tal como o modo de agir e de pensar dos seus coetneos, apresentando a

histria em redor dele na medida em que Gama se envolver com os acontecimentos

histricos. Tal corte se faz necessrio no somente para buscar o indivduo no espao de

sua poca, mas como para responder s duas problemticas principais deste captulo: como

ele se formou e qual a relao entre ele e o baro do Rio Branco.

Jacques LeGoff em seu So Lus afirma que a biografia histrica uma das

maneiras mais difceis de fazer histria, por confrontar o historiador com os problemas de

seu ofcio,17 j que o seu pressuposto principal reinserir no panorama historiogrfico uma

pessoa. Uma biografia compe-se de homogeneidade documental, de fatos e atos. Mesmo

quando no houver documentos escritos, os silncios da histria falam mais do que a

prpria palavra escrita e o documento-monumento.18 Assim, a falta de inocncia dos

documentos19 torna-os fundamentais no somente para o processo da biografia, mas,

sobretudo, por conta do seu compromisso de efeito do real para introduzir a convico da

verdade histrica. Cada documento, porm, produto de sua poca e deve ser analisado

sob tal premissa.

Destarte, assim como cada documento produto de sua poca, cada sociedade

tambm o . O primeiro desafio de qualquer trabalho com linhas biogrficas, portanto, o

tempo, o que ele mostra e o que recobre. Jacques LeGoff, que v a histria caminhando

17 LE GOFF, Jacques. So Luis. So Luiz.Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 20. 18 LE GOFF, J. O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval. Rio de Janeiro: Edies 70, 1990. 19 LE GOFF, Jacques. Reflexes sobre a histria. Lisboa: Edies 70, 1986, p. 86.

9

mais ou menos depressa, alerta, porm, que as foras profundas da histria s atuam e se

deixam apreender no tempo longo, tornando-se imperativo o estudo das estruturas.20

Pensando com Fernand Braudel, entende-se que a estrutura montagem, arquitetura e

realidade em que o tempo se gasta mal e veicula muito longamente.21 Entretanto, apesar da

atuao lenta do tempo nas estruturas sociais, h a existncia de um espao menos lento

correspondente s transformaes polticas. Trata-se de uma atmosfera que se compe de

numerosos e diversos ritmos, cujo esclarecimento constitui-se um dos deveres do

historiador, no entender de Marc Bloch,22 j que abarca uma polifonia que no vai mais

longe que as relaes entre estrutura, conjuntura e acontecimento.23 Da a importncia dos

arquivos, que daro ao historiador um lugar de observao privilegiado de uma poca. o

cerne da dinmica expressa por Marc Ferro de que, sem arquivos, no h legitimidade. O

problema do estudo dos arquivos verificar sua credibilidade. Para isso, preciso

confront-los a outros arquivos e no retir-los do seu contexto.

Achar o equilbrio entre o pblico e o privado, entre o sentimento e a

racionalizao, em que se debate o imaginrio social, , talvez, voltar a 1938, quando

Lucien Febvre indicava direes de pesquisa pedindo que se abrisse um vasto inqurito

coletivo sobre os sentimentos fundamentais dos homens e suas modalidades.24 Nessa

arqueologia da memria, percebe-se a perda do que seria a biografia do corpo, ficando

apenas o corpo da biografia, como parte do imaginrio social. Ao contrrio da histria

social, a biografia tem como cerne a singularidade do seu objeto de pesquisa. O problema

aqui , parafraseando Corbin, detectar e no decretar. Em quais espaos Domcio da Gama

viveu e interagiu? Para tal, necessrio descobrir o que, como e quando ele interagiu, ou

no, com o meio. um ato de pensar como ele e, ao mesmo tempo, afastar-se do foco e

observ-lo de todos os ngulos. Corbin aconselha a deixar emergir o sentido quando o

historiador est frente a um documento, para evitar imposies. Uma pesquisa uma

imerso no tempo que pode ser feita em questo de minutos. Basta saltar do carro e

adentrar um recinto como o Arquivo Histrico do Itamaraty para perceber como a viagem

20 LE GOFF, Jacques (1999). 21 BRAUDEL, F. Histoire et sciences sociales. La longue dure, In: POMIAN, Krzysztof Histria das Estruturas, Apud: LE GOFF, Jacques. Op Cit, p.98. 22 BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Op. Cit. 23 Idem. 24 FEBVRE, Lucien. Op. Cit., p. 182.

10

pode ser iniciada sofismada por bustos silenciosamente perfilados a contemplar os

visitantes...

Um dos pontos mais interessantes da biografia est no fato de a causalidade ter

uma complexidade em seus mecanismos que supera largamente a trade causa-fato-

conseqncia. A biografia se remete a uma simultaneidade de diferentes atitudes dos

indivduos e dos grupos, o que permite reconstruir contextos sociais em que o indivduo,

ou os indivduos atuaram, para denotar a sua singularidade ou no, em relao ao seu

prprio tempo. Ser que, apesar do apelo universal que parecem ter as histrias pessoais,

estaria certo dizer que bastaria resumi-las em termos de vida, trajetria e profisso, para

descrever uma vida? No. A percepo da representatividade das aes e das emoes a

atitude fundamental para tal estilo de fazer histria.

No Brasil, nas ltimas duas dcadas do sculo XX, o gnero biogrfico veio se

revitalizando, no somente como um estilo que chamou a ateno do mercado editorial,

mas tambm da prpria academia brasileira. Ainda que haja certa timidez de produo em

relao de outros pases como, por exemplo, a Inglaterra, pode-se notar um aumento

crescente de interesse, a partir das ltimas dcadas do sculo XX. O resgate da memria

biogrfica brasileira vem se manifestando em trabalhos como Mau de Jorge Caldeira,25

Raul Pompia de Camil Capaz,26 D. Pedro II de Lilia Moritz Schwarcz27. A Coleo

Formadores do Brasil,28 Renato Lemos, Benjamin Constant,29 Luiz Felipe Dvila e seu

Dona Veridiana30 e o Morte na Repblica de Vera Lcia B. Borges sobre os ltimos anos

25 CALDEIRA, Jorge. Mau Empresrio do Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. 26 CAPAZ, Camil. Raul Pompia. [So Paulo]: Gryphus, 2001. 27 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador - d. Pedro II, um monarca dos trpicos. So Paulo: Companhia das Letras, 1998 28 Os nove ttulos que foram editados pela editora 34 so: Diogo Antnio Feij: organizao e introduo de Jorge Caldeira; Bernardo Pereira de Vasconcelos: organizao e introduo de Jos Murilo de Carvalho; Visconde de Cairu: organizao e introduo de Antonio Penalves Rocha; Hiplito Jos da Costa: organizao e introduo de Sergio Ges de Paula; Frei Joaquim do Amor Divino Caneca; organizao e introduo de Evaldo Cabral de Mello; Visconde do Uruguai: organizao e introduo de Jos Murilo de Carvalho; Zacarias de Gis e Vasconcelos; organizao e introduo de Ceclia Helena de Salles Oliveira; Jos Bonifcio de Andrade e Silva organizao e introduo de Jorge Caldeira e Marqus de So Vicente, Organizao e introduo de Eduardo Kugelmas. 29 LEMOS, Renato. Benjamin Constant, vida e obra. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 30 D'AVILA, Luiz Felipe. Dona Veridiana - A trajetria de uma dinastia paulista. So Paulo: A Girafa, 2004.

11

de Pinheiro Machado,31 Roberto Ventura e seu Retrato interrompido da vida de Euclides

da Cunha,32 um esboo biogrfico, por motivo de morte do seu autor, cujo contedo

mostrou-se um subproduto de uma pesquisa de altssima qualidade.

Ainda assim, cabe ressaltar que os nomes que chamam a ateno dos bigrafos

brasileiros ainda so pessoas que tiveram algum protagonismo em certos vieses da histria

brasileira. Ainda h um grande nmero de personagens a espera de visitaes histricas ou

mesmo de revisitaes. Uma pergunta que se impe : por que uma personagem em

particular atia a curiosidade de um pesquisador? Seria insatisfao com a falta de obras

sobre ela ou com as j desenvolvidas? Ou seria apenas uma identificao com o objeto de

pesquisa ou mesmo o inverso? Ou s a velha curiosidade? Ainda que haja vrias respostas

a tais perguntas, o fato que, enquanto h pessoas cujo papel pblico no desperta o menor

interesse dos pesquisadores, outros despertam, exatamente pelo fascnio pblico que

exerceram, passando a ser objeto direto de um sem nmero de obras como, por exemplo, o

baro do Rio Branco. Em qualquer biblioteca brasileira h pelo menos um livro sobre Jos

Maria da Silva Paranhos Filho, o baro do Rio Branco, que um paradigma por excelncia

da histria da Primeira Repblica brasileira. Falar sobre ele reconhecer que a diplomacia

brasileira passou por importantes mudanas, como as demarcaes das fronteiras, a

mudana do eixo diplomtico de Londres para Washington, bem como por uma profunda

profissionalizao da carreira diplomtica, o que incidiu em uma maior representatividade

brasileira nos assuntos do hemisfrio.

Quando o foco da pesquisa se desvia dele, porm, passando para a sua equipe, o

nmero de estudos diminui drasticamente, o que no deixa de causar surpresa, j que uma

das caractersticas mais notrias do Baro era a capacidade de recrutar ajudantes

competentes. Rio Branco orquestrou uma equipe formada por Joaquim Nabuco, Domcio

da Gama, Gasto da Cunha, Enas Martins, Euclides da Cunha, Alfredo Gomes Ferreira,

Jos Joaquim de Lima e Silva Moniz de Arago, Joaquim Francisco Assis Brasil, Jos

Manuel Cardoso de Oliveira, Francisco Veiga, Joo Pandi Calgeras, Dunshee de

31 BORGES, Vera Lcia Borga. Morte nA Repblica: os ltimos anos de Pinheiro Machado e a poltica oligrquica (1909-1915). Rio de Janeiro: IHGB: Livre Expresso, 2004. 32 VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. Org. Mrio Csar Carvalho e Jos Carlos Barreto de Santana. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

12

Abranches e Arajo Jorge,33 com os quais formulou e executou sua ao poltica.

Excetuando-se Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha, contudo, os demais colaboradores

ou no foram estudados, ou foram tratados em um pequeno nmero de estudos ainda

orientados sob a premissa da factual histria diplomtica.

Domcio da Gama, dentre a roda dos mais ntimos do Baro, o grande

desconhecido do pblico em geral. Qui, pelo fato de que ele foi, alm de secretrio, o seu

colaborador mais prximo, haja sido pesado pela histria na mesma proporo. Ele no

ocupa hoje um lugar prprio, mas uma zona de penumbra entre a histria e a memria,

para utilizar uma expresso de Eric Hobsbawm.34 Entende-se aqui a zona de penumbra

como a referncia indireta a Domcio da Gama nas memrias de outrem, mas no como

foco direto de trabalhos.35 Pesquis-lo significa conectar fragmentos e peculiaridades de

vrios recintos de memria, por meio de citaes de contemporneos e extemporneos.

Oitenta anos depois de sua morte fsica, em 1925, sua vida est profundamente

embrenhada nas dobras do tempo, praticamente immore, profundamente amalgamado

figura do baro do Rio Branco, relegado sua sombra, um satlite, como ele mesmo um

dia previra e temera.

1.1.2 ESQUADRINHANDO A ZONA DE PENUMBRA

Para traar ou delinear, mas no definir, pois, como definiu Marc Bloch, toda a

definio priso,36 o tamanho da zona de penumbra que cobre Domcio da Gama, h que

se mapear a sua superfcie social, revelando o ambiente no qual ele est organicamente

inserido. Para buscar o indivduo antes do diplomata, verificar como ocorreu a interao

entre sua vida privada e a pblica, h que se identificar os fatos e as dinmicas que

33 Para um maior detalhamento, GUIMARES, Argeu. Dicionrio bio-bibliogrfico brasileiro de diplomacia, poltica externa e direito internacional. Rio de Janeiro: Ed. do autor, 1938. 34 HOBSBAWM, Eric A Era dos Imprios - 1875-1914. 3. Edio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 15. 35 Uma exceo pode ser vista nos trabalhos de Francisco Vinhosa que enfocam partes da vida de Domcio da Gama: VINHOSA, Francisco. Guia de pesquisa - Domcio da Gama em Washington (1911-1918). Rio de Janeiro, Arquivo Histrico do Ministrio das Relaes Exteriores, 1983; VINHOSA, Francisco Luiz T. Domcio da Gama e a questo do truste do caf (1912- 1913). Revista do IFCS. Rio de Janeiro, janeiro/junho, 1981. VINHOSA, Francisco Luiz T. A Diplomacia Brasileira e a Revoluo Mexicana, 1913-1915. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, vol. 327, abril-junho, 1980, p. 19 a 81. VINHOSA, Francisco Luiz T. As relaes Brasil-Estados Unidos durante a primeira repblica. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, vol. 378/9, 1993, p. 280 a 294. 36 BLOCH, Marc Op. Cit.

13

permearam sua vida e seu momento de atuao. Assim sendo, a idia principal no

apenas identificar o que o distinguiu, mas tambm o que o congregou ao seu tempo,

porquanto ele quem se apresenta em seu tempo, e no o tempo nele. O tempo decorrido

desde a sua morte j o faz ter durao histrica ainda que no tenha recebido um

tratamento historiogrfico. Destarte, a desmontagem e a conseqente remontagem de tal

estrutura permitiro no somente conhecer suas posies sociais, os setores da sociedade

nos quais ele tramitou, como tambm a extenso de sua vida e do seu pensamento. Extrair

no somente o que ele realizou ao longo da sua vida, mas tambm quais acontecimentos

permitiro a reconstituio do seu itinerrio de vida e descol-lo do baro do Rio Branco

averiguando se ele apresentou originalidade de pensamento ou foi apenas um porta-voz do

Chanceler.

A memria como o espao guardio do passado se estabelece a partir de uma

coeso identitria forjada entre a lembrana individual e a coletiva. Toda memria , por

definio, coletiva e, conseqentemente, imbuda de sentimentos de durao. Por estar

presente nas coletividades e nos indivduos, a memria passa a ser a prpria percepo da

histria.37 Tal associao incorre em um equilbrio precrio, contraditrio e tenso, j que a

memria individual se ope memria coletiva, por esta remodel-la tornando-a suscetvel

de ser apresentada de inmeras maneiras. Destarte, a prpria memria individual acaba por

ser no somente reescrita, como tambm submersa perante as novas variveis que passam a

povoar os recintos de memria. A descaracterizao torna-se, assim, um axioma que,

devido permanente tenso entre o passado e o presente, que caracteriza a histria, passa

praticamente despercebida. A realidade de muitos trabalhos que vo sucessivamente

consultando uns aos outros sem ir s fontes primrias pode ser denunciada no presente

estudo. A omisso cometida por Epitcio Pessoa, em seus Pela Verdade38 e Obras

Completas,39 sobre o perodo da gesto de Domcio da Gama frente ao Ministrio das

Relaes Exteriores, incorreu em pelo menos dois lapsos Laurita Raja Gabaglia40 e

37 HALBWACHS, Maurice. Os esquemas sociais da memria. So Paulo: Martins Fontes, 1992. 38 PESSOA, Epitcio. Pela Verdade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1925. 39 PESSOA, Epitcio. Conferncia de Paz: diplomacia e direito internacional. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1961. (Obras Completas de Epitcio Pessoa - vol. XIV). 40 RAJA GABAGLIA, Laurita Pessoa. Epitcio Pessoa. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1951.

14

Bradford Burns41 , contribuindo assim para apagar a imagem pblica de Domcio da

Gama como ministro das relaes exteriores.

Conforme Henry Rousso,42 a memria enquadrada o espao do silncio que se

alimenta de material fornecido pela histria, ao mesmo tempo em que evita a voz da

historiografia. um olhar dual que, por se apoiar em lembranas coletivas e nas prprias,

move as lembranas reais a se conectarem a uma srie de lembranas fictcias. Desse

modo, Rousso enfatiza que a memria enquadrada pode incidir em escolhas daquilo que

deve ser lembrado e de como deve ser lembrado. A questo inerente ao assunto como

determinar o que deve ser lembrado ou no, o que deve ser reescrito ou no. O mote est

na ao, e na ao em que se encontram as foras profundas. Quando Jean-Baptiste

Duroselle questiona se a transformao das estruturas profundas da nao pode ser afetada

pelo homem de Estado ou se est submetida a grandes leis inelutveis,43 o que se percebe

como inerente ao problema a ao essencial da histria aplicada sobre infra-estruturas e

superestruturas. Tais inelutabilidades estariam entrelaadas escolha do que pode ser

pensado e repassado atravs da memria, afetando diretamente a construo da psicologia

coletiva.

Max Weber assinala que o comportamento reacional do indivduo modela-se de

acordo com a personalidade construda no decorrer do seu tempo de vida, isto , o homem

est amarrado s teias de significados que ele mesmo teceu.44 Conforme Jacques

Freymond, a reconstituio do dilogo do homem e de seu meio ambiente s possvel a

partir de estudos bastante concretos da organizao do espao que os homens repartiram

em territrio nacional.45 O ambiente aqui entendido como sinnimo dos desafios e dos

problemas enfrentados pelo indivduo, bem como o grau de absoro e interao sofrida,

para que se possa apreender da histria o homem por inteiro, corpo e esprito, em sua vida

41 Burns escreveu: Domcio da Gama trocou o seu posto em Washington pela Corte de St. James. E mais abaixo listou: Os sucessores de Mller, os trs ltimos Ministros das Relaes Exteriores da primeira repblica, Jos Manuel de Azevedo Marques, Jos Felix Alves Pacheco e Octavio Mangabeira. BURNS, E. Bradford. "As relaes internacionais do Brasil durante a primeira repblica" In: FAUSTO, Bris (org.), Histria geral da civilizao. So Paulo, Difel, 1975, vol. 9, p. 381. 42 POLLAK, Michael. Memria, Esquecimento, silncio. In: Estudos histricos,Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3 a 15. 43 RENOUVIN, Pierre; DUROSELLE, Jean Baptiste. Op. Cit., p. 407. 44 WEBER, Max. Apud in GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 15. 45FREYMOND, Jacques. Teoria e Histria Apud: DUROSELLE, Jean-Baptiste. Op. Cit., p. 437.

15

material, biolgica, afetiva, mental.46 Destarte, ele no pode ser separado desse fatores,

nem de sua prpria cultura, entendida como uma espcie de roteiro simblico em que o

indivduo concebe e articula sua viso de mundo.

Essa teia de significados carrega em si uma feio memorial dual, j que, para

cada pessoa, a memria e os olhares se apresentam de modo singular, sem, no entanto,

deixar de estarem encaixadas no meio coletivo. A perspectiva de a histria estar inserida

no indivduo, e no o indivduo na histria, acaba por demolir a idia de um tempo nico,

homogneo e linear.47 Desse modo, a tarefa compreender, e no julgar, um indivduo em

interao com a sociedade, evitando a iluso biogrfica,48 que pretende ver a vida do

indivduo como um destino pr-definido, em que todo detalhe simblico. O aspecto das

dvidas, decises e momentos-chave de sua vida, ambguas por conta dos elementos

motivacionais, devero ser submetidos a uma anlise crtica, pois se verdade que o

homem constri sua vida, tambm certo que esta constri a ele.49 exatamente nessa

percepo que a zona de penumbra se instala.

A zona de penumbra o lugar entre a memria comum e a memria enquadrada.

As lembranas reais/fictcias da memria enquadrada so reminiscncias que entram em

disputas alavancadas por razes complexas das recordaes do memorista e o silncio do

passado. Em tais dualidades o passado mudo passa a ser muito menos o produto do

esquecimento do que um trabalho de gesto de memria segundo as possibilidades de

comunicao.50 Da o silncio se incidir na zona de penumbra, pelo esquecimento motivado

pelo desapego de um grupo. Ento, se houver contato entre a memria individual e a

memria coletiva, por menor que seja, as barreiras que as separam caem e a reconstruo

do espao permite verificar a existncia de uma zona de penumbra.

46 DUROSELLE, Jean-Baptiste. Op. Cit. 47 LE GOFF, Jacques. A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 1988; LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994; LE GOFF, Jacques. So Luiz. So Lus.Rio de Janeiro: Record, 1999. 48 BOURDIEU, Pierre. A Iluso Biogrfica. In: FERREIRA, Marieta Moraes Op. Cit. 49 LE GOFF, Jacques (1988), Op. Cit.p.54. 50 POLLAK, Michael. Memria, Esquecimento, silncio. In: Estudos histricos,Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, vol. 2, n. 3, 1989, p. 13.

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Uma das razes complexas entrevistas que, para a memria ser crvel, ela deve

necessariamente existir segundo testemunhas confiveis, para justificar as escolhas

individuais do que e porque existam. O status da confiabilidade das testemunhas depende

do que elas optem por memoriar ou no. Ento, como trabalhar com os testemunhos? E os

que optaram por no fazer testemunho algum ante a posteridade? A memria, no sentido

estrito do termo, remete-se presena do passado e, com isso, intenta garantir a

continuidade do tempo de um indivduo inserido em um contexto social, familiar ou

nacional. a inteligibilidade do presente imbricada ao passado. Se voc se limitar a dizer:

quando algum acredita evocar o passado h 99% de construo e 1% de evocao

verdadeira; esse resduo de 1%, que resistiria a sua explicao, bastaria para recolocar em

questo todo o problema de conservao da lembrana. Ora, voc poderia evitar esse

resduo?51

Do mesmo modo que, em um jogo de contrastes, todas as variantes esto

intrinsecamente ligadas ao papel dos atores e s suas relaes organizacionais, o indivduo

sempre ter uma dualidade essencial: a percepo dos outros e a de si mesmo. Nesse

sentido, a memria, como a vida, carrega aspectos de permanente evoluo. Atrelada a

fatos cuja perspectiva pode ser o ponto de vista individual sobre o coletivo, ou vice versa,

que seriam como a vida, a memria sujeita dialtica da lembrana e do esquecimento,

inconsciente de suas sucessivas deformaes e vulnervel a todos os usos e manipulaes.

Walter Benjamin52 entendia que, quando uma personagem se torna histrica, tudo em seu

passado se torna passvel de citao, tanto as suas apoteoses quanto os seus segredos. Ao

mesmo tempo, argumentava que articular historicamente o passado no significa conhec-

lo como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscncia, tal como ela

relampeja no momento de um perigo 53. Essa viso uma clara aluso necessidade de

ser visto enquanto vencedor, e no como vencido, que freqentemente aflorava, tanto nas

autobiografias como e em algumas biografias, e era to criticada pela Escola dos Annales.

51 ROUSTAN, Desir Roustan Apud: HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p. 37. 52 Walter Benjamin - Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e tcnica, arte e poltica. Ensaios sobre literatura e histria da cultura. Prefcio de Jeanne Marie Gagnebin. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. 53 Idem.

17

Conforme Benjamin, quando a pessoa humana responde a estmulos, no fica com

traos deles, mas quando incapaz de responder a eles, as marcas ficam. O ser humano

carrega em si o aspecto inerente da dualidade racional/irracional geradora de aes e

rancores, principalmente quando se dedica a deixar memrias, dirios ou depoimentos

sobre suas vidas e a de outrem. A prpria escolha do que possa vir a pblico ou no uma

escolha feita em vida e freqentemente praticada em anotaes pessoais. Porm, se,

conforme Pierre Nora54, memria vida, pois seus portadores so sempre grupos de

pessoas vivas, preciso, antes de qualquer coisa, verificar o carter intersticial de tais

lembranas e esquecimentos. So os aspectos personalistas que permeiam a vida e que se

inter-relacionam com a sua compreenso e a deciso inerente ao processo.

LeGoff, aludindo Borges, afirma que um homem no est verdadeiramente morto,

a no ser que o ltimo homem que ele conhecia por sua vez tambm esteja.55 Existe,

portanto, sempre a possibilidade de conhecer pelo menos uma faceta desse homem. O

prprio fato de Domcio da Gama estar presente, de modo tangencial, no totalmente

esclarecido, em citaes de contemporneos e extemporneos, carrega em si uma feio

memorial, com representaes de si prprio e dos outros. No presente caso tais lembranas

diretas inexistem. Domcio da Gama nunca escreveu um dirio. Ele intentou escrever um

livro de viagens, mas a idia ficou somente em esboo no chegando a ganhar forma.

Conforme Ronald Dreyer, as percepes mltiplas acabam por se condensar em vises e

essas imagens condicionam o que percebemos ou o que no percebemos ou

percebemos de maneira deformada (misperceptions).56 Nessa dualidade geram-se muitas

aes e conseqentes rancores, racionais ou irracionais, que so encontrados nos aspectos

personalistas que permeiam o campo social.

54 NORA, Pierre. (1997) Op. Cit. p. 24-25. 55 LE GOFF, Jacques. (1999) Op. Cit., p. 29. 56 DREYER, Ronald, Perception of State-interaction in diplomacy history. A case for an interdisciplinary approach between history and political science, Journal of International Studies, vol. 12, n 3, outono de 1983, p. 260-275. In: STEINERT, Marlis G. A deciso em matria de poltica externa Apud: DUROSELLE, Jean-Baptiste. Op. Cit, p. 449.

18

1.1.3 - O RECINTO PBLICO E O PRIVADO

No entender de Richard Sennett57, a imagem amalgama-se ao homem em pblico,

fazendo-o possuidor de uma identidade enquanto ator que o envolve e a outros em um lao

social, em que a sua identidade um trabalho de apresentao. Tal concepo coloca-se

como um fator fundamental na construo da imagem do diplomata, do representante do

Estado que, no presente estudo, o homem em pblico por excelncia. O fator

motivacional da representao o vetor a ser identificado. Mas qual a fronteira entre o

homem pblico e o privado, quando a res publica julga o homem pblico pelos vieses da

credibilidade ou da legitimidade, conforme sua personalidade, e no pelas aes que

defende? Conforme Duroselle, o homem pblico deve ser visto em seu aspecto

personalista, j que as declaraes oficiais importantes so enganosas. Apenas a

correspondncia de um homem de Estado com seus ntimos e verdadeiros amigos pode dar

um vislumbre. [...] A idia da imagem que deixar de si prprio o que motiva as

memrias. tambm o que motiva muitas aes.58

Os valores, que so inerentes ao homem, do os retratos mais fidedignos ou

verdadeiros possveis do homem estudado. Duroselle entende valores como grandes foras

que agem sobre as comunidades humanas, idias, ou sistemas de idias pelos quais, com

maior ou menor entusiasmo, o homem est pronto para sacrificar seu interesse pessoal: seu

dinheiro, seu conforto, at a vida.59 So os valores que so colocados prova todos os

dias, e no os homens. Como diria Abraham Lincoln, quase todos os homens so capazes

de suportar adversidades, mas, se quiser por prova o carter de um homem, d-lhe poder.

Assim sendo, o aspecto personalista acerca do temperamento de Domcio da Gama aparece

como uma varivel imprescindvel na explicao de suas aes e fundamental para o

entendimento de seu procedimento. Ento, quais valores o teriam impelido a sair do

interior do Rio de Janeiro, quebrar o destino escolhido por seu pai, e construir o seu?

57 SENNETT, Richard. O declnio do homem pblico: as tiranias da intimidade. So Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 139. 58 DUROSELLE, Jean-Baptiste. Op. Cit., p. 140. 59 Idem, p. 178.

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As esperanas e idias de Domcio da Gama s podero ser vistas como objetivos

polticos somente se a deciso tiver sido tomada60. Para que se possa reconhecer tal

diferena e conseguir alcanar a construo e a desconstruo do Senhor Gama,

necessrio retir-lo do seu meio, do emaranhado de idias e valores, prprios e alheios, no

qual est inserido, identific-lo como indivduo e, depois, compreend-lo no meio vivido.

Assim sendo, as origens familiares, formao educacional, bem como os cargos ocupados

por ele, so vetores a serem identificados, no em maior ou menor grau de considerao,

porm, como parte integrante no processo identificador das engrenagens em movimento.

Domcio da Gama no deixou dirios pessoais, ento ele no fez escolhas, em

vida, sobre o que queria que viesse a pblico ou no. O prprio ato em si de no escrever

um dirio atinente a sua personalidade retrada. Como escritor, tinha certeza de que

jamais seria lido, e nunca pensou que sua vida seria objeto de interesse para algum. Em

1915, em carta a E.C. Sweet, Domcio da Gama afirmou que era rather shy before

History.61 Essa timidez ficou clara na prpria falta de uma organizao dos seus

documentos. Assim, o seu retrato precisou ser delineado em abordagens impressionistas.

Retir-lo literalmente da zona de penumbra a partir de seus escritos, correspondncias

pessoais e profissionais, memorandos, ofcios, pesquisar seus amigos, bem como seus

escritos, reconstituir a tessitura de seu espao de vida inconscientemente latente, por trs

da crosta dos acontecimentos demasiado legveis [onde] lcito organizar em estruturas

sucessivas, em que se correspondem os elementos complementares de um sistema.62 Sem

dvida alguma, a correspondncia uma fonte de anlise privilegiada, por causa das

relaes mtuas que podem ser entrevistas. As tipologias das respostas tm um processo

nico, pois permite vislumbrar toda uma rede de construes pessoais e profissionais,

caracterizando a rede de sociabilidade de Domcio da Gama.

Conforme dito na introduo, seus arquivos esto espalhados em pelos menos

quatro grandes espaos de memria: Academia Brasileira de Letras, Arquivo Histrico do

Itamaraty, Fundao Biblioteca Nacional e o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro.

60 WOLFERS, Arnold Discord and collaboration: essays on international politics. Baltimore: Johns Hopkins(The), 1975, p. 17. 61 Carta de Domcio da Gama a E.C.Sweet, Long Branch 20 de setembro de 1915. AHI. MDB. Washington. Questo Mexicana 1913/1916. 453.1.6. 62 VOVELLE, Michel A histria e a longa durao In: LE GOFF, Jacques. (1986) Op. Cit. p.66-67.

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Dos quatro, os que se encontram na ABL e no IHGB foram separados pela esposa

Elisabeth Bates da Gama a partir de uma diviso que ela chamou de profissional, para o

IHGB, e o pessoal, para a ABL, dois anos depois de sua morte. Ento, avoca-se que

Domcio da Gama no pretendia ser um espao de memrias. Ele planejou escrever um

livro de viagens com prefcio, conforme j havia dito ao Baro,63 e seu arquivo na ABL

demonstra tentativas de iniciar um, mas no algo memorial. A importncia disso deve-se

ao fato de que a organizao de um arquivo pessoal pressupe pensamento e inflexo

pessoal, ao providenciar que se resguardem os aspectos que o interessam. Phillippe

Artires diz que arquivar a prpria vida pr-se no espelho, contrapor a imagem social

imagem ntima de si prpria e, nesse sentido, o arquivamento do eu uma prtica de

construo de si mesmo e de resistncia.64 A escolha de Domcio da Gama por no deixar

dirios pessoais e arquivos organizados por ele demonstra a sua fuga do espelho. Ele

guardou os documentos para se prender prpria memria, ao seu passado; no tinha a

inteno de ser visto, o que refora a necessidade de retir-lo de sua zona de penumbra.

A imagem deixada por ele apresenta-se de quatro formas: iconogrfica, memorial

dos contemporneos, na forma de sua figura pblica atrelada ao baro e como indivduo.

Ento, partindo de tais pressupostos, esquadrinhar os acontecimentos de sua vida permite

no somente o entendimento de sua vida e de seu olhar, mas como de sua maneira de agir,

responder questionamentos e testar as hipteses concernentes a cada fase de sua vida. Nas

recordaes daqueles que o conheceram, ele surge como um brasileiro afidalgado, dono de

um ar blas e empertigado, ao estilo de certos senhores de engenho do Nordeste, cuja fala

era pausada e sempre baixa, com ritmos e tons uniformes, para Afonso Arinos.65 Se para o

Conde de Affonso Celso foi uma alma fina, alta, delicada, culta, cheia de elegncia

mental e moral 66, para Pandi Calgeras ele era calmo, sisudo, inimigo da ostentao e

atento a quanto interessasse ao Brasil.67 Nesse contexto, o olhar e a imagem so

desdobramentos contidos entre dois pontos de observaes das lembranas que somente

63 Carta de Domcio da Gama ao baro do Rio Branco. Bruxelas, 16 de agosto de 1902. AHI, Arquivo Particular do baro do Rio Branco. Parte III (34). Lata 824 Mao 2. Expedida e Recebida. 64 ARTIRES, Philippe. Arquivar a prpria vida. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v.11, n.21, 1998, p. 11. 65 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Op. Cit., vol. l., p. 139. 66 CELSO, Conde de Affonso. "O Adeus da Academia" In: Revista da ABL. N 48,p.291 e 292. 67 PANDI CALGERAS, Joo. Res Nostra, So Paulo: Estabelecimentos Grficos Irmos Ferraz, 1930, p. 115.

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ganham forma e explicao pela sua relao com o meio. quando o olhar tem o aspecto

investigativo do pensar, um ponto de vista que, conforme Maurice Halbwachs,68 muda de

acordo com o lugar e as relaes com os outros. Enquanto a imagem se substabelece como

uma representao substantiva de uma forma, o olhar sai de si somente para trazer o

mundo para dentro.69

1.2 - O INDIVDUO DOMCIO DA GAMA

O interesse em estudar a histria e a personalidade de Domcio da Gama j havia

sido demonstrado por Joaquim Nabuco em seus Dirios, em que chamava a ateno para o

que identificava como um caso de rara, esquisita, intocvel, sensibilidade de tantos

brasileiros, que intimida o esprito, mas forma o carter.70 O no recebimento de um

tratamento historiogrfico incorreu no fato de que as poucas informaes sobre Domcio da

Gama tenham diversos desencontros sobre os fatos mais gerais e os mais elementares de

sua vida. O seu local de nascimento correto Maric (Rio de Janeiro), porm, para Afonso

Arinos ele era mineiro.71 Mesmo Capistrano de Abreu, amigo pessoal de Domcio, afirmou

em carta ao apresent-lo ao Baro haver ele nascido em Saquarema.72

J a data de nascimento um pouco mais problemtica. A mais comum o de 23

de outubro de 1862, que aparece no somente nas fichas do IHGB,73 mas tambm no texto

de Alberto Venncio Filho74. Argeu Guimares, em seu dicionrio biobibliogrfico, aponta

o ano de nascimento para 1863.75 A lpide do tmulo dele consta mais uma data, tambm

diversa das anteriores: 23 de outubro de 1861,76 mas que a que mais se aproxima da

atestada no livro de Batismo da Matriz de Maric, Livro n. 4, folhas 19 e 19 verso,

68 HALBWACHS, Maurice. Op. Cit. 69 CHAU, Marilena. Janela da Alma, Espelho do mundo. NOVAES, Adauto [et al.] Op. Cit. p. 39. 70 NABUCO, Joaquim. Dirios: 1873-1910. Prefcios e notas de Evaldo Cabral de Mello, org. Llia Coelho Frota, Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi; Recife, PE: FUNDAJ, 2005, vol. 2, p 223. 71 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Op. Cit., vol. l., p. 139. 72 CAPISTRANO DE ABREU, Joo. Correspondncia de Capistrano de Abreu. Organizado por Jos Honrio Rodrigues. Rio de Janeiro: MEC/ Civilizao Brasileira, 1954,vol. I, p. 124. 73 IHGB, CDG, Lata 634 Estante 35. 74 VENANCIO FILHO, Alberto. Domcio da Gama. In: SILVA, Alberto da Costa e. O Itamaraty na Cultura Brasileira. Braslia, Instituto Rio Branco, 2001, p. 158 a 177. 75 GUIMARES, Argeu. Dicionrio bio-bibliogrfico brasileiro de diplomacia, poltica externa e direito internacional. Rio de Janeiro: Ed. do autor, 1938. 76 Visita ao Cemitrio So Joo Batista, Rio de Janeiro. O tmulo fica na ala da ABL, Quadra 8, 704F.

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sengundo a qual ele teria nascido em outubro de 1861, mas este documento tambm no

infere o dia correto:

Aos onze de junho de mil oitocentos e sessenta e dois nesta matriz batizei solenemente e pus os Santos leos a Domcio, branco, nascido em outubro do ano prximo passado, filho legtimo de Domingos Afonso Forneiro e Mariana Rosa de Loreto; avs paternos Domingos Afonso Forneiro e Maria Peres; maternos Ana Genoveva da Conceio. Foram padrinhos o Reverendo Vigrio Sebastio de Azevedo Arajo e Gama e protetora Nossa Senhora. Idem a Geraldino, pardo, nascido em janeiro do corrente ano, filho natural de Maria Luiza de Jesus. Foram padrinhos Domingos Afonso Forneiro e protetora Nossa Senhora.77

O pai de Domcio da Gama foi o portugus de Viana do Castelo, Domingos

Affonso Forneiro, que veio para o Brasil aos dezesseis anos, para fugir de uma tia

solteirona que queria v-lo padre.78 Chegando ao Brasil, tendo somente seus tamancos por

propriedade, enfrentou a febre amarela e at 20 horas de trabalho dirio sem garantias.

Tendo chegado apenas alfabetizado, no decorrer de sua vida aprendeu francs, com a ajuda

do dicionrio, e, nos seres familiares, lia Victor Hugo e a Histria Universal de Cesare

Cantu. Ao morrer, alm de uma biblioteca de cultura geral, deixou um pequeno engenho,

plantao de caf, roas, cabeas de gado79 e uma chcara em Niteri que aps a abolio

entrou em decadncia, devido falta de mo de obra. Apesar do atesmo de Domingos

contrastar com a profunda religiosidade da mulher, Mariana, cheia de supersties e

crenas, cabe constatar que havia uma dupla devoo a Nossa Senhora do Amparo,

incorrendo assim no fato de todos os sete filhos terem sido entregues a ela por batismo e

apadrinhados pelo vigrio Sebastio de Azevedo Arajo Gama.

Domingos Forneiro tinha duas crenas para os sete filhos. A primeira era que eles

deveriam ter sobrenomes diferentes, pois afirmava que os filhos deveriam ser feitos por

cada um deles mesmos, ao longo da vida. Esse costume pode ser visto como um resqucio

da cultura ibrica, em que o homem deveria apresentar valor prprio e autonomia, o

homem que filho de si mesmo, de seu esforo prprio, e as virtudes soberanas para essa

mentalidade so to imperativas, que chegam por vezes a marcar o porte pessoal e at a

77 IHGB, CDG, Lata 645 Pasta 33. 78 Dirio de Maria Luiza Frederica Ave Precht de Mesquita, sobrinha de Domcio da Gama. In: GAMA, Domcio da. Contos. Rio de Janeiro: ABL, 2001, p. XIX. 79Relao de bens deixados pelo finado Domingos Afonso Forneiro. IHGB, CDG, Lata 645, pasta 3.

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fisionomia dos homens.80 Assim, os filhos, Maurcio, Maria Agnelle, Antnio81,

Domingos, Jos, Sebastio e Domcio ganharam, respectivamente, os sobrenomes

Forneiro, Faustino e da Gama.

A segunda crena dizia respeito aos estudos. Todos os meninos foram

matriculados nos mesmos lugares: colgio interno do Visconde de So Valentim para os

ensinos elementares e os preparatrios na corte, no colgio do liberal e maom, Padre

Guedes. A postura do velho Forneiro era a de desprezar os filhinhos de papai dos bares

do caf. Assim ele estabeleceu que Maurcio e Antnio fossem mdicos, para serem

respeitados pelos fazendeiros ricos; Domingos e Jos, advogados, para ganharem sempre

nas questes de terras e impostos; e Domcio e Sebastio, engenheiros, pois deles muito

precisava o Brasil, to grande, nu e atrasado.82 Entretanto, se algum deles reprovasse na

escola, teria direito somente a uma segunda chance e, caso isso voltasse a ocorrer, teria a

mesada cortada, o que foraria o repetente a voltar casa paterna e enxada ou abrir

caminho sozinho na vida.

Todavia, aos dezesseis anos de idade, Domcio da Gama demonstrava uma

vocao inconteste para a literatura, e no para a engenharia. O gosto pela poesia,

compartilhava com Sebastio. No conto Um poeta83, Domcio definiu o irmo como um

poeta exclamativo que obedecia sem impacincia, sujeitava-se sem revolta, porque era

naturalmente humilde. O contraste entre os dois estava no fato de Sebastio no ter

vontade suficiente para impor sua afetividade entusiasmos mercenrios.84 Mas o conto

de fato uma mistura do prprio Domcio e Sebastio.85 No prefcio do seu livro Histrias

curtas,86 Domcio assinala a sua dificuldade em abstrair, e somente escrevia para as pessoas

que conhecia. Ele j apresentava um estilo em que, conforme Jos Verssimo analisou anos

depois, percebiam-se casos de conscincia, narraes de estados dalma, exposies de

80 HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 32. 81 O nico dos irmos a deixar descendncia, e feminina. 82 Dirio de Maria Luiza Frederica Ave Precht de Mesquita, sobrinha de Domcio da Gama. In: GAMA, Domcio da. Op. Cit., p. XIX. 83 GAMA, Domcio da. Contos a meia tinta. Paris: Imprensa Lahure, 1891, p. 203-217. 84 Idem. 85 Ao final do conto Sebastio morre. Como a data ao final de 1890, a dedicatria doce memria de Sebastio, e no mais Gama toca no nome dele nos documentos levantados, fica a possibilidade implcita de uma morte real do irmo. 86 GAMA, Domcio da. Nota para o meu melhor leitor. In: GAMA, Domcio da. Op. Cit., p. I-XVI.

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rasgos sentimentais, abundantes de idias e de sensaes raras.87 Os sentimentalismos,

segundo ainda Verssimo, eram curtos, apertados, tm em geral uma esquisita intensidade

de emoo [...]. A sua emoo, porm, no em geral a da sensibilidade, tem sempre mais

de intelectual que [aspectos] de verdadeiramente sentimental.88

Esse trao pode ser visto desde os seus mais antigos contos, A Aldeia e Que hei de

pensar,89 ambos de 1878, que demonstram tanto as suas dvidas religiosas como quanto a

sua vida futura: Para que serve essa cruz sobre a cpula da Santa Sophia e tudo o que

desejamos ardentemente atingir, ns os homens das cidades?. J em Que hei de pensar?,

Gama se interrogava sobre o que iria ser dele no futuro, mostrando subliminarmente a sua

insatisfao com o destino programado pelo pai: Lembrar-me-hei de meu passado?

Deterei o pensamento sobre os poucos radiosos instantes que tive no correr da vida, sobre

as figuras e imagens que me so caras? Ou ento sero as ms aces que pratiquei que me

viro todas memria, e a ansiedade adusta de um tardio remorso invadir minha alma?

Pensarei no que alm-tmulo me espera se que alguma cousa alm-tmulo me

aguarda?90

Tais dvidas existenciais refletiram-se diretamente na sua vida escolar. Na

Politcnica, Domcio agentou at o fim do 1 ano, no 2 passou raspando e no 3 foi um

fracasso completo e definitivo. Reprovao vergonhosa e inapelvel.91 Em sua segunda

tentativa do terceiro ano, aos dezoito anos, Gama pouco apareceu na Politcnica, pois tinha

a sua ateno voltada para outra coisa: o Grmio Literrio Jardim de Academus. O Grmio

era uma sociedade formada por vinte scios, todos de idade muito prxima, em que

Domcio fora eleito o presidente perptuo. De acordo com Gama, ali eles pensavam em

reformar o mundo e, para tal fim, estudavam a poltica, a religio e a arte, fisiologia e

gramtica, os modos de ser e os problemas dos destinos, a poesia.92 As reunies semanais

ocorriam nos fundos do segundo andar de um prdio que dava para oficinas da Gazeta de

87Jos Verssimo Apud: MARTINS, Wilson. Histria da inteligncia brasileira. So Paulo, Cultrix /Edusp, 1978, 5v. p. 255. 88 Idem.. 89ABL, ADG, 09.4.09. 90 Idem. 91 Dirio de Maria Luiza Frederica Ave Precht de Mesquita. Op. Cit., p. XIX. 92 Recepo do sr. Domcio da Gama ABL. Discursos acadmicos (1897-1919). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1936, vols. I a IV, p. 45 a 52.

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Notcias onde, ao som de uma polca tocada no piano da vizinha, chegaram a afirmar a

existncia de uma literatura nacional. Domcio da Gama afirma que foi esse voto que o

distraiu da matemtica, que me levaria indstria, para a literatura, que ainda no sei

aonde me leva. Cabe salientar:

Se a literatura nacional existia, eu devia trabalhar para ela provar a sua existncia aos incrdulos. [...] Nada existe to bem como aquilo que queremos que exista; como um fundador de religio que no pregasse e s esperasse depois de convencer-me; tomei sobre mim, dentro de mim, o encargo da nova crena. Quem sabe se na obscura causalidade universal o voto dessa noite dos tempos hericos do Jardim do Academus no influiu para a constituio desta Academia, na hora em que a literatura brasileira sentia que vivia e quis viver nacionalmente?93

Quando, ao final do ano, a reprovao veio certa, assim como a subseqente

suspenso da mesada, ele conseguiu escapar da volta para casa e para a enxada em busca

da opo de abrir caminho sozinho na vida. Ele havia conseguido se firmar como contista

para Jos Ferreira de Sousa Arajo em A Gazeta de Notcias. H mais de quinze annos fui

offerecer-lhe litteratura a imprimir. Elle no examinou-me a prosa. Contou as pginas do

conto que eu lhe levava e disse, condicionalmente: Se Servir, vai para a Stima

Columna.94 Creio que no serviu, ou s serviu mais tarde; porm, fiquei ento conhecendo

a Stima, que freqentei durante longos annos da minha inda mais longa mocidade.

A extenso ou mesmo qualquer pista sobre a reao do velho Forneiro escolha

do filho no se sabe ao certo, pois Domcio da Gama no deixou qualquer depoimento ou

mesmo histria contando sobre esta passagem de sua vida. Porm, seja em seus rascunhos

de um livro de memrias, em cartas ou artigos, a figura familiar mais presente o pai.95 O

seu relacionamento com o pai est presente nas entrelinhas de seus escritos. Aos vinte e um

anos em seu conto O Primeiro Exame publicado no Jornal O Alfinete, sob o pseudnimo

Dcio Moreno ele narrava:

Quando cheguei a casa com os ps queimados pela areia ardente do caminho as faces tostadas pela reverberao intensa do soalheiro s com minha me pude expandir a exuberncia da alegria que me afogava o corao, porque meu pai

93 Idem. 94 A Stima foi a coluna dos Ferreira de Arajo, Ea de Queiroz e Machado de Assis. In: GAMA, Domcio da. A stima Columna. s.d. ABL, ADG, 09.4.13. 95 Mais do que a me, a quem ele dizia que o entendia e o irmo Sebastio, a quem Domcio da Gama dedica o conto Um poeta. GAMA, Domicio da. Op. Cit., p. 203-217.

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quando chegou das roas tardinha, preocupado com os cuidados da lavoura, sentou-se comodamente para ler no jornal a correspondncia de Londres e cortou os vos oratrios que eu j me entregava com um Vai buscar-me um pouco dgua para beber. Obedeci e calei-me.96

Mas ao ler a situao em perspectiva dada pela distncia temporal, Domcio

percebeu que foi o medo, muito mais que a falta de esperana, o grande catalisador da

construo do seu prprio caminho. Medo de perder o que ele chamava de cidadelas da

filosofia pessoal.97 Os sentimentos de Gama pelo pai eram combinaes de tristeza pelo

afastamento dos dois, ao mesmo tempo em que buscava sua aprovao. A divergncia

entre pai e filho estava nas vises de mundo de cada um: o pragmatismo da viso do velho

Forneiro no combinava com a alma literria do filho. O pai era aquele que havia

construdo sua vida no trabalho pesado e criado seus prprios parmetros. Assim, talvez

no houvesse alternativa alm de mostrar ao pai que o que ele, Domcio, queria, no se

enquadrava nas regras do prprio Forneiro. Um resignado reconhecimento da diferena

entre os dois chegou anos mais tarde, em momento de reflexo sobre sua mocidade, que

definiu como pensativa e triste, como momentos nos quais Domcio da Gama estudava os

roteiros da vida sem esperana de os trilhar:

Quem s conhece o honesto cansao dos golpes em cheio e o obscuro contentamento de um fim de dia de trabalho proveitoso no pode entender o horror trgico destas lutas na sombra do prprio esprito contra o turbilho de phantasmas malficos que o medo cra, o medo filho da incerteza dissolvente. 98

Conversar com meu pae na roa, ainda me atormenta deante das impossibilidades de emprehender e deante de tudo e de todos. certamente essa a maior tristeza do homem sensitivo e sonhador, insensato que pretende, parcella infinitesima, attribui a influencear a massa infinita e indifferente.99

A presena do pai aparecer em momentos de sua vida futura, em forma ou de

desabafos rpidos como em uma carta Coelho Netto em 1915, em que recordava compras

de escravos por Domingos Forneiro,100 ou para relembrar uma promessa feita de manter a

96 "O Primeiro Exame" Jornal O Alfinete. 31 de maro, 1883. Publicado sob o pseudnimo de Dcio Moreno. ABL, ADG, 09.4.10. 97 ABL, ADG, 09.4.09. Sem data, 5 pginas. 98 Idem. 99 Vida estranha, Buenos Aires, IHGB, CDG, Lata 645 Pasta 18. 100 Carta de Domcio da Gama a Coelho Netto em 02 de dezembro de 1915. CCN, Seo de Manuscritos BNRJ, I - 01,03,031.

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honestidade na absteno muito mais que na ao ante a religio.101 Ou ainda em um de

seus raros desabafos sobre a famlia a Rio Branco em que ele volta a reiterar o Primeiro

Exame:102 Acabo por me convencer de que meu pai tinha razo quando me disse (ainda eu

era menino) que todas as minhas intelectualidades eram palavras vs e que s o corao me

impeliria na vida e que s ele bastava para lhe garantir a minha honestidade, contra o

subversivo e o imoral de todas as filosofias negativistas. Entre os seus escritos no arquivo

da Academia Brasileira de Letras, h um manuscrito de quinze pginas em que relata a

visita que faz casa paterna antes da sua primeira viagem para a Europa. Nesse raro relato

direto sobre sua vida, ele deixa claro o tamanho do abismo entre os dois:

Certamente se combinaram em gravidade pensativa e profunda e obscura demais para a anlyse das emoes vrias dessa despedida. Havia alli dois homens de mais de quarenta annos de differena, almas distantes de todo esse tempo vivido embora as ligasse a communho do affecto, pae e filho que se iam separar por muito tempo, seno para sempre, e filho trazia ao pae a notcia da sua runa e o pae sacudia-se do atordoamento do golpe cuidando...103

Apesar da incerteza sobre a existncia de uma dcima sexta pgina, a cena que a

pgina quinze relata , sem dvida alguma, importante no somente pelo aspecto pessoal,

mas como pelo peso de haver sido ele, Domcio da Gama, quem levou ao pai a notcia da

abolio da escravido. Uma conseqncia direta de tal fato foi a decadncia da chcara

em Niteri, por falta de mo de obra. Contudo, ainda olhando as histrias em perspectivas,

percebem-se entre os dois mais semelhanas do que as diferenas. Assim como o pai,

Domcio da Gama abriu seu prprio caminho na vida. O sentimento do filho que saiu de

casa pode se entrevisto em um verso:

Cantando me alonguei do lar paterno, Para encobrir a dor que ia-me na alma, E brinquei na esperana a doce calma Com que atravessei o duro inverno. Do exlio amargurado. A verde palavra Que anelei conquistar, prmio supremo Ao rude lidar de um viver do inferno Era a que bero me abrigou da calma Nas quentes horas de uns longnquos dias Da minha leda infncia. E no entanto

101 Carta de Domcio da Gama a Jos Pereira da Graa Aranha (doravante apenas Graa Aranha) em 17 de novembro de 1900. ABL, AGA 10.3.13. 102 Carta de Domcio da Gama ao baro do Rio Branco, Paris, 15 de janeiro de 1900. AHI, APBRB. Parte III (34). Lata 824 Mao 2, Expedida e Recebida. 103 Manuscrito 15 folhas. ABL, ADG, 09.4.09.

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Quando ao virar da erguida serraria Os olhos pus no sossegado canto Em que nasci, mudou-se-me a alegria Em convulsivo e doloroso pranto.104

1.2.1 - APRENDIZADO INFORMAL: INFLUNCIAS DE RAUL POMPIA E CAPISTRANO DE ABREU

Fora da escola, Domcio da Gama mergulhou em estudos literrios. O seu

autodidatismo se revelou atravs das pginas de fichamentos de autores clssicos, do

estudo do francs,105 assim como de notas esparsas de discusses literrias e de sua reflexo

acerca de um mtodo experimental da literatura: Esthetica da fora (a coragem, a

convico do gosto, conversa com o Sarinho a 7 janeiro 86, analysada nas cores vivas,

fixas e decididas ou cambiantes e amastecidas, neutras, conforme o gosto) e esthtica da

decadncia ponto controverso, de discusso muito extensa e fecunda (Presta-se a

ambio de talento).106 A Gazeta de Notcias107 seria um bero esplndido para qualquer

escritor iniciante. De acordo com Brito Broca, alm de ser a que abria maior espao

colaborao literria no Brasil, era tambm a melhor pagadora, s encontrando um

concorrente nesse terreno: o Dirio Mercantil, de Gaspar da Silva, em So Paulo.108 Junto

a essa fonte de renda, Gama, aos vinte e dois anos, foi, de acordo com Humberto de

Campos, professor de geografia em colgi