teresa medeiros - série contos de fadas 01 - duelo de paixões

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  • 2

    TTeerreessaa MMeeddeeiirrooss

    DDuueelloo ddee PPaaiixxeess

  • 3

    1 Livro da Srie Contos de Fadas

    RRReeesssuuummmooo

    O valente Lorde Bannor de Elsinore necessitava com

    urgncia de uma mulher sensata que cuidasse de seus

    filhos rfos e o mantivesse afastado da tentao

    carnal. Enquanto isso, a jovem Willow sonhava com um

    prncipe encantado que a libertasse de sua mesquinha

    famlia. Ambos contraem matrimnio, mas nenhum dos

    dois encontra o que procurava. Willow se sente como

    uma intrusa no castelo, com um aprumado marido que

    no a quer em seu leito. Logo descobrir que no a

    indiferena o que est no corao do impetuoso

    guerreiro, a no ser um desejo to real que acabar por

    derrubar todos os muros, uma paixo to ardente que

    nada poderia apag-la.

    ENTRE O ARDOR DA BATALHA

    Aceitar uma oferta de matrimnio era a nica maneira

    que tinha Willow de escapar de sua detestvel famlia.

    Como ia adivinhar que lorde Bannor, seu bonito marido,

    j era duas vezes vivo e pai de uma penca de meninos,

    legtimos e naturais, dos quais ela teria que cuidar?

    Decepcionada e ferida, convencida de que no tinha

    nenhum atrativo para seu marido, Willow se rebela. Com

    feliz assombro, descobrir que seu inimigo conta com

  • 4

    armas secretas e capaz de converter a rendio no

    maior dos prazeres.

    E A DOURA DA RENDIO

    Lorde Bannor de Elsinore, o mais temvel guerreiro da

    Inglaterra, no sabe como cuidar de seus indomveis

    filhos. A nica soluo procurar para eles uma me,

    uma mulher sensata que saiba educ-los, mas que sobre

    tudo no seja para ele uma tentao carnal que o leve a

    aumentar a famlia. Decidido a mostrar-se frio e

    distante, encarrega a seu fiel colaborador de lhe trazer

    uma mulher adequada... E assim aparece Willow, a

    jovem mais atraente, sensual e deliciosa que Bannor

    jamais viu.

  • 5

    PPPrrrlllooogggooo

    IIInnnggglllaaattteeerrrrrraaa,,, 111333444777

    Lady Willow de Bedlington tinha esperado este momento durante toda

    sua vida. Apertava com fora a mo de seu pai e apoiava o peso s vezes

    em um p, depois no outro, to excitada que estava tinha medo de urinar-

    se ali mesmo.

    Por fim, depois de seis anos de desejos e oraes, ia ter uma mame para

    ela.

    Olhou a seu pai de soslaio. Estava to bonito como o rei Edward em

    pessoa, to alto e sbrio no ptio do castelo, com a tnica adornada com

    um casaco, atada com um cinturo escarlate. O casaco poderia estar

    pudo e a empunhadura da espada opaca, mas Willow deslizou at seu

    colo e tinha penteado a barba da cor acobreada s uns segundos antes

    que o trompete de um arauto anunciasse a chegada da carruagem de sua

    prometida.

    Papai? sussurrou-lhe entre dentes enquanto esperavam que a

    carruagem e seu squito de cavalheiros subissem e serpenteasse caminho

    colina acima.

    Sim, princesa? respondeu, inclinando a cabea.

    Amar lady Blanche como amava a minha mame?

    Nunca amarei a outra mulher como amei a sua mame.

    Comovida pela saudade agridoce de sua expresso, Willow apertou a mo.

    Ele respondeu com uma piscada pouco convencida.

  • 6

    Mas o rei estar satisfeito se me casar com uma viva rica como

    Blanche. Seu senhor morreu na mesma batalha em que perdi meu brao

    bom. Assim ela necessitava de um marido com ttulo de nobreza e eu

    necessito ainda mais do generoso dote que proporcionar o rei.

    Balanou sua manta para frente e para trs Pensa em quanto ser

    maravilhoso desfrutar do favor do rei outra vez, Willow. Sua barriga no

    voltar a urrar como um urso. Haver carne fresca na mesa toda noite.

    No teremos que voltar a vender nenhum dos tesouros de sua me. S

    com os lucros da madeira dos bosques de Blanche nossos cofres

    transbordaro durante anos.

    Willow tentou parecer entusiasmada, mas no se importava com os mais

    mnimos benefcios da madeira nem os cofres transbordantes. Ela s

    esperava que a senhora Blanche necessitasse de uma menina pequena

    tanto como ela necessitava de uma mame. No teria sido capaz de

    suportar as longas ausncias do castelo de seu pai durante os ltimos

    meses, se no soubesse que seu pai estava cortejando a sua nova me.

    Sua nsia de ter uma me era o nico segredo que no tinha

    compartilhado com ele. Para falar a verdade, a maior parte do tempo

    estava contente de ser a garotinha do papai. Contente de costurar os

    rasges de suas meias pudas com pontos incompetentes. Contente de

    brigar quando saa sem a capa em um dia de inverno, quando nevava, e de

    derreter o gelo da barba dos beijos quando voltava. Contente de rir da

    satisfao quando ele a chamava de sua princesa e lhe revolvia os

    cachos escuros de seu cabelo. Nunca tinha se importado que em sua sopa

    de feijes houvesse mais sopa que feijes, sempre que pudesse dormir em

    seus braos depois que tivesse lido uma histria da Bblia manuscrita que

    tinha pertencido a sua me. Era o nico livro que seu pai resistiu a vender.

  • 7

    No era at depois de ter-se encolhido frente ao fogo, sobre uma esteira

    de palha e rodeada pelos sabujos do castelo, que seus pensamentos

    comeavam a vagar com a idia de quo agradvel seria ter uma me que

    lhe acariciasse o cabelo e que cantasse uma cano de ninar enquanto

    dormia.

    Voltou a esticar a mo na de seu pai.

    Ir querer-me a senhora Blanche?

    obvio, carinho. Como poderia algum no querer a princesinha do

    papai?

    Mas desta vez o pai no a olhou e nem apertou a mo com tanta fora

    que quase lhe fez mal.

    Com uma pontada de dvida, Willow alisou a saia de l de seu vestido com

    a mo que ficou livre. Ela mesma o tinha feito com recortes de tecido

    cortados de um vestido de sua me. Tinha trabalhado luz das velas at

    que seus olhos arderem e os dedos duros com fendas e sangrassem.

    Desejando impressionar a sua nova mame com suas habilidades com a

    agulha, tinha costurado uma caderneta de rosas ao redor do pescoo

    quadrado. Embora o vento que aoitava do norte anunciava neve, Willow

    preferiu tremer de frio antes que esconder seu trabalho sob um manto

    descolorido.

    Elevou o queixo, animada de repente por uma corrente de teimoso

    orgulho. Papai tinha razo, obvio. Como poderia algum no quer-la?

    Mas quando a esplndida carruagem cruzou com grande estrondo a ponte

    levadia, e entrou no ptio exterior acompanhado por uma dzia de

    cavalheiros que levavam estandartes, o pnico se apoderou dela. O que

    aconteceria se todos seus esforos no fossem suficientes? O que

    aconteceria a ela estava predestinado?

  • 8

    A carruagem coberta deteve-se com suavidade. Willow ficou boquiaberta

    ao ver a magnificncia dos damascos bordados das cortinas, e as rodas de

    cor nata e dourado. Seis corcis de um branco imaculado chutaram e

    moveram as cabeas, pavoneando-se de suas crinas tranadas. As

    campainhas trespassadas nas rdeas de pele soavam em uma alegre

    fanfarra.

    A senhora Blanche tem uma maravilhosa surpresa para ti lhe

    sussurrou papai ao ouvido.

    A porta da carruagem abriu-se com um chiado. Willow conteve a

    respirao, deslumbrada pela viso de um gracioso tornozelo; uma manga

    resplandecente adornada com pele de Marta; um cabelo loiro platinado

    recolhido em uma rede para cabelo.

    Quando a senhora Blanche acabou de sair de seu casulo de seda, o

    corao de Willow deu um pulo. Sua nova mame era inclusive mais

    bonita do que imaginou.

    Em sua cabea danavam imagens de todas as coisas apaixonantes que

    fariam juntas: cantar e recitar poemas para seu papai nas geladas noites

    de inverno, fiar linho na roca que tinha permanecido silenciosa e solitria

    depois da morte de sua me, recolher ervas medicinais nos aventais de

    seus vestidos quando a suave bruma verde da primavera chegasse

    deslizando sobre os prados.

    Quando a dama inclinou a cabea e observou papai com um sorriso

    radiante, Willow imaginou que iria apert-la contra seu colo perfumado e

    quase chorou.

    Avanou um passo sem dar-se conta, mas deteve-se em seco quando algo

    saiu tropeando da carruagem de trs de sua nova mame. A princpio

    pensou que se tratava de um co, uma dessas criaturas peludas, de nariz

  • 9

    chato que tanto gostavam s damas nobres. Mas quando se levantou e

    sacudiu a juba de cabelo loiro platinado para lhe lanar um olhar

    desafiante, deu-se conta de que era uma menina.

    Willow retrocedeu. Parecia que a senhora Blanche no ia necessit-la. J

    tinha uma menina prpria. Os olhos se abriram ainda mais quando um

    segundo pimpolho rechonchudo saiu com dificuldade atrs do primeiro.

    Desta vez era um menino, com as bochechas rosadas e as pernas

    gordinhas como chourios.

    Sua confuso aumentou quando um terceiro menino seguiu ao anterior, e

    depois um quarto. Tinha que esforar-se para no perder a conta. Trs,

    quatro, cinco. Cada um deles era to loiro e robusto como senhora

    Blanche, embora sem a graa desta. Agarraram-se ao redor de sua me

    como uma ninhada de lobinhos brancos, choramingando e gritando, e

    tropeando com a cauda do vestido.

    Tenho sede, mame!

    Eu tenho tambm!

    Tenho pip!

    Por que tivemos que vir a esta casa em runas? Quero ir para minha

    casa!

    As splicas e peties foram interrompidas por um grito que encheu de

    terror o corao de Willow.

    Papai Rufus!

    O maior dos meninos soltou a saia de sua me e se dirigiu para o pai de

    Willow. Seu grito foi como uma trompetista que chamasse batalha, e em

    um momento um pequeno exrcito correu atravs do ptio.

  • 10

    Willow plantou-se na frente deles com as pernas separadas, mas os

    meninos simplesmente a jogaram de um lado antes de rodear o seu pai,

    saltando acima e abaixo e o chamando.

    Papai Wufus!Papai Wufus!

    Teve que agarrar trs em seus braos antes de desaparecer sob seus ps.

    O menino e a menina maiores, que pareciam ter a mesma idade que

    Willow, penduraram-se em seu pescoo, enquanto que o resto se agarrou

    por seus braos e pernas.

    Sua me foi atrs deles. Levava um vulto envolto em peles em seus braos

    e sorria com indulgncia.

    Sentiram sua falta Rufus, e eu tambm. A voz da senhora era clara e

    doce, como a nata antes de ser batida, e o corao de Willow se contraiu

    de desejo. Ficou nas pontas dos ps para tentar ver o que havia no vulto

    que levava sua madrasta. Possivelmente se tratasse da maravilhosa

    surpresa que tinha mencionado seu pai.

    Enquanto fazia malabarismos com sua carga, passando-a do brao dbil ao

    forte para que no lhe casse nenhum menino, papai se inclinou para

    diante e esfregou a bochecha de Blanche com um beijo.

    Espero que tenham tido uma viagem agradvel, milady.

    Nem por indcio to agradvel como o que confio que me aguarda no

    final dele.

    Willow esperava que sua nova mame se dessa conta de sua presena,

    mas o olhar faminto da mulher seguia cravada em seu pai. Finalmente foi

    papai quem lhe dirigiu um olhar de causar pena.

    Willow, lhe disse que sua madrasta tinha uma surpresa para ti. J no

    ter que voltar a esbanjar seu tempo falando com amigos imaginrios.

    Agora ter irmos e irms de verdade para jogar com eles.

  • 11

    Os meninos deixaram de gritar de repente, e reinou o silncio, s

    quebrado por um beb que chupava o dedo ansiosamente.

    Cinco pares de olhos de gelo a examinaram. Nenhum dos filhos que tinha

    levado Blanche tinha vestidos infantis. Todos se vestiam como adultos em

    miniatura, com roupa de l crua, adornada com brocados dourados. O

    maior inclusive levava uma pequena espada, em uma empunhadura com

    incrustaes de rubis e esmeraldas. E todos tinham o cabelo loiro e

    sedoso, que lhes caiam perfeitamente lisos, sem rastro dos rebeldes

    cachos que sempre tinham aborrecido Willow.

    Encolheu-se o estmago quando se viu a si mesmo atravs desses pares

    de olhos claros e escrutinadores: uma menina boba vestida com os

    farrapos de uma mulher morta, e com um bordado de ns no decote que

    em vez de rosas pareciam urtigas.

    A menina maior apoiou a cabea no peito de papai e bateu suas pestanas

    de um loiro quase branco.

    Nunca tinha visto um cabelo to negro, mame. Caiu nas cinzas?

    Querer dizer no esterco do estbulo. Por isso tem a pele to escura e

    spera disse seu irmo soprando.

    Papai franziu o cenho e olhou ao menino que tinha em braos.

    Advirto-te, moo, que no consentirei...

    No ria de sua meio-irm, Stefan interrompeu Blanche com

    suavidade A pobre criatura no pode evitar seu aspecto.

    Willow no parece um nome cristodisse a menina, olhando-a ainda

    com receio - pag?

    Willow tinha sido o apelido que tinha posto seu pai desde que ficou

    dormindo sob os ramos pendentes de um salgueiro quando era um beb,

  • 12

    e seu pai e os habitantes do castelo a tinham estado procurando at a

    manh seguinte.

    Antes que pudesse esclarecer que seu verdadeiro nome era Wilhelmina, a

    risada baixa e gutural de lady Blanche a interrompeu.

    obvio que no pag, Reanna. Sua me era francesa.

    O sorriso da mulher no vacilou, mas entreabriu os olhos levemente, e

    isso conferiu um ar malevolente a seu olhar. O sangue de Willow gelou

    nas veias.

    Os franceses mataram a nosso pai na guerra - disse Stefan friamente,

    enquanto acariciava o punho de sua espada em miniatura com sua mo

    gordinha.

    Willow apertou-se contra a perna de seu pai e tentou voltar a lhe agarrar a

    mo.

    Agora no, Willow lhe espetou seu pai, que fazia caretas de dor

    enquanto lutava por desembaraar-se dos dentes do meio e sair de um

    beb que lhe mordia a orelha, e ao mesmo tempo tentava que seu brao

    dbil no cedesse sob o peso de Stefan - No v que s tenho duas mos?

    Willow retirou a mo e ruborizou. Seu pai nunca a tinha repreendido

    naquele tom.

    No faa indagaes, querida. No nada decoroso. Aqui tem algo para

    manter suas mozinhas ocupadas ronronou sua madrasta.

    A mulher lanou o vulto peludo que sustentava nos braos de Willow. Esta

    nem sequer lhe jogou uma olhada, porque no podia afastar os olhos de

    Blanche, que agarrou a seu pai no brao e o dirigiu com firmeza para o

    castelo. Os meninos os seguiram com passos errantes. Reanna se inclinou

    sobre o ombro de papai e mostrou a lngua a Willow. Papai lhe dirigiu uma

  • 13

    ltima e impotente olhar antes que todos desaparecessem nas sombras

    do grande salo.

    Willow poderia ter permanecido ali todo o dia, confusa e aflita, no se deu

    conta de que um estranho calor se estendia pela parte dianteira de seu

    vestido. O vulto comeou a retorcer-se. Abriram os olhos de espanto

    quando uma mecha de cabelo loiro platinado e um rosto rosado

    apareceram lentamente por uma abertura no vulto de pele. O rosto de

    duende enrugado se voltou da cor carmesim antes de deixar cair cabea

    para trs e comear a chorar com uns gritos que partiam a alma e as

    orelhas.

    S ento se deu conta de que sustentava a outro dos cachorrinhos de sua

    madrasta. E s ento ouviu as risadas sarcsticas dos cavalheiros de

    Blanche, que se golpeavam uns aos outros com o cotovelo e a

    assinalavam. S ento se precaveu do que era exatamente o que estava

    empapando seu precioso vestido e gotejando em seus sapatos.

    Esforando-se por no unir seus prprios gritos aos do beb, Willow

    levantou o queixo e dirigiu um olhar severo aos homens que sorriam.

    O que fazem a enlevados? Nunca tinham visto ningum urinar-se em

    cima de uma dama?

    Os cavalheiros ficaram firmes, reprimindo as risadas, enquanto Willow

    recolhia a prega empapada da saia e se dirigia ao castelo, tentando no

    cambalear sob o peso do estridente vulto.

    Os filhos so uma herana do Senhor. Os meninos, uma

    recompensa dela. Como as flechas nas mos do guerreiro so os

  • 14

    filhos nascidos em nossa juventude. Bendito aquele cuja aljava est

    cheia deles.

    (Salmo 127 A sagrada Bblia)

    CCCaaappptttuuulllooo III

    IIInnnggglllaaattteeerrrrrraaa,,, 111333666000

    Sir Bannor o Audaz corria precipitadamente pelos escuros corredores de

    pedra do castelo. O suor lhe escorria sobrancelhas abaixo e o corao

    pulsava desbocado no peito como um tambor de guerra. Dobrou a

    esquina a toda pressa e se escondeu no oco de uma janela afundada no

    muro, lutando por acalmar a rouca respirao que no o permitia escutar

    se aproximavam seus perseguidores.

    Durante um instante bendito, houve silncio. Depois ouviu o implacvel

    golpear de seus ps contra o cho, seguido dos gritos selvagens que

    pressagiavam sua sorte.

  • 15

    A mo tremente dirigiu-se instintivamente ao punho da espada, antes que

    recordasse que a arma seria intil contra eles. Estava indefeso.

    Se qualquer dos homens que tinham brigado a seu lado contra os

    franceses durante os ltimos quatorze anos tivesse visto o calafrio de

    terror que percorreu seu volumoso corpo naquele momento, teria

    duvidado de seus prprios sentidos. Tinham-lhe visto escalar a parede de

    um castelo sem mais ajuda que suas mos, se esquivando do azeite que

    caa ardendo do cu como se tratasse de fogo do inferno. Tinham-lhe visto

    descer de um salto de seu cavalo e correr em meio de uma chuva mortal

    de flechas, para recolher a um homem cansado em combate sobre seu

    ombro e lev-lo a um lugar seguro. Tinham visto romper a folha de uma

    espada francesa contra sua prpria coxa, sem indcio de vacilao a causa

    da dor, e depois usar essa mesma espada para acabar com o homem que

    o tinha atacado. Para deleite do rei Edward, sabia-se que alguns de seus

    inimigos tinham deposto as armas e se renderam somente ante o rumor

    de que Sir Bannor se achava no campo de batalha.

    Mas nunca antes enfrentou a um adversrio to formidvel, to carente

    de piedade e de compaixo crist.

    Enquanto passavam em correria diante de seu esconderijo, encolheu-se

    contra a parede, enquanto movia os lbios silenciosamente em uma

    orao, para que Deus, que sempre tinha estado ao seu lado nas batalhas,

    o resgatasse.

    Mas no ms que tinha transcorrido desde que se assinou o armistcio com

    os franceses, parecia que at Deus o tinha abandonado. Os uivos de

    triunfo que chegaram a seus ouvidos pareciam provir do prprio Lcifer.

    Tinha sido descoberto! Muito aterrorizado para pensar nas conseqncias,

    saiu em disparada, desfazendo o caminho que acabava de seguir. Os

  • 16

    diabos estavam quase em cima dele, to presos aos seus calcanhares que

    podia sentir seu flego chamuscando a parte posterior de seu espartilho.

    Subiu as escadas em caracol, com a esperana de chegar ao refgio da

    torre norte antes que o alcanassem e o despedaassem como a uma

    matilha de ces guias de ruas. A porta de madeira apareceu ante ele.

    Equilibrou-se sobre o fecho de ferro e empurrou, rezando para que sua

    mo suada no escorregasse. Algo o agarrou pelo tornozelo. Durante um

    instante que lhe gelou os ossos, temeu que tudo estivesse perdido. Ento

    a porta se abriu.

    Cruzou a soleira de uma sacudida, desembaraando-se ao mesmo tempo

    daquilo que o sujeitava, e de uma portada fechou a porta atrs de si. S

    quando a tranca da porta caiu pesadamente em seus suportes metlicos,

    atreveu-se a desabar contra a porta e aspirar uma grande e entrecortada

    baforada de ar. Os raivosos gritos que exigiam que se rendesse foram

    aumentando at que se detiveram em seco.

    Por favor, Senhor murmurou, desejando no perder ainda o favor de

    seu velho aliado isso no. Algo menos isso.

    No passado tinha suportado quatro meses em uma masmorra de Calais,

    preso a uma mida parede de pedra, com piolhos e ratos como nica

    companhia. Quando seus carcereiros lhe davam papa ranosas para

    aliment-lo, saboreava cada bocado e logo pedia para repetir. Depois que

    o tivessem estirado no ponto de tortura, deixou a todos surpresos ao

    acordar de uma soneca. Quando lhe queimaram a carne com um ferro

    ardendo, tragou os gritos de dor e havia rido em seus rostos. Mas nem

    sequer seu carcereiro mais diablico tinha conseguido lhe dar uma tortura

    to cruel, to capaz de acabar com a vontade de um homem e lhe fazer

    suplicar piedade como...

  • 17

    Papai?

    Bannor gemeu em meio de uma agonia mortal. E outra vez, a suave voz de

    um anjo:

    Papai? No zaldrz a jogar com nozotroz?

    Bannor jurou pelo baixo. Muito prprio desse ardiloso demnio do

    Desmond o de enviar a sua irm de seis anos a negociar uma trgua.

    Nenhum outro de seus filhos era to bonito ou to doce como a pequena

    Mary Margaret.

    Ou era Margaret Mary? Bannor lutou por recordar a rosto de sua filha,

    mas no pde passar de uma vaga idia de olhos azuis como a nvoa e uns

    cachos dourados. Segundo o pai Humphries, o sacerdote do castelo,

    parecia-se com sua me. Bannor sentiu-se envergonhado ao dar-se conta

    de que tinha estado ausente do castelo durante tanto tempo, que

    tampouco podia recordar de maneira precisa o aspecto de sua segunda

    esposa.

    Parte, cu sussurrou junto porta Papai j no quer jogar mais.

    Odiava o tom de splica que aparecia em sua voz, mas no podia evit-lo.

    Zlo queremoz que zeaz nueztro poni. Voc prometemoz

    que no volveremoz a te pegar.

    Nem atiraremos mais pimenta em seu elmo se uniu outra voz

    esperanada.

    Nem voltaremos a te queimar a barba gorjeou um terceiro.

    Enquanto Bannor acariciava o que ficava de barba, o coro de splicas

    chegou a um crescendo com o Por favor, papai da Mary Margaret.

    Bannor fez fora para resistir lastimosa cantinela.

    Fora daqui! rugiu Papai tem assuntos importantes dos que

    ocupar-se.

  • 18

    Mais importantes que ns, sem dvida. Urinar sobre as pulgas, por

    exemplo.

    Bannor apertou os lbios ao reconhecer no ressentido grunhido a voz de

    seu filho maior e herdeiro. Da boca de Desmond, de treze anos, saam

    palavras mais sujas que uma privada. Bannor ardia de vontades de agarrar

    ao menino por seu imundo cangote e repreend-lo por sua insolncia.

    Mas para isso teria que abrir a porta.

    A voz de Desmond animou-se.

    J o tenho! Vamos usar os foles para preencher os embutidos do

    cozinheiro com azeite de queimar!

    As queixas abatidas dos menores se converteram em alaridos de alegria

    enquanto Desmond e seus seguidores baixavam as escadas carreira,

    como se fossem uma ninhada de filhos de Satans.

    Quando por fim seus passos se afastaram, Bannor se apoiou na porta,

    desfeito pela indigna situao. Ele, lorde Bannor o Audaz, senhor de

    Elsinore, orgulho dos ingleses e terror dos franceses, estava prisioneiro em

    seu prprio castelo, cativo de um exrcito de mucosos.

    Seus mucosos.

    Sacudiu a cabea, mas o nico que conseguiu foi levantar uma nuvem de

    pimenta que saa de seu cabelo. Quando seu ataque de espirros acalmou,

    aprumou-se, descansou a mo no punho da espada e sua mandbula se

    contraiu em uma careta capaz de gelar o sangue de qualquer inimigo. No

    era prprio dele render-se sem brigar. Decidido a encontrar a maneira de

    demonstrar a sua rebelde descendncia que se equivocou de homem

    contra quem lutar, dirigiu-se janela, abriu a veneziana com um golpe e

    com um rugido chamou o servial.

  • 19

    Quando um ofegante Sir Hollis chegou ao alto das escadas, em resposta s

    tormentosas chamadas de seu senhor, surpreendeu-se ao encontrar a

    porta fechada e gradeada.

    Preocupado pelo silncio que reinava no interior, aproximou os lbios da

    porta.

    Senhor?

    Est sozinho? respondeu-lhe um sussurro. Olhou por cima de um

    ombro, depois do outro.

    De tudo.

    A porta rangeu ao abrir-se. Um brao musculoso saiu disparado pela

    abertura, arrastou-o para dentro e voltou a fechar e gradear a porta atrs

    de si.

    Hollis mal teve tempo de tomar flego antes de voltar a ficar sem ele, ao

    ver a expresso de seu senhor. Bannor tinha as pernas tensas, e o peito

    subia e descia enquanto apertava os punhos com fora. O cabelo escuro

    caa de ambos os lados do rosto em um matagal selvagem, e emoldurava

    uns olhos avermelhados de fria. Mas o mais surpreendente era o estado

    de sua negra barba. Ou do que restava dela. Hollis inclinou-se para sua

    mandbula e inspirou. No era sua imaginao. Seu amo, na verdade,

    cheirava a fumaa.

    Santo Deus. Eles atacaram? Hollis olhou assustada ao seu redor - H

    um inimigo espreitando dentro dos muros do castelo?

    Sim replicou Bannor, carrancudo dez, para ser mais exatos.

    Armados s com seu engenho e suas splicas.

    Dez? Hollis franziu o cenho e depois assentiu quando entendeu a

    que se referia Ah, quer dizer os meninos.

  • 20

    Meninos? soprou Bannor Essa palavra muito amvel para essa

    prole do demnio. Se no tivesse contado os dedos dos ps eu mesmo

    quando ainda era um beb, ordenaria que Desmond os inspecionasse at

    lhe encontrar a cauda, o tridente e as patas.

    Suponho que esto um pouco descontroladas disse o servial,

    prudente, contendo um sorriso Possivelmente to somente a

    exuberncia natural da juventude.

    Exuberncia? ... Malevolncia, diria eu. Bannor deixou-se cair em

    uma cadeira e varreu a mesa com o brao, deixando pulverizados diversos

    pergaminhos e levantando uma nuvem de p. Maldita seja esta horrvel

    paz! Oxal a guerra contra os franceses tivesse durado cem anos!

    Hollis suspirou com melancolia, j que ele desejava o mesmo. Se Edward

    no tivesse assinado o tratado de Brtigny, Bannor e ele estariam

    sentados em uma loja de algum distante campo de batalha, brindando por

    sua ltima vitria. Depois de anos de ser camarada, o final da guerra os

    tinha forado a assumir os papis de amo e vassalo. Temia que sua

    capacidade para ser servial de uma propriedade to grande como

    Elsinore fosse to duvidosa como a de seu senhor para exercer de ser um

    pai carinhoso de um punhado de mucosos.

    De um sopro Hollis tirou o p de uma taa antes de servir a Bannor um

    pouco de cerveja da jarra de barro que havia na mesa com a inteno de

    acalmar um pouco os nimos. Se por acaso no funcionasse, serviria um

    pouco para ele.

    Estivestes em uma campanha atrs de outra desde que no foram mais

    que um menino voc mesmo. Possivelmente o nico que precisam um

    pouco de disciplina.

  • 21

    No entende Bannor se inclinou sobre a mesa e baixou o tom de voz

    at convert-la em um rouco sussurro como se estivesse confessando um

    terrvel pecado No me tm medo.

    Hollis teve que sentar-se na chamin e tomar um generoso gole de cerveja

    para digerir aquela surpreendente revelao. Tinha lutado ao lado de

    Bannor durante mais de treze anos, e ainda no tinha encontrado a um

    homem que no retrocedesse de medo quando Bannor se erguia at sua

    altura mxima, ou levantava a voz no mais que um murmrio. Naquela

    mesma manh um moo tinha sado do grande salo em lgrimas s

    porque tinha mostrado os dentes e tinha desejado um bom dia.

    Em qualquer caso, no pode passar o resto da vida fechado nesta torre

    disse Hollis pensativo Talvez fosse melhor conseguir que tivessem

    medo.

    E como sugere que o faa? Jogue-os nas masmorras? Ou cortem as

    cabeinhas? Bannor levantou-se e caminhou para a janela, derramando

    cerveja pela borda da taa a cada furioso passo que dava. Intrigado pelos

    gritos de alegria que o vento levava at ali, Hollis foi atrs dele.

    No ptio situado a seus ps reinava o caos. A anglica Mary Margaret

    estava muito ocupada enchendo peles vazias de intestino para embutidos

    com azeite de queimar. Enquanto isso, dois de seus irmos tinham

    capturado a um dos pajens mais jovens e o sustentavam agarrado pelos

    tornozelos em cima de um poo.

    Desmond! gritou Bannor, aparecendo janela Solta a esse moo

    agora mesmo!

    Antes que pudesse retratar-se de sua pouco afortunada eleio de

    palavras, um chapinhar e uns gritos surdos chegaram a seus ouvidos do

    poo.

  • 22

    Enquanto um escudeiro ia correndo resgatar o moo que tinha cado no

    poo, Desmond dirigiu uma reverncia aduladora para a torre e gritou:

    Sempre um prazer cumprir suas ordens, senhor.

    Isto a maldio do Elsinore. Meu pobre pai, que era um canalha

    desumano, teve dezessete filhos legtimos e trinta e seis bastardos, dois

    deles em seu leito de morte. A gente acreditaria que o lema da famlia

    Cresa e se multiplique em vez de Conquistar ou morrer grunhiu

    Bannor baixo.

    Hollis no necessitava que o recordassem que seu amo tinha sido um

    desses bastardos. Se no granjeou o favor do rei graas a sua resolvida

    lealdade e a seu valor em combate tenra idade de dezessete anos,

    Bannor seguiria sendo um soldado sem dinheiro, em vez de senhor de

    uma das posses mais ricas de seu pai. Bannor a tinha arrebatado a seu

    legtimo irmo maior com a mais sincera bno do rei. E o resto de seus

    meio-irmos tinha fugido a um dos castelos de seu pai situados mais ao

    sul, para ouvir que Bannor o Audaz, um dos jovens cavalheiros mais

    blicos e de mais confiana de Edward, tinha reunido um exrcito e estava

    preparando para partir sobre Elsinore.

    Bannor olhou para Hollis desesperadamente.

    Deus deve estar me castigando por minha luxria. meu nico defeito.

    Nunca fui aficionado a bebidas fortes, nem me deixo levar pela fria, nem

    tomo o nome de Deus em vo.

    No pode carregar toda a culpa pela existncia de seus filhos, senhor.

    Suas duas esposas os adoravam. Inclusive quando tentavam lhes dar uma

    pausa em seus cuidados, elas deslizavam em sua cama em metade da

    noite e insistiam em cumprir com seus deveres maritais. Dirigiu a

  • 23

    Bannor um olhar que expressava de uma vez compaixo e um pouco de

    inveja este seu rosto condenada, a que as damas no podem resistir.

    Se ao menos tivesse nascido com um rosto ordinrio, como voc...

    disse Bannor, meneando a cabea e suspirando.

    Hollis, que se considerava mais que pausadamente bonito, com seu

    bigode arrepiado e sua cabea coberta de forte cabelo marrom, dirigiu a

    seu amigo um olhar ofendido, antes de captar a piscada maliciosa nos

    olhos de Bannor.

    Dado seu atrativo, senhor, este talvez seja s o comeo de sua prole.

    Depois de tudo, s tm trinta e dois anos. Ouvi que homens que tiveram

    filhos a idade to tardia como os setenta e cinco! respondeu Hollis com

    um sorriso.

    Deus no o queira. Antes me castraria eu mesmo disse Bannor

    estremecendo-se.

    Algum bateu na porta. Uma sombra de pnico cruzou a rosto de Bannor.

    Pergunta quem antes de abrir. Desmond mais ardiloso que o

    Prncipe Negro disse, referindo-se ao filho do rei Edward, que tinha sido

    to hbil que tinha tomado como refm ao rei francs no Poitiers

    Poderia ser uma armadilha.

    Hollis obedeceu.

    Fiona senhor.

    Quando Bannor assentiu, abriu a porta, atrs da qual a enrugada bab

    irlandesa sustentava um vulto que no parava de retorcer-se. Bannor

    tomou o resto de sua cerveja antes de esconder a rosto na mo e

    murmurar:

    Santo Deus bendito, outro no.

  • 24

    Temo-me que sim, milorde disse Fiona, entrando apressadamente

    na torre o segundo em quinze dias. Encontrei-a em uma cesta na

    porta da casa do porteiro.

    Trazia esta alguma nota?

    No senhor, s uma manta e urticria por todo o corpo.

    Embora Bannor se mantivesse firmemente distncia, Hollis no pde

    resistir a retirar a puda manta para dar uma olhada. O rosto do beb

    estava ainda mais enrugado que a de Fiona.

    Hollis franziu o cenho, perplexo.

    Mas se esta criatura no pode ter mais que umas semanas. No

    estavam na Gascua com o Edward quando...

    Que v ao povo a procurar uma ama de leite, Fiona lhe interrompeu

    Bannor como se no tivesse ouvido nada E diga ao sacerdote que a

    batize e lhe ponha um nome. A pobre criatura pelo menos merece um

    nome. Apontou com o dedo a radiante bab Mas que no seja

    Margaret. Nem Mary. J temos trs Margarets, uma Mary e uma Mary

    Margaret. Isso confundiria a qualquer homem.

    Sim, milorde respondeu Fiona, fazendo uma torpe reverncia.

    Quando se virou para partir, a menina comeou a mover-se inquieta. A

    bab a ps no ombro, cantarolando brandamente em galico. A menina se

    acalmou como se tivesse estado sob o feitio de algum encantamento, e

    comeou a fazer alegres borbulhas de baba e, a arrulhar como uma

    pomba.

    Bannor as viu partir com uma curiosa expresso no rosto.

    Possivelmente o que necessitam meus filhos no a mo firme de um

    homem disse com ar distrado a no ser a mo delicada de uma

    mulher.

  • 25

    Fiona uma mulher assinalou Hollis.

    Sim, mas est fazendo maior. Uma sombra de melancolia passou

    pelo rosto de Bannor. E ainda no se inventou um toque mais delicado

    que o de uma me.

    Quando se virou para dirigir a Hollis um olhar penetrante, qualquer rastro

    de ternura tinha desaparecido do rosto de Bannor. Seus traos severos

    voltaram a adquirir a expresso implacvel que sempre tinham quando

    estava preparando uma campanha... Ou uma emboscada.

    Hollis deu instintivamente um passo atrs, temendo ser seu objetivo. Seu

    medo foi justificado quando Bannor comeou a lhe espreitar, com um

    sorriso de predador em seus lbios.

    Na verdade, Hollis, acredito que seria o homem ideal para encontrar

    uma me para meus filhos.

    Eu? Hollis retrocedeu at a mesa, fazendo que a jarra de cerveja

    cambaleasse P... P... Mas senhor, no seria mais prudente que

    escolhesse voc mesmo a sua esposa?

    Bannor varreu suas objees com um movimento da mo.

    No tenho critrio no que se refere s mulheres, s loucura. Se de mim

    dependesse, voltaria a escolher outra rolia beleza perfumada como Mary

    ou Margaret, antes que pudesse me liberar do feitio de seu perfume,

    voltaria a estar rodeado por uma nova ninhada de mucosos para me

    aterrorizar.

    Dirigiu-se para o outro lado da mesa e comeou a examinar os

    pergaminhos dispersos at que encontrou uma parte em branco. Inundou

    a ponta de uma pluma de ave no tinteiro e comeou a escrever

    furiosamente.

  • 26

    Se h rumores que o rei estar em Windsor, revisando a renovao do

    castelo. Se autorizar minha petio, ter total autoridade para escolher

    uma noiva por mim, arrumar as escrituras nupciais com a famlia e fazer os

    votos sagrados ante um sacerdote.

    O pnico de Hollis aumentou.

    Queres que me case com sua esposa?

    Bannor deixou de escrever e lhe dirigiu um olhar exasperado.

    obvio que no. S quero que ocupe meu lugar enquanto se lem as

    admoestaes e o sacerdote benze a unio. Selou a missiva com uma

    gota de cera derretida, e depois se levantou para entregar na mo o

    pergaminho a Hollis Quando voltar a Elsinore com minha esposa, j

    estar tudo arrumado. Estarei casado com essa mulher aos olhos tanto de

    Deus como do rei. Aplaudiu a seu amigo no ombro. Hollis tentou no

    cambalear-se Deixo meu futuro em suas mos, meu amigo. O que

    preciso alguma criatura dcil e maternal, que no seja nenhuma

    tentao para meus apetites.

    Hollis ocultou o pergaminho em seu cinturo, suspirando derrotado. Sabia

    melhor que ningum que no havia maneira de dissuadir Bannor uma vez

    que tinha tomado uma deciso.

    Dado que sua fama como um dos favoritos do rei chegou a todos os

    lugares mais afastados do reino, no acredito que seja um grande desafio

    encontraram uma esposa.

    Pode ser que o desafio seja maior do que imagina. Matei a minhas duas

    primeiras esposas disse Bannor arqueando uma sobrancelha escura.

    Embora em realidade no fosse sua culpa, senhor.

    Bannor voltou a dirigir-se para a janela e ficou olhando para o ptio, com

    as mos a costas. Uma risada infantil chegou flutuando at seus ouvidos,

  • 27

    inocente e melancolicamente doce. A expresso de Bannor suavizou-se,

    delatando o desespero que ocultava debaixo de seu mau gnio.

    Encontra-a por mim, Hollis. Encontra a uma mulher que ame a meus

    filhos como se fossem dela.

    Quando Hollis viu a preocupao contida do amigo mais fiel que tinha

    conhecido, uma quebra de onda de lealdade assaltou seu corao.

    Encontrarei-a, senhor. Fincou o joelho e levou a mo ao punho da

    espada O juro por minha vida.

    CCCaaappptttuuulllooo IIIIII

    Bannor ia mat-la.

    Hollis avanava penosamente atravs do bosque coberto de musgo,

    enquanto guiava a seus exaustos arreios e imaginava taciturnamente que

    horrorosa forma tomaria sua morte. Ser atravessado pela espada de seu

    senhor seria muito misericordioso. Merecia, pelo menos, um banho lento

    em uma tina com azeite fervendo, ser devorado lentamente pelos ratos da

    masmorra, ou uma entrevista a meia-noite com o verdugo encapuzado.

    Possivelmente poderia pedir a Bannor que cravasse sua cabea em uma

    estaca como advertncia para outros jovens cavalheiros que pudessem ser

    o suficientemente estpidos para aceitar uma petio impossvel como

    aquela.

  • 28

    Senhor? atreveu-se a perguntar um dos soldados que trabalhava em

    excesso atrs dele a quarta vez que passamos ao lado desse carvalho.

    Temo que estejamos perdidos disse o outro.

    Perdido murmurou Hollis, ainda apanhado em seu cru sonho Sim,

    tudo est perdido.

    O solo feito de pr um p diante do outro parecia estar acabando com o

    resto de suas foras. Ele e seus homens tinham estado penteando a

    campina inglesa durante dois meses. Tinham visitado todas as casas

    nobres desde Windsor a Gales com filhas em idade casadoira, mas ainda

    no tinha podido encontrar uma noiva apropriada para seu senhor.

    Apesar da pessimista predio de Bannor, no tinham faltado pais

    dispostos a lanar a suas filhas nos braos de seu senhor. Mas se a maior

    era muito doce e bela, a menor era muito antiptica e feia. Se uma

    confessava que no gostava dos meninos, outra se esfregava o ventre e

    prometia dar a Bannor muitos filhos vares que honrassem sua casa.

    Tinha albergado esperanas quando encontrou filha de um conde que

    tinha uma cintura larga e um bigode mais povoado que o seu, at que lhe

    tocou o joelho por debaixo da mesa de cavalete, bateu seus olhos sem

    pestanas e grasnou que era uma pena que um homem jovem e viril como

    ele no procurasse esposa. A horripilante viso de Bannor esmagado sob

    suas macias coxas o tinha feito fugir do palcio de seu pai na metade da

    noite.

    Um suspiro de derrota escapou de seus pulmes. O tapete de folhas que

    rangia sob seus ps logo estaria coberto pelas primeiras neves do inverno.

    No ficava outra opo que retornar a Elsinore e confessar a Bannor que

    tinha fracassado. Talvez no ficasse to mal com a cabea sob o brao.

  • 29

    Tropeou, chamou o alto e olhou a seu redor, luz tenebrosa do bosque.

    No pde seguir evitando por mais tempo o que seus homens estavam

    tratando de lhe dizer. Estavam perdidos, e j devia fazer um bom

    momento que o estavam. As velhas rvores elevavam-se sobre eles com

    esplendor misterioso, e suas coroas outonais de folhas douradas e

    escarlates esfumavam a luz de modo caprichoso. Justo em frente deles viu

    um claro na folhagem. Primeiro pensou que era uma iluso pelas sombras,

    mas logo lhe chegou o dbil eco de uma risada muito aguda que lhe

    chamou a ateno.

    Os homens que o acompanhavam retrocederam, trocando olhares

    duvidosos.

    Eu arrancaria a espada, se fosse voc, senhorlhe advertiu um deles -

    Poderia ser um duende do bosque.

    Ou uma fada sugeriu o outro, fazendo sobre seu peito o sinal da

    cruz.

    Sim disse a primeira Essas fadas gostam de levar os mortais a suas

    guaridas subterrneas e lhes roubar sua semente.

    Hollis soprou.

    Provavelmente nos mandariam de um empurro a procurar a nosso

    amo. Bannor poderia povoar um reino de fadas inteira.

    Fincou um joelho no cho, separou as reluzentes samambaias e descobriu

    um prado emoldurado entre luz e sombra. Seus pequenos habitantes

    corriam e davam cambalhotas sobre a grama alta e marrom com feliz

    despreocupao, cabelo loiro e ps ligeiros. A primeira vista, Hollis pensou

    que realmente tinham ido parar a algum reino de fadas. Mas ento uma

    das criaturas tropeou em uma raiz e caiu, e seus gritos de raiva lhe

    demonstraram que era mortal.

  • 30

    Antes que Hollis pudesse nem sequer expor-se e ir resgatar ao menino,

    uma pastora se separou do brincalho rebanho de meninos e se

    aproximou do menino cado. Enquanto recolhia ao vociferante menino em

    seu colo, a curiosidade do Hollis foi aumentando. Entreabriu os olhos para

    ver melhor, mas no pde distinguir seus traos. Embora movesse com a

    graa e a rapidez prpria da juventude, sua vestimenta no dava nenhuma

    pista a respeito de sua idade. Levava o cabelo recolhido em uma boina de

    l vermelha e um vestido cinza com um avental, como os que estavam

    acostumados a levar as faxineiras.

    No foi seu aspecto o que lhe chamou a ateno, a no ser a curva

    protetora de seus ombros enquanto embalava ao menino contra seu

    peito. Estava muito longe para ouvir sua voz, mas podia imagin-las

    palavras carinhosas que devia estar cantarolando para acalmar os soluos

    do menino.

    Hollis se sentou sobre os tales. Talvez tivesse estado procurando em

    direo equivocada. Depois de tudo, Bannor nunca lhe havia dito que sua

    esposa devesse ser de origem nobre. Por que no lhe obsequiar com uma

    jovem Fiona, uma camponesa tmida e robusta que estaria encantada de

    cuidar de sua indomvel prole, e no afligiria a seu amo e senhor com

    peties de nenhum tipo?

    Um sorriso se estendeu lentamente por seu rosto. Os soldados se

    aproximaram, observando alarmados seu aturdido rosto. Um deles moveu

    uma mo diante de seu rosto. Hollis nem sequer pestanejou.

    O que ocorre, senhor? Viu uma apario?

    Sim, vi-a. A resposta a todas minhas preces. Enquanto os homens

    trocavam um olhar perplexo, o sorriso de Hollis se suavizou Uma

    Madona.

  • 31

    Esteve tentado guiar a seu cavalo diretamente colina abaixo at o prado,

    mas teve medo de assustar tanto moa como aos meninos que cuidava.

    Provavelmente seria mais singelo procurar o povo ou o castelo mais

    prximo. Certamente ali algum poderia lhe dizer quem era ela e onde

    vivia.

    Voltou a separar as samambaias, incapaz de resistir a jogar uma ltima

    olhada a seu achado antes de ir-se. Enquanto observava, o pequeno

    escorregou de seu colo e escorregou pelo retorcido tronco de uma

    macieira. Ela ficou de p e se plantou debaixo da rvore com os braos

    estendidos, para agarr-lo se falhava uma mo ou se escorregava um p.

    Pde ver a grande extenso de seus quadris, que lhe davam um aspecto

    claramente dcil.

    Hollis suspirou esperanado enquanto se levantava e procurava provas s

    rdeas do cavalo, podendo ouvir j em sua cabea a doce e melosa msica

    de sua voz..

    Se no descer dessa rvore agora mesmo, maldito duende, subirei eu e

    o derrubarei.

    No o far.

    Sim o farei.

    No o far. Uma ma mdia podre saiu disparada de entre os ramos

    e golpeou a Willow na tmpora. Os outros meninos deixaram escapar

    uma risada zombeteira.

    Apertando os dentes, Willow ps um p em um oco da rvore,

    preparando-se para cumprir sua ameaa. Uivando como um gato

    apanhado, Harold, de dez anos, comeou a deslizar-se tronco abaixo.

    Quando j quase tinha chegado ao cho, o p enganchou na saia de

    Willow e voltou a cair pela segunda vez aquele dia.

  • 32

    O pranto do menino, to agudo, produzia-lhe cime. Enquanto tentava

    decidir se voltava a recolher e consolar ou o estrangulava, Harold sentou-

    se.

    Atirou-me. Tragou saliva e as bochechas gordinhas lhe puseram mais

    tintas que as mas que Willow tinha guardado nos bolsos de seu avental

    Willow me atirou, vou dizer ao meu papai.

    Gerta, de oito anos, chutou em sua defesa, com as loiras tranas

    arrepiadas de indignao.

    Vi como te atirava. uma garota feia e odiosa, e eu tambm vou dizer a

    papai.

    E a mame chiaram ao unssono as gmeas de nove anos Diremos

    mame que vai nos mandar para a cama sem jantar outra vez.

    Sem alterar-se ante a cantinela que lhe era to familiar, Willow se limitou

    a apoiar-se no tronco da rvore, cruzou os braos sobre o peito e

    entreabriu os olhos. Enquanto um sorriso malicioso se estendia sobre seu

    rosto, os meninos ficaram calados. Inclusive Harold deixou de

    choramingar.

    Oxal me mande cama sem jantar disse brandamente Assim,

    logo terei uma fome feroz. Ento sairei me arrastando de minha cama na

    metade da noite procurando comida. Deliberadamente baixou a vista

    at a branca barriga que aparecia por debaixo da prega da tnica de

    Harold. Depois passou a lngua pela borda de seus reluzentes dentes

    Algo rolio, tenro e suculento...

    Enquanto sua voz ia descendo de tom at converter-se em um grunhido,

    Harold se ergueu de um salto, gritando de terror. Seu irmo e suas irms

    lhe seguiram, gritando a todo pulmo enquanto se dispersavam pelo

    prado, fugindo para o santurio que representava o castelo.

  • 33

    Willow se apoiou contra a rvore, morta de risada. Quando se acalmou,

    deslizou-se at o cho e agarrou uma das mas que guardava no avental,

    saboreando a felicidade de um fato to pouco habitual como era estar

    sozinha. No encontrava o sentido a seguir rogando e xavecando,

    raciocinando e ameaando, j que todos seus esforos para conseguir que

    seus irmos e irms se comportassem, ficavam frustrados pela indulgncia

    de sua madrasta.

    Afundou os dentes na pele rangente da ma recordando a iluso com a

    que tinha esperado o nascimento de Harold. Depois de trs anos de fazer

    de bab de seus consentidos meio-irmos, finalmente ia ter um irmo ou

    irm de seu prprio sangue. Mas Blanche tinha aproveitado a ocasio para

    vomitar mais veneno no ouvido de seu pai. Quando Willow se aproximou

    da cama para lhe jogar uma olhada a seu novo irmo, Blanche tinha

    aproveitado para lhe recordar a seu marido que era ela e no a me de

    Willow a que tinha completo com o sagrado dever de lhe dar um filho

    varo.

    Willow lhe deu outra dentada ma. Harold tinha sido um beb doce e

    de bom carter, igual aos outros trs bebs que nasceram depois. Mas o

    carinho natural que sentiam por volta dela se viu logo embaciado pelo

    desdm com que a tratavam seus meio-irmos. O abismo que se abria

    entre eles era muito grande para que o cruzassem seus bracinhos

    gordinhos.

    Eles eram robustos, ela era magra. Eles eram loiros, ela morena. Eles

    tinham olhos azuis, ela os tinha do tom cinza tempestuosa de uma

    tormenta no mar. Sangue saxo corria frio por suas veias, enquanto que as

    dela ferviam com o sangue quente e apaixonado dos franceses. Eles eram

    queridos, ela era...

  • 34

    Willow lanou longe a ma ao meio. De repente tinha perdido o apetite.

    Fazia j muito tempo que no era a princesinha do papai. Do momento

    em que Blanche chegou a Bedlington, tinha deposto Willow com a

    ambio implacvel de uma rainha disposta a conseguir que seu herdeiro

    suba ao trono.

    A princpio Willow tinha estado muito aturdida para aceitar a derrota.

    Quando tentava subir ao colo de seu pai, encontrava-o ocupado pela

    Reanna, pendurada em seu pescoo ou por um satisfeito Stefan. Quando

    morria de vontades de escutar um conto, tentava introduzir-se no crculo

    de meninos que se agruparam ao redor dos joelhos de seu pai. Justo

    quando papai alargava um brao para aproxim-la do seu lado, a mo de

    Blanche posava em seu ombro como uma aranha plida.

    J muito maior para estas tolices querida lhe sussurrava Blanche, e

    o meloso veneno de suas palavras paralisava Willow de modo mais efetivo

    que sua mo cortante por que no sobe para ver se Beatriz necessita

    que troquem suas fraldas?

    Willow partia do grande salo com o rabo entre as pernas, lanando um

    ltimo olhar ofegante a seu pai por cima do ombro. Mais de uma vez tinha

    jurado ver seu prprio pnico refletido nos olhos de seu pai. Abria a boca,

    mas antes que pudesse falar, os meninos de Blanche se lanavam sobre

    ele como um enxame e reclamavam toda sua ateno. Com o tempo, as

    palavras no pronunciadas se incharam at converter-se em um silncio

    to ensurdecedor que nunca mais poderia romper-se.

    s vezes Willow desejava no ser capaz de recordar aquela poca em que

    seu pai a queria. Talvez ento no perdesse o tempo sonhando que

    algum voltava a querer ela daquele modo. Tinha enterrado aquele desejo

  • 35

    muito fundo, inclusive mais fundo que o desejo de dispor de uma simples

    hora de liberdade para ela sozinha.

    Seduzida por aquele sonho agridoce, apoiou a cabea contra o tronco.

    Enquanto seus olhos fechavam-se, a rosto de seu pai se transformou no

    rosto de outro homem. Seu prncipe, como o tinha batizado quando era

    o bastante jovem e estpida para acreditar nessas fantasias.

    Seu cabelo era to escuro e brilhante como o azeviche, sua mandbula

    forte, e suas sobrancelhas, finas. No importava de que cor fossem seus

    olhos, enquanto brilhassem de amor por ela e s por ela. Ele no a amaria

    unicamente durante uma doce e breve temporada. Amaria-a para sempre.

    Willow no poderia dizer quanto tempo tinha passado naquele prado,

    ouvindo seus sussurros no vento que movia a erva, sentindo seu toque na

    carcia da brisa. Nem sequer se tinha dado conta de que tinha franzido os

    lbios espera de um beijo imaginrio at que a primeira gota de chuva

    caiu sobre ela fez que tanto seu prncipe como seus sonhos se

    desvanecessem.

    Ergueu-se devagar e alarmou-se ao dar-se conta de que a brisa se

    convertia em um forte vento. Talvez fora j muito maior para que a

    enviassem cama sem jantar, mas no tinha nenhuma dvida de que

    Blanche podia inventar formas mais sutis de castig-la por sua rebeldia.

    Voltou a colocar uma mecha de cabelo extraviado dentro da boina. A

    ltima vez que se atreveu a desafiar a sua madrasta, Blanche a tinha

    ameaado e cortado os indomveis cachos.

    Ajustando o avental para que as mas no lhe cassem dos bolsos, Willow

    se apressou a cruzar o prado at o castelo que uma vez tinha chamado seu

    lar.

  • 36

    Willow se precipitou na cozinha mofada e lgubre s instante antes que o

    caprichoso tor se transformasse em um autntico dilvio. Esquivou o

    jorro de gua que caa atravs de uma greta do teto e sentiu um calafrio

    ao dar-se conta de que ningum tinha mantido o fogo aceso. A julgar pela

    chamin fria e o assador deserto, talvez no fosse ela a nica em ir cama

    sem jantar. Talvez no fosse m idia conservar alguma ma no avental.

    Os gastos de Blanche estavam deixando seu pai na runa. Os cofres

    transbordantes com os que sonharam quando se casou com a rica viva,

    converteram-se em uma exgua destilao. Enquanto ela pudesse levar

    peles e jias, e vestir a seus garotinhos com l e seda, a Blanche no

    importava absolutamente que as defesas do castelo estivessem caindo a

    pedaos nem que os soldados e camponeses estivessem abandonando o

    seu pai em busca de um amo mais prspero e generoso.

    A ira do rei j faria tempo e teria desabado sobre eles a no ser pelos dois

    matrimnios que Blanche tinha arrumado entre suas duas filhas maiores,

    Reanna e Edwina, e dois ricos bares. As contnuas choramingaes das

    esposas tinham conseguido que os bares acessassem a pagar os

    impostos do castelo, quantidade que nem as ameaas nem os valentes

    de Blanche tinham conseguido reunir.

    Possivelmente Willow e seu pai eram pobres antes que se casasse com

    Blanche, mas pelo menos tinham um ao outro. Agora a nica coisa que

    havia entre eles eram recriminaes e silncios tensos.

    Willow comeou a subir as escadas em caracol, esperando passar

    despercebida na galeria que dominava a grande sala e chegar ao

    dormitrio que compartilhava com suas irms antes que sua madrasta lhe

    sasse ao passo. Esperava ouvir o Harold balbuciando uma lista detalhada

  • 37

    de seus pecados. O que no esperava absolutamente era ouvir o som

    austero de vozes masculinas.

    Willow se aproximou escondida do corrimo da galeria e jogou uma

    olhada entre a fumaa das velas de sebo. Para sua surpresa, no havia

    nenhum menino vista no grande salo. Trs estranhos estavam de p em

    frente do estrado elevado onde Blanche insistia em receber a todos os

    visitantes. Papai se sentava curvado em uma cadeira com dossel. Seu

    cabelo antigamente avermelhado dourado, voltava-se cada vez de um

    cinza mais apagado. Seus ombros, antigamente orgulhosos, inclinavam-se

    sob o peso das dvidas e exigncias de sua mulher. Blanche estava

    reclinada ao seu lado em um banco dourado, presidindo a sujeira do salo.

    O homem que estava falando levava as esporas douradas prprias dos

    cavalheiros.

    Se no se pode arrumar uma dote agora mesmo, estou seguro de que

    meu senhor estaria desejoso de contribuir uma generosa quantidade pela

    noiva.

    Que barbaridade! No quero nem ouvir falar disso gritou papai,

    golpeando o brao da cadeira.

    Exatamente quanto generosa? perguntou Blanche, apoiando uma

    mo plida sobre a manga de papai. O estranho deixou de olhar a papai

    para esquadrinhar a madrasta de Willow, enquanto o grosso bigode se

    movia ao tratar de ocultar a risada.

    Suficientemente generosa. Meu senhor j tem a bno do rei. Est

    muito ansioso por fechar o pacto.

    Ah, mas ela muito valiosa para ns disse Blanche antes que papai

    pudesse falar.

  • 38

    Willow abraou ao corrimo. S podiam estar falando do pacto nupcial da

    filha mais jovem de Blanche de seu primeiro matrimnio. Mas Beatriz

    ainda no tinha completo os quatorze! Blanche devia estar realmente

    desesperada se estava considerando a possibilidade de oferec-la ao

    melhor partido. Em justia, Willow sabia que deveria alegrar-se de livrar-

    se dela. Depois de ter urinado em seus sapatos fazia j tantos anos, a

    mucosa no tinha deixado de lhe infligir multido de indignidades. Willow

    levou uma mo ao estmago. Talvez a pontada que notava ali era s

    inveja pela boa sorte de Beatriz. Seguro que no ia sentir falta dessa

    malcriada.

    Livrando-se da mo de Blanche, papai olhou com o cenho franzido ao

    cavalheiro, cheio de suspeitas.

    Pode-se saber por que seu amo a quer to desesperadamente?

    Willow se inclinou para diante para ouvir melhor a resposta do cavalheiro,

    mas justo ento notou que algo mido deslizava por sua nuca.

    Eca! grunhiu, reconhecendo que se tratava de uma vida lngua

    masculina.

    Se virou e fez retroceder a seu assaltante para as sombras.

    Sugiro-te que guarde essa vbora em sua boca antes que lhe arranque

    isso da raiz.

    Seu meio-irmo riu entre dentes e levantou uma sobrancelha com

    presuno.

    Ah, por que teria que guard-la em minha boca se a tua for muito mais

    doce?

    O brilhante e espesso arbusto de cabelos loiros e os protuberantes

    msculos de Stefan podiam fazer que as faxineiras do castelo se

    acautelassem, mas para Willow seguia sendo o mesmo menino

  • 39

    presunoso que riu dela sem piedade desde seu primeiro encontro. S

    que agora levava uma espada muito mais larga.

    Inclusive o mais doce dos bagos pode te envenenar respondeu,

    ficando em garras.

    Acredito que este bago em especial fez mais do que isso disse

    entreabrindo seus plidos olhos azuis e assinalando para o salo com a

    cabea Antes que sua opinio sobre ti mesma siga melhorando,

    recordo-te que este misterioso cavalheiro est oferecendo um preo para

    te levar a sua cama como se no fosse mais que uma rameira do povo.

    Willow ficou muito surpreendida para ofender-se com o insulto.

    A mim? levou-se uma mo ao peito, trada por um sentimento de

    surpresa Este senhor me quer como esposa?

    O sorriso de Stefan se obscureceu e franziu o cenho.

    No faz falta que ponha esse rosto de carneiro degolado. Mame nunca

    te deixar partir.

    O sentimento de milagre se desvaneceu quando Willow se deu conta de

    que suas palavras eram certas.

    obvio que no o far. Se no, teria que encontrar a outra bab para

    seus mucosos.

    Incapaz de escutar como seu pai jogava do castelo ao jovem e formal

    cavalheiro, Willow se dirigiu para seu dormitrio. Stefan ficou na sua

    frente, lhe bloqueando o caminho.

    Mame no entregaria a outro homem porque sabe que te quero para

    mim.

    Willow retrocedeu. Seu meio-irmo nunca se atreveu a ser to

    desagradvel. Obrigou-se a lhe devolver o sarcstico olhar com a mesma

    expresso.

  • 40

    Bem, pois temo que no possa me ter. Embora no haja laos de

    sangue entre ns, somos irmos. O rei nunca permitiria que nos

    casssemos.

    Stefan a agarrou pelos ombros com tanta fora que lhe fez mal, enquanto

    sua voz se convertia em um grunhido rouco.

    Quem falou em matrimnio?

    Enquanto ele passava a lngua pelo lbio inferior, como se saboreasse

    antecipadamente uma suculenta parte de carne, Willow quase se

    arrependeu de haver tirado sarro de Harold. Obrigou-se a esperar at que

    a brilhante ponta de sua lngua estivesse s a uma polegada de seus lbios

    abertos antes de murmurar:

    Adverti-te que guardasse essa vbora longe de mim.

    De uma sacudida se livrou de seus braos, e depois lhe deu uma joelhada

    no meio das pernas. Ele se dobrou sobre si mesmo, soltando um

    juramento. Antes que se recuperasse, Willow saiu correndo para a direita

    e depois para a esquerda, movida por um impulso primitivo de fugir. Seu

    dormitrio j no lhe parecia um refgio, a no ser uma armadilha. Sem

    pensar duas vezes, precipitou-se escada abaixo at o grande salo, e se

    deteve de repente entre as sombras que projetava a galeria.

    uma soma tremenda, Rufus dizia Blanche nesse momento, com um

    brilho sonhador que mostrava um pouco o resplendor avaro de seu olhar

    Suficiente para pagar os impostos dos prximos dois anos.

    No quero ouvir falar do tema, mulher. No venderei a minha prpria

    filha.

    Desejando escapar de um futuro to pouco atrativo como o sorriso

    zombador de seu meio-irmo, Willow saiu das sombras e sua voz ressonou

    como um sino:

  • 41

    E por que no, papai? No seria a primeira vez.

    Hollis ficou com a boca aberta quando viu sua dcil Madona entrar

    decididamente no grande salo, com os ombros preparados para a

    batalha.

    Entreabriu os olhos para v-la melhor na escurido, porque a fumaa das

    velas de sebo o fazia chorar. A ordinria boina da moa deslizou para um

    lado, o que projetava uma sombra sobre seus traos.

    Ainda no acabava de acreditar em sua boa sorte. O anjo misterioso no

    resultava ser uma vulgar moa de povo, era a filha solteirona de um baro

    ao menos. Provavelmente j faria tempo que teria resignado-se a viver o

    resto de sua existncia como uma carga para sua famlia. Sem dvida seria

    dcil e estaria encantada de agradar a um poderoso senhor como Bannor.

    Sobre tudo porque Bannor elogiaria a fealdade que a voltava repugnante a

    olhos de outros homens.

    Hollis olhou de esguelha para o teto, onde as teias de aranhas ondeavam

    em lugar dos animados estandartes que deviam ter adornado as vigas em

    outra poca. Provavelmente tambm estaria agradecida de ser resgatada

    desse lugar. Desde que tinham se aproximado, ele e seus homens tinham

    ficado horrorizados pelo desagradvel fedor do fosso cheio de ervas. A

    chuva se filtrava com fora atravs de gretas no teto e descia pelas

    desvencilhadas paredes de pedra formando arroios. Os juncos velhos que

    tinham sob os ps estavam cheios de ossos rodos e de excrementos de

    co, tanto afrescos como secos.

    Enquanto a moa avanava para o estrado, Hollis lhe deixou chegar

    galantemente, e indicou a seus homens que fizessem o mesmo. Esperava

    que a chegada da moa intensificasse as bravatas de seu pai, mas o ancio

  • 42

    comeou a jogar com as dobras de sua capa, evitando cuidadosamente

    olh-la nos olhos.

    O que est fazendo aqui, menina?

    J no sou nenhuma menina, papai. Se o fora, no estaria aqui

    discutindo meu pacto nupcial com estes estranhos.

    O assunto no de sua incumbncia respondeu ele assinalando-a

    com um dedo.

    Justamente o contrrio. Incumbe-me e muito. No pude dizer nada

    quando me jogou em uma vida de servido em troca da aprovao do rei

    e do dote de Blanche. Talvez tivesse que permitir escolher o meu prximo

    senhor.

    Voltou s costas a seu pai que seguia balbuciando, e se dirigiu para o

    Hollis. Pareceu duvidar um momento. Embora na escurido quase no

    pudesse adivinhar sua expresso, Hollis no pde evitar sentir-se

    impressionado pela dignidade de sua postura. Apertava os punhos de

    ambos os lados de seu corpo, e elevou o queixo com orgulho.

    Diz a verdade, senhor? Seu amo me quer como esposa? Seriamente me

    quer?

    Recordou o desejo que tinha visto no rosto de Bannor quando este lhe

    tinha encarregado de encontrar uma me para seus filhos. Hollis afirmou

    com a cabea e disse brandamente:

    Sim, senhora. Ele me disse querer mais do que possa imaginar.

    Elevou o queixo um pouco mais.

    Ento me ter.

    Hollis no pde ocultar um sorriso, sem emprestar ateno ao grunhido

    de seu pai, risada triunfal de sua madrasta, nem dissimulada

    exclamao de raiva que saiu da galeria do primeiro piso.

  • 43

    A moa levou as mos s costas para desatar o avental. Enquanto se

    desprendia do objeto enrugado, uma chuva carmesim de mas caiu ao

    cho. Algumas foram parar na ponta da bota de Hollis, mas ele no se deu

    conta.

    Seu sorriso congelou em seu rosto quando ela se desprendeu do

    volumoso avental. Com os olhos como laranjas, seu olhar viajou acima e

    abaixo por seu corpo esbelto e de peito erguido, seguindo o gracioso

    caminho de suas mos enquanto se elevavam por cima de sua cabea para

    livrar-se da boina vermelha. Sacudiu a cabea e liberou uma nuvem

    brilhante de cachos negros como o azeviche antes de deixar a descoberto

    uns dentes brancos como prolas em resposta ao sorriso de Hollis.

    Mas o sorriso de Hollis se desvaneceu. Grunhiu em voz alta.

    Bannor ia lhe matar.

    CCCaaappptttuuulllooo IIIIIIIII

    Perna de cordeiro, senhora?

    Willow afastou a vista da janela da carruagem para jogar uma olhada ao

    enorme pedao de carne que sustentava sir Hollis.

    No, obrigado murmurou.

    A expresso esperanada do cavalheiro desapareceu, e se sentiu tentada a

    aceitar. Mas suas mos tremiam, sentia um formigamento no estmago e

    no queria arriscar-se a manchar seu precioso vestido novo nem sequer

    com uma gota de graxa.

  • 44

    Enquanto sir Hollis afundava de novo no cesto de comida aparentemente

    sem fundo que tinha comprado no ltimo povoado por onde tinham

    passado, Willow esticou a saia, maravilhando-se da falta de rastros de

    dedinhos lamacentos em suas dobras de veludo felpudo verde. Sabia que

    no era uma beleza como Reanna ou Beatriz, mas arrumada dessa

    maneira, quase podia imaginar-se que o era. No havia se sentido to feliz

    desde aquele remoto dia em que Blanche tinha chegado ao Bedlington

    para casar-se com seu pai.

    Willow sorriu divertida pela ironia. Hoje era ela a que balanava em uma

    esplndida carruagem atirada por seis preciosos corcis. Era ela que ia

    escoltada por um squito de cavalheiros que levavam pendes ondulando

    ao vento, adornados com o estandarte de seu senhor: um magnfico cervo

    vermelho rampante sobre um fundo dourado. Era ela que corria para os

    braos do homem que a tinha feito sua esposa. Seu corao pulsava ao

    mesmo ritmo que os cascos dos cavalos enquanto se inclinava por volta da

    janela para abraar com a vista aquela fresca tarde de outono.

    Ao viajar para o norte, tinham deixado atrs as imensas rvores do bosque

    de Bedlington, que tinham cedido o posto s onduladas colinas e aos

    escarpados penhascos de Northumberland. Um resto de neve adornava

    um pico longnquo.

    Doce de figo? Sir Hollis se inclinou para diante para lhe passar o doce

    debaixo do nariz, como se quisesse tent-la com seu rico aroma de noz

    moscada.

    Ela moveu a cabea, suavizando sua negativa com um educado sorriso.

    Voltou a colocar as mos no cesto, murmurando algo que soou

    curiosamente como: Pendurar minha cabea no grande salo, seguro.

  • 45

    O mundo inteiro de Willow se inclinou quando a carruagem comeou a

    subir colina acima pelo caminho sinuoso e com forte pendente.

    Recostou-se para trs no assento e cobriu a cabea com o capuz de sua

    capa adornada com pele, tremendo em parte de alegria e em parte de

    apreenso.

    Tudo o que sabia do misterioso senhor que era agora seu marido era que

    se tratava de um homem generoso. Logo que o servial lhe tinha feito

    chegar notcia de que ela tinha aceitado a converter-se em sua esposa,

    enviou no s a carruagem e os cavalheiros, mas tambm um carro

    carregado com dois pesados cofres cheios a transbordar de deliciosos

    vestidos de veludo, seda e damasco; meia dzia de sapatos da pele de

    camura mais suave e vrios frascos de perfumes preciosos e especiarias

    estranhas.

    A viso de toda aquela abundncia pulverizada pelo grande salo tinha

    feito que Blanche se voltasse verde de remorso, Stefan verde de cimes e

    Beatriz verde de inveja. Blanche tinha-se lamentado enormemente de no

    ter pedido um preo mais alto, enquanto Stefan ficava de muito mau

    humor e Beatriz subia correndo as escadas gritando que Willow lhe tinha

    tirado o homem que devia ter sido seu marido.

    Willow acariciou as franjas de visom que penduravam das mangas de seu

    vestido, sorrindo com ironia. Se no tivesse sido pela extravagncia de seu

    marido, teria chegado ao castelo com seus escassos pertences atado em

    uma trouxa ao final de um pau. Talvez pensasse que ela era do tipo de

    mulher que se deixava conquistar pela carcia da seda em sua pele ou pelo

    aroma embriagador da mirra. Esperava que ele estivesse contente ao

    comprovar que seu afeto podia conseguir-se por muito menos, s com sua

    devoo.

  • 46

    Um doce?

    No disse Willow bruscamente, cada vez mais assombrada pela

    insistncia do cavalheiro No tenho nem pingo de fome.

    Seu rechao fez que o grosso bigode do cavalheiro adoecesse de

    desnimo. Pela primeira vez Willow seguiu o percurso de suas pestanas e

    este a levou at seu vestido. Olhou-o, interrogadora, e se deu conta de

    que ia muito grande, como se tivesse sido confeccionado pensando em

    outra mulher. Ela sempre havia sentido insignificante, ao lado de seus

    robustos irmos. Stefan tinha-se burlado dela muitas vezes, dizendo que

    era to ossuda como uma vara de salgueiro e muito mais nodosa.

    Possivelmente lorde Bannor preferisse uma moa robusta, larga de

    quadris e com peitos to rolios como os prometedores seios da jovem

    Beatriz.

    A pobre menina no pode evitar seu aspecto. O murmrio compassivo

    de Blanche ressonou to claramente, que a Willow no tivesse surpreso

    encontrar a sua madrasta pendurada no teto da carruagem como alguma

    malevolente harpia.

    Ainda impressionada, agarrou o doce da mo do cavalheiro e o tragou de

    um s bocado. Pareceu to satisfeito que tambm aceitou o doce de figo

    que este timidamente lhe ofereceu. Mas quando resgatou a perna de

    cordeiro da cesta e a ofereceu, ela perdeu de repente o pouco apetite que

    pudesse ter.

    Suas dvidas voltaram a faz-la sentir como a menina que atirava da mo

    de seu pai.

    Querer-me a senhora Blanche?

    obvio, carinho. Como poderia algum no querer a princesinha do

    papai?

  • 47

    Uma vez foi to ingnua que acreditou em uma mentira como aquela. Se

    havia tornado a enganar-se, teria toda uma vida por diante para

    arrepender-se de sua temerria deciso.

    Me conte mais os gostos e costumes a respeito de lorde Bannor

    pediu Me explicastes todo o referente a seu valor em combate e a sua

    devoo ao rei e ptria, mas ainda no sei que classe de homem

    encarregaria a outro que lhe escolhesse a noiva.

    Sir Hollis lhe deu uma pensativa dentada na perna de cordeiro.

    Um homem prudente.

    Um calafrio lhe percorreu as costas. Possivelmente no era ela a que tinha

    algum defeito, a no ser seu marido.

    Acaso se inclinou para diante no banco, quase sem atrever-se a

    expressar suas suspeitas em voz alta ... Mal parecido?

    Sir Hollis quase se engasga com o pedao de cordeiro.

    Eu no diria exatamente isso.

    Willow encontrou sua resposta pouco reconfortante.

    Ficou desfigurado na guerra? Perdeu algum membro? Um olho?

    Ocultou um calafrio Ou nariz?

    O bigode do cavalheiro se moveu como se estivesse reprimindo um

    espirro.

    Asseguro-lhes, senhora, que lorde Bannor retornou da Frana com

    todas suas partes vitais intactas.

    Willow franziu o cenho e se perguntou que partes seriam vitais para um

    homem.

    E o que tem que seu temperamento? amvel? um homem justo?

    Ou dado a jurar e a sofrer violentos ataques de ira?

  • 48

    Meu senhor seria o primeiro em assegurar que no homem dado

    bebida, ira incontrolada nem blasfmia disse Hollis piscando.

    Willow se reclinou em seu assento e cruzou as mos no colo.

    Suponho que uma mulher no pode pedir mais a seu marido.

    Entretanto queria mais. Muito mais. Uma viso efmera de seu prncipe

    flutuou diante de seus olhos e lhe provocou uma agridoce pontada de

    desejo. Nunca voltaria a ouvir o eco de sua risada. No voltaria a provar o

    doce sabor de seus beijos imaginrios. Tinha chegado o momento de

    trocar seus sonhos de menina por um homem forjado de carne e sangue,

    nervos e ossos. Fechou os olhos para despedir-se de seu prncipe com um

    suspiro melanclico.

    Estava decidida a converter-se em uma boa esposa para o tal lorde

    Bannor. No importava se era velho ou adoentado, se tinha o lbio

    leporino ou se estava desfigurado por causa das batalhas liberadas pelo

    rei ou pela ptria. Se ele estava disposto a oferecer sua total devoo a ela

    e s a ela, ela faria o mesmo por ele.

    Fortalecida por sua deciso, Willow abriu os olhos. Ou pelo menos

    acreditou que o fazia. Mas a viso que contemplou pela janela da

    carruagem a convenceu de que devia estar sonhando.

    Um castelo parecia flutuar sobre o escarpado que dominava as

    resplandecentes guas do rio Tyne. No se parecia em nada

    desmantelada fortaleza de seu pai. Graciosas torres redondas apontavam

    para as nuvens, acinzentadas. Um muro enorme abraava o macio

    palcio, como se fosse feito de uma cortina de pedra.

    Willow piscou. Porque quem, alm de um prncipe, poderia viver em to

    majestosa morada? No se deu conta de que tinha formulado esta ltima

    pergunta em voz alta at que sir Hollis lhe respondeu:

  • 49

    Voc, obvio.

    Desviou seu olhar assombrado para o cavalheiro. Seu sorriso tenso fez que

    um calafrio de pressentimento lhe percorresse as costas.

    Porque essa majestosa morada Elsinore, e voc, querida, sua nova

    senhora.

    A carruagem se aproxima! A carruagem se aproxima!

    Quando o grito do vigia ressonou da torre de vigilncia, seguido do

    trompete ensurdecedor de um corno de caa, Bannor bocejou e estirou

    suas longas pernas sem inteno de mover-se da cadeira. Durante a

    semana passada, Desmond o tinha enganado duas vezes com uma farsa

    similar. Quando saiu do aposento a primeira vez, escorregou com as

    pranchas cobertas de manteiga e caiu escada abaixo. Se a parede no

    tivesse freado sua queda, teria podido quebrar seu pescoo. A segunda

    vez que o corno soou, tomou com mais calma. Baixou com ps de chumbo

    as escadas, olhando antes de dobrar as esquinas, at que o porco

    engordurado que Mary Margaret tinha atrado at o grande salo com um

    punhado de bolotas saiu carreira entre suas pernas e o derrubou.

    Tinha resistido muitos stios durante a defesa das propriedades do rei no

    Guienne e no Poitou, mas nunca tinha tido que enfrentar a um to

    prolongado nem to implacvel. Desde que Hollis partiu para procurar

    uma me para seus filhos, Bannor tinha levado a maior parte de seus

    assuntos da torre, e s se atreveu a abandonar seu santurio quando era

    noite fechada e os meninos dormiam.

    Uma manh, quando estava a ponto de amanhecer, deslizou-se no

    labirinto de habitaes interconectadas que compartilhavam, e os tinha

    encontrado a todos feitos um novelo como uma ninhada de cachorrinhos

    em uma enorme cama com dossel. Sobre o peito de Desmond se estendia

  • 50

    o cabelo dourado da Mary Margaret, que ainda tinha o polegar entre seus

    pequenos lbios rosados. Um dbil ronco saiu da boca aberta de

    Desmond. Estudando as bochechas sardentas e o nariz chato de seu filho,

    Bannor sacudiu a cabea, maravilhado que um rosto to anglico pudesse

    ser capaz de tantas diabruras.

    O sentimento de impotncia que lhe atormentava era totalmente alheio a

    sua natureza. Sabia todo o necessrio para ser um guerreiro, mas no

    sabia nada a respeito da paternidade. Como podia ser que fora capaz de

    mandar uma legio de duzentos dos homens mais poderosos e

    endurecidos do rei, e em troca no pudesse enrolar a um pequeno

    esqulido para que cumprisse a ordem mais singela?

    Estava a ponto de colocar em seu stio uma mecha despenteada do cabelo

    castanho do moo, quando Mary Margaret abriu seus olhos de cor azul

    brumosa.

    Papai? murmurou um fantasma?

    No, preciosa sussurrou S um sonho.

    A menina fechou os olhos e voltou a dormir com um suspiro satisfeito, e

    Bannor saiu do aposento sem fazer rudo.

    O grito do vigia no se repetiu. Bannor se acomodou mais profundamente

    em seu assento e apoiou o queixo no peito, esperando poder tirar uma

    sesta. O sonho se converteu em um prmio esquivo desde que se

    dedicava a perambular durante a noite, rondando, por seu prprio castelo

    como se fosse um fantasma sitiado.

    Quando soou um golpe na porta, ficou em p de um salto, agarrando a

    espada instintivamente.

  • 51

    Senhor, senhor! gritou Fiona, e seu acento irlands ficou amortecido

    pela grossa porta de carvalho Seu estandarte foi avistado na estrada

    que vem do sul a menos de uma lgua daqui! sua dama!

    Sua dama. Divertido pela idia, Bannor deps a espada lentamente. No

    tinha tido uma dama que pudesse chamar prpria desde que Margaret

    tinha morrido, fazia j seis anos.

    Podia ouvir a velha bab cacarejando com impacincia enquanto retirava

    o slido banco que tinha usado para bloquear a porta e levantava a

    travessa. Fiona estava no patamar, retorcendo o avental entre suas mos

    nodosas.

    sua dama, senhor! Por fim chega!

    Bannor agarrou rapidamente seu colete cor de vinho do respaldo da

    cadeira e o ps em cima da camisa. Enquanto seus longos dedos lutavam

    com os botes de marfim da tnica perfeitamente entalhada que se

    ajustaravam ligeiramente altura dos quadris, desejava estar colocando a

    cota de malha, a couraa e o elmo para entrar em combate, em vez de sair

    sem armadura nem armas a receber a sua nova esposa. Olhou ofegante

    sua espada, sabendo o vulnervel que se sentiria sem sentir seu peso

    familiar no quadril.

    Rena aos meninos para que recebam a sua nova me, tal como

    ordenei?

    Sim, senhor. A todos. Inclusive os bebs. Fiona lhe sorriu, tremendo

    de alegria ante a idia de ter de novo a uma dama no castelo. Tinha

    adorado a suas duas primeiras senhoras, e lhe tinha dodo tanto como a

    Bannor quando tinham morrido to jovens e de maneira to trgica.

    Pendurou uma cadeia de prata tranada ao redor dos quadris, e arrumou

    um pouco o cabelo.

  • 52

    Suponho que devo lhes passar revista antes que chegue. Um guerreiro

    nunca envia a seus homens batalha sem lhes dar umas quantas palavras

    de conselho e flego.

    Sim, e seguro que estaro ansiosos de seus conselhos, milorde

    prometeu Fiona.

    Um homem menos precavido tivesse estado disposto a acredit-la,

    pensava Bannor enquanto percorria a distncia que lhe separava do ptio

    interior, olhando aos meninos reunidos no recinto amuralhado. De fato

    formavam j algo muito parecido a uma fila. Fiona trouxe para os menores

    da tropa e os entregou a membros do servio, fazendo malabarismos. Do

    maior ao menor, os meninos olhavam frente sem espionagem de

    nervosismo nem risinhos entre eles. A inocncia de seus rostos fez que

    Bannor se sentisse realmente inquieto.

    Embora Desmond parecesse to inocente quanto seus irmos, o corvo

    com as asas entaladas que estavam posadas em seu ombro olhava a

    Bannor fixamente, e a cauda do animal que saa do pescoo da tnica do

    menino se movia com inquietao.

    Bannor decidiu prudentemente que era melhor no fazer perguntas sobre

    a origem do animal, assim cruzou as mos s costas e se inclinou para

    cheirar o pescoo sujo do moo loiro e esbelto que havia ao lado deste.

    E quando foi a ltima vez que te banhou, jovem Hammish?

    O moo contou com os dedos.

    menos de quinze dias. Mas eu no sou Hammish, senhor. Deu-lhe

    uma cotovelada ao moo macio que estava a seu lado, o que provocou

    um afogado aiEle Hammish.

    Hmmmmm... Bannor ocultou seu desgosto dedicando um olhar

    carrancudo a Hammish. O menino tinha pernas robustas, e o cabelo liso e

  • 53

    grosso de cor canela, o que lhe dava o aspecto de algum que levasse uma

    terrina de barro na cabea.

    Assim que voc Hammish?

    Sim, senhor.

    No precisa me chamar de senhor. Pode me chamar de papai.

    Sim, senhor.

    Bannor suspirou. Comeava-lhe a doer cabea. No podia apresentar os

    meninos corretamente para sua carinhosa e nova me se no era capaz de

    recordar seus nomes.

    Saiu do apuro com uma convincente mentira.

    Antes de entrar em combate, habitual que todos os homens que

    lutam sob meu estandarte gritem seu nome. Vocs gostariam de prov-lo?

    Os meninos se inclinaram para diante e viraram o pescoo para a direita,

    procurando o moo que dirigia suas filas. Este encolheu os ombros a

    contra gosto, e depois obedientemente gritou:

    Desmond!

    Os outros seguiram seu exemplo.

    Ennis! Mary! Hammish! Edward! Kell! Mary Margaret! Meg! Margery!

    Colm!

    Os dois bebs acrescentaram um gu gu e um gorjeio. Fiona dedicou a

    Bannor um sorriso to desdentada como a dos bebs.

    Estes dois pequenos anjos se chamam Peg e Mags.

    Bannor encolheu seu nariz. A dor de cabea era agora mais forte, e

    acompanhado de palpitaes na tmpora, entretanto, ainda no era capaz

    de reconhecer a seus prprios filhos entre um monto de estranhos. Por

    todos os demnios, eles eram um monto de estranhos.

    Tentou um sorriso.

  • 54

    Bom intento. O que lhes parece se o voltamos a tentar?

    Claro, estpido murmurou Desmond No temos nada melhor que

    fazer.

    Bannor lhe olhou com os olhos entreabertos.

    O que disse moo? O menino lhe devolveu um sorriso de querubim.

    Disse que ser um prazer.

    Antes que Bannor pudesse fazer frente a sua insolncia, um poderoso

    trompete do corno do vigia contagiou um tremor de excitao por todo o

    ptio.

    O som das cadeias foi seguido pelo rangido do restelo da porta exterior,

    ao subir chiando polegada a polegada. O tinido musical das esporas e o

    rtmico golpear dos cascos anunciava a chegada da carruagem.

    Bannnor se colocou na fila entre Hammish e Mary, preferindo estar entre

    suas tropas. Quando o squito de cavalheiros se dispersou e a carruagem

    finalmente se deteve, estirou-se o espartilho e tentou alisar uma barba

    que j no tinha. Ainda no tinha se acostumado a sua mandbula

    barbeada, mas dada a tendncia alarmante de sua barba a incendiar-se

    sempre que sua descendncia estava perto, tinha decidido acostumar-se.

    No era uma pessoa dada a ficar nervosa. Mas Fiona se deu conta de sua

    inquietao e lhe ps o beb menor nos braos. Bannor no haveria

    sentido mais aterrorizado se lhe tivessem posto nos braos uma cabea

    decapitada. Tentou sustentar criatura com o brao esticado, mas

    quando comeou a retorcer-se, o ps debaixo do brao como se fosse

    uma dessas bexigas secas de porco que seus escudeiros lanavam com a

    mo ou com o p durante horas.

    Exasperada, Fiona resgatou ao fardo envolto em mantas, e o colocou

    limpamente no oco do brao.

  • 55

    No se inquiete milorde cantarolou em voz baixa, enquanto ficava

    nas pontas dos ps para lhe beliscar a bochecha Ainda no conheci a

    nenhuma moa que possa resistir a um tipo forte com um beb nos

    braos.

    Bannor abriu a boca para lhe replicar que a ltima coisa que desejava era

    uma esposa que o encontrasse irresistvel, mas j era muito tarde.

    Um escudeiro ansioso j se equilibrou sobre a carruagem para abrir a

    porta, e tinha deixado ao descoberto um p esbelto calado com um

    sapato de pele de camura.

    CCCaaappptttuuulllooo IIIVVV

  • 56

    Quando a porta da carruagem se abriu, Willow titubeou, e olhou insegura

    para sir Hollis.

    Talvez no devesse ter comido toda aquela perna de cordeiro, querida.

    Ser melhor que passe adiante. Eu lhes seguirei disse Hollis reclinando-

    se no assento.

    Willow respirou fundo e com cautela tirou um p da carruagem. No seria

    prprio cair aos ps de seu marido como um saco de cevada. Agradeceu

    porque o amplo capuz da capa lhe cobria o rosto, e manteve a vista fixa na

    pavimentao do cho enquanto descia da carruagem, jurando-se que no

    vacilaria quando visse seu rosto pela primeira vez, sem importar a

    deformada ou repugnante que fosse. S quando esteve firmemente

    plantada sobre seus dois ps se atreveu a olhar acima. E acima. E acima.

    O rosto do seu prncipe.

    Willow sufocou um grito de assombro, convencida pela segunda vez

    naquele dia de que estava sonhando. Um sonho mais doce e encantador

    que qualquer dos que tinha tido anteriormente.

    Mas nem sequer em sonhos tivesse podido imaginar um homem como o

    que estava frente a ela. A ela nunca lhe tivesse ocorrido desenhar essas

    ligeiras rugas ao redor de sua boca, nem sombrear seu queixo com aquela

    mera insinuao de barba. Um rosto que tinha recebido o beijo do sol, que

    lhe tinha marcado dbeis sulcos na frente e lhe tinha escurecido a pele at

    voltar a de cor dourada profundo. Seu cabelo azeviche no era brilhante e

    lustroso, mas sim de seda crua, entremeados com alguns fios de prata e

    talhado justo por cima dos ombros. Nas profundidades de seus olhos, de

    cor azul de meia-noite brilhavam tanto o humor como o engenho, e uma

    esquiva covinha em sua mandbula direita servia para enfatizar o torcido

    doce, mas ressentido, de sua boca.

  • 57

    No era esbelto, como o tinha imaginado, a no ser largo de costas e

    musculoso. Sua mandbula proeminente a avisou que no recuava e que

    no se tratava de nenhum menininho que se contentaria de lhe roubar

    beijos castos, mas sim de um homem que no descansaria at obter tudo

    o que ela pudesse lhe oferecer.

    Seu homem.

    Aturdida por seus pensamentos, baixou o olhar. S ento se deu conta de

    que sustentava algo nos braos. Talvez outro dos presentes para ela.

    Algum tesouro custoso, sem dvida, como objeto de seu afeto.

    Willow retirou o capuz do rosto, levantou a cabea e lhe sorriu.

    Quando Bannor baixou a vista por volta da beleza encapuzada que era

    agora sua esposa, s um pensamento atravessou a nvoa de desejo que se

    apoderou dele.

    Ia matar a Hollis.

    Se no tivesse tido as mos ocupadas, provavelmente teria jogado a um

    lado mulher e teria tirado aquele covarde da carruagem pego pelo

    pescoo. Mas naquele momento s podia olh-la paralisado pelo horror.

    Uma singela cadeia rodeava sua frente, embora essa delicada banda de

    ouro fosse um esforo valente, mas vo, de domesticar a nuvem de

    cachos escuros que rodeavam seu rosto. Tinha a boca pequena. Seu lbio

    superior era um pouco mais carnudo que o in