terceiro caderno de sistematizações - fcvsa

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1 Caderno de Sistematizações - FCVSA Sistematizações Terceiro Caderno de Compartilhando experiências de vida no Semiárido

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Page 1: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

1 Caderno de Sistematizações - FCVSA

SistematizaçõesTerceiro Caderno de

Compartilhando experiências de vida no Semiárido

Page 2: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

2Caderno de Sistematizações - FCVSA

Page 3: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

3 Caderno de Sistematizações - FCVSA

ExpedienteArticulação Semiárido Brasileiro

ASA BrasilFórum Cearense pela Vida no Semiárido

FCVSARede de Comunicadores/as Populares do

Fórum Cearense pela Vida no Semiárido

Sistematizações e Textos:Alexandre Greco - CETRA (Centro de Estudos do Trabalho

e de Assessoria ao Trabalhador)Cristina Viturino - Flor do Piqui

Evelyn Ferreira - ESPLAR (Centro de Pesquisa e Assessoria)Fram Paulo - CDDH-AC (Centro de Defesa dos Direitos

Humanos Antônio Conselheiro)Janes Souza - FETRAECE (Federação dos Trabalhadores

na Agricultura do Estado do Ceará)João Ernesto - ESPLAR (Centro de Pesquisa e Assessoria)

Karol Dias - ESPAF (Escola de Formação Política e Cidadania)Liliane Carvalho - ESPAF (Escola de Formação Política e Cidadania)

Marcus Saymon - COMTACTE (Cooperativa Mista de TrabalhoAssessoria e Consultoria Técnico Educacional)

Mayara Albuquerque - IAC (Instituto Antônio Conselheiro)Ricardo Vieira - ACB (Associação Cristã de Base)

Ricardo Wagner - OBAS (Organização Barreira Amigos Solidários)Rutiele Parente - IAC (Instituto Antônio Conselheiro)

Lívia Teixeira - Cáritas Diocesana de Itapipoca

Colaboração e Revisão de ConteúdoAlessandro Nunes, Amanda Sampaio,

Raquel Dantas e Rosa Nascimento

Revisão de TextosJoana Vidal

Projeto Gráfico e diagramaçãoSâmila Braga e Giulianne Cidade

FotografiaComunicadores/as do FCVSA

Ano de Publicação2015

Page 4: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

4Caderno de Sistematizações - FCVSA

ÍndiceSistematização de Experiências:

Ampliando a Resistência,

Fortalecendo a Convivência

p. 6

Autonomia para construir

novos sonhos

p. 7

Uma história de luta e resistência

na caminhada agroecológica

p. 9

O campo é o melhor lugar para viver!

p. 12

José e Lúcia: rotina compartilhada

e amor ao Semiárido

p. 14

Caminhada ao campo santo do sertão por

justiça e vida digna no Semiárido

p.17

A tradição indígena como forma de

convivência com o Semiárido Brasileiro

p. 21

Rendeiras de Chorozinho contam sua história através

das linhas e fortalecem o laço com o tempo

p. 23

Page 5: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

5 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Cultivar sonhos para alcançar as estrelas!

p. 28

Artesanato é fonte de renda e vida

em Icapuí (CE)

p. 31

Vivendo e aprendendo: a experiência de

resistência de João Félix e Antônia

p. 35

Agricultoras de Aroeiras cultivando Arte

p. 38

Urucongo: uma história de arte

e cultura no Cariri Cearense

p. 41

Na luta pela terra o MST já fez história.

A Escola João dos Santos Oliveira

faz parte dessa vitória.

p. 44

Maria de Jesus e a terra onde

planta roçados, hortas e sonhosp. 26

Fundo Rotativo: uma nova maneira de economia

trazendo mudanças significativas nos modos de

viver, pensar e agir de agricultores e agricultoras

p. 47

Page 6: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

6Caderno de Sistematizações - FCVSA

Sistematização de Experiências:

Ampliando a Resistência, Fortalecendo a Convivência

O Semiárido brasileiro é rico. A diver-

sidade cultural e ambiental encanta pela

sua beleza. Especificamente aqui no

Ceará, expressa na poesia, na dança, na

canção, na culinária, no povo guerreiro,

nas ações alternativas de convivência, e

no modo geral como as coisas aconte-

cem. É um Semiárido prospectivo.

A Articulação Semiárido Brasileiro

(ASA), representada aqui no Estado do

Ceará pelo Fórum Cearense pela Vida

no Semiárido (FCVSA), tem consolida-

do, ao longo de seus 15 anos uma polí-

tica de convivência com a região semi-

árida, a partir de ações agroecológicas

que fortalecem a luta e a conquista de

homens e mulheres por dignidade.

Os processos de articulação, for-

mação e participação têm fortalecido

gradativamente as incidências nas polí-

ticas públicas adequadas para a região.

Na perspectiva de visibilizar essas

ações, bem como ampliar esse cami-

nhar rumo à sustentabilidade humana

e ambiental, como propõe o projeto

“Comunicação para Mobilização So-

cial: uma estratégia de fortalecimento

da rede”, instituído pela ASA por oca-

sião da comemoração de seus 15 anos,

apresentamos nesse Caderno, que

está em sua terceira edição, 12 belas

experiências vivenciadas por homens,

mulheres, comunidades e grupos que

acreditam, sonham e trabalham por

uma vida cada vez mais feliz!

São pessoas que no dia a dia da la-

buta contam suas histórias de vida, e

mesmo que de forma anônima se arti-

culam em um processo de transferên-

cia de conhecimentos que fazem his-

tória e revela o verdadeiro Semiárido.

As histórias são construídas de uma

vivência sensível, em que cada uma/o

se coloca numa posição de igualdade,

e como afirma a jornalista Eliane Brum,

ouve com a alma, e posteriormente vai

dando formas ao texto.

O Caderno de Sistematização é uma

construção coletiva da Rede de Comu-

nicadoras e Comunicadores Populares

do Fórum Cearense pela Vida no Se-

miárido, das nove microrregiões: Cariri,

Centro Sul, Ibiapaba, Inhamuns, Forta-

leza, Sertão Central, Vale do Jaguaribe,

Vales do Curu e Aracatiaçu e Sobral. A

ideia é conhecer as distintas ações de-

senvolvidas, para melhor conhecer a re-

gião e fortalecer a convivência.

Por Rosa Nascimento

Page 7: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

7 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Autonomia para construirnovos sonhos

Por Alexandre Greco

Encontramos Ana e Sérgio já des-

montando as barracas da feira, ajeitan-

do as vasilhas vazias na moto e amar-

rando os ferros e hastes que sustentam

a barraquinha, com o sorriso fácil de

quem volta para casa tendo comercia-

lizado todos os produtos que trouxe.

Nas quartas-feiras, a rotina é a mesma:

juntar os produtos, amarrar na moto e

partir em direção a sede do município

de Apuiarés, a cinco minutos da co-

munidade Riacho do Paulo. Lá, com

agricultores e agricultoras de distritos

e cidades vizinhas, eles fazem a feira

de produtos orgânicos do município.

O casal de agricultores sempre leva

tomate, alface, abóbora e batata doce,

além da pamonha quando a produção

do milho está em alta. “Quando voltar

a chuva, vou produzir milho e feijão,

porque a pamonha é o que mais vende

na feira,” conta Sérgio.

Francisco Sérgio e Ana Marli são

nascidos e criados na comunidade

Riacho do Paulo, em Apuiarés (CE). Foi

nesse lugar que se conheceram, casa-

ram e hoje vivem com os dois filhos,

que estudam e ajudam no roçado.

Quintal de Ana e Sérgio

Page 8: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

8Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

O casal não faz rodeios para explicar as

mudanças em suas vidas após a chegada das

tecnologias sociais: “É bom, porque trouxe

água, que é o mais importante”. A comuni-

dade também sentiu os impactos positivos

das cisternas de primeira e segunda água;

antes, Ana conta, era “tudo seco, e o pior,

não dava para plantar como a gente queria.

Hoje, a gente consegue plantar”. Ela ainda

explica que “a maioria das pessoas aqui tem

cisternas e sempre que conversam comigo

estão satisfeitas, acham melhor que antes”.

Os agricultores relatam que tudo come-

çou com a chegada do projeto de primeira

água através do Sindicato dos Trabalhado-

res e Trabalhadoras Rurais de Apuiarés, ga-

rantindo segurança no acesso à água para

consumo. Depois, com a chegada da cister-

na de enxurrada, voltada para produção, o

sonho de comercializar suas próprias mer-

cadorias começava a se tornar realidade e

a dependência única e exclusiva das chuvas

já não era determinante: as cisternas e a for-

ma alternativa de irrigação foram suficientes

para garantir produção que abastecesse a

ida da família a feira semanalmente.

“Amanheço o dia e vou direto para a cis-

terna, cuidar de aguar as plantas e cuidar

das ovelhas e do gado,” diz Sérgio. As cister-

nas já são parte do dia a dia da família e per-

mitem que Ana e Sérgio tenham novos so-

nhos e busquem outras realizações, tendo

a consciência de que através da construção

e organização coletiva é possível mudar a

realidade e garantir autonomia com a con-

quista de direitos básicos. “Eu tenho mais de

quinze anos de sindicato e sou atuante, vou

às reuniões e sinto que é preciso sempre ir

mais,” reflete Ana.

Amanheço o dia e vou

direto para a cisterna, cuidar

de aguar as plantas e

cuidar das ovelhas e do

gado.

Comunidade Riacho do Paulo - Ana e Sérgio

Quintal de Ana e Sérgio

Page 9: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

Uma história de luta e resistênciana caminhada agroecológica

Experiência coletiva por Cáritas Ceará

9 Caderno de Sistematizações - FCVSA

A 50 quilômetros de Sobral, junto ao

pé da Serra Verde, existe uma comuni-

dade em que os moradores usam cada

metro de chão com sabedoria e fazem

de seus quintais uma alternativa susten-

tável para garantir a soberania alimen-

tar e nutricional de suas famílias o ano

todo. O lugar é a comunidade Recreio,

onde mora seu Selisvaldo Pereira Lima,

de 67 anos, companheiro de dona

Isaura Maria de Lima.

Esse mesmo pedaço de chão, entre-

tanto, também é espaço de disputa:

Selisvaldo e Isaura vivem numa terra

desmembrada pelo proprietário, assim

feito para descaracterizar o latifúndio e

impossibilitar a desapropriação para fins

de reforma agrária. “Aqui, estamos no

meio da luta”, conta o agricultor. A terra

foi cedida para a Prefeitura do municí-

pio de Sobral e as famílias que moram

no Recreio têm um termo de conces-

são de uso que é renovado a cada 10

anos, embora o processo de regulari-

zação de posse ainda se encontre em

negociação. São 40 anos de luta pela

terra e 40 anos que Selisvaldo participa

ativamente da Associação e do Sindi-

cato dos Trabalhadores Rurais, sendo

um de seus fundadores. Sua militância

começou nos movimentos eclesiais de

base por incentivo do pai e daí vem a

sua conduta de defensor dos direitos

humanos na busca por melhores con-

dições de vida para trabalhadores e tra-

balhadoras rurais, além da consciência

e defesa da participação das mulheres

e dos jovens nas organizações comu-

nitárias e sindicais.

A sabedoria e agroecologia cobrem de verde cada metro de chão

Page 10: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

10Caderno de Sistematizações - FCVSA

Eu não viso o lucro, mas

a condição de vida das

pessoas. É esse o projeto que

eu escolhi.

Na militância por vida digna, uma das

bandeiras que Selisvaldo hoje levanta

é a da agroecologia. “Aprendi com a

convivência, olhando para os compa-

nheiros. Participo do movimento sin-

dical e do Fórum Microrregional pela

Vida no Semiárido da Região Norte há

muito tempo. Foi a partir da ASA (Arti-

culação Semiárido Brasileiro) e da Cári-

tas que juntamos o conhecimento e

eu fui avaliando, porque não dá para

sair da noite para o dia do convencio-

nal para o agroecológico”, explica ele.

Há cinco anos, a família iniciou a

transição agroecológica e atualmente

podemos ver no quintal uma grande

diversidade de frutos, grãos e legumes:

milho, feijão, pimenta, tomate, mara-

cujá, mamão, ata, goiaba, leucena,

coco, noni, acerola, ciriguela, caju,

pimentão e nim. Além disso, Selisvaldo

também cultiva hortaliças, alface,

cheiro-verde, coentro, berinjela e pro-

duz as próprias mudas.

A variedade de cultivos em casa

reduz a necessidade de comprar ali-

mentos e o excedente da produção é

comercializado no Programa de Aqui-

sição de Alimentos (PAA) do Ministério

do Desenvolvimento Social e Combate

à Fome. Vale destacar que somente

no ano de 2013 a família vendeu em

torno de R$ 16 mil para o PAA. Ade-

mais, o cheiro-verde é vendido para

um restaurante popular da cidade de

Sobral. “Tudo que se produz na agri-

cultura, quando chega no mercado

tem comprador. Para você ter uma

ideia, o quilo da pimenta eu vendo a

três reais”, diz o agricultor.

Para dar conta de todo o quintal, o

agricultor experimentador desenvol-

veu um sistema de aproveitamento

da água da chuva que cai no telhado.

Com tecnologias simples, usando

canos e decantadores, ele aproveita o

declive do terreno para captar, arma-

zenar e fazer o uso racional da água

com a técnica de irrigação por gote-

jamento. A água captada em um tan-

que serve ainda para criação de pei-

xes. Do tanque, a água segue para

um cacimbão construído pelo próprio

Selisvaldo há 30 anos, quando traba-

lhava como pedreiro. No verão, ainda

existe a possibilidade de usar a água de

um pequeno açude que fica no final da

propriedade. A água é puxada por uma

bomba para o sistema de irrigação. Confeccionar redes é a terapia de Dona Isaura, artesã de mão cheia

Page 11: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

11 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA11

“Esse quintalzinho parece brinca-

deira de menino. Aproveitamos todos

os espaços. Estou pensando em criar

um leitãozinho aqui também”, diz ele

enquanto mostra a área.

A criação de galinhas fica aos cui-

dados de dona Isaura, que também é

artesã e confecciona redes por enco-

menda. O artesanato, para ela, além

de gerar renda, é também uma tera-

pia. “Tenho artrose no joelho e minhas

filhas não querem que eu trabalhe no

tear, mas meu médico aconselhou a

não parar a produção das encomen-

das”, ela explica.

Atrás do quintal da família existe

uma área coletiva de 10 hectares onde

os associados podem produzir. Hoje,

somente seis agricultores cultivam na

área e isso é motivo de preocupação

para Selisvaldo, que gostaria que mais

trabalhadores da comunidade fizes-

sem uso dessa terra para fortalecer

a produção coletiva. “Eu não viso o

lucro, mas a condição de vida das pes-

soas. É esse o projeto que eu escolhi.

O que eu quero para mim, eu quero

para os meus companheiros”, reflete o

agricultor.

Hoje, a experiência serve de moti-

vação para outros agricultores familia-

res que visitam a área em intercâmbios.

“Eu me sinto satisfeito, alegre por levar

esse conhecimento para outros, por-

que as pessoas têm começado a com-

preender, assimilar que a convivên-

cia com o semiárido é muito simples,

basta querer. Essa imagem que a terra

é seca, esturricada, é falsa”, conclui seu

Selisvaldo.

Na divisão dos trabalhos, a criação das galinhas fica sob os cuidados de Dona Isaura

Seu Selisvaldo avalia tabela com os níveis de chuva da região

As pessoas têm começado a compreender, assimilar que a convivência com o semiárido é muito simples, basta querer.

Page 12: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

O Campo é o melhorlugar pra viver!

Por Cristina Viturino

12Caderno de Sistematizações - FCVSA

Antônio Manoel de Sousa, de 65

anos, conhecido como “Galego”, é ca-

sado com dona Lúcia Félix, de 55 anos.

Eles vivem no Assentamento Caldeirão

Bom Sucesso, no Distrito de Ponta da

Serra, distante 27 quilômetros da cida-

de do Crato. É lá que também moram

14 famílias, um povo que mostra mar-

cas de enfrentamento, resistência e

conquista na sua trajetória.

Seu Antônio e dona Lúcia sempre

viveram na cidade com os dois filhos.

Ela sempre trabalhou no lar e ele traba-

lhava como fotógrafo e crediarista, mas

também cultivava, enfrentando o arren-

damento sobre o pouco que produzia.

A realidade mudou quando, em

2008, com a orientação técnica do

Instituto Flor do Piqui, eles foram be-

neficiados pelo Programa Nacional do

Crédito Fundiário (PNCF) do Governo

Federal. Em seguida, o assentamento

foi contemplado com seis cisternas

de enxurrada e três cisternas calçadão

pela Secretaria de Desenvolvimento

Agrário (SDA).

Antônio Manoel de Sousa

Page 13: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

13 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

Em uma área de terra de quase oito

hectares por família, seu Antônio faz

parceria com José Wilson, companhei-

ro de assentamento e também agricul-

tor. Juntos, eles cultivam maracujá, ma-

mão, banana, macaxeira, feijão-verde,

jerimum e fava, além de criarem gali-

nhas e produzirem mel de abelha. Os

agricultores garantem que tudo o que

plantam, a terra ali dá. Uma cisterna de

enxurrada é usada para uso doméstico

e um barreiro e uma cisterna calçadão

dão a água para os quintais produtivos.

Com a experiência de vida e a lida do dia

a dia é possível desenvolver atividades o

ano todo e ir avaliando e aprendendo o

que pode ou não dar certo.

Fora a venda dos produtos colhidos,

a renda da família de Antônio vem da

aposentadoria e dos doces caseiros de

gergelim fabricados por dona Lúcia e

vendidos na Exposição dos Produtos

da Agricultura Familiar (Expoafro). “So-

mos muito mais felizes e confortáveis

por aqui. O que vivemos hoje é tudo o

que um dia sonhei. Tudo o que procu-

ro de benefícios para a nossa terrinha,

(eu) consigo. Não tem do que se recla-

mar”, reflete seu Antônio.

A Comunidade Bom Sucesso é

sempre uma indicação para encon-

tros, oficinas e intercâmbios. Hoje,

tudo é diferente por lá. Os moradores

tiveram a oportunidade de começar

uma nova etapa de suas vidas, mais

justa e com mais dignidade, e assim

registram a certeza que com água a

vida prospera.

Antônio Manoel de Sousa Seu Antônio e dona Lúcia

Somos muito mais felizes e confortáveis por aqui. O que vivemos hoje é tudo o que um dia sonhei.

Page 14: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

José e Lúcia: história compartilhada eamor ao Semiárido

Por Evelyn Ferreira

“Com a minha cisterna de enxurrada,eu faço a minha cultura.

Tanto mi, tanto a cana, o feijão e a verdura p’a poder alimentar

meus comedor de rapadura.”

José Ivaldo, agricultor

14Caderno de Sistematizações - FCVSA

A terra rachando em pleno semi-

árido traz à memória do imaginário

comum um sentimento de tristeza: es-

cassez de água, vegetação sem o ver-

de vibrante, animais morrendo, gente

morrendo. Mas na terra de José Ivaldo,

quando a terra começa a abrir racha-

duras é sinal de fartura, sinal de que a

macaxeira já está pronta para ser colhi-

da. O agricultor bate no solo rachado

próximo ao pé e escuta um som aba-

fado, como se a terra estivesse oca:“Tá

ouvindo? Tem macaxeira aqui”.

E a macaxeira cozida combina

com o cafezinho comprado em grãos

na serra de Guaramiranga, torrado e

moído na propriedade da família. O

processo de torrar os grãos demora

cerca de 40 minutos, a depender da

quantidade que se queira fazer. O sa-

bor e o cheiro do café fresco invadem

o paladar de quem prova e a casa

José e Lúcia dividem tarefas

Page 15: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

15 Caderno de Sistematizações - FCVSA

onde vive com a esposa, Lúcia Maria,

e dois filhos.

Lúcia e José Ivaldo sempre viveram

da agricultura. Com 23 anos de união,

eles garantem a alimentação da família

com o que plantam no quintal. A fartu-

ra de feijão pode ser vista no quarto do

casal: o estoque conta com 37 garra-

fas cheias. Além disso, a colheita deste

ano já garantiu jerimum, milho, goiaba,

coco e outras riquezas.

A fartura na propriedade é fruto do

esforço do casal. Os dois cuidam jun-

tos do roçado, da casa e dos filhos.

Não há atividade de homem ou de

mulher. O casal faz tudo coletivamen-

te, mas cada um tem suas paixões: a de

Lúcia é costurar, “é bom que nem vejo

o tempo passar”, ela diz; José, por sua

vez, dedica o tempo livre ao conserto

de aparelhos de rádio antigos – “tem

uns três lá dentro (aponta para a casa).

Não vendo nenhum”.

José tem também um gravador an-

tigo que funciona com fita; aperta o

botão de ligar e sai a voz de Luiz Gon-

zaga em canções que falam do sertão.

Quando sai para comprar os grãos de

café, o gravador com a fita do Rei do

Baião faz companhia num compar-

timento da moto que parece ter sido

feito para o aparelho. “Saudade, meu

remédio é cantar”…

A água“Nós somos ricos de água”, sorri

Lúcia ao falar da cisterna recebida no

final de 2013 pelo Programa Uma Ter-

ra e Duas Águas (P1+2) da Articulação

Semiárido Brasileiro (ASA). José com-

plementa em tom de brincadeira: “Essa

aqui Deus não mandou, veio foi deixar”.

O casal lembra as dificuldades en-

frentadas em estiagens passadas. Mo-

radores da comunidade do Nambi de

Baixo, precisavam ir de madrugada à

região vizinha buscar água para be-

ber. A procura era sempre muito dis-

putada, com longas filas, então nem

sempre conseguiam voltar com água

para casa. O sofrimento passado hoje

é lembrado com o sorriso de quem

conseguiu superar momentos difíceis.

Agora o casal tem água garantida para

consumo humano ao lado de casa e

água para produção no quintal. A cis-

terna de enxurrada, com capacidade

para 52 mil litros de água, já sangrou

três vezes em apenas seis meses.

Nóssomos ricosde água.

Café comprado em Guaramiranga

Page 16: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

16Caderno de Sistematizações - FCVSA 16Caderno de Sistematizações - FCVSA

Angico, o defensorPara conseguir garantir a produção

livre de insetos e doenças, durante os

cursos de Gestão de Água para Pro-

dução de Alimentos (GAPA) e Sistema

Simplificado de Manejo de Água para

a Produção (SISMA), do P1+2, José

aprendeu a utilizar defensivos naturais.

Com esses defensivos não há neces-

sidade do uso de veneno nas plantas.

Os alimentos que vêm da terra podem

ser melhor aproveitados e podem dar

mais saúde a quem os consome.

José mostra a diferença nos galhos

da goiabeira do quintal. “Vê aqui a dife-

rença?”, pergunta enquanto mostra um

galho com folhas murchas pelo ataque

de insetos e outro bem vivo e limpo. A

mudança é notória. Os defensivos fun-

cionam e não agridem o meio ambien-

te. Uma das caldas que José utiliza é

a do angico, que combate as lagartas.

Quer anotar a receita? É bem fácil e o

próprio José ensina: “O angico, a gente

faz no tambor. Bota a casca do angico.

Depois de oito dias tira a casca, coa, aí

já pode botar na bomba”.

Essa aqui Deus não

mandou, veio foi deixar.

Lúcia em sua horta

José e Lúcia

Page 17: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

Caminhada ao campo santo do sertão por justiça evida digna no Semiárido

Por Fram Paulo

17 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA17

Houve um tempo em que a seca

era um “monstro” temido pelo povo do

sertão semiárido. Nesse tempo, não se

ouvia falar em convivência. Foram di-

versas as ações governamentais volta-

das para o que se chamou de “comba-

te à seca”, através das quais foi criada a

indústria da seca. Obras de açudagem,

frentes de serviços, distribuição de ali-

mentos e muitas outras ações assisten-

cialistas fizeram parte desse processo.

Foi a indústria da seca que transfor-

mou o fenômeno natural recorrente na

região semiárida brasileira em “mons-

tro”. Nesse contexto, vieram os mode-

los de obtenção de vantagens políticas,

fazendo uso de programas assistencia-

listas, bem como a justificativa para a

construção de grandes obras de açu-

dagem e irrigação na região.

Sendo a seca um fenômeno natural

cíclico, um longo período de estiagem

ocorreu na região no início da década

de 30 do século passado, ficando co-

nhecida como a seca de 1932. Nesse

ano, milhares de sertanejos e serta-

nejas cearenses foram aprisionados/

as nos campos de concentração em

pontos estratégicos do Ceará, com o

objetivo de impedir a invasão da capi-

tal Fortaleza pelos flagelados da seca,

como ocorrera em secas anteriores.

Fiéis caminhando e entoando cânticos rumo ao Cemitério da Barragem

Page 18: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

18Caderno de Sistematizações - FCVSA

Page 19: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

19 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Um dos campos de concentração

funcionou no município de Senador

Pompeu, no canteiro de obras da para-

gem do Patu, cuja construção teve iní-

cio em 1919 e foi paralisada em 1924.

Mais de 16 mil pessoas foram confi-

nadas em uma área de pouco mais

de 3 quilômetros quadrados. Milhares

morreram, vítimas de doenças, maus

tratos, higiene precária e fome, tudo

planejado e patrocinado pelos gover-

nos da época.

Com o fim da grande seca, no ano

de 1933, os sertanejos voltaram para

suas casas, seus lugares de origem.

Cada sobrevivente, porém, levou con-

sigo as memórias do campo de dor

e sofrimento. No imaginário popular,

através dos relatos dos sobreviventes,

ficaram as histórias de uma gente que

teve seus direitos violados, colocados

em situação de total desfiguração do

ser humano.

Foi através da memória dos sobre-

viventes e das edificações construídas

inicialmente para abrigar os engenhei-

ros e operários para construção da

barragem do Patu que o fato histórico

não foi esquecido, principalmente na

religiosidade popular, onde existe o

sentimento de que o sofrimento purifi-

ca e eleva a alma ao plano da salvação.

Criou-se no imaginário popular da

região a ideia que as almas da barra-

gem são milagrosas: as Santas Almas

da Barragem, que obram milagres, in-

tercedem pelo povo que sofre e ensi-

Page 20: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

20Caderno de Sistematizações - FCVSA

nam o caminho da fé e da esperança,

para que tal fato nunca mais venha a

acontecer nos sertões nordestinos. O

martírio coletivo criou um santo cole-

tivo. AS ALMAS DO POVO, O SANTO

DO POVO.

No ano de 1982, o padre italiano

Albino Donatti, recém-chegado a Se-

nador Pompeu, chamou os paroquia-

nos para fazer uma caminhada, saindo

cedo da manhã da Igreja Matriz e indo

até o Cemitério da Barragem, para ho-

menagear os que morreram no cam-

po de concentração e refletir sobre a

história.

A caminhada virou tradição. Todo

segundo domingo de novembro, mi-

lhares de pessoas caminham em pro-

cissão até o cemitério onde é celebra-

da uma missa em homenagem aos

que sofreram no campo de concentra-

ção de 1932. O Cemitério da Barragem

é considerado um campo santo para a

comunidade e alimenta a fé das pes-

soas.

A Caminhada da Seca é um impor-

tante patrimônio cultural de Senador

Pompeu e carrega uma forte simbolo-

gia: chamar a atenção dos governan-

tes, assim como da própria população,

para refletir e buscar alternativas para

se viver bem no semiárido. Ela é im-

portante também no sentido de man-

ter viva a memória histórica, para não

esquecermos o sofrimento de tantas

pessoas, para que possamos garantir

que nunca mais um fato semelhante

venha a acontecer; além disso, é es-

sencial pela fé, pela devoção que a co-

munidade tem para com as almas da

barragem.

Há um ditado que diz que “santo de

casa não obra milagre”. No caso de Se-

nador Pompeu, as Santas Almas da Bar-

ragem obram milagre sim. É um caso

peculiar em que o santo é coletivo. O

povo virou santo, o santo milagreiro.

São as almas do povo que intercedem

pelo povo que clama por justiça, por

vida digna no semiárido, representan-

do a luta por direitos fundamentais, por

justiça social, por acesso à terra para

morar e produzir e denunciando o

modelo de desenvolvimento imposto

pelos governos e o agronegócio, que

prioriza o lucro em detrimento da vida.

Celebração religiosa em homenagem às vítimas do campo de concentração de 1932, em frente ao Cemitério da Barragem

Tradicional parada para um momento de reflexão com a leitura de depoimentos de pessoas que sobreviveram ao campo de concentração de 1932

Page 21: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

como forma de convivência com o Semiárido BrasileiroA tradição indígena

Por Janes Sousa

Indígenas do município de Monsenhor Tabosa, no

Sertão de dos Inhamuns, no Ceará, se utilizam de

palha de taboa para produção artesanal.

21 Caderno de Sistematizações - FCVSA

A arte de produzir artesanatos com

palhas faz parte da cultura indígena. Pri-

meiros moradores do território que hoje

chamamos Brasil, os indígenas passa-

ram o conhecimento de geração em

geração, sendo ele adaptado e aperfei-

çoado com o passar dos anos. No mu-

nicípio de Monsenhor Tabosa, localiza-

do na região do Sertão dos Inhamuns,

no Ceará, três mulheres da etnia Poty-

guara utilizam o artesanato como for-

ma de adquirir renda extra e “se divertir”,

conforme destaca a cacique Maria de

Fátima Pereira da Silva, de 54 anos.

Joelma Barbosa Matos, de 43 anos,

ministrou um projeto de artesanato para

indígenas do município. Com o fim do

curso, ela, a cacique Maria de Fátima

e Maria de Jesus de Sousa Torres, de

47 anos, resolveram se unir: alugaram

um local e passaram a produzir bolsas,

saias e cestas, dentre outras peças.

A renda é utilizada para pagar o alu-

guel e comprar eventuais materiais que

elas precisem. O restante é dividido en-

tre a cacique e Maria de Jesus. Joelma

Matos, que trabalha durante a manhã

como merendeira em um anexo da

Fico feliz empoder dividir

o que sei.Joelma Matos

Maria de Jesus, Joelma Matos e Maria de Fátima fortalecem a tradição indígena na produção de artesanatos

Page 22: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

22Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

Escola Indígena Povo Caceteiro, op-

tou por repassar o conhecimento de

forma voluntária. “Fico feliz em poder

dividir o que sei e possibilitar uma ren-

da extra para elas. Além do que, nos

divertimos muito”, relata Joelma.

O bem-estar que o trabalho arte-

sanal proporciona pode ser imagina-

do por meio das palavras de Maria de

Fátima, que afirma ficar contando o

tempo para chegar a tarde e poder ir

conversar, trabalhar e aprender cada

vez mais; “ainda ganhamos uns troca-

dinhos”, ela ri. Maria de Jesus acres-

centa que não falta um único dia:

“Aqui é bom demais!”, enfatiza.

Todas as peças produzidas pelas

mulheres indígenas são feitas com

palha de taboa (Typha domingensis

Pers), planta de origem aquática en-

contrada em terrenos pantanosos.

Muitas vezes, ela é tratada como pra-

ga por cobrir grande quantidade de

área do espelho d’água e possibilitar

a proliferação de insetos. Por essa ra-

zão, as mulheres conseguem as pa-

lhas praticamente sem custo. Resis-

tente, a planta permite a criação das

mais diversas peças, como cestas e

bolsas (fotos).

Os produtos são vendidos no pró-

prio prédio onde são fabricados, no

bairro Alto da Boa Vista, em Monse-

nhor Tabosa, e também são encon-

trados no museu da história da cida-

de, onde a índia Socorro Potyguara,

responsável pelo local, disponibilizou

espaço para exposição e venda das

peças criadas pelo trio.

Escola Indígena

A união, dedicação e apreço pelo fortalecimento cultural

das três mulheres também podem ser vistos na Escola

Indígena Povo Caceteiro (Anexo Cultura Viva), no bairro

Alto da Boa Vista, na sede do município de Monsenhor

Tabosa. O bairro é o mesmo do prédio onde trabalham

as índias de quem já falamos.

O anexo Cultura Viva, assim como o projeto de artesana-

to que resultou no trio Maria Fátima, Maria de Jesus e Jo-

elma Matos, foram idealizados pela Associação Renascer

da Sede Potigatapuia.

O Potigatapuia é a junção das iniciais das quatro etnias

existentes na região: Potyguara, Gavião, Tabajara e Tu-

pibatapuia. O movimento foi criado para fortalecer a

cultura local.

O anexo é mantido com o salário que os oito professores

recebem do Governo do Estado do Ceará; para ampliar

a atuação da escola indígena, que tem sede na Aldeia

Mundo Novo, eles alugaram um local que pagam com

o próprio salário, assim como dividem o ganho com a

merendeira e com outras pessoas que lecionam. Todos

atuam além do trabalho especificado. Joelma Matos, por

exemplo, além de preparar a alimentação das crianças,

trabalha de forma voluntária ensinando os pequenos a

confeccionar artesanatos. Uma verdadeira lição de ma-

nutenção da identidade.

ÍndIos caceteIros

Diversas etnias de índios brasileiros são nomeadas de

caceteiros, devido ao fato de utilizarem cacetes de ma-

deira, conhecidos também como borduna ou tacape, em

momentos culturais como danças; a maior finalidade dos

objetos, entretanto, era como arma em caças ou guerras.

Jailson Lima aprende na escola a importância da cultura indígena

Page 23: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

Rendeiras de Chorozinho contam sua história através das linhas efortalecem o laço com o tempo

Por João Ernesto

23 Caderno de Sistematizações - FCVSA

As mãos das mulheres rendeiras das

comunidades rurais de Chorozinho

mantêm a tradição da renda em bilro

ao longo das gerações na localidade.

Elas constroem uma história de autoa-

firmação e independência no campo,

remontando a outros tempos, quando

era natural reunir as mulheres da casa

em torno do alpendre ou da sala para

começar a produção das rendas. Des-

de criança, as então meninas das co-

munidades rurais de Choró Tapera e

Patos dos Silva começavam a contar,

sem saber, sua própria história, bordan-

do, com uma sutileza única, uma tradi-

ção que remonta, no mínimo, ao início

do século passado. Nesse contexto, o

estalar dos pares de bilro quando ma-

nuseados habilmente pelas mãos das

mulheres não é apenas lembrança de

um tempo que passou, mas se torna

um fator único nessas comunidades

rurais que compõem detalhes da so-

noridade do semiárido.

O termo “bilro” remete às madeiras

utilizadas para costurar as rendas ou os

bicos – como é chamado um tipo de

renda que tem uma base retilínea e ou-

tra arredondada ou pontiaguda. Os bil-

ros, que fazem um som agudo quando

Francineide

Page 24: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

24Caderno de Sistematizações - FCVSA

manuseado aos pares, geralmente são

feitos de semente de buriti; o pedaço

de madeira por onde passa a linha,

por sua vez, é feito de marmeleiro ou

pereiro, árvores muito comuns na re-

gião. As “formas” utilizadas para mon-

tar o formato da renda são chamadas

de “papelão” pelas rendeiras, que ge-

ralmente reaproveitam caixas de leite

ou de sabão em pó, embora também

possam ser utilizados plásticos, que

para as rendeiras duram mais e não

precisam ser trocados com muita fre-

quência. A almofada, onde se encaixa

o molde e as linhas presas aos bilros, é

feita com tecido de rede e preenchida

com capim ou folha de bananeira. Os

espinhos de cardeiro ou de mandacaru

ficam nos buracos das formas, guian-

do os caminhos das linhas.

Repassar o ofício e multiplicar os saberes: as rendeiras aprendendo e repassando a tradição

Antes, a “renda” também era finan-

ceira para as mulheres. Em Choró Ta-

pera, dona Luzenira, de 64 anos, tra-

balha há mais de cinco décadas com

sua almofada de bilro e criou quatro fi-

lhos com seus rendados. Ela aprendeu

o ofício escondida da mãe; “não mexa

na minha almofada”, dizia a matriarca

antes de dormir. Luzenira desobede-

cia e pela manhã a mãe notava que a

“pilica” (nome dado quando a rendeira

completa uma “volta” na forma) estava

completa, sabendo assim que a filha

gostava de fazer o trabalho; o que ela

não imaginava é que anos depois a fi-

Eu mesma já ensinei a outras

mulheres aqui da comunidade.

Girlene

Dona Helena fazendo suas rendas

Page 25: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

25 Caderno de Sistematizações - FCVSA

lha faria do ofício a forma de sustentar

seus filhos no campo. Já dona Maria,

que reside em Patos dos Silva, conta

sobre a primeira renda que fez, aos

sete anos de idade: a “peixinha”, lem-

bra ela, destacando o formato de peixe

que o trabalho final tinha. A memória

das rendeiras faz dona Helena, por sua

vez, relembrar os trançados mais com-

plexos do tempo que era criança, afir-

mando que o comércio das peças era

mais difícil.

Ensinar o ofício para outras pesso-

as da comunidade não foi obrigação

para as rendeiras, mas a manutenção

da cultura depende diretamente do re-

passe de conhecimentos. Girlene, de

38 anos, teme o desaparecimento da

cultura da renda de birro, mas conta

que sempre que aparece alguém que-

rendo aprender, ela ensina o passo a

passo: “Eu mesma já ensinei a outras

mulheres aqui da comunidade, mas vai

ficar a critério da minha filha aprender

a fazer a renda de bilro. Ela vende suas

rendas e seus bicos em Cascavel, no li-

toral do Ceará, cada peça tem em mé-

dia nove metros e leva cerca de cinco

dias para ser finalizada, porém o preço

não compensa o trabalho manual para

boa parte das mulheres”.

O tato das rendeiras, a visualidade

dos traços nas rendas e a sonoridade

que o movimento das agulhas traz são

características marcantes da localidade.

O estalar dos bilros destaca um sensí-

vel trabalho das mulheres rendeiras de

Chorozinho na história da localidade.

Almofada com bilros de Lourdes

Page 26: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

Maria de Jesus e a terra onde planta roçados, hortas e sonhos

Por Karol Dias

“Eu já tenho imaginadoQue a baixa, o sertão e a serra

Devia sê coisa nossaQuem não trabalha na roça

Que diabo é que quer com a terra?”

Patativa do assaré

26Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

Maria de Jesus, de 54 anos, é uma

agricultora que, a exemplo de muitas

mulheres rurais, cuida com carinho

da terra, dos animais e das plantas. Na

comunidade São Bento, que fica a 15

quilômetros de Ibiapina, ela mora com

o marido, Pedro Batista, as filhas, Silva-

nir, Luciane e Lidiane, os filhos, Genil-

son e Janielson, e os netos, Jadyson

e Jovino Filho. Maria divide seu tempo

entre o cuidado com a casa, o roçado,

os canteiros, as fruteiras e os animais

que cria no quintal e ao redor de casa.

“Já me criei na agricultura, desde meus

pais e meus avós. Para mim, a profis-

são que dou o maior valor é essa mes-

mo... É o melhor que eu faço e é o que

gosto de fazer”, ela explica.

A família chegou no local há 12

anos e mora em “terra de patrão”,

onde eles plantam e colhem. A agri-

cultora, entretanto, se preocupa: “A

gente planta assim, com medo por-

que não mora no que é nosso. A

gente é morador, planta nas terras

alheias e tem medo de avançar mais,

planta pouquinho só para ir se man-

tendo”. Assim, de cada seis ‘leiras’

que colhem no roçado, duas é para

a dona da terra.

Enquanto um canteiro brota, outro alimenta

Page 27: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

27 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Água que dá vida e aumenta a produção

Maria de Jesus lembra com alegria

que, em 2012, recebeu uma cisterna

calçadão; foi quando pôde ampliar

seus plantios perto de casa e diminuir

o gasto com alimentos. “O bom aqui

é que a gente vai consumindo sem tá

comprando. E tudo isso que a gente

faz aqui já vai amaneirando a despesa

de casa”, ela diz orgulhosa.

Trabalhando na agricultura desde a

infância, Maria de Jesus sempre pro-

duziu de forma orgânica pensando

no bem-estar de sua família; preferia

ter prejuízo na colheita do que ter que

usar fertilizantes e defensivos químicos.

Desde que participou dos cursos de

formação em Gerenciamento de Água

Para Produção de Alimentos (GAPA),

Sistema Simplificado de Manejo de

Água (SISMA) e de um intercâmbio de

formação, entretanto, ela aprendeu al-

gumas estratégias que melhoraram o

resultado de sua produção. “Eu aprendi

como pulverizar as plantas, que eu não

sabia, com manipueira, com nim, pul-

verizar quando o gado cria carrapato...

Tudo isso a gente aprendeu com esses

cursos”, cita a agricultora.

Em relação ao consumo e à comer-

cialização, da produção do roçado ela

só vende se sobrar da alimentação da

família; o que vem da horta, por sua

vez, além de suprir as necessidades de

casa, é compartilhado com as/os vizi-

nhas/os. “Muitos deles que vêm atrás, a

gente divide também”, comenta.

Terra que é sonho e direitoSobre sentimentos e esperança ela

diz: “Eu tenho o maior sonho no mun-

do de um dia eu alcançar de morar

num pedacim, embora que seja só o

pontim da casa, mas, que eu diga as-

sim: aqui ninguém mexe comigo...”. As-

sim é Maria de Jesus, uma agricultora

que, com trabalho, simplicidade e sor-

riso no rosto, leva consigo a esperança

de um dia conquistar o que há de mais

fundamental para quem trabalha na

agricultura: a terra.

Maria de Jesus e seu canteiro a produzir

Desenho da paisagem que começa a se diversificar com o acesso a água

Page 28: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

Cultivar sonhos paraalcançar as estrelas

Por Liliane Carvalho

“Ser radical é agarrar as coisas pela raize a raiz do homem é o próprio homem”

Paulo Freire

28Caderno de Sistematizações - FCVSA

Sonho que se sonha junto é reali-

dade! Está sendo assim com a Escola

Família Agrícola Chico Antonio Bié, a

EFA Ibiapaba. Desde 2009, agriculto-

ras e agricultores envolvidos no Projeto

Agroecologia em Rede, desenvolvido

pelos Sindicatos de Viçosa do Ceará

e de Tianguá, estão “tecendo fios” e

construindo uma educação diferencia-

da no semiárido ibiapabano.

A escola que tantos trabalhadores

e trabalhadoras rurais desejaram ter e

não puderam frequentar antigamente

existe, mas não corresponde às neces-

sidades de quem mora no campo: não

respeita a cultura e a história de cada

região, não valoriza nem reafirma a

identidade campesina, estimula o êxo-

do rural e não contribui com o desen-

volvimento agrário.

Estudantes da EFA construindo Canteiro Econômico na Oficina de SISMA.

Page 29: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

29 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA29

Insatisfeitos com essa educação,

agricultores e agricultoras programa-

ram uma visita à Escola Família Agrícola

Dom Fragoso, situada em Independên-

cia. Foi aí que o sonho de ter uma ver-

dadeira educação do campo começou

a mudar a vida dessas pessoas. Com

muito esforço, determinação, trabalho

e compromisso, criaram a Associação

da Escola Família Agrícola da Ibiapaba.

Depois de “bater em muitas portas”, a

Associação do Assentamento Morada

Nova–Tianguá fez a doação de 22 hec-

tares de terra para a construção da EFA.

Acreditando na capacidade criativa e

no compromisso das famílias envolvidas

nessa construção, em 2013 foi realizado

o processo de seleção da primeira turma

de estudantes e, dos mais de 100 jovens

interessados, 26 foram matriculados. A

EFA está funcionando! Pela pedagogia

da alternância, os jovens passam doze

dias intensivos na escola e o restante do

mês em casa, realizando uma diversida-

de de tarefas que envolvem as famílias

e as comunidades. Direção, monito-

ria e educadores realizam um trabalho

voluntário, cheio de dedicação e es-

peranças. Para suprir tantas outras ne-

cessidades, inclusive a de alimentação,

muitos apoiadores estão contribuindo

com trabalho e doações. Por enquan-

to, a escola funciona na Casa de Reuni-

ões, cedida pela Associação do Assen-

tamento Nova Esperança–Tianguá. Os

Sindicatos de Viçosa, Tianguá, Ubajara,

Ibiapina e Frecheirinha, além de outras

entidades e pessoas, dedicam tempo,

cuidado e trabalho na realização das

atividades escolares, garantindo o bom

funcionamento da escola.

Mudar mentalidades e comporta-

mentos nunca foi tarefa fácil nem para

a família, nem para a escola, mas isso

Primeira Turma da Escola Família Agrícola da Ibiapaba - EFARI

Page 30: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

30Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

está acontecendo na EFA. Agora, jovens

que passaram por lá estão cuidando

melhor das suas coisas e do ambiente

onde vivem, compartilhando o trabalho

doméstico, dialogando mais com suas

famílias, assumindo maiores responsa-

bilidades em casa e na escola e admi-

nistrando as dificuldades de relaciona-

mento para estabelecerem uma melhor

convivência em grupo. “Nas outras es-

colas, os filhos estudam para abando-

nar o campo; na EFA, eles buscam as

raízes históricas da família e resgatam

essa memória. É muito bom!”, conta

João Jovem, pai de Eduardo, educan-

do da EFA.

O registro oficial da EFA, a constru-

ção da escola com base na permacul-

tura, a infraestrutura e a alimentação

durante as seções escolares são de-

safios que precisam ser vencidos para

se “alcançar as estrelas”. A Campanha

“Amigos da EFA” está mobilizando novas

entidades e pessoas, aumentando a teia

de solidariedade e o compromisso de

todos com a transformação da educa-

ção e, consequentemente, da vida no

campo, tornando realidade o sonho de

muitos que querem um semiárido onde

a vida que pulsa se expresse de forma

plena e radical.

Nas outras escolas, os filhos

estudam para abandonar o

campo; na EFA, eles buscam as

raízes históricas da família e

resgatam essa memória.

João Jovem

Participação de estudantes da EFA na Oficina de GAPA pela ESPAF

Page 31: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

Por Marcus Saymon

31 Caderno de Sistematizações - FCVSA

em Icapuí (CE)Artesanato é fonte de renda e vida

O sorriso largo de dona Maria Nasi-

rene traduz a vida que ela mesma de-

fine como “FELIZ”. A agricultora mora

no município de Icapuí, na comunida-

de Vila União, já próximo à divisa com

o Rio Grande do Norte.

Para a agricultura familiar, os bens

TERRA e ÁGUA são indivisíveis. Nessa

luta seguem milhares de camponeses

que buscam em suas terras produzir e

garantir o sustento de suas famílias. A

primeira das lutas enfrentada por dona

Nasirene foi a conquista da terra. Inicial-

mente, era apenas ela, o marido – seu

Milton – e um dos seus filhos. “Quando

a gente chegou aqui, só era mato alto,

e daí roçamos tudo com facão e co-

meçamos a lutar pelos nossos direitos”,

conta a agricultora. Assim, a família

buscou os documentos e meios legais

até conseguir definitivamente a docu-

mentação que garantia a posse legal.

A segunda parte de sua luta foi a

busca pelo acesso à água. De forma

organizada, a agricultora mobilizou a

comunidade e levou essa demanda até

a COMTACTE (Cooperativa Mista de

Trabalho Assessoria e Consultoria Téc-

nico Educacional), que executou as

primeiras construções e capacitações.

O sentimento que move dona Nasi-

rene é de que tudo pode ser diferente;

não existe, em seu coração, aquele ve-

lho pensamento de que já sabe tudo,

que não precisa aprender mais, ou

qualquer outro sentimento que torna

as pessoas pessimistas e sem esperan-

ça. “Sempre que a gente solicita alguma

coisa para cá, eles nunca querem no

começo, mas quando veem que está

dando certo aí se interessam,” explica a

agricultora. Dona Nasirene foi uma das

primeiras a apoiar a chegada das imple-

mentações do Programa Uma Terra e

Duas Águas (P1+2) na sua comunida-

de, já que ainda hoje existem muitas

Sua historia se confunde com a história da comu-nidade, e entre sorrisos ela trança com agilidade os fios e enquanto fala um pouco da sua vida

Page 32: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

32Caderno de Sistematizações - FCVSA

comunidades que não acreditam que

as políticas de convivência com o se-

miárido possam ser uma realidade, que

não creem que esse tipo de tecnologia

social pode chegar até elas, mas perce-

bem que, quando todos se envolvem,

renova-se o sentimento de esperança.

Dona Nasirene é um exemplo de for-

ça e encorajamento. Atualmente, ela tem

no artesanato o seu sustento e mantém

firme e unida toda sua família que vive

em volta do seu quintal produtivo. “O

cisternão veio para complementar meu

quintal produtivo”, conta a agricultora.

Em seu quintal, ela tem galinhas caipiras,

marrecos, patos, porcos, bezerros e uma

vaquinha, dentre outras criações; além

disso, tem como forragem a hortênsia,

a leucina e a algaroba, que servem de

alimento para a vaca e bezerros.

A adaptação da alimentação animal

para espécies que são cotidianas do se-

miárido facilita a conservação das mes-

mas durante o período em que não há

chuva. Essas forragens são bastante co-

muns entre agricultores familiares.

Já no que se refere à comercializa-

ção direta dos produtos, a família ainda

não conseguiu se organizar, pois prefe-

re assegurar sua alimentação, mas tem

como objetivo se unir aos demais mo-

radores para se organizar e levar seus

produtos a alguma feira local. Dona

Nasirene costuma participar, junto das

mulheres da comunidade, de eventos

e feiras onde cada uma leva seu produ-

to, seja artesanato, frutas, verduras, etc.

Page 33: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

33 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Page 34: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

34Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

O artesanato da agricultora é de

encher os olhos. Ela conta que nem

lembra como aprendeu, mas que na

primeira comunidade onde morava

com sua mãe em Canaã, no Ceará, as

mulheres costumavam se reunir à tar-

de para “rendar”. Hoje, ela conta com

ajuda da mãe para vender suas peças

em Natal, no Rio Grande do Norte;

dessa forma, se livra do atravessador e

recebe justo pela sua arte.

O material utilizado para a renda

de bilro é bastante simples: o trança-

do se dá apoiado em uma almofada,

confeccionada com retalho de rede e

recheada com folhas de bananeira; o

papel picado é apoiado em cima com

o desenho que dá forma aos fios. Os

bilros que dão nome à renda são feitos

com pedaços de madeira e Dona Nasi-

rene nos mostra um que lhe acompa-

nha desde a primeira renda. A função

dos bilros é facilitar o rendado e cada

um tem um fio de coloração diferente;

quanto maior a renda, maior o núme-

ro de bilros. Os alfinetes usados por ela

são espinhos de mandacaru, já que os

convencionais enferrujam devido à re-

gião ser a beira-mar.

Primeira moradora da comunidade,

fundadora e presidente da associação,

artesã, agricultora familiar, mãe. Essas

são apenas algumas das atribuições

que podem ser dadas a Dona Nasirene

que, com sua hospitalidade e exemplo

de vida, segue motivando e encorajan-

do todos no Semiárido.

Quando a gente chegou aqui, só era mato alto, e daí roçamos

tudo com facão e começamos a lutar pelos

nossos direitosnasirene

Cores e tranças da rendaOrgulhosa do seu pedaço de chão, dona Nasirene conta todas as suas conquistas pessoais e em prol de sua comunidade

Page 35: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

35 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Casados há 26 anos, João Fe-

lix chama Antônia para participar da

prosa porque sem ela, a conversa e a

vida ficariam incompletas. Com uma

trajetória inteira dedicada à agricultu-

ra familiar, João só ficou sabendo da

existência da agroecologia em 2003

através do Centro de Pesquisa e As-

sessoria – ESPLAR. Vivendo na co-

munidade Riacho do Meio, em Cho-

a experiência de resistência de João Félix e AntôniaVivendo e aprendendo:

Por Mayara Albuquerque

Vivendo e aprendendo a jogar

Vivendo e aprendendo a jogar

Nem sempre ganhando

Nem sempre perdendo

Mas, aprendendo a jogar

Guilherme arantes

ró Limão, município localizado a 21

quilômetros de Quixadá e da micror-

região do Sertão de Quixeramobim,

ele vivenciou o alto índice de veneno

da região. “A gente colocava veneno,

tinha vontade de largar, mas achava

que não ia conseguir produzir sem o

veneno. Tinha vontade, mas não ti-

nha o parecer, o conhecimento”, re-

lembra o agricultor.

João Félix recebe agricultores e agricultoras do Sertão Central em intercâmbio

Page 36: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

36Caderno de Sistematizações - FCVSA 36Caderno de Sistematizações - FCVSA

Com o Algodão em Consórcios

Agroecológicos e os Quintais Produti-

vos, projetos implantados pelo ESPLAR,

o casal começou a construir uma nova

visão de mundo. Para João, a agroeco-

logia engloba todas as coisas, desde o

convívio em sociedade até a divisão de

tarefas em casa: não se trata só de se-

gurança alimentar, trata-se de construir

politicamente um novo modo de viver

e, acima de tudo, defendê-lo. “E de lá

para cá, a gente ingressou na questão

da agroecologia, tanto em fazer como

em defender. Eu acho que o ideal não

é só você querer para si, mas mostrar

para outras pessoas que aquilo dá cer-

to, que é importante, que é uma forma

de ter mais saúde. Faz com que a terra

tenha mais vida”, ressalta o agricultor

agroecológico ao falar sobre a sua tra-

jetória na agricultura familiar.

Há dez anos sem produzir com ve-

neno, João Felix acredita que experi-

mentar é a melhor maneira. Não existe

fórmula, é fazer do seu quintal o seu

laboratório e o seu espaço para criar

e proteger a terra. É vivendo que se

aprende e na convivência com o pró-

ximo, como bem diz Antônia: “A gente

nunca diz assim: ‘eu sei tudo’. A gente

sempre tem o que aprender. É na con-

vivência que a gente vai aprendendo”.

João é um dos multiplicadores do

Algodão em Consórcios Agroecológi-

cos, um dos fundadores da Casa de

Sementes do Riacho do Meio e tam-

bém faz parte da Associação Comuni-

tária dos/as Agricultores/as Familiares

do Riacho do Meio. Assim, está sem-

pre envolvido em reuniões. Já partici-

pou duas vezes do Encontro Nacional

de Agroecologia (ENA) e outros tantos

João Félix e a família, reunidos em frente ao trabalho do artista pernambuco Derlon

A gente nunca diz assim: ‘eu

sei tudo’.A gente sempre

tem o que aprender. É

na convivência que a gente vai

aprendendo.antônia

Page 37: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

37 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA37

encontros, pois considera da maior im-

portância compartilhar experiências e fi-

car por dentro dos debates.

Antes de sair de casa, ele pede que o

filho leve o café para a mãe na cama, um

mimo que faz à companheira há anos

antes dela sair de casa para trabalhar. An-

tônia, além de cuidar da horta e das abe-

lhas, também é agente de saúde e conta

com a ajuda dos três filhos e do compa-

nheiro nas tarefas da casa.

A cisterna calçadão da família não vê

água da chuva há três anos e, com a seca,

até os cacimbões da região secaram, daí é

preciso pagar o carro-pipa para ter acesso

à água. No entanto, como a “força nunca

seca para a água que é tão pouca”, o ca-

sal ainda cultiva cheiro-verde, cebolinha,

alface, pimentão, tomate, limão, caram-

bola, mamão, goiaba, noni, graviola, la-

ranja, acerola, amora, cajueiro e coqueiro.

Na parte de plantas medicinais, eles têm

capim-santo, corama, malvarisco e cidrei-

ra. Além disso, criam galinhas e ovelhas.

“No primeiro ano que nós recebemos a

cisterna, o João fazia o dinheiro da sema-

na só nos finalzinho de semana. Não pre-

cisava nem botar para vender para fora

não. O pessoal sabia que tinha e já vinha

comprar aqui. Era pimentão, pimentinha,

cheiro-verde...”, recorda Antônia.

Apesar da falta de água, o casal já re-

cebeu agricultores e agricultoras de Ma-

dalena em intercâmbio esse ano. Resistir

é com eles mesmo. Mas não resistir para

sobreviver, e sim para mostrar que a luta

vale a pena, que a vida pode ser digna e

que os sonhos podem pulsar em qual-

quer lugar.

João Félix e Neto, na feira da agricultura familiar e solidária de Quixadá

João Félix mostra a criação de abelhas

Page 38: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

38Caderno de Sistematizações - FCVSA

Agricultoras de Aroeiracultivando arte

Por Ricardo Wagner

“Os olhos são os primeiros

que anunciam o amor”

Em Aroeiras, a receptividade e o

bom humor sopram pelos troncos das

carnaúbas e cajueiros como os famo-

sos ventos do Aracati, onde a comuni-

dade está localizada a 27 quilômetros

da sede do município. Cerca de cem

famílias povoam a localidade, sendo

a maioria composta por agricultoras

e agricultores familiares que plantam

macaxeira, feijão, milho, mandioca e

beneficiam produtos do caju.

Mulheres que lideramÉ nesse local que vivem as dramis-

tas. Dona Eufrásia é a líder do grupo.

Dos tempos em que lecionava aos

tempos atuais, dona Eufrásia, agora

com 86 anos, traz muita história para

contar. Ela nasceu na comunidade La-

goa Escondida, vizinha à comunidade

Aroeiras. Por trinta anos, a professora

aposentada lecionou em escolas mu-

nicipais; hoje, ela não deixa de exercer

duas atividades que tanto gosta: a agri-

cultura e o drama.

Sua casa é bem arejada, resultado

dos enormes cajueiros, ateiras e man-

gueiras que nos convidam a armar

uma rede e contemplar o canto dos

passarinhos misturado ao ranger do

Grupo de dramistas de Aroeiras - Aracati (CE)

Page 39: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

39 Caderno de Sistematizações - FCVSA

antigo armador fincado no tronco da

carnaúba. O coentro, o pimentão e a

cebolinha estão no canteiro; a manga,

a ata, o mamão, o abacaxi e a acerola

ficam nos arredores da casa; e o feijão,

a melancia e o milho no roçado, por

sua vez, se encontram ao redor da cis-

terna de enxurrada.

Sentada à mesa que seu pai fabri-

cou para que ela pudesse ensinar as

crianças, jovens e adultos da comu-

nidade, dona Eufrásia nos relata: “Mas

não foi fácil, não. Todo o pessoal mais

velho daqui foi meu aluno. Eu ensinei

o meu marido a ler e a escrever depois

de adulto”. Junto com seu Zé Maria, de

72 anos, seu marido e companheiro de

luta, ela fala da sua trajetória: “A gente

sabia plantar porque nossos pais leva-

vam a gente pro roçado para aprender

vendo. Ninguém nos ensinava a não

colocar fogo no roçado, a não usar ve-

neno. Hoje está diferente. Tem muitos

meios de não estragar a terra”. O que o

casal relembra são as dificuldades com

a água. “Hoje está mais fácil conseguir

um bom plantio. Com essas cisternas,

a gente tem mais tempo para aprender

formas de cuidar da terra, diferente do

que a gente fazia naquele tempo”, ob-

servou dona Eufrásia.

“Quando as famílias aqui não tinham

cisterna, dava era confusão quando

o carro-pipa vinha colocar água no

tanque ali do lado da casa de farinha”,

conta a agricultora, que lava suas rou-

pas à sombra de um cajueiro do lado

da casa. “A água já está garantida na

cisterna. Eu tenho tempo para fazer

outras coisas e eu ainda participo do

grupo de dramistas”, ela arremata.

É muito Drama

“Eu sou a vida força monitora

Espalho a luz pelo mundo afora

Quem me criou foi a mãe Aurora

Que lá no céu nos dirige agora...”

O Grupo de Dramistas de Aroeiras

conta hoje com 11 mulheres e 2 ho-

mens. Dona Eufrásia está no grupo

desde a década de 1940, quando ain-

da era menina, e rememora aqueles

tempos: “A gente estudava em Aracati

e quando era nas férias, a gente vinha

a pé para cá. Cada dramista fazia sua

roupa e a gente ensaiava para se apre-

sentar aqui nas redondezas”

Dona Fátima Lima, de 60 anos, nos

conta a história: “O Drama é uma espé-

cie de teatro, só que é todo dançante,

Dona Eufrásia, fundadora do grupo

Page 40: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

40Caderno de Sistematizações - FCVSA

como um musical. É um tipo de arte

que veio dos portugueses e está aqui

desde os meus avós”. O Drama do gru-

po é dividido em 32 atos, e tem vários

personagens, como as floristas, a ciga-

na chique, a baianinha e os matutos. O

Drama pode ser apresentado em qual-

quer época, diferente do Pastoril, que

só é apresentado na época do Natal.

Sem contar com nenhum apoio e

sem acessar nenhuma política pública,

o grupo ainda não tem sede própria.

As roupas, cenários e adereços são

guardados na casa de dona Fátima. Ela

também é responsável por guardar os

cadernos com as composições musi-

cais do grupo debaixo de sete chaves.

“É que a gente participa de competi-

ções de Dramistas, aí a gente não quer

que os outros grupos peguem as nos-

sas músicas, né? A gente não é nem

besta!”, diz sorridente a artista. Dona

Maria, que também faz parte do grupo,

dispara alegre: “As músicas eram grava-

das só no chip da cabeça”.

As Dramistas demonstram preocu-

pação com o futuro do grupo. “É que

a juventude não está querendo partici-

par. A gente tem medo que ninguém

bote o grupo para frente”, diz dona

Fátima com o olhar perdido. Contan-

do com apenas um pandeiro, tocado

por seu Francisco Ciriato, de 74 anos, o

grupo não desanima. “A gente vai con-

tinuar tentando trazer os jovens para

cá. A gente não pode desistir”, comple-

ta dona Fátima, com um largo sorriso.

Com essas cisternas, a

gente tem mais tempo para

aprender formas de cuidar da

terra, diferente do que a gente fazia naquele

tempo.eufrásia

Gerações fazendo cultura no Semiárido Cearense

Page 41: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

41 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Urucongo: uma história de arte e cultura

no Cariri CearensePor Ricardo Vieira

Na comunidade Chico Gomes, dis-

tante oito quilômetros da sede do mu-

nicípio de Crato, um grupo de jovens dá

o exemplo que, através da mobilização

social, é possível construir mudanças

positivas. A comunidade é composta

por 47 famílias que se distribuem numa

área na encosta da Chapada do Arari-

pe voltada para atividades agropastoris,

tendo, portanto, o acesso à terra como

o maior desafio.

Nesse ambiente, em meados de

2001, um grupo de jovens se reuniu

para organizar uma quadrilha junina, a

primeira de muitas. A partir de então,

passaram a se encontrar nos períodos

que antecediam as festas juninas para

planejar os festejos, incluindo as temá-

ticas a serem trabalhadas. Nesses mo-

mentos surgiam, além dos assuntos re-

lativos à quadrilha, outros de interesse

da comunidade, como acesso à terra e

à água, segurança alimentar, revitaliza-

ção da cultura local e regional, traba-

lho escravo e articulação com outras

organizações, dentre outros. Como os

encontros se encerravam com a reali-

zação da quadrilha, os temas não eram

aprofundados.

Nascia então a necessidade de algo

mais concreto, dando origem, em

2006, ao Grupo Urucongo de Artes.

“Não tínhamos noção da ação políti-

ca do grupo dentro da nossa realida-

de. Trabalhávamos na quadrilha temas

como o Caldeirão1, que fazia refletir

sobre diversas questões, como o aces-

so à terra, embora de forma superficial.

Quando passou a Urucongo, percebe-

mos o tanto que podíamos aprofun-

dar”, conta Ana Cristina, de 25 anos,

relembrando aquele período; à época,

ela tinha apenas 13 anos.

Manoel Leandro, que hoje tem 35

anos e é participante do grupo desde a

sua fundação, quando ainda era jovem,

acrescenta: “Tudo começou a partir de

Apresentação cenopoética doGrupo Urucongo de Artes

Page 42: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

42Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

uma brincadeira que foi ficando séria e

despertou a necessidade de aprofun-

dar todas essas questões”. Os jovens se

dedicaram a pesquisar a história local e

a buscar parcerias para capacitações e

formações políticas para se reconhece-

rem como sujeitos dessa história. Logo

em seguida, e com o mesmo intuito,

foi realizada uma oficina de confecção

de instrumentos musicais em parceria

com a Rede Mulher. Essas iniciativas

trouxeram reconhecimento ao Uru-

congo pela própria comunidade, na

região do Cariri e até nacionalmente.

Em 2009, o grupo foi contempla-

do com o prêmio “Culturas Populares”

do Ministério da Cultura, viabilizando a

compra de um terreno nos arredores

da comunidade. No local, foram agre-

gados uma rádio difusora, uma casa

de sementes e um viveiro de mudas

do P1+2 (Programa Uma Terra e Duas

Águas da Articulação Semiárido Brasi-

leiro (ASA)). No ano de 2012, eles con-

correram ao Prêmio Odair Firmino de

Solidariedade com o tema “Juventude,

Desenvolvimento e Solidariedade: Se-

meando Direitos, Colhendo Vidas” (é

o tema geral do prêmio ou o tema do

grupo? A pontuação muda de acordo

com a resposta)., pela Cáritas Brasileira,

alcançando a primeira colocação e a

premiação de R$ 10.000,00.

O recurso veio através de bolsas para

jovens da comunidade destinados (os

jovens ou as bolsas que são destinados?

A pontuação muda de acordo com a

resposta) aos cuidados com a mandala

(projeto de agricultura familiar autossus-

tentável para fins de produzir a própria

alimentação com qualidade, produtivi-

dade, responsabilidade social e exercí-

cio da cidadania) e para formações para

o turismo de base comunitária.

Ainda em 2012, o Urucongo realizou

a primeira Balada Coco, evento cultural

que passou a fazer parte do calendário

do grupo, como também a revitaliza-

Meizinheiras com a mão na “massa” (no sabão)

Page 43: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

43 Caderno de Sistematizações - FCVSA

ção do trabalho das meizinheiras (tam-

bém passou a fazer parte do calen-

dário?), em reconhecimento ao apoio

dado pelas mães destes jovens. Em

parceria com a Cáritas, o Instituto Chi-

co Mendes de Conservação da Biodi-

versidade (ICMBio) e o Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia do

Ceará (IFCE) e associados a outras duas

comunidades, Batateiras e Jenipapo,

(os jovens ou as mães?) enriqueceram

o projeto das Meizinheiras com a pro-

dução e a comercialização de chás,

banhos, lambedores, sabonetes e po-

madas. Este ano (2015?), eles tiveram

a primeira experiência de turismo de

base comunitária como mais uma pos-

sibilidade de geração de renda.

Ivonildo, que participa do Urucon-

go desde a adolescência e hoje é um

jovem universitário, profetiza: “O futuro

do Urucongo é fazer da Chico Gomes

– a nossa comunidade – o nosso local

de trabalho e fonte de renda, pois os

jovens veem o grupo como uma fase

momentânea, não conseguem ver ain-

da a continuidade para o futuro, mes-

mo com todas as vitórias”.

Como nem tudo são flores, os jo-

vens estão conscientes que seu prin-

cipal desafio é trazer de forma mais

ampla o debate do direito de acesso à

terra, já que as gerações anteriores têm

características pacíficas, resultado de

marcas na memória de pressões sofri-

das no passado. “Historicamente a co-

munidade está submissa às questões

agropastoris através dos anos e pre-

tendemos tirar a venda dos olhos da

comunidade, fazendo-os enxergar a

realidade”, pois “o não empoderamen-

to da terra, nos impossibilita de aces-

sar várias políticas públicas”, acrescenta

Manoel Leandro.

Manoel destaca ainda o apoio das

instituições parceiras, em especial da

Associação Cristã de Base (ACB), no

início da mobilização, e também da

Cáritas Diocesana do Crato, da Rede

de Educação Cidadã (RECID), da Rede

Mulher, do ICMBio, do IFCE, do Grupo

de Valorização Negra do Cariri (Gru-

nec), da Universidade Federal do Ca-

riri (UFCA) e do Fórum Araripense de

Combate a Desertificação.

Para Rosely, fundadora e integrante

do grupo desde a adolescência e mãe

de Heitor, de apenas um mês, a institu-

cionalização do grupo é um passo fun-

damental para os sonhos que querem

realizar, contribuindo para a constru-

ção da realidade de que no semiárido

brasileiro é possível promover a melho-

ria da qualidade de vida dos agriculto-

res e agricultoras familiares.

Pretendemos tirar a venda dos olhos da comunidade, fazendo-os enxergar a realidade.Manoel Leandro

Mandala na comunidade Chico Gomes

Page 44: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

44Caderno de Sistematizações - FCVSA

o MST já fez história. A Escola João dos Santos Oliveira faz parte dessa vitória

Na luta pela terra

Por Rutiele Parente

Da terra onde nasceu o MST no Ce-

ará, brotou a Escola Estadual de Ensi-

no Médio João dos Santos de Oliveira

(João Sem Terra), um centro de edu-

cação em agroecologia e desenvol-

vimento sustentável dos movimentos

sociais populares do campo. Situada

no Assentamento 25 de maio, na co-

munidade de Quieto, e marco históri-

co na luta dos trabalhadores e traba-

lhadoras rurais sem terra no estado do

Ceará, a escola foi inaugurada em 6 de

Abril de 2010, no município de Madale-

na, como parte do esforço da luta pela

terra, por reforma agrária e pela afirma-

ção da agricultura camponesa familiar.

O nome da escola foi definido

através da participação popular, que

escolheu o nome de João Sem Ter-

ra (1939-2008) para ser homenagea-

do. Sua trajetória é uma presença viva

na luta pela reforma agrária, por isso

a justa homenagem a sua memória,

nomeando a Escola Estadual de Ensi-

no Médio João dos Santos de Oliveira

(João Sem Terra).

Aniversário de 25 anos do Assentamento 25 de maio (Arquivo Escola João Sem Terra)

Page 45: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

45 Caderno de Sistematizações - FCVSA

Estamos esperando a reforma que

não sai, mas é preciso achar um

jeito, juntar braço com mais braço

conquistar melhor espaço,

no que temos de direito.

trecho da música que João sempregostava de tocar e cantar

Por estar inserida no contexto de luta

pela reforma agrária, a escola se apre-

senta como um espaço de reflexão e

discussão com o intuito de promover

um projeto socioeconômico que pre-

tende contribuir com a formação de

um novo homem e uma nova mulher,

sujeitos de uma nova sociedade, supe-

rando os valores do individualismo, do

egoísmo e do consumismo, raízes da

exploração dos seres humanos, que

produzem miséria e violência, além

da destruição ambiental que ameaça

a vida de todo planeta.“Nós temos lu-

tado por um projeto político-pedagó-

gico das Escolas do Campo que leve

em conta essa realidade, do projeto

da agricultura camponesa, que é esse

projeto baseado na agroecologia, nas

novas relações de gênero, nas tecnolo-

gias de convivência com o semiárido,

considerando a matriz da agroecologia,

preocupada com a formação humana

nas suas várias dimensões,”ressalta Ma-

ria de Jesus, coordenadora do Setor de

Educação do MST.

Baseando-se na Política Nacional

de Saúde Integral das Populações do

Campo e da Floresta, no ano de 2012 a

escola sediou a primeira turma do Cur-

so Técnico em Meio Ambiente para jo-

vens do campo, que teve como nome

“Raízes da Terra”. O curso foi uma par-

ceria entre a Escola Politécnica de Saú-

de Joaquim

Venâncio da Fundação Oswaldo

Cruz (EPSJV/Fiocruz), o Núcleo Tra-

mas da Universidade Federal do Ceará

(UFC) e o Movimento dos Trabalhado-

res Rurais Sem Terra, contando com o

financiamento da Secretaria de Gestão

do Trabalho e Educação na Saúde (SG-

TES) do Ministério da Saúde. A iniciativa

tinha como objetivo principal formar

trabalhadores e trabalhadoras rurais

para a identificação e o enfrentamen-

to dos principais determinantes sociais

da saúde das populações do campo,

fortalecendo a luta dos movimentos

sociais camponeses na construção

de ambientes saudáveis e sustentáveis

com ênfase nos problemas de saúde

ambiental de seus territórios.“O MST

luta pela educação na reforma agrária

como uma estratégia de fortalecer a

reprodução camponesa e o projeto de

sociedade que defendemos, que é um

Alunos da Escola do Campo apresentando seus projetos/ações na I Feira da Reforma Agrária em Quixeramobim (Arquivo Escola João Sem Terra)

Page 46: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

46Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

campo com mais dignidade, que pro-

duz alimentos saudáveis, que tenha so-

berania alimentar, uma transformação

social,” reforça Maria de Jesus.

A Escola João Sem Terra tem uma

área importante de produção agroe-

cológica, que é também espaço para

capacitação e pesquisas; ela contam

com uma horta Mandala, que produz,

além de hortaliças e legumes, frutas e

peixes cuja produção é destinada ao

consumo interno. É na Mandala onde

são cultivadas as plantas medicinais

que compõem o projeto “Farmácia

Viva”, no qual os alunos discutem a im-

portância das ervas medicinais na cura

de doenças.

Além disso, são desenvolvidas di-

versas atividades educativas e culturais

com a comunidade de seu entorno,

destacando-se os projetos elaborados,

pesquisados e apresentados pelos pró-

prios alunos que constroem sua cons-

ciência crítica em relação ao meio em

que vivem. No projeto “O uso de Agro-

tóxicos e os impactos na saúde e no

meio ambiente”, os alunos Guilherme

e Sara apresentam receitas de biode-

fensivos contra diversos insetos que

atingem as plantações e apontam a

importância da preservação ambiental

e o mal causado pelos insumos quí-

micos. Para o aluno Thalyson, “depois

que eu entrei na escola do campo, eu

mudei bastante, porque aqui agente

discute e constrói a educação. Eu era

tímido e, com os projetos, o teatro, eu

me sinto mais capaz, eu nem imagina-

va que tinha essa capacidade.”

Além de contribuir na divulgação da

agroecologia, no apoio social e na efe-

tivação da reforma agrária no Ceará,

a prática pedagógica da Escola João

Sem Terra está se construindo local

e regionalmente como uma referên-

cia para a educação do campo. Anu-

almente, muitas pessoas passam pela

Escola em cursos, encontros do MST e

outros eventos.

Nesse contexto, e em meio a tan-

tos desafios que ainda persistem,

pode-se afirmar que o fato de os su-

jeitos contribuírem na construção da

experiência e da prática pedagógica

da Escola João dos Santos Oliveira fez

nascer um novo jeito de fazer escola e

de fazer-se humano.

Mas, apesar de tudo isso

O latifúndio é feito um inço

Que precisa acabar

Romper as cercas da ignorância

Que produz a intolerância

Terra é de quem plantar

canção da terra - Pedro Munhoz

Aniversário de 25 anos do Assentamento 25 de maio (Arquivo Escola João Sem Terra)

Page 47: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

47 Caderno de Sistematizações - FCVSA

uma nova maneira de economia trazendo mudanças significativas nos modos de viver, pensar e agir de agricultores e agricultoras

Fundo Rotativo:Por Lívia Teixeira

A Cáritas Diocesana de Itapipoca

vem trabalhando na organização do

Projeto Fundo Rotativo, que, atualmen-

te, já conta com oito comunidades de

Itapipoca e outros municípios. Essa

nova maneira de trabalhar trouxe no-

vas vivências e expectativas para agri-

cultores e agricultoras, favorecendo o

crescimento das famílias, desenvolven-

do ações conjuntas e possibilitando a

vivência de uma economia solidária.

A comunidade de Seridó está situa-

da a 25 quilômetros da sede do muni-

cípio de Trairi. Lá, reside um povo sim-

ples, alegre e acolhedor que faz parte

do Projeto Fundo Rotativo, acompa-

nhado pela Cáritas de Itapipoca há cin-

co anos. As famílias de lá enfrentam vá-

rias dificuldades, mas a falta de acesso

à água, principalmente nos períodos

de estiagem prolongada, era até então

um dos fatores mais críticos presentes

na localidade.

Tendo em vista as dificuldades vivi-

das, as famílias apontaram o fundo ro-

tativo como um fator determinante na

A comunidade Seridó discute o Fundo Rotativo como alternativa de desenvolvimento comunitário

Page 48: Terceiro Caderno de Sistematizações - FCVSA

48Caderno de Sistematizações - FCVSA 48Caderno de Sistematizações - FCVSA

viabilização de empreendimentos eco-

nômicos solidários e, a partir daí, viram a

possibilidade da implementação de cis-

ternas na comunidade de acordo com

as mobilizações das famílias através do

fundo para suprir as suas necessidades.

Aos poucos, foram organizando um

sistema de captação de “recursos”, que

podem ser financeiros ou não e que

circulam entre os membros do grupo,

propondo-se a ser uma alternativa de

vivência diferente da capitalista.

Desse modo, todos se organizaram

para juntos contribuírem e iniciarem o

processo de construção de cisternas.

Cada pessoa do grupo dava a contri-

buição de vinte reais mensais. O con-

trole do fundo era feito pela associação

da comunidade em reuniões mensais.

Após conseguirem a quantia total para

a construção da cisterna, os/as partici-

pantes, em meio a reuniões, discutiam

sobre, visando quem estava com mais

necessidade. Feita a definição, a cons-

trução daquela cisterna era iniciada.

Nesse projeto existem dois tipos

de acesso: os acessos planejados e os

emergenciais. Nas reuniões de con-

trole do projeto existe uma comissão,

escolhida em assembleia pela associa-

ção comunitária, encarregada de fazer

avaliações para os “empréstimos” de

ajuda do fundo solidário, pois foi ado-

tada uma política de acesso para ava-

liar os empréstimos e dar prioridade

às pessoas mais necessitadas. Nessa

vivência, os moradores colocam em

prática a honestidade e a solidariedade

nas escolhas.

Segundo dona Valdilene, o projeto

contribuiu muito para o fortalecimento

das famílias. “As pessoas ficaram mais

unidas”, ela afirma. O fundo solidário

não ajuda somente o crescimento da

economia da comunidade, mas tam-

bém o entrosamento dos moradores, a

solidariedade, a compreensão de con-

vivência, o compromisso com os ou-

tros e a busca coletiva por uma melhor

qualidade de vida.

Dona Valdilene de Sousa fala da Experiência com o Fundo Rotativo

Reunião da Associação Comunitária de Seridó

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49 Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA49

Rede de Comunicadores/as do Ceará

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50Caderno de Sistematizações - FCVSACaderno de Sistematizações - FCVSA

Entidades do FCVSA que contribuíram com essa publicação:

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51 Caderno de Sistematizações - FCVSA

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52Caderno de Sistematizações - FCVSA

Realização

Apoio