teoria política ii

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Indaial – 2019 TEORIA POLÍTICA II Prof. Sandro Luiz Bazzanella Prof. Walter Marcos Knaesel Birkner 1 a Edição

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Page 1: Teoria PolíTica ii

Indaial – 2019

Teoria PolíTica ii

Prof. Sandro Luiz BazzanellaProf. Walter Marcos Knaesel Birkner

1a Edição

Page 2: Teoria PolíTica ii

Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:

Prof. Sandro Luiz Bazzanella

Prof. Walter Marcos Knaesel Birkner

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

B364t

Bazzanella, Sandro Luiz

Teoria política II. / Sandro Luiz Bazzanella; Walter Marcos Knaesel Birkner. – Indaial: UNIASSELVI, 2019.

250 p.; il.

ISBN 978-85-515-0405-5

1. Ciência política. - Brasil. I. Birkner, Walter Marcos Knaesel. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 320.09

Page 3: Teoria PolíTica ii

III

aPresenTaçãoOlá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático de Teoria Política

II. A partir daqui, começaremos a abordar as principais ideias de autores contemporâneos que, durante o século XX, foram fundamentais à constituição do pensamento político atual no Ocidente. Suas ideias serviram de norte orientador às ações políticas do século XX. É preciso dizer que o século XX foi absolutamente intenso do ponto de vista político. Duas grandes guerras mundiais marcaram a primeira metade desse século. O advento delas causou um grande sentimento de decepção acerca da esperança num progresso contínuo e sem recuos por parte da humanidade. Depois delas, renovaram-se esforços políticos no Ocidente, para a afirmação da democracia e do desenvolvimento econômico. E as ideias políticas continuaram sendo fundamentais.

Nessa perspectiva, apresentaremos alguns dos principais autores e seus conceitos, refletindo legítimas aspirações pela liberdade, pela justiça e pelo desenvolvimento. Demonstraremos como essas ideias críticas e proposições estratégicas se manifestaram desde o início do século XX. Indicaremos como elas foram e continuam sendo definidoras dos atos políticos da civilização ocidental.

Na Unidade 1 trataremos do fenômeno do poder e da política, por meio de autores que, direta ou indiretamente, usaram e/ou se orientaram por conceitos sociológicos como classes sociais, elites e instituições políticas. Além disso, tais autores orientaram-se pela perspectiva da conquista e da manutenção da hegemonia do poder, como principal objetivo das disputas políticas. Faremos a exposição de três tópicos. No Tópico 1, apresentaremos a instigante teoria das elites segundo três autores italianos: Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca e o ítalo-germano Robert Michels. No Tópico 2, faremos a exposição sumária do pensamento do grande sociólogo alemão Max Weber e sua preocupação central com o fenômeno do poder. No Tópico 3, apresentaremos as primordiais contribuições à Ciência Política advindas do austríaco Joseph Schumpeter, dos norte-americanos Robert Dahl e Anthony Downs e do sueco Tage Lindbom.

Na Unidade 2, teremos um encontro obrigatório com a renovação do pensamento marxista, principal norte teórico inspirador dos movimentos e partidos políticos das esquerdas em todo o mundo. Suas ideias, conceitos e proposições estratégicas foram fundamentais para a reorganização do ideário político e à conformação da ordem política democrática. Demonstram, entre tudo, a importante e sinuosa transição do pensamento revolucionário para o pensamento progressista. O que isso quer dizer é que a ideia da revolução socialista foi progressivamente substituída pela ideia das reformas progressivas e contínuas no combate às desigualdades.

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IV

Com isso, cresceu o Estado Social e de Direito, uma conquista histórica da democracia. Isso é demonstrado nas ideias e análises politológicas dos autores que aqui apresentaremos. No Tópico 1, apresentaremos as ideias do filósofo italiano Antonio Gramsci e sua importância fundamental na renovação do marxismo e na reformulação de estratégias de conquista do poder e transformação da sociedade. No Tópico 2, abordaremos o desenvolvimento das ideias neomarxistas através de quatro autores, sendo eles: o sociólogo, filósofo e cientista político grego Nikos Poulantzas, o sociólogo alemão Claus Offe, o sociólogo polonês-americano Adam Przeworski e outro sociólogo alemão John Elster. E no Tópico 3, falaremos sobre o neoconstitucionalismo a partir dos seguintes autores: a historiadora, socióloga e cientista política estadunidense Theda Skocpol, do sociólogo estadunidense Charles Tilly, do cientista político estadunidense Peter Evans, do sociólogo canadense John Hall, do economista estadunidense Douglas North, do cientista político estadunidense William Riker e do igualmente estadunidense e cientista político Robert Putnam.

Finalmente, na Unidade III, entraremos nas esferas da participação política e das noções de justiça e cidadania. Ali, perceberemos a afirmação de um conjunto de ideias progressistas que, através do incomensurável e valioso esforço de alguns autores, a Ciência Política se constituiu e ajudou a moldar e aperfeiçoar as instituições políticas do Ocidente. No Tópico 1, apresentaremos alguns dos principais autores do neo-republicanismo, entre eles, o filósofo canadense Charles Taylor, o historiador neozelandês, nascido na Inglaterra, John Pocock, o historiador britânico Quentin Skinner e o filósofo e cientista político irlandês Philip Pettit. No segundo tópico, abordaremos as principais ideias políticas do filósofo e sociólogo alemão, Jürgen Habermas e sua influência no pensamento democrático. E, no Tópico 3, apresentaremos o importante paradigma liberal através da concepção liberal igualitária do filósofo estadunidense John Rawls e do neoliberalismo político do filósofo nova-iorquino Robert Nozick.

Boa leitura e bons estudos!

Prof. Sandro Luiz BazzanellaProf. Walter Marcos Knaesel Birkner

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V

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UNI

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VI

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VII

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LEMBRETE

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VIII

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IX

UNIDADE 1 – PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA ...............................................................................1

TÓPICO 1 – TEORIA DAS ELITES: PARETO, MOSCA E MICHELS ............................................31 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................32 VILFREDO PARETO .............................................................................................................................4

2.1 SEU INTERESSE INTERDISCIPLINAR .........................................................................................62.2 A CIRCULAÇÃO DAS ELITES ......................................................................................................8

3 GAETANO MOSCA .............................................................................................................................124 ROBERT MICHELS E A LEI DE FERRO DAS OLIGARQUIAS ................................................17

4.1 PARTIDOS FORMAM OLIGARQUIAS .......................................................................................174.2 A LEI DE FERRO..............................................................................................................................194.3 A BUROCRATIZAÇÃO ..................................................................................................................20

RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................23AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................24

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA POLÍTICA DE WEBER ............................251 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................252 ASPECTOS BIOGRÁFICOS ..............................................................................................................263 ASPECTOS CONCEITUAIS ...............................................................................................................274 AÇÃO SOCIAL .....................................................................................................................................29

4.1 O TIPO IDEAL .................................................................................................................................325 A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO .................................................336 O CONCEITO DE ESTADO ..............................................................................................................34

6.1 FORMAS POLÍTICAS E FORMAS DE DOMINAÇÃO .............................................................357 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................................40RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................42AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................44

TÓPICO 3 – O PLURALISMO DE SCHUMPETER, DAHL, DOWNS E LINDBOM ................451 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................452 JOSEPH SCHUMPETER E DESTRUIÇÃO CRIATIVA ................................................................46

2.1 INTELECTUAIS, ELITES E A EXPANSÃO DO SOCIALISMO ................................................462.2 DESTRUIÇÃO CRIATIVA ..............................................................................................................482.3 DEMOCRACIA ................................................................................................................................492.4 ELITES ..............................................................................................................................................50

3 ROBERT DAHL E A DEMOCRACIA COMO ELA É ....................................................................513.1 O PODER É POLIÁRQUICO .........................................................................................................523.2 POLIARQUIA ...................................................................................................................................533.3 O TIPO IDEAL DE POLIARQUIA ................................................................................................55

4 ANTHONY DOWNS E A TEORIA ECONÔMICA DA DEMOCRACIA .................................564.1 TEORIA DA ESCOLHA PÚBLICA OU TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL .....................574.2 CRÍTICAS À TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL ...................................................................60

sumário

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X

5 TAGE LIDBOM E A DESILUSÃO COM A SOCIALDEMOCRACIA SUECA ........................615.1 A CONTRADIÇÃO DO SOCIALISMO ........................................................................................635.2 DO SOCIALISMO AO CONSERVADORISMO CRISTÃO ........................................................645.3 EM BUSCA DE RESPOSTAS METAFÍSICAS ..............................................................................65

LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................................67RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................71AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................72

UNIDADE 2 – NEOMARXISMO E NEOINSTITUCIONALISMO ..............................................73

TÓPICO 1 – GEORG LUKÁCS, ROSA LUXEMBURGO E LOUIS ALTHUSSER ......................751 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................752 GEORG LUKÁCS (1885 – 1971) ..........................................................................................................76

2.1 REVOLUÇÃO RUSSA .....................................................................................................................772.2 HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE .................................................................................792.3 TESES SOBRE A SITUAÇÃO POLÍTICA E ECONÔMICA DA HUNGRIA E

SOBRE AS TAREFAS DO PC HÚNGARO ...................................................................................812.4 A RENOVAÇÃO DO MARXISMO ...............................................................................................82

3 ROSA LUXEMBURGO (1871-1919) ...................................................................................................833.1 FILOSOFIA DA PRÁXIS .................................................................................................................853.2 REVOLUÇÃO ..................................................................................................................................873.3 DEMOCRACIA E REVOLUÇÃO ..................................................................................................89

4 LOUIS ALTHUSSER (1918 – 1990) ....................................................................................................914.1 CRÍTICA AO MARXISMO ROMÂNTICO ..................................................................................934.2 A IDEOLOGIA E OS APARELHOS IDEOLÓGICOS

DO ESTADO .....................................................................................................................................96RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................99AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................101

TÓPICO 2 – NEOMARXISMO: HABERMAS, PRZEWORSKI, ELSTER ..................................1031 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1032 JÜRGEN HABERMAS E A RADICALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ....103

2.1 TEORIA SOCIAL ...........................................................................................................................1053 ADAM PRZEWORKI (1940) E A EFETIVIDADE DA SOCIALDEMOCRACIA ...................1104 JON ELSTER E O MARXISMO ANALÍTICO...............................................................................115

4.1 INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO ....................................................................................117RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................120AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................121

TÓPICO 3 – NEOINSTITUCIONALISMO: SKOCPOL, TILLY, EVANS, HALL, NORTH, RIKER EPUTNAM ...............................................................................................................1231 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1232 NEOINSTITUCIONALISMO ..........................................................................................................1233 THEDA SKOCPOL E A PERSPECTIVA TOCQUEVILIANA NA POLÍTICA .......................127

3.1 O NEOINSTITUCIONALISMO DE THEDA SKOCPOL E O PAPEL DO ESTADO ...........1284 HARLES TILLY E SUAS CONTRIBUIÇÕES NEOINSTITUCIONALISTAS AO

CONCEITO DE DEMOCRACIA .....................................................................................................1305 PETER EVANS E O CONCEITO DE SINERGIAS .......................................................................1346 PETER HALL E AS VARIAÇÕES DO NEOINSTITUCIONALISMO .....................................138

6.1 O NEOINSTITUCIONALISMO HISTÓRICO ...........................................................................1396.2 O NEOINSTITUCIONALISMO DA ESCOLHA RACIONAL ................................................1406.3 NEOINSTITUCIONALISMO SOCIOLÓGICO .........................................................................141

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XI

7 DOUGLAS NORTH E A NOVA ECONOMIA INSTITUCIONAL ..........................................1427.1 O ESTADO E A ECONOMIA NO INSTITUCIONALISMO DE DOUGLAS NORTH ........1447.2 A AÇÃO INSTITUCIONAL DO ESTADO NA ECONOMIA .................................................145

8 WILLIAM HARRISON RIKER .......................................................................................................1478.1 ESCOLHA PÚBLICA, ESCOLHA RACIONAL E RACIONALISMO ...................................148

9 ROBERT PUTNAM E O CAPITAL SOCIAL ................................................................................1489.1 O NEOINSTITUCIONALISMO SOCIOLÓGICO DE PUTNAM ...........................................150

LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................152RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................154AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................155

UNIDADE 3 – ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA ..............................157

TÓPICO 1 – NEO-REPUBLICANISMO: TAYLOR, POCOCK, SKINNER, PETTIT ................1591 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1592 CHARLES TAYLOR E A IDENTIDADE MODERNA .................................................................160

2.1 ATIVISMO POLÍTICO ...................................................................................................................1612.2 SELF .................................................................................................................................................1612.3 MORALIDADE ..............................................................................................................................162

3 JOHN POCOCK E O REPUBLICANISMO COMUNITARISTA ..............................................1663.1 O CONTEXTUALISMO LINGUÍSTICO ....................................................................................1673.2 O HUMANISMO CÍVICO E O IDEAL COMUNITARISTA ....................................................169

4 PHILIP PETTIT ...................................................................................................................................1714.1 A LIBERDADE COMO NÃO-DOMINAÇÃO COMO O PRESSUPOSTO

DO REPUBLICANISMO ...............................................................................................................1744.2 O EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO CONTEXTO REPUBLICANO ...................................176

5 QUENTIN ROBERT SKINNER .......................................................................................................1785.1 A TEORIA POLÍTICA A HISTÓRIA E A FILOSOFIA .............................................................1795.2 SKINNER E O PENSAMENTO POLÍTICO CONTEMPORÂNEO ........................................182

RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................185AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................188

TÓPICO 2 – VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN .........................................................................1891 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1892 LUDWIG EDLER VON MISES ........................................................................................................190

2.1 O LIBERALISMO DE VON MISES E DOS ECONOMISTAS AUSTRO-AMERICANOS ......1932.2 MERCADO E INFORMAÇÃO ....................................................................................................1932.3 MISES E A CRÍTICA AO INTERVENCIONISMO ...................................................................1942.4 VON MISES E A CONCEPÇÃO DE MERCADO .....................................................................1972.5 MERCADO, CONHECIMENTO E A MASSIFICAÇÃO DO EMPREENDEDOR ...............198

3 O ECONOMISTA AUSTRÍACO FREDERICK AUGUST VON HAYEK ................................1993.1 A NOTABILIDADE DO PENSAMENTO DE HAYEK .............................................................202

4 MILTON FRIEDMAN E A CONTINUAÇÃO DO CONSERVADORISMO LIBERAL ........2064.1 LIBERDADE DEPENDE DE UM GOVERNO PEQUENO E DESCENTRALIZADO .........2094.2 AUMENTAR OS GASTOS GOVERNAMENTAIS NÃO GERA CRESCIMENTO ..............2104.3 DESIGUALDADE DE RENDA É NECESSÁRIA ......................................................................2114.4 PROGRAMAS DE SERVIÇO SOCIAL INEFICIENTES DEVEM SER SUBSTITUÍDOS

POR TRANSFERÊNCIAS DIRETAS AOS MAIS POBRES.......................................................2124.5 CAPITALISMO E LIBERDADE ...................................................................................................213

RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................216AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................219

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XII

TÓPICO 3 – PARADIGMA LIBERAL: O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE RAWLS E O NEOLIBERALISMO DE NOZICK ......................................................................221

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................2212 JOHN RAWLS E O LIBERALISMO IGUALITÁRIO ..................................................................2223 ROBERT NOZICK ..............................................................................................................................227

3.1 O CONTEXTO DE PUBLICAÇÃO DA OBRA: ANARQUISMO, ESTADO E UTOPIA .....2293.2 OS POSTULADOS NEOLIBERAIS DE NOZICK .....................................................................233

LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................238RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................241AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................243

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................245

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1

UNIDADE 1

PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender que o poder é o principal objetivo da política e o principal objeto (de estudos) da Ciência Política;

• notar a importância das classes sociais na organização de todas as sociedades;

• identificar a importância da teoria das elites para a Ciência Política;

• reconhecer a influência das instituições na vida das pessoas;

• compreender que a busca pela hegemonia do poder é da natureza política;

• descobrir que as ideias políticas moldam as instituições políticas;

• reconhecer a influência das instituições na vida das pessoas.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de refoçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – TEORIA DAS ELITES: PARETO, MOSCA E MICHELS

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA POLÍTICA DE WEBER

TÓPICO 3 – O PLURALISMO DE SCHUMPETER, DAHL, DOWNS E LINDBOM

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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2

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3

TÓPICO 1UNIDADE 1

TEORIA DAS ELITES: PARETO, MOSCA E

MICHELS

1 INTRODUÇÃOA teoria da elite constitui-se numa perspectiva teórica segundo a qual os

assuntos de uma sociedade, nação ou mesmo uma pequena comunidade, são melhor gestados por um pequeno subconjunto de seus membros. Por conseguinte, é preciso admitir que, desde já, nas sociedades modernas a ausência de elites em sua organização e funcionamento é simplesmente impensável. Não obstante, a questão que subjaz à teoria da elite já estava presente na filosofia política clássica, e diz respeito à desigualdade na distribuição do poder, isto é, deve o poder relativo de qualquer grupo ser desproporcional ao seu tamanho relativo? A resposta remonta à Grécia Antiga, onde o poder desproporcional de certas minorias foi justificado em nome da sabedoria ou da virtude, como na tese dos governantes “guardiões”, de Platão. Inspirador das aristocracias, o filósofo defendia o governo dos “melhores homens” (os aristoi), afirmando que era natural que assim fosse.

Todavia, trata-se de afirmação dedutiva, não comprovada empiricamente. O domínio de uma elite é defendido ao longo dos séculos por filósofos e literatos antigos, medievais e modernos. Não são poucos os que, ao longo da história, resistiram à ideia democrática do governo de pessoas comuns, que muitas vezes equivalia à ausência de ordem ou anarquia. Essa postura explicitamente antidemocrática era característica de escritores cristãos como Tomás de Aquino, o teólogo do século XIII. A palavra francesa élite, da qual o inglês moderno é tirado, significa simplesmente "os eleitos" ou "os escolhidos" (pelas forças divinas, por assim dizer). Portanto, o termo carrega a noção de que pessoas de notório saber e força devem governar e ter privilégios por vontade divina.

Muito embora os discursos democráticos tenham se contraposto, não foi incomum que teses revolucionárias posteriores tenham se apoiado no elitismo, defendendo a liderança dos justos a tutelarem os indefesos. Nos séculos XVI e XVII, os calvinistas referiram-se às características pessoais superiores da aristocracia, afim de justificar a resistência armada contra monarcas ilegítimos. Na perspectiva democrática elitista, é útil lembrar que os puritanos representaram um exemplo característico dessa representação ideológica. Durante a guerra entre as forças coloniais inglesas e a resistência da colônia norte-americana, a independência dos Estados Unidos e a formulação de sua constituição também estiveram imbuídas deste elitismo democrático. Defensores da igualdade como Alexander Hamilton, James Madison e John Jay ainda assim defenderam os membros do Congresso dos EUA e da Suprema Corte como os homens virtuosos em defesa do povo.

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UNIDADE 1 | PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

4

Já pelo do século XIX, a necessidade de demonstrar aspectos empíricos do poder de minorias começava a se somar ao pensamento elitista tradicional. Os teóricos italianos da política Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca foram os pioneiros nas demonstrações historiográficas da tese elitista. Eles defenderam a tese de que elites são intrínsecas à história das nações e dos povos, demonstrando a reprodução e a transformação de grupos de elite. A famosa Lei de Ferro da Oligarquia, promovida pelo sociólogo e economista político italiano nascido na Alemanha, Robert Michels, foi ainda mais sistemática. Ele não apenas postulou a inevitabilidade da dominação das minorias, mas explicou logicamente como isso acontece nas organizações partidárias. Todos foram influenciados, neste ponto, pelo sociólogo alemão Max Weber, para quem a principal característica da conformação das sociedades é a luta pelo poder.

O que significa oligarquia: a palavra vem do grego oligarkhía e significa “o governo de poucos”. E quem são esses poucos? Pode ser uma família, um pequeno grupo de amigos que constitui uma espécie de irmandade ou coisa que o valha. Na história política brasileira menciona-se bastante a presença das oligarquias rurais no comando do País. Trata-se das famílias de latifundiários herdeiros desde os tempos das capitanias hereditárias e que controlaram o poder até a proclamação da República, em 1889.

NOTA

2 VILFREDO PARETO É considerado o maior economista italiano de todos os tempos, Vilfredo

Pareto é também um autor importante na Ciência Política e na própria Sociologia, como na Estatística. Sua influência nessas ciências, tanto quanto na economia contemporânea, é reconhecidamente notável. Sua obra é considerada de grande relevância justamente pela influência interdisciplinar que adquiriu nas Ciências Sociais. De fato, pelo seu tipo de abordagem na economia, é um dos poucos cientistas sociais considerado um clássico em várias áreas das Humanidades. Nessa perspectiva, é justo reconhecer seu esforço intelectual muito bem-sucedido ao aproximar a Economia das denominadas Ciências Humanas. E, por essa extraordinária associação de qualidades, o “príncipe dos economistas italianos” tornou sua obra de indispensável leitura para a compreensão sobre a riqueza dos estudos interdisciplinares entre economia, política e sociedade.

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TÓPICO 1 | TEORIA DAS ELITES: PARETO, MOSCA E MICHELS

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FIGURA 1 –VILFREDO PARETO

FONTE: <https://c8.alamy.com/comppt/bkd25r/vilfredo-pareto-1571848-1981923-economista-italiano-sociologo-bkd25r.jpg>. Acesso em: 24 set. 2019.

Vilfredo Pareto (1848-1923) nasceu em Paris, cidade onde seu pai, o genovês Raphael Pareto (1812-1888), refugiou-se quase duas décadas antes, vindo da Itália. O senhor Raphael era engenheiro hidráulico e exilou-se na França por motivos políticos. Sua mãe foi Marie Métenier, uma francesa descendente de uma abastada família da burguesia parisiense. Aos seus dez anos, sua família muda para a cidade italiana de Turim em 1858, onde Vilfredo mais tarde ingressará na Escola Técnica desta cidade. Lá estudou Matemática, Arte e Restauração, também veio o seu crescente interesse pelas coisas da economia, tendo ingressado na faculdade homônima. Na sequência, fez licenciatura em Engenharia, condição que lhe permitiria trabalhar em grandes empresas italianas, notadamente em Florença, onde passou a residir.

Seus trabalhos na Engenharia, muito relacionados à busca pela otimização de recursos, o levaram a fazer importantes relações analíticas. Para Vilfredo Pareto, os engenheiros são predominantemente orientados por princípios da razão cientifica e experimental, enquanto os políticos, em geral, eram impulsionados por interesses e paixões e orientados pelos instintos e interesses. Não obstante, o caráter passional e interesseiro às ações desses últimos seria encoberto por uma aparência lógica e precisavam ser desveladas. O principal objetivo do economista e sociólogo italiano era estudar cientificamente a sociedade, procurando compreender o sentido das ações dos indivíduos, algo muito parecido com o pressuposto metodológico de Max Weber, com sua teoria da ação social. Esta pretensão é a característica investigativa geral de sua teoria social, entendida como uma teoria das elites.

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UNIDADE 1 | PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

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Pareto era convicto de que nem o mais democrático dos partidos escapava do fato de que uma minoria sempre controlava a ferro e fogo o poder interno. Da mesma maneira, era absolutamente cético ao caráter democrático das revoluções. Para o autor, uma pequena elite estaria frequentemente por trás, a arquitetar e controlar as revoluções. Em uma de suas reflexões, afirma que é um fato conhecido que quase todas as revoluções não tem sido a obra de pessoas comuns, mas de uma aristocracia, e especialmente da parte decadente da aristocracia.

NOTA

2.1 SEU INTERESSE INTERDISCIPLINAR

Apesar de seu esforço em compreender a economia, Pareto concluiu que seria necessário voltar-se para a Sociologia, a fim de encontrar respostas que a Economia parecia não lhe dar acerca da ação humana. Seu esforço de pensar as coisas da Economia a partir da Sociologia resultou no Tratado de Sociologia Geral, publicado originalmente em 1916, e que o autor considerou sua principal obra. O livro é uma tentativa de responder sobre a natureza e a base da ação social. Argumenta-se ali que pessoas de capacidade intelectiva superior procuram, normalmente, desenvolver-se na direção de se notabilizarem socialmente. A partir desse pressuposto, segundo o autor, formam-se as classes sociais. No esforço de galgar o topo das camadas sociais, os indivíduos mais competitivos das classes baixas usariam suas melhores habilidades afim de ascenderem socialmente e aproveitarem as melhores oportunidades. Ao ascenderem, passam a competir com os membros das elites, disputando seus recursos e seu status, o que promoveria uma espécie de circulação das elites.

Pareto trabalhava na perspectiva dual de ações lógicas e ações não lógicas. Como já dissemos, porém, via lógica e racionalidade nas ações de cunho econômico, esta reciproca não era verdadeira em relação às ações políticas. E decidiu lograr a compreensão cientifica das condutas não lógicas dos políticos e das ações políticas. O primeiro critério seria o da neutralidade, isto é, o de que, para compreender as ações, era preciso fazê-lo imparcialmente, isto é, sem julgamentos morais e passionais. Naturalmente, na perspectiva pretensamente científica das ciências sociais, não haveria como chegar a uma compreensão racional absoluta de outra maneira. Por extensão, sua aparente despreocupação moral estava em não acreditar que houvesse solução para o problema da conduta humana que, em política, teria sempre o componente dos interesses egoísticos e das paixões (ARON, 1999, p. 436).

Nessa perspectiva, Pareto é um homem do seu tempo e acompanha a presunção da Sociologia nascente ao seu tempo, de obter a objetividade analítica necessária para ser aceita como ciência. Trata-se de uma postura importante

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para a afirmação e credibilidade das Ciências Sociais, procurando, neste sentido, distanciar-se dos tratados morais, de caráter obviamente moral e dedutivo, passível dos erros de julgamento e suas consequências históricas. Pareto menosprezava e ironizava os propagadores das virtudes morais, afirmando que isso servia para compreender a política como ela é. Igualmente condenava os cientistas sociais com presunções filosóficas sobre os benefícios e as necessidades de atitudes moralmente adequadas para o firme destino da humanidade rumo ao progresso.

A circulação das elites é o cerne de sua sociologia econômica e as elites políticas serão o alvo principal de sua análise crítica e pretensamente científica. O Tratado de Sociologia Geral, de Pareto, postula que em uma sociedade ideal, na qual a mobilidade social realmente fluísse, as elites seriam constituídas dos mais talentosos e merecedores de suas posições. Mas, nas sociedades contemporâneas e reais as elites são aquelas mais habilitadas a usar os dois tipos de dominação prevalecentes, quais sejam, força e persuasão. Com frequência, tais elites ainda gozam de privilégios importantes, como riqueza herdada e conexões familiares. Esse modelo de explicação sobre o comportamento das elites foi inspirado na teoria dos leões e das raposas, de Maquiavel. Por causa de sua teoria das elites, associada à hierarquização da desigualdade, o pensamento de Pareto tem sido associado, frequentemente, ao fascismo. Pareto observa que minorias privilegiadas existem em todas as sociedades, no interior das quais sempre haverá uma elite governante. Trata-se de uma afirmação categórica e, por assim dizer, incontestável, como qualquer um de nós pode observar. Muito embora possa no parecer óbvio uma afirmação assim, Pareto observava que era preciso insistir nisso, lembrando esse fato aos políticos no governo, aos aspirantes ao poder e aos governados. Explicava que tal lembrança era necessária pois, seja pela demagogia dos políticos como pelo autoengano coletivo, é comum que a igualdade e a harmonia sejam apresentadas e entendidas como características possíveis de serem alcançadas. Sempre é possível tê-los como objetivos, mas seu alcance estará sempre em algum ponto distante do almejado e sua conservação nunca está garantida.

O fascismo foi um movimento político italiano que, na década de 1930, se organizou na forma de partido político, venceu as eleições e instaurou um regime totalitário. De cunho nacionalista e racista, o objetivo era estabelecer um império a partir de um governo centralizado, dirigido por Benito Leon Mussolini (1883-1945), considerado um líder carismático. O governo fascista submetia a sociedade a uma disciplina rígida e de obediência em nome dos interesses nacionais, que incluiam uma geopolítica de expansão territorial. O fascismo italiano foi fonte de inspiração ao nazismo. Leia entrevista do historiador Emilio Gentile sobre o assunto, concedida à Folha de São Paulo em 16 de julho de 2019, disponível em: www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/10/uso-banalizado-do-termo-fortalece-o-fascismo-afirma-historiador-italiano.shtml.

NOTA

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Era necessário dizê-lo, no entender de Pareto, em função de uma ilusão teoricamente estimulada na modernidade desde as utopias revolucionárias e reacionárias, incluindo o romantismo, da segunda metade do século XIX e início do século XX. Assim, tanto o socialismo como o fascismo prometiam avanços em ambas as direções. No caso do socialismo, a ênfase era na igualdade, sem esquecer da promessa de harmonia. Embora tenha havido variações interpretativas, a ideia socialista mais forte foi inspirada no marxismo e previa a luta pela igualdade, postergando a harmonia para o dia da realização da utopia. No caso do fascismo, eram principalmente as ideias de harmonia, de ordem e progresso que imperavam. Não se esquecia a promessa de igualdade, mas esta ia somente até certo ponto, já que a concepção de uma sociedade elitista estava no cerne do fascismo e, não por acaso, a teoria de Pareto acaba sendo associada a esta utopia conservadora.

O socialismo é uma ideologia política que defende a coletivização da propriedade privada e os meios de produção. Presume o fim da sociedade de classes (capitalista e trabalhadores) e a instauração de uma sociedade igualitária, sem desigualdades sociais.

NOTA

O objetivo do economista italiano era insistir na não diferenciação entre os regimes. Sua tendência estava justamente em “desvalorizar as diferenças entre os regimes, entre as elites e entre os modos de governo” (ARON, 1999, p. 448). Conquanto as coisas mudassem de um governo para outro, de um regime para outro, essa condição permaneceria invariável. Nesse sentido, a história se repetiria indefinidamente, demonstrando uma de suas leis universais, as diferenças reais ou prometidas entre utopias e planos de governo seriam secundárias. Esse modo de interpretar a história, a conformação das sociedades e as ações que os indivíduos nelas têm, por extensão, a característica de desconsiderar as especificidades históricas existentes em cada sociedade. Circunstâncias, acontecimentos extraordinários e cultura estariam, portanto, igualmente em segundo plano. O que importa a Pareto é a Lei de Ferro da história política, qual seja a invariável existência de elites.

2.2 A CIRCULAÇÃO DAS ELITES A imagem da sociedade como sistema social é forjada por Pareto com

convicção matemática. O autor a delineia como um grande sistema composto por subsistemas, tais quais o político, o econômico e o ideológico. Toda sociedade atravessa, segundo Pareto, recorrentes ciclos de equilíbrio, desestabilização, desequilíbrio e nova etapa de equilíbrio, assim sucessivamente. A história social seria marcada por esse movimento constante, que não seria sincronizado

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entre as nações. Cada qual teria seu próprio tempo histórico, mas os ciclos seriam invariáveis entre elas. Por isso haveria diferenças entre elas, mas tais diferenças seriam apenas cronológicas na trajetória da evolução. Evidentemente, essa perspectiva inclui Vilfredo Pareto entre os pensadores sociais adeptos do evolucionismo e da Filosofia da História.

O Evolucionismo é uma expressiva corrente de pensamento que sugere a evolução das espécies, como você já sabe. Nas Ciências Humanas, que inclui as Ciências Sociais, o evolucionismo está presente desde o surgimento da Sociologia e da Antropologia, por exemplo. Sua primeira vertente foi o darwinismo social, que significa a transferência do evolucionismo biológico para o pensamento social e político. A tese geral é de que, assim como na natureza, em sociedade também haveria um processo evolutivo que explicaria porque muitos indivíduos e sociedades se desenvolvem e outros e outras não. E uma das consequências da visão evolucionista entre os seres humanos em sociedade é a invariável presença dos mais fortes e mais aptos, o que culmina na justificação das elites e das desigualdades sociais.

Já em relação à Filosofia da História, o evolucionismo está presente a partir do pressuposto geral de que a história da humanidade seria caracterizada por uma sucessão de etapas evolutivas. Assim, o curso da história humana teria um sentido, uma lógica linear e algumas leis universais, entre elas a lei dos mais fortes e mais aptos, o que valeria para indivíduos e para sociedades.

IMPORTANTE

Nessa direção, haveria um ciclo social global e dentro dele haveria ciclos complementares segmentados e específicos, como o político-militar, o econômico industrial e o religioso-ideológico-religioso. Para compreender como esses ciclos funcionam, é preciso observar como o autor analisa a anatomia desse grande e tri-composto sistema social. São três tipos de componentes humanos inter-relacionados: resíduos, que no seu entendimento, são propensões, tendências ou predisposições inerentes à natureza humana; interesses, que são fatores objetivos que funcionam para o atendimento às necessidades humanas; e derivações, que são as justificações e racionalizações que os seres humanos elaboram mentalmente a fim de justificar seus resíduos e interesses.

Na perspectiva do economista e sociólogo italiano, os resíduos são elementos fundamentais que compõe o fator determinante da vida social. No interior da grande variedade de resíduos que os seres humanos manifestam, dois deles são de importância elementar, quais sejam: a força e a astúcia, que considera os mais característicos entre as elites. Dentro deles, há os resíduos de Classe I, também conhecidos como resíduos de combinação, que compreendem às características de personalidade, como o empreendedorismo, o ímpeto da inovação, a coragem para os riscos, a gana de vencer, a predisposição à novidade e originalidade, assim como a expansividade e o ativismo. Há também os resíduos

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de Classe II, chamados de resíduos de persistência, que compreendem elementos como tradição, cautela, prudência, segurança, estabilidade e continuidade, lealdade, patriotismo e legalismo.

Esses elementos convivem no interior de sociedades heterogêneas, isto é, compostas por indivíduos nos quais os resíduos se manifestam com diferentes ênfases no interior dessas sociedades. Sempre haverá elites compostas por pessoas que se destacam nos variados campos de atividades, notadamente nos três principais, as elites políticas — os governantes —, as elites econômicas — os empresários — e as elites ideológicas — os intelectuais. E, em cada uma delas, poderá haver uma predominância ora de resíduos de combinação, que são os de Classe I, ora os de persistência, os de Classe II.

A principal característica das mudanças históricas no sistema social é impulsionada pela alternância cíclica das elites, por meio do processo de ascensão, decadência e substituição. Os dispositivos implícitos nesse processo são, precisamente, as ondas predominantes, ora dos resíduos de combinação — Classe I —, ora os resíduos de persistencia — Classe II. Dessa forma, é conveniente a lembrança de uma das frases mais emblemáticas de Pareto que, ao referir-se às mudanças sistêmicas globais afirma que “a história é o cemitério das aristocracias” (Pareto, s.d apud Sztompka, 1999, p. 261). Nesse momento, acontecem os ciclos de mudanças das elites nas três principais esferas de sua composição e atuação.

As contribuições de Pareto repercutiram em vários campos. Para os cientistas políticos, sociólogos e economistas que estudam o conceito de desenvolvimento, é importante que saibam que a obra do autor é referência na chamada “teoria do bem-estar”, que discute os aspectos que levam as sociedades ao desenvolvimento e ao bem-estar, através de sua “Teoria do Ótimo”. O pressuposto geral é o de que o desenvolvimento só acontece se o nível de utilidade e bem-estar de uma pessoa aumenta sem que isso diminua a situação de outra.

IMPORTANTE

No ciclo político-militar, os principais personagens são os líderes fortes (os leões) e os gestores astutos (as raposas). Tomemos, como ponto de partida, os governos dos leões para a compreensão desses processos, ou ciclos, nas palavras de Pareto. Os governos estão apoiados em suas conquistas, nas guerras, no aumento dos seus territórios e na dominação sobre outros povos. As principais virtudes subjacentes são a lealdade, as tradições e o compromisso com a pátria. Os resíduos predominantes são os de persistencia — Classe II. Com o passar do tempo, entretanto, tais virtudes se mostrarão insuficientes. Durante os tempos pacíficos, outras virtudes aflorarão, relacionados aos resíduos de combinação — Classe I —, como a inovação e a disposição às mudanças. É quando aparecem

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os líderes astutos (as raposas), que, aos poucos, infiltram-se na elite dominante e minam seu poder, até tornarem-se dominantes e provocarem a alternância. A hegemonia das raposas durará até o momento em que sua negligência às virtudes de persistência estiverem em risco e exigirem a nova ascensão dos leões.

No ciclo econômico-industrial, o processo é similar. Envolve proprietários e especuladores ou homens de produção e poupança e homens de especulação e risco. Os de primeiro tipo, portadores dos resíduos de persistencia — Classe II —, no poder serão zelosos com a segurança da propriedade, com a minimização dos riscos, com investimentos seguros e rendas estáveis. Enquanto isso, os de combinação — Classe I —, serão os arrojados e dispostos, cujas atitudes tornam-se aparentemente necessárias e irresistíveis aos efeitos de estagnação, ou recessão, provocados pelo conservadorismo dos primeiros. Os descontentamentos com as justiças sociais geram pressões que impulsionam empreendedores, inovadores e especuladores a assumirem a elite econômica, solapando os conservadores. Depois de um certo tempo, um novo período de tensões resultantes da instabilidade e de incertezas quanto ao futuro, emerge novamente a restauração dos leões.

No ciclo ideológico-religioso, sacerdotes guardiões dos valores religiosos se confrontam historicamente num movimento gondolar com os intelectuais portadores da razão e da ciência. Por um certo período, o ciclo dos guardiões de valores tradicionais de dogma e de temor ao sagrado serão hegemônicos, até que a inquietação herética faz a elite dos portadores dos resíduos de persistência serem superados pela nova elite emergente, os portadores de resíduos de combinação. O monopólio ideológico se esmorece, permitindo o surgimento de um pensamento alternativo que corrói o imperativo dos líderes de fé. Os intelectuais, dotados de razão e inovações técnicas, abrem perspectivas para novas expectativas de respostas na incapacidade ou insuficiência das respostas tradicionais. Com o tempo, também se encerra a capacidade de a ciência, a burocracia e toda a racionalidade da vida de responder aos anseios gerados durante o seu ciclo. E isso gera as condições de uma reação conservadora. A busca por respostas volta-se novamente ao irracional, ao místico e ao mágico, trazendo os sacerdotes de volta à hegemonia, com seus fundamentalismos e dogmatismos.

Nesse sentido, com toda a consideração à riqueza da obra de Pareto, na perspectiva da Ciência Política, interessa-nos destacar o que foi mencionado acima. Sua teoria sobre as elites é tão simples quanto clara de compreender. Seu conceito de sociedade como um sistema social teve forte impacto sobre o desenvolvimento da Sociologia nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Essa perspectiva de análise da sociedade como um grande sistema integrado culmina na teoria de um dos maiores sociólogos norteamericanos, Talcot Parsons, adepto do evolucionismo sociológico, como Pareto também foi. O caráter elitista e determinista imputado à Pareto tem origem nos defensores da democracia, sobretudo quando relacionada à luta pela igualdade social. Um século depois, no entanto, sua obra continua sendo uma referência útil à Ciência Política.

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Talcott Edgar Frederick Parsons (1902-1979) foi um sociólogo estadunidense. Seu trabalho teve grande influência nas décadas de 1950 e 1960. A mais proeminente tentativa de reviver o pensamento parsoniano, sob o título de Neofuncionalismo, pertence ao sociólogo Jeffrey Alexander, da Universidade Yale.

FONTE: http://revistaestudospoliticos.com/wp-content/uploads/2015/04/Vol.5-N.2-p.345- 350.pdf. Acesso em 31 out. 2019.

NOTA

Pareto (1848-1923) foi categórico na sua crença na desigualdade natural, ideia básica para uma teoria das elites. Seu elitismo está expresso em frases definitivas como, por exemplo:

“A afirmação de que homens são objetivamente iguais entre si é tão absurda que sequer há mérito em refutá-la”.

“A natureza diversa dos homens, combinada com a necessidade de satisfazer, de alguma maneira, o sentimento de que desejam ser iguais, tem resultado no fato de que, nas democracias, eles têm se esforçado para dar a aparência de que o poder está nas pessoas, quando na realidade está nas elites”.

IMPORTANTE

3 GAETANO MOSCAFIGURA 2 – GAETANO MOSCA

FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/Gaetano_Mosca#/media/File:GaetanoMosca.jpg>. Acesso em: 24 set. 2019.

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Gaetano Mosca nasceu em Palermo, Sicília em primeiro de abril de 1858 e morreu em Roma, em oito de novembro de 1941. Foi jurista em seu país e também um teórico da política que, metodologicamente, apoiou-se na historiografia a fim de estudar as instituições políticas e formular a sua teoria das elites. Formulou a ideia-força de uma minoria política dominante que, da mesma maneira que Pareto, afirmava estar invariavelmente presente em qualquer sociedade e em qualquer tempo. Sua teoria teve, assim como a de seu compatriota Vilfredo Pareto, uma importante influência sobre as ideias do fascismo que, segundo alguns teóricos, teria compreendido mal seus pressupostos. Ao lado de Pareto e Robert Michels, sua obra inspirou vários estudos posteriores da Ciência Política sobre o processo de circulação de elites nas democracias e nos diferentes sistemas políticos.

Podemos resumidamente definir o fascismo como um governo de cooptação das classes empresariais e trabalhadoras, de intervenção e controle sobre a política, a economia e a cultura. Por extensão, é também um governo planificador da organização econômica de um país. Planificar é constituir um plano de metas para intervir em certa realidade com o fim de organiza-la ou reorganiza-la. Na história política das nações, governar a partir de grandes planos de metas a serem executados foi bastante comum durante o século XX no Ocidente. A promessa da planificação governamental era resolver os problemas da sociedade a partir da intervenção e do controle do Estado sobre a política, a economia e a cultura. Invariavelmente, os governos fascistas adotaram a planificação, em resposta às insuficiências do liberalismo econômico e político. A Alemanha nazista, a Itália de Mussolini e a Espanha de Franco foram governos assim identificados.

Não obstante, há muitas semelhanças entre o fascismo e o socialismo real da ex Uinão Soviética, entre outras experiências socialistas. Aliás, é preciso dizer que o fascismo surgiu a partir do socialismo italiano, do qual Mussolini e outros fascistas eram originários.

Mas também é preciso dizer que existem experiências governamentais contemporâneas que podem ser assemelhadas ao conceito de fascismo. A principal característica que leva regimes diferentes a se assemelharem ao fascismo é o caráter intervencionista do Estado. Observe se, por exemplo, a afirmação atribuída à Benedito Mussolini: "Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado". Ele também disse: "O princípio básico da doutrina Fascista é sua concepção do Estado, de sua essência, de suas funções e de seus objetivos. Para o Fascismo, o Estado é absoluto; indivíduos e grupos, relativos". O artigo é de Lew Rockwell, chairman do Ludwig von Mises Institut, no Alabama-EUA, intitulado O que realmente é o fascismo.

FONTE: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1343>. Acesso em: 24 set. 2019.

IMPORTANTE

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Para uma cuidadosa definição conceitual, ler sobre o verbete sobre o “fascismo” no excelente Dicionário de Política (Bobbio et al., 1991, p. 466-474).

Educado na Universidade de Palermo, Mosca ensinou Direito Constitucional (1885-1888) e também nas Universidades de Roma (1888-96) e Turim (1896-1908). Membro da Câmara dos Deputados da Itália a partir de 1908, serviu como subsecretário de Estado para as colônias de 1914 a 1916 e tornou-se senador vitalício pelo rei Victor Emmanuel III em 1919. Seu último discurso no Senado foi um ataque contra o líder fascista italiano Benito Mussolini, para decepção de todos os críticos vulgares que associaram as suas ideias ao fascismo italiano e outras experiências.

O livro Teoria dos Governos e Governo Parlamentar, originalmente publicado em italiano em 1896, de Gaetano Mosca teve uma excepcional aceitação, sobretudo entre a classe política italiana. Nessa obra, como em outros escritos, o autor contraria o pensamento político de sua época e de seu país sobre a democracia. Mosca afirma com todas as letras que as sociedades são necessariamente governadas por minorias. Essas minorias são elites formadas harmonicamente ora por oligarquias militares, sacerdotais, hereditárias ou ainda por aristocracias de riqueza ou meritocráticas. Em seu longo esforço intelectual, o jurista e sociólogo italiano conseguiu demonstrar a necessária distância valorativa, tendo sido imparcial às mais diferentes filosofias políticas. Tratou como míticas todas as máximas proferidas pelos demagogos, como a vontade de Deus, a vontade do povo, a vontade soberana do Estado e a ditadura do proletariado.

Com frequência, Gaetano Mosca foi acusado de maquiavelismo, embora reconhecesse o prestígio das ideias políticas de Nicolau Maquiavel (1469–1527), considerava-as impraticáveis em pleno século XX. Conquanto, teórico das elites, Mosca foi um declarado oponente do elitismo racista advogado pelos nazistas. Por outro lado, também foi severo crítico do marxismo, que em seu entendimento revelava a ojeriza que o filósofo Karl Marx tinha da democracia. Mas o próprio Mosca expressava sua desconfiança profunda à democracia, que ameaçava as instituições liberais na extensão do sufrágio aos estratos mais incultos. Mosca acreditava que a estabilidade duradoura da organização social estaria nos governos mistos, metade liberais, metade autocráticos. No interior desses, a tendência aristocrática é temperada por uma renovação gradual, mas contínua da classe dominante. Homens de baixo nível socioeconômico, mas ambiciosos e astutos estariam na origem da vontade e da capacidade de governar.

A estrutura moral e legal das elites políticas — da mesma forma que na ciência política do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) —, o problema central na análise teórica de Gaetano Mosca é o poder. Nada em sociedade seria mais importante enquanto objeto de estudo das Ciências Sociais. O autor italiano se preocupa em compreender seus fundamentos, desde a necessidade de saber: quem o detém, por quais razões, com base em quais mecanismos de justificação e sua finalidade última. De toda maneira, ainda poderíamos dizer, em outras palavras, que Mosca apresenta ao seu leitor as origens, a formação, organização e consequências do poder.

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A característica mais familiarmente convergente da teoria de Gaetano Mosca com outros teóricos das elites, entre alemães e italianos, é a afirmação categórica de que sempre haverá uma elite organizada a controlar o poder, onde houver Estado, onde houver Sociedade, incluindo os ambientes mais democráticos. Assim, independentemente da forma de estado que caracteriza um período histórico particular e a forma de governo expressa pela lei, haverá sempre uma maioria de indivíduos cuja sorte estará condicionada ao comando de uma minoria poderosa e suficientemente coesa a exercer o poder, submetendo outros à sua autoridade. Haverá sempre uma minoria organizada em detrimento ou em nome de uma maioria desorganizada.

Nessa perspectiva, o jurista italiano observa que a classe política está no centro do sistema social. Sua tentativa analítica é oferecer ao leitor uma perspectiva orgânica da classe política, isto é, de que se trata invariavelmente de um organismo próprio. Não obstante, adverte também que “em todo governo devidamente estabelecido, a distribuição efetiva de poder político nem sempre corresponde ao poder da lei” (MOSCA, apud MARTINELLI, 2009, p. 7). Em outras palavras, há um poder paralelo ao daqueles que, em qualquer dos poderes institucionais, exercem o poder formal endossado pelas regras e leis. Trata-se do poder social dos que detêm posições significativas do ponto de vista econômico. São eles industriais, banqueiros e financistas, além de intelectuais e pessoas da esfera religiosa.

Esses agentes do poder informal, mas real, exercem influência decisiva nos processos decisórios da coisa pública. Aqueles investidos de poder legal, Mosca denomina de a classe política no sentido estrito da palavra, enquanto os agentes do segundo grupo, o autor denomina de classe gerencial, consistindo da soma de todos os detentores de poder efetivo em relação à gestão de toda a Sociedade. Então, a classe gerencial é quem efetivamente decide e lidera, compondo uma estrutura heterogênea, com frequência invisível à sociedade, que dificilmente percebe a sua organicidade difusa, mas de poder de fato.

Uma vez que a classe política tenha sido definida, Mosca questiona as razões para a legitimação do poder por ela estabelecido. Em outras palavras, é preciso entender, primeiramente, o que faz as pessoas aceitarem que sejam governadas por minorias. Não obstante, o jurista italiano prefere concentrar-se, como veremos, nos processos de métodos de desenvolvimento e organização da classe política. De acordo com a sua própria atitude pragmática e realista, ele considerou ser sua prioridade analítica a tarefa de explicar as relações de poder dentro da sociedade nacional. Ele identifica os princípios gerais sobre a base através da qual uma minoria organizada legitima seu poder aos olhos dos governados. Para tal finalidade, define a fórmula política pela qual a elite política justifica seu próprio poder: os que mandam, constroem em torno de si uma estrutura moral e legal a justificar seu poder e seus privilégios.

Dois exemplos de fórmulas políticas que demonstrariam como legitimar e consolidar o poder são: o direito divino de reis e o princípio da soberania popular. Na perspectiva de Mosca, essas fórmulas têm a função de consolidar os escalões

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do sistema político e garantir a coesão social. Na medida em que são percebidos como reais e aceitáveis por aqueles que não fazem parte da classe política, o direito calcado na religião e o exercício do poder em nome do povo são os fatores de legitimação, porque respaldados de crença popular. A existência de uma fórmula política é sempre necessária do ponto de vista da psicologia social. Isso acontece porque a necessidade de obedecer grandes princípios é inerente à natureza humana. Mosca afirma que “não é a fórmula política que determina a maneira como a classe política é estruturada. Pelo contrário, é a classe política que sempre adota a fórmula que melhor lhe convém” (MOSCA, apud MARTINELLI, 2009, p. 8).

Esta afirmação radical e franca demonstra o desapego de Gaetano Mosca a qualquer ilusão sobre a política, mas é elucidativa no sentido de compreender a lógica da dominação. Ao longo da história, elites se sucedem no poder, ora preservando, ora modificando leis e regras apoiadas nos valores e crenças da sociedade com o principal propósito de garantir em primeiro lugar as suas conveniências corporativas. Para a comprovação disso, é suficiente considerar o destino de tantos regimes revolucionários que, em nome dos interesses soberanos do povo tornaram-se rapidamente despóticos e criminosos. Ou ainda, essa máxima nos ajuda a compreender as razões pelas quais uma minoria consegue manter o poder político por muito tempo, mesmo quando suas funções e seu status social já tenha perdido boa parte do sentido no funcionamento do sistema social.

Portanto, não deve haver ilusões quanto à política. Esta é a advertência geral do jurista italiano Gaetano Mosca, um dos principais teóricos das elites. Sempre as haverá no poder, em qualquer sociedade, em qualquer tempo. Embora isso nos pareça óbvio, é bom lembrar que Mosca faz esta afirmação em um contexto histórico em que tanto no universo político, quanto no teórico, circulavam ideias revolucionárias, utópicas e românticas quanto às possibilidades de superação dos problemas relacionados às desigualdades sociais. Portanto, a advertência de autores como Mosca revela uma posição conservadora. Trata-se, não apenas de um realismo político, mas também de um esforço intelectual em defesa das instituições existentes. Em outras palavras, trata-se de uma postura contrária a qualquer ameaça revolucionária, que prometia uma ordem política em que, supostamente, as elites não seriam necessárias. Para Mosca, tratava-se de um engodo.

Uma definição muito precisa da Teoria das Elites pode ser encontrada no Dicionário de Ciência Política, de Norberto Bobbio et al. Editora da UnB.

IMPORTANTE

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4 ROBERT MICHELS E A LEI DE FERRO DAS OLIGARQUIASSociólogo e economista italiano, nasceu de uma próspera família burguesa

alemã, em Colônia, na Alemanha, em nove de janeiro de 1876, Robert Michels (1876-1936). Em sua juventude, aderiu ao socialismo, estudando economia e política e tornando-se professor na Itália. É bastante conhecido por sua excelente formulação da Lei de Ferro das Oligarquias. Por meio deste seu pressuposto sociológico, ele afirma que os partidos políticos e outras organizações associativas sempre levam à formação de elites. Em todas as organizações, segundo a sua perspectiva, formam-se oligarquias, se estabelecem organizações burocráticas e instauram-se, invariavelmente, o autoritarismo nas suas várias formas possíveis.

FIGURA 3 – ROBERT MICHELS

FONTE:<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/9c/Robert-michels.jpg/200px-Robert-michels.jpg>. Acesso em: 23 set. 2019.

Robert Michels lecionou e ocupou cargos acadêmicos nas universidades de Turim, Basileia e Perugia. Sua obra mais conhecida é Zur Soziologie des Parteiwesens in der Modernen Demokratie — Partidos Políticos: um estudo sociológico das tendências oligárquicas da democracia moderna (1911), traduzido e publicado no Brasil com o nome de Sociologia dos partidos políticos. O livro apresenta suas percepções acerca do desenvolvimento das oligarquias. A existência deste fenômeno seria invariável, mesmo em organizações comprometidas com ideais democráticas, em função das necessidades organizacionais como a tomada de decisão rápida e a atividade em tempo integral. Em seus escritos posteriores, Michels passou a ver as elites de forma, não apenas inevitável, mas desejável, o que ajuda a explicar sua não oposição ao fascismo na Itália.

4.1 PARTIDOS FORMAM OLIGARQUIAS

Como já dissemos anteriormente, a Lei de Ferro das Oligarquias é a tese do sociólogo teuto-itálico segundo as organizações, em geral sucumbem ao comando de uma elite, termo aqui entendido como sinônimo de oligarquia. Dessa lei não escapam as organizações mais democráticas, com as melhores propostas

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de liberdade e participação de todos. A Lei de Ferro das Oligarquias afirma que a democracia organizacional é necessariamente uma contradição de si mesma. Assim, compromete-se com o interesse da maioria e com a ampla participação, mas favorece uma minoria dirigente. Esta elite, conquanto possa governar na direção do interesse geral, priorizará, antes de tudo, seus interesses de classe dirigente e encontrará formas de reduzir a participação dos outros. Embora o controle da elite torne a democracia interna insustentável, molda o desenvolvimento de longo prazo de todas as organizações numa direção conservadora.

A Lei de Ferro das Oligarquias é o ponto analítico culminante do estudo comparativo sobre os partidos socialistas europeus, que o autor começou a desenvolver a partir de sua própria experiência no Partido Socialista Alemão. Influenciado pelas primorosas observações de Max Weber a respeito da burocracia, resolveu observar detidamente o funcionamento dos partidos. Da mesma maneira, aproximou suas reflexões das teorias de Pareto e Mosca, para concluir que, fundamentalmente, as oligarquias partidárias expressam os imperativos da organização moderna: liderança competente, autoridade centralizada e divisão de tarefas no interior da organização. Esses imperativos organizacionais geram uma burocracia profissional que por sua vez, origina uma elite com conhecimento, habilidades e status superiores.

Essas elites ou oligarquias constituem uma divisão do trabalho que culmina no controle hierárquico dos principais recursos organizacionais, como a comunicação interna e o treinamento. Assim, exercem o poder sobre os outros membros e controlam quaisquer grupos dissidentes. A essa análise organizacional, Robert Michels aproximou a análise de cunho psicológico sobre a busca pelo poder da teoria da multidão, de Gustave Le Bon. A partir dessa perspectiva, o sociólogo teuto-italiano carrega tintas na ideia de que o exercício do poder converge sempre para a necessidade que as pessoas comuns têm de adorar e buscar orientações em seus líderes.

O termo Teoria da Multidão foi cunhado pelo autor e tem uma relação com a psicologia das multidões, ou ainda a psicologia das massas. Trata-se de um ramo da psicologia social, que tem o objetivo geral de compreender os comportamentos individuais em meio às massas.

ATENCAO

Apesar disso, Robert Michels também compreende as vantagens da relação entre dominantes e dominados. Ele percebe que a legitimação dessa relação de mando e obediência reside na própria organicidade dos partidos. Assim, observa que a distância estabelecida pela elite entre ela e os outros membros também levaria as organizações à moderação estratégica. Portanto, as principais decisões

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seriam normalmente tomadas com o intuito de preservação da organização partidária. Este seria o sentido de organicidade ao qual nos referimos. É quando seus membros agem sem desconsiderar a necessidade de manter o organismo do qual todos dependem, principalmente os que dele mais se beneficiam. Por essa razão, as elites agem de acordo com as prioridades de sobrevivência e estabilidade da organização, conferindo vida própria aos partidos.

A ideia de organicidade implica em considerar algo como um organismo, e tem a ver com o conceito de Organicismo nas Ciências Sociais. E qual a definição de Organicismo? Trata-se de um recurso analítico, isto é, de um método de análise a partir do qual a observação da Sociedade e de suas organizações é feita em analogia a um organismo vivo.

Desse modo, os indivíduos envolvidos na sociedade ou nas organizações são vistos como agentes cujas ações contém a função de preservação do organismo no qual estão inseridos.

Nesse sentido, é como se a sociedade e suas organizações, como, por exemplo, os partidos políticos, os governos, as empresas etc. tivessem vida própria e seus integrantes fossem órgãos cuja função principal seria a de trabalhar pelo bem da organização.

Assim, no exemplo dos partidos políticos, amplamente analisados por Robert Michels, as ações das minorias dirigentes não seriam apenas ações de preservação dos seus interesses. Seriam ações de preservação da própria organização.

IMPORTANTE

4.2 A LEI DE FERRO

O sociólogo Robert Michels é, um dos principais nomes da literatura política. Não apenas quando o assunto são as elites, mas, também, quando se trata dos partidos políticos. No cerne destes, segundo Michels, emergiam as elites mais poderosas, sobre as quais o autor dedicou muitos anos de seus estudos e lhes apontou o dedo na ferida. Nas suas palavras, “todos os partidos classistas, na sua origem, antes de iniciar a marcha para a conquista do poder, pronunciam sempre, perante o mundo, a declaração solene de querer libertar, não tanto a si próprios como a toda a Humanidade da presença de uma ameaça tirânica e querer substituir o regime injusto por um justo” (MICHELS, 1909 apud DELLA PORTA, 2003, p. 171). Essa promessa, em geral, não feita pelos partidos conservadores tradicionais, é um clichê entre os partidos ditos populares. Mas, na realidade, essa promessa não pode ser cumprida, devido à lógica inerente a cada organização.

Segundo Michels, uma lei férrea promove a transformação das organizações partidárias. No começo elas são estruturas democráticas inclusivas, isto é, abertas à entrada de seus membros na base. Com o tempo, transformam-se

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em estruturas que imperam uma elite, isto é, uma oligarquia de poucos membros. Ao contrário de absorverem as orientações da base e sistematizarem suas demandas em regras, essa minoria é o que estabelece regras de procedimentos, com vistas à preservação da organização partidária. É quando o objetivo final não é mais a promoção da justiça, mas, antes de tudo, à preservação da agremiação partidária, cujo objetivo dependerá sempre da existência de uma elite dirigente.

Invariavelmente, as organizações partidárias tenderiam a seguir tal lógica, adaptando ou alterando estratégias e suas finalidades se necessário, desde que preservando o partido e, evidentemente, a estrutura oligárquica. É claro que um grupo no poder será, em algum momento, sucedido por outro, mas a estrutura de dominação permanecerá. Conforme Michels, “se existe uma lei sociológica a que todos os partidos estão sujeitos, pode ser sintetizada nesta breve fórmula: a organização é a mãe do poder dos eleitos sobre os eleitores” (MICHELS, 1909 apud DELLA PORTA, 2003, p. 170). E continua, logo em seguida, afirmando que “toda a organização de partido representa uma poderosa oligarquia que se apoia em pés democráticos” (MICHELS, 1909 apud DELLA PORTA, 2003, p. 170).

A fim de conduzir uma organização partidária, assevera Michels, é preciso ter habilidades especiais, sendo esta condição que permite a uma elite minoritária a concentração do poder. Isso implica na inversão da relação de poder que, nos partidos políticos, inicia-se na base e culmina no topo. Nas palavras do autor, originalmente, o chefe é apenas o servidor das massas: a base da organização e a igualdade de direitos de todos os membros.

Todos os membros da organização [...] têm o direito de voto, todos são elegíveis, todos os cargos são eletivos e todos os funcionários estão sob o controle geral constante, mantendo-se permanentemente revogáveis e destituíveis. Mas a especialização técnica, consequência necessária de todas as grandes organizações, cria a necessidade da chamada gestão burocrática e confia todos os poderes decisivos da massa, como os específicos diretivos, apenas aos chefes. Eles, no início dos órgãos executivos da vontade das massas, tornam-se independentes e emancipam-se delas. Assim, a organização leva ao termo a divisão de todos os partidos numa minoria dirigente e uma maioria direta (MICHELS, 1909 apud DELLA PORTA, 2003, p. 171-172).

4.3 A BUROCRATIZAÇÃO

A oligarquia sedimenta seu poder pela capacidade de responder às necessidades de eficiência inerentes à toda e qualquer organização. Nessa perspectiva, o efeito inevitável é a burocratização, que será maior, quanto maior e mais complexa for a organização. Quando o número de integrantes é grande, correspondente será a necessidade de competências especializadas que comporão uma elite burocrática, cujo poder estará assentado no conhecimento das regras. Na perspectiva do autor, as agremiações partidárias são ambientes propícios ao surgimento daquilo que denomina diferenciações. O sociólogo que:

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TÓPICO 1 | TEORIA DAS ELITES: PARETO, MOSCA E MICHELS

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[...] quanto mais se estende e ramifica o aparelho oficial do partido, ou seja, quanto maior o número dos membros, mais se enchem os seus cofres, mais aumenta a imagem do partido, mais se reduz o poder popular substituído pela omnipresença dos comitês e das comissões (MICHELS, 1909 apud DELLA PORTA, 2003, p. 172).

Com isso, os partidos aumentam o poder de suas oligarquias, que administram e controlam os recursos necessários à sobrevivência da agremiação e, assim, instituem e perpetuam a desigualdade interna.

A inserção na oligarquia altera a maneira de pensar dos próprios dirigentes partidários. Quem ocupa os cargos de relevo passa por um processo de aburguesamento, como denomina o sociólogo teuto italiano, afastando-se do povo e dos trabalhadores comuns. Nessa direção, da mesma maneira como os sindicatos classistas, as organizações partidárias oferecem cargos e salários, permitindo que alguns façam carreira. Esse processo exerce uma atração em nada desprezível em termos de poder, status e renda, significando a possibilidade de melhoria de vida a trabalhadores ambiciosos. As perspectivas do aparelhamento inevitável dos partidos, com suas regras e estruturas burocráticas, possibilitam a formação de uma pequena burguesia dirigente que fará de tudo para justificar essas estruturas e manter-se no poder em nome de princípios gerais públicos e fins organizacionais e fisiológicos.

Aqueles integrantes do partido que, por sua vez, se elegem a cargos parlamentares, adquirem, cada vez mais, poder no partido. Mesmo entre esses, há os que, eleitos, demonstram, por certo tempo, alguma aversão às oligarquias de seus partidos. Mas, com o tempo, também esses parlamentares se convencem da importância das oligarquias das quais passam a fazer parte, sobretudo no trabalho de suporte as suas atividades externas e nas possibilidades de suas reeleições. Assim, diferente do que no início, os outrora contrariados passam a compreender, absorver e defender as vantagens pessoais que suas posições internas lhes oferecem. Além disso, percebem que a condição oligárquica da qual fazem parte precisa funcionar de maneira eficiente, para a preservação da finalidade última, a finalidade orgânica de preservação da organização, tão benéfica a todos, principalmente as suas oligarquias internas.

A sobrevivência da organização, como finalidade última, faz com que

os princípios iniciais e mais democráticos, assim como os fins republicanos ou ideológicos, também cedam. Estes tornam-se mais e mais moderados, para que possam adaptar-se ao ambiente interno e externo, orientados para a sobrevivência do partido ao invés da transformação e/ou do progresso da sociedade. De fato, trata-se, paradoxalmente, de uma substituição dos fins últimos. Nessa perspectiva, aparentemente anti-maquiavélica, os meios, a organização partidária, substituem os fins, os nobres interesses políticos, e tornam-se os fins. Michels foi muito perspicaz ao dizer certa vez que, ainda que os fins fossem democráticos, os meios não eram. A propósito da progressiva institucionalização do partido socialista que tanto observou, Robert Michels disse que:

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Uma táctica energética e audaz poria tudo isto em jogo: o trabalho de muitos decénios, a existência de muitos milhares de chefes e subchefes, numa palavra, de todo o partido. O amor por tudo o que foi criado é a principal vantagem de miríades de honestos pais de família, cujo nível de vida social e econômico está ligado intimamente à existência do partido e que são dominados pelo medo da perda do lugar ligado a um afastamento do partido. Assim, a organização dos meios torna-se o objetivo e, por fim, no objetivo absoluto (MICHELS, 1909 apud DELLA PORTA, 2003, p. 173).

A Lei de Ferro das Oligarquias continua sendo, até hoje, um eixo analítico de grande importância na Ciência Política. As análises contemporâneas das organizações de todos os tipos continuam considerando as observações de Robert Michels. Os estudos de política interna de associações sociais e políticas e também os grupos que controlam políticas públicas devem muito às contribuições do autor. Da mesma forma, a Lei de Ferro das Oligarquias continua orientando pesquisas sobre redes de defesa transnacionais e corporações multinacionais, bem como a natureza mais ampla da política democrática na era da informação globalizada. Sua obra continua atual e de leitura imprescindível nas Ciências Sociais, notadamente na Ciência Política e na teoria das organizações.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A teoria das elites por meio de seus três principais autores: os italianos Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca e Robert Michels.

• O poder como a finalidade de número um da política.

• O conceito de classes sociais como fundamental na teoria política durante o século XX.

• A influência das instituições políticas e, portanto, a importância de estudá-las.

• A importância das ideias políticas que compõe a teoria política contemporânea e ajudam a dar o formato das instituições políticas.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Os três autores, Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca e Robert Michels (os dois primeiros natos italianos e o último, um intelectual italiano nascido na Alemanha), esforçaram-se por definir uma teoria das elites, que permanece atualmente. Há vários pontos em comum entre suas ideias. Indique o ponto em comum mais aparente em relação à existência das elites, expressa, inclusive, na forma de uma expressão que se tornou metafórica por parte de um deles:

2 Uma das expressoes comumente conhecidas para nos referirmos às elites políticas é o termo “oligarquia”. A palavra define muito bem a forma como alguns indivíduos se situam socialmente, politicamente em relação aos outros, em sociedade. Defina o significado de “oligarquia”, como se constitui e qual o principal interesse de seus componentes:

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA

POLÍTICA DE WEBER

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOPrezado acadêmico, neste tópico estudaremos as contribuições da

sociologia política de Max Weber. A epistemologia que fundamenta a sociologia de Weber caracteriza-se pelo diálogo interdisciplinar com diversas áreas do conhecimento, entre elas a História, a Economia, o Direito, a Teologia e a Filosofia. Esta posição epistemológica perpassa os conceitos fundamentais e, por decorrência a obra de Weber. Entre os conceitos centrais que seguem a obra de Weber encontra-se o conceito de ação social do qual é possível compreender fenômenos sociais a partir da interação entre os individuos que as compõe. Assim, o conceito de ação social apresenta-se complexo na medida em que se trata, sobretudo de determinar as fronteiras entre uma ação com sentido e uma ação meramente reativa, sem um sentido subjetivo elaborado. Em função de sua centralidade nos debates weberianos o conceito de ação social será retomado a seguir no texto.

No que concerne as contribuições da sociologia política de Weber,

encontramos na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo análises lapidares que demonstram a conexão entre os valores, a cosmovisão das religiões protestantes com as demandas do nascente regime de acumulação do capital, o capitalismo. Na obra Ciência e Política: duas vocações, Weber apresenta sua concepção de Estado, marcadamente definido como entidade que detém o monopólio legitimo da violência, exercido entre outras formas a partir da burocratização da vida de indivíduos e das populações. Weber demonstra que na modernidade a política se circunscreve no âmbito das instituições que conformam o Estado. Como decorrência o exercício da política transita entre aqueles que vivem para a política e da política.

A sociologia política de Weber também contribui para a compreensão de que, no exercício da política, o político convive com o dilema entre agir a partir de uma ética da convicção, ou uma ética da responsabilidade. Considerando que a política é o exercício de produção, conformação e compartilhamento do poder, o político age sob os pressupostos da ética da responsabilidade. Tal condição requer que se reconheça que o exercício da política não tarefa para santos, nem para demônios, mas, simplesmente, para seres humanos que compartilham relações de poder. Bons Estudos!

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2 ASPECTOS BIOGRÁFICOS FIGURA 4 –MAX WEBER

FONTE: <https://s1.static.brasilescola.uol.com.br/be/conteudo/images/karl-emil-maximilian-weber-1864-1920-5612d3ab6f1be.jpg >. Acesso em: 24 set. 2019.

Maximillion Weber nasceu em 21 de abril de 1864 em Erfurt, Turingia, na Alemanha. Seu pai, Max Weber, era advogado e político. Foi deputado do Partido Nacional Liberal. Sua mãe Helene Fallenstein Weber, era uma mulher culta e de concepção política liberal. Cultivava traços pietistas de fé protestante. Desde tenra infância Weber teve oportunidade de entrar em contato com renomados filósofos, historiadores e juristas que compunham o arco de relações familiares. Este ambiente familiar erudito influenciou decisivamente a trajetória de Weber conduzindo-o aos estudos acadêmicos de História de Economia e Direito nas Universidades de Heidelberg e Berlim. Em 1889 doutorou-se em Göttingen com tese desenvolvida na área de História Econômica sobre a História das sociedades comerciais na Idade Média.

Em 1890 foi para Berlim trabalhar como advogado, onde escreveu um tratado intitulado História das Instituições Agrárias, que constitui numa profunda análise sociológica e econômica do Império Romano. Em 1894 Weber se tornou professor de Economia Política na Universidade de Freiburg. Em 1896 transfere-se para a Universidade de Heidelberg. Entre os anos 1897 a 1903 Weber foi acometido por distúrbios vindos de esgotamento nervoso e, por decorrência, apresentava manifestação de neurose. Ao longo de três anos manteve-se afastado das atividades acadêmicas retomando-as após recuperação parcial em Heideberg. Em função de seu debilitado estado de saúde solicitou afastamento das atividades didáticas, sendo promovido a professor titular da respectiva universidade.

Em 1903 assumiu com Werner Sombart a direção da revista Archiv für Sozialwissenchaft und Sozialpolitik, umas das mais importantes revistas de ciências sociais da Alemanha, até o encerramento de suas atividades pelos nazistas. Em 1904 viajou para os Estados Unidos impactando sobre suas percepções analíticas no que concerne ao papel da burocracia na democracia. Entre os anos de 1906 a 1910 Weber estabeleceu intenso intercâmbio intelectual com alguns dos pensadores alemães mais renomados do período, entre eles Robert Michels,

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Werner Sombart, Paul Hensel, Ferdinand Tönnies e Georg Simmel. Também jovens universitários como Kark Lowenstein e Georg Lukacs mantinham com Weber intenso diálogo. Participou da Primeira Guerra Mundial como diretor de hospital militar. Findando a guerra participou da redação da Constituição da República de Weimar. Em 14 de junho de 1920 faleceu em Munique para onde havia se dirigido para ministrar Economia Política.

Weber pode ser considerado junto com Karl Marx (1818-1883), Vilfredo Pareto (1840-1923) e Emile Durkheim (1858-1917) um dos modernos fundadores da sociologia. Sua obra se caracteriza pela complexidade e profundidade na compreensão dos acontecimentos históricos e sociais constitutivos do ocidente, sobretudo da modernidade, bem como por reflexões sobre o método das ciências histórico-sociais. Weber reflete intensamente sobre os problemas metodológicos que se apresentam ao trabalho do historiador, do sociólogo e do economista.

3 ASPECTOS CONCEITUAISOs estudos e as reflexões de Weber em torno da economia política fizeram

com que o sociólogo alemão reivindicasse a esta área do conhecimento a autonomia lógica e teórica da ciência como contraponto a considerações de ordem metafísica e a juízos de valor. Ainda nesta direção, Weber tece críticas ao materialismo histórico e sua dogmatização das relações e formas de produção e trabalho como condição estrutural de uma sociedade, que incidem sobre as formas culturais caracterizadas como super-estruturas. Sob tais perspectivas, Weber concebe que o cientista social necessita desenvolver formas de compreensão e reconhecimento das mais diversas formas culturais, constitutivas de uma sociedade, como a religião e que incidem sobre as estruturas econômicas que se circunscrevem as mais diversas sociedades.

No que concerne às reflexões políticas, Weber, concebe o estado como o detentor do monopólio do uso legítimo da violência e da ação coercitiva e ainda nesta direção concebe a política como contínua produção de relações de poder. Sob esta perspectiva, a política se apresenta como a esfera da constante negociação do poder. Não é atividade para santos ou para demônios, mas condição do alcance do equilíbrio nas relações de poder. Assim, o político transita constantemente entre a ética da convicção em relação aos seus princípios e a ética da responsabilidade que diz respeito aquilo que pode ser convencionado no conjunto dos interesses em jogo em determinada situação política.

Neste âmbito os estudos sobre a burocratização das sociedades modernas ganham significativo relevo. A crescente burocratização demarca uma mudança na forma da organização social baseada em valores, característica das sociedades tradicionais, para formas de organização pautadas em objetivos e ação, que caracterizam a forma legal e racional moderna. Na perspectiva do sociólogo, a crescente burocratização da vida humana lança os seres humanos numa gaiola de ferro de crescente controle racional da vida e das relações humanas e sociais.

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A burocracia como tema emerge no século XX, como um dos mais importantes da Sociologia e da Ciência Política. Este assunto, sob muitos aspectos, encerra a percepção não apenas do teórico, mas do homem comum, que destacam as crises que o fenômeno produziu. De um lado uma massa que em todas as relações de sua vida depende da administração de um complicado aparato com uma forma aparentemente coesa e, de outro, as pessoas comparativamente com um escassa estrutura tornando por isso mesmo os indivíduos carentess de pontos de apoio que possam tornálo integrado. Deste modo, mesmo que intuitivamente, fica perfeitamente claro que burocracia encerra no fundo relações de poder e controle.

FONTE: PETERSEN, A. et al. Ciência política: textos introdutórios. Porto Alegre: Mundo Jovem, 1988, p. 49.

NOTA

Os estudos de Weber vinculados à sociologia da religião o conduziram à escrita de uma de suas obras mais reconhecidas A ética protestante e o espírito do capitalismo. Nesta obra, Weber demonstra a pertinência das relações entre as ideias e atitudes religiosas e as incidências delas sobre as atividades e organização econômica das sociedades. Mais especificamente nesta obra, o sociólogo examina aspectos cruciais da ordem social e econômica do ocidente em suas várias etapas de desenvolvimento histórico comparando as várias sociedades ocidentais, em que o capitalismo se manifestou em relação a outras sociedades do mundo oriental, no qual o capitalismo não havia se manifestado. Os exaustivos estudos de Weber nesta direção, o conduziram a constatação de um íntimo vínculo entre capitalismo e protestantismo, ou seja, o protestantismo contribui para a origem e a afirmação do capitalismo ao compartilhar com ele a valorização do racionalismo econômico. O racionalismo que é pautado na disciplina para o trabalho, no apreço pela acumulação e administração dos bens materiais dispostos pela criação divina aos seres humanos para o alcance de uma vida suficiente e digna.

Neste contexto, a ética protestante concebe o trabalho com vocação inerentemente humana como atividade constante e sistemática, como instrumento de autocontrole e disciplinamento da própria vida. Assim, o trabalho apresenta-se como o meio mais adequado para cultivo e preservação da fé constituindo numa forma de vida adequada às demandas e, sobretudo ao espírito do capitalismo. Sob todos estes aspectos da referida obra, sua linha mestra de investigação e análise constitui-se na compreensão das influências religiosas que influenciaram e moldaram o espírito do capitalismo.

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4 AÇÃO SOCIALO conceito de Ação Social assume condição central no desenvolvimento

do pensamento sociológico de Weber. No âmbito acadêmico convencionou-se designar Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917) e Max Weber como pensadores clássicos da Sociologia. Tal reconhecimento se deve ao fato destes autores terem instaurados conceitos chaves a partir dos quais se pode compreender aspectos da dinâmica, dos conflitos e possibilidades das mais variadas sociedades humanas. Assim, o pensamento sociológico de Marx tem como um dos seus principais conceitos operadores o de “classe social”. Para Marx, a dialética que perpassa as contradições da luta de classes permite compreender fenômenos econômicos, políticos, sociais e culturais constitutivos das mais diferentes sociedades. Para Emile Durkheim o fato social se apresentava como o objeto de estudo por excelência da sociologia, sobretudo porque permitiria ao método sociológico determinar as leis que regeriam o funcionamento da sociedade. Para Durkheim o fato social consistiria em maneiras de agir, pensar e se sentir exterior ao indivíduo e com poder de coerção sobre este mesmo indivíduo. Assim, a compreensão de Weber de Sociologia tem no conceito de ação social sua condição determinante conforme expresso pelo sociológico na passagem a seguir:

O termo “sociologia” está aberto a muitas interpretações diferentes. No contexto usado aqui significará aquela ciência que tem como meta a compreensão interpretativa da ação social de maneira a obter uma explicação de suas causas, de seu curso e dos seus efeitos. Por “ação” se designará toda a conduta humana, cujos sujeitos vinculem a esta ação um sentido subjetivo. Tal comportamento pode ser mental ou exterior; poderá consistir de ação ou de omissão no agir. O ermo “ação social” será reservado à ação cuja intenção fomentada pelos indivíduos envolvidos se refere à conduta de outros, orientando-se de acordo com ela (WEBER, 1987, p. 9).

O conceito de ação social é marcado pela complexidade na medida em que se trata, sobretudo de determinar “A fronteira entre uma ação com sentido e uma ação meramente reativa, isto é, sem um sentido subjetivo elaborado é extremamente tênue” (WEBER, 1987, 10). Ou seja, é preciso reconhecer:

a conduta real de um ator específico em uma data situação histórica, ou a aproximação grosseira baseada numa data quantidade de casos, envolvendo muitos atores; e, em segundo lugar, há o “tipo ideal” conceitual de sentido subjetivo, atribuído a ator hipotético num dado tipo de conduta (WEBER, 1987, p. 9).

A partir destas prerrogativas, o desafio da Sociologia em suas pretensões científicas é alcançar o maior grau de clareza lógica e conceitual verificável. Sob tais pressupostos, trata-se de compreender as formas características da ação social que, para Weber, são quatro variáveis determinantes, entre elas:

Primeira: Pode ser classificada racional em relação a fins. (...) a classificação se baseia na expectativa de que os objetos em condição exterior ou outros indivíduos humanos comportar-se-ão de uma dada maneira e pelo de tais expectativas como “condições” ou “meios”

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para atingir com sucesso os fins racionalmente escolhidos pelo indivíduo. Segunda: A ação social pode ser determinada pela crença consciente no valor absoluto da ação como tal, independente de quaisquer motivos posteriores e medida por algum padrão tal como ética, estética ou religião. Em tal caso a orientação racional para um valor absoluto será denominada ação em relação a valores. Terceira: A ação social pode ser determinada pela afetividade, especialmente de modo emocional, como resultado de uma configuração especial de sentimentos e emoções por parte do indivíduo. Quarta: A ação social pode ser determinada tradicionalmente, tornando-se costume devido a uma longa prática (WEBER, 1987, p. 41).

A questão crucial com a qual Weber se defronta na definição dos marcos teóricos, conceituais e metodológicos da Sociologia a partir do conceito de ação social, se trata de um lado, manter o rigor dos procedimentos em função da precisão dos resultados finais característicos das Ciências Exatas e Naturais e, por outro lado, reconhecer os limites da aplicabilidade lógico formal das ciencias ligadas à interpretação de fenômenos sociais, cuja manifestação assenta-se na ação dos indivíduos. Tal condição foi expressa pelo próprio autor na seguinte passagem: “Muitas metas ou valores últimos para os quais a experiência demonstra que a ação humana pode ser orientada, frequentemente, não podem ser entendidos como tais, embora seja possível dominá-los intelectualmente” (WEBER, 1987, p. 11).

Weber tem ciência de que determinados fenômenos sociais se apresentam desprovidos de sentido, de significado subjetivo e, que tal condição se apresenta à todas as ciências que investigam a ação humana. Porém, a tarefa da sociologia é a de interpretar a conduta humana inteligível e, nesta direção a compreensão pode ser alcançada segundo Weber de duas formas.

A compreensão pode ser dois tipos: primeira compreensão direta empírica do significado de um dado ato, inclusive um pronunciamento verbal. [...] experimentamos aqui a compreensão direta, racional de uma ideia. [...] Trata-se da compreensão direta empírica de reações emocionais irracionais. [...] Trata-se de observação empírica racional do comportamento (WEBER, 1987, p. 15).

Um segundo tipo de compreensão “é conhecida como compreensão explicativa. [...] Trata-se de compreensão baseada da motivação, isto é, o ato é visto como parte de uma situação inteligível. A compreensão motivacional adiciona-se à observacional [...]” (WEBER, 1987, p. 17). Sob tais pressupostos, a contribuição de Weber para a afirmação moderna da sociologia se constitui na perspectiva de que “Para uma ciência que trata do verdadeiro significado da ação, a explicação requer: uma apreensão da conexão de sentido dentro do qual ocorre o curso da ação real”. (WEBER, 1987, p. 17).

Sob a perspectiva do conceito de ação social, a Sociologia de Weber apresenta-se como uma sociologia compreensiva da ação subjetiva constitutiva da ação social. Ou, dito de outro modo, a ação social pode ser compreendida suficientemente quando, ao perscrutar a ação social, identifica as motivações subjetivas determinantes dos acontecimentos sociais. Assim, torna-se fundamental ter presente o que Weber concebe por compreensão:

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Compreender significa, pois, em todos estes casos, compreensão interpretativa de: a) casos concretos individuais, como por exemplo na análise histórica; b) casos médios, isto é, estimativas aproximadas como na análise sociológica de massa; c) um tipo puro de construção cientificamente formulado de ocorrência freqüente. Construções típicas ideais são, por exemplo, os conceitos de axiomas da teoria econômica pura. Demonstram como um dado tipo de ação humana ocorreria numa base estritamente racional, sem ser afetada por erros ou fatores emocionais e sendo, além disso, dirigida apenas a um fim único. [...] toda interpretação esforça-se para conseguir o máximo de verificabilidade. Contudo, nem mesmo a interpretação mais verificável pode reclamar o caráter de ser casualmente válida. Permanecerá apenas como uma hipótese particularmente plausível (WEBER, 1987, p. 17).

O conceito de ação social é decisivo para a compreensão do pensamento político de Max Weber, pois se trata de análise de fenômenos coletivos como o Estado, associações corporativas, entre outras instituições, que se constituem a partir da ação de indivíduos. compreender suficientemente a ação destas instituições a partir das motivações de grupos e indivíduos é fundamental para a sociologia weberiana.

Mas, para interpretações sociologicamente compreensivas tais organizações são, meramente, o resultado da ação distinta de pessoas individuais, já que, somente podem empenhar-se como agentes em qualquer espécie de ação orientada por um sentido. Mesmo assim, o sociólogo, para seus propósitos, não pode desprezar os conceitos de coletividade que derivam de diferentes pontos de vista, pois a interpretação subjetiva da ação está relacionada a estes conceitos ao menos de três maneiras diferentes:

a) [...] o Estado como um conceito legal e um fenômeno de ação social no qual suas regras legais são relevantes. Entretanto, para finalidades sociológicas o termo “Estado” não consiste necessariamente ou mesmo primariamente de componentes legalmente relevantes. De qualquer modo, a sociologia não reconhece uma personalidade coletiva em ação.

b) A interpretação da ação também precisa levar em conta um fato vital muito importante: estes conceitos coletivos derivados de ideias legais, do sentido comum, ou de quaisquer outras ideais técnicas, são significativos para os indivíduos ou porque existem ao menos parcialmente ou porque representam algo como uma autoridade normativa. [...] O Estado moderno representa num grau considerável um complexo de ação harmoniosa por parte das pessoas individuais, porque muitas pessoas agem na crença de que ele existe ou deveria existir precisamente desta maneira, para promover a validade legal à emissão de suas ordens. [...]

c) pode ser a única maneira, sob certas circunstâncias, de determinar exatamente que processos de ação social são necessários para a nossa compreensão de forma a explicar um fenômeno particular. É neste estágio que a tarefa real da sociologia, como nós a entendemos, começa (WEBER, 1987, p. 23-25).

Assim, no que concerne às coletividades sociais a sociologia compreensiva de Weber propõe forma de análise e entendimento que transcendam a mera demonstração de regularidades e aspectos funcionais constitutivos das instituições.

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Ao perscrutar a História, a Economia e o Direito a sociologia weberiana procura, também, compreender a ação individual que se constitui em ação coletiva. Nesta perspectiva, pode-se também caracterizar o trabalho intelectual de Weber como um intenso esforço pela compreensão da racionalidade constitutiva da ação social que se materializa em normas e instituições que conferem sentido a vida dos indivíduos e das sociedades. Assim, “A sociologia reivindica dar uma contribuição à explicação causal de alguns fenômenos históricos e culturalmente importantes” (WEBER, 1987, p. 32).

A AÇÃO SOCIAL: UMA AÇÃO COM SENTIDO

Cada formação social adquiriu, para Weber, especificidade e importância próprias. Mas o ponto de partida da sociologia de Weber não estava nas entidades coletivas, grupos ou instituições. Seu objeto de investigação é a ação social, a conduta humana dotada de sentido, isto é, de uma justificativa subjetivamente elaborada. Assim, o homem passou a ter, enquanto indivíduo, na teoria weberiana, significado e especificidade. É ele que dá sentido a sua ação: estabelece a conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita e seus efeitos. [...] A tarefa do cientista é descobrir os possíveis sentidos das ações humanas presentes na realidade social que lhe interesse estudar. O sentido, por um lado, é expressão da motivação individual, formulado expressamente pelo agente ou implícito em sua conduta. O caráter social da ação individual decorre, segundo Weber, da interdependência dos indivíduos. Um ator age sempre em função de sua motivação e da consciência de agir em relação a outros atores. Por outro lado, a ação social gera efeitos sobre a realidade em que ocorre. Tais efeitos escapam do controle e da previsão do agente.

FONTE: COSTA, C. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 1997, p. 72-73.

IMPORTANTE

4.1 O TIPO IDEAL

Para a adequada compreensão da ação social, Weber propôs um instrumento de análise que nomeou de tipo ideal. Trata-se de uma terminologia conceitual que constitui a partir de investigações e análises de casos particulares. O sociólogo, ou cientista social a partir de estudos de fenômenos particulares articula um modelo enfatizando elementos que elege como característicos. O tipo ideal orienta o trabalho teórico indutivo que tem por objetivo articular os elementos essenciais na diversidade das manifestações da vida social, permitindo que se identifique situações similares em diferentes contextos temporais e espaciais.

Importante salientar que o tipo ideal não se apresenta como um modelo perfeito a ser reconhecido nas formações sociais históricas. O tipo ideal também não se apresenta como uma realidade a ser observada. É um instrumento de

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análise científica que contribui para a compreensão da ação social investigada conceituando fenômenos e formas de organização social e por decorrência necessária possibilita uma ampliação compreensiva da realidade estudada.

5 A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMOEsta obra ocupa um lugar de destaque no conjunto da obra de Weber. É um

ensaio resultante de pesquisas sobre as religiões e a influência dos seus seguidores, no qual mais especificamente relaciona o papel do protestantismo na formação do comportamento típico do capitalismo moderno. Atento estudioso dos mais diversos movimentos religiosos e suas influências sobre a dinâmica da conformação das sociedades ocidentais e orientais, Weber constatou estatisticamente a adesão significativa à Reforma Protestante de homens de negócios, empresários bem-sucedidos, artesão qualificados, entre outras categorias assemelhadas. Tal constatação fez com que Weber procurasse compreender as relações entre os conceitos doutrinais do protestantismo e seus efeitos no comportamento dos indivíduos e que incidiram sobre o desenvolvimento do capitalismo.

O sociólogo da ação social constata que valores do protestantismo como a ascese, a disciplina, o compromisso com o trabalho, com a austeridade, o uso parcimonioso dos bens, ou seja, a capacidade de poupança, bem como a observância rigorosa dos deveres assumiam condição decisiva na organização da vida dos indivíduos. Tal influência alcança a organização da economia doméstica em toda sua abrangência das famílias vinculadas ao protestantismo incidindo sobre escolhas rigorosas na educação dos filhos para o desenvolvimento de habilidades especializadas no mundo do trabalho. Uma educação para atividades técnicas e de cálculos cuja remuneração e obtenção do lucro se apresentassem mais consistente, viabilizando a qualidade de vida obtida pelo trabalho.

Sob tais prerrogativas Weber demonstra que o rigor da ética do protestantismo contribui para a conformação de uma nova mentalidade, de um ethos, modo de ser que vem de encontro às aspirações burguesas mercantilistas que se encontram nos fundamentos da cosmovisão capitalista. Sugere ainda o sociólogo que a ética protestante se encontra em maior sintonia com o espírito empreendedor e inovador do capitalismo do que a ética católica vigente em função de seu ethos contemplativo, voltado para a introspecção, para a oração, para o sacrifício e a renúncia da vida prática.

O argumento de Weber na Ética Protestante pode ser resumido da seguinte maneira: Protestantismo — principalmente aquelas formas de Protestantismo que Weber denomina de:

Protestantismo ascético (Calvinismo, Pietismo, Metodismo e outras tantas seitas que se derivam do Movimento Batista) todas contribuíram para a erradicação do capitalismo tradicional e derivaram para um novo tipo de capitalismo: capitalismo racional moderno. Este principalmente realizou esta proeza pela introdução de uma atitude

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muito mais metódica em relação ao trabalho e à obtenção de lucros. Pelo fato de ser uma religião, o Protestantismo Ascético também pode reduzir a resistência tradicional da religião para o trabalho pesado e a obtenção de lucros (SWEDBERG, 2004, p. 18).

Assim, entre as principais contribuições da Etica Protestante, o Espírito do Capitalismo se constitui na observação de que a relação entre a religião e a sociedade não se efetiva por meios institucionais, mas, sobretudo por meio de valores introjetados nos indivíduos e que passam a orientar sua ação social. Outro aspecto a ser ressaltado advindo das contribuições de Weber presentes na Ética Protestante trata-se de reconhecer que os motivos que mobilizam os indivíduos são conscientes. No entanto, os efeitos dos atos individuais transcendem as metas inicialmente estabelecidas. Empenhando-se para cumprir com rigor os preceitos e valores religiosos no qual se constituiu o indivíduo, dedica-se a profissão e a economia dos recursos que angariou com seu trabalho, o indivíduo protestante puritano se adéqua ao mercado de trabalho, acumula capital e reinveste produtivamente.

Sobretudo, nesta obra, Weber demonstra que ao cientista social compete estabelecer conexões entre as motivações individuais e os efeitos de sua ação no tecido social. Procedendo assim, Weber contrapõem os valores do catolicismo e do protestantismo demonstrando que os valores do último contribuíram de forma efetiva para o desenvolvimento e afirmação do racionalismo econômico constitutivo do capitalismo.

6 O CONCEITO DE ESTADO Para Weber o conceito de Estado está vinculado ao conceito de política. O

sociólogo alemão reconhece a amplitude do conceito na medida em que abrange inúmeras formas de atividades diretivas autônomas. Assim, “Fala-se de política de divisas de um banco, da política de descontos do reichsbank, da política adotada por um sindicato durante uma greve; e é também cabível falar da política escolar de uma comunidade urbana ou rural” (WEBER, 1996, p. 55).

Todas estas atividades políticas se justificam e se legitimam institucionalmente e socialmente por meio da ação do Estado. E é nesta direção que Weber se posiciona afirmando: “Entenderemos por política apenas a direção do agrupamento político hoje denominado Estado ou a influência que se exerce em tal sentido” (WEBER, 1996, p. 55).

Segundo Weber a concepção de Estado para um sociólogo não se apresenta, ou se define pelos seus fins ou por seus fins, mas somente pelo meio específico que é característico. E, continua argumentando que todo agrupamento político somente pode ser definido pelos meios que emprega, entre eles a coação física. Assim, o Estado se funda e se define pelo uso da força. “Se só existissem estruturas sociais de que a violência estivesse ausente, o conceito de Estado teria também desaparecido e apenas subsistiria o que, no sentido próprio da palavra, se denomina “anarquia” (WEBER, 1996, p. 56).

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Evidentemente o sociólogo alemão tem ciência de que uso o da força e seu caráter coercitivo não se apresenta como a característica determinante do Estado, mas representa seu instrumento específico. Ao lançar um olhar histórico para as mais diversas sociedades no espaço e no tempo, é possível reconhecer em todas as estruturas sociais de poder, o uso da violência como marca distintiva de sua constituição e operacionalidade. Nesta perspectiva, o Estado contemporâneo que se constitui como decorrência das necessidades inerentes às comunidades humanas de um determinado território possui como um dos elementos essenciais de sua condição o monopólio do uso legítimo da violência física. Assim, se deslegitima qualquer ato de violência perpetrado por indivíduos, ou por grupos que não foram avalizados pelo Estado. O Estado se transforma, portanto, na única fonte do direito à violência. Ou dito de outra forma, para Weber o Estado:

[...] consiste em uma relação de dominação do homem sobre o homem, fundada no instrumento da violência legítima. [...]. O Estado só pode existir, portanto sob a condição de que os homens dominados se submetam à autoridade continuamente reivindicada pelos dominadores (WEBER, 1996, p. 57).

O exercício da autoridade, condição do domínio requer a continua negociação das relações de poder como meio necessário à determinados grupos, à manutenção do poder e, consequentemente, do domínio.

6.1 FORMAS POLÍTICAS E FORMAS DE DOMINAÇÃO

A partir da concepção de Estado, Weber desenvolve outra faceta do conceito de política na seguinte direção: “Por política entenderemos, consequentemente, o conjunto de esforços feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado” (WEBER, 1996, p. 56). Nesta perspectiva, a política se apresenta como lócus de disputa de interesses de conservação, divisão, ou mesmo transferência do poder. Tal condição incide e é determinante em relação às aspirações que alimentam os indivíduos ao entrar para a esfera da política. É o que afirma Weber nesta ilustrativa passagem: “Todo homem, que se entrega à política, aspira ao poder — seja porque o considere como instrumento a serviço da consecução de outros fins, ideais ou egoístas, seja porque deseje o poder ‘pelo poder’, para gozar do sentimento de prestigio que ele confere” (WEBER, 1996, p. 57).

Sob tais pressupostos, Weber chama atenção para o fato de que as relações de poder político, que circunscrevem o controle do Estado, a partir do qual se estabelece e se justifica o domínio de determinados indivíduos ou grupos sobre os demais seres humanos, requer que se questione as formas políticas que justificam e legitimam a dominação. Weber identifica três formas legítimas de dominação.

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Antes de tudo a autoridade do passado eterno, isto é, dos costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito, enraizado nos homens, de respeitá-los. Tal é o poder tradicional que o patriarca ou o senhor de terra, outrora exercia. Existe em segundo lugar, a autoridade que se funda em dons pessoais e extraordinários de um indivíduo carisma, devoção e confiança estritamente pessoais depositadas em alguém que se singulariza por qualidades prodigiosas, por heroísmo ou por outras qualidades exemplares que dela fazem o chefe. Tal é o poder carismático”, exercido pelo profeta ou, no domínio político pelo dirigente guerreiro eleito, pelo soberano escolhido através de plebiscito, pelo grande demagogo ou pelo dirigente de um partido político. Existe, por fim, a autoridade que se impõe em razão da legalidade, em razão da crença na validez de um estatuto legal e de uma competência positiva, fundada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outros termos, a autoridade fundada na obediência, que reconhece obrigações conformes o estatuto estabelecido. Tal é o poder, como exerce o servidor do Estado em nossos dias e como o exercem todos os detentores do poder que dele se aproximam sob esse aspecto (WEBER, 1996, p. 57-58).

No que se refere ao domínio do poder carismático, Weber argumenta que esta forma de legitimação do poder se apresenta em todos os domínios e em todas as épocas. A obediência das pessoas a um líder, se constitui a partir de motivos extremamente consistentes diante de situações que despertam medo, ou esperança. Medo de ameaças a sua propriedade, a sua vida, de não alcançar seus interesses. Esperança de uma vida melhor, ou até mesmo de uma vida além-túmulo. Mas, a dominação carismática pode constituir-se também motivos outros e variados, entre eles beneficiar-se de espólios do poder, obter vantagens pecuniárias, demarcar zona de influência sobre decisões estratégicas do Estado.

O estabelecimento e o domínio do poder carismático em diversas frentes, sejam no âmbito religioso, comunitário, militar, econômico ou mesmo jurídico, exigem o reconhecimento e a atribuição de poder a um líder.

A devoção de seus discípulos, dos seguidores, dos militantes orienta-se exclusivamente para a pessoa e para as qualidades do chefe. [...]. Revestiram, entretanto, o aspecto de duas figuras essenciais, de uma parte, a do mágico e do profeta e, de outra parte, a do chefe escolhido para dirigir a guerra, do chefe de grupo, do condotiere (WEBER, 1996, p. 58-59).

Assim, o predomínio do poder carismático conduz ao surgimento da figura do demagogo, que se caracteriza por seu exercer da política como vocação para conduzir o povo, bem como para acolher os favores do povo. Nesta direção Weber demonstra, que:

Próprio do Ocidente é, entretanto [...] a figura do livre demagogo. Este só triunfou no Ocidente, em meio as cidades independentes e, em especial, nas regiões de civilização mediterrânea. Em nossos dias, esse tipo se apresenta sob o aspecto do chefe de um partido parlamentar; continua a só ser encontra no Ocidente, que é o âmbito dos Estados constitucionais (WEBER, 1996, p. 57).

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Porém, a questão da política e, das formas de dominação sejam elas, autoritárias, carismáticas ou profissionais, requer que se leve em conta que o efetivo de seu exercício precisa de uma ordem socialmente constituída e razoavelmente estável. Tais condições se estabelecem com a existência soberana de um estado administrativo que disponha de meios materiais de gestão do território e da população. O estado administrativo não é um ente abstrato, mas conformado por extensa e intensa estrutura burocrática conduzida por detalhada estrutura funcional e hierárquica de funcionários públicos.

O estado-maior administrativo, que representa externamente a organização de dominação política, tal como, aliás qualquer outra organização, não se inclina a obedecer ao poder em razão apenas das concepções de legitimidade [...]. A obediência funda-se, antes, em duas espécies de motivos que relacionam a interesses pessoais: retribuição material e prestigio social (WEBER, 1996, p. 59).

[...] o Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou, com êxito monopolizar, nos limites de um território, a violência física legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos dirigentes os meios materiais de gestão. (WEBER, 1996, p. 62)

Sob tais pressupostos, Weber procura demonstrar que, na contemporaneidade, a política se manifesta em âmbito institucional, que se constitui no domínio e controle da máquina administrativa e burocrática estatal. A política também se manifesta no conjunto de relações de poder institucionais partidárias, nos quais os indivíduos agem coletivamente e individualmente no sentido de se constituírem como lideranças autoritárias, carismáticas ou profissionais. Em ambas instâncias de relações de poder, o sociólogo alemão concebe o poder como condição de impor a própria vontade no âmbito das relações sociais e, por decorrência necessária à dominação como a possibilidade de constituir um tecido social obediente a uma ordem de determinado conteúdo.

No que concerne ao exercício da política, Weber também aborda as formas de fazer política e, neste sentido afirma: “Há duas formas de fazer política. Ou se vive para a política ou se vive da política” (WEBER, 1996, p. 64). Esta distinção apresenta-se oportuna na medida em que na contemporaneidade a política se constitui e se manifesta institucionalmente. Nesta direção, Weber argumenta que:

quem vive para a política a transforma, no sentido mais profundo do termo, em fim da sua vida, seja porque encontra forma de gozo na simples posse do poder, seja porque o exercício dessa atividade lhe permite achar equilíbrio interno e exprimir valor pessoal, colocando-se a serviço de uma causa que lhe dá significado a sua vida (WEBER, 1996, p. 64-65).

Por outro lado, o sociólogo alemão identifica aqueles que vivem da política “Daquele que vê na política uma permanente fonte de rendas, diremos que “vive da política” (WEBER, 1996, p. 65). Weber vê nesta distinção uma condição singular e necessária no exercício da política, ou seja:

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O homem político deve, em condições normais, ser economicamente independente das vantagens que a atividade política lhe possa proporcionar. Quer isso dizer que lhe é indispensável possuir fortuna pessoal ou ter, no âmbito da vida privada, situação suscetível de lhe assegurar ganhos suficientes [...]. Tais situações são, entretanto, necessariamente excepcionais; na vida econômica de todos os dias, só a fortuna pessoal assegura independência econômica. O homem político deve, além disso, ser economicamente disponível, equivalendo a afirmação a dizer que ele não deve estar obrigado a consagrar toda a sua capacidade de trabalho e de pensamento, constante e pessoalmente, à consecução da própria subsistência (WEBER, 1996, p. 65).

A complexidade da máquina burocrática dos Estados constitucionais, os diversos níveis de relações de poder que se circunscrevem a política institucionalizada das sociedades contemporâneas exigem dos homens que se dedicam à política, a integralidade de seu tempo na preservação do espaço público que legitima o poder do Estado. Pressões econômicas e interesses pecuniários que circunscrevem a condição de homens que vivem da política tornam o exercício da política lócus por excelência de negociadas e desprezo pela meritocracia na ocupação de postos estratégicos da gestão da racionalidade de Estado. Sob tais condições, Weber aponta para os prejuízos que a política exercida sob pressões de ordem pecuniária pode trazer ao espaço público. A esse respeito a argumentação de Weber a seguir é lapidar.

O fato de um Estado ou de um partido serem dirigidos por homens que, no sentido econômico da palavra, vivam exclusivamente para a política e não da política significa, necessariamente que as camadas dirigentes são recrutadas segundo critério plutocrático. Fazendo essa asserção, não pretendemos, de maneira alguma dizer que a direção plutocrática não busque tirar vantagem de sua situação dominante, com o objetivo de também viver da política, explorando essa posição em benefício de seus interesses econômicos [...]. Não há camadas dirigentes que não tenham sido levadas à exploração de uma ou de outra maneira. Nossa asserção significa simplesmente que os homens políticos profissionais nem sempre se vêem compelidos a reclamar pagamento pelos serviços que em tal condição prestam, ao passo que o indivíduo desprovido de fortuna está sempre obrigado a tomar esse aspecto em consideração. [...] Sabe-se, por experiência, que a preocupação com a segurança econômica é, com efeito, de maneira consciente ou não, o ponto cardial na orientação da vida de um homem que já possui fortuna [...]. Tudo o que nos interessa ressaltar é, entretanto, o seguinte: o recrutamento não plutocrático do pessoal político, sejam chefes ou seguidores, envolve, necessariamente, a condição de organização política de assegurar-lhe ganhos regulares garantidos (WEBER, 1996, p. 66-67).

Este posicionamento de Weber abre o debate que atravessa o Ocidente sobre o direito ao exercício da política. Mas, antes de adentrar neste debate, é preciso reconhecer a pertinência de sua análise quando nos deparamos com o fenômeno da corrupção nas diversas instâncias de atuação do Estado. Evidentemente o fenômeno da corrupção no âmbito da política institucional requer a análise de inúmeras variáveis, entre elas questões de valores e compromissos dos

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indivíduos com a coisa pública. Indivíduos que se constituíram no âmbito de sociedades marcadas por profundas diferenças sociais em que a concentração dos bens necessários a conformação de uma vida digna apresenta-se concentrada nas mãos da minoria desta sociedade. Fenômenos desta natureza se constituem em sociedades subalternas em que a conformação social se constitui sob a égide da violência, da rapina, numa clarividente manifestação de ausência de interesse e compromisso, na constituição de uma sociedade civilizada e altura dos desafios de seu tempo e dos tempos vindouros. Em sociedades em que as elites demonstraram no decorrer do percurso histórico baixo apreço pela conformação de um espaço público civilizacional suficiente, impera de forma generalizada e viralizante a desconfiança dos indivíduos entre si e dos indivíduos em relação às instituições políticas constitutivas do Estado. São sociedades da desconfiança e, por extensão, de baixa capacidade de constituir consensos em relação os interesses estratégicos sociais públicos. Em ambientes e sociedades desta natureza, práticas de corrupção se disseminam e comprometem o interesse público. Porém, sociedades desenvolvidas também não se encontram imunes de práticas de corrupção no âmbito da política institucional. Ou seja, a corrupção não se apresenta como exclusividade de sociedades subdesenvolvidas, mas é preciso reconhecer seus efeitos deletérios na constituição da razão de Estado.

Mas, retomemos o argumento de Weber que reascende o debate que perpassa o Ocidente. Afinal, quem pode exercer o poder politicamente institucionalizado? O rei filósofo Platão ou o cidadão que em sua singularidade se interessa para coisa pública Hannah Arendt? A opção pelo rei filósofo e, no caso de Weber tipificado como aquele que possui condições econômicas para viver para a política lança, na exclusão, todo e qualquer indivíduo e cidadão que colabora, contribui e se compromete com a coisa pública. Esta opção compromete a natureza da política que indica o comprometimento com a cidade-comunidade, com o espaço público em que a vida é qualificada na forma do exercício da cidadania. O exercício da política como exclusividade do rei filósofo apresenta-se como condição de possibilidade de instauração e exercício de um poder totalitário, que é significativamente diferente do exercício autoritário do poder. Por outro lado, a opção pelo exercício da política por todo e qualquer cidadão nos coloca na contemporaneidade diante da questão da complexidade a partir da qual a razão de Estado age cotidianamente sobre a vida de indivíduos e a dinâmica de sociedades. Ou seja, cada vez a política institucional estatal se apresenta como lócus por excelência de especialistas que tomam decisões estratégicas, senão vitais, da dinâmica da vida social.

Neste debate de significativa importância civilizatória, o mérito de Weber, assim como Hannah Arendt a seu modo, foi reposicionar o debate partir da díade viver para a política, ou viver da política. Weber está ciente da importância que a economia assumiu na gestão da vida de indivíduos e das sociedades e considerando os complexos desafios políticos inerentes às sociedades contemporâneas é crucial reapresentar o debate a partir dos critérios analíticos da economia-política.

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Sob tais perspectivas, trata-se de reconhecer outra significativa contribuição de Weber quando pensamos o exercício da política em sua condição institucionalizada. O sociólogo da ação social argumenta que o político no exercício de suas funções institucionais, no governo da razão de Estado, encontra-se constantemente diante do insolúvel dilema, que é: agir a partir de uma ética da convicção fundada nos costumes, nas tradições comunitárias, nos valores consolidados ao longo da vida em relação aos interesses públicos, ou agir a partir de uma ética da responsabilidade. Sob a compreensão da política como constante produção e compartilhamento do poder, o político age majoritariamente a partir de uma ética e responsabilidade procurando contemplar as mais diversas questões e situações que se apresentam, pois dependendo do contexto é preciso abrir mão das convicções para alcançar a melhor decisão possível ao maior número de interessados, mesmo que ela não contemple a todos os envolvidos. Na direção de Maquiavel, salvaguardadas às devidas diferenças de contexto temporal e, sobretudo de perspectiva de análise política, Weber contribui para a compreensão de que a atividade política é exercida por seres humanos que não são bons nem maus por natureza, mas são detentores de vontade de poder, de prestígio ou até mesmo de vocação para a atividade política e que calculam e racionalizam suas atividades e decisões.

7 CONSIDERAÇÕES FINAISAs contribuições de Weber para o desenvolvimento das Ciências Sociais,

sobretudo a Sociologia são significativas e se circunscrevem na profundidade de suas abordagens e podem ser situadas nos seguintes eixos temáticos:

• As definições metodologias para a constituição de uma sociologia compreensiva cujos pilares conceituais encontram no conceito de ação social e de tipo ideal. Estes conceitos são centrais para acolher de forma suficiente a dimensão empírica da sociologia weberiana.

• Abordagens sobre religião e comportamento econômico. Nestas pesquisas e estudos Weber analisou as implicações das religiões, sobretudo do protestantismo na conduta econômica dos indivíduos e das sociedades.

• As análises da burocracia estatal e das instituições conformando o domínio legal e racional no qual se circunscrevem as sociedades contemporâneas.

Além dos eixos temáticos acima apresentados ressaltem-se as contribuições de Weber para a compreensão do Estado como a entidade que possui o monopólio legítimo da violência, da ação coercitiva. Desdobra-se deste argumento, o fato de que a política na contemporaneidade é toda e qualquer atividade em que o estado tome parte e da qual resulta uma distribuição relativa da força. Ainda nesta direção, Weber contribui para a compreensão de que o fundamento do conceito de política reside no conceito de poder e que, portanto, deverá ser entendida como a atividade por excelência da produção do poder. Sob os pressupostos da política

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como derivada do exercício do poder, o sociólogo da ação social esclarece que um político não se constitui como um representante por excelência da ética católica, um santo. Ou seja, o universo da política não é para santos, mas a esfera dos fins últimos e em seu exercício requer que se opere por meio de uma ética responsabilidade em relação aos meios em vista dos fins que se quer alcançar. Ademais, Weber insiste que a atividade política requer paixão e dedicação exclusiva na medida em que se trata de salvaguardar com finalidade última da política o bem público, o espaço comum a partir do qual se constitui e se qualifica a vida humana.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você aprendeu que:

• Maximillion Weber nasceu em 21 de abril de 1864 em Erfurt. Turingia, na Alemanha. Seu pai Max Weber era advogado e político. Foi deputado do Partido Nacional Liberal. Sua mãe Helene Fallenstein Weber, era uma mulher culta e de concepção política liberal. Cultiva traços pietistas de fé protestante.

• O conceito de “ação social” assume condição central no desenvolvimento do pensamento sociológico de Weber.

• O conceito de ação social é marcado pela complexidade na medida em que se trata, sobretudo de determinar “A fronteira entre uma ação com sentido e uma ação meramente reativa (isto é, sem um sentido subjetivo elaborado) é extremamente tênue” (WEBER, 1987, 10).

• A questão crucial com a qual Weber se defronta na definição dos marcos teóricos, conceituais e metodológicos da Sociologia a partir do conceito de ação social, se trata de um lado, manter o rigor dos procedimentos em função da precisão dos resultados finais característicos das ciências exatas e naturais e, por outro lado, reconhecer os limites da aplicabilidade lógico formal daquelas ciências à interpretação de fenômenos sociais, cuja manifestação assenta-se na ação dos indivíduos.

• Para a adequada compreensão da ação social, Weber propôs um instrumento de análise que nomeou de tipo ideal. Trata-se de uma terminologia conceitual que constitui a partir de investigações e análises de casos particulares. O sociólogo, ou cientista social a partir de estudos de fenômenos particulares articula um modelo enfatizando elementos que elege como característicos.

• Esta obra ocupa um lugar de destaque no conjunto da obra de Weber. É um ensaio resultante de pesquisas sobre as religiões e a influência dos seus seguidores, no qual mais especificamente relaciona o papel do protestantismo na formação do comportamento típico do capitalismo moderno.

• Para Weber o conceito de Estado está vinculado ao conceito de política. O sociólogo alemão reconhece a amplitude do conceito na medida em que abrange inúmeras formas de atividades diretivas autônomas.

• Segundo Weber a concepção de Estado para um sociólogo não se apresenta, ou se define pelos seus fins ou por seus fins, mas somente pelo meio específico que é característico. E, continua argumentando que todo agrupamento político somente pode ser definido pelos meios que emprega, entre eles a coação física.

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• A política se apresenta como lócus de disputa de interesses de conservação, divisão ou mesmo transferência do poder. Tal condição incide e é determinante em relação às aspirações que alimentam os indivíduos ao entrar para a esfera da política.

• No que se refere ao domínio do poder carismático Weber argumenta que está forma de legitimação do poder se apresenta em todos os domínios e em todas as épocas. A obediência das pessoas a um líder se constitui a partir de motivos extremamente consistentes diante de situações que despertam medo, ou esperança.

• Em relação à questão da política e das formas de dominação, sejam elas, autoritárias, carismáticas, ou profissionais requer que se tenha em conta que o efetivo de seu exercício precisa de uma ordem socialmente constituída e razoavelmente estável. Tais condições se estabelecem com a existência soberana de um estado administrativo que disponha de meios materiais de gestão do território e da população.

• Weber procura demonstrar que, na contemporaneidade, a política se manifesta em âmbito institucional, que se constitui no domínio e controle da máquina administrativa e burocrática estatal. A política também se manifesta no conjunto de relações de poder institucionais partidárias, nos quais os indivíduos agem coletivamente e individualmente no sentido de se constituírem como lideranças autoritárias, carismáticas ou profissionais.

• No que concerne ao exercício da política Weber também aborda as formas de fazer política e, neste sentido afirma: Há duas formas de fazer política, ou se vive para a política ou se vive da política.

• O sociólogo da ação social argumenta que o político no exercício de suas funções institucionais, no governo da razão de Estado encontra-se constantemente diante do insolúvel dilema, qual seja, agir a partir de uma ética da convicção fundada nos costumes, nas tradições comunitárias, nos valores consolidados ao longo da vida em relação aos interesses públicos, ou agir a partir de uma ética de responsabilidade.

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1 Weber argumenta que o político no exercício de suas funções institucionais, encontra-se constantemente diante do insolúvel dilema, qual seja: Agir a partir de uma ética da convicção fundada nos costumes, nas tradições comunitárias, nos valores consolidados ao longo da vida em relação aos interesses públicos, ou agir a partir de uma ética de responsabilidade.

2 Qual a concepção de Estado de Weber explica o pressuposto de que o Estado não se define pelos seus fins, mas somente pelos seus meios específicos.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3

O PLURALISMO DE SCHUMPETER,

DAHL, DOWNS E LINDBOM

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOO pensamento político ocidental é de uma infidável gama de teorias e

conceitos sobre os fenômenos do poder. Lembremo-nos sempre: o fenômeno e, por conseguinte, o conceito de poder é o objeto central da teoria política e da ciência homônima. O esforço de inúmeros pesquisadores e autores, sobre o poder, é a contribuição de ouro à formatação das instituições políticas que, de modo geral, representam a evolução política a que conseguimos chegar. Esse pluralismo reflexivo tem a contribuição de importantes autores como Joseph Schumpeter, Robert Dahl, Anthony Downs e Tage Lindbom. Cada um deles, a seu modo, ofereceu importantes análises à compreensão da cena política ocidental no século XX.

Assim, a ideia da destruição criativa de Schumpeter, tão importante na Economia e na Administração, tem reflexos importantes na sua análise politológica. Por sua vez, Robert Dahl apresentou um trabalho extraordinário comparando o tipo ideal de democracia com a realidade, fazendo lembrar a série House of Cards. Depois dele, apresentaremos as ideias gerais de Anthony Downs e sua incrível capacidade de analisar a política de modo interdisciplinar, a partir de preceitos advindos da Economia. Por último, traremos a abordagem de Tage Lindbom, um admirador crítico da social-democracia e, posteriormente, desiludido com os rumos consumistas da Sociedade de seu tempo.

No seriado House of Cards, exibido pela Netflix, é impressionante o realismo político ali retratado. Ficção e realidade andam juntas. Trata-se da história de um congressista estadunidense e sua trajetória de ascensão ao poder. A narrativa é digna de uma perspectiva puramente maquiavélica, para usar o adjetivo advindo do grande inspirador da ciência política, cujo nome tornou-se uma metáfora. Vale a pena assistir.

NOTA

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UNIDADE 1 | PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

2 JOSEPH SCHUMPETER E DESTRUIÇÃO CRIATIVAFIGURA 5 - JOSEPH SCHUMPETER

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Schumpeter#/media/File:Joseph_Schumpeter_ekonomialaria.jpg>. Acesso em: 25 set. 2019.

Joseph Schumpeter nasceu em oito de fevereiro de 1883, em Triesch, Moravia, que pertencia ao então Império Austro-Húngaro, atualmente República Tcheca. Faleceu em oito de janeiro de 1950, em Connecticut, EUA. Seu pai era um fabricante de roupas e foi morto quando Joseph tinha 4 anos de idade. Anos depois, sua mãe se casou novamente, com um general austríaco. Schumpeter era um estudante talentoso, estudando simultaneamente Direito e Economia na Universidade de Viena. Em 1906 concluiu seu doutorado em Direito. Ao longo de sua carreira acadêmica, tornou-se, ao longo da carreira acadêmica, um respeitado economista e sociólogo, reconhecido e lembrado por sua análise acerca do empreendedorismo e consequente teoria do desenvolvimento do capitalismo e seus ciclos.

Schumpeter desaprovou o envolvimento austríaco na Primeira Guerra Mundial e logo se interessou pela questão da reconstrução econômica do pós-guerra. Em 1919, após a derrota de seu país, sua carreira acadêmica foi interrompida por uma breve nomeação como Ministro das Finanças no governo austríaco. De 1920 a 1924, ele serviu como presidente de um banco regional, sendo uma experiência ruim a Schumpeter quando a empresa entrou em colapso. Em 1925, ele muda-se para a Alemanha, onde se tornou professor na Universidade de Bonn. Com seus contatos na Universidade de Harvard, mudou-se para os Estados Unidos permanentemente quando os nazistas tomaram o poder na Alemanha.

2.1 INTELECTUAIS, ELITES E A EXPANSÃO DO SOCIALISMO

Embora ele fosse um fecundo escritor em Economia, a obra mais famosa de Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, de 1942, teve grande importância na Ciência Política, pela sua capacidade interdisciplinar de análise. Na conhecida obra, o economista concordava com a previsão de Karl Marx ao concluir que o

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capitalismo estaria com seus dias contados. Todavia, não acreditava que o golpe de misericórdia seria realizado por uma revolução do proletariado. Diferentemente disso, acreditava que o agente transformador seria um papel histórico destinado aos intelectuais, com sua capacidade crítica e discursiva e aos próprios burocratas, com sua autoridade legal.

Sua hipótese dialética foi bastante sagaz. Schumpeter acreditava que o sucesso material do capitalismo provocaria uma reação contra os valores do livre mercado, de modo que a iniciativa empreendedora acabaria sendo sufocada pela ação dos governos moderados de esquerda. Ironicamente, se o capitalismo tivesse menos sucesso como sistema econômico, seria mais provável que sobrevivesse. Um de seus subprodutos é uma melhor educação e uma taxa maior de alfabetização. Seria também uma educação mais livre e diversificada, o que permitiria um pensamento menos dogmático e mais crítico, facilitando a disseminação de ideias hostis à livre iniciativa. Não parece atual?

A forma dialética de pensar a história política e econômica implica em um confronto entre a fase histórica do momento e as tendências de superação, na direção de uma nova fase. Sócrates explicava assim a formação das ideias, sugerindo que as ideias novas se chocavam com as ideias presentes até surgirem novas ideias. Karl Marx também adotou o método dialético para explicar a história, que caracterizava como uma sucessão de fases até o capitalismo. Pelas suas próprias contradições geradas ao longo do seu desenvolvimento, cada fase geraria as condições da próxima. Foi assim que Marx sugeriu que as contradições geradas no capitalismo resultariam no socialismo.

IMPORTANTE

A visão de Schumpeter sobre um futuro socialista é complexa e polêmica. Ele demonstra alguma simpatia pelas ideias socialistas e admite que o coletivismo poderia resultar na satisfação de necessidades genuínas das pessoas. Por outro lado, o economista theco-austro-americano nutria uma profunda admiração pelo espírito empreendedor existente no capitalismo. Em seu livro Capitalismo, socialismo e democracia, popularizou o termo destruição criativa para resumir o impacto que os empreendedores causavam com sua obsessão pela inovação. Ao incomodar firmas mais estabelecidas e acomodadas, os empreendedores estavam sempre inovando e garantindo a competitividade e a produtividade na economia.

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FIGURA 6 – CAPA DE SUA FAMOSA OBRA

FONTE: <http://s3.amazonaws.com/magoo/ABAAAgmRkAC-0.jpg>. Acesso em: 25 set. 2019.

2.2 DESTRUIÇÃO CRIATIVA

O espírito empreendedor seria caracterizado pelo ímpeto da mencionada destruição criativa, sinônimo de inovação e fator chave do dinamismo capitalista. A inovação, como sabemos, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento de métodos sustentáveis tanto de produção quanto da vida em geral. Em ambos os casos, os agentes produtivos e cognitivos da sociedade sempre suscitam novas necessidades. Desde que livres para isso, os agentes empreendedores estão sempre criando alternativas às formas convencionais de fazer as coisas que foram desenvolvidas. A chave para a compreensão da produtividade e da competitividade das economias estaria, portanto, nesse processo de destruição criativa.

Acontece que, esse processo criativo e dinâmico é, por definição, instável e destrutivo. E, na medida em que isso acontece na economia, tem efeitos importantes e com frequência traumáticos para toda a sociedade. Isso gera insegurança, medo, descontinuidades e sofrimentos, causando aversão e reações conservadoras na sociedade, sobretudo nas classes trabalhadoras. As lideranças políticas, sobretudo, as mais comprometidas com os discursos democráticos, capturam esta insatisfação social. Passam a apresentar-se como defensores da segurança social, comprometendo-se em frear os processos inovadores, socialmente destrutivos. E apresentam seus programas eleitorais vendendo a ideia de que sua relação com o eleitor será fiel e direta.

Assim sendo, Schumpeter contribuiu para a teoria das elites através de seu conceito de liderança democrática (SCHUMPETER, 1961, p. 354). Para o autor, a maior parte do pensamento democrático baseava-se numa visão otimista do eleitorado. Na realidade, muitos eleitores não teriam inteligência ou motivação para entender questões políticas. Como tal, seria melhor que não exercessem influência direta sobre a política. Esta seria dominada pelas elites democráticas. No momento da eleição, os eleitores escolhem entre rivais que prometem governar em seu interesse. Na melhor das hipóteses, o governo seria democrático, mas sem canais diretos com o povo.

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2.3 DEMOCRACIA

Era assim que Schumpeter compreendia a democracia, com pretenso realismo, mas sem sugerir que outros regimes poderiam ser melhores (SCHUMPETER, 1961). Não parecia ter dúvidas de que as democracias representativas avançariam, principalmente após a derrota do nazismo e do fascismo. Previa que as democracias avançariam e se aproximariam, progressivamente, dos ideais do socialismo, mas sem a extinção da propriedade privada, nem a privação das liberdades fundamentais. Contudo, insistia no caráter indireto e concêntrico da ordem política democrática, protagonizada pelas elites políticas e por uma economia supercontrolada.

A visão de Schumpeter da política foi claramente influenciada por suas próprias experiências práticas, mas também por seu histórico de economista. Ao votar, os indivíduos se comportariam como agentes econômicos, buscando o produto que mais se aproxime dos seus interesses. Pode-se argumentar que essa visão da democracia se tornou cada vez mais aceitável desde a morte de Schumpeter. Em meados da década de 1970, países como o Reino Unido também pareciam oferecer a verificação de suas previsões sobre o triunfo do socialismo ou pelo menos, de um sistema capitalista que estaria sujeito à interferência e regulamentação cada vez maior do Estado e em defesa da igualdade.

Conquanto ressurgissem as ideias do livre mercado em fins da década de setenta do século XX, as profecias de Schumpeter sobre o intervencionismo estatal e a socialização das riquezas continuam pairando no ar. A própria emergência do neoliberalismo parecia uma tentativa de responder às previsões de Schumpeter, levando-as a sério. Elas pareceram bem mais plausíveis do que as previsões de Marx, que acreditava na transformação revolucionária e radical, enquanto o austríaco previa sucessivos avanços em direção ao crescimento do Estado e ao correspondente enfraquecimento do empreendedorismo e da inovação.

As ideias de livre mercado dizem respeito à liberdade dos agentes econômicos de atuarem com a menor a intervenção governamental possível, leia-se: menos impostos e leis impeditivas ou constrangedoras à livre negociação e circulação de mercadorias e serviços.

NOTA

O próprio Schumpeter continua sendo uma figura bastante obscura fora da academia, comparado a John Maynard Keynes. Inspirador do Estado de bem-estar social e contemporâneo de Schumpeter, Keynes era quase exato em seus diagnósticos e prognósticos a respeito das intervenções do Estado sobre o mercado.

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Uma diferença fundamental entre os dois é que Keynes era um liberal convencido de sua fé na liberdade, mesmo que alguns de seus críticos achassem adequado duvidar da convicção do economista inglês. Em contraste, Schumpeter foi muito mais cético em relação às liberdades do mercado e às promessas dos governos e suas elites de limitarem sua sanha de controle sobre a economia e os indivíduos.

2.4 ELITES

Sua análise sistemática das elites está baseada na mesma ideia dos teóricos italianos sobre as elites. Schumpeter entende que a política real, ainda que democrática no nome, sempre se distancia das formas de participação. O que predomina são as formas de delegação do poder e representação indireta. As minorias dominantes nada mais fazem do que criar os arranjos de controle sobre os eleitores, mantendo-os o mais distante possível dos processos decisórios. Nessa perspectiva, o autor acompanha a linha de raciocínio dos italianos Pareto, Mosca e Michels, enunciados no primeiro tópico desta Unidade. Assim, o poder sempre estaria associado à minoria cuja habilidade seria a de criar regras de justificação e legitimação de seu poder e a capacidade de atender e controlar as demandas da maioria.

Joseph Schumpeter soma-se aos teóricos do elitismo, tanto quanto ao pretenso realismo político, que igualmente pressupõe sempre uma minoria dominante e organizada sobre as massas desorganizadas de indivíduos. Por essa razão, pressupunha a evolução política da autonomia do Estado em relação ao conjunto da sociedade. Não acreditava numa sociedade sem classes, como queriam os socialistas. Por extensão, também não acreditava na utopia da democracia liberal, que sugeria o controle da sociedade organizada e relativamente independente sobre o Estado mínimo a serviço da primeira.

O realismo político tem origem no pensamento de Machiavel, a partir de suas reflexões acerca da virtude e da fortuna. É uma das mais antigas e atuais correntes de pensamento na Ciência Política. Parte-se do pressuposto de que os homens são, em política, como em economia, egoístas. Estão eternamente em conflito por conta da busca pelo poder. Por isso, sempre haverá minorias dominantes.

IMPORTANTE

Schumpeter era cético em relação ao pressuposto da bondade humana, sugerida por filósofos modernos como Rousseau. Era um pensador influenciado pela perspectiva de Thomas Hobbes, a partir da ideia do homem, lobo do homem. Para Schumpeter, o socialismo não era uma tendência altruísta. Tratava-se, no

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fundo, de reconhecer que a democracia, com boa dose de socialismo, era o melhor caminho para a legitimação das elites no poder. O povo, em geral, não passaria de uma massa ignorante e conformada, desde que se lhe garantisse o básico, isto é, segurança, liberdades, condições de trabalho e algum bem-estar.

3 ROBERT DAHL E A DEMOCRACIA COMO ELA ÉO cientista político Robert Alan Dahl nasceu em 17 de dezembro de

1915, em Inwood, no Estado de Lowa, EUA, e faleceu em 5 de fevereiro de 2014, na cidade de Hamden, Connecticut, EUA. Sua notoriedade está relacionada à teoria do pluralismo político, também conhecida pelo conceito de poliarquia. Sua contribuição é bastante lembrada pela ênfase que atribuiu ao caráter associativo da política como chave para a sua compreensão, através dos grupos e organizações como partidos, sindicatos e outras formas de agrupamento de interesses e formas de cooperação.

FIGURA 6 – ROBERT DAHL

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Dahl#/media/File:Robert_A._Dahl_in_the_Classroom.jpg>. Acesso em: 25 set. 2019.

O conceito de poliarquia foi originalmente formulado pelo cientista político Robert Dahl. Literalmente, significa o governo de muitos, sinônimo de pluralidade política. Não obstante, na ciência política, é compreendido como resultado da evolução dos sistemas democráticos. Nesse processo, criam-se grupos e associações que, quanto mais eficientes, mais controles morais exercem sobre os indivíduos. Assim, indivíduos que desejam alcançar o poder orientam suas ações de acordo com as múltiplas regras instituídas por essas organizações (DAHL, 2012).

IMPORTANTE

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Dahl formou-se em Ciência Política na Universidade de Washington, em 1936 e obteve PhD da Universidade de Yale em 1940. Ele serviu no Exército dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e recebeu a Estrela de Bronze por serviço diferenciado. Com o fim do grande conflito, Dahl retornou à Universidade de Yale, na qual lecionou até o ano de 1986. Depois disso, tornou-se “Sterling Professor Emérito” de Ciência Política, além de pesquisador sênior em Sociologia.

PhD é a sigla para o termo Philosofy Doctor, utilizado nos Estados Unidos e equivalente ao que conhecemos por Doutorado nas universidades brasileiras.

NOTA

3.1 O PODER É POLIÁRQUICO

Sua primeira contribuição relevante à Ciência Política está publicada no livro O conceito de poder, 1957, nunca editado no Brasil, em que o autor apresenta uma conceituação formal do poder muito apreciada na teoria política contemporânea. Explica que um dado agente tem poder sobre outro na medida em que o induz a fazer algo que este não faria por conta própria. Nessa perspectiva, Robert Dahl apresenta o exemplo de um professor que ameaça um aluno com a reprovação caso não leia o livro cuja leitura lhe foi incumbida. Seria, inclusive, possível quantificar isso. Bastaria perceber a diferença entre a probabilidade de o aluno ler o livro antes de receber a ameaça e a probabilidade de que ele o leia depois de receber a ameaça.

Em seu trabalho mais conhecido nos EUA, intitulado Quem governa? Democracia e poder na cidade americana, 1961, estudou a dinâmica do poder em New Haven, Connecticut. Dahl afirmou que o poder nos Estados Unidos é poliárquico, refutando teóricos da elite como Wright Mills e Floyd Hunter, que interpretaram os Estados Unidos como um país governado por uma pequena minoria. Dahl percebeu que, embora distribuído desigualmente em New Haven, ele também estava disperso entre vários grupos competindo entre si, em vez de monopolizados por um único grupo de elite.

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Wright Mills e Floyd Hunter, autores, respectivamente, de A elite poderosa e Regional City são reconhecidos pesquisadores norte-americanos sobre as estruturas de poder. A contribuição mais conhecida desses autores foi demonstrar que o poder não reside necessariamente nos ocupantes de cargos oficiais, mas estaria concentrado em alguns agentes influentes e menos evidentes aos holofotes, entre militares, políticos e empresários.

NOTA

FIGURA 7 – LIVRO DE DAHL EDITADO NO BRASIL

FONTE: <https://d1pkzhm5uq4mnt.cloudfront.net/imagens/capas/0b30c90753630f9f73ee417de9b3c38be14e5909.jpg>. Acesso em: 25 set. 2019.

3.2 POLIARQUIA

Robert Dahl sugeriu o conceito de poliarquia a fim de caracterizar a política americana e outros sistemas democráticos que são abertos, inclusivos e competitivos, segundo Polyarchy (1997). Com essa ideia, ele demonstrou a distinção entre um tipo ideal de democracia e os sistemas políticos existentes. Desse modo, as poliarquias baseiam-se no princípio da democracia representativa, que é indireta e, portanto, não contempla a participação imediata dos cidadãos. Ele admite que ali se formem minorias governamentais, mas as democracias também são sistemas que limitam o poder dos grupos de elite, por meio de organizações sociais (associações, partidos, sindicatos etc.) e instituições, isto é, leis a respeito de eleições regulares e livres.

Apesar de sua crítica à teoria das elites, o cientista político estadunidense foi acusado de dar pouca importância à participação cívica, logo depois da publicação de seu livro Quem governa... Nessa obra, Dahl acreditava que, realmente, as democracias não requerem participação em massa e que, de fato, esse sistema se baseia no consentimento de uma população relativamente indiferente. Mais tarde, em obra intitulada Democracia e sua crítica, de 1989, o autor relativizou a sua opinião

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sobre a apatia da sociedade. Reformulando o conceito de poliarquia, passou a admitir a função salutar de uma cidadania ativa e pluralista, portanto poliárquica, vinculada aos direitos políticos, como a liberdade de expressão e associação.

Assim, poliarquia refere-se à existência de instituições democráticas

dentro de um sistema político que favorece a participação de uma pluralidade de atores. É exatamente deste modo, concordando com a boa definição do autor, que podemos descrever os processos de democratização. Temos, afinal, um conceito ideal de democracia que, para Dahl é a poliarquia. Assim, quanto mais aberta, pluralista e mais distribuído o poder, mais democrática será a sociedade. Trata-se de uma importante contribuição ao próprio entendimento das democracias e das diferenças de ambiente e resultado entre cada uma delas, isto é, entre as experiências de cada sociedade, cada país, região ou município.

Poliarquia é um conceito da ciência política formulado por Robert Dahl nos Estados Unidos. O conceito, em resposta das diversas críticas sobre a não-soberania da democracia plena nas nações, procura classificar em diferentes graus os "níveis de democratização" das sociedades industrais desenvolvidas.

FONTE: DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1997.

NOTA

A representação eleitoral por meio de eleições livres e por um governo representativo é uma ideia central ao conceito de democracia formal. Robert Dahl acrescenta a isso uma definição empírica de democratização, além de elaborar um conjunto de critérios normativos para decidir se um sistema político pode ou não ser considerado como uma democracia. A poliarquia, portanto, deve ser entendida como um processo em que um conjunto de instituições se aproxima do tipo ideal que o conceito expressa. Isso inclui regras, leis e organizações de vários tipos, inclusive a imprensa. Portanto, o poder público é essencial, e a autoridade é efetivamente controlada por organizações sociais e associações civis, incluindo os partidos. O grau em que essas organizações (atores sociais) de fato interferem, aumentará a qualidade democrática de um sistema político.

Desse modo, não somente a existência e o funcionamento das instituições, leis e regras são fundamentais para o funcionamento adequado das poliarquias. Também será necessário complementar a existência de um ambiente constituído de organizações societárias de natureza plural. Além disso, é claro, é preciso haver um espaço adequado para a garantia legal de sua organização e ação.

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3.3 O TIPO IDEAL DE POLIARQUIA

A institucionalização do processo democrático de governos responsáveis e verdadeiramente republicanos é um pré-requisito para a poliarquia. Para Robert Dahl, embora o estabelecimento de uma democracia plena não passe de uma quimera, algumas instituições, regras e leis a aproximam do tipo ideal. E, ao construir esse tipo ideal de democracia, que o autor denomina de poliarquia, isso nos serve de parâmetro para analisar o país, o estado, a região e o município onde vivemos. As instituições necessárias seriam, portanto, as seguintes:

• Sufrágio universal e o direito de concorrer a cargos públicos.• Eleições livres e justas para todos os adultos.• Disponibilidade e observância do direito à liberdade de expressão e proteção

para exercê-lo.• A existência e livre acesso à informação alternativa, não controlada pelo governo.• O direito incontestável de formar e unir organizações relativamente autônomas

— em particular, partidos políticos (e, crucialmente, partidos na oposição)• Capacidade de resposta do governo (e partidos) aos eleitores.• Responsabilização do governo (e partidos) aos resultados eleitorais e ao governo.

Esse conjunto de instituições, segundo Dahl, distingue a poliarquia de outros regimes. O surgimento dessas instituições pode, então, ser visto como o processo em direção à democratização. A existência duradoura e a observância de todo o conjunto é, para o autor, a marca de uma democracia estabelecida. Assim, o conceito de poliarquia não é somente uma contribuição conceitual muito importante. É também uma preciosa ferramenta de análise empírica, já que fornece um tipo ideal, a partir do qual podemos pesquisar a realidade e constatar o grau de aproximação dos casos reais com o conceito.

Desde o momento em que surgiu, o conceito de poliarquia passou a ser um dos mais amplamente referenciados na Ciência Política. Para além do que acabamos de dizer, sua importância também está no fato de que o conceito oferecido por Robert Dahl é prescritivo. Isso quer dizer que o conceito nos ajuda a definir um tipo ideal que nos serve de modelo, a partir do qual podemos nos orientar. Enfim, aprendemos a conceituar melhor a democracia. Ambos os aspectos nos ensinam a analisar melhor as democracias e nos permite, também, agir na construção política das sociedades em que vivemos.

Assim, tais organizações deverão influenciar os processos decisórios do Estado, exercendo certa vigilância moral sobre os agentes do poder direto, condicionando suas ações.

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FIGURA 8 – ANTONY DOWNS

FONTE: <https://alchetron.com/cdn/anthony-downs-51781dd5-fc39-41db-8827-b903ebb620c-resize-750.jpg>. Acesso em: 25 set. 2019.

Anthony Downs nasceu em Evanston, Illinois – EUA, em 21 de novembro de 1930. É economista e cientista político, autor da teoria da escolha pública. Seus dois trabalhos mais influentes são: Uma teoria econômica da democracia, 1957, único publicado no Brasil, e Inside Bureaucracy, 1967. É membro sênior da Brookings Institution, em Washington, desde 1977. Também foi membro da Real Estate Research Corporation, empresa de consultoria e assessoria de decisões sobre investimentos imobiliários, políticas habitacionais e outros assuntos sobre urbanismo. É PhD em economia pela Universidade de Stanford, autor ou coautor de 20 livros e mais de 480 artigos. Seus últimos livros são: Stuck in Traffic, 1992 e New Visions for Metropolitan America da Brookings and Lincoln Institute, 1994, Re-Evaluation of Residential Rent Control da Urban Land Institute, 1996, Urban Affairs and Urban e Política, teoria política e escolha pública, ambos publicados pela Edward Elgar Publishing, 1998.

FIGURA 9 – CAPA DA EDIÇÃO ESTADUNIDENSE, DE 1997, DE SEU LIVRO MAIS CONHECIDO

FONTE: <https://www.amazon.com.br/Economic-Theory-Democracy-Rudolf-Steiner/dp/0060417501>. Acesso em: 25 set. 2019.

4 ANTHONY DOWNS E A TEORIA ECONÔMICA DA DEMOCRACIA

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Anthony Downs faz parte de um conjunto de economistas que, ao longo do século XX, procuraram empregar princípios matemáticos e pressupostos econômicos a fim de compreender os comportamentos dos agentes políticos. Esses autores fazem parte do que passou a denominar-se a nova economia política. Seguindo a esteira de seu professor e economista estadunidense Kenneth Arrow, Anthony Downs passou a ser um dos proeminentes economistas políticos a estudar os comportamentos na esfera da política. Nessa perspectiva, Downs formulou um modelo teórico se utilizando de conceitos econômicos tradicionais para explicar os problemas das democracias.

4.1 TEORIA DA ESCOLHA PÚBLICA OU TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL

A teoria da escolha pública também pode ser denominada de teoria da escolha racional. Há, seguramente, vários autores importantes que compõem esta escola de pensamento na ciência política. Não obstante, o trabalho de Anthony Downs tem sido recebido como uma referência essencial no prelúdio a esta teoria. O pressuposto geral reside na ideia de que os agentes políticos fazem escolhas na política da mesma maneira que fariam na economia. Sejam eles eleitos, eleitores, ou servidores públicos em geral, agem procurando maximizar seus ganhos pessoais. Em geral, compatibilizam seus interesses com o interesse público, mas desde que os seus estejam assegurados.

Na perspectiva de Downs, a democracia é um processo por meio do qual os agentes individuais competem entre si e estão em permanente comunicação. Mais que isso, calculam suas decisões o tempo todo, objetivando assegurar os melhores ganhos possíveis. Portanto, tomam suas decisões de acordo com o princípio da maximização do interesse próprio. A política e o sistema eleitoral são compreendidos como um mercado político, no interior do qual vingam as mesmas leis que no mercado econômico. Ambas as partes querem maximizar seus benefícios obtendo o maior número possível de votos dos eleitores.

Assim, os agentes políticos, em geral, compreendem a lógica do poder político. Programas políticos, políticas públicas e eventos eleitorais são vistos como um meio para alcançar a finalidade: a conquista do e a permanência no poder. Em contraste, o eleitor racional sempre terá o cuidado de obter um equilíbrio de custo-benefício antes de cada eleição. Para Anthony Downs, isso pode significar que o custo de obter informações, ler programas eleitorais e de se preocupar com os resultados gerais das urnas é maior do que o seu benefício. Nesse caso, o eleitor não tem grande interesse em votar, já que não sabe se seu voto fará alguma diferença na composição do poder.

Assim sendo, a teoria do comportamento eleitoral racional de Anthony Downs se caracteriza por dois aspectos desta espécie de negociação de suas pontas: de um lado, os partidos políticos estão constantemente tentando maximizar votos. De outro lado, está o auto interesse do eleitor. Os dois lados praticam uma

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ação racional com vistas às suas finalidades, para usar a terminologia weberiana. Ambos desempenham um papel semelhante na política, tal qual consumidores no mercado movidos pelo auto interesse. As eleições são o ponto central desta troca na democracia, em que cada um dos lados procurará obter o que deseja.

Assim, o eleitor deseja sempre um conjunto de coisas que possa estar o mais próximo da maximização do seu bem-estar. Ele negociará seu voto procurando comprometer seus candidatos e escolherá aqueles que acredita terem a melhor chance de materializar, de algum modo, suas expectativas. Já o político que deseja o seu voto, fará tudo o que for possível para alcançar o poder e nele permanecer. Todos os outros objetivos, voltados ao interesse público, virão depois do principal. Tal é escolha racional, na visão de Downs e dos adeptos da rational choice theory. Nessa direção, a escolha do agente político será, antes de tudo, uma escolha egoísta.

A fim de planejar suas políticas de modo a garantir votos, governos precisam descobrir alguma relação entre o que fazem e de que modo os cidadãos votam. Assim, é útil lembrar de algumas regras de interpretação do ponto de vista da teoria da escolha racional: políticos e governos calculam suas ações com base no que pensam os eleitores. Por isso, fale-se bem ou mal das pesquisas de opinião e de intenção de voto, elas fazem parte dos processos de tomadas de decisão eleitoral e ou governamental, invariavelmente.

• Eleitores, em regra geral, votam nos candidatos e partidos que mais pareçam maximizar seus interesses e beneficiá-los particularmente.

• Seria irracional para políticos e governos colocarem os ideais políticos e coletivos acima do interesse principal, qual seja, a conquista e a permanência no poder.

• Interesses racionais de políticos e eleitores procuram ser compatibilizados com o interesse geral, mas o cálculo é sempre racional e político. Por essa razão, a maximização do interesse próprio vem em primeiro lugar.

IMPORTANTE

Ainda que egoísta, as melhores decisões e o melhor desempenho dos agentes políticos tendem a ser altruístas e voltadas ao maior número possível de eleitores. Isso acontece pela razão lógica de que é deles que vem o julgamento e a decisão sobre a eleição e/ou a permanência e sobrevivência política daqueles. Assim, o que pode parecer imoral ou amoral em nosso julgamento sobre os políticos, deve ser visto como da própria natureza do jogo político. Nessa perspectiva, toda vez que um agente político agisse sem desejar prioritariamente o poder, estaria agindo tão irracionalmente quanto um negociante que não desejasse maximizar seu lucro nos negócios.

Por esse ângulo, a política é vista sem paixões. É preciso perceber que, aqui, a ideia da cientificidade chega ao seu ápice na análise política. Podemos dizer que o realismo político que teve início com o pensador florentino Nicolau

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Machiavel chega ao esplendor da imparcialidade científica. Mesmo que isso possa incomodar a jovens de mentalidade moralmente sadia e de anseios pela utopia política, a metodologia da teoria das escolhas políticas de Anthony Downs e vários outros teóricos deste gênero analítico são úteis à Ciência Política. Podemos ainda chamar isso de individualismo metodológico, segundo o qual, para entender a política, é preciso pressupor que o egoísmo, isto é, o interesse pessoal, individual, é o ponto de partida.

Desse modo, toda a disputa por vencer uma eleição seria primeiramente um ato de interesse pessoal. Isso significa que o desapego, as motivações ideológicas, republicanas ou altruístas seriam meros coadjuvantes, quando não atitudes cínicas ou tolas. Desse ponto de vista, o que está em jogo são os cargos públicos, os privilégios das corporações governamentais, que significam a possibilidade de exercer o poder e dele desfrutar. Mas não se trata de vulgarizar a política, tampouco reduzi-la a um antro de interesses individuais e corporativos. Muito menos, é o caso de diminui-la a um campo da imoralidade e da corrupção. Trata-se de tentar entender como é e não sugerir como ela deveria ser.

Mais do que qualquer outra coisa, governar é exercer o poder. É claro que o exercício do poder deve estar o mais submetido possível ao interesse geral. E, até certo ponto, pode muito bem, estar, dependendo do interesse dos cidadãos, das melhores escolhas dos eleitores e de boas regras e leis. Governos devem servir aos cidadãos e o farão principalmente através de boas leis e da vigilância da sociedade. Não obstante, exercer o poder significa fazer com que os outros ajam de acordo com o interesse de quem exerce o poder. Significa fazer com que os outros obedeçam a ordens, cumpram as leis e paguem impostos.

Governos, partidos políticos e eleitores agem de forma racional para atingir certos objetivos específicos. O objetivo de governos é exercer o controle sobre os seus partidários, sobre a oposição e sobre os eleitores. Farão tudo o que for possível para se manterem no poder. Com frequência, erram ou são vencidos pela astúcia de opositores, o que muitas vezes inclui o fogo amigo de seus integrantes na disputa pelo poder. O objetivo dos partidos políticos é o mesmo. E, por fim, o eleitor também tende a maximizar seus ganhos no momento das eleições.

Tanto o comportamento de governos e partidos políticos quanto de eleitores pode ser ignorante. Muitos erros são cometidos de ambos os lados, mas ignorância e erro não são sinônimo de irracionalidade. A escolha racional está na intenção e o cálculo pode ser mal feito ou a ação pode ser desastrosa em algum ponto. Todavia, o ponto de partida é uma escolha racional, tem um objetivo claro e estará orientado pela maximização do interesse. No caso do eleitor é o bem-estar próprio, no caso do partido político é a conquista do poder e no caso do governo é a sua preservação. No entendimento dos teóricos da escolha pública racional, como Anthony Downs, esse individualismo metodológico deve ser sempre o ponto de partida para o entendimento da política.

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Se esse é o ponto de partida investigativo do cientista político, também poderia ser a cada um de nós, em relação à compreensão de como a política realmente funciona. Tal reflexão nos revela uma tensão permanente na democracia, existente em nosso cotidiano tanto quanto no mundo das ideias. Trata-se da tensão entre a utopia democrática e o realismo político. A utopia sugere que o povo controle os políticos e estes ajam pelo bem público. Enquanto isso, o realismo nos mostra que há sempre uma minoria dominante no poder, como sugerem os autores precedentes apresentados nesta Unidade 1. Essa tensão é natural, pois revela a vontade moral rousseauneana de como a política deveria ser e as escolhas racionais hobbesianas que mostram como a política é.

O pressuposto antropológico básico de Jean Jacques Rousseau é o do bom selvagem, sugerindo a idealização da política, isto é, a proposição da política como ela deveria ser. Nesse sentido, a perspectiva de análise rousseauniana implica, costumeiramente, em um engajamento moral de seus autores. Já, o pressuposto antropológico básico de Thomas Hobbes é o do homem lobo do homem, sugerindo o realismo na análise política, isto é, a descrição da política como ela é. Nesse sentido, a perspectiva analítica hobbesiana implica, sem exceção, na imparcialidade, isto é, na amoralidade de seus autores.

IMPORTANTE

4.2 CRÍTICAS À TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL

Ao fim, é preciso saber que o individualismo metodológico dos teóricos da rational choice theory não estão isentos de crítica. Ao contrário, o economista brasileiro Luiz Carlos Bresser Pereira, por exemplo, diz que se os homens fossem sempre egoístas, as civilizações não seriam possíveis. É uma boa provocação. Mas, com o seu realismo político, Downs nos sugere algo muito interessante, que faz parte da Ciência política e do pragmatismo político estadunidense: que as instituições políticas, isto é, toda a estrutura de leis, regras e organizações devem ser pensadas e estabelecidas levando em consideração como os seres humanos são e não apenas como deveriam ser.

Essa é a equação que deveríamos levar em conta sempre que olhamos para o cenário político nacional e vemos nele o caos, a corrupção, a injustiça e, por fim, desanimamos dela. E ao fazermos isso, ou deixarmos de fazer algo, reverberamos o dito popular de deixar o gambá solto no galinheiro. Assim, ao invés de agirmos simplesmente do ponto de vista moral, de como as coisas deveriam ser e talvez nunca sejam, para como os seres humanos são. Só assim, aprenderemos a maior de todas as lições de Anthony Downs: construir instituições que inibam nossa natureza egoística, ao invés de acreditarmos que os seres humanos devam ser moralmente bons sem que haja leis que os obriguem a ser bons.

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Luiz Carlos Bresser Pereira é professor titular da Fundação Getúlio Vargas - SP, lá leciona desde 1959, presidente e editor da Revista de Economia Política desde 1981, membro do Conselho da Cinemateca Brasileira, do Conselho de Administração da Restoque, do Conselho Consultivo do Grupo Pão de Açúcar. Foi ministro da Fazenda e da Administração Federal e Reforma do Estado. Tem experiência de ensino e pesquisa e trabalhos publicados nas áreas de Economia, Sociologia, Ciência Política e Administração Pública. Principais temas: desenvolvimento, macroeconomia do desenvolvimento, desenvolvimento e distribuição, inflação inercial, Estado e sociedade, democracia, nação e nacionalismo, sociedade civil, classes sociais, empresários, burocracia, tecnoburocracia, reforma gerencial, cinema. Defensor intransigente da democracia e entusiasta do tema do desenvolvimento, este excepcional economista político brasileiro é incansável no seu esforço de pensar as instituições políticas brasileiras e apontar tendências do Estado e de sua relação com a Sociedade. Quase toda a sua obra está disponível em www.bresserpereira.org.br.

NOTA

5 TAGE LIDBOM E A DESILUSÃO COM A SOCIALDEMOCRACIA SUECA

FIGURA 10 – TAGE LINDBOM E SEU AMIGO KURT ALMQVIST

FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/File:Kurtalmqvist.jpg>. Acesso em: 25 set. 2019.

Nascido no seio de uma família burguesa em 1909, Tage Lindbom cresceu nas vastas extensões de Norrland, indo estudar depois da Universidade de Estocolmo, onde obteve o grau de PhD em Filosofia, com uma tese sobre o movimento sindical sueco. Nos seus anos de universidade, aderiu aos ideais socialistas, aprofundando-se nos estudos sobre a obra de Karl Marx. Sua filiação ao partido socialdemocrata sueco e o reconhecimento de seu esforço intelectual sobre o tema do socialismo lhe rendeu a direção da biblioteca do partido. Durante anos, sua convicção sobre o socialismo pareceu inabalável, todavia, seu aprofundamento reflexivo o conduziu a indagações e dúvidas que culminaram com seu rompimento ideológico.

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UNIDADE 1 | PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

Tage, pronuncia-se Tague Lindbom, não é exatamente uma celebridade no universo da teoria política ocidental. Até mesmo em seu país o autor não chega a ser conhecido nacionalmente, ou referenciado por todos os cientistas políticos suecos. O fato de ter sido inicialmente um defensor do socialismo e ter se tornado um crítico da experiência socialdemocrata na Suécia lhe rendeu desafetos. Levou o autor a uma condição de marginalidade intelectual em seu país, porém, como afirma o escritor dinamarquês Martin Lindstrom (1997), trata-se do único cientista político de seu país referenciado na conhecida obra A mente conservadora, do filósofo político inglês Russel Kirk.

Na obra Omprövning, 1983, com tradução em reconsideração, Lindbom escreve sobre a sua trajetória de vida política e ideológica de engajamento e de transformação. Nessa perspectiva, sua jornada inicia com sua adesão ao marxismo, incluindo seu engajamento socialdemocrata, passando pelas decepções e mudanças em direção ao conservadorismo cristão. Em sua juventude, sua família, como de resto o seu país, foram duramente afetados pela crise do capitalismo na década de 20. Diante das dificuldades, o socialismo lhe pareceu uma alternativa promissora e a análise de Marx sobre o capital bastante sedutora.

Seu amadurecimento intelectual lhe fez perceber pouco a pouco as inconsistências da prática socialista. Além disso, compreendeu, a seu modo, que a promessa socialista fazia parte de um determinismo doutrinário. Era muito mais um ato de fé cega em uma narrativa sedutora e bem construída, mas que escondia uma utopia autoritária. Também se enquadrava no racionalismo político muito em alta no início do século XX. Através de uma presunçosa compreensão sobre a história universal de grande crença na capacidade de resolver os problemas sociais através de um planejamento racional e científico, tal qual insinuava o socialismo.

FIGURA 11 – LIVRO DE KIRK, AUTOR INGLÊS QUE PERCEBE A IMPORTÂNCIA DO SUECO TAGE LINDBOM

FONTE: <https://images.livrariasaraiva.com.br/imagemnet/imagem.aspx/?pro_id=6293840&qld=90&l=430&a=-1=1001117711>. Acesso em: 25 set. 2019.

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5.1 A CONTRADIÇÃO DO SOCIALISMO

De todo modo, os desdobramentos práticos das ideias socialistas são de indispensável consideração. Na Suécia, sem dúvida, o movimento socialista alcançou êxitos incontestáveis. As condições materiais dos trabalhadores se tornaram muito aceitáveis e não pararam de melhorar. Na medida em que boa parte das reivindicações dos trabalhadores estavam atendidas, Tage Lindbom perguntava se o movimento obreiro conservaria seu dinamismo inicial. Tinha dúvidas de que a doutrina materialista do marxismo continuaria a ser o principal norte intelectual e moral da classe trabalhadora.

Defrontando-se com tais perguntas, Tage Lindbom percebia com crescente preocupação o que considerava a inconsequência fundamental do movimento socialista. Priorizando a satisfação das demandas materiais dos trabalhadores, desde as mais vitais até as mais triviais, a força política do movimento socialista acentuava contraditoriamente as tendências mais egoístas dos indivíduos. Diante desse quadro, Lindbom toma a decisão de rebelar-se contra tal tendência e passa a criticar o movimento. Reivindica, ainda, uma última vez, o desapego às vantagens imediatas em favor de uma consciência socialista voltada ao futuro.

Para alcançar tais objetivos, o socialismo precisaria voltar-se aos seus princípios fundamentais. Nessa perspectiva, Tage Lindbom reivindicava as faculdades humanas da razão e da compaixão. Sugeria mais reflexão e responsabilidade coletiva e ambiental, além do desapego às coisas materiais, passionais e imediatas. O fato é que a observação dos acontecimentos não parecia corresponder à evolução histórica prometida pelo ideal socialista. O cientista político sueco criticava a realidade concreta. Segundo ele, o socialismo sueco não conduzia o trabalhador à consciência social mais elevada e à melhoria humana e espiritual para a constituição do homem socialista.

O sucesso das condições materiais da socialdemocracia sueca era festejado em toda a Europa como exemplo e demonstração de que o socialismo era viável. Apesar disso, essa experiência contraditoriamente não era capaz de demonstrar a viabilidade do surgimento de um novo homem, racional e consciente do sentido de responsabilidade cívica e planetária. Na análise de Lindbom, compartilhada com outros autores europeus, esse homem da classe trabalhadora se aburguesava cada vez mais. Transformava-se em nada além de um consumidor mais desejoso de satisfazer suas necessidades imediatas, sacrificando o civismo socialista pelo realismo do consumo.

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UNIDADE 1 | PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

5.2 DO SOCIALISMO AO CONSERVADORISMO CRISTÃO

Nesse processo de desencantamento intelectual, Lindbom finalmente sentiu-se incapaz de prosseguir no engajamento socialista. Em 1950, rompeu intelectualmente com o ideário, permanecendo certo tempo sem escrever. Algum tempo depois, desligou-se do partido socialdemocrata sueco, atravessando um período existencialista, numa espécie de confronto consigo mesmo. Nesse período de sua vida, fez emergir a pergunta fundamental, que o levaria à transformação conservadora: tendo o homem, na sua essência, uma aspiração fundamental pela perfeição, pode encontrar a resposta por si mesmo?

Tage Lindbom estava à procura de um sentido mais elevado do que a busca pelo conforto material. A resposta que lhe veio, lá do seu íntimo, despontou gradualmente e estava carregada de um sentimento metafísico: o homem só poderia responder a essa aspiração por perfeição na medida em que se submetesse a uma autoridade superior. E tal autoridade não poderia ter outra origem a não ser Deus.

No entendimento de Tage Lindbom, o homem ocidental moderno é vítima de sua própria presunção. Sua fé crescente e aparentemente inabalável nos próprios feitos científicos, tecnológicos e materiais, criou a ilusão do super-homem, aquele que, como sugeria Nietzsche, matou a Deus. Essa ilusão de que o poder divino se tornara dispensável, o levou a crer ser o governante absoluto do mundo e de sua própria existência. Os dois principais componentes desse grande engano, para Lindbom, foram precisamente o progresso e o desenvolvimento, tomados como verdade e desejo naturais no caminho da evolução.

Assim sendo, o mito do desenvolvimento levava a crer que a humanidade estaria sempre avançando, como que seguindo uma tendência natural e inevitável. Nesse processo evolutivo, o ser humano deveria progredir por meio de um processo natural de desenvolvimento biológico-orgânico. O progresso então prossegue, orientado pelo fato de que o ser humano produz e armazena informação, aumentando seu conhecimento. Esse acúmulo de conhecimento, no entanto, não serve aos propósitos da elevação da consciência coletivista idealizada pelo socialismo. Ao contrário, serve para a exploração metódica da natureza, apenas reproduzindo o ciclo de extração de mais riquezas materiais.

Nesse rumo, lamenta Lindbom (1982, apud LINDSTROM, 1997), O homem se tornava cada vez mais esclarecido. Por isso, elementos como a "superstição" e até mesmo o "preconceito" são gradualmente eliminados. A própria crença na vida eterna, em última instância, passa a ser substituída pela dedução racional de que o mundo material, empiricamente comprovado, é a única forma real de existência. Portanto, não haveria outra vida, nem poder divino a nos orientar, proteger e aguardar. Se era este o melancólico efeito da racionalidade, ao menos o ser humano deveria aproveitar todo o acúmulo de conhecimento para estabelecer uma ordem social cada vez mais perfeita.

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Ao contrário, o que a democracia havia estabelecido concretamente era um mundo cada vez mais destituído das possibilidades de sua própria utopia. A esperança numa sociedade de homens livres, responsáveis e conduzidos por valores como a igualdade e a fraternidade, havia dado lugar à degeneração moral e ética. Nessa direção, o sonho humanitário da democracia dera lugar ao absurdo do real. A realidade estaria progressivamente marcada pela corrupção, pela violência, pelo egoísmo, pela destruição da família e da natureza e pelo crime organizado.

Em O mito da democracia Lindbom (2006) se debruça sobre vários dos aspectos e fatores que progressivamente conduziram o mito ocidental do homem autogovernado. Centrando fogo no otimismo materialista da socialdemocracia sueca, Lindbom sugere aos leitores que reflitam sobre os rumos da democracia. O autor interpreta o regime democrático como a própria derrocada espiritual do Ocidente. E o problema estaria no cerne do mito da democracia: a soberba crença do homem autogovernado, substituindo a soberania do Criador pelo reino da criatura.

FIGURA 12 – CAPA DO LIVRO O MITO DA DEMOCRACIA NUNCA PUBLICADO NO BRASIL

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/510A%2BPaP8gL._SX330_BO1,204,203,200_.jpg>.

5.3 EM BUSCA DE RESPOSTAS METAFÍSICAS

Nessa perspectiva, retornamos à resposta de Tage Lindbom ao dilema, que estaria na submissão dos homens a autoridade de Deus. O problema é que, nas igrejas, onde a autoridade divina deveria ser encontrada, ela também não estaria. Das igrejas, que deveriam mediar o sagrado encontro de Deus com seus filhos, estes não receberiam qualquer orientação intelectual. Para o cientista político sueco, a estrutura teológica que as igrejas se moldaram estava comprometida. A adaptação e a dependência da Igreja em geral ao realismo político, inviabilizariam a busca honesta às questões metafísicas de fundo, em busca da verdade e da constituição plena do homem.

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UNIDADE 1 | PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

Em 1959, Lindbom publicou Sancho Panzas v äderkvarnar, tradução: Os moinhos de vento de Sancho Pança, em que desfere sua crítica derradeira às ideologias políticas racionalistas e evolucionistas do positivismo e do marxismo. Abandonando suas convicções anteriores, critica o caráter pré-determinista dessas duas correntes de pensamento. Segundo o autor, elas endeusaram a história e sugeriram a capacidade humana de resolver a todos os problemas da humanidade e instaurarem a paz eterna na Terra. Ao ignorarem a metafísica de um lado e a falibilidade humana de outro, tornaram-se as grandes falácias políticas.

No prólogo do tradutor a edição francesa do livro Utsädet och tjärarna, que na tradução espanhola se lê La semilla y la cizaña (LINDBOM, 1980), Roger du Pasquer, no seu prólogo, lembra que foi inicialmente a leitura do escritor sueco Kurt Almqvist que o ajudou a encontrar as respostas metafísicas que procurava. Sua trajetória curiosa, que vai de uma adesão fervorosa ao socialismo, passado pela crítica, até o abandono de suas convicções, chega por fim ao extremo oposto. Tage Lindbom torna-se um conservador, adepto das tradições, o que inclui a condição de um cristão de fé convicta. Seu apelo, ao final, é por uma busca metafísica e individualista da verdade, seguindo o ensinamento bíblico de que a verdade está dentro de cada um de nós.

Suas críticas à democracia foram de uma franqueza elogiável e chocante, ao mesmo tempo em que provocaram reações de repúdio e, mais frequentemente, de pouco caso. Mas, se consideramos o andamento das democracias mais de meio século depois de sua severa crítica à democracia e de conversão à metafísica, não se pode negar-lhe a atualidade. O ceticismo religioso continua predominante no universo das ciências sociais, tanto quanto a aposta na capacidade humana e racional de superar os desafios institucionais da política. Mas a profunda desilusão e consequente crítica de Lindbom aos mais elevados ideais políticos da democracia parecem nunca terem sido tão atuais e merecedores de atenção quanto nas primeiras décadas deste século XXI.

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LEITURA COMPLEMENTAR

SOBRE A DEMOCRACIA – ROBERT A. DAHL

Por Artur Miranda, publicado em 15 de fev. 2017

Eu já tinha ouvido falar deste livro por diversas fontes, o que me fez querer lê-lo há um bom tempo. Até que tive tempo para fazer a leitura e me surpreendi bastante. Trata-se de um dos melhores livros que li de uns tempos para cá. O autor não faz rodeios para passar as informações necessárias, utiliza notas de rodapé para indicar leituras específicas sobre o tema que está abordando e consegue deixar clara a ideia que está passando quando apresenta, ao início dos capítulos, o significado dos termos que usará no capítulo.

Simplesmente trata-se de livro recomendado para qualquer pessoa que queira saber sobre o que é Democracia. Obviamente, não é um livro que esgota o assunto, mas é um livro que aborda os pontos principais e traz extensa bibliografia para quem quiser se aprofundar no tema.

Há que se fazer somente uma observação inicial: o livro foi publicado em 1998, o que afasta as análises do autor quanto à democracia e aos países democráticos no século XXI.

Sem mais delongas, passemos à resenha propriamente dita.

Democracia ou República?

De início o autor coloca uma dúvida no ar: seria democracia a mesma coisa que república?

Os gregos inventaram o termo democracia, enquanto que os romanos cunharam o termo república. Ambos os sistemas políticos que foram denominados de democracia, na Grécia, e república, em Roma, guardavam a semelhança de serem governos populares. É o que explica, Robert Dahl:

“Você talvez tenha notado que me referi a ‘governos populares’ na Grécia, em Roma e na Itália. Como vimos, para designar seus governos populares, os gregos inventaram o termo democracia. Os romanos tiraram do latim o nome de seu governo, a república, e mais tarde os italianos deram este nome para os governos populares de suas cidades-estado. Você poderia muito bem lembrar que democracia e república se referem a tipos fundamentalmente diferentes de sistemas constitucionais. Ou será que essas duas palavras refletem justamente as diferenças nas línguas de que vieram? ”

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Robert Dahl prossegue falando que a primeira distinção feita entre democracia e república foi dada por James Madison, na obra “Federalist”, em que disse que a democracia pura ocorria quando um pequeno número de cidadãos se reunia e decidia os rumos da cidade governada; por outro lado, república seria o governo em que há um sistema representativo.

Trata-se de distinção que não tinha base histórica firme, como o próprio Dahl aponta. Conclui, então, com a seguinte dúvida:

“Entretanto (a questão não está clara), talvez as palavras democracia e república (apesar de Madison) não designassem diferenças nos tipos de governo popular. Elas apenas refletiram, ao preço da confusão posterior, uma diferença entre o grego e o latim, as línguas de que se originaram. “

De certa forma, atualmente, as palavras se distanciaram um pouco, ainda mais devido ao Direito Constitucional contemporâneo. Pode-se dizer que democracia é um regime de governo enquanto que república é uma forma de governo. De fato, isso ainda diz pouco. Dizem também que Democracia se opõe ao totalitarismo enquanto que Monarquia se opõe à República. Isto é, na República temos uma Estado de todos, enquanto que na Monarquia temos o Estado de um só. Por outro lado, na democracia o governo (isto é, a direção dada ao Estado) é democrático, construído pela maioria da população, enquanto que no totalitarismo o governo é guiado por uma só pessoa ou um pequeno grupo.

Democracia, Anarquia e Tutela

Pouco o autor fala sobre anarquia, restando a dizer que se trata de algo impossível de se realizar no mundo real. Ou seja, o autor afirma, sem dissertar muito, que a anarquia não seria possível.

Mas o que me intriga é quando o autor fala sobre o governo de tutores, ou simplesmente a tutela. Trata-se de ideia apresentada por Platão, em que os mais capazes seriam aqueles que governariam o povo. Para Platão esse seria o melhor governo.

“A afirmação de que o governo deve ser entregue a especialistas profundamente empenhados em governar para o bem geral e superiores a todos em seus conhecimentos dos meios para obtê-lo – os tutores, como Platão os chamava – sempre foi o mais importante rival das ideias democráticas. Os defensores da tutela atacam a democracia num ponto aparentemente vulnerável: eles simplesmente negam que as pessoas comuns tenham competência para se governar.”

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Robert Dahl fala sobre os argumentos a favor da tutela política utilizando analogias persuasivas: quem melhor do que um médico para saber qual remédio você deve tomar? Quem melhor do que um engenheiro de tráfego para definir regras de trânsito em determinada localidade? Por que não deixarmos especialistas guiarem o governo?

Para “atacar” a tutela, Robert Dahl aponta alguns pontos. Primeiro, quando você pede uma opinião a um especialista ainda será você quem decidirá seguir ou não a opinião, mas quando falamos em governo, estaremos diante, em maior ou menor grau, de uma decisão que será imposta a todos.

Além disso, Dahl desafia a viabilidade de realização de um governo de tutela:

“Como serão escolhidos os primeiros tutores? Se a tutela de alguma forma dependerá do consentimento dos governados e não da coerção direta, como será obtido esse consentimento? Seja lá como forem os tutores selecionados pela primeira vez, depois eles escolherão seus sucessores, como os membros de um clube? Se assim for, o sistema não correrá um enorme risco de se degenerar, deixando de ser uma aristocracia de talento e tornando-se uma oligarquia de nascimento? E se os tutores não escolherem seus sucessores quem o fará? Como serão dispensados os tutores que abusam e exploram…?”

Eu, particularmente, sempre tive a ideia de tutela na minha cabeça, sem nunca ter lido sobre ela em lugar algum, e acredito que os ataques à tutela podem ser contornados, mas isso é algo que deixo para dissertar em outro momento, em texto específico sobre a tutela.

A poliarquia

Outra ideia interessante que o autor apresenta em seu livro é a poliarquia. Trata-se de expressão introduzida pelo autor, juntamente com um colega, em 1953, por ser uma boa forma de fazer referência à democracia moderna representativa.

Mas afinal, o que define uma poliarquia (ou democracia moderna representativa)?

O autor diz que a democracia poliárquica é um sistema político dotado das seguintes seis instituições:

1- Funcionários eleitos. O controle das decisões do governo sobre a política é investido constitucionalmente a funcionários eleitos pelos cidadãos.

2- Eleições livres, justas e frequentes. Funcionários eleitos são escolhidos em eleições frequentes e justas em que a coerção é relativamente incomum.

3- Liberdade de expressão. Os cidadãos têm o direito de se expressar sem o risco de sérias punições em questões políticas amplamente definidas, incluindo a crítica aos funcionários, o governo, o regime, a ordem socioeconômica e a ideologia prevalecente.

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UNIDADE 1 | PODER E POLÍTICA: CLASSES SOCIAIS, ELITES, INSTITUIÇÕES E HEGEMONIA

4- Fontes de informação diversificadas. Os cidadãos têm o direito de buscar fontes de informação diversificadas e independentes de outros cidadãos, especialistas, jornais, revistas, livros, telecomunicações e afins.

5- Autonomia para as associações. Para obter seus vários direitos, até mesmo os necessários para o funcionamento eficaz das instituições políticas democráticas, os cidadãos também têm o direito de formar associações ou organizações relativamente independentes, como também partidos políticos e grupos de interesses.

6- Cidadania inclusiva. A nenhum adulto com residência permanente no país e sujeito a suas leis podem ser negados os direitos disponíveis para os outros e necessários às cinco instituições políticas anteriormente listadas. Entre esses direitos, estão o direito de votar para a escolha dos funcionários em eleições livres e justas; de se candidatar para os postos eletivos; de livre expressão; de formar e participar de organizações políticas independentes; de ter acesso a fontes de informação independentes; e de ter direitos a outras liberdades e oportunidades que sejam necessárias para o bom funcionamento das instituições políticas da democracia em grande escala.

Conclusão

Obviamente deixei de abordar diversos pontos que o livro aborda, fiz isso para que essa resenha mantenha um tamanho curto e porque gostaria de deixar para ela somente a ideia de poliarquia e de tutela e, ainda assim, deixar que o leitor procure o livro e realize a ótima leitura que realizei.

O livro aborda ainda coisas como: (i) origem e desenvolvimento da democracia; (ii) vantagens da democracia frente a outras possibilidades de governo; (iii) instituições democráticas; (iv) relação entre economia de mercado e democracia; (v) vantagens e desvantagens de regras eleitorais para o parlamento; (vi) divisões culturais internas a um país e sua relação com a democracia; (vii) diferenças, vantagens e desvantagens entre o presidencialismo e parlamentarismo; dentre outros.

Concluo dizendo que é leitura obrigatória para quem quer saber mais sobre democracia de forma bastante completa (no limite de um livro de pouco mais de 200 páginas). E para quem quer se aprofundar de verdade no tema, o livro também é recheado de indicações bibliográficas a respeito dos diversos temas que se relacionam com democracia.

Fonte: MIRANDA, A. Sobre a democracia – Robert Dahl (resenha). In: Jusliberdade: por um ordenamento jurídico mais livre, 2017. Disponível em: <http://jusliberdade.com.br/sobre-a-democracia-robert-a-dahl/>. Acesso em: 31 out. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Uma teorização da democracia durante o século XX por parte de quatro autores: Joseph Schumpeter, Robert Dahl, Anthony Downs e Tage Lindbom.

• A ideia da destruição criativa de Schumpeter, interdisciplinarmente transposta da Economia para a Ciência Política.

• A comparação de Robert Dahl entre o tipo ideal de democracia, como um conceito, com as experiências reais da política.

• Há quatro autores importantes à compreensão da cena política da democracia durante o século XX.

• A teoria da escolha racional, por Anthoy Downs, é também uma análise interdisciplinar que transpõe a perspectiva da economia aplicada à política. A interpretação pessimista da democracia, na perspectiva de Tage Lindbom.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

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1 Um dos importantes autores, cujas ideias foram aqui abordadas, está o cientista político estatunidense Anthony Downs. Sua contribuição à teoria política contemporânea é bastante impactante, revelando um realismo político metodologicamente indesprezivel. Considerando essa importância, descreva sinteticamente sua contribuição, nomeando sua teoria, dizendo qual é o pressuposto básico desta teoria e respondendo porque podemos dizer que ela remete ao pressuposto metodológico básico de Machiavel, o inspirador da Ciência Política moderna.

2 O filósofo e sociólogo sueco Tage Lindbom foi um analista de franqueza indiscutível sobre a cena política de seu país e seu tempo. Descreva resumidamente suas ideias, considerando o seguinte: a) qual a utopia política que lhe pareceu uma alternativa real diante da crise do capitalismo; b) que autor lhe chamou mais a atenção no inicio de sua carreira acadêmica; c) o que o levou a mudar seu entendimento inicial sobre tal utopia.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 2

NEOMARXISMO E NEOINSTITUCIONALISMO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você será capaz de:

• perceber as tentativas de dar sequência ao marxismo;

• identificar a revisão crítica ao marxismo;

• estabelecer uma compreensão inicial sobre o neoinstitucionalismo na Ciência Política;

• conhecer o debate contemporâneo sobre a democracia e sua necessidade;

• compreender a importância do papel da sociedade ante a visão tradicional do institucionalismo.

Esta Unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – GEORG LUKÁCS, ROSA LUXEMBURGO E LOUIS ALTHUSSER

TÓPICO 2 – NEOMARXISMO: HABERMAS, PRZEWORSKI, ELSTER.

TÓPICO 3 – NEOINSTITUCIONALISMO: SKOCPOL, TILLY, EVANS, HALL, NORTH, RIKERT E PUTNAM

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1

GEORG LUKÁCS, ROSA LUXEMBURGO

E LOUIS ALTHUSSER

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃONeste tópico apresentamos três autores contemporâneos da Ciência

Política de tradição marxista. Os dois primeiros autores, respectivamente, Georg Lukács e Rosa Luxemburgo vinculam-se à tradição do pensamento político marxista de fins do Século XIX e primeiras décadas do Século XX. O terceiro autor, Louis Althusser, é considerado um dos últimos pensadores do marxismo.

Os dois primeiros pensadores encontram-se envolvidos pela atmosfera da Revolução Francesa (1789), pela Comuna de Paris (1870), pela efervescência das ideias de Marx e Engels, pela Revolução Russa (1917) e, sobretudo, pelo aumento das tensões advindas da crise do capitalismo imperialista europeu que culminaria na eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) e seus resultados catastróficos dizimando milhares soldados nos campos de batalha, bem como redefinindo a geopolítica europeia.

Portanto, são autores que vivenciam profundas transformações sociais, políticas e econômicas que, de certa forma, determinaram os rumos de seus posicionamentos políticos e por extensão de suas obras. O terceiro autor, Althusser, é um autor do pós Segunda Guerra Mundial e, que presenciou nos anos 60 do século XX, sobretudo na França e na Europa, uma revolução cultural, também conhecida como Maio de 68. Tais transformações requerem uma redefinição do marxismo e de suas categorias políticas de interpretação, análise e posicionamento na conformação política da segunda metade do século XIX.

O estudo destes autores e de suas categorias de análise política é de significativa importância para a Ciência Política, entre outros motivos, pois analisam as contradições e os paradoxos presentes nas sociedades capitalistas ocidentais de fins do Século XIX e, primeiras décadas do Século XX. Estes acontecimentos, entre eles incluem-se a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, os movimentos culturais de Maio de 68, na França e em outros países, são determinantes para a compreensão das questões sociais e políticas das primeiras décadas do Século XXI. Ainda nessa direção, os estudos desses autores demonstram que o marxismo não se apresenta como uma teoria exógena ao capitalismo, mas é o resultado das próprias contradições da sociedade capitalista. Cabe ressaltar ainda, que o marxismo não se apresenta como teoria política monolítica, mas é composta por inúmeras tendências de análise revelando assim sua riqueza teórica e conceitual no diagnóstico das sociedades ocidentais contemporâneas.

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UNIDADE 2 | NEOMARXISMO E NEOINSTITUCIONALISMO

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2 GEORG LUKÁCS (1885 – 1971)Aspectos biográficos: Lukács nasceu em Budapeste, Hungria, no dia 13

de abril de 1885. Morreu em 4 de junho de 1971, na mesma cidade. O pai do pensador húngaro foi um importante dirigente da principal instituição bancária daquele país, no contexto do fim do Século XIX e início do Século XX, o que permitiu ao jovem Lukács conviver com os principais intelectuais de seu tempo. Aos 17 anos ingressou na universidade de Budapeste, doutorando-se em ciências jurídicas em 1906 e, em filosofia em 1909. Aprofundou seus estudos em Berlim, Alemanha, passou certo tempo em Florença na Itália, vindo a instalar-se posteriormente em Heildelberg, Alemanha. Em 1917 ano em que ocorreu a Revolução Russa retornou à sua cidade natal Budapeste.

FIGURA 1 – GEORG LUKÁCS

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/40/Luk%C3%A1cs_Gy%C3%B6rgy.jpg>. Acesso em: 8 out. 2019

No início do século XX, as condições sociais da Hungria apresentavam-se precárias, o que impunha à sociedade húngara e, sobretudo, a seus intelectuais a angústia diante da impossibilidade de vivenciar valores vitais em um mundo que se apresentava em crise, senão degradado. Tal condição afetava sobremaneira Lukács diante das exigências éticas de uma vida autêntica em contraposição à desértica realidade alienada e alienante. “No jovem Lukács o desespero e o desencanto levarão a uma recusa firme e decidida do mundo burguês” (FREDERICO, 1997, p. 8). Esta condição social, política, econômica e cultural que incide sobre a vida e o pensamento do pensador húngaro é fundamental, na medida em que permite aos estudiosos da “Ciência Política” compreender os movimentos constitutivos de um pensador.

Assim, primeiramente, é preciso saber que um pensador é filho de seu tempo e, como tal, esforça-se por compreender o próprio tempo em pensamento. Afinal, o esforço teórico e conceitual é o mais concreto dos trabalhos, na medida em que expressa a intenção de compreender os fenômenos que compõe o mundo em curso e a partir de tal compreensão, agir. Num segundo momento é preciso ter presente que a constituição de um pensamento, a despeito das influências de ideias e autores que sobre ele incidem resulta de um compromisso que o autor elege diante da percepção de mundo que alcança. Ou seja, pensar e desafiar-se a compreender os

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fatos, os acontecimentos, a sociedade em curso requer comprometimento com sua manutenção, reforma ou mesmo transformação. Exige uma postura coerente e ética com o mundo, uma vez que suas ideais desencadearão nos leitores, nos seguidores, formas específicas de compreensão e ação.

Nesta direção, ressalta-se que, entre outras influências, o jovem Lukács foi influenciado pela sociologia de Ferdinand Tönnies (1855-1936), Max Weber e de Georg Simmel. No campo da filosofia, a influência determinante em seu pensamento da filosofia neokantiana, surgiu na Alemanha, na segunda metade do século XIX, como reação ao idealismo alemão pós-kantiano e ao positivismo. Também exerce significativa influência no pensamento de Lukács a poesia de seu conterrâneo Endre Ady (1877-1919) caracterizada pela escrita de poemas a partir de diversas perspectivas, entre elas: erótica, política, teológica, patriótica, calvinista, entre outras.

Foi nesse contexto, de distintas influências e marcado pela revolta com o mundo burguês que Lukács desenvolveu suas concepções políticas. No prefácio da obra Teoria do Romance, de 1916, o pensador define a constituição de seu pensamento como “uma mistura formada por uma ética de esquerda e por uma epistemologia de direita” (FREDERICO, 1997, p. 8).

2.1 REVOLUÇÃO RUSSA

A Rússia do início do século XX era governada pela linhagem dos Czares, cuja origem remonta ao século XVI. Era um estado absolutista monárquico e, portanto, pautado por estruturas políticas e sociais de matriz feudal. Ainda nessa direção, a economia era majoritariamente agrária. Porém, as pressões da primeira e segunda Revolução Industrial pressionavam pela modernização das estruturas econômicas russas, o que inevitavelmente incide sobre as estruturas de políticas e de poder dos Czares. Em 1917, decorrente das contradições entre o modelo feudal vigente e os interesses burgueses em ascensão, explode a Revolução Russa. A partir da oposição ao governo dos Czares surgiu em fins do Século XIX o Partido Social Democrata Russo (POSDR), constituído por duas alas: os mencheviques e, os bolcheviques. Os mencheviques — que significa minoria (do russo, menshe) — eram compostos por membros que faziam uma intepretação fidedigna do pensamento marxista entendendo que a burguesia deveria assumir o poder e, assim, ampliar as forças produtivas ao máximo, conduzindo aos acontecimentos necessários do socialismo. Por seu turno os bolcheviques — que significa maioria (do russo bolshe) — partiam do pressuposto de que o poder deveria ser assumido diretamente pelos trabalhadores, conduzindo as transformações necessárias para dinamizar a economia russa com o intuito de diminuir, senão acabar com as diferenças sociais. Em fevereiro de 1917, os mencheviques tomam o poder. Porém, suas reformas econômicas não surtiram os efeitos esperados permitindo que em outubro de 1917, os bolcheviques, liderados por Lênin, chegassem ao poder conduzindo a implantação do socialismo soviético, que perdurou até a simbólica queda do Muro de Berlim em 1989.

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Para compreender aspectos da Revolução Russa indicamos o filme O encouraçado Potemkin, de 1925, do diretor Serguei Eisenstein. O filme retoma os primeiros levantes que desencadearam a Revolução de 1917. No centro da obra, uma revolta de trabalhadores em 1905 que, explorados a bordo de um navio, mobilizaram-se contra as péssimas condições, inclusive sanitárias. Veja o filme completo, e com legendas, no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=3i9FkLOac9s. Acesso em: 8 out. 2019.

DICAS

Revolução Russa

A Revolução Russa de 1917 foi um dos principais acontecimentos do Século XX, irrompeu durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), apesar de seus antecedentes remeterem ao ano de 1905, em que o correu a primeira tentativa revolucionária, que teve como estopim o episódio marcante conhecido como Domingo Sangrento.

O principal aspecto da Revolução Russa é ela ter sido orientada pela doutrina comunista, desenvolvida pelo filósofo alemão Karl Marx no século XIX – com a ressalva de que tal doutrina foi complementada e acrescida de um plano estratégico por aquele que se tornou o mais importante líder da revolução: Lenin.

Na virada do Século XIX para o Século XX, a Rússia era um império czarista que vinha sendo governado por mais de trezentos anos pela dinastia de Romanov, começava a sofrer pressões de ordem econômica e de ordem política. Um dos grandes problemas que a Rússia enfrentava era o atraso tecnológico. O Império Romanov ainda não havia conseguido promover transformações profundas na área da indústria e permanecia sendo uma sociedade profundamente agrária e com uma população insatisfeita, tanto camponeses e operários quanto a classe burguesa que se formava.

FONTE: <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/revolucao-russa.htm>. Acesso em: 8 out. 2019.

IMPORTANTE

No que concerne ao pensamento político de Lukács, importa ressaltar o impacto que a Revolução Russa casou em suas formulações teóricas, bem como em parte da intelectualidade europeia. Diante de uma realidade social, política e econômica devastadora e, aqui é preciso lembrar as tensões existentes naquele contexto na Europa que conduzem a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa se apresenta como um daqueles momentos especiais da história, pois “parecia mostrar o surgimento de um sujeito, “a classe operária” capaz de encarnar a promessa de libertação da humanidade” (FREDERICO, 1997, p. 8).

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No final de 1918, Lukács escreveu um artigo intitulado O bolchevismo como problema moral. Nesse artigo o pensador húngaro demonstrava simpatia pelo movimento revolucionário russo, mas também apontava para o fato de que o bolchevismo colocava o homem diante de um paradoxo ético intransponível: “podemos atingir o que é bom através de maus procedimentos, pode-se chegar à liberdade pela vida da opressão?” (FREDERICO, 1997, p. 9). Lukács posiciona-se contrário a tal condição. Ou dito de outro modo é impossível chegar à verdade mentindo. Este posicionamento do filósofo o afastava do projeto revolucionário na forma como se apresentava e o posicionava próximo daquilo que chamava de luta lenta, “aquela que trabalha a alma daquele que assume até o fim a democracia” (FREDERICO, 1997, p. 9).

Em 1918, Lukács surpreende seus interlocutores, entre eles Max Weber, Ernest Bloch, Georg Simmel, Karl Mannheim e Ferdinand Tönnies, ao filiar-se ao Partido Comunista e tornar-se um disciplinado militante político. Coerente e ativo participante do movimento comunista procurou fazer de “sua obra intelectual expressão desse movimento e, ao mesmo tempo, instrumento de intervenção consciente” (FREDERICO, 1997, p. 9). Em 1919, após a queda da monarquia húngara e a Proclamação da República Húngara, pelos revolucionários, Lukács foi nomeado vice-comissário do povo para a Cultura e a Educação Popular. O referido regime revolucionário durou apenas 133 dias. Durante esse período o intelectual militante “implementou uma política cultural democrática e pluralista, que repudiava as tentativas de instrumentalização e partidarização da cultura, que negava tanto o obreirismo [...] quanto às investidas para se tentar canonizar uma ‘arte oficial’; permaneceu assim fiel à melhor tradição marxista” (FREDERICO, 1997, p. 10).

2.2 HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Após a queda da República Húngara dos Conselhos, Lukács exilou-se em Viena até 1923. Nesse período, publicou uma de suas obras mais polêmicas, intitulada História e consciência de classe. A referida obra se circunscreve no contexto dos acontecimentos e transformações resultantes da Revolução Russa e por extensão na expectativa difusa de que o movimento revolucionário se espalhasse pela Europa. Evidentemente, esta expectativa se fundamentava numa visão mecanicista da dinâmica social, pois partia do pressuposto de que, diante das contradições do capitalismo, a revolução socialista era inevitável.

Diante de tal condição, Lukács escreve esta obra procurando demonstrar o equívoco do evolucionismo mecanicista na interpretação das contradições do capitalismo, bem como anunciando a necessidade de uma renovação das ideias e, formas de análise do marxismo como condição necessária para o enfrentamento dos desafios do tempo presente. Lukács juntamente com o filósofo Antônio Gramsci se circunscreve entre aqueles pensadores marxistas que anunciam a necessidade de uma revisão do marxismo, mas que foram relegados ao ostracismo a partir da hegemonia teórica e prática do stalinismo soviético. Porém, a intensidade do debate desenvolvido por Lukács em História e consciência de classe influenciou

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diversas correntes e escolas filosóficas a partir dos anos 30, do Século XX, entre elas: a Escola de Frankfurt com Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin e outros; o existencialismo francês de Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty, entre outros pensadores marxistas independentes como Lucien Goldmann.

O argumento central da obra História e consciência de classe é o conceito de totalidade advindo da filosofia hegeliana e refletido na teoria social marxista. Lukács se contrapõe aos pressupostos da filosofia positivista, que parte do pressuposto que os dados empíricos se explicam por si mesmos, dispensando a interpretação do contexto a partir do qual são extraídos e que os mantém integrados. A tradição hegeliana afirmava o caráter integrado dos dados que somente alcançam sentido quando articulados ao todo.

Com este movimento teórico e conceitual, Lukács procura superar as visões fragmentadas que reproduzem e justificam o contexto social paradoxal inerente ao capitalismo. Ou seja, o pensador húngaro “estabelece um vínculo entre a possibilidade de conhecimento e a situação de classe” (FREDERICO, 1997, p. 12). Ou seja, este vínculo permite o reconhecimento de situações vitais constitutivas de formas sociais de conhecimento decorrentes da consciência de classe.

Lukács demonstra que o conhecimento da sociedade como totalidade circunscrita, historicamente, não é condição que assiste à burguesia, cuja ação aleatória se circunscreve a partir de estratégias de eternização do presente e de suas contradições como forma de manutenção do capitalismo. Porém, a ausência de uma visão de totalidade da sociedade capitalista e de suas contradições também se apresenta nas classes subalternas, que possuem “uma inserção residual na estrutura econômica capitalista, como a pequena burguesia e o campesinato” (FREDERICO, 1997, p. 13).

Para Lukács, o fato determinante na trajetória do capitalismo foi a entrada do proletariado na história, sobretudo a partir da Revolução de Outubro de 1917 (Revolução Russa). Ou seja, a partir da entrada do proletariado na história é possível alcançar o conhecimento da sociedade como uma totalidade concreta. Trata-se de uma posição privilegiada que revela os mecanismos de estruturação e funcionamento da sociedade em seu todo. Coerente com os pressupostos hegelianos, Lukács considera que “o conhecimento de si mesmo e o conhecimento da totalidade coincidem, já que toda a existência do capitalismo se baseia na exploração do trabalho assalariado. O proletariado é ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu próprio conhecimento” (FREDERICO, 1997, p, 13)

Sob os pressupostos teóricos expressos na obra História e consciência de classe, a consciência é compreendida como uma forma de situar-se no mundo que se desenvolve no interior do sujeito-objeto que é a classe trabalhadora concebida como pensador coletivo. Este pensador coletivo articula a partir de suas perspectivas de mundo, “um saber social espontâneo que consegue transcender a imediaticidade falseadora do mundo burguês e, assim, interferir, por meio da ação revolucionária, no movimento da totalidade histórica” (FERREIRA, 1997, p. 13).

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2.3 TESES SOBRE A SITUAÇÃO POLÍTICA E ECONÔMICA DA HUNGRIA E SOBRE AS TAREFAS DO PC HÚNGARO

A obra História e consciência de classe exerceu significativa influência desdobrando-se em várias perspectivas analíticas. Entre elas, dissidentes dos movimentos comunistas a utilizaram para tecer críticas a forma do leninismo de interpretar o marxismo, bem como a ideologia oficial comunista implantada, sobretudo por Stalin. A crítica inspirada na obra de Lukács também dirigiu a forma da organização partidária centralizada concebida e proposta por Lênin e assumida por parte significativa dos partidos comunistas. Mas, os pensadores que refletiam a situação existencial do homem imerso na alienação, também encontraram amparo na obra de Lukács. A Escola de Frankfurt também influenciada pelas ideias de História e consciência de classe encontrou na fragmentação do mundo burguês e seus impactos nas ciências humanas o mote para seus desenvolvimentos teóricos e conceituais. A referida obra também alcançou repercussões no âmbito literário.

Mas, em 1928, Lukács apresentou uma mudança de rumo em suas ideias políticas expressas no texto Teses sobre a situação política e econômica da Hungria e sobre as tarefas do PC húngaro. Este texto foi escrito para o Segundo Congresso do Partido Comunista da Hungria realizado em 1929. Sua finalidade era contribuir com uma releitura da conjuntura mundial constitutiva de uma realidade caracterizada pela estabilidade do capitalismo e, em contrapartida pelas dificuldades do movimento revolucionário. Diante da correlação de formas políticas, econômicas e sociais naquela conjuntura, o pensador húngaro propõe o abandono da República dos Conselhos e a adoção da ditadura democrática do proletariado, cujo modus operandi deveria se concentrar nas reformas democráticas.

As teses propostas por Lukács foram derrotadas por serem consideradas muito próximas ao fascismo, que se encontrava presente na Europa, sobretudo na Itália, e que viria alguns anos mais tarde compor, junto ao Nazismo, a aliança que conflagrou a Segunda Guerra Mundial. Diante dessa derrota teórica, conceitual e prática, Lukács afastou-se das querelas internas do movimento comunista, dedicando-se com maior ênfase às questões culturais e artísticas. Evidentemente que a cultura e a arte não se apresentam como um fenômeno em si mesmo e sim um fenômeno que circunscreve no âmbito das contradições sociais e políticas.

Também vale ressaltar que os anos 1930, do Século XX, são marcados por tensões sociais e políticas advindas dos regimes totalitários, entre eles nazismo e fascismo. Ainda nesta direção, a consolidação do stalinismo na União Soviética torna o trabalho dos intelectuais marxistas, mas também de outras tendências analíticas divergentes das matrizes totalitárias de poder, difícil. Avizinha-se um estreitamento de horizontes. Os intelectuais inclinados a se posicionar contra a barbárie anunciada do nazismo viram-se na delicada posição de se refugiarem na Rússia e, por extensão, conviver com o stalinismo. Outros intelectuais insatisfeitos com o nazismo, seus limites e perseguições buscaram abrigo em outros países da Europa e Estados Unidos.

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2.4 A RENOVAÇÃO DO MARXISMO

Ao longo de toda sua vida Lukács transitou entre a filosofia política e a estética, marcadamente a literatura. Inúmeras foram as obras publicadas. Além das que já foram citadas encontramos entre elas O jovem Hegel, A destruição da razão, Ontologia do ser social. O fio condutor de seu trabalho intelectual foi a relação entre a dinâmica da vida social e seus desdobramentos no plano ideológico, sobretudo no contexto da realização tardia do capitalismo, entre fins do Século XIX e ao longo do Século XX.

O capitalismo da segunda metade do Século XIX e ao longo do Século XX foi

impulsionado e mantido pelo Estado, caracterizando-se por inúmeras experiências antidemocráticas e autoritárias. Sob tal perspectiva de análise, as experiências totalitárias do início do Século XX foram o resultado da crise do capitalismo de estado e, da necessidade de rearticulação da lógica de acumulação do capital.

Sob tais pressupostos, Lukács parte da “ideia de que nenhuma ideologia é inocente e de que o critério de avaliação para julgar um pensamento é a sua atitude favorável ou contrária à razão” (FREDERICO, 1997, p. 26). Ou seja, entre outras situações trata-se de compreender a dinâmica social capitalista e, sob quais aspectos foi capaz de produz a barbárie perpetrada pelo nazismo, que entre outras variáveis analíticas possíveis se apresenta como ataque frontal a razão e ao progresso social advogados pela Revolução Francesa.

É a partir da constatação de que o modus operandi do capitalismo conduz

necessariamente à barbárie, que Lukács se empenhou em renovar o marxismo. A renovação proposta pelo pensador húngaro “entende a teoria social de Marx como uma ontologia do ser social, isto é, como um estudo do autodesenvolvimento da vida material e espiritual” (FREDERICO, 1997, p. 27). Com isso, ele descartou toda tentativa de conferir autonomia às categorias teóricas. “As categorias são formas de ser, determinações de existência” (FREDERICO, 1997, p. 27). Essa afirmação de Marx é seguida à risca por Lukács para submeter a esfera do pensamento à realidade material.

Ainda nessa direção, segundo Lukács a perspectiva marxista assume como ponto de partida antropológico a autoformação do gênero humano como um ser social por meio do trabalho. Sob este pressuposto, o trabalho se apresenta como atividade material e espiritual que estabelece a unidade entre sujeito-objeto, do ser humano que no trabalho se constitui como humano e passa a reconhecer sua condição humana e social. Ademais, é por meio do trabalho e da conformação do conjunto de relações, que conformam o mundo no qual o humano se insere que estabelece a compreensão da realidade em sua materialidade e em sua totalidade, bem como se estabelecem os pressupostos teleológicos que passam a determinar o campo de possibilidades da liberdade humana.

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A renovação do marxismo proposta por Lukács baseia numa ontologia materialista demonstrando que é por meio da ação humana no mundo (trabalho) que a condição humana se estabelece e se realiza plenamente. Ou seja, a liberdade é o resultado da ação comum entre os seres humanos na conformação do mundo. É a partir do alcance das garantias materiais socialmente produzidas, que os seres humanos podem exercitar a liberdade. Ou dito de outra forma, a liberdade não se circunscreve individualmente, mas a partir das relações sociais e materiais estabelecidas e compartilhadas.

A vida e o pensamento político de Lukács demonstram a contrapelo de certas visões e ideologias, que o marxismo não se apresenta como um todo monolítico de aposta no alcance da igualdade pela vida da planificação estatal. Ademais, considera-se que os diversos movimentos marxistas, em sua pluralidade de ideias e concepções, são resultantes dos insolúveis paradoxos e contradições gestados no seio da ordem burguesa capitalista ao longo de seu percurso à atualidade. Negar essa condição dialética inerente ao capitalismo é manifestação de ordem totalitária ao cercear a liberdade do debate e formas diferenciais de concepção e posicionamento diante da realidade do mundo em curso. Ou sob outra perspectiva, a existência do marxismo, do socialismo, do comunismo circunscreve-se no modo de ser e de operar do próprio capitalismo.

3 ROSA LUXEMBURGO (1871-1919)Rosa Luxemburgo era filha de uma família bem situada de comerciantes

judeus poloneses. Nasceu no dia 5 de março de 1871, em Zamosc, na Polônia, na época dominada pelo Império Russo czarista. Sua infância se desenvolveu nesse contexto, o que fez com que na juventude se envolvesse nas lutas estudantis contra a repressão mantida nas escolas e, em movimentos contestatórios e revolucionários que se opunham às mais diversas formas de opressão. É sob estas condições que adere ao socialismo.

Em seu décimo nono ano de vida, após participar de uma greve geral na Polônia viu-se perseguida pela polícia obrigando-se a abandonar seu país e refugiar-se em Zurique, na Suíça. No país de seu exílio ingressou para a Universidade de Ciências Aplicadas, desenvolvendo estudo em Matemática, Direito e Economia Política. Em 1894 em parceria com o socialista lituano Leo Jogiches funda o Partido Social Democrata na Polônia (SDKP) e, em 1897, doutorou-se com tese sobre O desenvolvimento econômico da Polônia.

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Em fins do Século XIX e, nas primeiras décadas do Século XX as contradições políticas e sociais se intensificavam na Alemanha, transformando-se no epicentro da luta de classes. Em 1898, Rosa Luxemburgo mudou-se para Berlim e vinculou-se ao Partido Social Democrata Alemão (SPD), casou-se com Gustav Lubeck, socialista alemão, com o fim de obter a cidadania alemã. No ano de 1899 publica um ensaio intitulado Reforma ou Revolução. Neste ensaio, Luxemburgo teceu críticas àqueles que pretendiam alcançar o socialismo por meio de estratégia institucional pacífica. A despeito de tal posicionamento, a filósofa política marxista era adepta de reformas políticas que intensificassem a democracia, mas também consciente de que o socialismo somente seria alcançado por meio da revolução.

Em 1906, publicou o texto Greve Geral, Partido e Sindicato em que defendia a teoria de greve de massas como instrumento de intensificação da luta revolucionária. É importante salientar que Rosa Luxemburgo posicionou-se criticamente em relação aos dirigentes do Partido Social Democrata Alemão do qual fazia parte, em função do caráter burocrático com o qual conduziam o partido, bem como os pressupostos mecanicistas evolucionistas, a partir do qual correntes do marxismo concebiam que o capitalismo definharia por conta de suas próprias contradições.

FIGURA 2 – ROSA LUXEMBURGO

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/52/Rosa_Luxemburg.jpg/250px-Rosa_Luxemburg.jpg>. Acesso em: 9 out. 2019.

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3.1 FILOSOFIA DA PRÁXIS

Biógrafos e comentadores da vida e da obra de Rosa Luxemburgo são unânimes em descrevê-la como uma pessoa com sólida formação, “uma pessoa cultivada, produto de um tempo caracterizado pelo universalismo dos interesses” (LOUREIRO, 1994, p. 85). Demonstrava “interesse pela literatura, pintura, música, botânica, geologia e um amor profundo pela natureza”. (LOUREIRO, 1994, p. 85). É mulher de refinada formação burguesa “que, em luta contra um destino tipicamente feminino, escolhe não só a carreira política, mas a causa proletária; revolucionária típica do Século XIX” (LOUREIRO, 1994, p. 87). Esses traços vitais biográficos da autora são fundamentais para a compreensão de suas concepções de revolução e de democracia.

Nessa direção, Rosa Luxemburgo pode ser considerada como legítima herdeira de Marx ao incorporar o conceito de “Filosofia da Práxis”. Marx ao publicar as Teses sobre Feuerbach, na obra A ideologia alemã, anunciou a necessidade de superar dialeticamente o materialismo e o idealismo advindos do iluminismo baseados na Aufhebung, negação/conservação/superação, formulando uma nova teoria que pôde ser designada como Filosofia da Práxis. Ou seja:

Enquanto os materialistas franceses insistiam que é necessário mudar as circunstâncias para que os seres humanos se transformem, os idealistas alemães acreditavam que, ao promover uma nova consciência nos indivíduos, se modifica depois a sociedade. Contra essas duas percepções unilaterais, que conduziam ao impasse – e à busca de um “Grande Educador” ou Salvador Supremo – Marx afirma na Tese III: “A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana, ou mudança de si mesmo [Selbstveränderung], pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas enquanto práxis revolucionária”. Por outras palavras: na prática revolucionária, na ação coletiva emancipadora, o sujeito histórico – as classes oprimidas – transforma ao mesmo tempo as circunstâncias materiais e sua própria consciência (LÖWY, 2017, p. 2).

Assim, para Marx, a revolução é o único meio para o alcance da autoemancipação das classes trabalhadoras. As classes dominantes não possuem motivos para promover a emancipação dos trabalhadores, uma vez que tal condição compromete o regime de exploração e expropriação a partir do qual se extrai a “mais-valia” (o lucro) do trabalho executado e, pertencente ao trabalhador. “Isso significa que a autoemancipação revolucionária é a única forma possível de libertação: é só pela sua própria práxis, pela sua experiência na ação, que as classes oprimidas podem transformar a sua consciência, ao mesmo tempo em que subvertem o poder do capital” (LÖWY, 2017, p. 2).

Esta questão é fundamental para a compreensão de que, no pensamento de Marx, não viceja unilateralmente uma visão determinista da realidade em que a revolução é o resultado inevitável do aprofundamento das contradições do capitalismo. A revolução é o resultado das condições materiais degradantes a que os trabalhadores são lançados, e a tomada de consciência de que tais condições

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são insustentáveis. Mas, Antônio Gramsci, em Cadernos do Cárcere, iria utilizar pela primeira vez a expressão “Filosofia da Práxis” para se referir ao marxismo. [...] com essa expressão, ele define de modo preciso e coerente o que distingue o marxismo como visão de mundo específica e distancia-se radicalmente das leituras positivistas e evolucionistas do materialismo histórico” (LÖWY, 2017, p. 3).

Assim, a Filosofia da Práxis pôde ser considerada o fio condutor do pensamento e da ação de Rosa Luxemburgo, que se situou entre os poucos marxistas próximos desta perspectiva analítica, teórica e prática marxista. Seu pensamento é resultante da intensa reflexão em movimento que aprende e se enriquece com a experiência histórica. Em seus debates, no Partido Social Democrata Alemão insiste que o avanço do capitalismo, sua evolução o conduz ao desmoronamento e, que esta condição é a via histórica que conduz a instauração da sociedade socialista. Evidentemente aqui nos deparamos com uma pensadora filha de seu tempo, vinculada à variável socialista do progresso linear e inevitável presente no pensamento ocidental de forma generalizada desde o iluminismo, ou filosofia da ilustração.

Porém, a despeito da perspectiva economicista de fundo fatalista em relação ao capitalismo, o que diferencia o pensamento de Rosa Luxemburgo é sua pedagogia da ação revolucionária, assim expressa pela pensadora: “Somente no curso […] de lutas demoradas e tenazes, poderá o proletariado chegar ao grau de maturidade política que lhe permita obter a vitória definitiva da revolução” (LUXEMBURGO, 1999, p. 24). Essa posição pedagógica revolucionária de Rosa entrou em confronto com a concepção de Lênin a respeito do papel centralizado e dirigente que o partido deve exercer, conduzindo as massas no processo revolucionário. Diferentemente para Luxemburgo, é somente no conjunto das contradições e no seio dos confrontos de classe que o proletariado toma consciência da finalidade de sua luta. O movimento de tomada de consciência é endógeno, dialético, não obedece às sucessivas etapas, como queriam os marxistas bolcheviques e seus adeptos etapistas, entre as quais a organização dos trabalhadores, a conscientização e por decorrência da revolução. Todas essas etapas são partes constitutivas de um único processo que acontece cotidianamente em sua totalidade.

Ou dito de outra forma, para Rosa Luxemburgo, o partido não pode se apresentar como uma máquina científico-burocrática a determinar as etapas do processo revolucionário, tomando os trabalhadores como meros instrumentos de uma ação cientificamente estabelecida. Para a pensadora esta postura leva necessariamente a revolução a transformar-se em ditadura do núcleo dirigente, ou comitê central do partido. É nessa direção que argumenta: “É claro que a classe se pode se equivocar no decurso desse combate, mas, em última análise, “os erros cometidos por um movimento realmente revolucionário são histórica e infinitamente mais fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor ‘Comité Central’” (LUXEMBURGO, 1999, p. 41).

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Rosa Luxemburgo advoga pela liberdade das massas populares no decorrer do processo histórico universal manifestarem sua vontade em relação às classes dominantes. Evidentemente que esta manifestação livre das massas populares não se constitui de forma espontânea, mas na medida da compreensão do contexto degradante de sua real condição revelando-se na ação. Liberdade e ação são expressões da autoemancipação alcançada pelo proletariado.

3.2 REVOLUÇÃO

Assim, no conceito de Filosofia da Práxis, também no conceito de revolução Rosa Luxemburgo permaneceu próxima ao pensamento de Marx expresso na obra supracitada A Ideologia Alemã, que a autora não teve acesso, pois somente foi publicada após sua morte. Mas, Luxemburgo partiu do pressuposto de que a consciência revolucionária somente pode se expandir no decurso de um movimento prático em que a transformação das classes populares desvalidas somente pode generalizar-se na dinâmica da própria revolução.

Ou seja, seu conceito de revolução permanece coerente com a Filosofia da Práxis expressando a concepção de que a revolução é uma espécie de toupeira ardilosa que segue necessária e, pacientemente, sua marcha, independentemente de suas vitórias ou de suas derrotas. Nessa direção, Luxemburgo ressalta as derrotas como momentos de profundo aprendizado em direção ao alcance do objetivo final, a autoemancipação do proletariado. “Onde estaríamos hoje sem todas essas derrotas das quais retiramos nossa experiência, conhecimento, força e idealismo que nos animam?” (LUXEMBURGO, 1982, p. 290).

Reside no conceito de Revolução de Rosa Luxemburgo uma concepção otimista de que a revolução, independentemente de seus resultados favoráveis ou desfavoráveis, segue seu curso necessário. A trajetória da condição humana ao longo dos tempos demonstra que os seres humanos caracterizam-se por se constituírem em seres de relações de poder, que, de tempos em tempos, apresentam-se agressivos, opressores, obtusos, alienados e nestes momentos que o ímpeto revolucionário de emancipação brota, renasce das cinzas como movimento de renovação, de busca de equilíbrio nas relações de poder. Sob tais pressupostos é possível identificar uma perspectiva hegeliana no pensamento da pensadora e ativista, pois “Sabemos que para Hegel o que existiu no mundo de mais nobre e belo foi sacrificado no altar da história. Caminhamos entre ruínas. Contudo, como o símbolo da fênix que renasce das próprias cinzas, das ruínas surge o novo, purificado e transformado” (LOUREIRO, 1988, p. 63).

Para Rosa, é na experiência prática da luta dos oprimidos que se ascende a consciência revolucionária dos milhões de seres humanos deixados à margem e é preciso que o proletariado enfrente seus equívocos, suas derrotas como condição de sua libertação. Nesse sentido, a queda no abismo é um dos momentos necessários na recomposição das energias para sua superação. Tais considerações demonstram a aposta inabalável na energia e criatividade revolucionária das massas. E é esta

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constatação de uma energia criadora que faz que Luxemburgo deposite confiança nas massas proletárias vinculando a ideia de revolução e de democracia. Ou seja, para a autora a democracia real implica no alcance da igualdade de oportunidades socialmente estabelecida e, tal condição somente pode ser alcançada na medida em que o proletariado tomar o poder. “Não há democracia quando o escravo assalariado se senta ao lado do capitalista, o proletário agrícola ao lado do Junker numa igualdade falaciosa, para debaterem concertadamente, parlamentarmente os seus problemas vitais” (LUXEMBURGO, 1982, p. 274).

Ainda nesta direção, Rosa Luxemburgo defende enfaticamente que a revolução proletária necessita ser desenvolvida sob o princípio da plena liberdade que permita a autonomia das massas na definição da organização, bem como dos rumos do processo revolucionário e nas formas de organização social pós-processo revolucionário. A defesa da liberdade é fundamental para que a tirania da maioria não se estabeleça sobre a minoria, reproduzindo da forma invertida o processo de dominação e exploração sofrido pela minoria burguesa sobre a maioria proletária.

Luxemburgo alerta para o fato de que desconsiderar a liberdade como pressuposto revolucionário implica em reproduzir formas autoritárias, ditatoriais e totalitárias características das sociedades liberais burguesas, quando sentem que seu modus operandi, baseado na expropriação e exploração do trabalho alheio, na acumulação desproporcional da riqueza é questionado ou colocado em risco. Mas também de reconhecer, a partir da experiência da revolução russa, os riscos autoritários e ditatoriais que a revolução do proletariado pode alcançar quando sua energia criativa é usurpada pelo comitê central, pelo partido ou por revolucionários burocratas, que nada mais fazem que operar a partir da lógica burguesa, agora invertida.

Medidas autoritárias, terror, não são para ela solução para o aviltamento da sociedade, decorrente da dissolução da ordem burguesa. Entende que o terror é uma espada de dois gumes ou mesmo uma espada sem fio: “a mais draconiana justiça militar não só é impotente contraexplosões lumpemproletárias da sociedade, como acaba sufocando a própria energia revolucionária” (LOUREIRO, 1988, p. 64). Rosa Luxemburgo intensifica o argumento demonstrando que: “Todo regime de estão de sítio que se prolonga leva inevitavelmente ao arbítrio e todo arbítrio tem um efeito deprimente sobre a sociedade” (LUXEMBURGO, 1982, p. 237).

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3.3 DEMOCRACIA E REVOLUÇÃO

Rosa Luxemburgo não se apresenta como uma autora que defende a democracia como um valor universal ou resultado de consenso da maioria no seio de uma sociedade burguesa que opera diuturnamente, mecanismos de manutenção de concentração de renda e riqueza, promovendo a desigualdade social com sua marca distintiva. Sob tais pressupostos numa sociedade desigual, as formas de representação e de disputa de interesses no espectro político também se apresentam desiguais. É sobre esses pressupostos que é preciso reconhecer a falácia da democracia burguesa apresentada como consenso da maioria. Ainda nessa direção, também os bens culturais e a educação são distribuídos de forma desigual, circunscrevendo de forma distinta o horizonte de possibilidade de compreensão e ação das classes subalternas em relação às classes privilegiadas. Assim, novamente é preciso reconhecer a falácia da democracia burguesa expressa na liberdade de opinião. E ainda, de forma mais contundente, se trata de reconhecer que é no seio das democracias burguesas que se instaura de forma virulenta as mais intensas experiências de poder totalitárias, ditatoriais e coercitivas sob o manto da defesa da liberdade, ou seja, Rosa Luxemburgo não se apresenta como idolatra da democracia formal burguesa, pois se trata de reconhecer sob o manto da igualdade e da liberdade formais, a desigualdade e a exploração sociais. Porém, para a pensadora, tal condição não implica em desconsiderar, ou mesmo rejeitar a liberdade e a igualdade, mas em “incitar vivamente a classe operária a não se contentar com a pele, mas a conquistar, ao contrário, o poder político para encher a casca com um novo conteúdo social” (LUXEMBURGO, 1982, p. 240).

Nesta perspectiva, o que está em jogo para Rosa é transpor a democracia burguesa, substituí-la pela democracia socialista. Reitere-se que, para a pensadora, não se trata de negar a democracia como um valor, mas de desmobilizar as falácias da forma da democracia burguesa a partir da dinâmica revolucionária do proletariado. Tal condição significa que a revolução proletária, distintamente das revoluções burguesas, não deve recorrer ao terror, ao derramamento de sangue, à ditadura, à tortura e ao crime político. Porém, Luxemburgo tem ciência e não descarta o uso do poder coercitivo diante do fato de que a burguesia não renunciará a seus privilégios, a sua forma de exploração e obtenção de mais valia.

Mas, o fio condutor da relação entre revolução e democracia no pensamento de Rosa Luxemburgo reside no fato de que a revolução somente pode ser vitoriosa se apoiada pela maioria do proletariado conquistada a partir da consciência e da coerência da ação política e da ação sindical. Não se trata de compor uma maioria amorfa, ou ludibriada com promessas para moldar a sociedade e o mundo à força a partir de ideias de uma minoria. É a defesa sob toda e qualquer circunstância da iniciativa criadora das massas populares, pois são elas o único e legítimo sujeito da história.

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Advoga ainda pela importância das instituições representativas, entre elas os Parlamentos e as Assembleias representativas, pois em períodos revolucionários deixam de ser meras instâncias burocráticas para se transforarem em representantes dos anseios populares. “Por sua efervescência e seu ardor, a revolução cria justamente essa atmosfera política leve, vibrante, receptiva, na qual as vagas do estado de espírito popular, as batidas do coração da vida do povo vêm agir instantaneamente, de maneira maravilhosa, sobre os organismos representativos” (LUXEMBURGO, 1982, p. 229).

Assim, o movimento e as reivindicações do proletariado ao pressionarem constantemente as instâncias e instituições da democracia representativa as tornam atuantes. Mesmo reconhecendo os limites das instituições democráticas burguesas, não se trata de eliminá-las, ou de eliminar a democracia. Para a autora, tal condição, “obstrui, com efeito, a única fonte viva a partir da qual podiam ser corrigidas as insuficiências congênitas das instituições sociais: a vida política enérgica, sem entraves, ativa, das mais largas massas populares” (LUXEMBURGO, 1982, p. 230).

Ou seja, as massas populares somente podem alcançar sua autoemancipação caso haja liberdades democráticas, entre elas, a imprensa livre, o direito de associação, de reunião, de expressão de ideias e da participação em debates de interesse público. Assim, a democracia é fundamental para o exercício de uma vida política livre, em que as massas — o proletariado — podem se educar e constituir uma adequada visão de mundo. Sob tais pressupostos, Rosa Luxemburgo chama atenção para o fato de que enquanto a dominação da burguesia não requer a educação política da massa, “para a ditadura do proletariado esta educação é o elemento vital, o ar sem o qual não pode existir” (LUXEMBURGO, 1982, p. 65).

PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

A Primeira Guerra Mundial foi um marco na história da humanidade. Foi a primeira guerra do século XX e o primeiro conflito em estado de guerra total — aquele em que uma nação mobiliza todos os seus recursos para viabilizar o combate. Estendeu-se de 1914 a 1918 e foi resultado das transformações que aconteciam na Europa, as quais fizeram diferentes nações entrar em choque. O resultado da Primeira Guerra Mundial foi um trauma drástico. Uma geração de jovens cresceu traumatizada com os horrores da guerra. A frente de batalha, sobretudo a Ocidental, ficou marcada pela carnificina vivida nas trincheiras e um saldo de 10 milhões de mortos. Os desacertos da Primeira Guerra Mundial contribuíram para que, em 1939, uma nova guerra acontecesse.

FONTE: <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/primeira-guerra.htm>. Acesso em: 9 out. 2019.

IMPORTANTE

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Em 1914, a Alemanha se envolveu diretamente na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Rosa Luxemburgo se opôs veementemente a essa guerra. A Alemanha saiu derrotada e fragilizada do conflito, o que faz com se estabelecesse uma convulsão social. Nesse contexto, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht envolveram-se no conflito liderando o movimento dos spartaquistas que tomou Berlim sob seu comando com ajuda de soldados e marinheiros amotinados. O movimento foi controlado e a insurreição debelada. Em 15 de janeiro de 1919, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo foram assassinados por forças governamentais.

Indicamos o filme Feliz Natal (2005) — uma ficção sobre o Natal de 1914, em plena Primeira Guerra Mundial. O filme mostra a neve e os presentes das famílias e do exército, os quais ocupam as trincheiras francesas, escocesas e alemãs, envolvidas no conflito. Durante a noite os soldados saem de suas trincheiras e deixam seus rifles de lado, para apertar as mãos do inimigo e confraternizar durante o Natal. Gesto suficiente para mudar a vida de um padre anglicano, um tenente francês, um grande tenor alemão e sua companheira, uma soprano.

FONTE: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-56539/>. Acesso em: 9 out. 2019.

DICAS

4 LOUIS ALTHUSSER (1918 – 1990) Louis Althusser nasceu em Birmandreis na Argélia, em 16 de outubro de

1918. Sua família foi marcada pela Primeira Guerra Mundial. Seu nome é uma homenagem ao tio paterno que tombou numa das batalhas daquele conflito. Com a morte do seu pai, a mãe se muda com os filhos para Marseille na França, onde, no ano de 1937, Althusser se vincula ao movimento da Juventude Católica. Louis Althusser possuía um desempenho excepcional nos estudos, o que lhe rendeu o aceite para desenvolver seus estudos no prestigiado École Normale Supérieure (ENS), em Paris. Porém, ao estourar a Segunda Guerra Mundial, Althusser é convocado para servir o exército francês. Numa das batalhas contra o exército Alemão é aprisionado na Alemanha, permanecendo no cativeiro até o fim da guerra.

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FIGURA 3 – LOUIS ALTHUSSER

FONTE: <https://cdn-ed.versobooks.com/blog_posts/000003/713/althusser-.jpg>. Acesso em: 9 out. 2019.

Com o término da Segunda Guerra Mundial Althusser pôde frequentar a École Normale Supérieure. Porém, sua saúde mental se apresentava debilitada, exigindo tratamentos ao longo de toda sua vida. Tal era sua debilidade que a École Normale Supérieure permitiu que morasse num de seus aposentos por longos anos. Em 1946 Althusser estabeleceu vínculos afetivos e conjugais com Hélène Rytmann, de origem judaico-lituana e de posicionamento revolucionário. Em 1948, filiou-se ao Partido Comunista Francês. Em 16 de novembro de 1980, Hélène Rytmann foi morta por estrangulamento pelo filósofo, ao que tudo indica após um surto psicótico.

Althusser é considerado por estudiosos e especialistas, um dos últimos grandes filósofos do marxismo do Século XX. “pregava a autonomia da teoria marxista, da qual pretendia fazer uma ciência da política articulada ao princípio do materialismo dialético. Assim, distinguia essa teoria de uma filosofia da consciência fundada no sujeito” (ROUDINESCO, 2007, p. 164). Porém, é reconhecido como filósofo do marxismo a partir de 1965 com a publicação das obras Por Marx e Ler o Capital. Além destas duas obras o filósofo publicou outras de significativa importância, entre elas: Freud e Lacan (1965); Lenin e a filosofia (1968); Aparelhos ideológicos de Estado (1970); Resposta a John Lewis (1972); Elementos de autocrítica (1973); Posições e Marx e Freud (1976); também escreveu uma intensa crítica ao Partido Comunista Francês em 1978, intitulado O que não pode mais durar no PCF. Escreveu também duas autobiografias: Os Fatos, de 1976, e O futuro dura muito tempo, de 1985, ambas publicadas depois de sua morte em 1990.

Importante salientar que Althusser influenciou significativamente filósofos pós-estruturalistas como Michel Foucault, Jacques Lacan, e Jacques Derrida, pensadores centrais nos estudos psicanalíticos, sociais e literários produzidos na Europa e nos EUA durante a década de 1970.

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4.1 CRÍTICA AO MARXISMO ROMÂNTICO

Althusser é um crítico das versões do marxismo romântico que se constituíram nos anos 60 do século XX. Até meados do Século XX o debate no interior do marxismo norteava-se pela questão da emancipação social. Estes debates eram norteados por pensadores como Lênin, Trotski, Rosa Luxemburgo, Kautski, entre outros. Suas preocupações e temáticas vinculavam-se a questões como imperialismo, internacionalismo, revolução, reforma, contrarrevolução, organização partidária e sindical. Após a Segunda Guerra Mundial estas pautas de debate perdem intensidade, em parte em função dos rumos que a Revolução Russa assumiu no período de Stalin, configurando-se como um regime autoritário, bem como numa espécie de capitalismo planificador de Estado.

Questões vinculadas às lutas dos trabalhadores pela conquista de direitos, ao colonialismo, que na fase anterior eram subsumidas no interior das grandes temáticas e debates marxistas começaram a questionar tal condição e assumiram a proeminência do debate gerando uma série de novas correntes de pensamento e discursos teóricos específicos, entre eles: o pós-estruturalismo, o desconstrutivismo e o pós-modernismo. Este movimento se consolidou na França dos anos 1970 e entre os principais pensadores do período encontram-se: Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard, Giles Deleuze.

Sob tais pressupostos, cabe salientar que os anos 1960 representaram um movimento de ruptura com as grandes temáticas do marxismo da primeira metade do Século XX, bem como o deslocamento dos debates em torno dos movimentos sociais, e da constituição das teorias sociais contemporâneas. Conceitos como classe social e luta de classes perdem força e ascendem conceitos vinculados às questões culturais e identitárias constitutivas dos debates setoriais até os dias de hoje.

Pode-se dizer que a experiência política gerada nos 1960 representou, nesse sentido, um importante momento de inflexão, ou ainda, uma espécie de divisor de águas para se entender esse deslocamento ocorrido no horizonte dos movimentos e teorias sociais contemporâneas, de baixa do conceito de classe e alta das concepções culturais de identidade, em decorrência do rompimento de ativistas e teóricos com o marxismo — algo que é, por sua vez, vigente ainda hoje em diversas manifestações e debates ligados às pautas setoriais. Amplamente reconhecido como o momento de explosão dos “novos movimentos sociais”, os anos 1960 foram uma década de grande efervescência política e cultural, fruto do período de modernização social geradas no capitalismo pós-guerra (prosperidade econômica, auge das políticas do Estado de Bem-Estar Social, etc.), que marcou o mundo por ter aberto espaço para inúmeras demandas sociais — defesa dos direitos civis, a luta feminista, ecológica, anticolonial, contra a segregação racial, pela liberdade sexual — aliando a força do protagonismo da juventude com a dos movimentos de trabalhadores em diversos países (MARCELINO, 2016, p. 2).

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MAIO DE 1968

Os protestos de maio de 1968 foram iniciados por movimentos estudantis insatisfeitos com o sistema educacional francês e espalharam-se pelo país, mobilizando milhões de pessoas. Ficou internacionalmente conhecido por ter sido um período de efervescência social com protestos que se alastraram pelo país e chegaram a abalar a ordem da Quinta República Francesa (iniciada em 1958). O Movimento de Maio de 1968 também ficou internacionalmente conhecido por ter motivado a continuidade de movimentos revolucionários em outras partes do mundo.

Antecedentes – As manifestações e agitações sociais da França em maio de 1968 estão inseridas dentro de um contexto global extremamente tenso. Ideais revolucionários atuavam em diversas partes do mundo. Um primeiro destaque pode ser feito para a Guerra do Vietnã, travada entre EUA e os norte-vietnamitas de 1959 a 1975. A Guerra do Vietnã, em 1968, encontrava-se exatamente em sua fase mais violenta, iniciada com a Ofensiva do Tet, essa ofensiva foi organizada pelos exércitos norte-vietnamitas com o objetivo de forçar a retirada das tropas americanas. Apesar de ter sido um fracasso militar, foi a responsável por criar uma imagem extremamente negativa do governo dos EUA.

As imagens dos combates e das violências cometidas pelas tropas americanas espalharam-se pelo mundo e motivaram protestos tanto nos EUA quanto na Europa. Além disso, em abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado. Sua morte provocou inúmeras revoltas nos EUA e, claro, também se refletiu nos grupos estudantis da França.

Outro evento importante que estava em curso desde o início de 1968 e que repercutia nos meios estudantis franceses eram os acontecimentos da Primavera de Praga. Na extinta Checoslováquia acontecia uma tentativa do governo de realizar reformas no país no sentido de romper com o autoritarismo imposto pelos soviéticos. Os acontecimentos em Praga eram acompanhados de grande mobilização estudantil. Por fim, vale o destaque para a luta armada revolucionária que estava em curso nos países sul-americanos contra as ditaduras militares instaladas em diversos países, além da luta revolucionária que era travada no continente africano, que estava em seu processo de descolonização. Esses movimentos revolucionários repercutiam bastante nos movimentos estudantis franceses, que eram muito influenciados pelo marxismo trotskista e maoista. Todo esse contexto colocava os grupos estudantis franceses em um grande estado de efervescência, que acabou tendo o seu gatilho acionado com reformas propostas pelo governo francês para o sistema educacional do país.

FONTE: <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/maio-1968.htm>. Acesso em: 9 out. 2019.

NOTA

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Althusser encontra-se situado no intercurso destes movimentos dos anos 1960. Crítico das versões românticas do marxismo característico dessa década, mas, sobretudo, do humanismo marxista da Escola de Frankfurt e do existencialismo marxista de Jean-Paul Sartre. Tais movimentos interpretavam Marx como sendo o teórico por excelência da alienação produzida sob as condições de vida do sistema econômico capitalista.

Filósofo do marxismo mais que filósofo marxista, assinalava que a prática revolucionária e, portanto, o engajamento subjetivo, era irredutível à consciência de si. Daí sua crítica ao humanismo clássico. Daí sua valorização de um anti-humanismo teórico e de uma concepção de história como um “processo sem sujeito nem fim (ROUDINESCO, 2007, p. 164).

Para o pensador francês, o marxismo romântico comprometia do cientificismo desenvolvido por Marx. Reconhecendo o fato de que Marx tenha se concentrado em questões como a alienação, Marx no último período de sua obra concentrou seus esforços na análise científica do modo de produção capitalista e, nas formas de organização social dele decorrentes. Assim, na análise do pensador francês, Marx situa uma viragem epistemológica superando perspectivas românticas de análise em direção a um maior rigor científico presente, sobretudo na obra O Capital.

Nessa obra, Marx examina detalhadamente a estrutura econômica do capitalismo, desenvolvendo um novo tipo de ciência que além de compreender o capitalismo em sua estrutura de funcionamento permite a compreensão de aspectos centrais do desenvolvimento deste sistema econômico. Nessa perspectiva de análise, ao enfatizar a cientificidade do pensamento do último Marx, Althusser chama atenção para os limites das ideias e conceitos forjados por Friedrich Engels, parceiro intelectual de Marx ao longo de toda sua vida. Conceitos como a teoria do progresso dialético da história, e a noção de que o todo determina as partes, são irrelevantes cientificamente.

Althusser também colocou sob o crivo de sua análise o par conceitual dicotômico, infraestrutura e superestrutura, procurando demonstrar os limites destes conceitos para a compreensão da complexidade do modo de produção capitalista. Nesta direção, os substituiu pelos conceitos de contradição e determinação, procurando com tal movimento conceitual demonstrar que o capitalismo é um modo de produção inerentemente contraditório. Esta contradição se circunscreve entre outras variáveis nos fatos de que os trabalhadores lutam como os capitalistas, e os interesses privados se sobrepõem constantemente aos interesses públicos.

A despeito do reconhecimento e da valorização da viragem epistemológica do último Marx no estabelecimento de uma interpretação científica do capital, Althusser entende que a análise marxista necessita constantemente ultrapassar a preocupação primária com a análise econômica, na medida em que o capitalismo é um sistema de produção constante de contradições políticas, ideológicas e

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econômicas, que se interpenetram, se influenciam constituindo a conflitiva sociedade capitalista. Sob tais perspectivas, Althusser se aproxima de aspectos teóricos e conceituais dos movimentos da “nova esquerda” pós anos 1960.

Como Canguilhem e como Foucault, e ao mesmo tempo apoiando-se em uma teoria do inconsciente freudiano revisitada por Lacan, fustigava todas as formas de psicologia do comportamento para ressaltar que a prática política só fazia sentido por ser a expressão de uma filosofia do conceito capaz de se desvincular da metafísica especulativa para se tornar, pela luta, o instrumento da luta de classes na teoria. [...]. Fora por intermédio de seu amigo Jacques Martin, filósofo e normaliano, que Althusser descobrira as obras de Cavaillès e de Canguilhem que o iriam levar a propor sua leitura de Marx e assim operar a junção entre uma filosofia do conceito e uma filosofia do engajamento. Foi igualmente por intermédio de Martin que conhecera Foucault, de cujos trabalhos seria o orientador na ENS, ao mesmo tempo que estreitava com ele laços urdidos por uma vinculação comum com a história da loucura. Seria a Matin, enfim, que dedicaria o seu Em favor de Marx [...] (ROUDINESCO, 2007, p. 164-165).

4.2 A IDEOLOGIA E OS APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO

Para além das perspectivas de análise do marxismo já apresentadas, Althusser confere uma das mais importantes contribuições ao marxismo na conformação da teoria da ideologia. Para o pensador francês a ideologia se constitui como formas de interpretação da realidade que distorcem e impedem a consciência individual de ter acesso aos fatos e a realidade de forma consistente. Em seu famoso texto, Aparelhos Ideológicos de Estado, Althusser inicia distinguindo as concepções de Estado presentes em Marx, Engels e Lênin classificando-as como teorias formais, nas quais o Estado é concebido especificamente como instrumento das classes dominantes, cuja principal função é a repressão como forma de garantia da dominação. No entanto, Althusser chama a atenção de que a prática política destes pensadores demonstra que suas concepções de Estado eram muito mais complexas e articuladas, do que as constantes em suas reflexões e textos escritos.

Portanto, não se trata de negar a teoria do Estado presente nestes pensadores, mas de reconhecer que tinham ciência das diferenças teóricas, conceituais e práticas entre Poder de Estado e Aparelhos de Estado. Porém, apesar do conhecimento dessa distinção, não alcançaram êxito na formulação de uma teoria de Estado que o contemplasse em toda sua complexidade. Althusser ainda argumenta que a experiência acumulada de luta de classes, desenvolvida pelo proletariado havia permitido Marx, Engels, Lenin e até mesmo Mao-tse Tung a reconhecerem a complexidade do Estado. Assim, diante de tal condição, Althusser se propõe a desenvolver uma teoria do Estado que aglutine estas descrições promovendo um avanço na compreensão do Estado. Assim, nas palavras do filósofo:

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Sabemos muito bem a qual gênero de objeção estamos nos expondo já que não poderemos apresentar qualquer proposição que já não tenha sido consignada nos protocolos da prática política da luta de classe proletária. Poderemos, portanto, em cada instante, dizer-nos que não trazemos nada absolutamente de novo e, em certo sentido, teremos toda a razão. No entanto, pensamos trazer algo de novo que é, sem dúvida, pouca coisa já que diz respeito apenas à colocação em forma teórica de algo já reconhecido na prática da luta de classes proletária. Mas sabemos, pelos mesmos clássicos, que essa pouca coisa (a colocação em forma teórica da experiência prática da luta de classes) é, ou pode ser, muito importante para a própria luta de classes (ALTHUSSER, 1999, p. 101-102).

Althusser propõe a distinção entre Poder de Estado, Aparelhos de Estado e, Aparelhos Ideológicos de Estado, que são constitutivos das estratégias de conformação da realidade social. Assim, Althusser concebe como Aparelho Repressor de Estado, o que os teóricos concebiam como Aparelho de Estado e, os Aparelhos Ideológicos de Estado como constitutivos da superestrutura e que se distingue do Aparato Repressor coercitivo do Estado. É nessa direção que seus esforços se constituem como forma de contribuição para o desenvolvimento da teoria marxista de Estado, a partir da formulação da Teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Nesta direção, Althusser define na seguinte perspectiva os AIE:

Um Aparelho ideológico de Estado é um sistema de instituições, organizações e práticas correspondentes, definidas. Nas instituições, organizações e práticas desse sistema é realizada toda a Ideologia de Estado ou uma parte dessa ideologia (em geral, uma combinação típica de certos elementos). A ideologia realizada em um AIE garante sua unidade de sistema “ancorada” em funções materiais, próprias de cada AIE, que não são redutíveis a essa ideologia, mas lhe servem de “suporte”. (ALTHUSSER, 1999, p. 104).

Na perspectiva de Althusser, os Aparelhos Ideológicos de Estado são constituídos como sistemas constituídos por instituições e organizações que agem predominantemente da disseminação de ideologias. Ainda, nesta direção Althusser chama atenção para a distinção entre público e privado, afirmando que esta distinção diz respeito aos interesses burgueses se estabelecendo juridicamente. Ou seja, na prática de luta de classes, a distinção jurídica permite aos burgueses o controle, a partir da instituição púbica do judiciário, preservar seus interesses privados sobre a condição pública. Assim, Althusser insiste no argumento de que o Estado e seus aparelhos repressivos e ideológicos são instrumentos da burguesia — que se constitui como classe dominante circunscrevendo no direito constitucional suas garantias.

Não é, portanto, a distinção privado/público que pode atingir nossa Tese sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Todas as instituições privadas citadas, quer sejam propriedade do Estado ou de tal particular, funcionam, por bem ou por mal, enquanto peças de Aparelhos ideológicos de Estado determinados sob a Ideologia de Estado, a serviço da política do Estado, o da classe dominante, na forma que lhes é própria: a de Aparelhos que funcionam de maneira predominante por meio da ideologia — e não por meio da repressão, como o Aparelho repressor de Estado. Essa ideologia é, como já indiquei, a Ideologia do próprio Estado (ALTHUSSER, 1999, p. 107).

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Na constituição de sua teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado Althusser chama atenção para o reconhecimento do paradoxo de que não são as instituições que produzem ideologias, mas determinados aspectos de uma ideologia de Estado que alcançam efetividade em instituições específicas. Deste argumento se desdobra a observação de manifestação de outras formas ideológicas além da ideologia de Estado. Assim faz a distinção entre a Ideologia de Estado que se constitui e se realiza nos Aparelhos Ideológicos de Estado e na ideologia produzida e difundida no interior dos próprios aparelhos de Estado, o que lhe permite a classificação entre Ideologia Primária realizada pelo Estado e Ideologia Secundária que se constitui como subproduto da prática a partir da qual se realiza a Ideologia Primária. Assim:

[...] as ideologias secundárias são produzidas por uma conjunção de causas complexas nas quais figuram, ao lado da prática em questão, o efeito de outras ideologias exteriores, de outras práticas exteriores — e, em última instância, por mais dissimulados que se encontrem, os efeitos mesmo longínquos, na realidade, muito próximo, da luta de classes (ALTHUSSER, 1999, p. 110).

Althusser, ao constituir a Teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado, amplifica a teoria marxista de Estado demonstrando que as classes detentoras do Poder de Estado colocam em curso sua política de classe através dos Aparelhos Repressores e Ideológicos produzindo contradições e paradoxos sociais que alimentam a luta de classes. Sob tais pressupostos, Althusser estabelece íntima relação entre sua concepção de Estado com a luta de classes. Ou dito de outra forma, o que está em jogo na disputa do Estado é o controle de seu Aparelho Repressor e dos Aparelhos Ideológicos de Estado como forma de dar garantias de sustentabilidade a hegemonia do poder burguês sobre a classe trabalhadora. Aparelhos Repressores ou Coercitivos de Estado e Aparelhos Ideológicos de Estado constituem a unidade do Estado como instrumento de manutenção das estratégias de expropriação e exploração de classe.

Ao formular a teoria dos AIE enfatiza, mais uma vez, a importância da ideologia que opera no imaginário das massas, cujo conteúdo e poder incidem sobre o inconsciente dos indivíduos alimentando crenças, desejos e fantasias. Tal perspectiva de análise vincula Althusser às pesquisas da psicanálise de Freud e de Lacan. Freud estabelece que a ideologia apresenta texturas inconscientes, dimensões emotivas que se vinculam à existência individual, tal como a esperança e o medo. Em relação à psicanálise de Lacan inspira-se na noção de imaginário, que consiste num mundo de espelhos e de ilusões que se organizam em imagens e fantasias constitutivas de cada indivíduo e relativamente aos outros.

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RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico, você aprendeu que:

• Lukács é um filósofo húngaro nascido em 1885 e falecido em 1971.

• No início do Século XX, as condições sociais da Hungria apresentavam-se precárias, o que impunha à sociedade húngara e, sobretudo a seus intelectuais, a angústia diante da impossibilidade de vivenciar valores vitais em um mundo que se apresentava em crise, senão degradado.

• A Revolução Russa (1917) causou significativo impacto em suas em suas formulações teóricas, bem como em parte da intelectualidade europeia.

• Em 1918 Lukács escreveu um artigo intitulado: O bolchevismo como problema moral, no qual o pensador húngaro demonstrava simpatia pelo Movimento Revolucionário Russo.

• Lukács também apontava para o fato de que o bolchevismo colocava o homem diante de um paradoxo ético intransponível: podemos atingir o que é bom através de maus procedimentos, pode-se chegar à liberdade pela vida da opressão?

• Lukács foi filiado ao Partido Comunista e um disciplinado militante.

• Escreveu História e consciência de classe procurando demonstrar o equívoco do evolucionismo mecanicista na interpretação das contradições do capitalismo, bem como anunciando a necessidade de uma renovação das ideias e, formas de análise do marxismo como condição necessária para o enfrentamento dos desafios do tempo presente.

• Foi a partir da constatação de que o modus operandi do capitalismo conduzia necessariamente a barbárie que Lukács se empenhou em renovar o marxismo.

• A renovação proposta pelo pensador húngaro entende a teoria social de Marx como uma ontologia do ser social, isto é, como um estudo do autodesenvolvimento da vida material e espiritual.

• Rosa Luxemburgo foi uma pensadora e ativista política, nascida em 1871 e assassinada em 1919.

• É considerada como legítima herdeira de Marx ao incorporar o conceito de Filosofia da Práxis.

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• O pensamento de Rosa Luxemburgo é resultante da intensa reflexão em movimento que aprende e se enriquece com a experiência histórica. Insiste que o avanço do capitalismo, sua evolução o conduz ao desmoronamento e, que esta condição é a via histórica que conduz a instauração da sociedade socialista.

• Para Luxemburgo, o partido não pode se apresentar como uma máquina científico-burocrática a determinar as etapas do processo revolucionário, tomando os trabalhadores como meros instrumentos de uma ação cientificamente estabelecida. E que esta postura leva necessariamente a revolução a transformar-se em ditadura do núcleo dirigente, ou comitê central do partido.

• Para Rosa Luxemburgo, é na experiência prática da luta dos oprimidos que se ascende a consciência revolucionária dos milhões de seres humanos deixados a margem e, é preciso que o proletariado enfrente seus equívocos, suas derrotas como condição de sua libertação.

• Louis Althusser, nasceu em 1918, e faleceu em 1990.

• Althusser é um crítico das versões do marxismo romântico que se constituíram nos anos 60 do século XX.

• A partir dos anos 60 do século XX, questões vinculadas às lutas dos trabalhadores pela conquista de direitos, ao colonialismo, que, entre fins do século XIX até o fim da Segunda Guerra Mundial, eram subsumidas no interior das grandes temáticas e debates marxistas começaram a questionar tal condição e assumiram a proeminência do debate gerando uma série de novas correntes de pensamento e discursos teóricos específicos, entre eles: o pós-estruturalismo, o desconstrutivismo e o pós-modernismo.

• Althusser entende que analise marxista necessita constantemente ultrapassar a preocupação primária com a análise econômica, na medida em que o capitalismo é um sistema de produção constante de contradições políticas, ideológicas e econômicas, que se interpenetram, se influenciam constituindo a conflitiva sociedade capitalista.

• Althusser se aproxima de aspectos teóricos e conceituais dos movimentos da “nova esquerda” pós anos 60. E ao constituir a Teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado, amplifica a teoria marxista de Estado demonstrando que as classes detentoras do Poder de Estado colocam em curso sua política de classe através dos Aparelhos Repressores e Ideológicos produzindo contradições e paradoxos sociais que alimentam a luta de classes.

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AUTOATIVIDADE

1 Porque, para Lukács, a entrada do proletariado na história é um fato determinante na trajetória do capitalismo?

2 Qual é a importância da constituição da Teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado no pensamento de Althusser?

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TÓPICO 2

NEOMARXISMO: HABERMAS,

PRZEWORSKI, ELSTER

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOPrezado acadêmico!

Neste tópico apresentaremos três influentes autores contemporâneos da Ciência Política, que tiveram o empenho de promover uma releitura crítica da chamada teoria marxista. As ideias de Karl Marx exerceram importante influência nos movimentos políticos libertários, revolucionários e democráticos que moldaram a conformação política do Século XX no Ocidente.

De todo modo, essas ideias sofreram críticas, correções e atualizações. Por um lado, algumas foram marginalizadas pelo caráter anacrônico ou equivocado de suas proposições, outras foram renovadas, mantendo, em boa medida, o caráter essencial da análise do filósofo alemão novecentista. A renovação e a crítica aparecem na obra dos autores cujo pensamento apresentamos neste tópico.

O primeiro autor é o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, expoente da importante Escola de Frankfurt, pode ser considerado um dos principais ícones do pensamento democrático radical durante as últimas décadas no Século XX. Na sequência, apresentamos as proposições do cientista político polonês Adam Przeworski, radicado nos EUA. Sua contribuição mais notável é a crítica ácida ao pensamento revolucionário dos marxistas e a defesa radical da socialdemocracia. E, por último, apresentamos o cientista político norueguês, John Elster. Sua contribuição mais original está em sugerir a compreensão motivacional dos indivíduos, por isso também reconhecido como neoinstitucionalista.

2 JÜRGEN HABERMAS E A RADICALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

Jürgen Habermas nasceu em 18 de junho de 1929, na cidade de Düsseldorf, capital da Renânia do Norte — Westfália, Alemanha. É considerado o maior expoente da Filosofia alemã da segunda metade do Século XX. Habermas está entre os autores que se dedicaram profundamente na construção da teoria social crítica, desenvolvida a partir dos anos 1920 no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, de onde vem a conhecida denominação da “Escola de Frankfurt”. Os fundadores dessa tradição teórica foram os antecessores, Herbert Marcuse, Max Horkheimer e Theodor Adorno, enquanto Habermas é da segunda geração. Ele

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formulou importantes tratados para a composição da chamada “teoria crítica”, contribuindo decisivamente para o debate democrático no Ocidente, sobre as possibilidades e os constrangimentos à liberdade na sociedade contemporânea. Sua obra tem proeminente influência nos estudos de Filosofia, Sociologia, Ciência Política, Comunicação, Direito, Religião, Teologia e Linguística.

Aos 10 anos, Habermas entrou para a Juventude Hitlerista, o que aconteceu com muitos de seus contemporâneos. Nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial, já com 15 anos, ele foi enviado para a Frente Ocidental. Depois do fim da Guerra, em 1945, cursou o Ensino Médio e na sequência estudou nas Universidades de Bonn, Göttingen e Zurique. Em 1954, recebeu o título de PhD em Filosofia, em Bonn, apresentando tese sobre o filósofo Friedrich Schelling. Dois anos mais tarde, começou a trabalhar como assistente acadêmico de Theodor Adorno no Institute for Social Research. Saiu desse instituto em 1959, ano em que iniciava seu segundo doutoramento, concluído dois anos depois na Universidade de Marburg, onde chegou a lecionar em seguida. Sua tese intitulada Mudança estrutural da esfera pública (tradução do alemão Strukturwandel der Öffentlichkeit), foi transformada em livro, publicado em 1962. Ainda nesse ano, foi nomeado professor extraordinário na Universidade de Heidelberg, sucedendo ao filósofo Max Horkheimer. Tendo ainda passado pela Universidade J. W. Goethe, trabalhou dez anos no Instituto Max Planck, em Starnberb, até voltar para Frankfurt, onde se aposentou, em 1994. Posteriormente lecionou em universidades estadunidenses.

Habermas foi ativo participante de debates sobre o futuro pós-guerra da política na então Alemanha Ocidental. Em 1953, protagonizou um importante confronto intelectual com o filósofo Martin Heidegger, criticando seu passado de simpatia ao nazismo. Entre as décadas de 60 e 80, foi um combatente nos movimentos antinucleares, tornando-se, por extensão, um dos principais ícones do movimento estudantil em seu país e fora dele. Mas rompeu com o movimento, ainda em fins dos anos de 1970, alertando sobre os riscos de um "fascismo de esquerda".

Alemanha Ocidental fora o nome atribuído à parte (evidentemente) ocidental de uma Alemanha geopoliticamente dividida em duas. Enquanto o lado ocidental permaneceu no capitalismo democrático, a Alemanha Oriental fez parte do bloco comunista da antiga URSS. Essa divisão durou até a queda do Muro de Berlim, em 1989, quando houve a histórica reunificação alemã e o fim do bloco dos países comunistas liderados por Moscou.

IMPORTANTE

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Nos anos 1980, Habermas participou dos debates sobre a culpa da Alemanha acerca das guerras mundiais, assim como alertou para os riscos de um novo nacionalismo com a reunificação da Alemanha no fim daquela década, com a queda do Muro de Berlim. Seu ativismo continuou se manifestando em importantes momentos, em temas como a clonagem humana, o fundamentalismo religioso, mas também em relação à secularização inconsequente, a Guerra do Golfo Pérsico e a União Europeia.

FIGURA 4 – JÜRGEN HABERMAS FILÓSOFO DA ESCOLA DE FRANKFURT

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/2/23/JuergenHabermas_retouched.jpg/800px-JuergenHabermas_retouched.jpg>. Disponível em: 10 out. 2019.

2.1 TEORIA SOCIAL

A teoria social crítica de Jürgen Habermas é um esforço intelectual contemplado na reunião de algumas obras fundamentais à compreensão do seu pensamento a da importância deste pensamento à teoria política do Século XX. Em seu livro Mudança estrutural da esfera pública, Habermas procura demonstrar que certos espaços públicos sofisticados de debate, como os cafés e grupos literários, continham os meios necessários para a democratização dos ambientes políticos. Nessa perspectiva, tais espaços refletiam as possibilidades reais de replicar suas condições de pleno diálogo civilizado para a esfera pública em geral.

Em outra obra, intitulada Conhecimento e interesse, o proeminente filósofo da Escola de Frankfurt apresenta os fundamentos da teoria crítica iniciada por Max Horkheimer e Theodor Adorno. Ao fazê-lo, o autor vincula de maneira aparentemente paradoxal o pensamento de Marx com o idealismo alemão e com a psicanálise de Freud, além do pragmatismo do filósofo estadunidense Charles Peirce. O caráter paradoxal fica por conta do fato de que o marxismo sugere uma perspectiva analítica materialista, enquanto o idealismo tem um ponto de partida absolutamente oposto.

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Lembremo-nos que materialismo, na teoria, significa uma disposição de compreender a realidade a partir do mundo material, expresso pelas relações econômicas. Desse modo, fica pressuposto que o mundo material é a base criativa e explicativa do mundo das ideias. Enquanto isso, o idealismo significa a disposição de compreender a realidade a partir do mundo das ideias. Nessa perspectiva, ao contrário do materialismo, seriam as ideias que antecedem o mundo material, reflexo daquelas. É uma discussão interminável, não obstante, muito importante e inspiradora. Ambas as perspectivas já produziram importantes interpretações da realidade. Isso mostra que nas ciências humanas pontos de vista eventualmente antagônicos não se anulam, ao contrário, podem até se complementar.

NOTA

Já, em seu conhecido livro intitulado A teoria da ação comunicativa, o filósofo alemão promove uma síntese linguística. A partir dela, procura explicar as possibilidades de uma solução política através da comunicação racional para o estabelecimento de uma sociedade dialógica, isto é, baseada no diálogo permanente em busca das soluções a seus grandes problemas. Num esforço monumental, reúne a filosofia de seus predecessores M. Horkheimer e T. Adorno, mas também os filósofos analíticos Ludwig Wittgenstein e J. L. Austin, Edmund Husserl, Hans-Georg Gadamer, Alfred Schutz e György Lukács. Além desses, promove uma junção reflexiva monumental entre os fundadores da Sociologia, Max Weber e Emile Durkheim, além das obras de Talcott Parsons e Niklas Luhmann.

Nessa direção, Habermas defende que a principal forma de interação humana é a comunicativa, ao invés de fundamentalmente estratégica. Leia-se estratégica no sentido de que a interação humana se dá em função de uma estratégia de sobrevivência, fazendo-o por conveniência. Dessa forma, a interação se faz pelo mero cumprimento de papeis e funções, submetidos a sistemas de controles sociais. Habermas não desconsidera a importância disso, mas insiste que o sentido evolutivo da humanidade tem sido possível — não sem percalços — por conta da capacidade de aprimorar formas de comunicação, através da linguagem. Habermas insiste que as possibilidades de fazer evoluir a interação e a superação dos conflitos estaria no esforço mútuo de compreensão e acordo entre os indivíduos.

Avançando em relação aos teóricos precedentes, Habermas insiste no desenvolvimento de formas dialógicas e cooperativas, ao invés da aposta de um certo “neoliberalismo” voltado a potenciação dos indivíduos na busca do interesse próprio. Insiste no estabelecimento de uma “comunidade de comunicação ideal”, em que a razão e o interesse público permeariam todas as leis e estas deveriam ser justamente o produto desta forma de comunicação pública, sem a qual nenhuma lei seria legítima. Não obstante, essas formas de interação e cooperação dialógica, nos vários ambientes sociais públicos, só seriam viáveis realmente na medida em que os indivíduos possam resistir às formas de coerção não-racional. De fato, estamos rodeados dessas formas, através de obrigações ou proibições que não servem ao interesse geral e não resistem a argumentos lógicos e sinceros.

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Portanto, a noção de uma “comunidade de comunicação ideal” funcionaria como um fio condutor que seria formalmente aplicado a fim de orientar e regular situações concretas de diálogo. Usando esse “fio condutor”, ou “ideal de fala” (Alves, 2009), as pessoas se sentiriam à vontade para questionar, aceitar ou recusar as pretensões de verdade dos outros. Seriam capazes de desenvolver a franqueza e a correção ética com base na força espontânea do melhor argumento, da melhor ideia, baseada na razão e no bom senso. Todos os envolvidos na discussão pública seriam exclusivamente motivados pelo interesse mútuo do entendimento consensual.

Habermas reconhece que essa “comunidade de comunicação ideal” é um tipo ideal, isto é, um conceito ou ideia-força que serve de norte orientador às ações humanas. Portanto, essa comunidade jamais é realizada na sua plenitude e é precisamente por esta razão que o filósofo da Escola de Frankfurt sugere o termo “comunidade de comunicação ideal” e não uma “comunidade histórica concreta”. Nesse sentido, é possível fazer a crítica ao próprio autor, observando que se trata de uma projeção idealista da sociedade, não havendo garantias, nem coerção social suficiente para concretizar historicamente este modelo social.

De todo modo, intelectuais e atores políticos engajados na defesa da democracia encamparam esse “projeto político” de uma comunidade ideal, nas universidades e nos movimentos sociais. O fato é que o panorama projetado de ação comunicativa irrestrita, contido nesse projeto político tem sido utilizado desde que foi disseminado pelos intelectuais das universidades e dos movimentos sociais. E tem, por extensão, servido de modelo orientador para a consolidação dos ambientes liberais democráticos.

Igualmente, esse tipo ideal orientador e regulador crítico pode ser útil para a justificação de instituições políticas homônimas. Nessa direção, reconheçam-se as possibilidades e as realizações concretas de leis e direitos constitucionais que, mundo afora das democracias contemporâneas, garantem a liberdade irrestrita de participação política, associação e livre expressão que tem assegurado o desenvolvimento das sociedades mais democráticas e, por que não dizer também, as mais evoluídas no amplo sentido do bem-estar humano.

É verdade que a democracia liberal não garante que a racionalidade comunicativa desse projeto político se materializará de modo inquestionável. Basta ver as críticas, muitas vezes ferozes, à democracia e ao funcionamento de suas instituições. Instituições sociais como a família, a educação e o Estado reproduzem, em grande medida, o caráter meramente estratégico das formas de racionalidade e interação social. É, sem dúvida, da vontade assimilativa dessas instituições que depende o florescimento das formas comunicativas de interação. Elas são, de fato, cada vez mais acometidas por pressões de ordem econômica e por regras burocráticas. Elas até são orientadas para a interação, porém essa interação tem um caráter administrativo, organizacional, em detrimento do diálogo espontâneo impulsionado pela finalidade amplamente pública.

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Apesar de toda a força argumentativa, as teses de Habermas contêm implicações relativas às possibilidades reais de sua efetivação. O filósofo de Frankfurt foi alvo de críticas tanto de neoconservadores quanto da esquerda pós-moderna. As ressalvas dizem respeito à confiança do autor na capacidade de as discussões racionais resolverem desde pequenos conflitos domésticos a grandes impasses internacionais. Os críticos de esquerda impingiram um caráter eurocêntrico à sua teoria comunicativa, afirmando que o autor desconsiderava realidades distintas do padrão europeu de educação, moralidade e lei. Nesse sentido, critica-se o fundo evolucionista que, implicitamente, estaria sempre a sugerir o modelo europeu como o mais evoluído e, portanto, a ser seguido por outros povos em desprezo às particularidades desses povos. Enquanto isso, os neoconservadores condenavam seu caráter utópico, seu radicalismo democrático, irrealizável na prática.

O evolucionismo deriva da teoria de Charles Darwin, segundo a qual os seres vivos evoluem por adaptação às dificuldades e capacidade de mudanças. Nas ciências humanas em geral o evolucionismo surge como transposição das ideias de Darwin sobre a natureza e o mundo animal para as sociedades humanas. Essa transposição analítica, feita por pensadores sociais europeus no Século XIX, é denominada de darwinismo social e influenciou, inclusive, o surgimento da Sociologia. Durante as primeiras décadas do darwinismo social, o pressuposto era o de que os europeus estariam no topo do processo evolutivo humano e, por essa razão, seu modo de vida político, econômico e cultural deveria ser seguido pelos outros povos.

NOTA

Ele foi criticado por marxistas e por teóricos feministas e raciais por abandonar o socialismo ou por supostamente desistir de críticas vigorosas à injustiça social e à opressão. Para alguns representantes dos movimentos sociais antiglobalização, até mesmo o liberalismo político esquerdista de Habermas e o reformismo democrático deliberativo eram inadequados para abordar as distorções culturais, políticas e econômicas evidentes nas instituições democráticas existentes.

O neoconservadorismo é uma reação ao pensamento e aos governos de bem-estar social. A crítica dirige-se aos excessos de direitos e suas consequências improdutivas do ponto de vista econômico, mas também moral, no sentido de criar as bases de uma sociedade voltada ao lazer e não ao trabalho. Criticam o excesso de direitos e a falta de noção de deveres e responsabilidades. Nas relações internacionais, os neoconservadores criticam a leniência com as ameaças aos valores ocidentais e à ordem mundial. Um dos mordazes críticos neoconservadores da esquerda, incluindo Jürgen Habermas, é Roger Scruton (2011).

NOTA

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Habermas respondeu a essas críticas com o universalismo característico da Filosofia. Reconheceu o caráter idealista de suas proposições teóricas, afinal, como filósofo, sempre esteve na esfera do “devir”. Faz parte do papel da Filosofia a proposição por um mundo melhor sobre o qual não há garantias de que se realize, porque se trata sempre de decisões políticas em jogo de forças e interesses antagônicos. Mas, assim como alguns consensos históricos de ordem ética e moral, vêm sendo construídos ao longo do tempo, e outros poderão ser estabelecidos. Afinal, são certos consensos históricos que explicam a capacidade de as sociedades se organizarem. As liberdades de crença, o direito à vida e à propriedade, o respeito à família e o direito à educação, entre outras afirmações, estão bastante sedimentados na sociedade ocidental. Assim também é possível supor que a insistência sobre a necessidade de garantias constitucionais e estímulos institucionais podem cultivar os ambientes de racionalidade comunicativa nas sociedades liberal-democráticas.

Na Filosofia, o devir diz respeito a analisar a realidade e sugerir como as coisas deveriam e poderiam ser, e não como as coisas são de fato. Do ponto de vista metodológico, esta é uma das condições que separa a Filosofia, com sua liberdade de pensar, da Ciência, baseada na necessidade de restringir-se os fatos e não às vontades e possibilidades éticas e morais.

ATENCAO

Entre as preocupações mais duradouras de Habermas, persistem questões existenciais a respeito de religião, ética e racionalidade. Na esteira disso, o autor expressa importantes preocupações acerca da coexistência, em nosso tempo, das visões de mundo seculares e religiosas, cosmopolitas e étnicas, além das persistentes contraposições entre as nossas concepções contemporâneas oriundas do Iluminismo e as visões tradicionais, a exemplo do embate anacrônico entre evolucionistas e criacionistas e entre o heliocentrismo e o terraplanismo.

Desde os anos do pós-guerra, Habermas se envolveu com uma variedade de pensadores preocupados com o tema da esperança contra a esperança: existencialistas como Søren Kierkegaard e Jean-Paul Sartre, teólogos políticos cristãos como Johann Baptist Metz e Jürgen Moltmann, além de pensadores judeus-alemães como Walter Benjamin, Hans Jonas e Herbert Marcuse. Habermas retornou a tais questões no início do Século XXI em O futuro da natureza humana (tradução de Die Zukunft der menschlichen Natur) e Fé e conhecimento (tradução de Glauben und Wissen). Além destes, publicou também Religião e Racionalidade: Ensaios sobre Razão, Deus e Modernidade (2002) e outros trabalhos sobre temas contemporâneos e existenciais.

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Nessa perspectiva, Habermas continua sendo uma referência importante ao pensamento de esquerda, tanto quanto já foi bastante referenciado, sobretudo nos movimentos estudantis de décadas passadas. Seu engajamento político e seu discurso radical em defesa da democracia foi bastante criticado, como acabamos de mencionar. Não obstante, sua linguagem idealista e muitas vezes invasiva ao terreno da utopia parece ter sido justamente o que seduziu o mundo acadêmico, permeado de engajamento político na segunda metade do Século XX. Não se deve desprezar o fato de que todo o engajamento de esquerda em nome da liberdade e da igualdade é uma reação às guerras mundiais e, portanto, ao fascismo e às variações autoritárias de governos que causaram danos notáveis no processo evolutivo e civilizatório do Ocidente. Assim, o pensamento radical e, por vezes utópico, de autores como Habermas parece justificar-se, tornando-se compreensível a adesão que suas ideias tiveram. E, na medida em que os valores liberais e democráticos forem ameaçados, a recorrência à sua teoria parecerá sempre uma atitude natural.

FIGURA 5 – CONHECIMENTO E INTERESSE: UMA DAS OBRAS DE JÜRGEN HABERMAS PUBLICADAS NO BRASIL

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/41tT6nkYBSL._SX322_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 10 out. 2019.

3 ADAM PRZEWORKI (1940) E A EFETIVIDADE DA SOCIALDEMOCRACIA

O Cientista político Adam Przeworki (pronuncia-se Tchevorski) nasceu em 5 de maio de 1940, em Varsóvia, capital da Polônia, onde se formou na Universidade de Varsóvia. Depois de formado, fez carreira acadêmica nos Estados Unidos, tendo obtido o PhD (Philosophy Doctor) na Universidade de Northwestern. Ganhou notabilidade acadêmica trabalhando na Universidade de Chicago, onde escreveu um importante livro Democracia e Desenvolvimento, pelo qual recebeu o Prêmio Woodrow Wilson em 2001. Nove anos depois, o autor recebeu o Prêmio Johan Skytte de Ciência Política, em reconhecimento ao seu trabalho de ter elevado o nível dos padrões científicos da relação entre democracia, capitalismo e desenvolvimento econômico.

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FIGURA 6 – ADAM PRZEWORSKI, AUTOR DO CLÁSSICO “CAPITALISMO E SOCIAL DEMOCRACIA”

FONTE: <https://lh3.googleusercontent.com/_XBk3JgPzQIk/TdkGLpO3AhI/AAAAAAAAAAU/LWz2Gth-06k/s320/przeworski.jpg>. Acesso em: 10 out. 2019.

As contribuições deste cientista político polonês-americano para a teoria política estão apoiadas em vários estudos empíricos, como também na metodologia. Nessa linha, promoveu o uso de formulações matemáticas e recorreu frequentemente à estatística, flertando com a Economia, por assim dizer. E foi no interior do chamado marxismo analítico que o autor promoveu importantes contribuições à teoria da escolha racional. Em 1985, publica seu mais conhecido livro, intitulado, Capitalismo e socialdemocracia, onde apresenta uma importante defesa da socialdemocracia como a experiência política mais exitosa da esquerda.

Entre importantes considerações acerca do marxismo, do socialismo e da democracia, Przeworski demonstra que os partidos social-democratas foram os mais exitosos à esquerda. Enquanto os partidos radicais propunham o enfrentamento sem tréguas ao stablishment, os social-democratas se coadunaram perfeitamente com as democracias liberais. No contexto do liberalismo político, aceitaram as regras do jogo, construindo coalizões suficientemente amplas para o êxito eleitoral. Isso requereu o abrandamento de seus programas socialistas em troca de ganhos menores e parciais, porém efetivos, no lugar das promessas vazias de um futuro de igualdade e sem classes sociais, como pregavam os revolucionários.

Marxismo analítico é um movimento dentro da teoria marxista que estuda as teses do marxismo, usando técnicas de análise associadas à filosofia analítica e aos métodos da economia neoclássica.

Dessa forma, o marxismo analítico é uma ruptura com o marxismo convencional da primeira metade do Século XX, que sugeria uma divisão radical entre os conhecimentos dessa teoria e todo o restante das ciências sociais. Os marxistas tradicionais consideravam que, o que não fosse do materialismo histórico, não passaria de um discurso burguês, portanto, ideológico – no sentido de uma falsa visão da realidade.

IMPORTANTE

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Os marxistas convencionais como o filósofo húngaro György Lukács estão interessados em interpretar o mundo exclusivamente a partir do método materialista dialético. Em contraste, os marxistas analíticos estão interessados em comprovar logica e empiricamente as verdades, mas também as falsidades das teses de Marx e dos marxistas. Seu objetivo geral é salvar e resguardar o que há de útil do ponto de vista científico, separando-o do pensamento dogmático e do engajamento político.

Considerando a utopia socialista de um mundo sem desigualdades, é preciso compreender o que significou o próprio surgimento histórico da socialdemocracia. Portanto, relembremos isso sumariamente, afim de entender o significado da socialdemocracia e as contribuições de Przeworski a respeito desse entendimento. No Século XIX, a principal posição dos partidos socialistas era a de tomar o poder através de revoluções armadas, extinguir a sociedade de classes e a propriedade privada, implantando o socialismo. A posição alternativa defendida por parte das lideranças socialistas passou a ser a aposta em participar das regras do jogo, isto é, dos processos eleitorais. Ao invés da luta armada, a organização partidária, a participação em eleições sucessivas até conquistar número suficiente de cadeiras nos legislativos que permitisse a tomada e o controle do poder. Uma vez obtidas as maiorias eleitorais em cada nação, se implantaria democraticamente o socialismo, respaldado legitimamente por eleições, dentro das regras das instituições burguesas.

Essa foi a grande dissidência no interior do movimento socialista internacional. Efetivamente, onde disputaram eleições, os socialdemocratas foram ganhando espaço. Inicialmente, o projeto era, como já se disse, conquistar o poder progressivamente, até obter o controle e implantar o socialismo pacificamente, por assim dizer. Tudo estava razoavelmente previsto: a classe trabalhadora tomaria o poder político, desmontaria as estruturas do capitalismo e instituiria um regime de igualdade e justiça entre os homens. Tudo seria uma questão de tempo até que os trabalhadores tivessem o controle sobre as instituições políticas e sobre os meios de produção. Ao invés da revolução sangrenta e da implantação da ditadura do proletariado, como na União Soviética, a democracia socialista que se prenunciava na Alemanha, primeiro país onde um partido socialdemocrata obtivera a maioria das cadeiras.

A União Soviética denominava-se União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Ela foi a composição geopolítica de várias nações socialistas, iniciada com a Revolução Russa, em 1917, quando o Czar foi deposto e os socialistas revolucionários tomaram o poder. Progressivamente, implantaram o socialismo na Rússia e expandiram o bloco de nações no leste europeu, seja por acordos entre as nações, seja pela invasão. O regime socialista soviético durou até o ano de 1989, quando a Queda do Muro de Berlim precipitou o fim do regime com a decretação da Perestroika (que significa abertura) pelo governo de Nikolai Gorbachov. O sistema soviético havia envelhecido por falta de democracia e eficiência econômica.

ATENCAO

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O que, no entanto, ocorreu com o passar dos anos foi uma progressiva acomodação dos socialdemocratas, não apenas às regras da democracia liberal, mas também à aceitação do capitalismo. Ao invés de extinguir as eleições e os diversos partidos de diversificadas linhas programáticas, a aceitação das instituições liberais e o risco de perder eleições. Ao invés do fim da propriedade privada e da socialização dos meios de produção, a aceitação ao capital, ao lucro. No lugar da extinção, o confronto negociado, por meio de governos socialdemocratas, apoiados por sindicatos de trabalhadores, para a negociação de progressivas melhorias às classes trabalhadoras. Ao longo do Século XX, em boa parte dos países ocidentais, essa foi a regra e os trabalhadores organizados obtiveram sucessivos êxitos. A melhoria de vida dos trabalhadores, com a progressiva implantação do Estado de bem-estar social, tornou a transformação ao socialismo desnecessária, ao invés das revoluções definitivas, reformas sucessivas.

No interior desse quadro interpretativo, duas importantes constatações aparecem pelas lentes do cientista político Adam Przeworski:

• Ao se lançarem em sucessivas eleições livres e realmente competitivas, os partidos de orientação socialista, leia-se socialdemocrata, foram compelidos a engavetar o projeto socialista a fim de obter ganhos eleitorais. E, ao invés de reduzir seus discursos à classe trabalhadora organizada, ampliaram-no, abrandando as propostas a fim de alcançar setores eleitorais mais amplos. A propósito, essa estratégia foi exatamente a que utilizou o Partido dos Trabalhadores no Brasil para eleger seu candidato à Presidência da República, depois de quatro derrotas consecutivas.

• O antagonismo entre a classe trabalhadora e os empresários deu lugar ao diálogo, às negociações e aos acordos. Assim, os compromissos interclasses sobre importantes aspectos econômicos tornaram-se frequentes e preferíveis aos trabalhadores e empresários do que as estratégias radicais defendidas pelo socialismo ortodoxo. Ao invés do confronto, a conciliação. O que os socialdemocratas logo perceberam é que, ao invés de acabar com o capitalismo estatizando a propriedade privada, era melhor permitir a liberdade de ganhos ao capital, em troca de impostos para financiar políticas distributivas.

FIGURA 7 – CAPITALISMO E SOCIAL DEMOCRACIA PODE SER CONSIDERADO UM CLÁSSICO DA CIÊNCIA POLÍTICA

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/31Zb6n0u%2B7L._BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 10 out. 2019.

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Nessa perspectiva geral, o professor de Teoria Política da Universidade de Chicago ofereceu a mais lúcida análise sobre o movimento marxista na democracia. Przeworski observou que a socialdemocracia foi, durante a maior parte do Século XX, a forma predominante e eficiente de organização da classe proletária nas democracias liberais e de mercado. Assim, ao invés das estratégias revolucionárias de solução de continuidade e fim da propriedade privada, o reformismo da socialdemocracia foi vencedor. Preferida entre os trabalhadores organizados em ambientes de liberdade, a estratégia socialdemocrata da negociação constante foi a que materializou ganhos efetivos ao longo das décadas. Como sugere este cientista político polonês, teórico do marxismo analítico, “bem ou mal, a socialdemocracia talvez seja a única forma política de esquerda capaz de enumerar um elenco de reformar realizadas em favor dos trabalhadores” (PRZEWORSKI, 1989, p. 13).

Durante décadas, a esquerda revolucionária do Ocidente desprezou a socialdemocracia. Com a alcunha de traidores, os socialdemocratas rejeitaram o caminho radical do rompimento com o capitalismo. Optaram por participar dos pleitos eleitorais e, ao chegarem ao poder, aceitaram as liberdades do mercado e respeitaram a propriedade dos meios de produção. Ao contrário de estatizarem as fábricas e aniquilarem a burguesia, aumentaram progressivamente os impostos, tecendo progressivamente a teia de direitos e garantias do Estado de direito e de bem-estar social. Ao invés de enfraquecer o capitalismo, estimularam a produção, com a óbvia percepção e expectativa de que os ganhos de mais valia do capital poderiam beneficiar os trabalhadores. E, de fato, com toda a crítica posterior à socialdemocracia que podemos observar em autores como o sueco Tage Lindbom, do ponto de vista das condições materiais, a organização da classe trabalhadora através de partidos e sindicatos, melhorou muito a sua condição.

Portanto, a contribuição de Adam Przeworski mais lembrada na Ciência Política é a de ter demonstrado de modo irrefutável os avanços da socialdemocracia. Os socialistas do Século XIX estavam certos de que, amadurecidas as condições para o socialismo, as revoluções deveriam ser feitas. Como os socialdemocratas decidiram participar das eleições, foram chamados de traidores. Uma vez no legislativo, empenharam-se em obter ganhos sucessivos às classes trabalhadoras e, num trabalho historicamente incansável, obtiveram os êxitos reconhecidos pelos seus eleitores. Do ponto de vista da evolução eleitoral, isso está estatisticamente demonstrado e culminou na obtenção de maiorias que assumiram os governos em várias nações democráticas.

Quando, progressivamente, os socialdemocratas abandonaram o projeto de extinguir a propriedade privada, foram novamente acusados de traidores. Reconhecendo as vantagens de um capitalismo que podia ser razoavelmente controlado em benefício de ganhos aos trabalhadores, os governos socialdemocratas edificaram a maior conquista da democracia no Século XX: o Estado de bem-estar social. Isso não impediu que inúmeros líderes políticos do trabalhismo tivessem sido acusados de traidores da causa socialista revolucionária. E para dizer de forma mais dramática, foram acusados de traidores do curso correto da história,

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“aburguesando-se” ao invés de implantar a promessa socialista da sociedade sem classes. A pergunta que Przeworski não esqueceu de fazer é que, se traidores foram todos eles, por que, ainda assim, os trabalhadores em maioria seguiram esses líderes traidores, neles confiaram repetidas vezes, conduzindo-os aos cargos de direção e representação dos interesses de toda a classe?

Por essa importante contribuição do cientista político polonês, é possível compreender como a socialdemocracia foi fundamental na construção do tecido político ocidental durante o Século XX. Igualmente indispensável é o reconhecimento de que o Estado de direitos e de bem-estar-social não é uma dádiva da natureza, da vontade divina, nem tampouco o resultado de um processo evolutivo histórico que aconteceria, mais cedo ou mais tarde, contra o qual não se poderia resistir. Isso os socialistas ortodoxos disseram sobre o fim da sociedade de classes. O que aconteceu, de fato, foi o resultado de um processo histórico movido pelas ações políticas organizadas e persistentes, não sem perdas, recuos e sofrimento. Mas, sobretudo, foi o resultado da política através da materialização de ideias e ideais, sempre nos limites do humanamente possível e coletivamente. E por essa percepção realista de Przeworski, sua contribuição ao entendimento da socialdemocracia e do Estado de bem-estar social, tornou-se obrigatório mencioná-lo no rol das teorias políticas democráticas.

4 JON ELSTER E O MARXISMO ANALÍTICOO filósofo, sociólogo e cientista político norueguês, Jon Elster nasceu em

Oslo, capital da Noruega, a 22 de fevereiro de 1940. É professor da Faculdade Robert K. Merton de Ciências Sociais da Universidade de Columbia, em Nova York. Lecionou na Université Paris VIII, na Universidade de Oslo, na Universidade de Chicago e no Collège de France. Ele foi homenageado por várias universidades internacionais e recebeu o Prêmio Johan Skytte de Ciência Política em 2016. Ele é autor de uma abordagem profundamente analítica da teoria social, defendendo que as Ciências Sociais devem esforçar-se por compreender os impulsos motivacionais básicos dos indivíduos. Seus trabalhos relativos às escolhas racionais e às motivações irracionais, além do significado das normas sociais e das relações de confiança nos comportamentos são de indispensável utilidade. Suas análises a respeito do conceito e das percepções de justiça na transição para a democracia tornaram-se leitura obrigatória na Sociologia do Direito e, por extensão, na Ciência Política.

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FIGURA 8 – CIENTISTA POLÍTICO NORUEGUÊS JOHN ELSTER

FONTE: <http://heymancenter.org//images/persons/elster.jpg>. Acesso em: 10 out. 2019.

Não obstante, falar do sociólogo alemão John Elster nos faz, invariavelmente, falar do marxismo analítico. Esta corrente de pensamento da teoria política do Século XX tem no referido autor um de seus principais representantes. Sua perspectiva crítica e cientificista no rigor da palavra, o distanciou do engajamento político, permitindo um trabalho de lapidação da teoria marxista. Nessa direção, antes mesmo de apresentar a concepção mais ampla do autor, apresentamos a corrente de pensamento que ele ajudou a fundar.

O marxismo analítico é um movimento no interior da teoria marxista da segunda metade do Século XX. Está presente em alguns ramos da Sociologia, da Ciência Política e da Antropologia, como também da Filosofia. Seu objetivo geral está em refletir criticamente sobre a obra de Marx e dos marxistas, procurando desenvolver as teses substantivas do pensamento do filósofo alemão. Metodologicamente, isso é realizado através da utilização das técnicas de análise conceitual vinculadas à Filosofia Analítica e dos métodos da Economia neoclássica padrão.

O marxismo analítico significa um rompimento com o pensamento marxista convencional, o que acontece notadamente por meio da negação à perspectiva teórico-metodológica sobre a afirmada divisão radical entre o marxismo e o pensamento político burguês. Ora, lembremos que o marxismo tradicional é baseado na premissa de uma divisão de interesses entre trabalhadores e a burguesia. Nessa perspectiva é que o marxismo tradicional aposta na criação de uma teoria operária, em oposição à considerada ciência burguesa.

Em oposição a essa ideia tradicional, está a abordagem de John Elster. Ela é diametralmente oposta aos pressupostos analíticos de, por exemplo, Georg Lukács, filósofo húngaro e marxista convencional, estudado no primeiro tópico desta unidade. Lukács havia argumentado em seu Geschichte und Klassenbewusstsein (1923; traduzido do alemão História e consciência de classe) sobre o que distinguia o marxismo de outras teorias não tinha a ver com suas conclusões últimas, a saber, a transformação da ordem capitalista e a superação da divisão de classes. Residiria, sobretudo, nos compromissos metodológicos, quais sejam: analisar a sociedade a partir da clara divisão de classes e da perspectiva metodológica do coletivismo como modo, literalmente, método de transformação, a partir da consciência de classe.

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Os marxistas analíticos, como já vimos na perspectiva de Adam Przeworski, tem uma perspectiva não dogmática, isto é, de não confiar cegamente nas premissas que Marx lançou no Século XIX, num contexto relativamente diferente um século depois. Como, em geral, os outros pensadores dessa corrente, John Elster não está interessado em desqualificar as teses marxistas. Está, sim, empenhado em salvar ou reconstruir a análise, através da verificação precisa, sem a perspectiva dogmática. Nessa direção, Elster enfatiza a necessidade de apresentar os argumentos racionalmente e criticamente. Por conseguinte, Elster acusa os marxistas convencionais de obscurantistas.

Este é um dos melhores livros sobre a teoria da escolha racional na Ciência Política, podemos encontrar e compreender a contribuição fundamental de Jon Elster a essa teoria.

FIGURA 9 – OBRA DE JON ELSTER – PEÇAS E ENGRENAGENS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

FONTE: <https://i1.wp.com/cafecomsociologia.com/wp-content/uploads/2012/06/pec3a7as-e-engrenagens-das-cic3aancias-sociais.jpg>. Acesso em 10 out. 2019.

4.1 INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO

O pressuposto coletivista em detrimento do individualismo e a irrelevância que o marxismo convencional atribuía às análises comportamentais, foi uma das constatações de Elster. Esse foi o elo entre o marxismo analítico e individualismo metodológico na teoria social. O pressuposto desse método analítico era justamente o de que fenômenos sociais de relevância sociológica precisavam ser interpretados a partir dos comportamentos individuais. E aqui temos importância do autor em relação à emergência da teoria da escolha racional e a teoria dos jogos. Como já vimos anteriormente, essas teorias, que partem do individualismo metodológico para a compreensão do universo da política, sugerem que a interpretação sociológica deve considerar o fato de que os indivíduos buscam, antes de tudo, a maximização do interesse próprio.

Os fundamentos da teoria da escolha racional devem a Elster grande parte das contribuições constitutivas. Para o cientista político norueguês, as decisões dos indivíduos, seja na economia ou no campo da política, são marcadas por preferências pessoais fixas, de primeira grandeza. Da mesma forma, essas escolhas são feitas a partir de cálculos de probabilidades, que tem a ver com as expectativas dos agentes sobre os resultados prováveis ou possíveis de suas ações. São expectativas em relação aos seus interesses egoísticos, mas também

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valorativos, isto é, pertinentes aos valores, às normas e às crenças dos indivíduos sobre o que consideram melhor para si, inclusive a aceitação que podem esperar dos outros — o que é fundamental em sociedade.

No fundo, o que denominamos de individualismo metodológico tem a ver com a perspectiva sociológica de Max Weber. Segundo o sociólogo alemão, a análise e interpretação dos fenômenos sociais tem a ver com a compreensão que somos capazes de atingir a respeito das ações dos indivíduos. Weber definiu o conceito de ação social como o conceito cardinal a possibilitar a análise sociológica, isto é, a investigação e compreensão sobre os fenômenos sociais. Sua compreensão deve partir sempre da interpretação da ação dos indivíduos. Acontece que, com enorme frequência, as ações dos indivíduos não são ações isoladas, mas ações sociais. E a definição de ação social é a qual o indivíduo age levando os outros em consideração, a fim de calcular qual o melhor resultado possível para si. Essencialmente, o individualismo metodológico é isso.

Essa teoria permite representar problemas de escolha de maneira altamente compacta e formal e chegar a resultados prováveis. Para muitos teóricos, essa definição de escolhas, por assim dizer egoístas, basta para compreender a natureza e os resultados das ações no meio político. Porém, Elster se aprofunda na análise comportamental, mostrando que as escolhas dos indivíduos são complexas e passam por filtros. O autor adverte sobre a importância das restrições sociais e naturais nas escolhas, isto é, na definição de cada ação. Isso tem a ver com os filtros aos quais todos nós, racionalmente, tendemos a submeter nossas escolhas.

Essa característica da ação racional implica que pode haver padrões de escolha que possam ser explicados, não como resultado da otimização das nossas decisões, mas também como resultado de um conjunto particular de restrições institucionais. Os economistas tendem a enfatizar a importância da otimização de nossas escolhas nos limites e possibilidades dos ambientes econômicos (mercado). Já os cientistas políticos se referem as circunstâncias e as variações nos ambientes dos jogos de poder, mediados pelas regras e convenções sociais. Jon Elster deixa aberto esse leque de condições e restrições. Considera ambas válidas para compreender a racionalidade dos indivíduos e suas escolhas para a interpretação da realidade social.

O que é racionalidade?

Em seu livro Ulysses and the sirens, não traduzido no Brasil, Jon Elster analisa a escolha racional de maneira que entendamos que o agente tem dois filtros na sua ação, a saber: “1) a consideração das restrições físicas, econômicas, legais e técnicas; e 2) a escolha do meio mais seguro entre essas restrições para alcançar o melhor resultado possível da ação” (ELSTER, 1984, p. 76).

NOTA

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Nessa perspectiva, podemos compreender a importância que Jon Elster adquiriu em relação à conformação teórica do individualismo metodológico. Se a teoria da escolha racional, também denominada teoria da escolha pública na Ciência Política, é útil ao pressupor o indivíduo como ponto de partida, as contribuições de Elster vão além. De modo geral, a teoria da escolha racional implica na consideração do interesse próprio como a motivação básica dos indivíduos. Segundo esses teóricos, desconsiderar isso no universo da política é, no mínimo, uma ingenuidade. Assim, mesmo que as escolhas dos políticos resultem no bem público, elas terão sido o resultado da compatibilidade possível entre o interesse egoístico com as demandas legítimas da Sociedade. Esse seria o melhor dos mundos possíveis na política.

Jon Elster está longe de negar isso, ao contrário, concordando que, no ambiente político, as ações dos indivíduos sempre contém essa característica, em algum grau. Todavia, adverte metodologicamente o cientista político norueguês, o interesse e as estratégias egoístas são sempre mediadas ou acompanhadas de outros impulsos ou restrições. Essas restrições são fatores de ordem moral e institucional, tendo a ver com costumes, com valores, com afetividades, limites pessoais, com questões técnicas, operacionais e legais. Elas funcionam como filtros que nossas escolhas levam em consideração. E nossas ações necessariamente passam por esses filtros, fazendo com que o resultado delas não seja simplesmente egoísta. A demonstração dessa complexidade foi a grande contribuição de Elster à ciência política, mais notável, embora não necessariamente mais importante, do que outras que tornam sua obra volumosa e requerem aprofundamento.

FIGURA 10 – OBRA DE JON ELSTER – ULISSES LIBERTO – UMA DAS POUCAS EDITADAS NO BRASIL, EM PORTUGUÊS.

FONTE: <https://cdn.30porcento.com.br/capas/9788571398894.jpg>. Acesso em: 10 out. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você aprendeu que:

• Há uma discussão acerca do neomarxismo, desde a ótica de três autores e algumas de suas principais ideias. Os autores são o filósofo alemão Jürgen Habermas, o cientista político polonês Adam Przeworski e o sociólogo norueguês John Elster.

• Os três autores revisaram, criticaram e atualizaram a teoria marxista.

• Habermas sugere a insistência no desenvolvimento de formas dialógicas e cooperativas para a radicalização da democracia.

• Przeworski critica os socialistas revolucionários e demonstra que efetivamente foi a socialdemocracia que obteve ganhos reais aos trabalhadores.

• Elster contrapõe à análise estruturalista e coletivista do marxismo à observação dos aspectos motivacionais nas escolhas, trazendo contribuições ao individualismo metodológico.

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AUTOATIVIDADE

1 Qual a principal contribuição do cientista político polonês Adam Przeworski, que é, ao mesmo tempo, uma crítica aos socialistas revolucionários e uma demonstração de quem, afinal, conseguiu resultados efetivos em relação às demandas trabalhistas?

2 Indique qual o autor clássico da Sociologia que inspira a noção de individualismo metodológico. Diga qual é o conceito central desse autor e explique o seu significado.

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TÓPICO 3

NEOINSTITUCIONALISMO: SKOCPOL, TILLY, EVANS, HALL, NORTH, RIKER

EPUTNAM

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOPrezado acadêmico, depois de termos passado por importantes ideias

e conceitos de autores marxistas e de revisionistas e críticos do marxismo, apresentaremos o importante conceito de neoinstitucionalismo. Ofereceremos uma noção introdutória do termo e características dessa abordagem na perspectiva de um conjunto de cientistas sociais pertencentes a esta corrente metodológica no interior da Ciência Política.

Nessa direção, iniciamos com uma definição conceitual para, somente depois, apresentarmos as ideias de sete importantes autores que constituem uma espécie de eixo interpretativo do neoinstitucionalismo. Isso não quer dizer que outros autores não sejam de importante consideração. Não obstante, nos limites dessa abordagem introdutória, os autores que apresentamos aqui permitem uma síntese inicial acerca do tema.

Iniciaremos com a perspectiva do papel do Estado no trabalho da socióloga estadunidense Theda Skocpol. Em seguida, apresentaremos a defesa da democracia na perspectiva do cientista político estadunidense Charles Tilly. Na sequência, traremos as três principais variáveis analíticas do neoinstitucionalismo, por meio do sociólogo e cientista político canadense Peter Hall. Depois dele, abordaremos a ideia de sinergia entre Estado e sociedade, de autoria do cientista político estadunidense Peter Evans. Continuaremos, por sequência, demonstrando a influência do pensamento econômico na Ciência Política, na interpretação do fundador da nova economia institucional, o economista estadunidense Douglas North. Depois, apresentaremos o cientista político estadunidense William H. Riker, que aplicou modelos matemáticos na composição da teoria dos jogos para o estudo do comportamento político. E, finalmente, traremos a contribuição do também cientista político estadunidense Robert D. Putnam e a ideia-força do capital social.

2 NEOINSTITUCIONALISMOO neoinstitucionalismo é um método de investigação pertencente à

Ciência Política, também presente na Economia, na Sociologia, na Administração e no Direito. Sua principal característica é a observação das instituições no sentido de tentar perceber como elas interferem nas escolhas e comportamentos

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UNIDADE 2 | NEOMARXISMO E NEOINSTITUCIONALISMO

dos indivíduos em sociedade. Nessa perspectiva, os neoinstitucionalistas estudam como as leis, as normas, as regras, os valores e as crenças, restringem ou incentivam as escolhas e as ações das pessoas. O termo neoinstitucionalismo deriva do institucionalismo tradicional. As análises convencionais das instituições estavam concentradas nas instituições formais, isto é, aquelas prescritas em forma de leis, normas e regras explícitas. Enquanto isso, a abordagem renovada inclui os estudos comportamentais, que tentam entender a lógica da ação individual, inclusive do ponto de vista da cultura.

Desde os anos de 1930 até meados da década de 1950, o institucionalismo tradicional era hegemônico na Ciência Política estadunidense. É sempre importante lembrar que a Ciência Política reflete simbolicamente a grande máxima do Barão de Montesquieu, em O espírito das Leis. Ali, o célebre filósofo político francês expunha a ideia geral do institucionalismo, de que boas instituições produzem bons homens. Nesse sentido, Montesquieu já prenunciava, em meados do Século XVIII, uma das características centrais do que viria a ser essencialmente a Ciência Política: justamente o estudo das instituições. E por essa razão, ela é tão central no Direito e em todas as Ciências Sociais.

Os cientistas políticos estadunidenses da primeira metade do Século XX estavam empenhados em desvelar as estruturas institucionais formais que constituíam a plataforma dos três poderes governamentais. Os analistas tradicionais faziam um trabalho de natureza descritiva, no qual o conhecimento constitutivo das instituições era suficiente para o entendimento da Sociedade e, evidentemente, da política. Normalmente, não recorriam às teorizações mais aprofundadas que pudessem ultrapassar as dúvidas que permaneciam quanto à insuficiência das leis. Em outras palavras, mesmo boas leis nem sempre pareciam suficientes para assegurarem bons comportamentos. Com muita frequência, esses analistas eram notavelmente normativos em seu desejo de descrever como as instituições políticas deveriam funcionar, em oposição ao “espírito científico” que privilegia a investigação empírica, demonstrando como as coisas realmente funcionam.

Os três poderes, como já sabemos, são o legislativo, o executivo e o judiciário. O primeiro formula e aprova as leis, pois legislar significa formular, elaborar, constituir leis. Daí também advém a palavra Constituição. O segundo executa as leis, devendo agir sempre em consonância às leis. Por isso, e somente por isso, é que existe o terceiro poder, qual seja, o judiciário, que fiscaliza a execução das leis e nada mais deve fazer do que isso. É também por isso que Montesquieu, o formulador original da ideia de divisão dos três poderes, afirmava que o equilíbrio dos poderes dependia do reconhecimento de que o mais importante é o legislativo, porque de boas leis depende o funcionamento da Sociedade. Depois, viria a importância do executivo, cujo bom governo depende de muitas coisas, entre todas, de cumprir a lei. Por fim, o menos importante dos poderes seria o judiciário, cuja finalidade é fiscalizatória.

NOTA

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A partir dos anos de 1960, a análise politológica estadunidense começa a se distanciar do ponto de partida exclusivamente institucional. Em outras palavras, perde exclusividade a premissa de que a investigação deve começar e terminar na compreensão das leis, regra e normas. A partir de uma perspectiva weberiana, os cientistas políticos passaram a buscar a compreensão dos comportamentos sociais partindo das ações de atores políticos individuais. Essa revolução comportamentalista caracterizou-se pelo esforço exclusivamente cientificista. Deixava-se de lado o caráter normativo do devir e colocava-se o foco nas coisas como elas são.

O “devir” é uma expressão originária da Filosofia e significa o esforço do filósofo em sugerir como as coisas deveria ser. Tem, portanto, um cunho moral e ético, que procura mostrar ao leitor o que está errado, que não deveria ser como é, e conduzir o leitor aos caminhos corretos, a fim de que perceba como a realidade deveria ser na busca da perfeição. Também chamamos esse tipo de abordagem como normativa (relativo às normas).

NOTA

Nessa perspectiva, também ganham espaço a Matemática e a Estatística na Ciência Política. Os neoinstitucionalistas passaram a se concentrar em decisões específicas de juízes ou de integrantes do Congresso, ao invés de interpretarem as regras e estruturas dos tribunais ou as funções da Câmara dos Deputados e do Senado no sistema político. A intenção era cercar a análise das ações dos indivíduos de uma interpretação absolutamente lógica, muitas vezes com cálculos de probabilidade do tipo: se a ação fosse numa direção, o resultado teria de ser de certa ordem. Dito de outro modo, cada ação individual era analisada de modo a compreender a lógica das escolhas na política. A expectativa era a de formular amplas abordagens teóricas quantitativamente e logicamente demonstráveis. Nessa perspectiva, a presunção estava em obter da Ciência Política a credibilidade científica de outras ciências. Tentava-se, assim, afastá-la de disciplinas como a História, a Filosofia e o Direito, aproximando-a definitivamente da Economia, da Sociologia e da Psicologia, no que estas tinham de maior rigor analítico.

Quanto à perspectiva weberiana, lembremo-nos: trata-se do pressuposto de Max Weber, autor do conceito de ação social. Segundo o sociólogo alemão, a análise para a compreensão da Sociedade deve partir da ação dos indivíduos. Em outras palavras, devemos buscar a compreensão dos comportamentos dos indivíduos, buscando o significado social de suas ações. E é exatamente essa perspectiva que dá origem ao individualismo metodológico, presente na teórica da escolha racional, uma das vertentes do neoinstitucionalismo.

ATENCAO

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UNIDADE 2 | NEOMARXISMO E NEOINSTITUCIONALISMO

De todo modo, as ciências em geral são dotadas de uma dinâmica aparentemente interminável. Em meados dos anos 1980, muitos cientistas políticos passaram a se perguntar se realmente a sua Ciência deveria continuar ignorando as abordagens tradicionais de cunho normativo. A ideia destes questionadores era recuperar o caráter ético fundamental da teoria política, mas sem abandonar a abordagem comportamentalista e empírica advinda do behaviorismo. Nessa perspectiva, era importante um certo compromisso da Ciência Política com os rumos da democracia, baseada em valores como a liberdade e a justiça. Estes não deveriam ser apenas estudados e compreendidos nas suas imperfeiçoes, mas preservados. Mais do que apenas ciência, a Ciência Política não deveria abandonar seu caráter ético.

Assim surgiu o movimento pós-comportamentalista, trazendo as instituições de volta ao centro das observações. Seus defensores argumentavam que seria necessário recuperar a análise institucional a fim de ampliar a compreensão sobre os comportamentos dos atores políticos. Era necessário religar a análise institucional aos estudos comportamentais, observando a importância das instituições e a arquitetura das leis, normas e regras. Nessa conveniente perspectiva, não somente os comportamentos individuais contém uma lógica nas escolhas e ações dos indivíduos. Também é preciso entender que as leis, regras e normas contém uma lógica que os indivíduos levam em consideração, fazendo pesar nas suas escolhas e ações. Assim, não seria suficiente considerar que, por exemplo, um indivíduo aja segundo uma lógica racional egoísta, calculando o melhor resultado para si mesmo. Os indivíduos, dizem os pós-comportamentalistas, também agem motivados por valores e sentimentos. Em outras palavras, de acordo com esses autores, estudar o comportamento político individual sem examinar restrições institucionais sobre esse comportamento estava dando aos estudiosos uma compreensão distorcida da realidade política.

O behaviorismo é um método originalmente advindo da Psicologia, cujo objetivo é estudar o comportamento dos indivíduos, procurando encontrar respostas padronizadas que permitam compreender e prever comportamentos. A expressão vem literalmente do inglês behavior, que quer dizer comportamento. O inglês John B. Watson (1878-1958) é considerado, por alguns, o fundador desta teoria. Ele desconsiderava o caráter introspectivo da Psicologia e defendia que fosse considerada uma ciência natural, capaz de obter respostas absolutamente objetivas sobre o comportamento humano. Na década de 1940, o psicólogo Burrhus Frederic Skinner, tornou-se a grande referência do behaviorismo, ao introduzir a noção de condicionamento operante na Psicologia. Seus estudos levaram a importantes considerações sobre as possibilidades de prever e até de controlar comportamentos humanos por estratégias de condicionamento.

NOTA

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3 THEDA SKOCPOL E A PERSPECTIVA TOCQUEVILIANA NA POLÍTICA

A cientista política estadunidense Theda Skocpol nasceu em 4 de maio de 1947, em Detroit, no estado de Michigan, EUA. Professora da Escola de Governo e Sociologia da Universidade de Harvard, onde também foi reitora da Escola de Graduação de Artes e Ciências (2005-2007) e diretora do Centro de Estudos Políticos Americanos (2000-2006). Em 1996, Skocpol foi presidente da Associação de História da Ciência Social, um grupo profissional interdisciplinar. Entre 2002 e 2003 foi presidente da Associação Americana de Ciência Política durante o seu centenário. Em 2007, ela recebeu o Prêmio Johan Skytte de Ciência Política por sua análise visionária do significado das relações entre Estado e revoluções, bem-estar e confiança política, perseguida com profundidade teórica e evidência empírica. O Prêmio Skytte é um dos maiores e mais prestigiados na ciência política e é concedido anualmente pela Fundação Skytte da Universidade de Uppsala, (Suécia) ao acadêmico que, na visão da fundação, fez a contribuição mais valiosa para a disciplina. Theda Skocpol também foi eleita para ser membro das três principais sociedades de honra interdisciplinares dos EUA: a Academia Americana de Artes e Ciências (eleita em 1994), a Sociedade Filosófica Americana (eleita em 2006) e a Academia Nacional de Ciências (eleita em 2008).

O esforço intelectual de Thedra Skocpol cobre um amplo espectro de temas, desde a política comparativa Estados e revoluções sociais, 1979, e política americana Protegendo Soldados e Mães: As origens políticas da Política Social nos Estados Unidos, 1992. Entre seus outros livros, encontramos também Bringing the State Back In (1985, com Peter Evans e Dietrich Rueschemeyer); Política Social nos Estados Unidos (1995); Bumerangue: o esforço de segurança da saúde de Clinton e a virada contra o governo na política dos EUA (1996); Engajamento cívico na democracia americana (1999, com Morris Fiorina); Democracia diminuída: da filiação à gestão na vida cívica americana (2003); Desigualdade e democracia americana: o que sabemos e o que precisamos aprender (2005, com Lawrence R. Jacobs); Que poder poderoso nós podemos ser: grupos fraternos afro-americanos e a luta pela igualdade racial (2006, com Ariane Liazos e Marshall Ganz); e A transformação da política americana: o governo ativista e a ascensão do conservadorismo (2007, com Paul Pierson). Seus livros e artigos têm sido amplamente citados na literatura de ciência política e ganharam inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio Woodrow Wilson, de 1993, da American Political Science Association, pelo melhor livro de ciência política do ano anterior. A pesquisa de Skocpol enfoca a política social dos EUA e o engajamento cívico na democracia americana, incluindo mudanças desde a década de 1960. Ela participou de projetos sobre as transformações das políticas federais dos EUA na era Obama.

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UNIDADE 2 | NEOMARXISMO E NEOINSTITUCIONALISMO

FIGURA 10 – THEDA SKOCPOL

Fonte: <https://i.ytimg.com/vi/sridkV5-M70/hqdefault.jpg>. Acesso em 10 out. 2019.

3.1 O NEOINSTITUCIONALISMO DE THEDA SKOCPOL E O PAPEL DO ESTADO

Theda Skocpol é uma das representantes do neoinstitucionalismo de maior destaque na Ciência Política. Para a referida autora, o Estado constitui-se em suas diversas dimensões institucionais com autonomia relativa. Nesta perspectiva, os Estados formulam e implementam objetivos, programas e políticas públicas a partir de seus interesses estratégicos, ou seja, para além de demandas sociais, ou de grupos de interesses, o Estado também age de forma autônoma, “podem formular e perseguir objetivos que não sejam um simples reflexo das demandas ou dos interesses de grupos ou de classes sociais da sociedade. Isto é o que se entende normalmente por autonomia do Estado” (SKOCPOL, 1989, p. 86, tradução nossa).

A partir destes pressupostos analíticos se pode conceber o Estado como um ator político com capacidade de formulação e ação política com condições de se contrapor aos fortes interesses de grupos de pressão sobre o protagonismo do Estado na gestão da coisa pública. Nessa mesma direção, é preciso considerar que os Estados têm autonomia de ação diante da necessidade cotidiana de manutenção da ordem interna, condição necessária à sua manutenção.

Porém, a autora demonstra que a autonomia do Estado na concepção, elaboração e implementação de políticas públicas não pode ser concebida como um princípio universal e linear. A autonomia do Estado depende de aspectos históricos implicados em sua constituição social e por decorrência de suas instituições, o que implica em estudos e análises históricas, sociológicas relativas à forma como se constituíram cada um dos sistemas políticos.

Decorrente desta perspectiva analítica, a autonomia do Estado na elaboração de políticas públicas pode se constituir de forma consistente, ou mesmo definhar na medida em que o potencial de autonomia se modifica temporalmente. Porém, tal condição somente pode ser aferida a partir de estudos históricos atentos às transformações estruturais e conjunturais características de cada sistema político.

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Para Skocpol, a burocracia estatal constituída pelos técnicos e funcionários do Estado tem condições de elaborar estratégias políticas globais de longo prazo que superam os interesses de determinados grupos privados, ou mesmo de interesses vinculados a dinâmica capitalista globalizada. A autora ainda chama atenção para outro aspecto determinante da ação estatal que incide sobre a política, nomeada de “Tocqueviliana”, em referência ao historiador e filósofo político francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), cuja obra: A Democracia na América, publicada em 1830 em dois volumes, é um extenso e detalhado estudo da constituição das instituições e da sociedade americana.

A perspectiva tocqueviliana apontada por Skocpol parte do pressuposto de que as instituições são primordiais para a dinâmica política na medida em que o Estado, enquanto ator de políticas púbicas juntamente com o conjunto das instituições políticas incide prepositivamente sobre a cultura política, as estratégias estabelecidas pelos diversos atores na conformação da agenda política a ser implementada pelo Estado.

Nesta direção, as instituições têm a capacidade de influenciar o comportamento político dos diversos grupos sociais que formulam demandas baseadas no cálculo racional sobre as condições de possibilidade de alcançarem a efetividade de seus pleitos junto à estrutura estatal. Por seu turno o Estado ao dar vasão as temáticas e demandas apresentadas amplia o espectro de demandas correlacionadas advindos de outros grupos e instâncias sociais. Assim, Skocpol procura demonstrar que a conformação de políticas não se apresenta de forma exógena aos sistemas políticos, mas é resultante da ação do próprio Estado. Nessa direção, também se inserem as reinvindicações sociais provenientes das expectativas dos atores sociais em relação à ação do Estado.

As perspectivas analíticas da ciência política de Skocpol demonstram num primeiro momento que as ações do Estado não estão desprovidas de interesses. Podem ser orientadas por grupos de interesse. Sugeridas pelas diversas instituições constitutivas do Estado. Porém, a despeito destas condições, cada Estado tem suas especificidades, que perpassam pelo corpo técnico de funcionários, arquitetura institucional, capacidade econômica, inserção internacional, que incidem sobre a capacidade que um Estado possui para orientar a dinâmica política, influenciar comportamentos dos atores sociais e políticos, bem como agir de modo propositivo nas mais diversas esferas constitutivas da sociedade.

Sob os pressupostos analíticos do institucionalismo histórico de Skocpol, o Estado é concebido como ator político e como estrutura institucional com incidência direta no mundo político, estabelecendo correspondência direta entre o aparato institucional do Estado e a performance governamental. Ainda nesta direção, a consistência e a autonomia de um Estado de sua conformação societária e institucional em seu percurso histórico, bem como de sua participação na conjuntura institucional. Assim, para a autora compreender a efetividade das políticas públicas, da ação governamental decorrentes da consistência estatal requer o estudo e a compreensão do Estado em seu percurso histórico particular.

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4 HARLES TILLY E SUAS CONTRIBUIÇÕES NEOINSTITUCIONALISTAS AO CONCEITO DE DEMOCRACIA

FIGURA 11 – CHARLES TILLY

FONTE: <http://twixar.me/8M0T>. Acesso em: 10 out. 2019.

O Sociólogo e cientista político estadunidense Charles Tilly (PhD em Harvard, 1958) nasceu em Lombard, cidade próxima a Chicago, em 27 de maio de 1929 e faleceu em New York, em 29 de abril de 2008. Lecionou na University of Delaware, na Harvard University, na University of Toronto, na University of Michigan, e na New School for Social Research, até se tornar professor de Ciências Sociais na Columbia University. É membro da National Academy of Sciences, da American Philosophical Society e da American Academy of Arts and Sciences. Autor de 50 livros, os mais recentes foram: The politics of collective violence (2003), Contentions and democracy in Europe (2004), Trust and role (2005) e Democracia (2007).

Charles Tilly é um desses neoinstitucionalistas recentes, entre os quais há uma retomada de preocupações éticas. Sua análise é, ao mesmo tempo, criteriosamente lógica, quase matemática, e de engajamento pela democracia. Pode-se, ainda, apresentá-lo como um defensor da democracia que não deixa passar as falhas que o regime democrático, onde quer que seja, apresenta no mundo real. O sociólogo da Columbia University afirmava que “para levar a democracia a sério era preciso saber do que se trata” (TILLY, 2013, p. 21, tradução nossa). Foi o que se propôs a fazer no livro homônimo que nos serve de referência para apresentarmos a importante contribuição do autor ao conceito e à vida real que tanto necessita do esforço intelectual refinado que autores como Tilly proporcionaram.

Ao promover uma cuidadosa apreciação das abordagens conceituais sobre a democracia, Tilly captura uma série mínima de fatores processuais que, verificáveis nas experiências políticas existentes, permitem a caracterização de uma situação democrática. Nessa perspectiva, Tilly não hesita em recorrer a uma tipificação clássica do cientista político Robert Dahl. Este autor estipulou cinco critérios que relacionam as situações que realmente podem ser consideradas democráticas, como podemos avaliar na sequência a seguir:

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• Participação efetiva: antes de uma política ser dotada pela associação de pessoas, todos os membros precisam ter oportunidades iguais e efetivas para tornar conhecidas aos outros, suas visões sobre como deveria ser tal política.

• Igualdade de voto: quando chega o momento de decidir qual política deve ser feita, todo membro deve ter uma oportunidade igual e efetiva de votar, e todos os votos devem ser contabilizados como iguais.

• Entendimento esclarecido: dentro dos limites razoáveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as alternativas de políticas mais relevantes e suas prováveis consequências.

• Controle da agenda: os membros devem ter a oportunidade exclusiva de decidir como e quais os assuntos devem ser colocados na agenda. Portanto, o processo democrático exigido pelos três critérios precedentes nunca é fechado. As políticas da associação sempre são sujeitas a mudanças por parte de seus membros, se eles assim escolherem.

• Inclusão dos adultos: todos os adultos que são residentes permanentes, ou ao menos a maioria, devem ter os plenos direitos dos cidadãos que estão implicados nos quatro critérios anteriores. Antes do século XX esse critério era inaceitável pela maior parte dos defensores da democracia (DAHL, 2001, p. 37-38).

Este simples estabelecimento de critérios é amplamente aceito e utilizado para uma caracterização definitiva sobre o significado de um ambiente democrático. E, tanto quanto o próprio Robert Dahl, Charles Tilly ajudou a difundir essa classificação. Naturalmente, nas sociedades de massa, esses ambientes precisam de respaldo institucional formal, isto é, legal. E, a fim de estimular a democratização de tais ambientes, as leis e toda a normatização das constituições democráticas foram se baseando nesses critérios para as suas formulações. Nessa perspectiva, esse tipo ideal de democracia, pode ser, e tem sido utilizado como ponto de partida para estudar as democracias em qualquer lugar do planeta.

Obviamente, foi isso que Charles Tilly fez. Trata-se de um cientista, que não apenas reflete profundamente sobre seus temas de interesse, como também os investiga empiricamente. É nessa perspectiva que, como um neoinstitucionalista que é, o autor observa que a institucionalização formal de ideias democráticas não garante o procedimento democrático. Lembremos novamente da máxima institucionalista tradicional, segundo a qual, boas leis fazem bons homens. É claro que isso é importante, mas insuficiente. Assim, ao demonstrar os resultados de suas pesquisas sobre o funcionamento das democracias em vários países, o cientista político neoinstitucionalista demonstra que com alguma frequência as boas cartas constitucionais e suas respectivas leis não são seguidas.

Mas então, onde reside o problema? Um neoinstitucionalista pode, de modo geral, responder de três maneiras, senão vejamos: inicialmente, pode dizer que, se as leis não levam devidamente em consideração os ímpetos racionais e egoístas dos atores políticos, distanciam-se da realidade e as instituições tendem a não funcionar. Podem também afirmar que a história da sociedade que recebe tais instituições formais não está sendo devidamente considerada, ignorando-se aspectos do seu desenvolvimento que não correspondem às expectativas geradas pelas leis. E, por fim, de modo semelhante à segunda maneira, a cultura dessa

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sociedade, seus valores, crenças e visão de mundo em geral não foram levados devidamente em conta, tampouco foram ouvidos devidamente àqueles que deverão submeter-se a essas leis, isto é, os indivíduos e seus anseios.

O sociólogo Charles Tilly não ignoraria nenhuma dessas maneiras de responder ao problema. Não obstante, os cientistas políticos, em geral, o classificam, ora como neoinstitucionalista histórico, ora como neoinstitucionalista sociológico. De fato, o que isso quer dizer corresponde às interpretações do autor sobre as democracias que investigou em vários países, expostas em seu último livro, intitulado Democracia. Tilly assevera que, por mais perfeitas que pareçam as leis, regras e normas prescritas, muitas vezes elas não passam do papel. E por que isso acontece? Porque, nesses casos, não estão na melhor correspondência com a cultura, ou com os interesses reais das elites que tomam o poder em nome do povo, mas o exercem segundo interesses privados e costumes antirrepublicanos.

Do ponto de vista institucional, temos que nos perguntar: qual é o papel das instituições? Podemos responder que elas proporcionam modelos morais e, sobretudo, éticos para que os indivíduos se orientem e ajam de acordo com o que a Sociedade deles espera. Então, quanto melhores as formulações das leis, melhores deveriam ser os resultados esperados. E, podemos concordar que, em grande medida, isso realmente acontece. Do contrário, estaríamos discordando do maior inspirador do institucionalismo: Montesquieu.

Do ponto de vista da tradição behaviorista, precisamos entender que a lei será relativamente eficaz na medida em que os indivíduos a ela submetidos compreenderem, por meio do cálculo, que a recompensa será maior ao obedecê-la, do que ao infringi-la. É uma interpretação correta, que podemos aplicar aos casos reais. Isso nos permitiria, com frequência, compreender o porquê da incidência e até mesmo da reincidência de certos crimes é mais frequente. Se a violência contra mulheres ou as transgressões no trânsito persistem numa sociedade que tem preceitos educacionais e legislação suficiente que devesse inibi-los, é porque o cálculo do transgressor o faz concluir que a recompensa será maior do que a punição. É assim que a teoria da escolha racional, que é behaviorista, pode nos ajudar a compreender as coisas, na Ciência Política, na Sociologia ou no Direito.

Sem negar a importância disso, Charles Tilly pende às explicações de cunho histórico e sociológico. Em suas análises sobre a democracia, ele explica que com frequência os costumes arraigados de longa data podem ser estímulos a determinadas leis, como podem também ser obstáculos. Nessa perspectiva, visões de mundo antirrepublicanas existentes e de longo tempo podem obstruir, e com frequência obstruem a construção de ambientes democráticos. Certas concepções arraigadas na história e interpretáveis sociologicamente, contém informações reveladoras. Tais concepções levam certas culturas a aceitarem com mais naturalidade ou conformismo o nepotismo e a própria desigualdade social. De um lado, podem explicar por que leis formuladas para combater esses fenômenos não apresentam a eficácia formalmente esperada. E, de outro, ainda podem explicar como certas leis são formuladas e aprovadas, pronunciando interesses republicanos, mas ocultando, e garantindo nas entrelinhas, a permanência de velhos privilégios.

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Além disso, Tilly insiste em observar que cada período histórico tem um conjunto diferente de elementos que são próprios daquele momento e não se repetirão mais tarde, nem existiram anteriormente. Nessa perspectiva, o sociólogo sugere o conceito de “repertório de contenções”, que são fatores presentes no imaginário coletivo. São, portanto, compartilhados entre muitos indivíduos, tendo força de resistência contra mudanças ou até mesmo a favor delas, obrigando governos a agirem. Incluem maneiras habituais de pensar, escolher e agir, originárias de desejos coletivos, valores e crenças. Assim, percebemos, no pensamento de Tilly, possibilidades interpretativas amplificadas, com o propósito de compreender porque as coisas, muitas vezes não funcionam, mesmo quando tudo parece perfeito, do ponto de vista do papel ou dos discursos. Esse é o papel da Ciência Política.

Nessa perspectiva, o sociólogo e cientista político estadunidense contrapôs-se ao reducionismo do individualismo metodológico. Embora não discordasse completamente do behaviorismo, fez críticas à teoria da escolha racional, também denominada teoria da escolha pública, além da teoria dos jogos. Como já vimos, essas perspectivas conduzem sempre a uma interpretação individualista das ações das pessoas, seja na economia, seja na política ou em outros campos do relacionamento social. Por extensão, sugerem que haveria sempre um impulso egoístico a orientar os cálculos, as escolhas, os pensamentos e as ações dos indivíduos. Opondo-se a esse reducionismo, Charles Tilly soube demonstrar com perspicácia que outros elementos de ordem cultural e histórica interferem o tempo todo nas ações sociais, tornando os agentes humanos mais complexos.

Repertório de contenções é o conjunto de saberes que as pessoas utilizam coletivamente quando se opõem a uma decisão política que consideram injusta ou prejudicial à sua segurança, liberdade ou as suas crenças e comodidades. O efeito desses repertórios de contenções é dificultar ou impedir o funcionamento de certas instituições. Portanto, tem o sentido de conter mudanças institucionais. Mas podem também conter ímpetos governamentais e provocar mudanças.

NOTA

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5 PETER EVANS E O CONCEITO DE SINERGIASFIGURA 12 – PETER EVANS

FONTE: <https://watson.brown.edu/files/watson/styles/facultyimage/public/imce/people/fellows/evans/Evans_Peter.jpg?itok=JX1hkb2o>. Acesso em: 10 out. 2019.

O sociólogo neoinstitucionalista estadunidense Peter B. Evans nasceu em 2 de junho de 1944. É bastante conhecido pelo seu esforço investigativo e analítico no tema da economia política comparativa do desenvolvimento nacional. É esse o tema central de seu livro Autonomia Embutida: Estados e Transformação Industrial (1995), e Estado Desenvolvimentista do Século 21, que o autor discute uma série de artigos publicados a partir do Século XXI. Nos últimos anos, este professor da Universidade de Harvard tem pesquisado as maneiras pelas quais os movimentos sociais podem se mobilizar transnacionalmente para construir uma globalização contra-hegemônica. Entre esses movimentos, o movimento sindical global é um ator-chave. Veja seu artigo de 2008 É uma globalização alternativa possível? E seu artigo de 2010 É a vez do trabalho de globalizar?

Não obstante ao seu interesse pelos movimentos políticos e seu engajamento democrático, Evans é um cientista político fortemente ligado às coisas da Economia, e, mais especificamente, um interessado e pesquisador do tema do desenvolvimento econômico. Seu interesse politológico no desenvolvimento o leva à tentativa de uma síntese das chamadas novas teorias do desenvolvimento. Nessa direção, tem congregado preocupações com o capital humano e as formas institucionais que consigam incentivar corretamente tais recursos. Soma-se a isso suas preocupações em detectar, ao lado de outros institucionalistas como Acemoglu e Robinson (2012), as “instituições espoliativas”, isto é, leis e regras formais ou informais que espoliam populações e impedem o desenvolvimento econômico. E uma terceira corrente atual do desenvolvimento econômico é aquela preocupada em identificar instituições que estimulam a expansão das capacidades humanas para a promoção do desenvolvimento.

O sociólogo de Harvard realiza pesquisas empíricas há décadas, acompanhando os desempenhos institucionais de nações, identificando sucessos e fracassos de políticas públicas e de legislações. Dessa forma, tem aproximado essas três discussões desenvolvimentistas, mencionadas no parágrafo anterior, preocupado em demonstrar a importância do Estado e suas instituições na promoção do desenvolvimento sustentável. Sua assertiva é a de que o Estado

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tem função indispensável e precisa construir, em parcerias constantes com a sociedade organizada, arranjos institucionais capazes de expandir as capacidades humanas. Sua perspectiva teórica reside em superar a discussão entre o bem-estar humano e o crescimento humano. Procura demonstrar, sempre empírica e estatisticamente, a reciprocidade desses dois fatores e a convergência necessária entre o desenvolvimento pleno das condições humanas com o crescimento sustentável do PIB.

Percebe-se a preocupação institucionalista do autor, as instituições são suas apostas. No entanto, precisamos avançar no desenvolvimento de seu pensamento para percebermos o autor como um cientista político do novo institucionalismo. Continuemos, pois, observando suas preocupações com o desenvolvimento e a correlação importante que o autor faz entre as melhores condições democráticas possíveis que corresponderiam, segundo ele, com os melhores estímulos ao desenvolvimento econômico. Nesse sentido, Peter Evans lembra a necessidade de um conhecimento muito sensível dos reais, e nem sempre explicitamente manifestos, anseios da sociedade. Com frequência, demonstra o sociólogo através de suas pesquisas, governos investem grandes quantidades de recursos e não obtém êxito ou sequer objetivam ampliar as capacidades humanas. Nessa perspectiva, o aprofundamento da institucionalização democrática é que produz os melhores resultados ao desenvolvimento econômico.

Sua jornada de décadas de pesquisa neoinstitucionalista credencia Evans a importantes assertivas. Nessa perspectiva, o autor indica que os caminhos do desenvolvimento implicam no abandono do modelo burocrático centralizado da maior parte do Século XX. Nesse sentido, Evans permite o reconhecimento de seu neoinstitucionalismo de caráter ao mesmo tempo histórico e sociológico. É histórico por considerar a importância de cada conjunto de circunstâncias históricas que podem ser favoráveis ao desenvolvimento. Ao mesmo tempo está dito: é preciso livrar-se de “legados históricos” que promovem as tais “contenções” de que falava Tilly (2013). Mencionando o economista italiano Giovanni Arrighi, Peter Evans afirma que o que impede a busca pela expansão das capacidades humanas na promoção do desenvolvimento econômico são fatores de ordem política (EVANS, 2012). A rigor, trata-se de cartas constitucionais e suas leis.

Conquanto seja um cientista rigoroso no tocante ao método empírico e à objetividade da ciência, Peter Evans (2012) adere às preocupações de Charles Tilly (2013), no sentido de um engajamento ético na política em defesa da democracia. Não obstante, insista-se: o faz sempre demonstrando empiricamente, calcado em dados estatísticos, sobre os efeitos benéficos de boas instituições democráticas na vida das pessoas, especificamente no desenvolvimento econômico. E esse engajamento, ao mesmo tempo ético e científico, o leva a advogar pelo grande produto político-institucional do Ocidente: o Estado de bem-estar social. Significado da própria capacidade de evolução institucional que o Ocidente construiu historicamente, o Welfare State tem produzido as melhores pré-condições à expansão das capacidades humanas: saúde, educação e proteção dos direitos sociais, além, evidentemente, das garantias à liberdade política.

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Nessa perspectiva, Paul Evans (2012) tem se esforçado a demonstrar os efeitos benéficos de volumosos investimentos na qualidade de vida das populações. Em outras palavras, Evans faz comprovar a relação direta de causa e efeito entre políticas de bem-estar social e desenvolvimento econômico. É principalmente do ponto de vista educacional que o autor se esforça por demonstrar como os investimentos em conhecimento, e não em manufatura, tem se mostrado auspiciosos. Bem formulados e bem orientados, os investimentos em capital humano proporcionados por políticas de bem-estar trazem resultados estatisticamente comprováveis ao desenvolvimento econômico. Eles se refletem nos níveis de produtividade, na geração de novos postos de trabalho e pequenos empreendimentos, fatores que convergem para o desenvolvimento sustentável e da capacidade produtiva, aumento e distribuição da renda nacional.

Mencionando dados estatísticos de análises empíricas de longo tempo, Evans demonstra como estruturas institucionais diretamente objetivadas à promoção do capital humano produzem resultados ao desenvolvimento econômico. Ao se referir aos efeitos benéficos de políticas educacionais, Evans lança mão de um estudo de longo prazo para demonstrar a eficácia das instituições. Faz lembrar um estudo que analisou a economia estadunidense entre os anos de 1950 até 1993. Ali, a análise comprova que o investimento em capital humano se traduziu no aumento da vida média escolar, em quatro anos. Na sequência, Evans demonstra a relação causal disso com o aumento da produtividade média do trabalhador nos EUA. O estudo demonstra que esse aumento da vida escolar explicava 30% do aumento da produtividade, enquanto os outros 70% deviam-se ao aumento do armazenamento de novas ideias, que geraram inovação e aperfeiçoamento (EVANS, 2012).

Vale lembrar que Peter Evans se dedicou a relativizar o protagonismo estatal. E faz isso de maneira interessante, numa discussão que iniciou no fim do Século XX e continua interessando cientistas sociais dedicados às questões do desenvolvimento. Trata-se da proposição em torno da necessidade de promover sinergias entre instituições públicas e a Sociedade civil organizada. Nessa direção, o sociólogo da Universidade da Califórnia aproximou-se também do conceito de capital social. Juntamente com o sociólogo Dietrich Ruerschemeyer, da Brown University, de Rhode Island, desenvolveram importantes pesquisas a fim de compreender quais as melhores formas de intervenção governamental. Demonstrada estatisticamente, a constatação mais importante foi a de que as melhores circunstâncias dependem da capacidade de governos em construir laços com a sociedade.

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Sinergia, aplicada às ciências sociais, tem o significado de promoção de laços de cooperação e confiança entre agentes políticos, com o objetivo de estabelecer as melhores estratégias de desenvolvimento. Sugerido por autores como Evans e Ruerschemeyer, entre outros, tem a ver com a capacidade de estabelecimento de aproximações cooperativas entre o poder público e a sociedade civil organizada.

Capital Social é um conceito recente sugerido pelo neoinstitucionalismo nas Ciências Sociais. É o resultado de fatores como cooperação e confiança, diálogo e civismo, que tem ajudado pesquisadores a compreender o desenvolvimento de cidades, regiões e nações.

IMPORTANTE

NOTA

Aproveitando os recursos sociais à disposição, o capital social e sinergias com a sociedade civil organizada, os governos em geral demonstram maiores possibilidades de êxito nas políticas públicas e no fortalecimento das instituições. Nessa perspectiva, é importante frisar: trata-se da contribuição analítica do neoinstitucionalismo na ciência política em detectar a eficiência das instituições. Em outras palavras, lembremos que o caráter renovado do prefixo “neo” diz respeito à relação causal que os estudiosos das instituições políticas e sociais estabeleceram entre as instituições (leis, normas e regras, incluindo políticas públicas) com os comportamentos dos indivíduos e, por extensão, de seus costumes, valores que determinam as características culturais de cada sociedade.

Nessa perspectiva, ganha, em importância, a noção de capital social. Trata-se de um fenômeno social bastante importante para a compreensão e, evidentemente, para a formulação e execução de políticas públicas bem-sucedidas na promoção do desenvolvimento e do bem-estar social. Peter Evans e outros neoinstitucionalistas históricos e sociológicos foram capazes de demonstrar a importância de elementos de ordem social-cultural capazes de impactar as políticas públicas. Considerando que os recursos são escassos e as demandas são volumosas, a percepção sobre a otimização desses recursos através da potenciação de energias sociais é uma contribuição valiosa a governos sérios.

Essa é a contribuição que o sociólogo Peter Evans, como outros, tem realizado. Como pesquisador e cientista, seu esforço acadêmico tem objetivado a demonstração sobre as vantagens de governos otimizarem recursos escassos, potenciando a eficácia de políticas públicas através do aproveitamento da

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capacidade cooperativa existente em sociedade. Naturalmente, governos têm se utilizado desse conhecimento, melhorando resultados de suas ações. Entre tudo, vale destacar que essa contribuição de Peter Evans não é meramente discursiva, mas é demonstrada estatisticamente a partir de suas investigações empíricas. Nesse sentido, autores como Evans tem contribuído para tornar mais confiáveis as demonstrações acadêmicas, contribuições teóricas por assim dizer, relacionando democracia com eficácia. Isso ajuda a compreender que, para além de leis bem-feitas e burocratas competentes, governos precisam ter sensibilidade social para compreender a eficácia, e não apenas as boas intenções da cultura democrática.

6 PETER HALL E AS VARIAÇÕES DO NEOINSTITUCIONALISMOFIGURA 13 – CIENTISTA POLÍTICO CANADENSE PETER HALL

FONTE: <https://media.npr.org/assets/img/2017/01/18/ap_870705013_custom-626f9595abefe959b2210e9163163f643c961881-s800-c85.jpg>. Acesso em: 10 out. 2019.

O cientista político Peter Andrew Hall nasceu em Montreal, Canadá, no ano de 1950. É professor de Estudos Europeus da Fundação Krupp no Departamento de Governo da Universidade de Harvard e do Centro Minda de Gunzburg de Estudos Europeus na mesma conceituada Universidade. Por conta de seu notável trabalho, o autor é referência contemporânea na teoria política norte-americana e europeia, notadamente no campo das pesquisas sobre instituições e sobre a Europa. Além disso, por conta do escopo neoinstitucionalista, estuda políticas econômicas, já que a Economia é outro campo de conhecimento em que o estudo das instituições é fundamental.

Hall concluiu seus estudos em Economia e Ciência Política com um diploma de Bacharel em Artes pela Universidade de Toronto, em 1972, tendo posteriormente ingressado no Balliol College da Universidade de Oxford, onde cursou seu mestrado em Ciências Políticas, concluído em 1974. Em 1982, Peter Hall doutorou-se em Ciência Política pela Universidade de Harvard. É autor do livro Variedades do capitalismo, juntamente com o economista David Soskice. O título tornou-se expressão na Ciência Política e foi inspirado nas pesquisas de seu amigo e co-autor Soskice, introduzindo reflexões originais sobre neocorporativismo, neoinstitucionalismo e nova economia institucional.

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Entre 2001 e 2006, Hall coordenou o Centro de Estudos Europeus da Universidade de Harvard. Neste último ano, foi condecorado com o título de doutor honoris causa no influente Institut d'études politiques de Paris. Em 2009, ele foi um membro do Science Center Berlin, recebendo no ano seguinte uma bolsa da Hanse-Wissenschaftskolleg em Delmenhorst. Além disso, o cientista político canadense é membro da Academia Britânica desde 2017 e recebeu uma bolsa de estudos da John Simon Guggenheim Memorial Foundation em 2018/2019. Em 2019 ele foi eleito para a Academia Americana de Artes e Ciências.

Particularmente, nos interessa aqui demonstrar sua contribuição analítica e classificatória sobre o neoinstitucionalismo. Nessa perspectiva, o trabalho central de Hall foi publicado em um artigo seminal sobre os três modelos clássicos de neoinstitucionalismo, publicado com a contribuição da socióloga Rosemary Taylor, que trabalha com Hall no Centro Minda de Gunzburg. Trata-se de As três versões do neoinstitucionalismo (HALL & TAYLOR, 1993). Os autores sugerem a classificação da seguinte maneira: o neoinstitucionalismo histórico, o neoinstitucionalismo da escola racional e o neoinstitucionalismo sociológico.

Segundo os autores, trata-se de três perspectivas metodológicas que se desenrolaram em reação ao behaviorismo. Nessa direção, Hall e Taylor procuram obstar-se à tendência de parte da teoria política em ignorar fatores de ordem histórica e cultural ou ainda de ordem emocional que estão presentes nas motivações dos indivíduos. O propósito desafiador dessas três abordagens é esclarecer, em definitivo, o papel que as instituições formais, mas também informais, conseguem desenvolver na busca da eficácia política, econômica e social.

6.1 O NEOINSTITUCIONALISMO HISTÓRICO

A abordagem do neoinstitucionalismo histórico se desenvolveu a partir da década de 1980 como oposição à análise estrutural-funcionalista na Ciência Política. Esta criticada perspectiva pressupõe a compreensão do funcionamento institucional, exclusivamente a partir dos comportamentos coletivos, isto é, de grupos, de classes sociais etc. Mas, antes de se opor, a escola histórica retém dessa perspectiva de grupos sua principal tese, qual seja, a de que a disputa entre grupos oponentes pelos recursos escassos é a marca d’água da política.

Todavia, os institucionalistas históricos insistem em que é preciso ir além, verificando as situações históricas particulares de cada Sociedade, a fim de saber como cada uma delas chegou a certo ponto na distribuição dos recursos. Nessa perspectiva, devem ser considerados aspectos peculiares a cada sociedade, isto é, que não se repetem em outras experiências.

Desse modo, imaginemos um país como o Brasil. Como em qualquer outro país, também aqui é necessário reconhecer as disputas de poder entre grupos, na apropriação dos recursos localmente e nacionalmente produzidos. Assim se constituem as elites e assim elas conflitam entre si, permanentemente,

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até que um grupo ou mais consiga destronar outro ou outros. A questão é que, se desconsiderarmos o nosso processo de colonização, por exemplo, perdemos aspectos importantes da interpretação sobre o funcionamento das instituições e o quadro de desigualdades sociais.

Se considerarmos o modelo institucional, isto é, a forma de organização política e jurídica que a coroa portuguesa introduziu no Brasil, poderemos averiguar quais os seus reflexos na política atual e melhor compreendermos o presente. Nesse sentido, a explicação da desigualdade pode ser compreendida a partir do estudo das instituições legais, de como elas foram formuladas, que visão de mundo e interesses elas ocultam e, uma vez estudadas, acabam revelando. Opunham-se aos funcionalistas e estruturalistas, pois que estes ignorariam esses elementos históricos.

Ainda nessa perspectiva, poderíamos pensar em nossa herança patrimonialista, deixada pelos portugueses. Esse patrimonialismo, representado na acomodação das elites políticas, reproduz o velho modelo das oligarquias rurais que, desde as Capitanias Hereditárias, se apropriam do patrimônio público para o seu interesse privado. A distinção a ser feita aqui é que não se trata de uma forma ilícita de fazê-lo, embora isso também ocorra. Diferente da ilegalidade e do peculato, trata-se de perceber que as próprias instituições legais é que permitem o locupletamento do patrimônio público através de uma extensa rede legal de privilégios e direitos adquiridos. Essa é a contribuição do institucionalismo histórico.

6.2 O NEOINSTITUCIONALISMO DA ESCOLHA RACIONAL

Inicialmente, a Escola do Institucionalismo da escolha racional (rational choice theory) surge a partir dos estudos comportamentais no Congresso estadunidense. Trata-se de ideia já apresentada na Unidade I deste livro de Teoria Política. Ali, também denominada de Teoria da Escolha Pública, apresentamos a definição desta Escola Metodológica da Ciência Política a partir de sua principal pressuposição: a de que os agentes políticos, assim como os econômicos, procuram maximizar seu interesse individual, antes de qualquer outra coisa. Assim, de um lado, o agente político procura materializar determinados interesses a partir da escolha dos melhores meios a sua disposição e de outro, assim que o objetivo foi alcançado, procura extrair-lhe a máxima utilidade (HIGGINS, 2005).

Não obstante, observando os comportamentos dos agentes políticos, os institucionalistas da escolha racional perceberam uma importante incongruência. Ora, se a premissa geral da rational choice theory é a do interesse próprio, então, sugere Peter e Taylor, “deveria ser difícil reunir maiorias estáveis para votar leis no Congresso norte-americano” (HALL; TAYLOR, 2003, p. 201). Isto é, se o interesse de cada um está acima dos demais, deveria ser difícil obter estabilidade no Congresso. Entretanto, paradoxalmente, a estabilidade era a regra no Congresso norte-americano. O que explicava isso?

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Os teóricos da escolha racional voltaram-se, então, às instituições e procuraram compreender o modo como eram formuladas. O que perceberam foi que elas eram moldadas habilmente de acordo com os interesses corporativos e fisiológicos dos congressistas. Em geral, com todas as particularidades de seus membros a cada legislatura, o que fica são as instituições, isto é, as leis e as inúmeras regras que definem as formas de votação, as comissões etc. tudo é estruturado no sentido de que os procedimentos sempre preservem os interesses dos legisladores, a melhor relação com seus eleitores, a proteção legal de seus status etc. Em outras palavras, os formuladores das regras são os próprios legisladores e eles têm interesses egoístas que, contudo, são comuns entre eles. Dessa forma, encontram maneiras legais e procedimentais de garantir seus interesses. Assim, compreende-se que os agentes públicos, notadamente os legisladores, mas também aqueles agentes próximos a eles, encontram inúmeras brechas institucionais de garantir interesses de autopreservação. Nessa perspectiva, complementam Hall e Taylor:

No conjunto, explicava-se que as instituições do Congresso diminuem os custos de transação ligados à conclusão de acordos, de modo a propiciar aos parlamentares os benefícios da troca, permitindo a adoção de leis estáveis. Na prática, as instituições resolvem uma grande parte dos problemas de ação coletiva enfrentados pelos legisladores (HALL; TAYLOR, 2003, 203).

6.3 NEOINSTITUCIONALISMO SOCIOLÓGICO

Na mesma perspectiva dos estudos na Ciência Política, o neoinstitucionalismo se desenvolveu também na Sociologia. Seu surgimento é do fim da década de 1970, no interior da teoria das organizações, um ramo da Sociologia. Trata-se da percepção que sociólogos passaram a ter dos comportamentos das pessoas no mundo das organizações e na sociedade em geral. Os neoinstitucionalistas sociológicos começaram a perceber as insuficiências da perspectiva sociológica que entendia o mundo social como reflexo de uma racionalidade cada vez mais burocratizada. Faltava alguma coisa nessa análise, suspeitavam alguns sociólogos, Peter Hall e Rosemary Taylor, entre eles.

Desde as observações de Max Weber, muitos teóricos da Sociedade passaram a considerar o domínio das estruturas burocráticas sobre os indivíduos. Esse influxo institucional das instituições burocráticas estaria nas empresas, nas esferas do Estado, nas escolas e assim por diante. Seria o resultado de um esforço de dominação premeditado de tornar os comportamentos cada vez mais controlados e direcionados aos interesses dos sistemas sociais, econômicos e políticos. Nesse sentido, havia uma significativa crença na capacidade institucional-burocrática de interferir nos comportamentos, no sentido de torná-los mais e mais previsíveis e a sociedade cada vez mais mecanizada, na falta de melhor expressão.

Não se tratava simplesmente de enaltecimento à burocracia. Tratava-se, sobretudo, de crítica sociológica e reconhecimento sobre o poder da racionalidade burocrática, o que fica bastante evidente nas análises de Habermas (1987), por

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exemplo. De todo modo, são bastante frequentes as abordagens estrutural-funcionalistas, como é o caso das análises que sugerem a força influente das estruturas burocráticas ao induzirem os indivíduos ao cumprimento de funções.

Mas, qual é, então, a contribuição dos neoinstitucionalistas da Sociologia ao debate? É a percepção de que os comportamentos individuais expressam, com frequência, aspectos de ordem cultural, como valores, crenças etc., oriundos de sua educação comunitária, expressando suas identidades coletivas. São aspectos anteriores às moldagens forjadas pelas estruturas burocráticas.

Ao investigar a elaboração de políticas econômicas do governo inglês, Peter Hall observa aspectos influentes que transcendem a importância da burocracia. Esses fatores de influência, para Hall, são as ideias. Hall também critica a simplicidade das proposições que carregam a explicação dos comportamentos dos indivíduos e do funcionamento geral das organizações e sociedades na eficiência das instituições, isto é, das leis, regras e burocracias.

Nessa perspectiva que ele recusa, a tese geral é a seguinte: se as coisas dão certo é porque as instituições foram bem formuladas e são bem operacionalizadas e conduzidas. Se as coisas vão mal, é porque elas não foram bem formuladas, provocando maus comportamentos e, consequentemente, maus resultados. Assim, o cientista político Peter Hall contrapõe a ideia de que são fatores de ordem social, que estão para além da formulação racional e científica das instituições, que exercem considerável influência nos comportamentos dos indivíduos.

Por extensão, esses fatores sociais podem ser determinantes para o entendimento do funcionamento de organizações políticas e econômicas. E, por conclusão, se tais fatores são importantes, podem, com frequência subverter a perspectiva tradicional do institucionalismo. Qual é mesmo essa premissa? Justamente a que foi mencionada anteriormente e questionada por Hall, qual seja, a de que se as coisas vão bem ou mal, mire-se na formulação das instituições formais (leis, regras e normas burocráticas). Ao contrário, dirá Hall, muitas vezes, por boas ou ruins que sejam as leis, normas e regras, ainda assim, hábitos, costumes, valores, crenças e procedimentos sociais daí oriundos podem fazer a diferença. Essa explicação de Peter Hall é compartilhada por Robert Putnam, nosso último autor neoinstitucionalista a ser apresentado neste último tópico da Unidade 2.

7 DOUGLAS NORTH E A NOVA ECONOMIA INSTITUCIONALDouglas C. North nasceu em 5 de novembro de 1920, em Cambridge,

Massachusetts, EUA. Faleceu em 23 de novembro de 2015 em Benzonia, Michigan. North estudou economia, filosofia e ciência política na Universidade da Califórnia. A partir de 1950, lecionou economia na Universidade de Washington. Faleceu em 2015, aos 95 anos, como um dos mais importantes economistas contemporâneos. É considerado principal expoente da corrente do pensamento econômico conhecida como neoinstitucionalismo ou nova economia institucional. Em 1993 ganhou juntamente com Robert Fogel o Prêmio Nobel de Economia.

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FIGURA 14 – DOUGLAS NORTH APROXIMOU A CIÊNCIA POLÍTICA DA ECONOMIA

Fonte: <https://nyc3.digitaloceanspaces.com/institutoliberal/081023north-460x640.jpg>. Acesso em: 11 out. 2019.

A matriz teórica do pensamento de North vincula-se à economia institucional. Vertente de pensamento surgida no início do Século XX, cujo principal pensador foi o economista e sociólogo norte americano Thorstein Bunde Veblen (1857-1929). Esta escola de pensamento desenvolve estudos e análises sociais e políticas baseadas nos estudos das estruturas, regras e comportamentos das instituições, entre elas o Estado, suas instituições, as empresas, os sindicatos, enfatizando o papel da organização política e social, das estruturas e instituições estatais nos acontecimentos econômicos.

Esta perspectiva de análise, inaugurada pelos institucionalistas entrou em conflito com as visões e posicionamentos dos economistas ortodoxos. Para os economistas institucionalistas, os economistas ortodoxos constituem uma visão distorcida da realidade na medida em que seus modelos interpretativos se apresentam excessivamente teóricos, amparados em projeções e escalas matemáticas. Esta forma de interpretar a realidade social, política e econômica desconsidera o ambiente institucional no qual se encontra inserida a economia.

Sob tais pressupostos, para os institucionalistas, a racionalidade matemática teórico e interpretativa da realidade não alcança suficientemente a compreensão da dinâmica econômica das sociedades. Ou seja, a efetiva compreensão da dinâmica social e sua totalidade implica na observação, interpretação e análise dos instintos e costumes que movem o comportamento econômico, pois não é a competição pelo mercado que orienta a ação dos atores sociais, políticos e econômicos, mas a competição por riqueza e pelo poder.

Assim, a Escola Econômica Institucional defende a importância das disciplinas das Áreas Humanas e Sociais, entre elas a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política no estudo, compreensão e solução das questões econômicas. A concepção de economia que subjaz a esta escola supera a concepção mecanicista de economia, bem como o excessivo pragmatismo econométrico vinculadas, sobretudo aos economistas ortodoxos, para demonstrar que o fundamento da Ciência da Economia vincula-se as mais diversas formas de organização política das sociedades humanas e a forma como equalizam as relações de poder.

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A Escola Econômica Institucional se posiciona favorável a intervenção do governo na economia, o que faz com que inúmeros estudiosos e analistas do pensamento econômico vinculem os economistas institucionalistas na matriz econômica de orientação keynesiana, cuja presença e influência foi significativa em fins da Segunda Guerra Mundial até os anos 1970, moldando a expressão grande consenso keynesiano. A partir do declínio do keynesianismo e da ascensão das experiências políticas e econômicas de Margaret Thatcher na Inglaterra e de Ronald Reagan nos Estados Unidos, ocorreu um reflorescimento das correntes econômicas liberais, entre elas o neoinstitucionalismo. A forma como se constitui o posicionamento em relação à intervenção do governo na economia é o principal aspecto de distinção entre a perspectiva institucionalistas e a neoinstitucionalista, demarcando por um lado a visão institucional favorável à intervenção governamental na economia e, por outro a visão neoinstitucional contrária à intervenção governamental.

7.1 O ESTADO E A ECONOMIA NO INSTITUCIONALISMO DE DOUGLAS NORTH

O eixo central do pensamento e da análise de Douglas North é sua crítica à teoria neoclássica como proposta de estudo e interpretação da história econômica. Nesta direção, argumenta o pensador norte americano:

Há uma persistente tensão nas Ciências Sociais entre as teorias que construímos e as evidências que compilamos sobre a interação humana no mundo que nos rodeia. É mais marcante na economia, onde o contraste entre as implicações lógicas da teoria neoclássica e o desempenho das economias (embora definidas e medidas) é surpreendente (NORTH, 1990, p. 11).

Sob tais pressupostos, a proposta de North ao analisar a história econômica é compreender e explicar o protagonismo das instituições na dinâmica e no desempenho econômico das sociedades. Mais especificamente, North investiga a condição de instituições cuja ação desfavorecem o desempenho econômico das sociedades e, nesta direção assume relevo a questão dos direitos de propriedade nos mais diversos contextos históricos e sociais. Nestes estudos North constata que, em determinadas situações históricas, as permanências de direitos de propriedade se apresentavam ineficientes sob o prisma econômico. É o caso do direito de propriedade na Idade Média, que obedecia a ciclos de expansão e de redução da população europeia incidindo sobre o valor do trabalho, da produção, da renda e, sobretudo sobre o preço da terra.

Ao longo de seus estudos e pesquisas sobre o direito de propriedade, sobretudo no que concerne à formação das sociedades modernas e do Estado nação, North constata que o direito de propriedade se constitui a partir das especificidades de conformação de cada nação. Sob este pressuposto, o conceito de instituição assume centralidade na definição e compreensão moderna de direito de propriedade. Assim, North afirma que “Instituições são as regras do jogo em uma sociedade; mais

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formalmente, são as restrições concebidas por humanos que moldam a interação humana. Em consequência elas estruturam incentivos, trocas, sejam políticas, sociais ou econômicas” (NORTH, 1992, p. 5). Ou seja, North concebe as instituições como sistemas de incentivos para a diversidade de troca e é como sistemas de incentivos que as instituições se relacionam com o direito de propriedade.

North argumenta que quanto maior os ganhos derivados das trocas e intercâmbios econômicos pessoais e sociais maiores são as garantias dos inúmeros atributos que compõem os direitos de propriedade. Ou seja, quanto mais bem definidos e garantidos se constituírem esses direitos, mais eficientes se apresentam as instituições como sistemas de incentivos ao desenvolvimento econômico das nações. Assim, essa distinção entre relações econômicas fundadas nas trocas pessoais e em relações econômicas baseadas em trocas impessoais é de significativa importância para a compreensão do papel desempenhado pelas instituições, mas, sobretudo, para entendimento do papel do Estado em relação as instituições econômicas.

O cientista político norte americano constata que a crescente divisão do trabalho nas economias modernas exige o desenvolvimento de estruturas institucionais suficientes diante do aumento progressivo das complexidades nas interações entre os inúmeros agentes econômicos. Nessa direção, North define os requisitos necessários à estrutura institucional, bem como o papel do Estado.

7.2 A AÇÃO INSTITUCIONAL DO ESTADO NA ECONOMIA

Para North o Estado possui significativa importância na definição dos direitos de propriedade. Nas sociedades modernas marcadas pelo elevado grau de especialização e divisão do trabalho, há a exigência de intervenção na constituição das instituições. Trata-se, neste âmbito, de situar a ação institucional do Estado, cuja relevância se coloca, inicialmente, quando se consideram os processos de mudança institucional. Por decorrência desta condição de protagonismo diante das mudanças institucionais, o Estado se apresenta diretamente responsável pelo desempenho da economia, não apenas nos processos de reforma institucional, mas, sobretudo, pela definição dos direitos de propriedade. Sob tais perspectivas, North caracteriza o Estado da seguinte forma:

Um estado é uma organização com uma vantagem comparativa na violência, estendendo-se por uma área geográfica cujas fronteiras são determinadas pelo seu poder de tributar os constituintes. A essência dos direitos de propriedade é o direito de excluir, e uma organização que tem uma vantagem comparativa na violência está em posição de especificar e fazer valer os direitos de propriedade (NORTH, 1981, p. 21).

Sob tais pressupostos, o Estado não é apenas uma “arena política” onde se constituem e se enfrentam os diversos interesses sociais, mas é também um agente político com objetivos próprios no âmbito de certos limites. Nessa direção, argumenta o autor:

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De fato, os direitos de propriedade que emergem são o resultado de uma tensão contínua entre os desejos dos governantes do Estado, por um lado, e os esforços das partes em trocar para reduzir os custos de transação, por outro. Essa simples dicotomia, na verdade, é tudo menos simples, uma vez que as partes envolvidas em uma troca dedicarão recursos para influenciar os tomadores de decisões políticas a alterar as regras. Mas pelo menos como um ponto de partida inicial para a teorização, é útil separar uma teoria do estado de uma abordagem de custo de transação para direitos de propriedade (NORTH, 1981, p. 18).

Assim, uma das funções do Estado é vender proteção e justiça e, para alcançar efetividade e tal ação o governo age monopolizando a definição e a garantia dos direitos de propriedade. A prestação deste serviço tem como contrapartida, por parte da sociedade a arrecadação de impostos, o que permite ao Estado constituir economias de escala para o desempenho de suas tarefas. A adequada aplicação destas economias de escala incide sobre a ampliação das funções estatais e proteção e garantia dos direitos de propriedade incentivando o aumento da produtividade e, da renda da sociedade, gerando poupança que será dividida entre Estado e sociedade. Evidentemente o Estado procura, a partir de seus diversos mecanismos e instituições, concentrar a maior parte desta poupança, fortalecendo sua ação e por decorrência lógica sua ação sobre a sociedade.

O que North procura demonstrar é que transações políticas e econômicas se apresentam equivalentes e como formas válidas dos agentes sociais e econômicos efetivarem ganhos que uma determinada estrutura de direitos viabiliza. Assim, a concepção de Estado e de instituições que subjazem a esta arquitetura social e institucional diferencia-se diametralmente do modelo de Estado em que governantes negociam a definição de direitos e a oferta de bens públicos em troca de receita fiscal. O que North enfatiza em sua concepção de Estado e de instituição é a presença de uma multiplicidade de agentes que, eventualmente, podem investir na mudança, ou mesmo na redefiniçao das estruturas políticas que definem e garantem os direitos de propriedade. Ou seja, trata-se de reconhecer a complexidade das estruturas sociais e políticas compostas por legisladores que interagem entre si e com seus representados na formulação das estratégias de poder adequadas à manutenção e ampliação do direito de propriedade.

Sob tais pressupostos, North não considera o Estado apenas na condição de proteção dos direitos de propriedade, mas também na ação de atribuição de direitos de propriedade. Assim, o Estado detém a possibilidade de definir direitos de propriedade diante de conflitos que se possam apresentar em função da caracterização destes direitos. O Estado deve atuar apenas na garantia dos direitos de propriedade identificados, reconhecidos e atribuídos por meio de normas e convenções sociais. Em linhas gerais e conclusivas pode-se dizer que a proposta de North se baseia na liberdade dos agentes sociais e econômicos negociarem e legislarem sobre os direitos de propriedade. Trata-se de uma estratégia de livre cooperação entre os diversos agentes em função de seus interesses, mediado e garantidos pelo Estado e suas instituições.

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8 WILLIAM HARRISON RIKER Riker foi um cientista político norte americano que conferiu popularidade

ao uso de modelos matemáticos na composição da teoria dos jogos para o estudo do comportamento político. Nasceu em 22 de setembro de 1920 em, Des Moines, Iowa, Estados Unidos. Morreu em 26 de junho de 1993, em Rochester, Nova York.

Em 1932 sua família se mudou para Indiana, o que possibilitou que Riker se formasse na Shortridge High School, em Indianápolis em 1938, frequentando posteriormente a De Pauw University em Greencastle. Devido ao envolvimento de seu pai na Segunda Guerra Mundial, Riker adiou seus estudos de pós-graduação e ingressou na Radio Corporation of America envolvida no esforço de guerra. Ao final do conflito, Riker retomou seus estudos alcançando o PhD na Universidade de Harvard em 1948. Neste mesmo ano assume como professor na faculdade de Lawrence, atualmente Lawrence University, Appleton, Wiscosin.

FIGURA 15 – WILLIAM HARRISON RIKER

FONTE: <https://www.nap.edu/openbook/0309075726/xhtml/images/p20004846g281001.jpg>. Acesso em: 11 out. 2019.

Em 1962 é convidado a assumir o cargo de professor e de chefe de departamento de Ciências Políticas na Universidade de Rochester. Riker promoveu significativas transformações no departamento a partir de seus enfoques de Teoria Política Positiva (TPP), terminologia desenvolvida por ele mesmo para situar sua abordagem teórica e conceitual que visava produzir teorias empiricamente verificáveis de comportamento político.

O objetivo da TPP é entender o fenômeno político através do uso de modelos analíticos que possibilitem aos analistas perceberem porque determinados resultados ocorrem e outros não. Presume-se que esses resultados são oriundos de decisões racionais dos agentes capazes de tomá-las; e essa tomada de decisões baseia-se em preferências, crenças e ações individuais. Um dos objetivos pessoais de Riker com a formulação de desenvolvimento da TPP era chegar a uma Ciência Política com poder de predição. Embora não se tenha previsto corretamente situações abordadas por vários trabalhos ao longo de seu desenvolvimento, os métodos positivistas da teoria política parecem encaminhá-la cada vez mais nesta direção (ALBUQUERQUE, 2007, p. 26).

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Entre os anos de 1978 e 1983, assumiu na Universidade de Rochester o cargo de Reitor de estudos de pós-graduação. Após sua aposentadoria em 1991, na condição de professor emérito, continuou a dar aulas e a orientar pesquisadores que a ele acorriam para desenvolver seus estudos.

8.1 ESCOLHA PÚBLICA, ESCOLHA RACIONAL E RACIONALISMO

William Harrison Riker pode ser considerado um pioneiro, senão uma personalidade transformadora na Ciência Política. Crítico das abordagens não científicas utilizadas pelos seus pares, introduziu a partir da economia o uso da modelagem formal, intitulando sua teoria de Política Positiva, cujo escopo era produzir afirmações falsificáveis e verificáveis empiricamente. Este modelo científico de aferição do comportamento político também é conhecido como “Teoria da Escolha Pública”, ou “Teoria da Escolha Racional”, na medida em que se baseia no pressuposto de que os indivíduos estabelecem o fundamento de suas decisões a partir do cálculo de custos e benefícios, articulado ao desejo de maximizar os benefícios.

É preciso ressaltar que a vida intelectual de William Riker foi prodigiosa. Apresenta-se, até os dias atuais, como um exemplo de dedicação acadêmica. Estudioso brilhante, competente e acima de tudo produtivo. Suas aptidões intelectuais se manifestavam também na forma de um mestre dedicado e comprometido aos alunos de graduação e pós-graduação. Soma-se a esta condição o fato de ser um destacado administrador e construtor de instituições. Mas, acima de todas estas questões acadêmicas e técnicas, era um ser humano surpreendente. Ao longo de sua vida permaneceu em contato com praticamente todos os estudantes que havia orientado em seus estudos de stricto sensu. Riker é um exemplo a ser seguido como cientista comprometido com as questões do seu tempo e, sobretudo em sua humanidade no trato com seus alunos e com seus pares.

9 ROBERT PUTNAM E O CAPITAL SOCIAL O cientista político e educador Robert D. Putnam nasceu em 9 de janeiro

de 1941, na localidade de Rochester, Nova York, EUA. Ainda na primeira infância, depois que seu pai serviu o Exército estadunidense e voltou da guerra, sua família foi residir em Port Huron, Ohio. Foi o tipo de localidade cuja vida comunitária marcou não somente a vida, mas a carreira acadêmica do jovem estudioso, inspirando suas escolhas investigativas, as que o levaram a se tornar uma referência nos estudos sobre capital social, através dos quais ofereceu importantes contribuições ao neoinstitucionalismo.

Putnam se formou com honras no Swarthmore College, em 1963. Posteriormente, estudou na Universidade de Oxford, Inglaterra, por um ano. Tendo retornado aos Estados Unidos, fez o mestrado e o doutorado (1970) na

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Universidade de Yale. Passou a lecionar Ciências Políticas da Universidade de Michigan em 1968. Em 1979, iniciou sua carreira docente da Escola de G John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, mais tarde nomeado professor de Política K. K. Price (1989) e professor de Paz Internacional de Stanfield (1996). Também se tornou professor de Políticas Públicas Peter e Isabel Malkin em 2000 e foi da Escola de Governo em que lecionou entre 1989 e 1991.

Dois livros são notáveis na carreira de Putnam. O mais conhecido é Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna, originalmente lançado no ano de 1993. O outro é Jogando boliche sozinho: o colapso e o ressurgimento da comunidade americana, originalmente publicado com o título de Bowling Alone..., em 2000. Trata-se de dois exaustivos trabalhos de pesquisa sobre cultura política e reformas institucionais. Nesses dois trabalhos, o cientista político de Harvard afirma que as sociedades políticas e economicamente desenvolvidas são o resultado do capital social. Sociedades marcadas por extensas redes sociais, não no sentido virtual, mas comunitário, tendem a desenvolver lações de confiança e cooperação que são, nas palavras de Putnam e de vários cientistas sociais, o adubo do desenvolvimento.

Em Bowling alone..., Putnam observa que em ambientes sociais de cultura comunitária, as pessoas demonstram uma tendência cultural ao envolvimento em serviços de assistência mútua. Em um típico cálculo de ação social. As pessoas compartilham um acordo latente de que o benefício solidário será recompensado na forma de prosperidade (MUNRO, 2011). Trata-se, portanto de uma crença, um valor moral, que nas ciências sociais tratamos por uma instituição informal.

FIGURA 16 – PUTNAM INTRODUZIU O CONCEITO DE CAPITAL SOCIAL NA CIÊNCIA POLÍTICA

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/31Q0ZZcFAJL._US230_.jpg>. Acesso em: 11 out. 2019.

A pesquisa apresentada nesta obra faz, entretanto, uma advertência preocupante, sugerindo que o espírito de comunidade, tão importante na origem dos EUA, como observou Tocqueville, havia declinado seriamente. Em outras palavras, os laços de confiança e cooperação haviam atenuado, desde a década de 1960. A consequência do declínio seria a generalizada do povo estadunidense em suas instituições democráticas.

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Putnam não considerou esse problema circunscrito ao ambiente político. Ele sugeriu que a incapacidade dos americanos de se conectar com amigos, famílias e comunidades ampliadas, tem impacto em várias esferas, incluindo serviços essenciais e na própria produtividade da economia. Isso se devia à própria dinâmica da sociedade de produção de massa e, sobretudo, da sociedade de consumo daí consequente. Nessa perspectiva, o trabalho de Putnam demonstrou que a facilidade de acesso a bens materiais e imateriais proporcionado pela economia de massa, acabou atenuando a solidariedade e o espírito de comunidade, substituído pelas facilidades de acesso, que individualizam os comportamentos.

Entretanto, seus estudos, como de outros cientistas sociais americanos, ajudaram na compreensão do problema e permitido ações, governamentais, ou não, na direção de recuperar a cultura cívica e comunitária estadunidense. Nesse sentido, seu estudo intitulado American Grace, de 2011, em coautoria com o sociólogo institucionalista David Campbell, teve bastante impacto. Trata-se de uma investigação acerca da importância da religião nos Estados Unidos contemporâneos e sua influência na formação e reaparecimento do capital social.

9.1 O NEOINSTITUCIONALISMO SOCIOLÓGICO DE PUTNAM

Não obstante, a aclamação sobre sua notável contribuição inicia com o lançamento do mencionado Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. E isso nos permite ir ao centro de sua obra acadêmica, ao encontro da ideia-força do capital social. Assim, em meados da década de noventa do século passado, este livro chamou à atenção de cientistas políticos, entre outros cientistas sociais, estudiosos do tema desenvolvimento regional. O livro é o resultado de uma pesquisa de 20 anos sobre o processo de descentralização político administrativo na Itália, iniciado na década de setenta pelo governo do Partido Comunista.

Como estudioso das instituições, Putnam queria saber se a mencionada

reforma político-administrativa tinha gerado bons resultados à democracia. Constatou que, de modo geral, a descentralização havia dado importantes resultados, isto é, demonstrou eficácia relativa. Entretanto, Putnam observou uma diferenciação regional, geográfica mesmo. Percebeu que a inovação institucional havia se mostrado mais eficiente e mostraram melhores resultados no norte da Itália do que no Sul. Ou seja, as populações do Norte, em geral, aceitaram melhor as mudanças no sentido da descentralização do poder.

Percebendo isso, Robert Putnam então empreendeu novo esforço investigativo, até compreender que o norte da Itália, por questões históricas e culturais, sobretudo, apresentava um etos de longa duração mais predisposto à democracia republicana do que o sul. Observou a presença de importantes elementos como solidariedade, associativismo, cooperação, confiança, diálogo e civismo, denominando isso de capital social.

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A Itália, desde então, foi objeto de muitos estudos que de modo geral corroboraram com a tese de Putnam. No campo da economia, o norte da Itália também foi bastante referenciado como um contexto marcado por fortes laços de associação e cooperação entre agentes econômicos. Esse fato explicaria porque, de modo geral, o norte do território italiano, berço do Renascimento, teria passado ao largo dos problemas da globalização, como já sugeriram economistas entre outros cientistas sociais (URANI et al., 1999). Não obstante, o capital social tem sido um pressuposto teórico para a interpretação de questões relacionadas ao desenvolvimento político e econômico de muitas sociedades.

Conforme a interpretação que acompanhamos na análise de Peter Hal sobre as três escolas do neoinstitucionalismo, trata-se da perspectiva do neoinstitucionalismo sociológico. Isso não exclui o caráter histórico, já que Putnam recorreu a documentos do passado italiano, tendo observado circunstâncias peculiares à Nação italiana, que ajudam a explicar o capital social. A rigor, Putnam também não exclui a perspectiva da escolha racional, por uma simples razão: ele admite que os indivíduos, ao cooperarem e confiarem, estão cientes do retorno que tais atitudes trazem, e isso significa que estão agindo racionalmente, pensando na maximização de suas atitudes.

Não obstante, o caráter mais explícito das observações de Robert Putnam é acerca da importância do capital social é sociológico. As instituições informais, leia-se, costumes, hábitos, normas, crenças e valores culturais de longo tempo, são tipicamente objetos de investigação das Ciências Sociais, notadamente da Sociologia. Admitindo que instituições bem formuladas podem produzir resultados relativamente eficazes, o cientista político de Harvard não deixou de observar oportunamente, ao lembrar Montesquieu, que se boas instituições formam bons homens, pode-se admitir, que antes das boas instituições, há bons homens, capazes de formulá-las e de fazê-las funcionar.

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LEITURA COMPLEMENTAR

OKTOBER É CAPITAL SOCIAL E ORGULHO DE SER

Walter Marcos Knaesel Birkner

A Oktoberfest foi uma bela sacada do ex-prefeito Dalto dos Reis, ao se reunir com os clubes de Caça & Tiro e levantar a autoestima blumenauense, depois daquela maldita enchente de 1984. Ao longo das décadas, resultou na maior festa da cerveja do continente, o que é bom para sede, para alma e para o comércio. Não obstante, revela o capital social que constituiu o etos catarinense desde meados do Século XIX. Esse fator antropolítico gerou efeitos no desenvolvimento e constitui parte essencial da identidade catarinense.

Em uma entrevista sobre desenvolvimento, na Folha de São Paulo, em 2015, o físico chileno Cesar Hidalgo disse, entre outras coisas, o seguinte: “Se você quiser fazer uma coisa muito difícil, tente na China, se não der, no Japão. Mas se parecer impossível, tente na Alemanha. Se não der certo lá, desista”. O sentido dessa afirmação está em reconhecer a capacidade de cooperação e a obstinação como motriz do desenvolvimento. Se isso se limitasse às circunscrições do Brasil, se aplicaria a Santa Catarina e a Oktober é um exemplo disso.

Hidalgo é professor do MIT – Massachussets Institut of Technology, e autor do livro Why information grows. Tentando entender como as economias bem-sucedidas se desenvolvem, ele encontra a resposta na cultura e afirma que essa resposta é o capital social. Ele explica que certas sociedades têm maior capacidade de reunir pessoas com habilidades distintas e fazê-las cooperar a fim de empreender grandes feitos. Não seria somente uma questão de instrução, mas de capital social: cultura de cooperação, associação, confiança, diálogo e amor ao lugar.

Nessa direção, o físico chileno explica que uma coisa é ter 500 pessoas inteligentes e habilidosas fazendo, cada uma, suas próprias coisas e, à sua maneira, cuidando de suas vidas, outra é reunir 500 pessoas com conhecimentos diferenciados e provocá-las a construir um carro. Isso lembra aquela pergunta anedótica de como se enfiam 500 cabeças-duras num Fusca. Não é só uma questão de instrução, mas de cooperação e obstinação. Se houver jeito, habilidades específicas, cooperação e obstinação garantirão o feito.

Toda paróquia tem sua festa de Igreja e depende das pessoas mais cooperativas e obstinadas, satisfeitas em trabalhar pelo benefício comunitário. Todos têm algum conhecimento específico, desde a liderança do pároco, passando pela arrumação, pelos enfeites, comida, bebida, limpeza, a música, os quitutes, o bingo, até o tesoureiro. Agora, pense numa festa da cerveja, que depende de milhares de pessoas e traz gente do Brasil e de outros países. Pensa na trabalheira para deixar tudo limpinho e enfeitadinho! Pensa na organização!

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Originalmente, causa do desenvolvimento, esse capital social produz a necessária divisão do trabalho que um dos fundadores da Sociologia, o francês Emile Durkheim, identificou na evolução das sociedades. Aliás, o eminente sociólogo chamou isso de solidariedade, aquilo que, ao mesmo tempo, sustenta e justifica o valioso senso comunitário e republicano. Disso é gerado o etos de cada comunidade, a identidade coletiva, o espirito da reconstrução, combustíveis da prosperidade. Sofisticado produto de fundo antropolítico, é isso que a Oktober é na sua profundeza histórica e cultural.

Este é o maior patrimônio inerente à festa, isto é, a cultura de pegar junto

e manter o prumo. Daí que ela resgatou o orgulho de ser, sem o qual, dizia um velho filósofo, não há o que fazer. Quando surgiu, naquele fatídico 1984, era para levantar a autoestima depois da lama e da humilhação da natureza sobre a presunção humana. Blumenau e o Vale do Itajaí recuperaram esse orgulho num momento decisivo, daqueles em que o camarada decide se a vida acabou ou se vai em frente. Sempre em frente, foi a decisão!

São os traços do Vale e de Santa Catarina: braço, cooperação e obstinação. Foi aquela abençoada enchente que mexeu com o orgulho e trouxe o capital social à tona. Não só anjos altruístas, mas também egoístas sabem cooperar e reerguer suas cidades, fazendo juntos o que ninguém faz sozinho. Se Darwin, o grande amigo de Fritz Muller, fosse lido corretamente, esse tipo de lição estaria nos livros escolares: são a vontade e a cooperação que explicam a evolução humana e também sua melhor invenção: a bomba do chopp. O resto é espuma.

E quando a coisa dá certo e a tristeza foi enterrada, vem o tal do orgulho, que é quando o cara olha para isso tudo e se reconhece na festa. Não é uma festa a ele oferecida. É uma festa cujo motivo, empenho e resultado também são dele. E, indo às profundezas, faz o indivíduo reconhecer o valor da cultura e da história da sua comunidade. E não interessa se o teu sobrenome é Peters, Pedrini, Pedroso ou Petroski. O que interessa é o orgulho da comunidade que reproduz o capital social do qual fazes parte e do qual a Oktober é um belo produto.

Fonte: <https://www.jmais.com.br/oktober-e-capital-social-e-orgulho-de-ser/>. Acesso em: 22 nov. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• O neoinstitucionalismo é o modelo analítico mais importante na Ciência Política contemporânea.

• O neoinstitucionalismo analisa a importância das instituições formais e informais na organização social.

• As abordagens de alguns autores aqui apresentados são elementares para uma compreensão inicial sobre o modelo de análise neoinstitucionalista.

• Theda Skocpol é uma institucionalista de perspectiva tocqueviliana.

• Charles Tilly é uma das principais referências do neoinstitucionalismo na defesa da democracia.

• A ideia de sinergia entre Estado e Sociedade é fundante na análise de Peter Evans.

• Interpretamos as três variáveis analíticas do neoinstitucionalismo, através da pena de Peter Hall.

• A interdisciplinaridade entre Economia e Ciência Política constitui a análise de Douglas North.

• William Rikert aplicou a matemática na teoria dos jogos para o incremento da Ciência Política.

• Robert Putnam introduziu a importante noção de capital social para demonstrar a importância da cultura no desenvolvimento das instituições formais, inclusive da economia.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

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1 North articula sua concepção de Estados a partir das relações que se estabelecem entre a dinâmica dos agentes políticos, econômicos. Nesta direção apresente a concepção de Estado do referido autor.

2 Através das contribuições do cientista Político estadunidense Peter Hall, compreendemos que o neoinstitucionalismo tem, ao menos, três variáveis analíticas. Denomine as três e diga qual a característica de cada uma.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 3

ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você será capaz de:

• conhecer o republicanismo comunitarista;

• identificar as características do contextualismo linguístico;

• perceber a importância de estudar a história para compreender a teoria política;

• fazer a conexão entre o humanismo cívico e a teoria e a cultura política ocidental.

Esta Unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – NEO-REPUBLICANISMO: TAYLOR, POCOCK, SKINNER, PETTIT

TÓPICO 2 – VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

TÓPICO 3 – PARADIGMA LIBERAL: O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE RAWLS E O NEOLIBERALISMO DE NOZICK

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1

NEO-REPUBLICANISMO: TAYLOR,

POCOCK, SKINNER, PETTIT

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOPrezado acadêmico, neste primeiro tópico da Unidade 3 faremos a

apresentação de importantes noções que ajudam a compreender a importância dos fenômenos da participação, da justiça e da cidadania. Nessa perspectiva, os autores, cujas sínteses das obras intelectuais apresentaremos a seguir, nos permitem um entendimento introdutório sobre a importância, os limites e as tendências do Estado republicano para o Século XXI. Naturalmente, o aprofundamento futuro no tema levará cada sociólogo, filósofo e cientista político ao contato com outros autores, porém uma introdução ao denominado neo-republicanismo começa, convenientemente, com eles.

Nessa linha, apresentaremos o conceito de republicanismo comunitarista, que apela à necessidade imperiosa do senso de comunidade para a preservação da cultura e das instituições políticas republicanas. Por extensão disso, precisamos também apresentar a definição do conceito de contextualismo linguístico, através do qual compreendemos que as noções de política que constituem nossa linguagem é originaria de contextos históricos. Por essa razão é tão fundamental estudar a história, sendo igualmente importante estudar nossas origens e heranças culturais. Desde esta constatação, apresentamos o conceito de humanismo cívico que, originariamente formulado por pensadores romanos, ressurge no contexto histórico e linguístico do humanismo que inaugura a modernidade no Ocidente.

Assim, a partir desta unidade, conheceremos as análises de autores contemporâneos. Os esforços intelectuais de compreensão dos fundamentos da política contemporânea desses autores são de imperiosa consideração na teoria política. Através deles, passamos a ter um entendimento estendido sobre as nossas instituições políticas, e, tanto quanto isso, podemos pensar a política no exato momento em que estamos vivendo. Por decorrência, ampliamos nossa percepção sobre as influências recíprocas entre os indivíduos e as instituições. É o que nos permite olhar para o futuro, com a dura tarefa de prognosticá-lo, vislumbrar tendências, identificando consequências e correções de rumo para o aperfeiçoamento e desenvolvimento da Sociedade.

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2 CHARLES TAYLOR E A IDENTIDADE MODERNAFIGURA 1 – FOTO DE CHARLES TAYLOR

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/4/44/Charles_Taylor_%282019%29.jpg/1280px-Charles_Taylor_%282019%29.jpg>. Acesso em: 13 nov. 2019.

O filósofo político canadense Charles Margrave Taylor nasceu em Montreal – Quebec, em 5 de novembro de 1931 e é reconhecido pelo esforço intelectual de aproximação entre a teoria filosófica e a ação política. Traduzidas para mais de 20 idiomas, suas publicações falam sobre temas como o multiculturalismo, a moralidade, a modernidade, a inteligência artificial e sobre a política de seu país.

Graduado inicialmente em História na McGill University, em 1952, Charles Taylor cursou depois Filosofia, Política e Economia na Universidade de Oxford, onde também concluiu mestrado e doutorado. Posteriormente, retornou à Montreal, tendo ingressado no Departamento de Ciência Política da McGill University e da Université de Montréal em 1963. Em 1976, Taylor ingressa na Universidade de Oxford, ocupando a cadeira de maior prestígio do mundo em filosofia política. Em 1982, alcança o cargo de professor emérito do Departamento de Política na Universidade de Oxford. Posteriormente, ingressou nos departamentos de Filosofia e Direito da Northwestern University.

Taylor começou a atrair a atenção de intelectuais para além do espectro da Filosofia Política com a publicação da obra The making of the modern identity (1989). O livro é um relato histórico minucioso sobre as mudanças de identidade na modernidade e dos novos sentidos a ela atribuídos, além das implicações dessas mudanças nos comportamentos pessoais e nas relações sociais. O livro subsequente, intitulado The ethics of authenticity (1991) é baseado em uma palestra que o autor proferiu, intitulada O mal-estar da Modernidade, que se tornou expressão famosa no meio acadêmico. Ali, o autor sugere formas de conciliação à tensão entre individualismo e os grupos coletivos.

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2.1 ATIVISMO POLÍTICO

Charles Taylor é um defensor incansável do federalismo e ativo participante da vida política de seu país. Em 1993, o autor publicou Reconciliando as solidões: ensaios sobre federalismo e nacionalismo canadense, demonstrando sua preocupação incessante com os problemas práticos da vida republicana, notadamente os choques entre os valores liberal-democráticos e comunitários e a complexidade da democracia contemporânea. Essas preocupações se estendem na sua obra Multiculturalismo, de 1994, em que examina a chamada política de reconhecimento.

O filósofo político canadense também ocupou os cargos de vice-presidente do Novo Partido Democrático (NDP), no nível da unidade federativa de Quebec e, posteriormente, no mesmo cargo, mas em nível federal. Ele concorreu em quatro eleições federais, disputando inclusive a vaga de primeiro-ministro, vencida por Pierre Trudeau em 1965. Já no ano de 2007, em parceria com o sociólogo e historiador Gérard Bouchard, Taylor foi co-presidente da Comissão de Consulta sobre Práticas de Acomodação Relacionadas às Diferenças Culturais. O referido órgão ficou conhecido como a Comissão Bouchard-Taylor em defesa da "acomodação razoável", propondo a política de reconhecimento a grupos religiosos e culturais na província de Quebec.

Política de reconhecimento é a expressão utilizada para designar as políticas públicas que tenham o propósito de garantir o direito dos povos de preservarem suas identidades coletivas. Nessa perspectiva, podemos mencionar as políticas de proteção às comunidades indígenas, quilombolas, entre tantas outras, cujo objetivo geral é garantir que suas expressões tradicionais sejam protegidas como patrimônio cultural.

NOTA

2.2 SELF

Com todo o histórico intelectual e ativista em defesa do republicanismo, é importante lembrar do primeiro trabalho de Taylor. Trata-se do ambicioso livro intitulado Hegel (1975), sobre as ideias do notável filósofo alemão do século XIX. Ali, Taylor procura entender como a filosofia de Hegel continua relevante à teoria política e social contemporânea. Já em 1989, Taylor lança seu livro intitulado Fontes do eu: a criação da identidade moderna, a partir do qual procura explicar a complexa multiplicidade da constituição identitária do homem moderno e contemporâneo.

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Utilizando-se do método do neoinstitucionalismo histórico da Ciência Política, o filósofo canadense se incumbe de demonstrar as fontes que originaram a identidade do homem moderno. A característica mais frequentemente exposta dessa identidade, segundo Taylor, é a valorização da liberdade. Segundo Abbey (2011, s.p.), essa determinação historicamente construída pelo homem ocidental expressa “profundidades interiores que merecem ser exploradas”.

No interior desta perspectiva libertária e inegavelmente influenciada por Rousseau, a noção de natureza conduz a afirmação de que seria ela própria a fonte principal da essência livre e generosa do ser humano. Por consequência, o contato com a natureza e sua preservação seriam o caminho da renovação, valorizando a autenticidade e a individualidade humana. E seria também esse respeito à natureza essencial humana o meio de atração à generosidade e benevolência em relação aos outros, isto é, a causa do altruísmo que permite a vida em comunidade.

2.3 MORALIDADE

Como podemos classificar o pensamento de Charles Taylor no interior da teoria política? Alguns intérpretes do pensamento político contemporâneo sugerem que Taylor faz a ligação entre diferentes perspectivas analíticas da filosofia política para a composição do “homem republicano”. A perspectiva analítica de Taylor revela a influência dos alemães Martin Heidegger e Hans Gadamer (ANDRADE, 2013). Do primeiro, toma principalmente a ideia de que o ser humano, sendo essencialmente livre e bom, é consequentemente um ser dialógico (do diálogo) e, portanto, adepto à vida em comunidade. Do segundo autor, é influenciado pela sua teoria da linguagem, reforçando a ideia comunitarista de que o homem é o resultado de seu meio e é em sociedade, através do diálogo e da cooperação direta ou indireta que atinge sua plenitude.

A teoria da linguagem preconiza a organização da comunicação humana em “estruturas profundas” que seriam identificadas em todas as linguagens e idiomas humanos. A esses fenômenos, os linguistas e teóricos da linguagem chamam de universais linguísticos, isto é, códigos de comunicação que existem em qualquer sociedade.

ATENCAO

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Como um ser dotado de linguagem, o ser humano pode transformar-se em sua plenitude, capaz de compreender a si mesmo e definir sua identidade. Não obstante, essa condição o homem só adquire em sociedade, na vida comunitária. Nessa perspectiva, Taylor é um filósofo político que ajuda a fundamentar as bases filosóficas do republicanismo contemporâneo. E entenda-se o republicanismo como um movimento fortemente vinculado à ideia da força comunitária na contraposição aos limites do Estado na vida das pessoas. Não se trata da ideia de um Estado fraco, “mínimo”, mas sim controlado pela sociedade.

Todavia, ainda que na condição de filósofo, Taylor insiste que os seres humanos conferem significados a seus atos e que eles precisam ser vistos pela Sociologia e pela Ciência Política e não pela Filosofia ou pela Psicologia. Mesmo na Ciência Política, Taylor tem restrições, por exemplo, ao institucionalismo da teoria da escolha racional. Dessa forma, o filósofo canadense afirma que é insuficiente interpretar os comportamentos eleitorais pelo cálculo do interesse egoístico. Para ele, o ato de votar é, para muitas pessoas, uma manifestação moral de seu envolvimento cívico na comunidade democrática.

Nessa perspectiva, Taylor é considerado um republicano tipicamente comunitarista, ao enfatizar a natureza coletiva da identidade individual. Ele defende a ideia de que o ser humano aprende tudo em Sociedade e deve, portanto, obrigações à sociedade. Usando, aqui, uma linguagem politológica, ao modo dos contratualistas que já estudamos, seria como uma nova espécie de contrato social. Não seria o contrato de todos em favor do Estado e suas leis, mas o contrato em prol da sociedade e seus costumes.

Para Taylor, o homem moderno acumulou muitos significados à constituição de sua identidade, sendo eles também mutáveis ao longo do tempo e de cultura para cultura. Entretanto, a noção de uma natureza humana universal não muda. O autor acredita que algumas características são intrínsecas e, portanto, permanentes entre os humanos, independendo de lugar e tempo, idioma ou nacionalidade. Seriam os componentes de sua identidade básica. O primeiro deles seria a interpretação de si mesmos (self). A segunda é que os humanos seriam seres de linguagem, que intermedeiam suas relações com outros seres humanos e com a natureza. Por extensão, os humanos constituem suas identidades através da comunicação, do diálogo com os outros.

Por conseguinte, Taylor afirma que a constituição da identidade não poderia ser realizada de outra maneira senão em comunidade, em outras palavras, o ser humano necessita do reconhecimento do outro para legitimar sua fala e sua identidade e realização plena. Não seria humano, não fosse por essa razão e atributo. Outros atributos que humanos coparticipam entre si dizem respeito a ter propósitos de vida que tenham identificação com a imagem que fazem de si, e estar inserido em estruturas morais que lhes permitam governar suas ações na busca de objetivos e lhes deem a sensação de que suas vidas fazem sentido e de que estão no caminho certo.

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Nessa perspectiva, a constituição das identidades é não apenas um produto da sociedade, mais que isso, para Taylor, é a intensidade da vida coletiva que qualifica essas identidades. Em outras palavras, podemos voltar à velha ideia grega e aristotélica, segundo a qual, a vida só faz sentido na polis, isto é, através da vida política. É a mesma perspectiva sinalizada nas preocupações contemporâneas do filósofo e sociólogo polaco Zygmunt Bauman (1925-2017). Em sua obra Em busca da política, Bauman sugere que a felicidade reside justamente na política, isto é, na busca de uma vida qualificada.

Pode-se admitir várias maneiras de conexão dos indivíduos com a sociedade. É possível imaginar essa busca de várias maneiras: desde o ativismo político, o trabalho voluntário, a ação solidária, o estabelecimento de contatos, as boas amizades, o interesse pelas coisas da cidade e do país, o trabalho em equipe, a participação em um clube, uma agremiação, ou coisa que o valha. Há mil maneiras de fazê-lo, até mesmo na condição de um solitário leitor de jornais e livros. Não obstante, o republicanismo de pensadores como Taylor, como tantos outros já mencionados, parte do pressuposto de que a vida qualificada depende de uma profunda conexão com os outros seres humanos, com a comunidade ou comunidades das quais fazemos parte.

O panorama analítico de Charles Taylor e sua concepção antropológica denotam uma profunda convicção a respeito do que podemos chamar de felicidade. Da mesma maneira que sugere Bauman, Taylor faz a aposta na vida em comunidade, dotada de sentido. Sua ideia do bem viver invoca a condição essencial do homem, qual seja sua condição de viver em comunidade. Mas, trata-se de viver orientados pelo propósito de estabelecer e solidificar relações. Identificar-se com objetivos de realização e buscá-los até o fim da vida, oferecendo à sociedade o que de melhor sejamos capazes de proporcioná-la, é o que, segundo a perspectiva de Taylor, leva-nos à sensação de que a vida tem sentido e é no senso de pertencimento ao lugar em que se vive, ou seja, a comunidade, a cidade ou nação, que o autor se expressa em um de seus magníficos escritos:

Todos percebemos o lugar onde vivemos nossas vidas como constituídos por uma forma moral ou espiritual. Em algum lugar, em alguma atividade ou condição reside uma plenitude, uma riqueza; nesse lugar [...] a vida é mais plena, mais rica, mais profunda, mais valiosa, mais admirável, mais do que poderia ser. Este é, talvez, um lugar de poder: geralmente experimentamos isso como profundamente tocante, inspirador. Talvez tenhamos apenas vislumbres muito tênues desse sentido de plenitude. Temos uma forte intuição do que seria a plenitude, se tivéssemos naquela condição, por exemplo, de paz ou de completude, ou se fôssemos capazes de agir naquele grau de integridade, generosidade, desprendimento ou abnegação. Mas, às vezes, haverá momentos de plenitude vivida, de alegria e prazer, em que nos sentiremos lá (TAYLOR, 2007, p. 18).

Aí está a ideia do sentido da existência do homem moderno. Como um ser de fala, portador de uma necessidade de liberdade, o homem precisa viver em comunidade para alcançar a sua plenitude. Sua identidade e sua realização são,

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para Taylor, uma possibilidade essencialmente política. Viver em comunidade é a chave da plenitude, não se trata, apenas deve constar de uma ideia romântica da democracia direta, de fazer política o tempo todo em praça pública. É mais concreto: trata-se de viver em um lugar, sentir-se parte dele e comungar, leia-se compartilhar, dos valores e regras que a comunidade deste lugar edificou para uma vida coletiva harmoniosa. Neste livro, Taylor analisa várias mudanças dos comportamentos individuais na direção da secularização do Ocidente.

FIGURA 2 – CAPA DE LIVRO DE CHARLES TAYLOR

FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/A_Secular_Age#/media/File:Taylor-COVER-A-Secular-Age.jpg>. Acesso em: 7 nov. 2019.

Nessa perspectiva, a filosofia político-antropológica de Charles Taylor assemelha-se à importante noção de capital social. Como já vimos em nosso Livro Didático, trata-se daquele conjunto de fatores de ordem político-cultural que afetam positivamente o desenvolvimento de cidades e nações. Como vimos na abordagem de Robert Putnam, mas também de Tocqueville, entre outros, trata-se resumidamente de cultura cívica. São os valores que, compartilhados pelos indivíduos, os levam a agir para além da perspectiva racional e egoísta. São os fatores que o próprio Taylor sugere inerentes às escolhas de muitos eleitores e que, no geral, melhor expressam a natureza comunicativa e altruísta, portanto, comunitária do ser humano.

Assim, é fundamental que, como estudiosos das ideias, dos fatos e dos fenômenos da política, possamos acompanhar os desdobramentos do processo histórico à luz de teóricos contemporâneos como Taylor e tantos outros. Nossa atenção às repercussões e influências da teoria política contemporânea nos permitirão compreender melhor os fatos do nosso tempo. E o esforço de Taylor em apresentar as características e os anseios contemporâneos dos indivíduos é, sem dúvida, de bastante utilidade. Entre tudo, o autor de Multiculturalismo e A era secular nos fornece importantes indícios investigativos. Temas como o indivíduo, a liberdade, o republicanismo e o comunitarismo no Século XXI serão pontos de partida para muitos jovens estudantes das Ciências Humanas e as obras de Charles Taylor serão leitura obrigatória.

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Leia o artigo de Ana Luiza de Morais Rodrigues Braga, professora na Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, sobre Charles Taylor, publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, em 12 fev. 2019, e reproduzido pelo Instituto Humanitas da Unisinos no endereço: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/586674-charles-taylor-notas-para-o-contexto-cultural-brasileiro

DICAS

3 JOHN POCOCK E O REPUBLICANISMO COMUNITARISTAFIGURA 3 – JOHN GREVILLE AGARD POCOCK

FONTE: <https://introduccionalahistoriajvg.files.wordpress.com/2013/07/pocock_500.jpg>. Acesso em: 13 nov. 2019

O filósofo político e historiador das ideias neozelandês, John Greville Agard Pocock, nasceu em Londres em 7 de março de 1924, mas sua família foi para Nova Zelândia. Lá, seu pai, o professor Greville Pocock foi trabalhar no Canterbury College. Aos 28 anos, John Pocock se estabeleceu em Cambridge, onde conclui seu doutorado. Depois, retorna à Nova Zelândia para lecionar no, agora, Canterbury University College. Em 1959, passa a presidir o Departamento de Ciência Política daquela Universidade. Em 1966, muda-se para os Estados Unidos e vai ocupar a cadeira William Eliot Smith de História, na Universidade de Washington em St. Louis, Missouri. Nove anos depois, ele ingressa como professor na Universidade Johns Hopkins, Baltimore; A partir de 2011, ele ocupa o cargo emérito de Professor de História Harry C. Black, seu emprego atual.

John Pocock é uma espécie de arqueólogo das ideias políticas, uma atividade intelectual rara e importantíssima, pelo seu caráter fundante. Esse trabalho de “escavação intelectual” consiste em compreender as ideias em sua origem histórica, mas isso ainda seria dizer o óbvio. No entanto, precisamos reconhecer que a simples composição etimológica das palavras e seus significados

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literais não garantem a compreensão do que significam ao longo do tempo. Nesse sentido, Pocock se dispõe da árdua tarefa de decodificar, de documento em documento, de livro em livro, termos comuns do vocabulário político ocidental, demonstrando sua lenta constituição.

Um pequeno exemplo deve nos ajudar a compreender esse método: tendo como referência o Glossário arqueológico de Sir Henry Spelman, Século XVII, Pocock explica como se deu a ascensão e queda da propriedade feudal. A partir de sua cuidadosa explicação, é possível reconhecer o aparecimento de novas concepções da ordem política ocidental. A explicação aparece em The ancient constitution and the feudal law (1959), não traduzido para o português. Ali, Pocock demonstra como a propriedade de terra determinava o modo como as instituições políticas eram constituídas (WHATMORE, 2016). O trabalho de Pocock é, nesse sentido, um institucionalismo histórico também denominado de contextualismo.

Sir Henry Spelman foi um antiquário e historiador inglês que viveu entre os séculos XVI e XVII. Eclesiástico, foi um estudioso dos documentos da Igreja inglesa, membro do Parlamento e autor do importante GlossariumArcheologicum, lido atentamente por John Polock. Leia mais na Encyclopaedia Britannica.

FONTE: <https://www.britannica.com/biography/Henry-Spelman>. Acesso em: 13 nov. 2019.

NOTA

3.1 O CONTEXTUALISMO LINGUÍSTICO

Embora não aceite o rótulo, John Pocock é considerado um filósofo historiador das ideias políticas. No seu entendimento, essa parte da teoria política precisaria ser devidamente compreendida na perspectiva de uma “história da linguagem” ou ainda das “linguagens políticas”. Desse modo, a função do historiador político deve ser a de perceber o contexto histórico, e, mais especificamente, o contexto sociolinguístico da época em que as ideias são geradas, nas Ciências Sociais reconhecemos como o contextualismo linguístico, método influenciado justamente pela História, próprio a história das ideias.

O método consiste em compreender o quanto o contexto temporal e social interfere na compreensão humana sobre o mundo. Evidentemente, isso implica na constituição das ideias dos pensadores que aprendemos a ler, admirar ou rechaçar. Assim, é fundamental referenciar o autor e suas ideias ao momento histórico em que vive, identificar as discussões que se passam no contexto em que está observando a realidade. A ignorância a esse respeito, sugere Pocock, é a causa de muita incompreensão no mundo das ideias.

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A importância da análise de Pocock está, entre tudo, em fazer perceber não apenas os acertos. Antes mesmo, está em perceber os erros bastante comuns que cometemos ao lermos autores da teoria política, tomando ideias como verdades, ou falácias, de forma atemporal e segundo nossas preferências. Trata-se, de fato, de uma das grandes lições de estudo e pesquisa, com enorme frequência ignoradas. Por essa razão, muitos textos já nascem fadados ao esquecimento. Ao tomarem como verdades infalíveis aquilo que é dito originalmente em outro contexto histórico, autores e leitores produzem “mulas sem cabeça”.

As sentenças, quando emergem, podem ser mais ou menos capazes de captar a realidade. Podem também esconder ou revelar paixões e preferências que interferem nas análises, nas interpretações, tornando-se julgamentos vazios com o passar do tempo. Não obstante, há, ainda, as boas interpretações, repletas de sentido e bom senso. E, mesmo no interior dessas sentenças, existem dois tipos: aquelas que perdem o sentido, tornando-se compreensivelmente anacrônicas e as que sobrevivem e influenciam contextos históricos futuros.

No primeiro caso, estamos diante do equívoco do purismo das ideias. Nessa perspectiva, o contextualismo da linguagem, ou das linguagens políticas, adverte criticamente os autores cujas análises caem no anacronismo interpretativo. Nesse sentido, é bastante comum tomar algumas noções antropológicas, políticas e econômicas do passado como se elas se manifestassem, hodiernamente, da mesma maneira que quando foram apresentadas há dois séculos, ou há dois mil anos. John Pocock trouxe luzes a esse debate. Não obstante, soube reconhecer igualmente a força das ideias que atravessam os tempos, seja por expressarem a essência intacta dos seres humanos em comunhão uns com os outros, seja pela atração que exerceram de geração em geração, tendo sido preservadas ou resgatadas.

É nessa perspectiva que Pocock considera o segundo tipo de ideias, sentenças, noções que se tornam conceitos e valores que resistem ao tempo pela força persuasiva. É por conta do reconhecimento e identificação da força histórica das ideias que o filósofo historiador promove uma genealogia das ideias (ANDRADE, 2013). Exemplo disso é todo o conjunto da filosofia política clássica, com seus ideais de liberdade, de democracia e de individualismo. Nesse invólucro está contida a importante perspectiva republicana e comunitarista, que não apenas os gregos, mas, sobretudo, os romanos, legaram ao Ocidente. É nessa perspectiva do contextualismo da linguagem que os ideais e valores constitutivos da civilização ocidental são apresentados.

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FIGURA 4 – ÚNICO LIVRO DE POCOCK EDITADO NO BRASIL, PELA EDITORA DA USP

FONTE: <https://images-na.ssl-images-Amazon.com/images/I/41zs1TNt16L._SX344_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 13 nov. 2019.

3.2 O HUMANISMO CÍVICO E O IDEAL COMUNITARISTA

John Pocock demonstra como, desde a sua origem, esses ideais e valores foram devidamente resgatados pelo humanismo cívico do Século XVI, reconstituindo, por assim dizer, tijolo por tijolo, a trajetória evolutiva do Ocidente. Nesse rumo interpretativo, o filósofo historiador nos ajuda a compreender como chegamos, moralmente sustentados por ideias-força, como as mencionadas, até o século XXI. São produtos disso: o sistema democrático ocidental, com todas as suas variações.

É na sequência histórica dessa linha evolutiva que identificamos os grandes produtos históricos da política do Ocidente: os regimes democráticos, a divisão dos poderes entre executivo, legislativo e judiciário, o Estado de Direito (composto pelos direitos civis, políticos e sociais). Isso inclui a liberdade econômica, mas também o intervencionismo estatal e, na sequência, a socialdemocracia e o Estado de bem-estar social. E, no reflexo dos valores fundantes dos ideais clássicos da política, também chegamos ao liberalismo identitário, através das lutas pela tolerância à diversidade dos comportamentos e escolhas individuais.

Nessa trajetória evolutiva e civilizatória, os ideais clássicos das antigas civilizações grega e romana são remodelados em novos contextos históricos. Sofrem as influências das dinâmicas sociais ao longo do tempo, carregadas de imprevisibilidade, porém, mantendo-se na essência. Assim, a sociedade ocidental promove as pressões ao poder e recebe as contrapressões do poder, por meio dos movimentos tensionados de descentralização e centralização. Com eles, emerge a necessidade de discutirmos as possibilidades e tendências do Estado moderno e de suas relações com a sociedade civil. Nessa esteira, apoiados no humanismo cívico, o Ocidente procura materializar os ideais libertários e republicanos, enfrentando as ameaças autoritárias ao que denominamos de nova e desejada ordem republicana do Século XXI.

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É sob essa perspectiva que Pocock escreve a importante obra intitulada Machiavellian moment (1975), também não traduzida para o português. Ali, ele identifica a formação do republicanismo moderno no final do Século XV, no renascimento italiano. Trata-se de um momento histórico de primeira grandeza ao Ocidente, em que são retomadas as ideias greco-romanas. Notadamente, são retomadas as noções de civismo, identificadas principalmente na obra de Aristóteles. São principalmente os ideais de cidadania ativa, retomados pelos humanistas cívicos, que explicam a retomada de uma linguagem republicana (ARAUJO, 2017) E, vale dizer, a mesma constatação foi feita por Robert Putnam, em Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna.

No contextualismo linguístico em The Machiavellian moment, John Pocock demonstra como se construiu, discursivamente, a cultura republicana moderna. A realização democrática, assim como as aspirações republicanas contemporâneas teriam sido desenhadas há pouco mais de cinco séculos. Na concepção de Pocock, elas nasceram do “impulso aristotélico de viver uma vida cívica em uma cidade livre como cidadão do princípio moderno aos tempos modernos, traçando a base da filosofia chamada humanismo cívico (desde as) comunidades [...] da Itália renascentista” (WHATMORE, 2016, p. 8).

Nessa direção, o contextualismo de Pocock revela as origens da utopia republicana das comunidades independentes e livres. A vida política intensa, o capital social como fórmula da felicidade apontada por contemporâneos como o já mencionado Bauman, teria nascido nas pequenas cidades do norte italiano. Seria o resultado de uma narrativa sobre a necessidade e a capacidade daquelas cidades do fim da Idade Média de se organizarem e se protegerem das invasões constantes. Essa seria a verdadeira preocupação do florentino Nicolau Machiavel, o grande inspirador da Ciência Política moderna. Na perspectiva de Pocock, Machiavel foi capaz de observar e até mesmo emitir opiniões sobre a capacidade de organização política existente em cada uma daquelas cidades. Por extensão, aliou suas observações sobre o caráter cooperativo-comunitário às proposições da filosofia clássica aristotélica sobre o ativismo político, leia-se a cidadania cívica. Dessa forma, e através da força cumulativa da linguagem política criada pelos humanistas cívicos como Machiavel, a utopia grega da democracia liberal republicana foi se constituindo, até se tornar o que é hoje nas democracias ocidentais.

Acrescente-se que essa grande narrativa política constituída e retroalimentada por mais de cinco séculos, no processo civilizatório de constituição do Ocidente, continua em curso. A teoria política contemporânea, que tem em John Pocock um de seus notáveis pensadores, é viva e atuante. Nesse sentido, a Ciência Política e a Filosofia Política se mantêm empenhadas não apenas em compreender as causas dos comportamentos e os efeitos das instituições políticas. Mantêm-se firmes e convictas na tarefa de abrir caminhos que levem a materialização dos preceitos básicos do republicanismo, sintetizados na ideia de liberdade em comunidade.

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Uma importante entrevista do filósofo e historiador das ideias J. Pocock foi concedida à Revista Lua Nova, no ano de 2000 e está disponível no link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452000000300003.

DICAS

FIGURA 5 – FOTO DE PETTIT

4 PHILIP PETTIT

FONTE: <https://www.princeton.edu/~ppettit/images/me.jpg>. Acesso em: 13 nov. 2019.

Phillip Pettit nasceu em 1945 e desenvolveu seus estudos na Irlanda. Foi professor na University College em Dublin, pesquisador no Trinity Hall em Cambridge. Também foi professor de Filosofia na Universidade de Bradford. Mudou-se para os Estados Unidos e 1983, ocupando uma cadeira na Escola de Pesquisa em Ciências Sociais. Atualmente leciona Política e Valores Humanos na Universidade Rockefeller e Teoria Política e Filosofia na Universidade de Princeton.

Ao longo de sua carreira desenvolveu e desenvolve trabalhos nas mais diversas áreas como psicologia, moral e filosofia, mas concentra seus esforços em obras que abordam aspectos da participação política, controle e fiscalização do Estado e variáveis analíticas sobre o neo-republicanismo.

Philip Pettit é um pensador de destaque em torno das questões do republicanismo na contemporaneidade. Nesses debates vincula-se a intelectuais advindos da tradicão romana e que foram retomados na renascença por pensadores como Nicolau Maquiavel e Fransceco Guicciardini, nos Séculos XV e XVI. Ainda nesta direção, fazem parte desta tradiçao na atualidade pensadres como Pocock e Skinner. Importante ter presente nos estudos de Ciência Política que Maquiável, bem como Guicciardini, entre outros são considerados pais realismo político

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moderno, que se caracteriza, entre outras variáveis, pela desvinculação entre ética e política, ou seja, a política é a esfera de mediação das relações de poder entre os indivíduos e grupos em constante disputa pelo controle do espaço público, do Estado. Trata-se, portanto, de substituir o conflito direto, a guerra pela arte da negociação do poder implicando no cálculo, na capacidade de fazer acordos e cálculos políticos sobre toda e qualquer ação. Nesta concepção a política diz respeito à acão cotidiana, àquilo que é na forma como se apresenta e não àquilo que deve ser, ou que idealmente deveria ser. Ao inaugurar o “realismo político”, Maquiavel confere significativa contribuição à forma que a política assumiu na modernidade aos dias atuais.

O neo-republicanismo de Pettit concebe uma terceira variável, a clássica distinçao entre liberdade negativa e positiva. Sua concepção de liberdade tem como fundamento a ausência de toda e qualquer forma de dominação, ou de interferência que possa se apresentar arbitrária. Sob tais pressupostos, Pettit diz que, somente alcança a condiçao de cidadão aqueles indivíduos que exercitam livremente suas ideias e ações sem sofrer coações ou arbitrariedades de outrem. É na obra Republicanism a theory of freedomand government, publicada em 1997 e ainda sem tradução para o português, que Philip Pettit expõem sua teoria política de matriz neo-republicana.

Esta é a primeira apresentação completa de uma alternativa republicana às teorias liberais e comunitárias que dominaram a filosofia política nos últimos anos. O eloquente e convincente relato do professor Pettit começa com um exame da concepção republicana tradicional de liberdade como não-dominação, contrastando-a com visões negativas e positivas estabelecidas de liberdade. A primeira parte traça a ascensão e o declínio dessa concepção, mostra suas muitas atrações e argumenta porque ainda deveria ser considerada como um ideal político central. A segunda parte examina o que a implementação do ideal implicaria para a elaboração de políticas substantivas, o desenho constitucional e democrático, o controle regulatório e a relação entre Estado e sociedade civil. O destaque neste relato é um novo conceito de democracia, sob o qual o governo é exposto à contestação sistemática, e uma visão das relações entre Estado e sociedade baseadas na civilidade e na confiança. O poderoso trabalho do professor Pettit oferece não apenas uma visão unificada e teórica das muitas vertentes das ideias republicanas, mas também fornece uma perspectiva nova e sofisticada de estudos em áreas afins, incluindo a história das ideias, jurisprudência e criminologia.

IMPORTANTE

FONTE: <http://twixar.me/nrFT>. Acesso em: 19 nov. 2019.

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O conceito de liberdade é central no pensamento de Pettit, bem como na maior parte dos pensadores e das teorias políticas ao longo dos tempos, sobretudo no âmbito do republicanismo. Em um primeiro olhar histórico e conceitual é possível afirmar que a liberdade se constitui a partir de dois polos, sendo um negativo vinculado aos direitos civis e ao liberalismo e o polo positivo, articulado em torno da democracia quando analisado a partir dos direitos políticos e sociais. Porém, em sua teoria política Pettit vincula-se ao conceito de liberdade positiva e negativa desenvolvido pelo teórico social russo-britânico Isaiah Berlin (1909-1997).

Sob tais pressupostos, liberdade negativa significa para Pettit desfrutar da capacidade de eleição desvinculado de todo e qualquer impedimento ou coerção. Por sua vez, a liberdade positiva implica no exercício do autodomínio. Isaiah Berlin e Pettit seguem a mesma tendência analítica, a liberdade negativa assume condição central, na medida em que implica em limitar o poder da autoridade. Ainda nesta direção, Pettit chama atenção de que a distinção entre liberdade positiva e liberdade negativa de Berlin remete à distinção feita pelo pensador, escritor e político francês Benjamin Constant (1767-1830) entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos.

Assim, a liberdade positiva de Berlin vincula-se à liberdade dos antigos, descrita por Constant, que a concebia em sua condição pré-moderna, vinculada ao exercício da cidadania e de participação democrática como condição da autorrealização dos cidadãos característicos da Antiguidade Clássica. Por outro lado, a liberdade negativa de Berlin corresponde à liberdade dos modernos de Constant que expressa a condição dos ideais e concepções presentes fundadas na aposta da racionalidade social, política e científica moderna, que reverbera as preocupações dos indivíduos na esfera da vida privada e dos direitos individuais. Ou seja, a liberdade negativa (Berlin), ou dos modernos (Constant) reduz a importância da participação política e, como recompensa busca a satisfação dos próprios interesses.

Nesta direção, Pettit propõe a uma reinterpretação das pretensões de Constant no Século XIX e de Berlin no Século XX, com o objetivo de reinterpretar a tradição republicana. Na perspectiva analítica do professor da Universidade de Princeton as duas concepções sobre a liberdade carecem de solidez conceitual limitando a adequada compreensão sobre a validade filosófica e histórica sobre outras formas de conceber a liberdade. Nesta direção argumenta:

Eu creio que a distinção liberdade negativa-positiva fez um mau serviço ao pensamento político. Ela alimentou a ilusão filosófica de que, detalhes a parte, somente existe dois modos de se entender a liberdade: de acordo com o primeiro, a liberdade consiste na ausência de obstáculos externos à eleição individual; de acordo com o segundo, entranha a presença, e normalmente o exercício (Taylor 1985, ensaio 8; Baldwin 1984), das coisas e atividades que permitem o autodomínio e a autorrealização: em particular, a presença e o exercício das atividades participativas e de sufrágio, de modo que os indivíduos podem unir-se a outros em formação de uma vontade comum, popular (PETTIT, 1999, p. 37).

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A partir destas reflexões e posicionamentos, Pettit posiciona uma terceira definição de liberdade compreendida como não dominação e que se vincula de forma mais adequada ao conceito republicano. Para intérpretes do pensamento político de Pettit como Boesche, o conceito de liberdade como não dominação apresenta-se como “uma nova concepção para nosso século, mas não é nova para a tradição europeia das ideias políticas [...]” (BOESCHE, 1998, p. 861). Ou seja, o movimento intelectual que se materializou na estrutura conceitual que articula liberdade como não dominação e republicanismo, é resultante de extenso e exaustivo trabalho arqueológico realizado por Pettit, que transita do Consul romano Cícero (106 a 43 a.C) a um dos pais da Constituição norte-americana e da Declaração de Direitos da Virginia, de 1776, o jurista e político James Madison (1751-1836). Nesse percurso, Pettit retoma ideias e conceitos presentes na tradição Ocidental do pensamento republicano com intuito de situá-lo diante dos desafios do tempo presente.

4.1 A LIBERDADE COMO NÃO-DOMINAÇÃO COMO O PRESSUPOSTO DO REPUBLICANISMO

A perspectiva analítica e conceitual de Pettit sobre a liberdade é singular, mas ao observarmos a tradição do pensamento político ocidental constata-se que não se apresenta como um novo conceito. Ou seja, a concepção de liberdade de Pettit vincula-se à tradição que remonta a Roma clássica, retomada e presente também na Itália renascentista, nas perspectivas republicanas inglesas dos Séculos XVI, XVII e, americanas do Século XVIII, esvaziadas ao longo do século XIX aos dias atuais. Nas palavras do próprio pensador “a liberdade como não dominação – a liberdade republicana – não somente se perdeu para os pensadores e os ativistas políticos; chegou inclusive a tornar-se invisível para os historiadores do pensamento político” (PETTIT, 1999, p. 75).

Assim, a liberdade como não dominação vincula-se ao princípio de uma não interferência arbitrária constitutiva de uma autêntica matriz republicana. Ou seja, esta concepção de liberdade transcende à condição de meio termo entre a liberdade positiva, ou liberdade dos antigos e liberdade negativa, ou liberdade dos modernos, concebida como não interferência de outrem. Mas, advém da antiga tradição em que o exercício da liberdade implicava em não se submeter ao domínio de outro apresentando-se como ideal qualitativo de indivíduos e sociedades.

Sob tais pressupostos, é possível afirmar que Pettit desenvolve uma concepção de republicanismo cívico fundamentado numa única concepção de liberdade como não dominação, que apresenta aspectos negativos, na medida em que rechaça qualquer forma de dominação alheia e aspectos positivos, uma vez que anuncia a necessidade de segurança diante da possibilidade de interferência arbitraria de grupos ou poderes constituídos.

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É importante ressaltar que a liberdade como não dominação circunscrita na concepção republicana de Pettit não se presta a uma vinculação direta com matrizes de pensamento como o liberalismo, o comunitarismo, ou mesmo o humanismo cívico. Pettit procura afastar-se das concepções de liberdade positiva e negativa por entender sua radicalização na contemporaneidade conduziu a equívocos sociais e políticos. Ou seja, se tomarmos a liberdade negativa como ausência de interferência, quando aplicada às questões econômicas, constata-se, invariavelmente, nas mais distintas sociedades, distorções e desequilíbrios flagrantes que conduziram a graves conflitos, senão agressão frontal aos direitos humanos. Em sentido similar, tal fenômeno ocorreu com a valorização da liberdade positiva permitindo a emergência de governos marcados pela tirania e pelo totalitarismo em que indivíduos foram elevados a expoentes máximos de partidos, ou mesmo da nação.

É sob tais pressupostos, que o conceito de liberdade como não dominação apresenta-se como contraposição ao conceito de liberdade negativa pertencente, sobretudo à tradição liberal. O conceito de liberdade negativa funda-se na concepção contratualista, que parte do princípio que, em estado de natureza, todos os indivíduos nascem livres, o que justifica os discursos de matriz liberal que advogam pela menor interferência possível do estado na dinâmica de vida dos indivíduos e das sociedades. Ou seja, para o liberalismo, as leis e as instituições existem e se justificam na medida em que permitem e garantem o exercício da liberdade, considerada com um valor absoluto.

Assim, para Pettit a liberdade como não dominação, também compreendida como liberdade republicana se constitui e se efetiva plenamente quando garantida pelas instituições políticas e jurídicas da comunidade. Assim, a liberdade como não dominação transcende a simples ausência de interferência como se apresenta na matriz liberal implicando incidindo numa crítica ao modelo contratualista, bem como apontando para a insuficiência dos procedimentos democráticos responsáveis pela produção de normas adequadas e corretas.

É esta a diferença entre a liberdade como não interferência de matriz liberal e a liberdade como não dominação de matriz republicana apresentada por Pettit. Ou seja, mesmo que se encontrem presentes elementos da liberdade positiva, na perspectiva republicana de Pettit ela deve ser considerada negativa, na medida em que enfatiza a ausência de interferência arbitrária e é neste ponto em específico que a liberdade de Pettit se diferencia da liberdade concebida pelo liberalismo como ausência de toda e qualquer interferência.

Nesta direção é de fundamental importância a presença da concepção de arbitrariedade de Pettit, que implica no fato de não atender, ou de não levar em consideração as escolhas, os interesses ou posicionamentos dos indivíduos. Assim, considerar os interesses e as intenções dos indivíduos implica em manifestação de interferência de caráter não arbitrário descaracterizando intenção, ou ação de dominação. Tal condição, permite compreender o paradoxo da existência da lei que se apresenta inevitavelmente como interferência, mas desde que a lei se

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apresente em consonância com os interesses comuns pertencentes aos indivíduos sobre os quais é exercida, tratar-se-á de interferência não arbitrária, o que impede de considerá-la como dominação, ou afronta à liberdade individual.

A legitimidade das leis se constitui na medida em que servem ou beneficiam os cidadãos de forma igual, sem exceções. Mais uma vez é possível constatar a diferença entre a liberdade concebida pelo liberalismo e a liberdade como não dominação do republicanismo de Pettit, pois onde o liberalismo aponta restrições, a não-dominação pressupõe liberdade. Ou seja, o liberalismo advoga pela liberdade como não interferência do Estado no âmbito da liberdade do cidadão, ao passo que a liberdade como não-dominação republicana de Pettit se propõe a suprimir a dependência dos cidadãos em relação ao Estado e, em relação aos outros cidadãos. Considerando a liberdade republicana de Pettit, Viroli argumenta da seguinte forma:

[...] o republicanismo sustenta que para realizar a liberdade política é preciso opor-se tanto à interferência e à coerção em sentido próprio quanto à dependência, pela razão de que a condição de dependência é um constrangimento da vontade e, portanto, uma violação da liberdade. Isso significa que quem ama a verdadeira liberdade do indivíduo não pode não ser liberal, mas não pode ser apenas liberal. Deve também estar disposto a apoiar programas políticos que tenham como finalidade reduzir os poderes arbitrários que impõe a muitos homens e mulheres uma vida em condição de dependência (VIROLI, 2002, p. 27-28).

4.2 O EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO CONTEXTO REPUBLICANO

Diante do exposto até o presente momento é possível compreender que para Pettit a liberdade concebida a partir de pressupostos republicanos requer um cidadão com condições de desfrutar a liberdade, o que significa destituído de toda e qualquer interferência estatal, ou mesmo de outros cidadãos. Mas, uma vez mais é preciso ter presente que o referido autor concebe que no exercício da liberdade republicana a interferência do Estado na vida dos cidadãos se apresenta como um problema, na medida em que não se apresenta como interferência arbitrária.

Para Pettit, a liberdade do cidadão requer imunidade em relação à interferência arbitrária das instituições estatais e dos outros cidadãos. Ou seja, a liberdade como não dominação se constitui num espaço público em que o cidadão encontra garantias contra todo e qualquer tipo de interferência arbitrária. Assim, o cidadão pode se considerar livre à medida que não está sob o regime de imposição de outros cidadãos e, também não está sob a interferência arbitrária operacionalizada pelo Estado. Sob tais pressupostos teóricos e conceituais se apresenta a concepção republicana de Pettit, desprovida de pretensões de manipulações arbitrárias.

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Para garantir o ideal de liberdade e coibir manifestações de dominação, Pettit aponta para a importância das leis das instituições. São leis boas e sólidas instituições que garantem aos cidadãos proteção e defesa necessária as suas liberdades. Os pressupostos republicanos são comprometidos todas as vezes que um cidadão é controlado ou dominado por outro, bem como quando sobre imposições arbitrárias de governos tiranos. É evidente e dispensa comentários o fato de que leis, organismos estatais e políticas públicas interferem sistematicamente na dinâmica da vida dos cidadãos, isto mesmo em estados alicerçados em sólida perspectiva republicana. No entanto essa interferência não pode se apresentar de forma arbitrária, caso contrário o próprio Estado torna-se fonte de ausência de liberdade.

Sob tais pressupostos, um Estado republicano necessita, ao mesmo tempo, combater a interferência arbitrária, a pretensão de domínio de um cidadão sobre o outro, tanto quanto manter sob vigilância suas instituições para que não excedam as suas funções tornando-se fonte de arbitrariedades. Assim, é tarefa intransferível de um governo republicano evitar e coibir ações de seus agentes que, no exercício do poder, ultrapassem a esfera de suas atribuições incidindo sobre a liberdade dos cidadãos.

Apresenta-se como aspecto constitutivo de um Estado republicano a promoção da liberdade como um bem instrumental e primário. A liberdade é um bem instrumental à medida que se apresenta como instrumento de garantia de que os cidadãos terão suas escolhas respeitadas e, é primário na perspectiva de que todos devem almejar e desejar a não-dominação como condição primeira.

Neste ponto do debate clarificam-se os fundamentos da concepção de liberdade constitutiva do pensamento de Pettit, vinculada à participação e comprometimento com a dinâmica política civil e institucional que legitima e garante o espaço público como qualificação da vida individual e social. Assim, uma república garante a não-arbitrariedade quando prevê e solicita a participação dos cidadãos no debate e na fiscalização das ações do Estado. Ou, dito de outra forma, num Estado republicano a participação política permite ao cidadão que exerça sua capacidade de contestação em relação à ação do Estado. As ações do Estado necessitam ser questionadas e contestadas como garantia de que os interesses dos cidadãos alcancem devido tratamento pelas políticas governamentais.

Sob tais pressupostos, um Estado republicano incentiva, garante e preserva a democracia deliberativa caracterizada como condição racional, dialógica, discursiva em defesa do espaço público e do bem comum. Interesses particularizados, de grupos de pressão, concessões e outras formas de barganha política não encontram espaço de manifestação e sobrevivência num Estado republicano calcado na participação política e na solidez de sua democracia representativa. Ainda nessa direção, um Estado republicano provê espaços públicos e canais de comunicação que lhe permitam reconhecer os anseios dos cidadãos, a partir dos quais as autoridades competentes possam orientar suas ações.

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Sob todos estes aspectos, um Estado republicano organiza-se a partir do equilíbrio entre seus poderes. Coibir a arbitrariedade que conduz as mais diversas formas de cerceamento das liberdades individuais no exercício da cidadania requerem que cada poder atue na esfera de sua abrangência evitando excessos. Mais do que isto, a capacidade de contestação dos cidadãos no exercício de sua liberdade política deve dirigir-se a cada um dos poderes do Estado, seja ele o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. A perspectiva neorrepublicana de Pettit não admite privilégios ou exercício do poder de forma arbitraria em relação à liberdade e aos direitos dos cidadãos.

Ressalta-se mais uma vez que o neo-republicanismo de Pettit compartilha com o liberalismo a ideia de liberdade, mas distancia-se dos pressupostos liberais de ausência de toda e qualquer interferência na vida dos indivíduos. Ou seja, o neo-republicanismo de Pettit concebe a liberdade a partir da tensão entre interesses privados e públicos, conferindo aos interesses públicos primazia. Em nome da garantia do espaço público e dos interesses públicos advindos da constante contestação dos cidadãos que se justifica a interferência não arbitrária na vida dos indivíduos e dos cidadãos. Desprovido de tais pressupostos não há possibilidade de se constituir um Estado Republicano.

Assim, o neo-republicanismo de Pettit requer engajamento na constituição e garantia de liberdades individuais e cidadãos que garantam a proteção dos interesses comuns da coletividade, contribuindo na construção de medida e valores políticos em condições de oportunizar aos cidadãos uma perspectiva republicana consistente, plural, igualitária e justa.

5 QUENTIN ROBERT SKINNERFIGURA 6 – FOTO DE QUENTIN ROBERT SKINNER

FONTE:<https://cdn.britannica.com/s:300x300/12/163112-050-885C002B/Portrait-Quentin-Skinner.jpg>. Acesso em: 13 nov. 2019.

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Quentin Skinner nasceu na localidade de Oldham, Inglaterra, em 26 de novembro de 1940. O pai de Skinner exerceu a função pública de administrador colonial e a mãe foi professora. Estudou história no Gonville & Caius College da Universidade de Cambridge. Naquele educandário foi diplomado como bacharel em História em 1962. Na mesma universidade concluiu o mestrado, em 1965. Sua carreira se constitui na condição de historiador do pensamento político moderno.

Ao longo de sua carreira atuou como professor assistente e professor de História em Cambridge entre os anos de 1965 a 1974. De 1962 a 2008, foi membro do Christ`s College. Também foi membro do Instituto de Estados Avançados de Princeton em Nova Jersey (EUA) (1974 a 1979). Em 1979 assumiu a cadeira de teoria social e política em Cambridge e, entre o período de 1996 a 2008 atuou como professor de História Moderna.

Foi nomeado, em 2008, Professor de Ciências Humanas Barber Beaumont na Universidade Queen Mary de Londres. Ressalta-se ainda que ao longo de sua carreira, Skinner ministrou palestras, cursos e orientações em diversas universidades, entre elas: na Universidade Nacional da Austrália (1970, 1989, 1994), Universidade de Harvard (2008) e Collège de France (1997).

Suas reflexões e escritos se concentram no campo da metodologia histórica e, nas temáticas do republicanismo, bem como nas teorias políticas do pensador florentino e renascentista Nicolau Maquiavel (1469-1527) e do pensador político inglês Thomas Hobbes (1588-1679).

5.1 A TEORIA POLÍTICA A HISTÓRIA E A FILOSOFIA

É preciso reconhecer que reside uma tensão entre historiadores das doutrinas políticas e filósofos da política. O que está em jogo nesta tensão é a possibilidade de consenso entre a forma mais adequada de estudo e a análise dos textos clássicos da Teoria Política. Ou seja, para compreender suficientemente os textos seria fundamental analisá-los a partir de uma perspectiva histórica com seus métodos e perspectivas analíticas próprias dos historiadores? Ou pode-se estudar a partir da perspectiva filosófica com sua pretensão de estabelecer os princípios gerais acerca da natureza da organização social e política, bem como avaliar a consistência das premissas e dos argumentos da narrativa política?

Para os historiadores do pensamento político, a Teoria Política Clássica pode ser suficientemente estudada a partir da aplicabilidade do método histórico. Por sua vez filósofos reconhecem a importância da contextualização histórica para uma adequada abordagem e interpretação dos textos políticos. Porém, a questão está longe de alcançar consenso à medida que existem inúmeras concepções de história e por decorrência de métodos historiográficos. Esta constatação também é alcançada pelo historiador Quentin Skinner quando afirma: “Há tantos tipos de História quanto razões sérias para estar interessado no passado, e tantas diferentes técnicas de pesquisa histórica quanto métodos racionais de seguir esses interesses” (SKINNER, 1999, p. 88).

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Skinner contribuiu de forma significativa com este debate entre historiadores e filósofos em torno da legitimidade da interpretação dos textos da Teoria Política Clássica desenvolvendo um método de análise conhecido como “contextualismo linguístico”. O referido método foi desenvolvido no fim dos anos 1960 a partir da abordagem de diversos marcos teóricos, entre eles a perspectiva histórica de Robin George Collingwood (1889-1943), a filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e de John Langshaw Austin (1911-1960), entre várias outras “escolas” contemporâneas das Ciências Humanas.

A contribuição de Quentin Skinner foi decisiva para que o gênero “História do Pensamento Político”, com tradição de estudos e investigações nos Estados Unidos e na Inglaterra, desde o início do século XX, alcançasse significativo impulso de renovação. Alguns de seus textos promoveram debates, permitiram e potencializaram a circulação de novos pressupostos no âmbito das teorias interpretativas dos textos políticos ainda em tendência na atualidade. Skinner foi enfático na apresentação de um novo programa de pesquisa que se contrapunha a aspectos considerados por ele como anacrônicos, ou mesmo simplificadores na abordagem da História do Pensamento Político que ainda ocupavam a centralidade nos estudos e debates políticos, entre eles a ideia de uma tradição filosófica do Ocidente.

Skinner considera problemático o pressuposto de que os textos pertencentes à tradição filosófica possam apresentar condição especial, atemporal ou mesmo trans-histórica. Para o referido pensador estes textos foram alvo de inúmeras interpretações realizadas por brilhantes pensadores e, como nesta condição podem ter incorporado argumentos e questões circunstanciais à pretensão de validade universal. Ou seja, questões que estiveram presentes nas reflexões sobre a política no âmbito da polis grega assumem validade para todo e qualquer indivíduo de uma grande metrópole mundial em pleno Século XXI.

Assim, é preciso considerar que se as ideias de pensadores políticos como Platão, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes e Locke, entre tantos outros, assumissem a condição de verdades universais, seus escritos apresentar-se-iam como descrições deterministas do comportamento político humano, ou mesmo premeditariam seus escritos no sentido de atrair a atenção de seus leitores e induzir interpretações, análises e comportamentos ao longo dos tempos. O que está em jogo para Skinner é estabelecer as bases para uma crítica a ideia de tradição política como uma totalidade em que os autores referenciais no debate estariam em constante debate em torno de questões universais e perenes determinantes do pensamento político. Tal posicionamento também se apresentava com a pretensão de extrair dos textos clássicos argumentos e insights que, ao explicarem questões políticas pertencentes ao passado, possam se apresentar como explicação para o presente.

Sob tais pressupostos, Skinner propõem que ao invés de insistir no diálogo entre pensadores clássicos como forma de compreender o passado e o presente, os historiadores da Teoria Política deveriam interpretar, analisar e avaliar os textos clássicos a luz das mais diversas tradições filosóficas a partir

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das especificidades históricas em que apresentaram. Ou seja, para Skinner não se justifica a “crença” de uma vinculação histórica entre os grandes textos da tradição da filosofia política ocidental. Nestas condições, apresenta-se como equívoco histórico o posicionamento de intelectuais que se relacionam com tais textos da tradição como instrumento de análise do tempo presente e, sobretudo como legitimadores de estudos históricos deste gênero.

A proposta histórico-metodológica de Skinner é considerar o contexto histórico, os cenários, as tensões, os paradoxos e a possibilidades políticas em jogo em determinado contexto. E, sobretudo, as influências que tais perspectivas em suas especificidades históricas promovem na constituição do tecido político em determinado contexto social.

Mas o ponto que Skinner ressalta é a argumentação de seus autores. Ele não se limita, como fazem os historiadores tradicionais da filosofia, a cotejar conceitos. Mostra como os conceitos se ordenam em argumentos, e como estes são retomados pelos sucessivos pensadores. Uma história da filosofia política é a história da construção dos argumentos e a de uma fortuna crítica (penso, apenas, que Skinner talvez devesse salientar mais os desvios, o infortúnio crítico, os erros não-intencionais, mas significativos).É por aí que ingressa a história em sua obra, o que é desejável e mesmo necessário, tratando-se de filosofia política. Para Skinner, o melhor modo de avaliar o que um autor disse é confrontando-o com seu tempo e seus leitores. Por exemplo, não entenderá O Príncipe quem esquecer que no Século 14 existia um gênero literário de conselhos a príncipes, o qual Maquiavel vem contestar. Esses textos medievais de aconselhamento, os "espelhos dos príncipes", procuravam pregar-lhes moral. Já Maquiavel quer ensinar-lhes "coisa que seja útil", como diz. Antes dele se falava de reinos que nunca existiram, davam-se conselhos moralmente bons, mas desastrosos na prática. Maquiavel agora propõe tratar dos Estados e dos homens "como realmente são". Mas daria para entender essa inovação, pergunta Skinner, sem conhecer o moralismo que ela critica? (RIBEIRO, 1996, s.p.).

Sob tais pressupostos, Skinner (1999) propõem analisar a história do pensamento político sob outros prismas, afastando-se do modelo tradicional que enfatiza a pesquisa das continuidades, das sequências das ideias impactantes na trajetória ocidental. Assim, a melhor estratégia para o historiador se constituiria numa investigação das linguagens políticas que clarifica a forma como as sociedades passadas estabeleceram o diálogo consigo mesmas em torno de suas demandas sociais e políticas. Tal perspectiva metodológica permite averiguar os contextos historicamente variáveis no quais se constituíram os debates políticos demonstrando seu caráter contingente e, portanto, não absoluto.

A partir da condição contingente em que se estabelecem os debates políticos pode se constituir numa oportunidade teórica e conceitual imprescindível para adentrar na cosmovisão intelectual de determinado contexto societário recuperando o sentido que os pensadores e escritores políticos formularam nas condições de seu tempo e de sua sociedade.

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5.2 SKINNER E O PENSAMENTO POLÍTICO CONTEMPORÂNEO

Skinner, considerado um dos maiores expoentes do Contextualismo Linguístico, pretende analisar as obras e os pensadores políticos em seus contextos de origem e atuantes em suas realidades sociais específicas, o que significa ter presente que um autor estaria inserido em diálogos críticos com os demais autores em sua contemporaneidade. Reitera-se, conforme já anunciado anteriormente, que as teorias políticas não são tomadas como um complexo sistema geral de ideias, mas sim como intervenções efetivas nos conflitos ideológicos no qual foram elaboradas.

Nesta perspectiva, uma de suas obras mais importantes no que concerne aos estudos e análise do pensamento político contemporâneo intitula-se: As fundações do pensamento político moderno, publicado em 1978 pela Cambridge University Press do Reino Unido. Nessa obra, Skinner procura compreender os pensadores modernos à luz do contexto político vivenciado pelas cidades estados renascentistas dos Séculos XIII ao Século XVI. Retoma os valores humanistas como um dos aspectos determinantes das ideias daquele período. Ainda nessa direção, retoma a revalorização do ideal republicano romano expresso em pensadores políticos do período, entre eles Cícero (106 a 43 a.C.) e que exerceram significativa influência em pensadores renascentistas, como Petrarca (1304 – 1374).

FIGURA 7 – CAPA DE LIVRO DE QUETIN ROBERT SKINNER

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51qnb9O70uL._SX344_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 14 nov. 2019.

O livro citado anteriormente está organizado em seis capítulos e uma conclusão. O Capítulo 1 aborda as origens da renascença em que trata da questão da liberdade em diversas perspectivas. No Capítulo 2, Skinner analisa a renascença florentina, analisando os conceitos de liberdade e virtus constituintes de humanismo do renascimento. Também analisa a questão dos príncipes e a sobrevivência dos valores republicanos no mesmo período. No Capítulo 3, Skinner analisa a renascença do Norte, a partir de análises da difusão da erudição humanista, da recepção do pensamento político humanista e, da crítica humanista

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TÓPICO 1 | NEO-REPUBLICANISMO: TAYLOR, POCOCK, SKINNER, PETTIT

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ao humanismo. No Capítulo 4, o historiador do pensamento político moderno analisa os princípios do luteranismo, seus precursores, bem como sua difusão. O Capítulo 5 é dedicado ao constitucionalismo e à contrarreforma. O Capítulo 6 analisa o Calvinismo e a teoria da revolução.

O que foi o Renascimento?

O Renascimento foi um importante movimento de ordem artística, cultural e científica que se deflagrou na passagem da Idade Média para a Moderna. Em um quadro de sensíveis transformações que não mais correspondiam ao conjunto de valores apregoados pelo pensamento medieval, o renascimento apresentou um novo conjunto de temas e interesses aos meios científicos e culturais de sua época. Ao contrário do que possa parecer, o renascimento não pode ser visto como uma radical ruptura com o mundo medieval.

Características do Renascimento

A razão, de acordo com o pensamento da Renascença, era uma manifestação do espírito humano que colocava o indivíduo mais próximo de Deus. Ao exercer sua capacidade de questionar o mundo, o homem simplesmente dava vazão a um dom concedido por Deus (neoplatonismo). Outro aspecto fundamental das obras renascentistas era o privilégio dado às ações humanas, ou humanismo. Tal característica representava-se na reprodução de situações do cotidiano e na rigorosa reprodução dos traços e formas humanas (naturalismo). Esse aspecto humanista inspirava-se em outro ponto-chave do Renascimento: o elogio às concepções artísticas da Antiguidade Clássica ou Classicismo.

Relação com a burguesia e o individualismo

Essa valorização das ações humanas abriu um diálogo com a burguesia, que floresceu desde a Baixa Idade Média. Suas ações pelo mundo, a circulação por diferentes espaços e seu ímpeto individualista ganharam atenção dos homens que viveram todo esse processo de transformação privilegiado pelo Renascimento. Ainda é interessante ressaltar que muitos burgueses, ao entusiasmarem-se com as temáticas do Renascimento, financiavam muitos artistas e cientistas surgidos entre os Séculos XIV e XVI. Além disso, podemos ainda destacar a busca por prazeres (hedonismo) como outro aspecto fundamental que colocava o individualismo da modernidade em voga.

As cidades italianas e o mecenato

A aproximação do Renascimento com a burguesia foi claramente percebida no interior das grandes cidades comerciais italianas do período. Gênova, Veneza, Milão, Florença e Roma eram grandes centros de comércio, onde a intensa circulação de riquezas e ideias promoveu a ascensão de uma notória classe artística italiana. Até mesmo algumas famílias comerciantes da época, como os Médici e os Sforza, realizaram o mecenato, ou seja, o patrocínio às obras e estudos renascentistas. A profissionalização desses renascentistas foi responsável por um conjunto extenso de obras que acabou dividindo o movimento em três períodos: o Trecento, o Quatrocento e Cinquecento. Cada período abrangia respectivamente uma parte do período que vai do Século XIV ao XVI.

FONTE: <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/renascimento.htm>. Acesso em 3 out. 2019.

ATENCAO

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

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Ao longo dessa obra, Skinner apresenta os pré-requisitos constitutivos da formação do conceito de Estado Moderno. Nessa direção, o primeiro pré-requisito apresenta-se na transição da concepção política distinta da esfera da moral. O segundo pré-requisito se apresenta na independência de cada reino, ou civitas de poderes externos ou superiores. O terceiro pré-requisito implica no estabelecimento de uma autoridade suprema reconhecida como única e desprovida de rivais dentro do próprio território. No quarto pré-requisito Skinner argumenta a existência do Estado vincula-se exclusivamente para a concretização de fins políticos, totalmente distintos de fins religiosos.

Para Skinner é somente no fim do Século XVI que parte destes pré-requisitos é alcançado de forma suficiente tornando possível conceber o Estado moderno, caracterizado como a única fonte da lei e detentor do monopólio legítimo da força e da violência dentro de seu território. Tais condições inerentes ao Estado moderno objetivam a lealdade de seus súditos. Nesta obra, assim como em outras, Skinner demonstra a importância da releitura e interpretação das ideias em movimento, com diálogo em determinado contexto como condição da formulação da teoria política contemporânea, na medida em que o retorno a certos contextos sociais permite reconhecer aspectos constitutivos do contexto político da atualidade. Assim, o retorno aos conceitos políticos mobilizados no passado pode contribuir significativamente para a compreensão de conceitos que continuamos a empregar nas análises da conformação política atual.

Sob tais pressupostos metodológicos e, ao longo de sua vasta obra (1978 – As fundações do pensamento político moderno - volume I - a renascença; 1978 - As fundações do pensamento político moderno - volume II - a era da reforma; 1981 – Machiavelli; 1996 – Razão e retórica na filosofia de Hobbes; 1998 – Liberdade antes do Liberalismo; 2002 – Visões da política - volume I - sobre o método; 2002 – Visões da política - volume II - virtudes renascentistas; 2002 – Visões da política - volume III - Hobbes e ciência civil; 2003 – O artista na filosofia política; 2008 – Hobbes e liberdade republicana; 2011 – A verdade e o historiador; 2012 – Os três órgãos do Estado; 2014 – Shakespeare forense ; 2018 – Do humanismo a Hobbes: estudos em retórica e política), Skinner se apresenta como um pensador neorrepublicano na medida em que reivindica o espaço público como condição da liberdade, a partir da intensa herança política que perpassa pelas ideias de pensadores como Cícero Petrarca e Maquiavel. Ou seja, a partir da referência a estes autores, Skinner elabora sua concepção de republicanismo baseado na liberdade garantida pela lei e pelas instituições, entre eles o Estado, adequada às ideias e aos conflitos constitutivos da sociedade contemporânea.

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RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• Existe uma dimensão comunitarista muito importante no republicanismo e que essa característica da história política do Ocidente é de fundamental compreensão para que entendamos os fundamentos da cultura política que refletem nas instituições políticas que a civilização ocidental edificou.

• É importante considerar o contexto histórico, por meio do qual a linguagem política que fundamenta as instituições homônimas é elaborada. Assim, o que pensamos hoje, deve ser analisado a partir de nossa herança civilizatória.

• Nossa herança civilizatória, em termos de concepção sobre o republicanismo, pode ser identificada no humanismo cívico de pensadores romanos, ressurgido entre o fim da Idade Média e começo da Modernidade.

• Charles Taylor é um defensor incansável do federalismo e ativo participante da vida política de seu país. Utilizando-se do método do neoinstitucionalismo histórico da Ciência Política, o filósofo canadense se incumbe de demonstrar as fontes que originaram a identidade do homem moderno.

• Taylor é considerado um republicano tipicamente comunitarista, ao enfatizar a natureza coletiva da identidade individual. Ele defende a ideia de que o ser humano aprende tudo em Sociedade e deve, portanto, obrigações à sociedade.

• Para Taylor, o homem moderno acumulou muitos significados à constituição de sua identidade, sendo eles também mutáveis ao longo do tempo e de cultura para cultura. Entretanto, a noção de uma natureza humana universal não muda.

• O panorama analítico de Charles Taylor e sua concepção antropológica denota uma profunda convicção a respeito do que podemos chamar de felicidade.

• Da mesma maneira que sugere Bauman, Taylor faz a aposta na vida em comunidade, dotada de sentido. Sua ideia do bem viver invoca a condição essencial do homem, qual seja, sua condição de viver em comunidade.

• John Pocock é uma espécie de arqueólogo das ideias políticas, uma atividade intelectual rara e importantíssima, pelo seu caráter fundante.

• Esse trabalho de “escavação intelectual” consiste em compreender as ideias em sua origem histórica. Mas isso ainda seria dizer o óbvio.

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• Embora não aceite o rótulo, John Pocock é considerado um filósofo historiador das ideias políticas. No seu entendimento, essa parte da teoria política precisaria ser devidamente compreendida na perspectiva de uma “história da linguagem” ou ainda das “linguagens políticas”.

• A importância da análise de Pocock está, entre tudo, em fazer perceber não apenas os acertos. Antes mesmo, está em perceber os erros bastante comuns que cometemos ao lermos autores da teoria política, tomando ideias como verdades, ou falácias, de forma atemporal e segundo nossas preferências.

• John Pocock demonstra, desde a sua origem, como esses ideais e valores foram devidamente resgatados pelo humanismo cívico do Século XVI, reconstituindo, por assim dizer, tijolo por tijolo, a trajetória evolutiva do Ocidente.

• No contextualismo linguístico em The Machiavellian moment, John Pocock demonstra como se construiu, discursivamente, a cultura republicana moderna.

• A realização democrática, assim como as aspirações republicanas contemporâneas teriam sido desenhadas há pouco mais de cinco séculos.

• O neorrepublicanismo de Pettit concebe uma terceira variável à clássica distinçao entre liberdade negativa e liberdade positiva.

• Sua concepção de liberdade tem como fundamento a ausência de toda e qualquer forma de dominação, ou de interferência que possa se apresentar arbitrária.

• O conceito de liberdade é central no pensamento de Pettit, bem como na maior parte dos pensadores e das teorias políticas ao longo dos tempos, sobretudo no âmbito do republicanismo.

• Pettit se propõe a uma reinterpretação das pretensões de Constant no século XIX e de Berlin no século XX com o objetivo de reinterpretar a tradição republicana.

• A partir destas reflexões e posicionamentos, Pettit posiciona uma terceira definição de liberdade compreendida como não dominação e que se vincula de forma mais adequada ao conceito republicano.

• Pettit desenvolve uma concepção de republicanismo cívico fundamentado numa única concepção de liberdade como não-dominação, que apresenta aspectos negativos, na medida em que rechaça qualquer forma de dominação alheia e, aspectos positivos uma vez anuncia a necessidade de segurança diante da possibilidade de interferência arbitraria de grupos, ou poderes constituídos.

• Para Pettit, a liberdade do cidadão requer imunidade em relação à interferência arbitrária das instituições estatais e dos outros cidadãos.

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• Um Estado republicano necessita ao mesmo tempo combater a interferência arbitrária, a pretensão de domínio de um cidadão sobre o outro, tanto quanto manter sob vigilância suas instituições para que não excedam as suas funções tornando-se fonte de arbitrariedades.

• Skinner contribuiu de forma significativa com este debate entre historiadores e filósofos em torno da legitimidade da interpretação dos textos da Teoria Política Clássica desenvolvendo um método de análise conhecido como “contextualismo linguístico”.

• A contribuição de Quentin Skinner foi decisiva para que o gênero “História do Pensamento Político”, com tradição de estudos e investigações nos Estados Unidos e na Inglaterra, desde o início do século XX, alcançasse significativo impulso de renovação.

• Skinner considera problemático o pressuposto de que os textos pertencentes à tradição filosófica possam apresentar condição especial, atemporal ou mesmo trans-histórica.

• A proposta histórico-metodológica de Skinner é considerar o contexto histórico, os cenários, as tensões, os paradoxos e a possibilidades políticas em jogo em determinado contexto.

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1 Em que perspectivas as contribuições de Quentin Skinner foram decisivas para o gênero História do Pensamento Político?

2 Apresente as definições de liberdade negativa e liberdade positiva presentes no pensamento de Pettit.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOPrezado acadêmico!

Neste tópico você entrará em contato com as principais ideias e autores do neoliberalismo. Você compreenderá que o neoliberalismo não se apresenta somente como o desdobramento econômico do liberalismo clássico, mas, sobretudo de que o neoliberalismo é uma proposta moral de subjetivação dos indivíduos necessários à conformação de uma sociedade suficientemente estruturada para manutenção e desenvolvimento do capitalismo em sua forma concorrencial.

Esta escola econômica e seus autores partem de uma concepção antropológica em que o ser humano é tomado em sua condição individual e racional como um ser capaz de fazer escolhas. A capacidade de fazer escolhas constitui sua condição cidadã alicerçada em sua condição de produtor portador de liberdade de consumo. Esta concepção antropológica desdobra-se na concepção política pautada na liberdade de mercado intolerante a qualquer forma de coletivismo social, ou intervenção do Estado.

Sob tais pressupostos você terá a oportunidade de compreender que uma ordem econômica pressupõe uma ordem social. Ou seja, a economia não é um fim em si mesma, mas sua constituição requer uma definição antropológica consistente sobre a qual se constitui um arcabouço moral que orienta as escolhas e as decisões dos indivíduos, bem como a constituição das instituições que balizam perspectivas sociais.

Bons estudos e excelente aprendizado!

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

2 LUDWIG EDLER VON MISESFIGURA 8 – FOTO LUDWIG EDLER VON MISES

FONTE: <https://mises-media.s3.amazonaws.com/styles/slideshow/s3/static-page/img/Ludwig%20von%20Mises%20576x720.jpg?itok=Q9GsLVA1>. Acesso em: 14 nov. 2019.

Ludwig Edler von Mises nasceu em 29 de setembro de 1881 na cidade de Lemberg, na época pertencente ao Império Austro-húngaro. Atualmente a cidade natal de von Mises chama-se Lviv e localiza-se na Ucrânia. Filho mais velho de Arthur von Mises que desempenhava a função de engenheiro ferroviário e, de Adele Landau que desenvolvia trabalhos de caridade junto a um orfanato judaico.

Segundo Bettina Bien Greaves (2009), uma das principais especialistas

no pensamento de von Mises, o referido economista de estatura mediana era meticuloso em tudo que fazia, inclusive com sua postura, sempre ereta. Caminhava com passos firmes. Era parcimonioso em sua forma de vestir. Utiliza um terno cinza em qualquer época do ano. Meticuloso no cuidado com sua aparência, seus cabelos e bigode sempre aparados e devidamente penteados. Avesso a frivolidades, adorava caminhar e, durante o verão, fosse na Áustria, na Suíça, ou nos Estados Unidos, dedicava-se a fazer trilhas pelas montanhas. Reunia reiteradamente seus amigos para tomar chá e estabelecer longos e acalorados debates em torno de aspectos antropológicos, sociológicos e filosóficos constitutivos da ciência da economia.

Membro de uma família com grande fortuna, Ludwig von Mises fez seus estudos acadêmicos na Universidade de Viena. E, ao longo destes estudos, foi significativamente influenciado pelos trabalhos de Carl Menger (1840-1921).

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TÓPICO 2 | VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

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"Nunca viveram ao mesmo tempo", escreveu Ludwig von Mises, "mais que uma vintena de pessoas cuja contribuição à ciência econômica pudesse ser considerada essencial”. Um desses homens foi Carl Menger (1840-1921), Professor de Economia Política da Universidade de Viena e fundador da Escola Austríaca de Economia.

A obra pioneira de Menger, Grundsätze der Volkswirtschaftslehre, Traduzido como Princípios de Economia Política, publicada em 1871, não apenas introduziu o conceito de análise marginal, como também apresentou uma abordagem radicalmente nova sobre a análise econômica, análise essa que ainda forma o núcleo da teoria austríaca do valor e dos preços.

NOTA

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51vBl2F9JDL._SX331_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 14 nov. 2019.

Ao contrário de seus contemporâneos William Stanley Jevons e Leon Walras, que independentemente desenvolveram conceitos de utilidade marginal durante os anos 1870, Menger preferiu uma abordagem que fosse dedutiva, teleológica, e, em um sentido fundamental, humanística. Conquanto, Menger compartilhasse com seus contemporâneos a preferência pelo raciocínio abstrato, ele estava primordialmente interessado em explicar como funcionavam as ações de pessoas reais no mundo real, e não em criar representações artificiais e estilizadas da realidade.

Para Menger, a economia é o estudo das escolhas propositais dos seres humanos, a relação entre meios e fins. Ele começa seu tratado dizendo que "Todas as coisas estão sujeitas à lei da causa e efeito. Não existe exceção para esse grande princípio". Jevons e Walras rejeitavam causa e efeito em favor de uma determinação simultânea — a ideia de que sistemas complexos podem ser modelados como sendo sistemas de equações simultâneas que acreditam que nenhuma variável pode "causar" uma outra variável. Essa se tornou a abordagem padrão da ciência econômica atual, e é aceita por quase todos os economistas, exceto os seguidores de Carl Menger.

FONTE: < https://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=85>. Acesso em: 20 nov. 2019.

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

Entre os anos de 1904 a 1914, von Mises acompanhou as aulas do economista austríaco Eugen von Boehm-Bawerk. Concluiu seu doutorado em 1906. Após a conclusão de seus estudos acadêmicos von Mises lecionou na Universidade de Viena entre os anos de 1913 a 1934. Além das atividades acadêmicas foi conselheiro econômico do monarquista Otto von Habsburg, bem como do governo austrofascista de Engelbert Dolfuss. Diante do avanço nazista na Alemanha e em países vizinhos, von Mises, que era de origem judaica, fugiu da Áustria em 1934 fixando-se na Suíça, mais especificamente em Genebra. Na capital suíça passou a lecionar no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais, permanecendo naquela função até 1940. Sob o patrocínio da Fundação Rockefeller imigrou para Nova Iorque (EUA).

O trabalho não pode aumentar sua fatia em detrimento do capital

Eugen von Böhm-Bawerk (nascido a 12 de fevereiro de 1851; morto em 1914) estava no lugar certo e na hora certa para poder contribuir de maneira considerável ao desenvolvimento da economia austríaca. Estudando na Universidade de Viena, ele tinha vinte anos quando o livro de Carl Menger, Princípios de Economia Política, foi publicado em 1871. Sua educação universitária formal havia sido em Direito, sendo assim ele não foi realmente um aluno de Menger, mas após ter terminado seu doutorado nessa área, em 1875, ele começou a se preparar, tanto em casa quanto no exterior, para lecionar economia na sua terra natal, Áustria.

Um progresso paralelo do Direito para a Economia também caracterizou a carreira de seu colega (e, mais tarde, seu cunhado) Friedrich von Wieser, mais conhecido por seu livro Natural Value, publicado em 1893. A forte influência dos escritos de Menger sobre o pensamento de Böhm-Bawerk, simultaneamente ao seu relacionamento vitalício com Wieser, fez de Böhm-Bawerk um inato para expor e desenvolver a teoria austríaca. De acordo com Schumpeter (History of Economic Analysis, New York: Oxford University Press, 1954, p. 846), Böhm-Bawerk "era tão completamente o entusiástico discípulo de Menger, que é praticamente desnecessário procurar por outras influências sobre ele".

FONTE: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=87>. Acessado em: 7 out. 2019.

ATENCAO

Na condição de representante do liberalismo clássico, assim como outros intelectuais, recebeu apoio do Fundo William Volker para vincular-se a uma das universidades norte-americanas. Nesta condição, em 1945 assumiu uma cadeira de professor visitante na New York University. Ocupou esse cargo até sua aposentadoria em 1969. Durante esse período também atuou como consultor de assuntos monetários para a União Pan-europeia. Também recebeu o título de doutor honoris causa, do Grove College. Von Mises faleceu em 10 de outubro de 1973, com 92 anos de idade em Nova Iorque.

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TÓPICO 2 | VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

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2.1 O LIBERALISMO DE VON MISES E DOS ECONOMISTAS AUSTRO-AMERICANOS

Von Mises apresenta uma contribuição original na redefinição do liberalismo clássico na constituição do neoliberalismo. Pode-se dizer que seu pensamento se articula em torno de dois movimentos em oposição. O primeiro destes movimentos e que von Mises chama de “destrucionismo” tem como agente principal o Estado. Para o economista austríaco radicado nos Estados Unidos, a ingerência do Estado nos assuntos sociais e econômicos conduzem necessariamente ao totalitarismo e a regressão econômica. O segundo movimento vincula-se a lógica do empreendedor, isto do sujeito econômico que tem a possibilidade de agir, na medida em que se encontra inserido num meio social e político em que a liberdade ação esteja preservada de qualquer ingerência estatal.

Von Mises se insere entre os economistas austro-americanos que conferem ênfase à ação dos indivíduos e aos processos de mercado como estratégia analítica e discursiva de descrição realista de uma máquina econômica que está propensa ao equilíbrio quando está desvinculada de moralismos, de agitações sociais, de distúrbios políticos que perturbam seu funcionamento. Outrossim, pretendem demonstrar que a dinâmica econômica reside em certa dimensão humana, mais especificamente no espírito empreendedor de cada indivíduo que se caracteriza como conduta essencial e universal da ordem capitalista concorrencial.

Nessa direção, o neoliberalismo apregoado por von Mises e pelos economistas do círculo austro-americano, apresenta-se, sobretudo, como um projeto político de constituição de uma realidade social que supostamente é inerente à condição dos indivíduos. Estes autores e, sobretudo von Mises, vão explorar na constituição de sua concepção e economia variáveis antropológicas constitutivas do “homem-empresa”. Ou seja, o que está em jogo é a compreensão e constituição de uma ordem de mercado a partir da produção, senão constituição do sujeito empresarial.

2.2 MERCADO E INFORMAÇÃO

Von Mises, acompanhado por seu discípulo Hayek, apresenta um diferencial significativo em sua concepção da dinâmica econômica, que os distinguem e os distanciam da escola econômica neoclássica de matriz walseriana-paretiana fundada sobre a lógica do equilíbrio geral como determinante para o funcionamento do mercado. Von Mises, seguido por Hayek, propõe conceber a concorrência no mercado como resultante da descoberta e do acesso à informação. Ou seja, como certa conduta do sujeito que busca informações e conhecimentos estratégicos para a superação dos seus competidores na dinâmica de mercado, alcançando novas oportunidades de rendimento e de lucro.

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O fundamento da concepção antropológica sobre a qual se estabelece a ordem social que justifica a ordem econômica para o pensador austríaco juntamente com os demais pensadores austro-americanos reside numa condição agonística. Ou seja, o comportamento humano na luta pela sobrevivência, pelo alcance das condições necessárias à sobrevivência se caracteriza majoritariamente pela rivalidade e pela competição. É a partir do confronto dos interesses entre os agentes que se estabelece a dinâmica econômica. É o empreendedor em suas especificidades e singularidades, motivado por seu espírito empresarial e concorrencial que justifica o equilíbrio das relações de mercado. Em perspectiva contrária, o equilíbrio de mercado pautado por regras e condições formais a partir do Estado apresenta, invariavelmente, a tendência de supressão da livre competição promovendo toda sorte de desequilíbrios e conflitos sociais e políticos.

Sob tais pressupostos, a escola de economia austro-americana e, sobretudo von Mises, promovem uma nova forma de pensar a relação entre empreendedorismo, inovação e informação na conformação de uma ordem social e econômica que transcende a compreensão tradicional da lógica de mercado pautada na produção de bens e serviços. A novidade desses pensadores na compreensão social e econômica reside na totalidade da ação humana. Ou dito de outra forma para esta escola de pensamento, a economia não se apresenta como um fim em si mesmo, como um absoluto, mas é resultante de uma ordem moral e social a partir da qual os indivíduos agem livre e espontaneamente na constituição da ordem econômica.

2.3 MISES E A CRÍTICA AO INTERVENCIONISMO

Von Mises está entre os pensadores liberais que mais criticaram qualquer forma de intervencionismo do Estado na dinâmica social e econômica. O radicalismo de seu posicionamento chega a afirmar que o coletivismo socialista é resultado dos excessos intervencionistas do Estado, que necessariamente conduzem as experiências políticas e sociais autoritárias e totalitárias. A radicalização deste posicionamento do pensador austríaco o impede de reconhecer que as experiências totalitárias fascistas e nazistas da primeira metade do século XX são o resultado das distorções das economias de mercado assentadas no old liberal, no velho liberalismo cujo fundamento residia na absolutidade da liberdade individual.

O velho liberalismo assentado na liberdade individual irrestrita produziu distorções econômicas e sociais que conduziram as sociedades europeias de fins do Século XIX e primeiras décadas do Século XX, a conflitos generalizados culminando nas experiências totalitárias. O referido autor também desconsidera o fato de que o socialismo é um subproduto das referidas distorções do velho liberalismo. Ou seja, o socialismo é uma reação à condição humana e social degradante a que foram lançados significativos contingentes humanos e sociais

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TÓPICO 2 | VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

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advindos da liberdade econômica irrestrita dos atores econômicos assentados na lógica da plena liberdade individual. Ao desconsiderar tais condições, von Mises não admite que a renovação do liberalismo na forma do neoliberalismo somente foi possível diante da exposição pública das contradições do próprio liberalismo.

Assim, para von Mises, a ingerência do Estado nas decisões dos indivíduos e, na dinâmica da economia tem tendência a destruição da economia de mercado e, por decorrência da prosperidade que indivíduos e sociedades podem alcançar. A ingerência do Estado promove um círculo vicioso na medida em que quanto mais intervém para supostamente corrigir perturbações, mais produz desequilíbrios, exigindo novas intervenções, culminando na perspectiva do autor no socialismo totalitário. Von Mises também identifica na disseminação da ideologia da democracia ilimitada baseada na soberania do povo e da justiça social uma das justificativas para o intervencionismo estatal na dinâmica social e econômica.

Sob tais pressupostos, evidencia-se para o autor que a ingerência e o intervencionismo estatal apresentam-se como entrave à economia de mercado. Contrapondo-se a esta lógica estatal intervencionista, von Mises afirma a soberania irrestrita do indivíduo consumidor sobre as escolhas dos produtores, o que significa que a esfera de ação do Estado deve restringir-se a assegurar condições de cooperação social necessárias ao exercício do empreendedorismo e da concorrência entre indivíduos e produtores e consumidores.

Nessa perspectiva, o que se apresenta como um absoluto da lógica de mercado é a democracia dos consumidores em posição diametralmente oposta ao intervencionismo estatal. A posição de von Mises que condena toda e qualquer forma de intervencionismo funda-se na disjunção de processos autogeradores em oposição. Ou seja, a ingerência estatal promove a dependência de indivíduos assistidos em suas demandas de sobrevivência e manutenção. A apatia social e econômica, advinda de tal condição, torna insustentável uma ordem econômica e social dinâmica e próspera. Noutra direção, a lógica de mercado assentada na concorrência e na competição dos indivíduos promove a criatividade, a inovação e o empreendedorismo.

Nessa lógica de raciocínio von Mises vai mais longe, afirmando que preocupações sociais e princípios éticos dela derivados, perturba o adequado funcionamento da democracia do consumidor, fundamento da dinâmica de mercado. Acusa também os intelectuais que majoritariamente desrespeitam e denigrem a democracia absoluta do consumidor como mote fundante da lógica de mercado. Tais posicionamentos encontram-se explicitamente anunciados na obra A ação humana: um tratado de economia, publicada no Brasil em 1995 pelo Instituto Liberal.

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

A economia não se interessa em saber se os lucros devem ser aprovados ou condenados do ponto de vista de uma pretensa lei natural ou de um pretenso código eterno e imutável de moralidade, a respeito do qual a intuição pessoal ou a revelação divina supostamente fornecem uma informação precisa. A economia simplesmente estabelece o fato de que os lucros e as perdas são fenômenos essenciais da economia de mercado. [...]. Os moralistas e os pregadores fazem críticas ao lucro que erram o alvo. Não é culpa dos empreendedores que os consumidores, o povo, o homem comum, preferiam o aperitivo à Bíblia e os romances policiais aos livros sérios nem que os governos prefiram os canhões à manteiga. O empreendedor não lucra mais vendendo coisas “ruins” em vez de coisas boas”. Seus lucros são tanto maiores quanto mais consegue proporcionar aos consumidores o que estes exigem mais intensamente (MISES, 2010, p. 358-360).

Sob todos estes pressupostos, ressalta-se, uma vez mais, a ênfase na condenação da intervenção estatal levada adiante por von Mises. O Estado parte do pressuposto de que tem ciência do que é bom e desejável para os indivíduos consumidores, desconsiderando que a economia de mercado se apresenta superior a qualquer forma de coletivismo e intervencionismo porque se apoia no indivíduo. Ou seja, o indivíduo é o único a decidir suas ações, sua finalidade, à medida que ele é o único detentor de conhecimento sobre o que é necessariamente bom para ele.

Na economia de mercado, o indivíduo é livre para agir nos limites que lhe são impostos pela propriedade privada e pelo mercado. Suas escolhas são inapeláveis. Seus concidadãos terão de levá-las em conta ao decidirem sobre suas próprias ações. A coordenação das ações autônomas de todos os indivíduos é realizada pelo funcionamento do mercado. A sociedade não diz a uma pessoa o que fazer e o que não fazer. Não há necessidade de tornar a cooperação obrigatória por meio de ordens ou proibições. A não cooperação se penaliza a si mesma. Ajustar-se às exigências do esforço produtivo da sociedade e procurar atingir os seus próprios objetivos pessoais não são coisas conflitantes. Consequentemente, não há necessidade de uma agência do governo para arbitrar conflitos que não existem. O sistema pode funcionar e cumprir o seu papel, sem a interferência de uma autoridade que emita ordens e proibições e que castigue quem não as acata. (MISES, 2010. p. 824).

Sob tais argumentos e perspectivas analíticas explicita-se em von Mises (2010) a exaltação do livre mercado e liberdade individual na dinâmica da economia capitalista. Na medida da liberdade de ação do agente econômico do indivíduo consumidor, regulam-se na justa medida, e de forma dinâmica, da produção, da oferta e da demanda e, por extensão, da lógica dos preços e do lucro. Esta dinâmica social e econômica imputa uma outra concepção de mercado diferente de Adam Smith e dos economistas neoclássicos.

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2.4 VON MISES E A CONCEPÇÃO DE MERCADO

Para von Mises e os pensadores austro-americanos o mercado assume papel central na constituição e manutenção do equilíbrio social e econômico. Porém, trata-se de compreender o que tais autores concebem como mercado. O mercado apresenta-se como um processo marcado pela subjetividade em que os indivíduos são estimulados a fazerem constantes descobertas e a constituírem constantes aprendizados que necessariamente modificam sua forma de agir, exigindo constantes ajustes nas relações que estabelecem entre si.

Nesta direção, na medida em que a dinâmica processual do mercado é instaurada passa a orientar o amplo espectro de ações que dispensa toda e qualquer forma de intervenção. Assim, o mercado apresenta-se como um processo autorregulado que faz uso de aspectos psicológicos, bem como de competências específicas dos indivíduos. Ou dito de outra forma, é um processo constante e criador, capaz de autorregulação a partir de sua própria dinâmica.

Sob tais pressupostos, o mercado é compreendido como um processo de formação, mas, sobretudo de autoformação do sujeito econômico. Um processo criador, criativo, educador e disciplinador de subjetividades, a partir do qual os indivíduos se constituem pelo aprendizado cotidiano de conduzir a própria vida em suas mais variadas instâncias.

Ao conceber o mercado como um movimento autoconstrutivo, von Mises expressa sua concepção antropológica a partir da qual concebe o homem como um ser ativo, um homo agens. Este homo agens é motivado por difusos anseios e aspirações de alcance de melhores condições de sobrevivência e de vida. Assim, para von Mises, o homem age a partir de uma racionalidade que o orienta a dispor de esforços, bem como a destinar recursos a objetivos que demonstrem significativa tendência de alcance de resultados que possam melhorar sua própria condição. Aqui é importante saber que von Mises não define o humano especificamente como um ser capaz de fazer cálculos sobre cada uma de suas ações com a intencionalidade deliberada de maximizar suas chances de êxito.

O homo agens de von Mises em sua condição humana está sempre propenso a empreender, a enfrentar desafios, a aprender, a fazer descobertas. Está constantemente vinculado à vontade de superar sua própria condição e, neste sentido, estabelece planos individuais de ação que lhe permitem constituir objetivos, avaliar e destinar recursos que tem à disposição, lançar em novas empresas com toda sua disposição e energia. O homo agens é, assim, um homem de empresa, que determina seus objetivos e trabalha para concretizá-los.

O mercado na concepção de von Mises é este ambiente de livre expressão da subjetividade, do autogoverno do sujeito. Ou dito de outro modo, é este ambiente povoado de subjetividades no exercício do livre curso de suas vontades e aspirações demonstra que o ser humano tem plenas condições de conduzir seus destinos e é em função do mercado que se constitui o processo de formação pautado na criatividade, no empreendedorismo. Assim, o indivíduo é instado a governar a si mesmo no mercado.

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Nesta concepção de mercado von Mises expressa uma variável significativa de concepção de economia que transcende a mera maximização dos lucros a partir da divisão do trabalho produtivo, bem como a partir das trocas comerciais. Economia, para von Mises, é, sobretudo, uma questão de capacidade de escolhas dos indivíduos no âmbito de mercado. A capacidade de fazer escolhas é exigente, dinâmica, criativa e lança constantemente o ser humano diante da indeterminação de suas escolhas e, é este o elemento humano fundamental da economia. Assim, a economia é uma teoria da escolha primeiramente dos consumidores, que agem como ativos soberanos em busca do melhor negócio, do melhor produto, das melhores condições para o alcance dos fins propostos em seu prévio planejamento.

2.5 MERCADO, CONHECIMENTO E A MASSIFICAÇÃO DO EMPREENDEDOR

Para von Mises economia de mercado pressupõe primazia absoluta do interesse do indivíduo que age sob as prerrogativas inalienáveis da democracia do consumidor. Não há motivos suficientemente justificáveis para a ação que não estejam amparados nos princípios acima mencionados. A economia de mercado está assentada na máxima da plena realização da liberdade individual. Sua efetivação se constitui na livre escolha, nas decisões tomadas pelos indivíduos a partir das informações de que dispõem cada indivíduo.

Nesta direção, constata-se que a questão do conhecimento assume centralidade na concepção de mercado de von Mises. O pensador austríaco constata que os indivíduos estão inseridos em sociedades modernas que, ao fazerem uma divisão social e científica do saber, promovem sua dispersão tornando o domínio do conhecimento nas mais variadas esferas da ação humana, tarefa complexa e, de certa forma, irrealizável pelos indivíduos. Portanto, trata-se de valorizar certo tipo de conhecimento que encontre utilização prática no âmbito da lógica de mercado. Ou seja, trata-se de valorizar os conhecimentos que os indivíduos podem utilizar de forma proveitosa no contexto de liberdade de competição, de concorrência.

A plena participação no mercado pressupõe a constituição de conhecimentos individuais e particulares que permitem a constante adaptação às mudanças permanentes, que circunscrevem a dinâmica do mercado. Estes conhecimentos em suas singularidades e especificidades possuem mais eficácia na visão de von Mises, do que dados estatísticos e análises de tendências cientificamente elaboradas. Novamente aqui von Mises rejeita qualquer forma de ingerência, ou de controle na dinâmica de mercado, sobretudo a partir da vontade do Estado em determinar cientificamente ações planificadas, sejam de ordem liberal social, ou socialista. Trata-se outrossim, de democratizar ao máximo a comunicação, o acesso à informação aos indivíduos permitindo a constituição de cenários cognitivos fundamentais para orientar sua ação.

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Assim, von Mises apresenta mais uma de suas teses fundamentais sobre a economia de mercado, caracterizando-a como uma economia advinda da difusão do acesso à informação, o que lhe permite dispensar novamente todo e qualquer controle centralizado. Ou seja, apenas as motivações individuais impulsionam os indivíduos a fazerem o que devem fazer, utilizando os conhecimentos que alcançaram a partir dos quais colocam em marcha suas ações.

Esta tese de von Mises tem implicâncias políticas, sociais e pedagógicas, pois pressupõem que a cultura da criatividade, do empreendedorismo e da livre concorrência da empresa, pode ser constitutiva de uma proposta educacional comprometida com a demonstração das vantagens da liberdade de ação e de mercado sobre outras formas de organização econômica. Trata-se, sobretudo, para o pensador austríaco, de agir no sentido de universalizar o modo de subjetivação de mercado, calcado na capacidade empreendedora e empresarial presente em potência em cada indivíduo. Ou seja, de difundir o pressuposto de que existe em cada sujeito a capacidade de se tornar empreendedor nos diversos aspectos de sua vida, ou em fundo último de se constituir em empreendedor de sua vida.

3 O ECONOMISTA AUSTRÍACO FREDERICK AUGUST VON HAYEK

FIGURA 9 – FOTO DE HAYEK

FONTE: <https://miro.medium.com/max/580/1*H6BZH9aX1VPqt_eYSwH5IA.jpeg>. Acesso em: 14 nov. 2019.

Economista britânico de origem austríaca, Friedrich August von Hayek nasceu em Viena, em 8 de maio de 1899, e faleceu em Freiburg, Alemanha, em 23 de março de 1992. Tornou-se, em vida, o mais conhecido defensor do liberalismo econômico, sobretudo pelas críticas proferidas ao socialismo e ao Welfare State keynesiano. É ganhador do Prêmio Nobel de economia de 1974, que compartilhou com o economista de origem sueca, Gunnar Myrdal.

Após a Primeira Guerra Mundial, depois de ter servido seu país de origem, matriculou-se em Economia na Universidade de Viena, onde também estudou Psicologia e Direito. Ao concluir seu doutorado em Economia Política, Hayek

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tornou-se funcionário do governo austríaco e ali conheceu o grande expoente da Escola austríaca de Economia, o Professor Ludwig von Mises. Este economista era igualmente crítico ao socialismo totalitário e, como Hayek e outros economistas da mencionada escola, apontava as falhas das economias planificadas e do intervencionismo estatal.

Welfare State Keynesiano é uma expressão que se refere ao Estado de bem-estar social. É keynesiano porque as políticas econômicas deste modelo de governo são orientadas pelo pressuposto geral do economista inglês John Maynard Keynes. A principal característica do pensamento keynesiano é a intervenção estatal na economia, a fim de corrigir os desequilíbrios naturais do sistema econômico de livre mercado.

NOTA

Mais velho que Hayek, Von Mises logo se tornou seu mentor e, em pouco tempo, o indicou como diretor do Instituto Austríaco de Pesquisa do Ciclo de Negócios. Tornou-se professor universitário e, em 1929, lançou Monetary theory and the trade cycle, seu primeiro livro. A aceitação desse livro o levou à Inglaterra, a convite da London School of Economics and Political Science, onde lecionou até a década de 50, tendo se naturalizado cidadão britânico. Na Inglaterra, conheceu o economista da Universidade de Cambridge, John Maynard Keynes, com quem travou riquíssimo debate sobre mais ou menos intervenção estatal na economia. Em 1944, ano em que foi eleito membro da Academia Britânica, publicou seu mais conhecido livro, intitulado O caminho da servidão, numa crítica rigorosa ao intervencionismo estatal e, mais diretamente, ao socialismo.

Economia planejada ou centralizada é aquela em que as principais questões da economia sobre o que, como e para quem produzir são resolvidas diretamente pelo Estado. Tem como objetivo principal a distribuição igual de renda. Para isso, o Estado deve intervir na economia e se encarregar das tarefas de distribuição de recursos. Eles exigem a substituição da propriedade privada pelo coletivo nos meios de produção, troca e distribuição. É um tipo de sistema econômico contrário ao capitalismo ou economia de mercado.

FONTE: <https://economipedia.com/definiciones/economia-planificada.html>. Acesso em: 14 nov. 2019

NOTA

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Hayek deixou a LSE em 1950 e se transferiu para a afamada Universidade de Chicago, onde passou a ocupar uma cadeira no recém-formado Comitê de Pensamento Social. Em 1952, seu livro sobre psicologia, The sensory order, foi publicado paralelamente a uma coleção de seus ensaios do projeto Abuse of reason, com o título de The counter-revolution of science: studies on abuse of reason. Hayek passou mais 12 anos na Universidade de Chicago, onde produziu inúmeros artigos sobre filosofia política, metodologia das ciências sociais e sobre história das ideias. Muitos desses artigos foram reunidos em A Constituição da Liberdade, de 1960.

Em 1962, Hayek transfere-se de Chicago para a Universidade de Freiburg, onde se aposentou no final da década, aceitando um convite posterior para ser professor honorário na Universidade de Salzburg, em seu país de origem. Mas retornou à Freiburg em 1977, onde trabalhou até o ano de sua morte. Seu último livro, intitulado The fatal conceit: the error of socialism, foi publicado em 1988 e contou com a ajuda do filósofo inglês William W. Bartley III. Hayek faleceu quatro anos depois, porém feliz ao ter presenciado a reunificação da Alemanha.

A reunificação da Alemanha, aconteceu em 3 de outubro de 1990 quando o território da antiga República Democrática da Alemanha (RDA ou Alemanha Oriental) foi incorporado à República Federal da Alemanha (RFA ou Alemanha Ocidental).

A Alemanha foi dividida entre os principais vencedores da Segunda Guerra. Posteriormente, as duas “Alemanhas” conseguiram recuperar-se das enormes perdas materiais que haviam sofrido durante o conflito.

Porém, nos anos 70, já se podia notar uma diferença importante entre elas: enquanto a Alemanha Oriental (comunista) era apenas mais um país desenvolvido, a Alemanha Ocidental (capitalista) tinha se tornado um dos países mais ricos do mundo, com uma indústria avançada e uma moeda forte. Na década seguinte, essa diferença acentuou-se, gerando enorme descontentamento entre os alemães orientais. Em 1989, eclodiu em Berlim Oriental uma série de manifestações populares exigindo melhoria da qualidade de vida e, sobretudo, a democratização do regime.

Algum tempo depois, começaram as negociações entre os governos das duas “Alemanhas” visando a reunificação do país. Em 3 de outubro de 1990, entrou em vigor o acordo que oficializava a unificação política da Alemanha.

FONTE: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/reunicacao-alemanha.htm>. Acesso em: 14 nov. 2019.

Acrescenta-se que a divisão durou 28 anos e a queda do muro de Berlim aconteceu em 9 de novembro de 1989, numa manifestação histórica e espontânea dos alemães dos dois lados do muro pela reunificação. O fato também marcou o início do fim do socialismo soviético.

INTERESSANTE

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3.1 A NOTABILIDADE DO PENSAMENTO DE HAYEK

Frederick Hayek tem contribuições para além do campo da economia. Se, como nos casos de Von Mises e Friedman, tratamos de apresentar as contribuições de um economista à teoria política, é porque isso é realmente necessário. Hayek incrementou o pensamento político ocidental através da filosofia política, da história das ideias e da psicologia, além da metodologia das ciências sociais. Membro da escola austríaca de economia, integrou a tradição marginalizada do pensamento político e econômico. Assim como Von Mises e Friedman, ele foi um liberal no sentido radical, num contexto histórico em que prevaleceram as teses intervencionistas na economia e na política. Após a crise econômica de 1929, cresceu progressivamente a tese keynesiana da intervenção no mercado. Não por acaso, Keynes é o maior economista do Século XX, inclusive por ter vencido o debate sobre Hayek.

Crise de 1929

Me. Cláudio Fernandes

Quando se estuda o período intermediário entre as duas guerras mundiais, isto é: de 1919 a 1939, um dos temas mais importantes é o da Grande Depressão Americana, cujo símbolo máximo é a Quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929. Esse tema é conhecido, geralmente, como “Crise de 1929”. Crise essa de ordem financeira que afetou todo o mundo, levando milhões de pessoas ao desemprego e ao desespero.

O principal fator que contribuiu para a Crise de 1929 foi a expansão de crédito, emitido pelo Federal Reserve System — Sistema de Reserva Federal — (uma espécie de Banco Central Americano) desde 1924, ainda sob o governo do presidente Calvin Coolidge. Para se entender o porquê de a expansão de crédito ter gerado a crise, é necessário compreender um pouco do contexto econômico da década de 1920.

Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a economia dos Estados Unidos se tornou a mais importante do mundo. Haja vista que, com a destruição que a guerra provocou na Europa, a produção econômica de grandes potências, como a Inglaterra e a Alemanha, não mais se sobrepunha aos outros países, pois estava em processo de recuperação. Sendo assim, os EUA, ao tempo que conseguiam uma produção econômica muito grande, pois tinham compradores dentro e fora do país, também estimulavam a oferta de crédito para estes compradores, bem como a política de aumento salarial para empregados. Entretanto, sempre quando havia um período de pequena recessão, isto é: decréscimo na produção econômica, o governo intervinha no mercado aplicando mais crédito (dinheiro e títulos da Bolsa de Valores) para reparar os danos.

A medida de expansão de crédito tornava as taxas de juros artificiais, sem lastro com as reservas de crédito reais, que eram ancoradas na poupança. Os investidores que tinham ações na Bolsa de Valores de Nova Iorque recebiam um sinal falso da expansão de crédito e, consequentemente, acabavam por ampliar os seus negócios, aumentar salários, e

IMPORTANTE

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investir ainda mais. Este processo gerou uma “bolha inflacionária”, pois, em 1929, chegou um momento em que não se podia mais esconder o caráter artificial da expansão econômica: havia muito dinheiro emitido circulando, mas sem valor real com a produção. Já sob o governo Hoover, a Bolsa de Valores de Nova Iorque, responsável pela administração dos investimentos aplicados e do crédito emitido, entrou em colapso.

As principais consequências da Crise de 1929 foram o desemprego em massa, a falência de várias empresas, tanto do setor industrial quanto do setor agrícola, e a pobreza, que assolou grande parte da população americana. Muitos países que estavam atrelados ao sistema de crédito americano também sofreram uma grande recessão em suas economias. O Brasil, por exemplo, teve que queimar café, principal produto da época, para poder valorizar o seu preço. [...]

FONTE: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/crisede29.htm>. Acesso em: 14 nov. 2019.

Na década de cinquenta do pós-guerra, Hayek defendia radicalmente as teses do livre mercado e as doutrinas políticas liberais clássicas, na contramão das políticas socialistas e das teses do bem-estar social. Estas eram anunciadas como a terceira via entre os totalitarismos fascistas e comunistas e a ausência de intervencionismo, simbolizada na expressão do Estado mínimo. No tempo de Hayek, como já dissemos, as teses keynesianas prevaleceram. A solução para as crises do capitalismo, cujo principal efeito é o desemprego, era a intervenção governamental e elas, em geral, têm prevalecido até hoje. Mas não reinam absolutas.

Somente a partir do colapso da ex-União Soviética, é que as teses de Hayek começam a reaparecer no cenário teórico e governamental da economia e da política. Essa reavaliação de suas teses, como da importância de Von Mises e Friedman, começa a aparecer no fim da década de 1970, com a ascensão de Margareth Tatcher e Ronald Reagan, respectivamente, primeira ministra da Inglaterra e presidente dos EUA. Foi a partir da crise do Estado de bem-estar social que as ideias econômicas liberais reascenderam, encampadas por esses dois governos.

Com todas as letras, o modelo do Estado de bem-estar social é comprometido em combater as desigualdades e melhorar as condições de vida dos mais necessitados. A rigor, todos os governos têm essa preocupação, mas o Welfare State está empenhado em agir diretamente na forma da assistência social. Para tanto, a orientação geral é keynesiana, isto é: governos precisam intervir na economia afim de diminuir os desequilíbrios provocados. E, em situações de crise, devem endividar-se. Em outras palavras, devem aumentar o gasto público, promovendo obras e políticas sociais compensatórias que ajudem os mais necessitados e façam a roda da economia girar.

Resumidamente, os keynesianos não acreditam nas teses do livre mercado, defendidas por Hayek. Sua leitura da economia capitalista é que o sistema de livre mercado é estruturalmente (essencialmente) imperfeito, instável e promovedor de desigualdades sociais. A solução definitiva seria, portanto,

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a intervenção governamental definitiva, permanente sobre o andamento da economia. Nesse sentido, nada de acreditar na “mão invisível” a harmonizar os interesses. O equilíbrio seria uma quimera e a única maneira de tolerar a economia de mercado seria através do controle governamental. E o melhor produto dessa ideia política é o Welfare State.

FIGURA 10 – ADAM SMITH E A TEORIA DA MÃO INVISÍVEL

FONTE: <http://economistay.blogspot.com/2014/10/teoria-da-mao-invisivel.html>. Acesso em: 14 nov. 2019.

"Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse egoísta, é levado por uma mão invisível a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade."

Adam Smith

Por sua vez, o Estado de bem-estar requer estruturas governamentais significativas, fazendo crescer o tamanho dos governos, da estrutura estatal. Aumenta o número de leis e regras e, sobretudo, de funcionários públicos. Em outras palavras, aumenta a burocracia e, por fim, torna os governos muito caros. E os recursos para a manutenção dessas estruturas de assistência são extraídos da Sociedade trabalhadora e empreendedora. A tendência da estrutura governamental é não parar de crescer, porque aumenta o poder do corpo de funcionários públicos e, com o tempo, desvia-se o propósito público em função dos interesses corporativos.

Além disso, as tentativas de intervir, em nome do equilíbrio, teriam efeito inverso, causando mais estragos do que os desejados acertos. Autores como Von Mises e Hayek foram enfáticos em advertir que os erros governamentais causariam muito mais prejuízos do que boas ações, ainda que movidos por boas intenções. A história política e econômica tem demonstrado isso. Muito embora seja necessário reconhecer que o Estado de bem-estar social é possivelmente a maior conquista das democracias ocidentais, esse modelo tem uma irresistível tendência ao aumento do gasto público e aos erros intervencionistas.

Com frequência, esse processo acarreta essencialmente o mesmo problema que os keynesianos defensores da intervenção estatal, denunciam na economia de mercado: instabilidade e crise. A irresistível tendência de aumento do gasto público faz com que o Estado se endivide, gastando mais do que arrecada. Por consequência, retira mais recursos da sociedade, os quais poderiam ser investidos na produção e geração de emprego e renda. No fim, a finalidade do Estado se inverte: governos que deveriam servir à sociedade, são servidos pela sociedade. Para tapar os buracos de seus erros e sustentar a estrutura criada, os governos se endividam. E não é preciso perguntar quem paga a conta.

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Teoria do ciclo do comércio — essa é a síntese da crítica de Hayek, como também de Von Mises e Friedman. De toda maneira, a riqueza analítica contida no esforço intelectual do autor nos obriga a algum complemento. Uma averiguação sobre a importância do trabalho de Hayek requer a lembrança a sua teoria do ciclo do comércio. Por meio dela, Hayek contrapôs-se aos keynesianos. Insistiu na tese de que qualquer tentativa governamental de impedir uma recessão econômica e combater o desemprego, seria malsucedida.

Quando governos enfrentam pequenas recessões econômicas, têm a mania de emitir papéis monetários, o que pode acontecer na forma de simplesmente imprimir dinheiro ou oferecer títulos governamentais a juros atrativos. Para o autor, aumentar a oferta de moeda através da emissão de papéis monetários só distorcia ainda mais as coisas. Considerando a lei da oferta e procura, mais moeda só geraria o encarecimento dos produtos e inflação consequente. A solução era deixar que a recessão acontecesse e que, com o tempo, as coisas voltariam ao normal.

Não é fácil entender a economia. Sua compreensão dá-se aos poucos. Como não estamos estudando exatamente economia, e sim o impacto das ideias de economistas na política, vamos nos concentrar exatamente nisso. Aliás, essa é, exatamente a contribuição da economia política nas Ciências Sociais: mostrar como as ideias econômicas orientam decisões políticas. Nessa perspectiva, cabe compreender o geral, qual seja o embate entre o liberalismo e a socialdemocracia. Em outras palavras, é o confronto entre o Estado mínimo e o Estado interventor, entre “a mão invisível” do mercado e a “mão poderosa” do Estado.

Nesse debate, Hayek posicionou-se claramente a favor das liberdades individuais, da autonomia das comunidades e suas associações civis, contra a ideia do Estado gerenciador, planejando a vida da Sociedade, se imiscuindo nas relações e interesses dos indivíduos. Como autêntico liberal clássico que foi, Hayek afirmava que o planejamento e a intervenção estatais enfraqueciam a sociedade civil. Não apenas pressionam o aumento da estrutura estatal, mas sobrepõe suas funções no lugar da sociedade.

Assim, cada vez que o Estado toma a si a tarefa de cuidar das vidas dos indivíduos, estaria amortecendo o zoon politikon. Por meio do Estado de bem-estar, estaria desestimulando o ser republicano que os indivíduos devem desenvolver em comunidade. Na sua relação com os outros e através do respeito às tradições, aos costumes e à moral comunitária, os indivíduos precisariam desenvolver e preservar o hábito da livre associação e do livre comércio. Em suma, o pensamento e o engajamento políticos de Friederich Von Hayek foi um libelo do liberalismo clássico, mas também de um conservadorismo liberal, contra a sanha dos defensores do Estado forte.

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4 MILTON FRIEDMAN E A CONTINUAÇÃO DO CONSERVADORISMO LIBERAL

FIGURA 11 – MILTON FRIEDMAN: ÍCONE DO NEOLIBERALISMO ECONÔMICO

FONTE: <https://www.gazetadopovo.com.br/instituto-politeia/profecia-milton-friedman-brasil>. Acesso: em 14 nov. 2019.

Filho de imigrantes húngaros, o economista estadunidense Milton Friedman nasceu no Brooklyn, Nova York, em 31 de julho de 1912, tendo falecido em 2006 em São Francisco. É graduado em Economia na Rutgers University, Nova Jersey, fez o mestrado na Chigaco University e o doutorado na Columbia University. Entre 1935 e 1946, trabalhou como estatístico e economista em Washington e Nova York. Neste último ano, ingressou na Universidade de Chicago para lecionar Economia. Foi nome destacado na chamada “Escola de Chicago”, a mais notável academia da teoria econômica dos Estados Unidos. Também foi protagonista de uma série na TV americana, intitulada Free to choose. Sua dedicação profissional e perspicácia analítica o levou a assessorar os ex-presidentes Richard Nixon e Ronald Reagan. Suas principais obras são A theory of the consumption function (1957), A monetary history of the United States (1963) (com Ana Schwartz), The role of monetary policy (1967), além de seu livro mais político, intitulado Capitalismo e liberdade de 1962.

Friedman é um continuador da teoria liberal dos austríacos Von Mises e Hayek. Seu esforço intelectual em demonstrar os benefícios da liberdade econômica é correspondente a sua crítica ao intervencionismo estatal do socialismo e dos governos socialdemocratas. O conservadorismo norte-americano encontrou em Milton Friedman importantes argumentos, não somente na defesa do livre mercado, mas também na confluência entre esse liberalismo econômico e defesa de valores conservadores. Ainda que preocupado com a economia, A abrangência sociológica e filosófica de Friedman o tornou um representante dessa corrente de ideias.

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Em meados da década de 1970, houve a emergência de uma assim denominada “nova direita”, tanto na Inglaterra, quanto nos Estados Unidos. Foi uma confrontação teórica e discursiva à chamada “nova esquerda”, na década de sessenta, e inspirou a reação de governos “neoliberais” em resposta ao esgotamento dos governos socialdemocratas. Se no plano econômico se tratava de tornar a economia mais competitiva, no plano moral era uma tentativa de resgatar valores cívicos do Ocidente contra o socialismo. Além disso, estava em jogo uma disputa pela hegemonia discursiva nas universidades. E, diga-se, continua estando. De um lado, o marxismo e o neomarxismo e, de outro o liberalismo clássico e o conservadorismo (SCRUTON, 2019, p. 127).

A intensa vida intelectual de Friedman precisa ser compreendida no contexto da Guerra Fria. Ali se compreende a força do seu pensamento. De um lado, estava o socialismo da então URSS e do outro o capitalismo do Ocidente. No primeiro caso: o Estado interventor e seus operadores, orientados pelo planejamento centralizado e a premissa de que o Estado forte é a mão poderosa a harmonizar os interesses dos indivíduos. No segundo caso: o livre mercado e a crença de que a “mão invisível” harmoniza os interesses gerais. E, sem rodeios: do ponto de vista político era uma disputa entre o Estado autoritário e o Estado liberal-democrático.

A Guerra Fria representou a rivalidade restrita entre os EUA e a URSS, após a Segunda Guerra Mundial. Tratou-se de uma guerra de nervos que se travava nos planos, ideológico, cultural, político e econômico. A denominação foi originalmente dada pelo escritor inglês, George Orwell, em artigo publicado em 1945. Quando se referiu à ameaça do impasse nuclear entre potências que poderiam destruir o planeta em segundos, em função da potência de seus arsenais nucleares. A queda do muro de Berlim representou o fim dessa tensão.

ATENCAO

Essa disputa, é preciso lembrar, foi a mais importante contenda internacional da história do Século XX. Fez permanecer em tensão constante, todo o planeta. E essa guerra de nervos se encerrou simbolicamente com a queda do muro de Berlim, em 1989, e a vitória do mercado e da democracia liberal. Desde que o sistema socialista ruiu, estabeleceu-se um importante consenso, segundo o qual, o capitalismo liberal-democrático seria a única via a ser seguida e, como proferiu Margaret Thatcher: Não há mais alternativa.

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FIGURA 12 – MARGARETH TATCHER, EX-PREMIER BRITÂNICA, LEVOU AO CABO AS IDEIAS NEOLIBERAIS

FONTE: <https://www.globalresearch.ca/wp-content/uploads/2013/04/thatcherTINA1.jpg>. Acesso em: 14 nov. 2019.

Todavia, encerrado o campeonato, outro começa. A história parece dar razão aos dialéticos, já que esse importante consenso tem sido crescentemente desafiado. A ideia da intervenção estatal na economia, em defesa dos interesses “da maioria”, nunca morre. Não se trata de um movimento reacionário de volta ao socialismo, mas que se entenda: o sistema capitalista gera crises e o colapso financeiro internacional de 2008 representou a última delas. Nos EUA, a cada eleição evidencia-se o confronto entre Estado. O Partido Democrata é o defensor do bem-estar social e terá de aquecer esse confronto interminável, denunciando mais uma vez as insuficiências do Estado mínimo.

Nesse cenário, as ideias liberal-conservadoras de Milton Friedman estão sempre em evidência, sugerindo que a liberdade econômica é a única garantia da liberdade política. O eminente economista da escola de Chicago dizia, com frequência, que “o caminho para o inferno é sempre pavimentado com boas intenções”. O que começa como uma promessa de corrigir os desequilíbrios do mercado acaba ajudando os monopólios, minando os padrões de vida e, paradoxalmente, aumentando a desigualdade. E é nessa perspectiva que o autor constrói seu pensamento, o qual apresentamos na sequência.

As ideias e Milton Friedman deverão permanecer sempre atuais, tanto quanto as de Von Mises e Hayek. Afinal, sua evidência reaparece a cada debate-embate entre o liberalismo e a socialdemocracia, entre o Estado mínimo e o Estado interventor, descentralização e centralização etc. Um exemplo da atualidade se verifica nos esforços do ministro Paulo Guedes, da Economia do Brasil (2019). Ex-aluno da escola de Chicago, tenta tornar a economia brasileira mais liberal, através de propostas de desencargos tributários, diminuição do gasto público e descentralização federativa).

IMPORTANTE

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TÓPICO 2 | VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

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4.1 LIBERDADE DEPENDE DE UM GOVERNO PEQUENO E DESCENTRALIZADO

Com bastante frequência, as disciplinas de Economia e relacionadas à Política são oferecidas separadamente. A exceção é a disciplina de Economia Política. Normalmente se ensina que a economia está relacionada ao bem-estar material e que isso produz bem-estar espiritual. A sua vez, a política está ligada às possibilidades de promoção da liberdade individual. A princípio, Friedman concorda que estas sentenças se equivalem e deveriam ser seguidas, por uma questão de lógica.

O resultado óbvio dessa decisão deveria ser o de que qualquer sistema

político pode ser combinado com qualquer sistema econômico. Segundo Friedman isso constitui um engano demonstrado pela realidade. A razão é tópica, tratando-se de considerar que não se poderia confluir a economia do sistema socialista da União Soviética com as liberdades políticas individuais dos EUA. Nesse caso, portanto, abre-se a exceção à regra lógica. A considerar o socialismo soviético, não seria possível criar uma sociedade socialista democrática. Por que não? As liberdades econômicas e políticas são realmente interdependentes e, ao restringir a primeira, também se limitará a segunda.

Recorramos a dois exemplos hipotéticos: 1) imagine um turista inglês querendo passar suas férias nos EUA. Ao reservar as passagens aéreas, ele percebe que não pode pagar a viagem, porque o governo de seu país, que controla o câmbio, decide subvalorizar a moeda inglesa (a libra), em relação ao dólar. Agora: 2) compare isso com o caso de uma cidadã americana que não tem permissão para visitar a União Soviética, porque ela tem opiniões pró-capitalistas. Nos dois casos, as restrições às liberdades econômica e política terão igual resultado: impedem os indivíduos de perseguir seus próprios sonhos.

O ponto mais importante no pensamento de Friedman é que o papel dos governos seja restringido ao máximo possível, sendo essa a premissa do Estado mínimo. Seu objetivo é garantir a lei e a ordem básicas, em vez de interferir em nossas liberdades de escolha. Essa é, e deve ser, a regra geral. Comprar e vender é uma liberdade econômica básica e devemos ter o direito irrestrito de agir assim sempre que quisermos. O governo, por outro lado, tem apenas um trabalho, qual seja o de fazer valer os direitos de propriedade dos indivíduos e protegê-los contra o roubo e a extorsão.

O significado dessa situação de tipo ideal é que, se queremos prosperar, precisamos garantir a existência de um sistema de liberdades econômicas e políticas e esse sistema é o da democracia liberal conjugado com o capitalismo de livre mercado. Quando os governos se restringem a esse papel, o livre mercado pode cuidar do resto, como as pessoas querem viver suas vidas, o que querem comprar e vender e, finalmente, quem querem ser.

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

4.2 AUMENTAR OS GASTOS GOVERNAMENTAIS NÃO GERA CRESCIMENTO

O argumento de que governos devem intervir na economia para garantir que ela se equilibre e evite crises é duramente contestada por Milton Friedman. Da mesma maneira, o economista da escola de Chicago se confronta com a máxima de que a economia de livre mercado é invariavelmente instável e causa crises financeiras se for deixada ao laissez fair e da “mão invisível”. Ambas as ideias são bastante populares entre os defensores do Estado forte e interventor, a exemplo de qualquer governo socialista e dos governos socialdemocratas. Para Friedman, isso não passa de mito e seria a causa dos grandes problemas da economia.

Para entender o porquê disso, é necessário ir à origem desses pressupostos. Após a Grande Depressão de 1929, surgiu um novo consenso. Os economistas começaram a argumentar que aumentar os gastos do governo com o objetivo de corrigir as contrações do mercado seria a melhor maneira de promover a estabilidade econômica e, por consequência, social e política. Na sua forma mais básica, como já vimos, essa ideia foi amplamente defendida pelo economista britânico John Maynard Keynes de que todo dólar de gastos do governo cria outro dólar de riqueza aumentada para indivíduos particulares. Sem dúvida, uma máxima muito sedutora.

Essa ideia é conhecida como a roda de equilíbrio keynesiana dos gastos do governo. Só tem um problema, isso não funciona da maneira como deveria. Quando os gastos privados diminuem, afirmam os seguidores de Keynes, o governo precisa intervir e fazer seus próprios gastos para manter o equilíbrio econômico. No mundo real, todavia, as políticas de gastos dos governos levam inevitavelmente muito tempo para serem lançadas e funcionam muito mais tempo do que o necessário. Isso conduz a desequilíbrios indesejados, isto é, endividamento governamental excessivo, taxação excessiva à produção, inflação e, na frente, uma recessão pior do que a anterior.

Segundo Friedman, por exemplo, reduzir esses programas governamentais de fomento à economia, geralmente leva o mesmo tempo necessário para colocá-los em funcionamento. Na prática, isso significa que eles ainda estão em vigor mesmo depois que a economia se recuperou. Nessa situação, os indivíduos estão sendo tributados desnecessariamente para cobrir uma política inútil, o que extrai recursos preciosos da sociedade, que deveriam ser investidos na produção. No final das contas, deixa-se os indivíduos produtivos com menos dinheiro no bolso para investir e consumir, transferindo grande parte disso aos governos improdutivos.

Segundo Friedman, é um exemplo típico da capacidade da economia keynesiana de resolver problemas na teoria, mas que não tem a devida correspondência na realidade. A teoria simplesmente não é capaz de criar as condições para seu próprio sucesso. Na lógica de Friedman, governos usam mau

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TÓPICO 2 | VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

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o dinheiro extraído da sociedade, pelos motivos de sempre: não tem vivência real do que acontece no mercado; esbanjam no gasto, porque o dinheiro não sai do suor do próprio trabalho; transferem grande parte do dinheiro gasto para fins escusos, desviantes da finalidade pública; e, novamente, cada centavo retirado da produção e do consumo afeta negativamente esses dois segmentos. Incentiva a economia no curto prazo e a desestimula nos médios e longo prazos.

4.3 DESIGUALDADE DE RENDA É NECESSÁRIA

Nas sociedades do passado, as pessoas nasceram em uma classe ou casta que determinava que tipo de trabalho eles poderiam fazer. Isso significava que era praticamente impossível ganhar grandes quantias de dinheiro. A sociedade capitalista é diferente. Qualquer um pode fazer o trabalho que quiser. Como resultado, as pessoas têm acesso a rendas muito mais altas. Isso cria as condições para a mobilidade social e uma riqueza de oportunidades, características exclusivas das sociedades capitalistas.

Mas, para que as pessoas sejam verdadeiramente livres quando se trata de escolher suas ocupações e destinos, o governo precisa parar de policiar e redistribuir a renda. Afinal, há uma boa razão pela qual alguns empregos são mais generosamente recompensados do que outros. Pessoas que trabalham em empregos difíceis ou desagradáveis merecem receber mais do que aqueles em posições mais confortáveis. Quando o governo regula a renda, menos pessoas desejam realizar esses trabalhos difíceis, causando escassez de mão de obra em vários setores econômicos.

Então, qual é a alternativa para essa intervenção? Um bom começo seria abolir a tributação progressiva da renda e substituí-la por um sistema de taxa fixa. A redistribuição da riqueza através de impostos progressivos é projetada para reduzir a desigualdade de renda e os padrões de vida desiguais. Mas aqui está o problema: é baseado em um mal-entendido de igualdade.

A redistribuição de renda afeta apenas a igualdade de resultados, ou seja, o tamanho do seu salário. Uma sociedade genuinamente livre, por outro lado, enfatiza a igualdade de oportunidades, ou nossa capacidade igual de criar algo de nós mesmos através do trabalho duro. A redistribuição privilegia um grupo social, nesse caso, os menos favorecidos, sobre outros, e leva à desigualdade de oportunidades. O segundo resultado dessa política é que ela desincentiva as pessoas que trabalham em empregos difíceis e bem remunerados, prejudicando a inovação.

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

4.4 PROGRAMAS DE SERVIÇO SOCIAL INEFICIENTES DEVEM SER SUBSTITUÍDOS POR TRANSFERÊNCIAS DIRETAS AOS MAIS POBRES

Os governos de orientação socialista ou socialdemocrata em geral afirmam que os programas de assistência social invariavelmente reduzem a desigualdade e combatem injustiças. Segundo Friedman (1982), repetidas vezes, porém, eles fracassam em seus objetivos declarados e acabam tornando a sociedade menos igualitária. Toma-se o exemplo de programas governamentais de habitação. Dirigidos por uma burocracia ineficiente, em vez de maximizar a eficiência das forças do mercado, as políticas de moradias não apenas reduzem a oferta geral, mas confinam os pobres a viverem em bairros perigosos.

Pior do que isso seria o fato de que as políticas de segurança social que obrigam as pessoas a pagarem pelo seguro de velhice ao longo da vida são ainda mais prejudiciais. Dois aspectos demonstrariam isso, segundo Friedman (1982). Primeiro, por ser essencialmente um imposto redistributivo, pois as pessoas ricas contribuirão mais em termos absolutos ao longo de suas vidas. Em segundo lugar, seria extremamente paternalista assumir que não se pode confiar nas pessoas, contando que elas próprias pudessem economizar dinheiro suficiente para a aposentadoria por conta própria.

Esses dois fatores tornariam essas políticas inaceitáveis para os capitalistas amantes da liberdade. Como um liberal radical, Friedman exclama que os adultos racionais não deveriam ser tratados como crianças que não podem cuidar de seus próprios interesses. Isso significa que passou da hora de os governos descartarem esses programas de assistência social ineficientes e financiados pelos contribuintes. Eles deveriam ser substituídos por um imposto de renda negativo para ajudar a reduzir o ônus para os membros mais pobres da sociedade.

Friedman (1982) explica como isso deveria ser. Para o economista de Chicago, todos os esquemas de bem-estar do governo seriam abolidos. Qualquer pessoa que não obtivesse um nível mínimo de renda receberia um pagamento direto em dinheiro do governo. Isso aliviaria a pobreza da maneira mais eficiente possível, pois agilizaria o governo e acabaria com a necessidade de departamentos burocráticos caros para supervisionar os programas de assistência social. Enquanto isso, os contribuintes não precisariam pagar tantos impostos que corroem suas rendas, aumentando assim a circulação produtiva de dinheiro na economia.

Além disso, as estruturas governamentais dos programas de assistência social são caras, ineficientes, burocráticas demais e com frequência abrem brechas para a corrupção, além de gerarem os famosos “cabides de emprego”. Deveriam ser substituídas por instituições beneficentes de caridade, de capital fechado. Estas entidades seriam, muito mais eficientes e baratas aos pagadores de impostos. Uma vez que estão sujeitas a pressões de mercado, costumam ser muito mais eficazes e ágeis em fornecer ajuda do que departamentos governamentais lentos e ineficientes.

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Veja-se que Friedman não propôs a extinção pura e simples das políticas sociais. O que sugere é uma substituição simplificada dessas políticas por formas que transfiram mais diretamente o dinheiro a quem precisa, a exemplo do Bolsa Família do governo brasileiro. Tais transferências diretas permitem que os indivíduos escolham como gastam sua renda excedente, respeitando a liberdade individual — algo que os sistemas igualitários e progressivos de tributação da renda simplesmente não podem fazer. Por extensão, quando conveniente, o autor sugere a valorização da atuação de entidades da Sociedade civil organizada, que seriam mais eficientes, e talvez mais honestas, que os governos, com seus interesses publicitários e demagógicos encobrindo os interesses fisiológicos.

4.5 CAPITALISMO E LIBERDADE

As ideias de Milton Friedman, aqui expostas, sobre liberdade econômica e política foram retiradas principalmente de seu clássico Capitalism and freedom (FRIEDMAN, 1982). Estão no centro do que se entende por “neoliberalismo”. Elas permitem uma noção inicial sobre o pensamento desse economista da escola de Chicago, tão influente entre os defensores do liberalismo econômico e críticos do Estado forte e centralizado. São a síntese da ideia geral do autor que, em seu tempo, afirmava que a Sociedade se tornou excessivamente fixada no igualitarismo e que isso minou a liberdade que, nesta perspectiva, é o “motor” da evolução e do desenvolvimento.

Ao constranger a liberdade, dois efeitos negativos são comuns. Em primeiro lugar, desestimula-se a criatividade, o empreendedorismo e a inovação. Elencados pelo austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950), esses seriam os componentes da “destruição criativa”, fundamentais ao desenvolvimento econômico. Por sua vez, é o desenvolvimento econômico que aumenta a riqueza da Sociedade, (boa) parte da qual os governos extraem para financiar a estrutura do Estado. Nesse caso, o dilema geral dos governos de bem-estar social é atacar as desigualdades sem desestimular o desenvolvimento econômico, do qual os governos dependem para financiar suas políticas e bancar suas estruturas.

O segundo efeito negativo, na perspectiva liberal de Friedman e de seus seguidores neoliberais, é que a intervenção estatal em favor do bem-estar requer mais estrutura governamental. Isso quer dizer que é preciso aumentar o número de leis, regras, funcionários, agências, secretarias, organizações e empresas estatais. Evidentemente, isso aumenta o custo de manutenção dos governos e os recursos necessários são retirados da sociedade produtiva, desestimulando a produção e constrangendo o consumo. A tendência é o crescimento ininterrupto do Estado e, o consequente endividamento até o esgotamento da capacidade de a sociedade arcar com esses custos. O efeito é a perda de competitividade da economia nacional e o empobrecimento.

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

O neoliberalismo significa a retomada das ideias e políticas da doutrina política que defende a liberdade absoluta do capitalismo e da intervenção mínima do Estado. Tal retorno começa a tomar corpo a partir dos respectivos governos da primeira ministra da Inglaterra, Margareth Tatcher (1975-1990) e do presidente estadunidense Ronald Reagan (1981-1989) entre o final da década de 1970 e início dos anos 1980. No Brasil, essa direção foi tentada na curta experiência do governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992). No governo de Jair Bolsonaro (eleito para o exercício de 2019-2022), o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenta tomar esse curso.

NOTA

Assim, simplificadamente compreendidas, as ideias de Milton Friedman são uma espécie de receituário do liberalismo econômico e, como dissemos, uma cartilha ao neoliberalismo. Desse modo, é importante compreendê-las, não necessariamente na sua aplicabilidade, mas no seu efeito orientador. Em termos de análise sociológica, poderíamos entender seu conjunto de preceitos e críticas como um tipo ideal weberiano. Em outras palavras, suas ideias expressam a radicalização do liberalismo econômico, que vulgarmente se resume à ideia do Estado mínimo, aquele que intervém o menos possível na economia e na vida dos indivíduos.

O conceito de “tipo ideal” significa metodologicamente uma descrição das características de um fenômeno em seu estado puro, radical, isto é, tal qual se o idealizou. É a descrição do fenômeno no seu estado de perfeição, em que as principais características estivessem presentes de maneira ideal. Nesse sentido, o “tipo ideal” é um conceito. Na realidade, existem apenas aproximações desse “tipo ideal”. Assim, os resultados de uma observação permitirão afirmar que tal país é mais capitalista que outros, que tal nação é a mais socialista entre todas, porque se aproximariam mais das características do tipo ideal de capitalismo ou socialismo.

NOTA

Na prática, contudo, os governos de cada nação ao longo da história sempre revelaram graus de intervenção. Mesmo nos países de maior tradição liberal como a Inglaterra e os Estados Unidos, governos sempre intervém nos assuntos da Sociedade. Isso não anula a validade dos argumentos liberais que, tanto na política, quanto na economia, servem de tipo ideal a partir do qual é possível se orientar. Essa orientação pode ser analítica, no sentido de identificar aspectos da realidade que se aproximam do tipo ideal em cada caso, isto é, em cada Sociedade observada. E pode ser orientativa, no sentido de materializar práticas liberais, seja de governos, seja de indivíduos.

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TÓPICO 2 | VON MISES, HAYEK E FRIEDMAN

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O livro Capitalismo e liberdade tornou-se a bíblia dos neoliberais, assim como “do think tanks conservadores americanos durante a presidência de Ronald Reagan” (SCRUTON, 2019, p. 127), em resposta ao esgotamento do Estado de bem-estar social. Ao lado de Mises e Hayek, Friedman também figura entre os ícones do pensamento da “nova direita”, associada ao liberalismo econômico. Trata-se do ressurgimento do conservadorismo na cultura política do Ocidente, após décadas de hegemonia do pensamento socialdemocrata. O eminente economista da escola de Chicago se caracterizou pelo radicalismo liberal-econômico. Por essa razão, enquanto este livro é redigido, suas ideias voltaram ao centro do debate.

Segundo o Dicionário Cambridge, a definição de “nova direita” é a de um grupo de pessoas que acredita que governos deveriam estar separados da economia do país, isto é, não interferirem na economia. Além disso, esse grupo acredita e comunga valores morais tradicionais como fundamentais para o equilíbrio e o desenvolvimento.

FONTE: <https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/new-right>. Acesso em: 18 nov. 2019.

NOTA

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Von Mises apresenta uma contribuição original na redefinição do liberalismo clássico na constituição do neoliberalismo.

• Para o economista austríaco radicado nos Estados Unidos, a ingerência do Estado nos assuntos sociais e econômicos conduzem necessariamente ao totalitarismo e a regressão econômica.

• Von Mises se insere entre os economistas austro-americanos que conferem ênfase à ação dos indivíduos e aos processos de mercado como estratégia analítica e discursiva de descrição realista de uma máquina econômica que está propensa ao equilíbrio quando está desvinculada de moralismos, de agitações sociais, de distúrbios políticos que perturbam seu funcionamento.

• É o empreendedor em suas especificidades e singularidades, motivado por seu espírito empresarial e concorrencial, que justifica o equilíbrio das relações de mercado.

• Von Mises está entre os pensadores liberais que mais criticaram qualquer forma de intervencionismo do Estado na dinâmica social e econômica.

• Para von Mises a ingerência do Estado nas decisões dos indivíduos e, na dinâmica da economia tem tendência a destruição da economia de mercado e, por decorrência da prosperidade que indivíduos e sociedades podem alcançar.

• O que se apresenta como um absoluto da lógica de mercado é a democracia dos consumidores em posição diametralmente oposta ao intervencionismo estatal.

• Para von Mises e os pensadores austro-americanos o mercado assume papel central na constituição e manutenção do equilíbrio social e econômico.

• Ao conceber o mercado como um movimento autoconstrutivo, von Mises expressa sua concepção antropológica a partir da qual concebe o homem como um ser ativo, um “homo agens”.

• O mercado na concepção de von Mises é este ambiente de livre expressão da subjetividade, do autogoverno do sujeito.

• A plena participação no mercado pressupõe a constituição de conhecimentos individuais, particulares que permitem a constante adaptação às mudanças permanentes, que circunscrevem a dinâmica do mercado.

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• Para von Mises trata-se de agir no sentido de universalizar o modo de subjetivação de mercado, calcado na capacidade empreendedora e empresarial presente em potência em cada indivíduo.

• Na Inglaterra, Hayek conheceu o economista da Universidade de Cambridge,

John Maynard Keynes, com quem travou riquíssimo debate sobre mais ou menos intervenção estatal na economia.

• Em 1944, Hayek publicou seu mais conhecido livro, intitulado O caminho da servidão, numa crítica rigorosa ao intervencionismo estatal e, mais diretamente, ao socialismo.

• Hayek incrementou o pensamento político ocidental através da filosofia política, da história das ideias e da psicologia, além da metodologia das ciências sociais. Membro da escola austríaca de economia, integrou a tradição marginalizada do pensamento político e econômico.

• Na década de 1950 do pós-guerra, Hayek defendia radicalmente as teses do livre mercado e as doutrinas políticas liberais clássicas, na contramão das políticas socialistas e das teses do bem-estar social.

• Hayek posicionou-se claramente a favor das liberdades individuais, da autonomia das comunidades e suas associações civis, contra a ideia do Estado gerenciador, planejando a vida da sociedade, se imiscuindo nas relações e interesses dos indivíduos.

• Como autêntico liberal clássico que foi, Hayek afirmava que o planejamento e a intervenção estatais enfraqueciam a sociedade civil.

• O pensamento e o engajamento políticos de Frederich Von Hayek foram um libelo do liberalismo clássico, mas também de um conservadorismo liberal, contra a sanha dos defensores do Estado forte.

• Friedman é um continuador da teoria liberal dos austríacos von Mises e Hayek. Seu esforço intelectual em demonstrar os benefícios da liberdade econômica é correspondente a sua crítica ao intervencionismo estatal do socialismo e dos governos socialdemocratas.

• As ideias liberal-conservadoras de Milton Friedman estão sempre em evidência, sugerindo que a liberdade econômica é a única garantia da liberdade política.

• O ponto mais importante no pensamento de Friedman é que o papel dos governos deveria ser restringido ao máximo possível, sendo essa a premissa do Estado mínimo. Seu objetivo é garantir a lei e ordem básicas, em vez de interferir em nossas liberdades de escolhas. Essa é, e deve ser, a regra geral.

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• Para Friedman, ao constranger a liberdade, dois efeitos negativos são comuns. Em primeiro lugar, desestimula-se a criatividade, o empreendedorismo e a inovação.

• As ideias de Milton Friedman são uma espécie de receituário do liberalismo econômico e, como dissemos, uma cartilha ao neoliberalismo.

• Suas ideias expressam a radicalização do liberalismo econômico, que vulgarmente se resume à ideia do Estado mínimo, aquele que intervém o menos possível na economia e na vida dos indivíduos.

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AUTOATIVIDADE

1 Qual a importância do conhecimento na dinâmica de mercado pensada e proposta por von Mises? Trata-se do conhecimento científico financiado pelo Estado? Ou, trata-se do conhecimento cotidiano a partir dos quais os indivíduos se movem no mundo?

2 Economista britânico de naturalidade austríaca, Friedrich Von Hayek é um dos nomes mais conhecidos da teoria econômica mundial, com grande repercussão no pensamento político. Sua notabilidade está no esforço empreendido em criticar o Estado, particularmente um certo modelo de Estado. Indique que modelo é esse e descreva as características de seu pensamento liberal (no sentido econômico e político).

3 Milton Friedman foi um economista estadunidense de origem húngara. Seu nome é conhecido pelo radicalismo das teses econômicas e pela crítica ácida ao intervencionismo estatal. Particularmente, Friedman criticava os programas de assistência social. Disserte sobre a crítica do autor a esses programas, no sentido de efeitos contrários ao que propõe em relação à condição dos indivíduos e sua autonomia.

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TÓPICO 3

PARADIGMA LIBERAL: O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE RAWLS E O

NEOLIBERALISMO DE NOZICK

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOPrezado acadêmico, neste terceiro tópico da Unidade 3 você estudará

aspectos do liberalismo igualitário do filósofo norte americano John Rawls e do neoliberalismo de Norbert Nozik. Rawls em sua obra: Uma Teoria da Justiça se empenha em apresentar uma concepção de justiça sustentada na garantia das liberdades individuais como condição fundamental na constituição de uma sociedade liberal suficiente diante dos desafios políticos e econômicos atuais, mas o filósofo vai mais longe e afirma a liberdade e a igualdade de condições como ponto de partida para que todo e qualquer indivíduo possa participar na construção de uma sociedade justa. Nesta direção, afirma que os indivíduos no exercício de sua liberdade e de sua racionalidade conseguiriam conviver adequadamente com os esforços políticos e econômicos de alcance da igualdade social.

Por seu turno, o pensador Robert Nozick em sua obra Anarquia, Estado e Utopia direciona críticas ao Estado, de bem-estar social, a toda e qualquer forma de organização coletivista bem como a politicas distributivas com anseio de alcance da igualdade econômica e social. O referido autor não dispensa a existência do Estado e de sua capacidade coercitiva restrita a um aparato jurídico e militar necessário a manutenção da propriedade. Sob tais pressupostos, o autor anuncia um individualismo metodológico que parte das diferenças de habilidades constitutivas de cada indivíduo como condição de acesso a propriedade e, por extensão de alcance dos bens necessários ao viver bem. A defesa destas ideias e outras que você estudará a seguir caracteriza Nozick como um pensador de perspectiva analítica neoliberal.

Tais autores e ideias por eles anunciadas e debatidas em suas especificidades são fundamentais para o debate contemporâneo, sobretudo diante das transformações produtivas que incidem sobre o mundo do trabalho, da renda e por extensão da organização social.

Desejamos a você bons estudos e excelentes reflexões!

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

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2 JOHN RAWLS E O LIBERALISMO IGUALITÁRIOFIGURA 13 – O FILÓSOFO POLÍTICO ESTADUNIDENSE JOHN RAWLS

FONTE: <https://i0.wp.com/pesquisajuridica.blog.br/wp-content/uploads/2018/06/pic_corner_related_20021127_repstein_john_rawls-1.jpg?w=1200&ssl=1>. Acesso em: 18 nov. 2019.

John Rawls nasceu em 21 de fevereiro de 1921 em Baltimore, no estado de Maryland, EUA, e faleceu em novembro de 2002, em Lexiton, Massachussets. Foi um filósofo político e ético, tornando-se mais conhecido a partir de sua obra Uma teoria da justiça (1971). Seu esforço intelectual na defesa de um liberalismo igualitário levou muitos a considerá-lo o mais importante filósofo político do Século XX. Graduou-se em 1943 na Universidade de Princeton, mesmo ano em que se alistou no Exército, para lutar no Pacífico Sul até o fim da Segunda Guerra Mundial. De volta a Princeton, concluiu se Ph.D. em filosofia moral em 1950. Lecionou em Princeton de 1950 a 1952, depois na Cornell University, de 1953 até 1959, Massachusetts Institute of Technology (MIT), de 1960 a 1962 e, por fim, na Universidade de Harvard, a partir de 1963, onde ocupou a cadeira James Bryant Conant University, até sua aposentadoria.

A compreensão do pensamento de John Rawls deve começar pela sua

concepção de sociedade. O filósofo a define como uma “associação humana mais ou menos autossuficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas” (RAWLS, 2000, p. 5 apud BRAGA, 2011, p. 420). Tais regras produzem e são reforçadas através da cooperação entre os indivíduos, caracterizando a sociedade como um sistema complexo de cooperação.

Nesse sentido, vale dizer, trata-se de uma perspectiva durkheimniana, segundo na qual, o elemento da solidariedade e do consenso são a principal característica da constituição social. E, do ponto de vista analítico-metodológico, trata-se de perceber que o autor parte sempre desse pressuposto da cooperação. Em outras palavras, o pressuposto sociológico, leia-se, o ponto de partida analítico, é o de que o elemento fundamental a compreender como uma sociedade, funciona bem no nível de cooperação que consegue constituir e preservar.

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TÓPICO 3 | PARADIGMA LIBERAL: O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE RAWLS E O NEOLIBERALISMO DE NOZICK

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Um dos fundadores da Sociologia, o francês Emile Durkheim (1858-1917), sugere que a solidariedade é a principal característica fundante das sociedades.

IMPORTANTE

Nas figuras a seguir temos uma impressão de onde o autor viveu, onde produziu um grande pensador estimulados ela beleza arquitetônica, cidades bonitas e limpas inspiram seus habitantes.

FIGURA 14 – IMAGENS DE BALTIMORE, CIDADE ONDE NASCEU O FILÓSOFO JOHN RAWLS

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/98/BaltimoreC12.png>. Acesso em: 18 nov. 2019.

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

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O utilitarismo é um tipo de corrente filosófica originada durante o Século XVIII. Seus idealizadores foram os filósofos britânicos John Stuart Mill (1806-1873) e Jeremy Bentham (1748-1832). De acordo com a proposta do utilitarismo, toda a ação almeja um fim, cuja consequência final seja o prazer e a felicidade. Sendo assim, cada uma das ações a serem tomadas focam na utilidade destes atos; na realização findada.

FONTE: <https://www.todoestudo.com.br/historia/utilitarismo>. Acesso em: 18 nov. 2019.

IMPORTANTE

Segundo (FELDENS, 2010), liberdade e igualdade de condições como ponto de partida a cada indivíduo: que seria a condição ideal de uma sociedade justa. O autor o propõe crente de que este tipo ideal seria politicamente materializável e desdobra seus esforços filosóficos nessa direção. Para Rawls, a justiça compreende os pressupostos legais básicos de um governo, através dos quais indivíduos livres e racionais concordariam em uma situação hipotética de perfeita igualdade.

Para que tais pressupostos sejam os mais justos, o filósofo imagina a seguinte situação hipotética: considera um grupo de indivíduos completamente ignorantes das próprias circunstâncias sociais, históricas e econômicas de sua sociedade. Por extensão, imagina o grupo sem a consciência dos valores morais mais elementares, incluindo sua concepção do que significa uma vida boa.

Nessa perspectiva, os indivíduos reconhecem a necessidade de regras e a maioria coopera e as cumpre, sabendo dos benefícios a todos. É claro que isso não isenta a sociedade de conflitos, pois nunca há consenso estável sobre a distribuição mais justa dos recursos materiais e imateriais produzidos nessa cooperação. Uma vez que os recursos são relativamente escassos e os indivíduos egoístas e utilitaristas, o conflito logo se estabelece. E, ao modo contratualista hobbesiano, Rawls afirma que, para superar essa dificuldade, os indivíduos estabelecem acordos e regras que garantem a cooperação acima do conflito.

No livro Uma teoria da justiça (1971), o autor é categoricamente contrário a certas correntes do próprio liberalismo e defende que uma concepção adequada de justiça não deve ser oriunda do utilitarismo. Isto, porque essa visão antropológica coadunaria com a ideia geral de que a felicidade seria alcançada em detrimento dos direitos das minorias. Retomando a ideia do contrato social, John Rawls afirma que uma noção adequada de justiça deve estar sustentada na garantia de liberdade a todos os indivíduos, na medida em que agiriam racionalmente em respeito às suas liberdades e às alheias.

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TÓPICO 3 | PARADIGMA LIBERAL: O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE RAWLS E O NEOLIBERALISMO DE NOZICK

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Situados por trás desse véu da ignorância, eles não poderiam ser influenciados por desejos que favoreceriam seus interesses de grupo às custas de interesses de outros. Assim, eles nada conheceriam sobre raça, sexo, idade, religião, classe social, riqueza, renda, inteligência, habilidades, talentos e outras classificações.

Nessa espécie de posição original, qualquer grupo de indivíduos seria racional e livremente levado a concordar com dois pressupostos gerais, que permitiriam a materialização da Sociedade justa. São eles:

• Cada pessoa deve ter igual direito à mais ampla liberdade básica compatível com uma liberdade semelhante para os outros.

• As desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas de modo que sejam:◦ para o maior benefício dos menos favorecidos; e◦ vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de justa

igualdade de oportunidades.

A liberdade básica mencionada no primeiro pressuposto compreende à maioria dos direitos e liberdades associados ao liberalismo e à democracia. Correspondem à liberdade de pensamento e consciência, de associação, de direito ao governo representativo, à formação de partidos políticos, à propriedade pessoal e às liberdades necessárias para garantir o Estado de direito. No entanto, não entrariam nessa concepção a liberdade de contrato e o direito de ater aos meios de produção. As liberdades básicas não poderiam ser violadas sob nenhum pretexto, nem mesmo se isso por exemplo melhorasse a eficiência econômica ou aumentasse a renda dos pobres.

Quanto ao segundo pressuposto, sugere a garantia de oportunidades justas e iguais de competir pelas posições públicas ou privadas que cada um desejar. Para isso, a sociedade deveria garantir os meios básicos necessários, sobretudo educação e saúde. Além disso, qualquer que seja a distribuição desigual da riqueza e da renda, que ela não impeça, em hipótese normal alguma, que a liberdade básica esteja garantida, assim como o acesso à competição por posições em condições de igualdade a todos. Nessa perspectiva de admitir a desigualdade, Rawls reconhece que alguma desigualdade é sempre necessária, a fim de manter a competitividade necessária à produtividade.

No debate sobre o socialismo e o liberalismo, o filósofo de Harvard se posiciona da seguinte maneira: o socialismo da URSS seria contrário ao princípio da justiça porque contrário às liberdades básicas e por não oferecer oportunidades iguais de concorrer a posições almejadas. Por outro lado, o liberalismo laissez-faire também seria injusto, porque tende a gerar muita desigualdade e concentração de riqueza e renda. Por consequência, priva muitos indivíduos dos meios básicos para competir em condições justas.

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Uma sociedade justa seria aquela em que a propriedade dos meios de produção fosse amplamente distribuída e aqueles que fossem os menos beneficiados da distribuição, ainda assim seriam minimamente prósperos e economicamente independentes. Rawls pouco aponta quais seriam os arranjos institucionais específicos que gerariam essa condição da sociedade ideal em mente. Não obstante, seu esforço discursivo foi notavelmente reconhecido por fornecer uma base filosófica ao liberalismo igualitário.

A partir do seu livro Uma teoria da justiça (1971), apresentamos aqui os dez pressupostos elencados como condições que o filósofo político John Rawls considera elementares à paz democrática. Pretende, com isso, apresentar um conjunto de direitos humanos que todos deveriam defender como bens sociais primários em uma sociedade liberal-democrática. O autor os compreende como “direitos, liberdades e oportunidades, assim como a renda e riqueza” (RAWLS, 2000, p. 98, apud BRAGA, 2011, p.444). Seriam os itens específicos dos dois pressupostos gerais que mencionamos anteriormente. Nessa perspectiva, o autor sugere:

• As Sociedades devem indicar e os governos garantir direitos e liberdades básicos, de comum acordo entre os integrantes da Sociedade.

• Garanta-se a liberdade de circulação e livre escolha da ocupação face a um quadro de oportunidades plurais.

• Estabeleçam-se poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica.

• Garantia de rendimento mínimo e oportunidades de gerar riqueza.• A garantia das bases sociais de respeito próprio e auto respeito.• Certa igualdade imparcial de oportunidade, especialmente na educação, a fim

de que todas as partes de sua sociedade possam participar dos debates da razão pública e possam, também, contribuir para as políticas sociais e econômicas.

• Uma distribuição decente de renda e riqueza para que sejam garantidos a todos os cidadãos os meios necessários para que façam uso inteligente e eficaz das suas liberdades básicas.

• Ter a sociedade como empregador em última instância por meio do governo, pois assim há um quadro de percepção de segurança e de oportunidade de trabalhos e cargos significativos que mantem a sensação de autorrespeito entre cidadãos.

• Assistência médica básica assegurada para todos os cidadãos.• Financiamento público das eleições e disponibilização da informação pública

sobreas decisões públicas.

John Rawls faz questão de afirmar que considera indispensável que o liberalismo político seja o pano de fundo da constituição da Sociedade justa. Ao mesmo tempo, recusa qualquer aproximação com algumas perspectivas egoísticas, centradas em meras vontades individuais, como no caso do utilitarismo e da generalização grosseira da ideia da “mão invisível”. Advoga pela promoção “razoável” de condições de liberdade e cooperação que permitam aos indivíduos realizarem seus planos pessoais.

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Sempre que houver incertezas sobre as possibilidades de promoção desses planos, o Estado deve intervir no sentido de proteger os menos afortunados. Assim, o liberalismo de Rawls admite a necessidade da “mão” do Estado, reconhecendo as imperfeições próprias da natureza desigual. Preceitua, portanto, que a desigualdade é natural, não obstante aceitável até certos níveis de bom senso que não seriam incompreensíveis a qualquer homem sensato. E é esse sempre tênue meio termo entre a liberdade e a proteção estatal que define o pensamento do autor.

Nessa perspectiva, o liberalismo igualitário de John Rawls admite a necessidade do intervencionismo jurídico do Estado de direitos. Por um lado, será preciso sempre garantir as liberdades econômicas e políticas, assegurando que as distintas visões de mundo e os interesses privados sejam devidamente estimulados. Por outro lado, é igualmente necessário, no reconhecimento das desigualdades essencialmente inevitáveis, proteger os indivíduos em maior dificuldade. Trata-se, nesse aspecto definitivo, de jogar todas as fichas na preservação de uma sociedade cooperativa, solidária e ciente de que estes são precisamente os pilares operacionais e morais que garantem a estabilidade mínima e o desenvolvimento.

3 ROBERT NOZICKFIGURA 15 – FOTO DE ROBERT NOZICK

FONTE: <https://cdn.britannica.com/s:700x500/37/100837-050-554F3350/Robert-Nozick.jpg>. Acesso em: 18 nov. 2019.

Robert Nozick, filho de Max Nozick, um pequeno empresário, e de Sophie Cohen Nozick. Seus pais eram imigrantes vindos de uma colônia judaica na Rússia. Nasceu no bairro do Brooklyn, em Nova York, em 16 de novembro de 1938. Sua primeira esposa se chamava Barbara Fierer, com quem teve os filhos Emily Sarah Nozick (1966) e David Joshua Nozick (1968). Posteriormente se casou com Gjertrud Schnackenberg, que era poetisa e com quem não teve filhos. Enfrentou uma longa e dramática luta contra um câncer de estômago diagnosticado em 1994, faleceu em 23 de janeiro de 2002, em Cambridge, Massachusetts.

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FIGURA 16 – CAPA DO LIVRO DE NOZICI – ANARQUIA, ESTADO E UTOPIA

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/6133PJVibZL.jpg>. Acesso em: 18 nov. 2019.

Porém, é fundamental ter presente que a obra de Nozick não se restringe ao campo da filosofia política. Ainda nesta direção, a expressão acadêmica do referido filósofo não fica restrita a sua obra mais divulgada e conhecida. Nesta direção, as contribuições filosóficas de Nozcik abrangem os campos da epistemologia, da metafísica e, até da teoria da decisão.

Quanto a sua formação e carreira acadêmica, em 1959 Nozick formou-se bacharel em filosofia pela Columbia College. Concluiu seu doutorado em filosofia pela Princeton University em 1963. Nesta universidade lecionou como instrutor e professor assistente no período de 1962 a 1965. Entre 1965 a 1967 lecionou como professor assistente em Harvard, onde, anos mais tarde, em 1969, volta na condição de professor titular. Entre os anos de 1968 e 1969 também foi assistente na Rockefeller University. Seu retorno e permanência definitiva em Harvard se deu na condição de um dos professores mais jovens daquela universidade assumiu o cargo com apenas 30 anos de idade.

Ao longo de seus estudos secundaristas Nozick era adepto das ideias socialistas e em certos momentos apresentava-se engajado com o ideário socialista, ou mesmo como variáveis libertárias vinculadas a outras matrizes de pensamento, entre elas o anarquismo e o liberalismo. Esta experiência vital foi fundamental na publicação de seu primeiro livro e, que permaneceu como a obra mais conhecida ao longo de sua carreira. Trata-se da obra Anarquia, estado e utopia, publicada em 1974. Entre outros aspectos que apresentaremos na sequência do texto, esta obra colocou em destaque na filosofia política de orientação acadêmica o libertarianismo, bem como contribuiu para um revigoramento da tradição liberal sob variáveis neoliberais na filosofia contemporânea.

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O neoliberalismo tornou-se tão penetrante que raramente o reconhecemos sequer como ideologia. Parecemos aceitar a proposição de que essa fé utópica e milenar descreve uma força neutra; uma espécie de lei biológica, como a teoria da evolução de Darwin. Mas essa filosofia surgiu como a tentativa consciente de remodelar a vida humana e mudar o locus do poder. O neoliberalismo vê a competição como característica definidora das relações humanas. Ela redefine os cidadãos como consumidores, cujas escolhas democráticas são melhor exercidas ao comprar e vender — um processo que supostamente recompensa o mérito e pune a ineficiência. Sustenta que o mercado assegura benefícios que jamais poderiam ser conseguidos pelo planejamento. O termo neoliberalismo foi cunhado numa reunião de 1938, em Paris. Entre os participantes, havia dois homens que definiriam a ideologia, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Ambos exilados da Áustria, eles consideraram a social democracia, caracterizada pelo New Deal de Franklin Roosevelt e o desenvolvimento gradual do Estado de bem-estar social da Grã-Bretanha, como manifestações de um coletivismo que ocupava o mesmo espectro do nazismo e do comunismo.

FONTE: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/554090-para-compreender-o-neoliberalismo -alem-dos-cliches>. Acesso em: 18 nov. 2019.

NOTA

No entanto, o foco de nossos estudos no âmbito da Ciência Política requer a análise das contribuições de Nozick para a compreensão das questões políticas em curso na atualidade. Nesse sentido, é preciso lançar um primeiro olhar para a matriz de pensamento político ao qual Nozick encontra-se vinculado. Assim, a matriz política de onde brota parte considerável do pensamento político do referido autor é o neoliberalismo em sua variável libertariana. “O libertarianismo, formado por um conjunto pequeno de doutrinadores, mas com um poder de lobby considerável e ideias variadas, caracteriza-se por defender a primazia do livre mercado como uma instância justa [...]”. (MORAES, 2011, p. 453).

3.1 O CONTEXTO DE PUBLICAÇÃO DA OBRA: ANARQUISMO, ESTADO E UTOPIA

A referida obra publicada em 1974 pode ser considerada expressão da crise do Estado de bem-estar social vivenciada nos países centrais da Europa Ocidental e Estados Unidos. O Estado de bem-estar social foi a solução encontrada pelos pensadores de tradição liberal diante da crise do liberalismo clássico manifestado de forma contundente na crise financeira de 1929. O liberalismo clássico tem sua origem no ideário de pensadores como John Locke (1632-1704), Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823), John Stuart Mill (1806-1873), entre outros pensadores.

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Inicialmente com John Locke, o liberalismo clássico se manifestou como reação frente ao Estado absolutista de matriz feudal que se encontra na gênese do Estado moderno em que o Rei concentra todos os poderes intervindo diretamente na dinâmica política, social e econômica. O Estado absolutista impunha limites ao direito de propriedade privada, à liberdade de comércio, à produção, à livre troca de mercadorias e de comércio, bem como a iniciativas de trabalho assalariado. Assim, o liberalismo clássico, em sua vertente econômica, advoga pela liberdade individual nas práticas econômicas, bem como pela defesa da inviolabilidade da propriedade privada justificativa para existência do Estado e de todo e qualquer governo. Ou seja, “nenhum governo poderia atentar contra os direitos de propriedade, por ser um direito natural que, inclusive tem a primazia sobre a liberdade e a vida” (MORAES, 2011, p. 455).

O liberalismo clássico também se apresenta em sua vertente política caracterizando-se pelo contraponto ao poder absoluto dos monarcas. Trata-se, por um lado, de questionar a centralidade do poder e, ao mesmo tempo, sugerir o compartilhamento do poder com a burguesia, classe em ascensão econômica em função de suas práticas comerciais e econômicas mais produtivas e, dinâmicas socialmente. É importante ter presente que, desde suas origens econômicas e políticas, o liberalismo não é sinônimo de democracia. Esta é uma confusão conceitual comumente aceita de forma tácita, sem a devida distinção histórica e conceitual entre estes conceitos.

Cabe ainda frisar outras duas instâncias de constituição do liberalismo clássico, sua dimensão cultural que implica na afirmação da liberdade individual de escolhas frente às imposições morais da sociedade, bem como de seus usos e costumes. E a dimensão jurídica que se constitui em arcabouço legal garantidor de uma economia de livre mercado livre, da propriedade, bem como em legislação protetiva diante de reivindicações de classe, bem como de questionamentos, as posses e o direito de propriedade individual sobre as mesmas em detrimento da posse coletiva da propriedade conforme o modo de vida, de economia e moral anteriores à ascensão da burguesia e do sistema capitalista. Esta cosmovisão liberal alcançou êxito e, portanto, plena funcionalidade no Século XIX.

O Estado capitalista de orientação liberal, portanto, historicamente situado no Século XIX como forma hegemônica de organização política da sociedade, tem seus princípios relacionados, no plano da natureza humana, com o individualismo, a liberdade no (e para o) mercado e a desigualdade entre os homens como valor positivo. A justificativa para defesa desses princípios é que levam em conjunto ao progresso e ao pleno desenvolvimento. Assim, o papel do Estado, para a teoria mencionada, é precipuamente o de garantir a propriedade privada dos meios de produção, a divisão social do trabalho e a ausência ou minimização do controle estatal sobre o mercado, baseado na argumentação de que só assim é possível alcançar o auge do desenvolvimento, o qual, por conseguinte, conduziria ao bem-estar da sociedade (MORAES, 2011, p. 457).

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Porém, este ideário liberal clássico apresentou seus limites econômicos, políticos e sociais a partir da segunda metade do Século XIX desembocando em profundas desigualdades sociais internas aos Estados nacionais, bem como em profundas desigualdades nas relações econômicas entre Estados. O resultado destas contradições econômicas internas e externas se manifestou na crise de 1929 e, por extensão, conduziu à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), bem como a experiências políticas fascistas e totalitárias constitutivas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Diante desse cenário caótico resultante dos pressupostos do liberalismo clássico, tratava-se de salvar o capitalismo de matriz liberal clássica de sua derrocada. A solução foi apresentada pelo economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) na constituição do Estado de bem-estar social. Diferentemente da liberdade individual e de mercado como valor absolto do liberalismo clássico tratava-se de reabilitar a intervenção estatal no plano da economia e, da organização social. O Estado passa a operar a partir de uma lógica de planificação da atividade econômica, intervindo nos desequilíbrios produtivos e de comércio. Com intuito de alavancar e proteger setores estratégicos da economia, bem como controlar a lógica dos preços, a dinâmica de mercado, bem como do processo inflacionário que corrói as economias nacionais passa a constituir empresas estatais e a oferecer subsídios produtivos à iniciativa privada.

No plano social, o Estado de bem-estar social constituiu uma rede de proteção do trabalho, afirmando legislação trabalhista, direito previdenciário, cobertura para invalidez decorrente de acidentes de trabalho, auxílio desemprego e, todo um conjunto de medidas assistenciais visando minimizar os efeitos das desigualdades sociais e da exclusão de parcelas da população com dificuldades de adaptação ao regime de produção e acumulação de capital. O receituário do Estado de bem-estar social funcionou e o liberalismo ganhou sobrevida, mas com a tarefa de rever seus fundamentos e reconstituir-se sobre outras bases morais, antropológicas, sociais, individuais e econômicas.

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A CRISE DE 1929 – A GRANDE DEPRESSÃO

O ano de 1929 pode ser considerado o marco de uma das maiores crises da história do capitalismo. Foi o ano em que os Estados Unidos foram abalados por uma grave crise econômica que repercutiu no mundo inteiro. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os Estados Unidos, foram os principais fornecedores dos países europeus, exportando grandes quantidades de produtos industrializados, alimentos e capitais (sob a forma de empréstimos). No pós-guerra, os Estados Unidos, tornaram-se a maior potência econômica do mundo. Em 1920, a indústria norte-americana produzia quase 50% de toda a produção industrial do mundo. Por quase toda a década de 20, a prosperidade econômica gerou nos norte-americanos um clima de grande euforia e de consumo desenfreado, gerando o modo de vida americano (American way of life), como modelo de progresso. Viver bem significava consumir cada vez mais. Porém, no final da década de 1920, a produção norte-americana atingiu um ritmo de crescimento muito maior do que a demanda por seus produtos, gerando uma crise de superprodução. Em 1929, os Estados Unidos conheceram uma profunda crise econômica, com a queda da Bolsa de Valores de Nova York, que gerou uma grave crise interna, um alto índice de desemprego e que acabou afetando vários países do mundo.

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=teDGZs34g_Y>. Acesso em: 18 nov. 2019.

IMPORTANTE

É neste contexto que, em 1938, na França, se reuniram filósofos, sociológicos, economistas e outros intelectuais para o Colóquio Walter Lippmann em homenagem ao jornalista e economista, autor, entre outros livros, da obra The Good Society (A boa sociedade). Esta obra pode ser considerada um manifesto dos pressupostos neoliberais constituídos posteriormente. O colóquio foi organizado pelo filósofo francês Louis Rougier (1889-1982) e contou com a participação dos mais renomados economistas liberais naquele contexto, entre eles: Ludwig von Mises (1881-1973), Friedrich Hayek (1899-1992), Walter Eucken (1891-1950), Franz Böhn (1895-1977), Wilhen Röpke (1899-1966), entre outros.

O Colóquio Walter Lippmann marca o nascimento do neoliberalismo. Para os participantes tratava-se de reconhecer os limites do liberalismo clássico, bem como estabelecer as bases teóricas, conceituais e práticas para refundar o liberalismo. Também estava suficientemente claro para os participantes do Colóquio que o Estado de bem-estar social se apresentava como uma solução necessária para salvar o capitalismo liberal, mas, ao mesmo tempo, temporária. Era necessário estabelecer novas bases para o liberalismo evitando os equívocos da experiência clássica.

Evidentemente, o neoliberalismo não pode ser tomado como uma doutrina moral, social e econômica coesa. Assim, como toda e qualquer teoria expressa variações teóricas e conceituais, o neoliberalismo também possui variantes diferenciais. Mas, para efeito de nosso estudo e em função dos limites em relação à extensão do texto, tomaremos o neoliberalismo sob aspectos

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conceituais presentes em suas mais diversas concepções. Assim, o neoliberalismo parte do pressuposto da necessidade premente de desmonte do Estado de bem-estar social keynesiano na medida em que a intervenção econômica e social por parte do Estado impede o livre desenvolvimento do mercado, da criatividade, da inovação e do empreendedorismo individual e social que conduzem ao desenvolvimento humano e social.

Outrossim, o neoliberalismo concebe que a economia não é um fim em si mesmo, e que uma ordem econômica pautada na liberdade da inciativa privada requer uma ordem moral suficientemente consistente para conformar uma ordem social liberal. Ou seja, trata-se de estabelecer política e juridicamente uma ordem concorrencial em que os indivíduos se tornem protagonistas de seu próprio desenvolvimento, o que, necessariamente, conduzirá as sociedades liberais ao desenvolvimento e a prosperidade econômica. Nesta concepção social e econômica o Estado assume uma posição central na garantia das bases jurídicas que disciplinem os indivíduos ao reconhecimento, bem como ao respeito à propriedade e aos contratos. Ainda, nesta direção, trata-se de estimular a liberdade individual para a constituição de práticas em que os indivíduos se tornem empreendedores de si mesmos constituindo estoques capitais humanos e sociais, suficientes para dinâmica da economia de mercado desregulamentada.

Sob tais pressupostos, Nozick se insere nesta linhagem neoliberal direcionando suas críticas ao Estado de bem-estar social, a toda e qualquer forma de organização coletiva, seja o socialismo, de ajuda mútua, seja o anarquismo, ou mesmo políticas distributivas, igualdade econômica e social.

3.2 OS POSTULADOS NEOLIBERAIS DE NOZICK

Os postulados neoliberais do pensamento de Nozick encontram-se explicitados em sua obra anteriormente citada Anarquismo, estado e utopia. A obra está organizada em três seções. Na primeira seção, Nozick apresenta justificativas para a existência do Estado mínimo. Na segunda seção, o autor faz uma defesa enfática da liberdade dos indivíduos, afirmando a injustiça de toda e qualquer forma de Estado social, pois sua existência penaliza o trabalho, a riqueza e a liberdade de certos indivíduos em benefício de coletividades. Na terceira seção, Nozick volta a defender o Estado mínimo a partir de argumentos utópicos. Nesta direção, a referida obra direciona-se a legitimar discursivamente, conceitual e racionalmente o Estado mínimo e, em contrapartida criticar toda e qualquer forma de coletivismo ou de organização estatal em vistas à dimensão social.

Na defesa de suas ideias Nozick recorre a quatro linhas gerais de argumentação que remontam as teses centrais da matriz liberal, entre elas: a teoria da mão invisível de mercado, a teoria do estado de natureza como tipo ideal para justificar a existência do Estado, a teoria do individualismo metodológico e a teoria da desigualdade econômica e social como um valor insofismável para a promoção do desenvolvimento.

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Assim, por meio da teoria da mão invisível do mercado, Nozick procura demonstrar que os fatos, os acontecimentos históricos estão desprovidos de teleologia, de intencionalidade advinda de indivíduos, de grupos ou de classes sociais. Ou seja, ao agirem, os indivíduos procuram maximizar o resultado de suas ações e, agindo desta forma se estabelece naturalmente o equilíbrio econômico, político e social. O autor sugere que em as experiências de orientação ou mesmo planificações da ação humana, os resultados se apresentam catastróficos, derivando para experiências totalitárias de poder.

As explicações da mão invisível minimizam o emprego de ideias que constituem os fenômenos a serem explicados. Em contraste com explicações diretas, não explicam modelos complicados, incluindo as ideias do modelo plenamente desenvolvidas como objetos dos desejos ou crenças das pessoas. [...]. Uma explicação da mão invisível mostra que o que parece ser produto do trabalho intencional de alguém não foi produzido pela intenção de ninguém. Poderíamos denominar o tipo oposto de explicação da “mão oculta”. Uma explicação da mão oculta explica o que parece ser apenas um conjunto desconexo de fatos que (com certeza) não é produto do trabalho intencional, como o produto do trabalho intencional de um indivíduo ou grupo” (NOZICK, 1991, p. 34).

No que concerne ao estado de natureza como tipo ideal para justificar a existência do Estado, Nozick se filia às perspectivas do estado de natureza de John Locke. Para Locke o contrato social que funda o Estado, retirando o homem do estado de natureza, justifica-se pela garantia da propriedade privada. Em Locke a propriedade privada apresenta-se como uma instituição ilimitada e absoluta, na medida em que o acesso e a garantia da propriedade são condições por excelência da manutenção da vida, do trabalho e da liberdade dos indivíduos. Assim, o que justifica a existência do Estado é a garantia da propriedade.

Na esteira dos pressupostos de Locke sobre e estado de natureza, Nozick argumenta que as condições limítrofes do estado de natureza requerem que nenhum indivíduo tenha o direito de imputar prejuízo a outro indivíduo, a sua vida, a sua propriedade, a sua liberdade. Porém, distinguindo-se de Locke, Nozick afirma, que na transição do estado de natureza para o Estado constituíram-se agencias de proteção dos direitos individuais, repita-se o direito à vida, à liberdade e à propriedade, justificando o fato de que o contrato social que funda o Estado o limita em sua origem à proteção da propriedade privada.

Em relação ao individualismo metodológico Nozick pretende demonstrar que os indivíduos ontologicamente são seres autônomos, são autores de si mesmos, são independentes da sociedade e, como tal, não há preceito moral, ou exigência política que os obriguem as se preocupar, ou a se submeter à sociedade. Nozick radicaliza esta posição ao afirmar que os indivíduos não devem ser constrangidos a pagar impostos em função do bem-estar de outros indivíduos. Ao submeter indivíduos a tributação sob a justificativa do bem-estar social o indivíduo é submetido a uma condição degradante, a um sacrifício injusto.

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Individualmente todos resolvemos às vezes suportar alguma dor ou sacrifício por um benefício maior ou para evitar maior dano. [...]. Em todos os casos algum custo é incorrido em troca do bem geral maior. Por que não, analogamente, sustentar que algumas pessoas têm que arcar com alguns custos, a fim de beneficiar outras pessoas, tendo em vista o bem social geral? Mas não há entidade social com um bem que suporte algum sacrifício para seu próprio bem. Há apenas pessoas individuais, pessoas diferentes, com suas vidas individuais próprias. Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usá-las em proveito das demais. Nada mais. O que acontece é que alguma coisa é feita com ela em benefício dos outros. Conversas sobre bem social geral disfarçam esta situação (intencionalmente?). Usar uma pessoa dessa maneira, além de indicar desrespeito, não leva em conta o fato de que ela é uma pessoa separada, que é sua vida de que dispõe. Ela não obtém algum bem que contrabalance seu sacrifício, e ninguém tem o direito de obrigá-la a isso – e ainda menos o Estado ou o governo, que alegam que lhe exige a lealdade [...] (NOZICK, 1991, p. 48).

As três linhas de argumentação anteriores são coroadas pela argumentação em torno do valor positivo da desigualdade, o que significa que, para o filósofo estadunidense atacar a desigualdade, é dos equívocos mais escandalosos do Estado de bem-estar social, na medida em que somente através da manutenção da desigualdade é que os indivíduos se motivam para o melhoramento de suas próprias condições. Tal motivação individual desencadeia um dinamismo social e, por decorrência, econômico, promovendo o desenvolvimento e o bem-estar para o maior número possível de indivíduos. Nesta direção, Nozick argumenta:

A grande objeção quando se diz que todos têm direito a várias coisas, tais como igualdade de oportunidades, à vida etc., é fazer valer esse direito, é que esses “direitos” exigem uma infraestrutura de coisas, materiais e atos, e outras pessoas podem ter direitos e títulos a elas. Ninguém tem direito a alguma coisa cuja realização exige certos usos de coisas e atividades sobre as quais outras pessoas têm direitos e títulos. Os direitos e títulos de outras pessoas a coisas particulares (esse lápis, seu corpo etc.) e a maneira como resolvem exercer esses direitos e títulos estabelecem o meio esterno de qualquer dado indivíduo e os meios que ele terá a sua disposição (NOZICK, 1991, p. 262).

A lógica argumentativa de Nozick analisada pelo ângulo do individualismo metodológico parte do pressuposto das diferenças de habilidades constitutivas dos indivíduos em estado de natureza, implica no fato de que o acesso à propriedade se constitui a partir dos dotes naturais presentes em cada indivíduo. Este argumento justifica a naturalidade da desigualdade na distribuição da propriedade. Ou dito de outro modo, os indivíduos têm direito a seus dotes naturais, a tudo o que decorre de suas capacidades e habilidades naturais. Assim, fruto de seu trabalho, os indivíduos têm direito à propriedade. Indivíduos desprovidos de propriedade se constituem a partir de decisão deliberada de não dispender de esforços, de trabalho para garantir suas posses. A decorrência lógica de tal linha de argumentação implica no fato de que a posse da propriedade é justa e, de que toda e qualquer forma de apropriação da propriedade de outrem é fruto do roubo, da injustiça e deve ser reprimido com todo o rigor da lei.

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Nesta direção, a existência do Estado em sua condição mínima, somente se justifica como garantia de posse da propriedade. Nozick não dispensa a existência do Estado e de sua capacidade coercitiva, mas somente na condição de um aparato jurídico-militar a serviço da manutenção da propriedade. Não compete ao Estado qualquer outra forma de ação e, sobretudo, de intervenção. Ao intervir com o intuito de corrigir, ou diminuir desigualdades sociais, o Estado promove distorções que desequilibram a mão invisível do mercado e, por decorrência lógica promovendo a apatia social, a estagnação e, por fim crises econômicas, sociais e políticas que invariavelmente desembocam em experiências coletivistas de matriz totalitária. “O que está em tela — para a teoria de Nozick — é sua completa objeção contra todas as tentativas de impor à sociedade um padrão de distribuição deliberadamente escolhido, seja ele uma ordem principalmente de igualdade” (MORAES, 2011, p. 467).

Assim, para Nozick o Estado mínimo é legitimo e desejável, limitado às funções de proteção da propriedade privada contra as demandas dos despossuídos, do roubo e, sobretudo, pela sua capacidade de fiscalização e cumprimento dos contratos entre os indivíduos imersos na livre lógica de funcionamento do mercado. Ou seja, para o pensador político o Estado mínimo, no que concerne as suas pretensões de intervenção social e máximo do ponto de vista da liberdade de ação do mercado, é o único caminho possível para a promoção do direito ao livre desenvolvimento individual. Ou ainda, dito de outro modo, o Estado mínimo encontra justificativa suficiente para sua existência quando garante serviços de proteção aos bens individuais da sociedade. Evidentemente não se trata de proteção de bens supostamente públicos, como garantia de emprego, de acesso à educação e à saúde.

Logo, a garantia da não interferência ou proteção é o papel principal de seu Estado Mínimo, não existindo relevância a manutenção de uma conjuntura favorável aos sujeitos para que prossigam com os planos projetados/esperados e suas expectativas de vida. A saúde, a educação e tantas outras prestações, que são tratados por muitos autores como direitos, são bens na teoria nozickiana como a segurança e os sistemas de proteção, de maneira que podem ser ofertados e adquiridos livremente no mercado. As diferenças entre os indivíduos são ignoradas por Nozick, pois o direito natural pertencente a todos é a liberdade, em seu sentido negativo (BALERA, 2015, p. 106).

Os pressupostos neoliberais de Nozick podem fazer sentido para sociedades desenvolvidas como a estadunidense e, parte das sociedades europeias e asiáticas, onde as tensões e os desequilíbrios em relação à distribuição e posse da propriedade foram razoavelmente equacionados ao longo das últimas décadas. Porém, quando aplicadas à sociedade brasileira cujo ethos constitutivo em sua origem se apresenta escravocrata, tal perspectiva social e econômica apresenta-se limitada. Ou dito de outra forma, a aplicação deste receituário neoliberal tende a promover o acirramento das contradições sociais. O motivo de inadequação não se deve, necessariamente, aos equívocos na lógica argumentativa de Nozick, mas

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a incômoda condição de que a sociedade brasileira ainda não enfrentou, de forma suficiente, a reforma agrária, a reforma urbana transformando em proprietários, indivíduos impedidos socialmente de acesso a posse da propriedade.

Ou seja, trata-se de reconhecer que o ethos escravocrata, patrimonialista e clientelista, a partir dos quais as elites nacionais cujas origens remontam aos senhores de engenho, ao estamento burocrático do Estado português se perpetuam no poder e impõem aos indivíduos e a sociedade em geral um capitalismo selvagem e arcaico. Ou, dito de outra forma, se concordarmos com as teses neoliberais de Nozick compreenderemos a necessidade urgente de promover profundas reformas na estrutura da sociedade brasileira, cujo ethos escravocrata compromete a criatividade, a capacidade de inovação, de empreendedorismo de gerações inteiras de indivíduos e, por extensão, mantém a sociedade brasileira atrelada a um estado letárgico, pífio e medíocre de desenvolvimento.

Noutro sentido, é preciso, também, reconhecer nas teses neoliberais de Nozick alguns reducionismos, entre eles o fato do esgarçamento da solidariedade nas relações individuais e sociais. Numa sociedade concorrencial e moralmente orientada para o alcance do sucesso derivado da capacidade individual de produção e consumo máximo que se pode alcançar, é uma espécie de cooperação competitiva, que se estabelece entre grupos de indivíduos que disputam posses e propriedades com outros indivíduos. Ainda nesta direção, o paradoxo de Nozick de um Estado mínimo, no que concerne à regulação da moralidade econômica a partir da qual os indivíduos se constituem em sua plenitude e, máximo na garantia da ordem jurídica e da propriedade necessária à liberdade de mercado, apresenta-se desprovida de pressupostos republicanos.

Ou seja, parece que não tem espaço nesta teoria para o estabelecimento

e garantia de bens públicos, uma vez que os únicos bens que se apresentam são aqueles disputados no livre jogo de mercado. Ou dito de outro modo, a perspectiva neoliberal de Nozick e, tal condição também, se apresenta em outros autores desta linhagem promovem uma fusão entre política, economia e sociedade esvaziando toda e qualquer perspectiva republicana de defesa do espaço público e, ao mesmo tempo, remetendo os indivíduos a empresários de si mesmos, lançados numa esfera social concorrencial em que meta de vida, senão de consumo da própria vida, se reduz ao alcance do padrão de excelência de plena produção e consumo.

Porém, ressalta-se que tais críticas — outras ainda poderiam ser apresentadas — não invalidam a contribuição analítica, reflexiva e, sobretudo, provocativa das formas políticas, sociais e econômicas, nas quais nos encontramos inseridos na contemporaneidade. Ou, dito de outro modo, Nozick na contundência de seus argumentos nos convida a questionar os pressupostos sociais e políticos, a partir dos quais constituímos a moral econômica que nos mantém presos a uma condição medíocre de desenvolvimento. Mas, repita-se que tal posicionamento não parte de uma aceitação tácita, ou verdadeira das ideias de Nozick, mas de sua contribuição ao avanço do debate político e econômico em torno dos desafios do desenvolvimento humano e social.

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UNIDADE 3 | ESFERAS DE PARTICIPAÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA

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LEITURA COMPLEMENTAR

A ARROGÂNCIA FATAL

Rodrigo Constantino

“A maior parte das vantagens da vida social, especialmente em suas formas mais avançadas que chamamos ‘civilização’, depende do fato de que o indivíduo se beneficia de maior conhecimento do que ele está ciente” (Hayek).

O economista da Escola Austríaca, F. A. Hayek, escreveu um livro onde expõe aquele que seria o erro fatal do socialismo, seu grande equívoco intelectual. Em The Fatal Conceit, ele mostra que a arrogante ideia de que os homens podem moldar o mundo de acordo com suas vontades levou a experimentos sociais catastróficos. Hayek sustenta que nossa civilização depende de uma extensa ordem de cooperação humana voluntária para seu avanço ou mesmo preservação. Abandonar esta ordem de mercado para adotar a moral socialista seria destruir a civilização e empobrecer a humanidade.

Hayek é um defensor da razão, e justamente por isso entende que mesmo a razão humana tem seus limites. Através da nossa própria razão, podemos entender que a ordem gerada sem um design arquitetado pode superar e muito os planos elaborados conscientemente pelos homens. O socialismo, com a ideia de planejamento central, parte da ingênua visão de que a “racionalidade” humana pode desenhar a sociedade “perfeita”, aquilo que Hayek chamou de “racionalismo construtivista”. O ponto de partida de Hayek é o insight do filósofo David Hume, de que as regras da moralidade não são conclusões da nossa razão. Para Hayek, há um processo evolutivo da moralidade, e ela não seria nem instintiva, nem criação da razão, mas algo entre ambos. Em nome da razão, os socialistas acabam a destruindo!

Adam Smith já teria percebido que a ordem de cooperação humana havia excedido os limites de nosso conhecimento, usando a metáfora da “mão invisível” para descrever esse padrão indeterminado. O conhecimento humano é disperso, e todos nós utilizamos os serviços de pessoas que não conhecemos, ou que nem mesmo sabemos da existência. A ordem extensa de cooperação é impessoal nesse sentido, e graças a ela podemos desfrutar de muito mais conforto do que na organização tribal. Se fosse preciso depender do altruísmo, as trocas seriam bem mais limitadas, e a pobreza geral seria o resultado. Muito daquilo que o homem faz de positivo nessa ordem extensa não depende de ele ser naturalmente bom e objetivar tais resultados. São consequências involuntárias de seus atos individualistas, que geram externalidades positivas.

A gradual substituição das respostas inatas pelas regras aprendidas foi distinguindo o homem de outros animais, mas a propensão à ação instintiva de massa foi mantida como uma das características humanas. Os limites a essas

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TÓPICO 3 | PARADIGMA LIBERAL: O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE RAWLS E O NEOLIBERALISMO DE NOZICK

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respostas inatas, que são culturalmente determinados, foram a mudança decisiva do animal para o homem, segundo Hayek. A capacidade de ir aprendendo uns com os outros por imitação foi fundamental. A competição foi crucial para o processo de novas descobertas. A evolução se deu através de um processo de tentativa e erro, por experimentações constantes nas diferentes áreas. Logo, por esta visão de evolução cultural defendida por Hayek, foram as regras bem-sucedidas que nos selecionaram, e não o contrário.

Quem deseja derrubar as regras é que tem o ônus da prova de mostrar os benefícios das reformas. Hume já dizia que “todos os planos de governo que implicam uma grande reforma dos costumes da sociedade são totalmente imaginários”. Os “engenheiros sociais” aprenderam the hard way que não é possível brincar impunemente com a ordem espontânea vigente. Podemos pensar não apenas nas desgraças comunistas, mas na fracassada tentativa de se adotar uma linguagem “racionalmente” superior. O Esperanto foi uma construção desta natureza, como se uma nova língua pudesse ser criada de repente, por algumas mentes brilhantes, e substituir eficientemente as línguas criadas e adotadas espontaneamente.

A evolução cultural é um processo de contínua adaptação a eventos não previstos. Essa é uma das razões pelas quais não podemos racionalmente prever e controlar o futuro da evolução. Pensadores como Marx e Comte, que assumiram ser possível descobrir as leis da evolução e prever os desenvolvimentos futuros inevitáveis, estavam simplesmente errados. Como lembra Hayek, não só toda a evolução depende da competição; a competição contínua é necessária até mesmo para preservar as conquistas existentes. Para essa competição exercer seu papel, o direito de propriedade privada e a liberdade de trocas são fundamentais. O governo, historicamente, quando tentou controlar esse processo espontâneo, criou inúmeras barreiras para ele, prejudicando seu povo.

Para os ingênuos que podem conceber uma ordem apenas como o produto de um arranjo deliberado, pode parecer absurdo que a descentralização das decisões possa gerar uma ordem mais eficiente. Mas é justamente o que acontece. Essa descentralização leva ao melhor uso da informação, que é dispersa. Eis a principal razão, segundo Hayek, para rejeitarmos as premissas do racionalismo construtivista, que pretende desenhar uma nova ordem de cima para baixo.

O livre mercado é o único meio conhecido para permitir que os indivíduos julguem vantagens comparativas de usos diferentes dos recursos escassos, e o mecanismo de preços livres é crucial para isso. A preocupação com o lucro é apenas o que torna possível o mais eficiente uso dos recursos. O desprezo pelo lucro é fruto da ignorância. Nenhuma autoridade pode agregar esse conhecimento disperso. As tentativas de intervenção nessa ordem espontânea raramente resultam em algo próximo daquilo que os interventores desejavam. Isso ocorre justamente porque há muito mais informação no “mercado” do que aquela disponível para esses interventores.

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Em suma, a extensa ordem espontânea que chamamos capitalismo de livre mercado não pode ser substituída sem nefastas consequências por um planejamento centralizado, por uma construção “racional” de cima para baixo. Aqueles que assim desejam estão sendo vítimas do que Hayek chamou de “a arrogância fatal”. Infelizmente, esta arrogância é mesmo fatal, para milhões de cobaias de tais experimentos “científicos”. Como antídoto, devemos usar a própria razão humana para compreender seus limites e, portanto, adotar uma postura bem mais humilde diante dessa grande ordem de cooperação espontânea que é o livre mercado.

FONTE: <https://www.institutomillenium.org.br/divulgacao/livros-etc/a-arrogancia-fatal/>. Acesso em: 18 nov. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A obra Anarquia, Estado e Utopia, de Nozick, publicada em 1974, colocou em destaque na filosofia política de orientação acadêmica o libertarianismo, bem como contribuiu para um revigoramento da tradição liberal sob variáveis neoliberais na filosofia contemporânea. A referida obra pode ser considerada expressão da crise do Estado de bem-estar social vivenciada nos países centrais da Europa Ocidental e Estados Unidos.

• Nozick se insere na linhagem neoliberal direcionando suas críticas ao Estado de bem-estar social, à toda e qualquer forma de organização coletiva, seja o socialismo, de ajuda mútua, seja o anarquismo, ou mesmo políticas distributivas, igualdade econômica e social.

• Nozick não dispensa a existência do Estado e de sua capacidade coercitiva, mas somente na condição de um aparato jurídico-militar a serviço da manutenção da propriedade.

• A lógica argumentativa de Nozick analisada pelo ângulo do individualismo metodológico parte do pressuposto das diferenças de habilidades constitutivas dos indivíduos em estado de natureza, implica no fato de que o acesso a propriedade se constitui a partir dos dotes naturais presentes em cada indivíduo.

• Para Nozick o Estado mínimo é legitimo e desejável, limitado às funções de proteção da propriedade privada contra as demandas dos despossuídos, do roubo e, sobretudo pela sua capacidade de fiscalização e cumprimento dos contratos entre os indivíduos imersos na livre lógica de funcionamento do mercado.

• Os pressupostos neoliberais de Nozick podem fazer sentido para sociedades desenvolvidas como a estadunidense e, parte das sociedades europeias e asiáticas, onde as tensões e os desequilíbrios em relação à distribuição e posse da propriedade foram razoavelmente equacionados ao longo das últimas décadas.

• A compreensão do pensamento de John Rawls deve começar pela sua concepção de sociedade. O filósofo a define como uma “associação humana mais ou menos autossuficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas” (RAWLS, 2000, p. 5 apud BRAGA, 2011, p. 420).

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• Os indivíduos reconhecem a necessidade de regras e a maioria coopera e as cumpre, sabendo dos benefícios a todos.

• No debate sobre o socialismo e o liberalismo, o filósofo de Harvard se posiciona da seguinte maneira: o socialismo da URSS seria contrário ao princípio da justiça porque contrário às liberdades básicas e por não oferecer oportunidades iguais de concorrer a posições almejadas.

• Uma sociedade justa seria aquela em que a propriedade dos meios de produção fosse amplamente distribuída e aqueles que fossem os menos beneficiados da distribuição, ainda assim seriam minimamente prósperos e economicamente independentes.

• John Rawls faz questão de afirmar que considera indispensável que o liberalismo político seja o pano de fundo da constituição da sociedade justa.

• Nessa perspectiva, o liberalismo igualitário de John Rawls admite a necessidade do intervencionismo jurídico do Estado de direitos. Por um lado, será preciso, sempre garantir as liberdades econômicas e políticas, assegurando que as distintas visões de mundo e os interesses privados sejam devidamente estimulados.

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CHAMADA

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AUTOATIVIDADE

1 Sob que pressupostos se justifica para Nozick a lógica do Estado mínimo?

2 O liberalismo igualitário do filósofo político John Rawls significa uma importante revisão do histórico debate-embate entre o liberalismo, de um lado, e o socialismo, do outro. Trata-se da tentativa de responder às insuficiências do primeiro e superar os problemas do segundo. E, nesse esforço, sua obra se torna uma notável referência à análise politológica e jurídica da sociedade contemporânea. Não obstante, em sua concepção originária, o autor de Uma teoria da justiça, expressa um pressuposto fundante, isto é, um ponto de partida analítico, sobre a concepção da sociedade. Explique esse pressuposto e indique o autor clássico da Sociologia, cuja obra é igualmente baseada nesse ponto de partida.

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ANOTAÇÕES

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