teoria da legislaÇÃo no pensamento de habermas · jürgen habermas é, hoje, um dos autores mais...
TRANSCRIPT
TEORIA DA LEGISLAÇÃO NO PENSAMENTO DE HABERMAS
Gustavo Cunha Prazeres*
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A MODERNIDADE, O POSITIVISMO E AS LEIS; 3 HABERMAS DIANTE DA MODERNIDADE E POSITIVISMO; 4 A ALTERNATIVA DE HABERMAS: A AÇÃO COMUNICATIVA; 5 DIREITO, AÇÃO COMUNICATIVA E PROCESSO LEGISLATIVO; 6 AÇÃO COMUNICATIVA E PROCESSO LEGISLATIVO; 7 CONCLUSÃO; 8 REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
Jürgen Habermas é, hoje, um dos autores mais lidos e mais discutidos do mundo. Sociólogo
de formação, tem na discussão da integração social um dos seus pontos mais fortes de
discussão. Atrelado a ele, uma série de questões são tratadas, sempre de forma profunda e
precisa, como acontece com o Estado, o Direito e as leis, que representam alguns dos
contornos do pensamento de Habermas com os quais se pretende trabalhar no presente
trabalho.
A principal questão a ser debatida e questionada aqui, será a concepção de Habermas sobre as
leis, a sua importância para a integração social em sociedades complexas e secularizadas,
como as atuais, e quais os requisitos a que se deverá submeter.
Para cumprir a tarefa proposta, explorando pelo menos parte do potencial e da profundidade
do pensamento habermasiano, propõe-se um estudo que partirá de análise panorâmica do
modelo que ainda hoje impera em sede de teoria da legislação e, após isto, adentrará, de forma
gradual, nas idéias basilares de Habermas, para, assim, firmar base que possibilite a exposição
dos contornos que envolvem o processo legislativo para este autor.
* Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Professor de História do Direito da Faculdade Baiana de Direito; Advogado do Lima, Araújo, Prazeres & Paradela Advogados Associados.
2
2 A MODERNIDADE, O POSITIVISMO E AS LEIS
A modernidade é marcada pela afirmação de uma nova e revolucionária forma de se
vislumbrar o mundo. Até os fins da idade média, o homem se inseria no mundo com um ar
muito mais modesto e subserviente à ordem natural. Propunha-se a conhecer e compreender a
natureza para, então, poder se adequar a regras cósmicas ou divinas. A compreensão humana
possuía a limitada função de entender o funcionamento de uma ordem maior do que ela.
Com o eclodir da época moderna, a humanidade passa a nutrir a idéia de que lhe seria
possível abandonar a condição de seres insignificantes, sujeitos à grandiosidade dos eventos
naturais, para assumir posição ativa, controlando e pondo a natureza ao seu serviço. A partir
de então, a tarefa precípua do homem deixa de ser a de tão somente buscar uma ordem
cósmica à qual se amoldar; ele agora tem condições de determinar o curso dos eventos
naturais.
Esta reviravolta da modernidade, influenciada sobremaneira pelo cientificismo e pelo
humanismo que fundamentaram o movimento histórico conhecido como Renascimento, gerou
conseqüências em todas as áreas do saber humano. Afirmava-se um novo paradigma
epistemológico, o positivismo, fundamentado no empirismo e na experimentação controlada
como forma de produção de conhecimento válido. Preciso, na definição do positivismo, se faz
o escólio de José Reinaldo de Lima Lopes (2002, p.222), in verbis:
O ideal de uma ciência positiva, ou positivista, assenta-se na tradição idealista da filosofia do fim do século XVIIII. Em primeiro lugar, define-se uma distinção entre sujeito e objeto de conhecimento e suas relações recíprocas. Em segundo lugar, propõe uma objetividade do conhecimento demonstrável pela manipulação e pela experimentação. Conhecer é saber fazer, é reproduzir e prever. A ciência é então destacada da interpretação e da razão prática, e associada à razão instrumental e ao cálculo.
A busca pela objetividade é uma das grandes marcas do positivismo, se não for a sua meta
primordial. Tamanha é a preocupação com isto que, dentro da concepção positivista, questões
acerca do certo e do errado, do bom e do mau, tendem a ser qualificadas de irracionais, de
indignas de tratamento sério, diante da inexistência de um padrão racional capaz de fornecer
meios de julgamento idôneos para este tipo de dúvidas, pois, consoante explica Boaventura de
Sousa Santos (2007, p.141):
O positivismo é a consciência filosófica do conhecimento-regulação. É uma filosofia da ordem sobre o caos tanto na natureza como na sociedade. A ordem é regularidade, lógica e empiricamente estabelecida através de um conhecimento sistemático. O conhecimento sistemático e a regulação sistemática são as duas faces
3
da ordem. [...] A ordem positivista tem, portanto, as duas faces de Janus1: é, simultaneamente, uma regularidade observada e uma forma regularizada de produzir a regularidade, o que explica que exista na natureza e na sociedade. Graças à ordem positivista, a natureza pode tornar-se previsível e certa, de forma a poder ser controlada, enquanto a sociedade será controlada para que possa tornar-se previsível e certa. Isto explica a simbiose, entre as leis científicas e as leis positivas. A ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do conhecimento-regulação.
Assim é que, ao ser aplicado ao âmbito jurídico, o positivismo propalou a idéia de que “o
direito só poderia ser adequadamente compreendido se fosse tratado como um campo
autônomo de estudo, livre de todas as questões de moral, religião, etc.” (LLOYD, 1998,
p.117). O objeto privilegiado de estudo do jurista seria a lei, compreendida tal como posta.
Seriam impertinentes preocupações com as razões de justiça legislativa, como os limites de
pena para algum delito penal ou mesmo a tipificação de alguma conduta. Esta ordem de
questões passou a ser qualificada simplesmente como de ordem política, sujeitas ao crivo de
um legislativo que só se submeteria a um controle formal (por meio de regras de
representação política, de apresentação e votação de projetos de lei, etc.), mas que, quanto ao
âmbito substancial (de conteúdo das leis), permaneceria sem maiores limites, por se
identificar como instância incontrolável (rectius: irracional). Como informa Juan Antonio
Garcia Amado (2007, p.3),
lo único que los juristas en cuanto tales pueden aportar a la legislación ocurrirá en el campo de la técnica legislativa, la cual se ocupa de cómo, sin modificar el resultado, pueden las normas hacerse del modo más manejable y claro. La razón de esto radicaría en el distinto carácter de la racionalidad jurídica.
Muito embora envolto nesta aura de neutralidade, é de se destacar que, em realidade, o
positivismo encontra, subjacente a si, uma determinada ideologia, à qual interessa este
desapego em relação às questões filosóficas e epistêmicas. Compromete-se com um sistema
econômico que prefere evitar qualquer margem para questionamento de seus dogmas e
princípios fundamentais. É o que adverte Boaventura de Sousa Santos (2007, p.141)
O aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência moderna e o do positivismo jurídico no direito e na dogmática jurídica podem considerar-se, em ambos os casos, construções ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao desenvolvimento capitalista, bem como a imunizar a racionalidade contra a contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer ela fosse Deus, a religião ou a tradição, a metafísica ou a ética, ou ainda as utopias ou os ideais emancipatórios. No mesmo processo, as irracionalidades do capitalismo passam a
1 Segundo a mitologia, Janus foi o deus romano responsável pelos portões celestiais. Representado por uma figura de duas faces reversas, ao cumprir com sua obrigação de abrir as portas para o ano que se iniciava, visualizava, com uma face, o término e, com a outra, o começo; tinha, diante de cada uma das extremidades, o passado e o futuro, respectivamente. Janus serviu de inspiração para o nome do mês de Janeiro, que inaugura o calendário.
4
poder coexistir e até a conviver com a racionalidade moderna, desde que se apresentem como regularidade (jurídicas ou científicas) empíricas.
Ao abstrair do âmbito de controle racional os valores, as questões epistêmicas e filosóficas,
sob o argumento de que sua intrínseca relatividade histórica revelaria seu caráter irracional, o
positivismo conseguiu criar uma verdadeira barreira para revoluções e modificações,
comprometendo-se com a manutenção do status quo. Na medida em que não se questionam
os fundamentos, podem até ocorrer mudanças tópicas, mas os contornos principais
permanecem sempre intocados.
Em suma, o modelo positivista, aplicado ao direito, se caracteriza por refutar a inserção de
questões morais, filosóficas e epistêmicas no discurso jurídico propriamente dito, sob o
argumento de não ser possível exercer um controle idôneo sobre elas. A decisão acerca do
conteúdo das leis, por exemplo, não poderia ser controlado, senão sob uma perspectiva
meramente formal ou instrumental. Por isto, reconhece-se tal momento como detentor de um
cunho puramente moral ou político.
Um grande perigo do modelo positivista reside justamente no relativismo com que trata as
questões axiológicas, principalmente quando do procedimento legiferante. Diante da ausência
de parâmetros e paradigmas maiores, a nortear o processo substancial de feitura das leis,
termina-se por deixar margem para que a lei se valide tão só pela adequação formal com o
ordenamento, impossibilitando, no mais, o controle de qualquer conteúdo por ela esposado. E,
de fato, basta olhar a História para perceber que o positivismo foi capaz de legitimar regimes
totalitários sob o aparato de uma pretensa autoridade legal.
3 HABERMAS DIANTE DA MODERNIDADE E POSITIVISMO
A exposição supra delineada, acerca da modernidade e do positivismo, muito embora
panorâmica e restrita a alguns poucos aspectos de um fenômeno, que, em sua inteireza, é de
extrema complexidade, se faz essencial para a introdução do pensamento de Jürgen
Habermas. O discípulo da Escola de Frankfurt vai partir de um sentimento de inconformismo
com a ausência de nortes axiológicos no positivismo para estruturar toda a sua concepção
acerca da integração social. Neste ínterim é que versará sobre o papel que as leis deverão
assumir para se legitimarem como instrumento de coesão social.
5
A primeira ressalva que se há de fazer, contudo, é a de que Habermas não enxerga a
modernidade como um projeto em crise por conta de seu esgotamento. Pelo contrário, na
concepção habermasiana, trata-se apenas de uma etapa natural e intermediária da evolução da
sociedade. Como bem sintetiza Barbara Freitag (2005, p.163), para Habermas,
à semelhança da descentração que caracteriza, segundo Piaget o aprendizado da criança, as sociedades teriam capacidade de ‘aprendizado’, superando princípios de organização mais simples e menos eficazes em favor de princípios novos mais universais, mediante sucessiva descentrações. A superação do centramento no princípio do parentesco permite assumir a perspectiva do estado centralizado; a descentração desse princípio torna possível assumir a perspectiva do mercado (internacional), organizado em torno da relação trabalho e capital. A divisão local e internacional do trabalho impõe novas descentrações, que resultam no planejamento dos processos societários. A complexidade gerada, acompanhada da crescentre intransparência, impõe, por sua vez, a introdução de processos argumentativos (discursos), mediante os quais podem ser encontrados os novos princípios de estruturação universais ou universalizáveis das futuras sociedades. Ao que se constata, a conseqüência dessas permanentes descentrações é um aprendizado coletivo que se traduz numa capacidade de manejo e direcionamento maior das formações societárias, em maior diferenciação e autonomização de certas ‘esferas’ ou subsistemas.
A proposta de Habermas não é a de uma ruptura abrupta com a forma moderna de pensar o
mundo, mas, antes, de uma reciclagem. Aproveitando os pilares fundamentais –
principalmente o racionalismo –, Habermas pretende aperfeiçoar o sistema, o que acredita
possível mediante a criação de mecanismos com os quais controlar racionalmente também as
questões morais, filosóficas e políticas. Dito de forma sintética, Habermas pretende, sim,
superar a visão estreita do positivismo, mas não se desvincula, ao formular o modelo
subseqüente, do racionalismo que também se apresenta como traço da modernidade.
Sobre a crise da modernidade, Habermas a credita à inexistência de instâncias de autoridade
que sempre serviram para legitimar a estrutura social. Antes, o recurso à praxis, à religião ou
à metafísica serviam para validar qualitativamente determinadas decisões de suma
importância para a sociedade, como, por exemplo, definir quem manda (veja-se a investidura
divina dos monarcas absolutistas) ou determinar o conteúdo substancial das leis (vide o
jusnaturalismo ou a redescoberta do direito romano na idade média).
Nas complexas sociedades modernas, laicizadas e assentadas no relativismo axiológico,
perdeu-se a perspectiva de um acordo substancial sobre a finalidade da vida comum. Nas
palavras do próprio Habermas (2003, a, p.19):
Os vestígios do normativismo do direito racional perdem-se, pois, no trilema: após a implosão da figura da razão prática pela filosofia do sujeito, não temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição do homem ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas.
6
Firmada a crise da racionalidade, a aparente ausência de fundamentos substanciais abre
margem para alternativas que propõem a recusa da razão como um todo. Para evitá-las,
Habermas desenvolve a sua tese sobre a razão comunicativa, fundamentada no entendimento
intersubjetivo, o qual, desde que obtido a partir de uma situação dialógica ideal, teria o
condão de permitir a prevalência do melhor argumento.
Esta razão comunicativa habermasiana pretende ocupar o lugar da razão prática, ou seja,
almeja orientar as condutas humanas segundo critérios que possam ser reconhecidos como
bons. Isto, porém, não direciona no sentido de confusão entre os conceitos de razão prática e
de razão comunicativa. Ao revés, entre as duas figuras se estabelecem diferenças
fundamentais, às quais não se pode deixar de fazer referência.
Na essência desta distinção, está o papel da linguagem imaginado por Habermas, pois, como
informa Luiz Moreira (2004, p.100),
é através do medium lingüístico que a razão comunicativa se distingue da razão prática. A razão prática está associada a um padrão interpretativo que se entende a partir da singularidade. Mesmo quando busca a pluralidade, o modelo é o sujeito, ampliadas suas dimensões. [...] Por outro lado, a razão comunicativa insere-se no telos do entendimento a partir do medium lingüístico.
Habermas incorpora, em seu discurso, a idéia de viragem lingüística. Admite, assim, que a
estrutura do mundo é definida a partir da compreensão dos homens. Trata-se da própria
essência do homem: estar vivo significa compreender; nada existe além e nem aquém do que
o homem compreende. Nesta perspectiva, o papel e o status conferidos ao medium da
linguagem são modificados: a linguagem deixa de ser mero veículo do qual os seres humanos
se valem para transmitir conhecimento para assumir-se como principal promotora da
integração social; é na linguagem, e somente nela, que se formam as idéias, os conceitos e a
própria sociedade2.
Habermas concebe a integração social, nas sociedades secularizadas, como um momento
eminentemente lingüístico. “A prática ritual inquestionada, em sociedades de solidariedade
mecânica, é substituída por um sistema normativo e jurídico estabelecido conscientemente
pelo grupo, através do entendimento mútuo e do consentimento geral.” (FREITAG, 2005,
p.41). 2 Nas palavras do próprio Habermas (2003a, p.36): “Enquanto a linguagem é utilizada apenas como medium para a transmissão de informações e redundâncias, a coordenação da ação passa através da influenciação recíproca de atores que agem uns sobre os outros de modo funcional. Tão logo, porém, as forças ilocucionárias das ações de fala assumem um papel coordenador na ação, a própria linguagem passa a ser explorada como fonte primária da integração social.”
7
4 A ALTERNATIVA DE HABERMAS: A AÇÃO COMUNICATIVA
Dentro deste contexto, no qual a sociedade tem de ser concebida a partir da linguagem, é que
Habermas introduz sua idéia de agir comunicativo. Por meio deste, o entendimento a partir da
lógica do melhor argumento se torna a fonte primária de integração social. Desenha-se, assim,
uma situação em que “[...] os atores, na qualidade de falantes e ouvintes, tentam negociar
interpretações comuns da situação e harmonizar entre si os seus respectivos planos através de
processos de entendimento, portanto pelo caminho de uma busca incondicionada de fins
ilocucionários.” (HABERMAS, 2003a, p.36).
Essencial à ação comunicativa é a exigência de que os atores do diálogo adotem um enfoque
performativo, isto é, comprometido com a busca de um efetivo entendimento, mediante o
diálogo isento de qualquer forma de violência interna ou externa.
É só na qualidade de participantes de um diálogo abrangente e voltado para o consenso que somos chamados a exercer a virtude cognitiva da empatia em relação às nossas diferenças recíprocas na percepção de uma mesma situação. Devemos então procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir do seu próprio ponto de vista, proceder à universalização de todos os interesses envolvidos. [...] Aqueles que participam de um tal discurso não podem chegar a um acordo que atenda aos interesses de todos, a menos que todos façam o exercício de ‘adotar os pontos de vista uns dos outros’.” (HABERMAS, 2004, p.10).
“Sob essa condição, ofertas de atos de fala podem visar um efeito coordenador na ação, pois
da resposta afirmativa do destinatário a uma oferta séria resultam obrigações que se tornam
relevantes para as conseqüências da interação.” (HABERMAS, 2003a, p.36). Na medida em
que aquele que participa do diálogo assume uma postura comprometida com a obtenção do
entendimento é que, alcançado este, sua conduta tenderá a ser consensualmente aceita
(HABERMAS, 2003a, p.20-21).
Ressalta-se, porém, que a força normativa obtida a partir da razão comunicativa não é fonte
imediata de normas do agir, tal como a razão prática pretendia ser3. A razão comunicativa não
indicará necessariamente a melhor alternativa de todas, mas tão somente a melhor entre
aquelas que foram submetidas ao debate. É bem verdade que é requisito, para utilização desta
racionalidade, a adoção de um enfoque performático, que prime pela consideração do maior
3 “A razão comunicativa possibilita, pois, uma orientação na base de pretensões de validade, no entanto, ela mesma não fornece nenhum tipo de indicação concreta para o desempenho de tarefas práticas, pois não é informativa, nem imediatamente prática.” (HABERMAS, 2003a, p.21).
8
leque possível de possibilidades, considerando seriamente interesses alheios, mas isto, por si
só, não garante a obtenção de um resultado supremo.
A admissão de conceitos puros e plenos representaria verdadeiro contra-senso interno do
pensamento habermasiano, pois, acaso admitida a possibilidade de encontrar um resultado
supremo e inabalável para qualquer questão, terminaria por incidir em um inadvertido resgate
da instância de autoridade moral, sujeitando-se a críticas similares às dirigidas ao pensamento
jusnaturalista, que julga ultrapassado.
Por esta razão é que há, por parte de Habermas, a preocupação em refutar a existência de
qualquer instância ideal plena. Habermas acredita que toda proposição é, a princípio,
criticável e que só o entendimento é que a pode legitimar. O problema de conciliar um
entendimento que se propõe universal e a inexistência de uma instância legitimadora imutável
é resolvido por Habermas a partir do recurso à idéia de sua resgatabilidade nas situações
concretas4: o entendimento gerará uma validade falível, que transcenderá os limites concretos
do discurso, mas que, porém, ao ser alvo de objeções, deverá possuir argumentos que
mantenham, diante deste novo contexto, intacta a sua legitimidade.
O momento ideal de incondicionalidade está enraizado nos processos de entendimento factuais, porque as pretensões de validade põem à mostra a dupla face de Jano5: enquanto pretensões, elas ultrapassam qualquer contexto; no entanto, elas têm que ser colocadas e aceitas aqui e agora, caso contrário não poderão ser transportadas de um acordo capaz de coordenar a ação – pois não existe para isso um contexto zero. A universalidade da aceitabilidade racional asserida explode todos os contextos; entretanto, somente a aceitação obrigatória in loco pode fazer das pretensões de validade trilhos para uma prática cotidiana ligada ao contexto. (HABERMAS, 2003a, p.39)
Estas características da razão comunicativa é que lhe garantem o papel de elemento de
integração social, cuja importância se fará perceber principalmente em sociedades complexas
e secularizadas como as atuais.
Em sociedades pequenas, de pouca complexidade, geralmente estruturadas a partir de laços de
consangüinidade ou de vínculo afetivo, a integridade social é assegurada pelo fato de seus
componentes compartilharem um mesmo mundo da vida, isto é, os preceitos, crenças e
valores básicos. De forma mais específica, o conceito de mundo da vida pode ser entendido
como a instância que
4 Para desenvolver esta idéia, Habermas (2003a, p.33) recorre ao conceito de comunidade de interpretação ilimitada, de Charles Peirce, segundo a qual o falante, ao formular sua proposição, deve fazê-lo de forma que ela possa ser resgatada, no momento concreto, por meio de razões adequadas. 5 Sobre Jano ou Janus, vide a nota de rodapé nº. 1.
9
[...] traduz a vivência da sociedade a partir dos atores concretos, envolvidos em situações específicas, na sua práxis quotidiana. [...] O mundo vivido reflete, pois, o óbvio, o inquestionado, ‘o que sempre foi’, podendo, no entanto, modificar-se, na medida em que se modificam as estruturas da sociedade global (especificamente a econômica e a política, ou seja, as responsáveis pela reprodução material da sociedade). (FREITAG, 2005, p.43).
Segundo Habermas, é no mundo da vida que os atores podem ver concretizadas as situações
de fala; é ele também o pano de fundo interpretativo que se reproduz nas ações
comunicativas. Durante o agir comunicativo, os atores são envolvidos pelo mundo da vida,
que lhes fornece uma certeza imediata acerca dos elementos nele concretizados. “Isto porque
essa fonte de saber é tão intimamente original que nos remetemos a ela como se fosse algo
inquestionável, uma vez que não é falível e tampouco falsificável.” (MOREIRA, 2004,
p.113).
Isto não significa, porém, que o pano de fundo do mundo da vida seja inatacável. A certeza
irrefutável de determinados elementos advindos dele provêm simplesmente do fato de nunca
terem sido questionados, de serem repetidos sem qualquer reflexão. No momento em que se
toma consciência de uma determinada situação do mundo da vida, antes tida por inatacável, e
se lhe passa a exigir as razões que legitimam sua pretensão à aceitabilidade, desaparece aquela
certeza imediata própria de um consenso racionalmente motivado (HABERMAS, 2003a,
p.41). Abre-se, assim, margem para alterar, por meio do agir comunicativo, elementos do
mundo da vida.
Contudo, deve-se destacar que é justamente em razão da falta de reflexão acerca de
determinadas situações do mundo da vida que se alcança um curioso e importante
nivelamento da relação entre facticidade e validade. Consiste na eliminação da pressão de
experiências geradoras de contingências, isto é, de incertezas absolutas. Aquilo que sempre
foi seguido e que é aceito pelos participantes, mesmo sem nunca terem refletido acerca do
assunto, facilita a interação, estabelecendo certas expectativas de comportamento
inquestionáveis (pelo menos momentaneamente, enquanto não forem objeto de uma reflexão
séria). Este substrato de condutas sobre as quais não se direciona qualquer questionamento
facilita a integração social, pois afasta o perigo da dúvida sistemática sobre todo e qualquer
fato da vida6.
6 Nas palavras de Habermas (2003a, p.41-42), “Entretanto, há algo que lhe confere uma surpreendente estabilidade, imunizando-o contra a pressão de experiências geradoras de contingência: é o curioso nivelamento da tensão entre facticidade e validade: na própria dimensão da validade é extinto o momento contrafactual de uma idealização, a qual ultrapassa respectivamente o que é factual e o que poderia propiciar um confronto
10
Porém, se o pano de fundo consensual advindo do mundo da vida é capaz de, por si só,
promover integração social dos indivíduos em sociedades pequenas, de pouca complexidade,
quando se avança para estruturas sociais mais elaboradas, este consenso imotivado deixa de
ser suficiente. Passa a ser necessária a afirmação de uma autoridade externa, de algo que se
imponha e que permita e estimule a associação dos indivíduos.
Neste contexto é que, ao lado do mundo da vida, desempenhando também um papel de
estabilização de comportamentos, encontram-se as instituições arcaicas, traduzidas em
práticas e rituais elevados à condição de verdadeiros tabus. Também aqui se está diante de
certezas não problematizáveis, argumentos irrefutáveis, tal qual o mundo da vida.
Porém, de diferente em relação ao mundo da vida, as instituições arcaicas possuem o fato de
representarem uma imposição externa ao ator.
[...] a fusão entre facticidade e validade não se realiza no modo de uma familiaridade originária, através de certezas portadoras, que de certa forma carregamos nas costas na forma de mundo da vida, mas no modo de uma autoridade ambivalente que vem ao nosso encontro de forma impositiva. (HABERMAS, 2003a, p.43).
Trata-se de uma autoridade que se exerce, em grande parte, pelo fascínio e pelo medo, e que,
sendo própria de sociedades tribais menos complexas7, só pôde ser suplantada quando a
integração social passou a exigir pretensões de validades que pudessem ser submetidas à
possibilidade de dissenso.
Chega-se às sociedades secularizadas, que abandonaram a preponderância do fator religioso
ou da tradição institucionalizada. Com isto, tornaram-se extremamente complexas e plurais,
introduzindo a imanente possibilidade (rectius: probabilidade) de dissenso “[...] devido à
dificuldade de se canalizar as tomadas de posição entre diferentes alternativas possíveis.”
(MOREIRA, 2004, p.116). Eis o problema típico de sociedades secularizadas: o de como
permitir uma integração social legítima em ambientes nos quais não se pode mais se valer da
força autoritária de uma tradição ou de uma ordem sacra.
decepcionante com a realidade; ao mesmo tempo permanece intacta a dimensão da qual o saber implícito extrai a força de convicções.” 7 “[...] em instituições arcaicas, a validade confunde-se com o fático, pois, com o mito, que se efetiva através do rito, temos a fonte factual das certezas não problematizáveis, e, assim, as prescrições de conduta surgem da factualidade.” (MOREIRA, 2004, p.116).
11
Nestes termos é que desponta a importância do agir comunicativo, que Habermas indica como
única solução aceitável, porquanto comprometida com a busca de critérios de legitimação
racionalmente verificáveis.
5 DIREITO, AÇÃO COMUNICATIVA E PROCESSO LEGISLATIVO
A adoção do agir comunicativo como forma de integração social em ambientes plurais e
secularizados não é, contudo, nada simplória. Há sempre o grande risco de o dissenso
promover a não aceitação do agir comunicativo em detrimento do agir estratégico8, orientado
ao perfazimento de interesses puramente particulares. Conforme salienta o próprio Habermas
(2003a, p.46),
[...] a necessidade crescente de integração, nas modernas sociedades econômicas, sobrecarrega a capacidade de integração do mecanismo de entendimento disponível, quando uma quantidade crescente de interações estratégicas, imprescindível para a estrutura social, são liberadas. Num caso de conflito, os que agem comunicativamente encontram-se perante a alternativa de suspenderem a comunicação ou de agirem estrategicamente – de protelarem ou de tentarem decidir um conflito não solucionado. Parece haver uma saída através da regulamentação normativa de interações estratégicas, sobre as quais os próprios se entendem.
O Direito, como instituto por meio do qual se pode fazer uso legítimo da força para fins de
institucionalizar padrões comportamentais a serem respeitados independentemente do
consenso no caso concreto, assume relevante papel para a integração social. Mesmo os que
optam por uma atuação estratégica – e, portanto, vêem a legislação como uma série de óbices
à consecução de seus objetivos individuais – sentem a necessidade de uma regulamentação
obrigatória que, ao reduzir as possibilidades de escolha alheias, os resguarda.
Assim é que o Direito moderno se desenvolveu a partir da afirmação das regras do direito
privado, isto é, “dos direitos subjetivos privados, que foram talhados para a busca estratégica
de interesses privados e que configuram espaços legítimos para as liberdades de ação
individuais, constituem o núcleo do direito moderno.” (HABERMAS, 2003a, p.47).
Moldou-se, assim, um sistema jurídico que toma por referência a relação interna entre coerção
e liberdade. Se, de um lado, o Direito se baseia na coerção institucionalizada no Estado,
8 O agir estratégico é o daquele ator que se pauta não na obtenção do entendimento, mas na consecução dos seus fins e objetivos mera e imediatamente individuais e, por isso, egoísticos, bastante próprios de uma mentalidade capitalista.
12
detentor de seu monopólio, do outro, ele só se legitima porque existe para assegurar a
liberdade e os direitos subjetivos dos indivíduos.
Desta relação ambígua entre coerção e liberdade surge o duplo aspecto de validade do Direito,
compreendida em uma primeira dimensão designada de validade fática das normas, ou
eficácia social, e em um segundo feitio representado pela legitimidade, ou validade jurídica.
À validade fática corresponde a adesão concreta da sociedade às normas jurídicas. Do
monopólio da força pelo Estado deflui uma espécie de facticidade artificial, sustentada pela
juridicidade e pela conseqüente possibilidade de intervenção jurisdicional, substituindo,
assim, as formas arcaicas de sociabilidade. Nestes termos, o Estado moderno, mediante a
utilização do Direito, assume papel de grande responsabilidade na realização da integração
social.
De outra banda, o caráter de legitimidade das normas é inferido do processo legislativo a
partir da idéia de resgatabilidade discursiva de seus fundamentos. Esta legitimidade não
guarda nenhuma relação com a questão de sua eficácia. Nas palavras de Luiz Moreira (2004,
p.122),
[...] no entendimento habermasiano, é a suposição de legitimidade do ordenamento jurídico que garante tanto a validade social quanto a obediência fática aos seus preceitos. Isso porque o ordenamento jurídico carrega uma pretensão à legitimidade, ou seja, carrega uma marca de fundamentação racional oriunda da resgatabilidade racional de suas pretensões de validade. Quando o Direito positivo não se assenta sobre bases legítimas, fica a mercê do puro arbítrio [e, então, necessitará do recurso, com maior intensidade, à intimidação, ao poder das circunstâncias, aos usos e ao mero costume para estabilizar a ordem jurídica substitutiva9].
Por meio da idéia de resgatabilidade discursiva, portanto, é que Habermas julga ser possível
suprir a exigência pós-metafísica de legitimar racionalmente o Direito, garantindo-o como
instância de integração social. Se o Direito não puder ser auto-reconhecível, isto é, entendido
pelos cidadãos como fruto de seu próprio consenso, não poderá almejar legitimidade e
conduzirá a um processo de paulatino distanciamento entre Estado e cidadãos.
9 Neste sentido, vide a passagem do próprio Habermas em sua obra Direito e Democracia: entre facticidade e validade I (2003a), às p.50-51.
13
6 AÇÃO COMUNICATIVA E PROCESSO LEGISLATIVO
O local apropriado, no entendimento habermasiano, para o perfazimento da racionalidade
legitimadora do Direito encontra-se no processo legislativo. É em tal momento que se pode
almejar que os atores abandonem perspectivas individualistas (rectius: egoísticas) em favor de
uma mentalidade comprometida com a busca de ideais comuns, própria de membros de uma
comunidade política livremente associada e preocupada em resguardar as liberdades
individuais.
O processo legislativo habermasiano tem a tarefa de superar e estabilizar, na busca pela
concretização da vontade democrática dos cidadãos, uma tensão entre autonomia privada dos
indivíduos e autonomia pública dos cidadãos, ou, em outros termos, entre direitos humanos e
soberania política. Para cumprir tal desiderato, o processo legislativo deve se pautar, de um
lado, pela autoconstituição da liberdade comunicativa, isto é, pela livre composição dos temas
e argumentos que deverão fornecer as diretrizes dos discursos públicos a serem
institucionalizados juridicamente, e, do outro lado, pela correição processual, que significa,
em última instância, que
o procedimento jurídico deve compor-se de tal modo que sua abertura para a vontade democrática dos cidadãos assuma ares institucionais, isto é, devem ser institucionalizados procedimentos que afastem a contingência de decisões arbitrárias e que não permitam a constituição de uma normatividade jurídica autopoietica (MOREIRA, 2004, p.146).
Apenas “com o processo legislativo cercado por cuidados e prescrições em seus
procedimentos, temos um fundamento legítimo que aponta para uma base de validade
[legitimidade] do Direito instituído.” (MOREIRA, 2004, p.125). Garantida a correição
procedimental, o processo legislativo servirá de momento legitimador do Direito, ao traduzi-
lo como “uma autolegislação presumivelmente racional de cidadãos politicamente
autônomos” (HABERMAS, 2003a, p.54).
Destaque-se, por oportuno, que a menção a corrreição procedimental não significa apenas a
preocupação com a formalidade, mas, também e sobretudo, com a garantia de um diálogo
válido e legítimo. Assim, no processo legislativo, há de se resguardar tanto os direitos de
comunicação quanto os de participação política. Há que se garantir não somente o acesso ao
maior número de alternativas e argumentos envoltos no debate político a cada um dos agentes
como também a igual possibilidade de cada um deles efetivamente influenciar no resultado
final, a ser obtido mediante o consenso firmado sobre as melhores razões. Por meio do
14
procedimento legislativo é que se poderá assegurar que, de um lado, as liberdades sejam
preservadas e que, do outro, as normas produzidas possam ser referenciáveis aos seus
destinatários, de forma que eles possam se reconhecer nelas.
Somente assim se poderá pretender um debate político imerso nos parâmetros da
racionalidade comunicativa, compromissado com a perseguição de um entendimento
intersubjetivo e racional. É o que explica Habermas (2003b, p.316):
O nexo interno entre ‘direitos humanos’ e soberania popular, que buscamos aqui, reside, pois no fato de que a exigência de institucionalizar a autolegislação em termos de direito tem que ser preenchida com o auxílio de um código, o qual implica, ao mesmo tempo, a garantia de liberdades subjetivas de ação e de reclamação. Inversamente, a repartição igualitária desses direitos subjetivos (e de seu ‘valor equitativo’) só pode ser satisfeita através de um processo democrático que justifica a suposição de que os resultados da formação política da opinião e da vontade são racionais. Deste modo, a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que uma possa reivindicar o primado sobre a outra.
Os direitos humanos são, nestes termos, o que há de essencial nas condições formais para a
institucionalização jurídica do procedimento legislativo, por meio do qual se explicita a
soberania do povo. Desta composição entre os momentos da soberania do povo e dos direitos
humanos é que surge a legitimação do Direito em uma democracia, ao se permitir que “[...]
enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar
se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os
possíveis atingidos” (HABERMAS, 2003a, p.138).
Aliás, Habermas deriva desta consideração o seu princípio da democracia, o qual representa o
princípio do discurso vestido de sua forma jurídica, conforme leciona:
[...] introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A idéia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal – e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equiparar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário. (HABERMAS, 2003a, p.158).
Habermas leva tão a sério a preocupação com a legitimação do Direito por meio do auto-
reconhecimento dos cidadãos nas leis que não define apenas requisitos essências para o
15
momento específico de criação legislativa. Mesmo depois de criadas, enquanto vigentes, há de
ser possível proceder ao resgate discursivo das razões legais. Ou seja, existe a necessidade de
que a validade das leis seja reafirmada diante de objeções factuais que porventura se
apresentem contra os argumentos que anteriormente a validaram.
O simples fato de ser fruto de um procedimento legislativo não confere à norma jurídica um
grau de autoridade absoluta, mas tão somente relativa, pois a sua legitimidade sempre estará
aberta à comprovação fática. Com isto, introduz-se a possibilidade de falibilidade da norma e,
por conseqüência, de sua revisão ou revogação. Como bem afirma Habermas (2003b, p.325),
a realização paradoxal do direito consiste, pois, em domesticar o potencial de conflito embutido em liberdades subjetivas desencadeadas, utilizando normas cuja força coercitiva só sobrevive durante o tempo em que forem reconhecidas como legítimas na corda bamba das liberdades comunicativas desencadeadas.
Em outros termos, a norma, para continuar legítima, tem de ser resgatável no momento de sua
aplicação. A norma deve poder se afirmar, a partir da lógica do melhor argumento encontrado
no debate, diante de eventuais objeções, de forma a não poder ser alvo de dissensos
motivados.
Trata-se da aplicação da idéia de resgatabilidade do discurso ao processo legislativo.
Habermas, valendo-se o argumento da imanente e constante necessidade de legitimação, não
somente justifica a necessidade de atualizar as leis sempre que os valores históricos forem
modificados substancialmente, como também admite um sistema em que eventuais falhas
encontradas no processo legislativo possam ser sanadas.
Com isto, Habermas procura fornecer meios para evitar o que chama de colonização do
mundo da vida pelo sistema, dificultando, aos sistemas do poder burocrático e do mercado, a
deturpação do processo legislativo, para que seus interesses, muito embora ilegítimos, sejam
resguardados por meio da positivação.
O processo legislativo tal como concebido por Habermas permitirá ao Direito moderno, ao
partir da idéia de validade falível em busca do perfazimento da autolegislação, repelir a
colonização do mundo da vida que o sistema lhe tenta impor, pois como informa o próprio
Habermas (2003a, p.62-63):
os limites à autolegitimação do direito são tanto mais estreitos quanto menos o direito, tomado como um todo, pode apoiar-se em garantias metassociais e se imunizar contra a crítica. É verdade que um direito, ao qual as sociedades modernas atribuem o peso principal da integração social, é alvo de pressão profana dos imperativos funcionais da reprodução social; ao mesmo tempo, porém, ele se encontra sob uma certa coerção idealista de legitimá-los.
16
Por isto é que Habermas (2003a, p.57) trabalha, também na seara das leis, com o conceito de
validades falíveis, isto é, modificáveis a partir dos horizontes históricos e intersubjetivos.
Saliente-se, porém, que isto não implica a renúncia total e peremptória a uma esfera de
idealidade. Ao revés, Habermas aceita-a, muito embora adaptada, para, assim, chegar a uma
fórmula que indica não ser possível se chegar a uma estabilização de comportamentos
definitiva, mas tão somente transitória. “Como se trata de uma validade, temos o afastamento
de um dissenso generalizado, ou seja, por se tratar de uma validade precária, afasta-se o risco
de uma socialização totalizante que implica perda de identidade.” (MOREIRA, 2004, p.128-
129).
Habermas trabalha, portanto, com um conceito de idealidade fraca, concebida a partir de uma
racionalidade processual que permite a transcendência a partir de dentro do discurso. Nas suas
próprias palavras,
a tensão ideal que irrompe na realidade social remonta ao fato de que a aceitação de pretensões de validade, que cria fatos sociais e os perpetua, repousa sobre a aceitabilidade de razões dependentes de um contexto, repousa sobre a aceitabilidade de razões dependentes de um contexto, que estão sempre expostas ao risco de serem desvalorizadas através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que transformam o contexto. [...] Elas [as pretensões de validade falíveis] permitem entender por que não é possível estabilizar definitivamente expectativas de comportamentos sociais, que dependem de suposições de validade falíveis e precárias. Tal estabilidade é devida a realizações da integração social, as quais afastam constantemente o perigo atual de uma desestabilização através do dissenso fundamentado. (HABERMAS, 2003a, p.57).
A princípio, toda esta flexibilidade intrínseca ao modelo habermasiano poderia parecer
apresentar-se como algo contraditório ao ideal das leis, já que estas se almejam estáveis e
perenes. Porém, o próprio Habermas (2003a, p.59) é que afirma crer na positivação como
alternativa válida e necessária para a integração social, no que expõe as suas razões:
De um lado, a garantia estatal da normatização do direito oferece um equivalente funcional para a estabilização de expectativas através de uma autoridade sagrada. [...] o direito moderno permite substituir convicções através de sanções, na medida em que libera os motivos que acompanham a obediência a regras, porém impõe respeito. [...] evita-se uma desestabilização provocado por dissenso fundamentado, na medida em que os destinatários não podem questionar a validade das normas a serem seguidas. Esse ‘não-poder’ adquire, sem dúvida, um outro sentido, que é racional e teleológico, porque o próprio modo de validade se modifica. Enquanto, no sentido de validade de convicções ligadas à autoridade, a facticidade e a validade se fundem, na validade jurídica ambos os momentos se separam um do outro – a aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre os quais ela apóia a sua pretensão de legitimidade. Essa dupla codificação remete, de outro lado, à circunstância de que a positividade e a pretensão à legitimidade do direito também fazem jus à comunicação não circunscrita que expõe, em princípio, todas as normas e valores ao exame crítico. Os membros do direito têm que poder supor que eles mesmos, numa formação livre da opinião e da vontade política, autorizariam as regras às quais eles estão submetidos como destinatários.
17
Eis a importância do Direito, das leis e do seu respectivo processo de produção e atualização
para a integração social na perspectiva de Habermas.
7 CONCLUSÃO
Por meio do presente artigo, pretendeu-se delinear alguns dos principais contornos do
pensamento de Habermas acerca do processo legislativo e da importância que tem na
legitimação do Direito. Pretendeu-se fazer isto a partir da contraposição entre a sua concepção
e o modelo que ainda impera na modernidade.
Ao fim, espera-se ter podido demonstrar pelo menos parte da riqueza e da potencial utilidade
da idéia habermasiana de inserção da racionalidade comunicativa no âmbito jurídico, a
sobrelevar em importância principalmente na esfera do processo legislativo.
Enquanto o positivismo, ao apregoar o relativismo axiológico, trata uma enorme gama de
questões determinantes para a formação social como irracionais, e, portanto, não submissíveis
a qualquer instância de controle substancial efetivo, Habermas estrutura um arcabouço
alternativo mediante o qual, a partir da intersubjetividade, consegue resgatar a possibilidade
de ponderação de tal ordem de questões, sem, com isto, afastar-se do racionalismo, por meio
do recurso a instâncias de autoridade como a metafísica ou a praxis, por exemplo. A proposta
de Habermas é, pois, a de expansão do âmbito de alcance da racionalidade.
Ao adentrar o âmbito do Direito, Habermas localiza no processo legislativo a esfera precípua
para aplicação de sua racionalidade comunicativa. Cercando tal momento de uma série de
requisitos, acredita ser possível criar uma sistemática comprometida com o prosseguimento da
linha evolutiva da estruturação social, a direcionar para o perfazimento da Democracia.
Sem dúvida, as idéias de Habermas, ainda que, em um futuro venham a se mostrar totalmente
equivocadas, servem pelo menos para propalar um sentimento de esperança com o futuro da
humanidade.
8 REFERÊNCIAS
AMADO, Juan Antonio García. La filosofía del Derecho de Habermas y Luhmann. Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 1997.
18
______. Razón práctica y teoría de la legislación. Disponível em
<http://www.geocities.com/jagamado/pdfs/legislacion-ponencia.pdf>. Acesso em 01 jul 2007.
FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2005.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2 ed.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a.
______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II. 2 ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003b.
______. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. Acerca da legitimação com base nos Direitos Humanos. In: ______. A constelação
pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001.
LOPES, Reinaldo Lima. O direito na história: lições introdutórias. 2 ed. rev. São Paulo:
Max Limonad, 2002.
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas. 3 ed. rev. atual. e amp. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2007.