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Felipe Corrêa TEORIA BAKUNINIANA DO ESTADO Editora Imaginário Intermezzo Editorial

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Felipe Corrêa

TEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADO

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O

Filosofia e Política Libertárias

TEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADO

Coleção

Filosofia e Política Libertárias

D esde uma perspectiva histórica, Bakunin identifica que o Estado

moderno surgiu no século XVI, na esteira da Reforma, e que

se consolidou durante os séculos seguintes, processo este que se fi-

nalizou no bojo dos acontecimentos que decorreram da Revolução

Francesa do século XVIII. A Reforma proporcionou condições para

a institucionalização das relações de poder que se estabeleceram no

conflito entre as forças dos soberanos e as forças da Igreja; a Revolução

Francesa garantiu outra modificação significativa nas relações de po-

der, assegurando a dominação mais generalizada da burguesia que,

inclusive, utilizou-se do Estado para tanto em variadas circunstâncias.

Desde uma perspectiva lógica, Bakunin define o Estado em ter-

mos de natureza, caráter e função. Concilia, dessa maneira, a reflexão

hegeliana de juventude acerca da separação-oposição entre Estado e

sociedade civil com o papel do Estado na sociedade de classes, con-

cebido mais adiante como fruto de sua transição ao socialismo. Na

obra bakuniniana, o Estado moderno, em todas as suas formas ou

regimes de governo, é considerado um instrumento político de domi-

nação de classe que possui natureza dominadora, caráter de classe e

função de garantir a dominação de classe.

FELIPE CORRÊA

MARXISMO E ANARQUISMO

René Be r t h i e r / É r i c Vi l a i n

JUSTIÇA E DIREITO

UMA ABORDAGEM LIBERTÁRIA

Pio t r Kropo t k in / Rona ld Creagh

René Be r th i e r / Marco Cos su ta

Enr i c o Fe r r i / J ean - J . Gand in i

ESCRITOS CONTRA MARX

Mikha i l Bakun in

DEMOCRACIA E PODER

A ESCAMOTEAÇÃO DA VONTADE

Eduardo Co l ombo

SOLUÇÃO DO PROBLEMA SOCIAL

Pie r r e - Jo s eph Proudhon

A SOCIOLOGIA DE PROUDHON

Cé l e s t i n Boug l é

ANARQUISTAS, SOCIALISTAS

E COMUNISTAS

Err i c o Ma la t e s t a

TEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADO

Fe l i p e Cor r êa

No ano em que se celebram

os 200 anos de nascimento

de Bakunin, resgatar e com-

preender sua obra é uma tarefa

fundamental para abastecer a

teoria e a ação revolucionárias.

Bakunin foi um dos maiores

anarquistas da história que, além

de intervir diretamente nas es-

tratégias do movimento operá-

rio de sua época, influenciando

de modo bastante significativo

um setor amplo da classe traba-

lhadora de vários países, produ-

ziu uma obra extensa e pouco es-

tudada.

Neste livro, Felipe Corrêa

aborda um de seus aspectos: a

teoria do Estado. Partindo de

um levantamento bibliográfico e

da análise da produção bakuni-

niana, ele propõe elementos de

teoria e método para tratar o te-

ma e realiza um estudo do Esta-

do em duas chaves, a histórica e

a lógica, tomando em conta o pe-

ríodo anarquista de Bakunin

(1868-1876).

Parte notável deste legado po-

derá ser conhecida neste rigoroso

trabalho de Corrêa.

Rafael Viana da Silva

IE

IEditora Imaginário

Intermezzo

Editorial

3874_FELIPE CORREIA_CAPA TEORIA BAKUNINIANA DO ESTADO.pdf1

TEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADODO ESTADODO ESTADODO ESTADODO ESTADO

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Novembro de 2014

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

(Maurício Amormino Júnior, CRB6/2422)

C824t

Corrêa, Felipe. Teoria bakuniniana do Estado / Felipe Corrêa. -- SãoPaulo: Intermezzo / Imaginário, 2014. 136p. ISBN 978-85-68115-09-1

1. Anarquismo e anarquistas. 2. Bakunin, MikhailAleksandrovich, 1814-1876. 3. Estado. I. Título.

CDD-320.57

Intermezzo Editorial

(A. M. Perez Dantas-Editora-ME)Rua Espártaco, 456 - Vila Romana

Tel. 11-3864-324205045-000 São Paulo - SP

[email protected]

Projeto Editorial e Revisão

Plínio Augusto Coêlho

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Felipe Corrêa

TEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANATEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADODO ESTADODO ESTADODO ESTADODO ESTADO

Intermezzo

EditorialEditora Imaginário

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Para Flora.

Que as lutas do presente proporcionem

à sua geração um futuro melhor.

“Quem diz Estado, diz necessariamentedominação e, em consequência, escravidão;

um Estado sem escravidão, declarada ou disfarçada,é inconcebível; eis por que somos inimigos do Estado.”

Mikhail Bakunin

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SUMÁRIO

PrefácioRafael Viana da Silva

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Introdução45

Capítulo 1Teoria do Estado de Bakunin:

inventário e breve balanço47

Capítulo 2Fundamentos Teórico-Metodológicos

e Teses Histórica e Lógica55

Capítulo 3História do Estado

65

Capítulo 4Lógica do Estado

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PREFÁCIO

Rafael Viana da Silva

A vida de Mikhail Bakunin não apenas se confundecom um período decisivo da história da classe traba-lhadora, mas apresenta, ela própria, elementos que inter-feriram diretamente em seus rumos. Pois Bakunin, aomesmo tempo, analisou a realidade e nela interviu visan-do modificá-la. Em sua vida, não foi apenas um “homemde ação”, como costuma reificar a caricatura política queignora o potencial da análise bakuniniana; tampouco épossível afirmar que o russo tenha estado preocupadoapenas em compreender a realidade, sem traçar planospara transformá-la e colocá-los em prática.

Bakunin não apenas desenvolveu análises que ante-ciparam tendências importantes, tanto políticas quantoeconômicas, como contribuiu, de modo determinante,com o estabelecimento de um determinado campo ideo-lógico no interior do incipiente movimento operário queseria chamado, depois de sua morte, de anarquismo.

Segundo o historiador Max Nettlau (2008, p. 146):“O que é primordial para Bakunin não é um futuro anar-quista perfeito, do qual ele deixava a elaboração às gera-ções futuras […], mas sim os fundamentos de uma novasociedade”. Para o historiador, Bakunin “insiste na neces-sidade de um começo sólido e não confia nem na espon-taneidade, nem no acaso”. Descaracterizando os este-reótipos que tratam o revolucionário russo como um “es-pontaneísta” na ação política e um homem sem análise

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teórica própria, Nettlau chama a atenção para um aspectolargamente ignorado, que é a profundidade de seu pen-samento e de seu programa político.

Parte do ferramental analítico bakuniniano é aquiapresentada, numa de suas principais facetas, neste su-cinto, porém rigoroso trabalho de Felipe Corrêa. Julgonão ser necessário entrar nos detalhes daquilo que serádiscutido ao longo deste livro. Tentarei, minimamente,reconstituir, por meio da narrativa histórica, aspectos docenário político e econômico mundial em que a teoria doEstado de Bakunin foi desenvolvida. Tal tentativa justi-fica-se em razão de uma dificuldade que sempre senti aoler Bakunin, e que, creio, também, ser a dificuldade deoutros leitores, que é situar seu pensamento em seu devi-do tempo histórico, garantindo, assim, sua melhor eluci-dação.

Com isso, creio ser possível restituir e compreendero pensamento bakuniniano em seu contexto, sem reduzi-lo mecanicamente ao seu ambiente, mas, menos ainda,sem tratá-lo fora de seu tempo, caindo em perigososanacronismos históricos, que penso serem letais para acompreensão teórica. Minha tarefa, portanto, será ape-nas pincelar os contornos do fundo histórico em que Ba-kunin desenvolveu seu arsenal analítico e político, ga-rantindo ao leitor um quadro conjuntural mínimo.

Seguindo em grande medida os pressupostos do pró-prio Bakunin e de seu materialismo, original e singular,que tentam, na análise da dinâmica social, abarcar atotalidade das relações e reconhecer nesta a centra-lidade da economia, parece-me impossível, neste prefá-cio, não mencionar as transformações econômicas queocorriam na Europa e sua relação com os fatores sociais,políticos e culturais que as permeavam. Em diálogo coma trajetória do revolucionário russo, estes fatos serão

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apresentados nas linhas que se seguem, de maneira en-trecruzada, na intenção de apoiar historicamente a siste-matização da teoria do Estado de Bakunin reconstituídapor Corrêa.

ECONOMIA E SOCIEDADE: O CAPITALISMO

E OS TRABALHADORES NA EUROPA

Entre 1830 e 1848, a população europeia enfrentouum conjunto de fatores socioeconômicos negativos, queterminaram sendo bastante pesados para os trabalha-dores: diminuição nas colheitas, situação de miséria dooperariado, sem mencionar os limites, ou quase a com-pleta ausência, de canais formais de expressão dos traba-lhadores. Tudo isso transformava o continente europeunum barril de pólvora.

As intermitentes revoltas dos setores populares pre-encheram a paisagem histórica da primeira metade doséculo XIX. A partir do fim das guerras napoleônicas, éimpossível falar de política sem citar a crescente ex-pressão que os trabalhadores vão adquirindo nos cenáriosnacionais.

Não à toa, Bakunin (1976, p. 126), antecipando aeclosão das revoltas que tomarão o continente europeuem 1848, afirmará, confiante, seis anos antes, que: “estavelha toupeira, acabou o seu trabalho subterrâneo e irábrevemente reaparecer para fazer a sua justiça”. O russovai ainda mais longe, e, ao delinear os contornos dasmobilizações populares, diz que o “povo propriamentedito, toma por toda a parte uma atitude ofensiva; começaa enumerar os seus inimigos, cujas forças são inferioresàs suas, e a reclamar a efetivação dos seus direitos quetodos já lhe reconheceram”.

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O termo “as classes trabalhadoras” ou “a classe ope-rária” surge na linguagem política inglesa apenas ao fimdas guerras napoleônicas, terminadas em 1815, mas é em1848, a partir da chamada Primavera dos Povos, que otermo ganha a dimensão correspondente à sua realidadepolítica. Se o termo classe trabalhadora surge para desig-nar algo que se estava gestando a partir de tradiçõesplebeias e lutas anteriores, e que se mesclava na formaçãoe na experiência da classe, ele evidenciava também umantagonismo cada vez maior que se desenrolaria nos anosseguintes.

Os trabalhadores vão ganhando, em duras batalhas,espaços na arena política, e suas lutas, principalmente apartir de 1848, irão adquirir uma crescente fisionomiaclassista. 1848 marca, concomitantemente, ao menos naEuropa Ocidental, a resistência contra a política datradição e a força do direito divino, que sancionava, noplano das ideias, os regimes monárquicos. Resistênciaesta que estava marcada pela heterogeneidade, inclu-indo não apenas trabalhadores, mas setores médios emesmo burgueses, que se opunham aos projetos nobiliár-quicos e aristocráticos.

A oposição ao antigo regime era diversa e não selimitava à insatisfação dos setores populares. Ainda as-sim, um dos principais legados de 1848 foi a memória dabarricada, construída por trabalhadores pobres nas ruasque protagonizaram os principais episódios de luta contraos resquícios aristocráticos.

A Primavera dos Povos de 1848 espalhou-se por qua-se todo o continente europeu e modificou a fisionomia dojogo político da classe dominante. Apesar do ímpeto dostrabalhadores naquele movimento contestatório, quereunia, também, pautas liberais e nacionalistas, 18 mesesapós sua explosão, todos os regimes que foram derrubados

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pelo processo insurrecional estavam restaurados, com aexceção do regime francês. Tais processos foram paula-tinamente manobrados na direção dos interesses burgue-ses, que obtiveram a hegemonia do movimento utilizan-do o apelo nacionalista.

Bakunin viveu pessoalmente esta frustração e pôdecompreender, pouco a pouco, o dilema que atingia aclasse trabalhadora e que impunha a necessidade deuma agenda política própria. No desenrolar da Primaverados Povos, o russo envolveu-se, com vigor, não apenas nosepisódios insurrecionais de Paris e de Praga em 1848, mastambém na insurreição de Dresden, em 1849. Apesar deo povo estar na rua, participando diretamente do levanterevolucionário, tal ato revolucionário foi manobrado pe-los liberais, que canalizaram o ímpeto das ruas em pro-veito próprio. “Fiz tudo o que pude para salvar aquelarevolução que se arruinava e que obviamente morria”,disse Bakunin (2000a), frustrado com os resultados dolevante e ciente de que a pauta popular tinha encon-trado um obstáculo que deveria ser ultrapassado.

A reação conservadora esforçou-se não apenas parafrear as mudanças políticas liberais, mas, também, paraabafar o ímpeto revolucionário dos setores mais radi-calizados. Revolucionários como Mikhail Bakunin erampunidos e perseguidos sob o beneplácito de conserva-dores e liberais, da mesma maneira que os setores maiscombativos dos trabalhadores. Conservadores e liberais,se divergiam quanto a uma agenda única, uniam-sequando se tratava de conter os anseios populares radi-calizados no continente europeu, evitando, deste modo,que a revolta fugisse do controle das novas e velhas clas-ses dominantes.

Tal consenso levou o russo à prisão, logo após a in-surreição em Dresden. Foi a burguesia da Saxônia que,

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após o fracassado levante, entregou Mikhail ao batalhãoprussiano que o confinou, dando início à fase mais difícilde sua vida, em que permaneceu nas prisões e no exíliocom trabalhos forçados entre 1849 e 1861, quando con-seguiu fugir.

É neste momento de mudança política que as prin-cipais bases do capitalismo industrial são fincadas emsolo europeu. Este período pode ser dividido em duasfases. Uma, que vai fundamentalmente de 1760/80 a1870/80, período de formação, em que se opera um con-junto de transformações que assinalam o estabelecimen-to da sociedade capitalista burguesa, principalmente naEuropa; outra, a segunda, que abrange o período de 1870a 1914, caracterizada por um período de expansão destemodelo pelo mundo, atingindo um nível de concentra-ção e difusão internacional sem precedentes.

A vida de Bakunin foi integralmente vivida noprimeiro período, e foi dentro destes marcos que ele de-senvolveu análises sobre a formação dos tardios Estadosnacionais, o nascente movimento operário, o estabele-cimento do capitalismo industrial na Europa e as discus-sões estratégicas que eram debatidas entre os diferentesatores e grupos políticos.

Como bem alertado por Felipe Corrêa, apesar dosavanços teóricos e políticos nos anos anteriores, é bomrecordar que foi somente a partir de 1868 que Bakuninconverteu-se, de fato, ao anarquismo, e passou a apro-fundar seu quadro de referência para a análise da reali-dade.

Antes disso, o russo passou por um longo processode amadurecimento teórico e ideológico. Apesar de al-guns elementos libertários já estarem presentes em seusescritos anteriores a este ano, é somente quando se vin-cula aos setores organizados da classe trabalhadora e que

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analisa o pujante desenvolvimento industrial capitalistaque Bakunin tem condições de sistematizar uma teoriado Estado mais bem acabada.

As transformações no mundo do trabalho eram sen-tidas em todo o mundo, ainda desigualmente. O antigose mesclava com o novo; junto ao sistema industrial,conviviam formas de trabalho artesanal, manufaturas etrabalho em domicílio. Mesmo diante desta diversidade,a balança econômica obedecia cada vez mais à famintalógica da acumulação de capital.

O aspecto distintivo desta fase da industrializaçãofoi o surgimento da fábrica, uma unidade de produçãocentralizada e especializada, com equipamentos de pro-dução sob propriedade de um empresário, com a utiliza-ção do trabalho assalariado e o aprofundamento da divi-são de tarefas. Multiplicar-se-ão as fábricas, na Ingla-terra principalmente, mas também na Bélgica, na França,na Suíça e nos Estados Unidos.

De maneira desigual, este modelo será rapidamenteadotado pelo restante do mundo. A fábrica não foi, comosustenta o senso comum, fruto de um mero desenvol-vimento tecnológico, mas se relacionou diretamente aocontrole da mão de obra. Seu modelo mais imediato foi aworkhouse, ou, simplesmente, a oficina, onde pobres querecebiam assistência da Igreja eram obrigados a trabalharcomo forma de punição.

Nas palavras de Bakunin (2007, pp. 11, 15), era nafábrica que os trabalhadores eram “assassinados física emoralmente” e onde eram “forçados a trabalhar noite edia, com jornadas entre doze e quatorze horas de tra-balho”. As relações de trabalho à época e a vida cotidia-na eram profundamente instáveis e os trabalhadores vi-viam numa situação de permanente insegurança estru-tural. “O trabalhador está na posição de servo porque

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esta terrível ameaça de fome, que diariamente pairasobre ele e sua família, o forçará a aceitar quaisquercondições impostas pelos cálculos proveitosos do capi-talista, do industrial, do empregador.”

Junto à instabilidade econômica, o emergente qua-dro industrial trazia a urbanização e o inchaço das cida-des que, malgrado as condições adversas, facilitavam oselementos de uma consciência de classe cada vez maisevidente. As cidades ajudavam a uniformizar o modo devida da classe trabalhadora, que terminava sendo forma-tado por uma experiência comum. E, apesar de o mundocontinuar majoritariamente rural, a partir de 1850 ascidades cresciam com rapidez e deslocavam a importân-cia das decisões políticas para os meios urbanos, trazendotambém as periferias e cortiços, onde viviam as camadasmais pobres da sociedade. Neste período, houve um enor-me crescimento da população das cidades europeias:Viena foi de pouco mais de 400 mil habitantes, em 1846,para 700 mil, em 1880; Berlim foi de 378 mil, em 1849,para quase um milhão, em 1875; Paris, de 1 para 1,9milhão, e Londres, de 2,5 para 3,9 milhões entre 1851 e1881.

As cidades típicas daquele período reuniam umcentro de comércio, transporte, administração, e umamultiplicidade de serviços que atraíam uma grande con-centração de pessoas e facilitavam a circulação de traba-lhadores por realidades distintas. Diferentes, mas unidaspelo mesmo sistema de exploração e acumulação de ca-pital.

A segunda metade do século XIX foi o momento demaior migração dos povos na história, e isto se deve,fundamentalmente, às causas econômicas; a pobreza era,sem dúvida, a principal responsável por isso. Entre 1846e 1875, uma quantidade superior a 9 milhões de pessoas

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deixou a Europa e, na década de 1880, o fenômeno daemigração expandiu-se ainda mais, em direção aos paísessul-americanos. Da mesma forma que o capitalismo uni-ficava o mundo economicamente, ele proporcionavacondições, concomitantemente, para a união e a atuaçãointernacionalista dos próprios trabalhadores em dife-rentes países.

O desenvolvimento industrial capitalista não acon-teceu de maneira retilínea em todos os países, mas nempor isso apresentou-se de maneira menos acelerada, seobservado desde uma perspectiva global. A despeito dasparticularidades, este sistema integrava economicamen-te o globo terrestre de maneira aparentemente irreme-diável.

A Inglaterra foi a pioneira, e reuniu as condiçõesideais para o processo industrial. Já a França desen-volveu-se, em termos industriais, muito lentamente, ini-ciando este processo somente a partir de 1860. Nesteperíodo, ocorreu em solo francês um surto industrial,ainda que o país tenha consolidado sua industrializaçãoapenas no século seguinte. Um dos motivos desta len-tidão foi a existência de uma agricultura de pequenos emédios proprietários, com recursos mais bem distribuí-dos. Ou seja, a acumulação e o latifundiarismo no campoviabilizaram, com eficiência, o processo de centralizaçãoeconômica.

A Rússia, terra natal de Bakunin, se comparada àsdemais, demorou para industrializar-se. País dominadopelo czarismo e basicamente rural, foi apenas com alibertação dos servos, em 1861, e com a emergência deuma crescente, mas ainda minoritária burguesia, que aRússia abriu caminho para a industrialização. Mas aconsolidação industrial russa só se efetivará decisiva-mente pela intervenção do Estado, nos fins do século

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XIX, ou seja, 30 anos após a libertação dos servos.O caso alemão e o russo são exceções no que diz

respeito ao modelo de industrialização do continenteeuropeu, feito geralmente pela via do liberalismo econô-mico. Ao contrário da tradição francesa e inglesa, a mo-dernização alemã foi realizada de cima para baixo. Esteprocesso chamou a atenção de Bakunin, pela relaçãoestreita, notada pelo revolucionário, entre o desenvol-vimento industrial capitalista e a centralização estatal,cada vez mais íntima e interdependente.

Isso explica a análise de Bakunin que sustenta, naspalavras de Corrêa, “haver uma similaridade entre a di-nâmica do capital e a dinâmica do Estado”. Reside aíuma das ideias primordiais da atividade teórica do anar-quista russo, e que pode explicar corretamente este movi-mento econômico e político do século XIX. Ainda con-forme Corrêa, a análise bakuniniana, em sua fase de“maturidade” teórica, não considera o Estado como umainstituição isolada, mas como parte de uma dinâmicasocial mais ampla, que interfere no processo de acu-mulação capitalista como parte ativa do processo e nãoconstitui um mero efeito.

Conforme colocado pelo próprio Bakunin (2000b),“Marx [...] estabeleceu como princípio que todas as evo-luções políticas, religiosas e jurídicas na história são, nãoas causas, mas os efeitos das evoluções econômicas. Éuma grande e fecunda ideia.” Ainda assim, esta ideia éverdadeira somente se for considerada em “seu real as-pecto, isto é, de um ponto de vista relativo”. A política –e, portanto, o Estado – assim como a cultura, possuicondições de determinar dialética e dinamicamente aeconomia. Para confirmar esta tese de Bakunin, que meparece correta, é possível afirmar que junto à con-centração de capital, o continente europeu neste pe-

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TEORIA BAKUNINIANA DO ESTADO 19

ríodo acelerou a concentração política estatal, sinte-tizada na formação de diversos Estados nacionais, for-mando um verdadeiro sistema-mundo, não apenas capi-talista, mas capitalista-estatista.

O capitalismo foi criado como um sistema global emum continente, o europeu, e não em outro lugar, precisa-mente por causa do pluralismo político da Europa, quenão constituía nem fazia parte de um único império.(Hobsbawm, 1990, p. 37) É, portanto, a partir desta rela-ção íntima entre Estado e capitalismo, que Bakunin de-senvolverá a sua ideia da “dialética Estado-exploração”.Segundo compreende Bakunin, foi em função da plura-lidade de Estados que o capitalismo industrial pôde ar-raigar suas fundações em solo europeu.

O caso alemão é o mais evidente e fornece-nos osmelhores exemplos desta noção bakuniniana. A unifi-cação do Estado alemão, concluída em 1871, foi funda-mental para o processo de acumulação capitalista. Paraconseguir isso, o Chanceler de Ferro, Otto von Bismarck(1815-1898), coordenou o processo de unificação pormeio da diplomacia e da força. Promoveu guerras contraa Dinamarca (1864), a Áustria (1866) e a França (1870),tendo como resultado a centralização política e econô-mica (zollverein) no recente Estado alemão. Isso garantiuas condições de acumulação que podem explicar cor-retamente o posterior desenvolvimento econômico daAlemanha, que redundou no imperialismo político exer-cido por este país aos fins do século XIX e que causou asubsequente mudança no equilíbrio interno de forças docontinente europeu.

A consolidação do capitalismo industrial na Europaocorria numa relação dialética. Movia-se juntamente aoprocesso de centralização crescente dos Estados nacio-nais e da imposição dos interesses burgueses nestes Esta-

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dos, mas, de maneira alguma, isso era realizado sem gerarcontradições, as quais se traduziam, por exemplo, nacrescente organização do movimento operário nos prin-cipais centros industriais do velho continente.

A análise do Estado realizada por Bakunin, se obser-vada em toda a sua trajetória, permitiu não apenas en-tender este processo econômico e político, mas tambémapontar com maior definição quais seriam os caminhospara derrotar os inimigos de classe dos trabalhadores quese mobilizavam. Uma análise correta da sociedade daépoca certamente auxiliaria a definir uma prática coe-rente com os objetivos buscados.

LIBERALISMO, NACIONALISMO

E IMPERIALISMO

Entre 1830 e 1848, diversos movimentos políticoscontestatórios opunham-se às estruturas de poder vigen-tes em grande parte da Europa. O que os unia era, basica-mente, a oposição às estruturas e à política aristocráticado antigo regime. Conjugando, não sem contradições,ideais nacionalistas, liberais e socialistas, estes movi-mentos ocorriam em diferentes países, tais como França,Itália, Áustria, Irlanda, Alemanha, Suíça e Hungria, eeram marcados pela heterogeneidade política. A reaçãoaristocrática europeia a este movimento, conduzida peloCongresso de Viena e pela Santa Aliança, não conseguiuimpedir os movimentos nacionalistas e, tampouco pôdefrear a independência das colônias americanas.

Quem mais se aproveitou deste movimento foi aburguesia. O que houve, naquele período, foi a conso-lidação de uma pauta burguesa, que tomou a dianteirados Estados nacionais ou, quando não esteve à frente de

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sua direção, conseguiu impor sua agenda política. FelipeCorrêa demonstra que a percepção do revolucionáriorusso neste momento também caminhava para esta con-clusão. Comenta ele que, para Bakunin, o domínio, naEuropa, dos interesses e da política burgueses consolida-se essencialmente a partir de 1830, “principalmente naFrança, na Inglaterra, na Bélgica, na Holanda e na Suí-ça”. Em outros casos, se o governo político dos burguesesnão foi totalmente estabelecido, seus interesses sobre-pujaram todos os outros na maior parte da Europa, emoutros países, como “a Alemanha, a Dinamarca, a Sué-cia, a Itália, a Espanha e Portugal”.

Após o insucesso das revoluções de 1848, os gover-nos conservadores seriam logo restaurados, mas seriaimpossível à reação monárquica impor sua pauta semceder minimamente ao seu rival, o espírito liberal-bur-guês, que ansiava por determinadas reformas que o be-neficiassem. A despeito da influência conservadora, opanorama político europeu caminharia lentamente paraa consolidação das instituições liberais e o crescentedomínio burguês.

As burguesias liberais afastam-se cada vez mais dabandeira da revolução, pois esta identifica-se, progres-sivamente, com a democracia social e o socialismo. Amobilização incentivada pela burguesia visava apenasgarantir o statu quo e buscava, principalmente, contem-plar suas pautas nas agendas dos novos e velhos Estadosnacionais. Para isso, utilizariam, com bastante compe-tência, a causa nacionalista.

Deste ponto de vista, não se pode aceitar a tese deque a formação de Estados nacionais no século XIX éuma consequência “natural” do surgimento do “senti-mento” nacionalista, como difundido pelo mito liberalaté os dias de hoje. A formação dos Estados nacionais,

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de maneira geral, antecede a formação de um “senti-mento” nacional patriótico, a ponto de um conterrâneode Mazzini declarar, após a unificação italiana: “Nósfizemos a Itália, agora temos que fazer italianos”. (Hobs-bawm, 1990, p. 56)

Na verdade, o princípio da nacionalidade, que mu-dou o mapa da Europa entre 1830 e 1878, era diferentedo fenômeno já consolidado, do nacionalismo na era dapolítica de massas do século XX. A nação era uma novi-dade do século XIX, mas o nacionalismo teria de ser“inventado”, com base em tradições e folclores regionais,principalmente a partir de instituições estatais e cominteresses muito claros.

Antes de 1884, nação simplesmente significava “a-gregado de habitantes de uma província”, mas, depoisdeste período, começa a ser compreendida como “umEstado ou corpo político que reconhece um centro su-premo de governo comum”. (Hobsbawm, 1990, p. 27) Issojá evidenciava uma mudança na esfera pública, comclara interferência do processo de consolidação dos Es-tados nacionais europeus, que esteve intimamente liga-do a um discurso político e social que ganhou fôlego apartir de 1830, e que teve como principal lastro os inte-resses burgueses.

Nas fileiras de 1848 é possível encontrar, no interiordo discurso nacional, conceitos muito diferentes de na-ção, que iam desde o revolucionário-democrático até onacionalista. Esta abertura possibilitou que setores maisradicalizados apropriassem-se das lutas de libertação na-cional, opondo-se ao imperialismo desempenhado pelaspotências conservadoras. Enquanto que, para o revo-lucionário-democrático, o conceito central era o de so-berania do povo-cidadão e, consequentemente, a deter-minação de quais ferramentas deveriam ser mobilizadas

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para conseguir tal soberania, para o nacionalista, a for-mação de um Estado nacional era consequência de umacomunidade nacional já existente e que estaria, em tese,“dada” de antemão.

Bakunin, em sua primeira fase, percebe que a lutapor esta soberania popular não poderia ser realizada semque se diferenciasse a luta popular dos governos na-cionais. E que a luta pela soberania popular, levada acabo nas barricadas de 1848, tinha sido traída pelos inte-resses burgueses, que rapidamente converteram o patrio-tismo num instrumento de dominação, sob o jugo dosnovos Estados nacionais.

Por isso, Bakunin passará a defender a luta anti-impe-rialista, não como sinônimo de nacionalismo, mas tendo emvista a construção da autodeterminação dos povos. As lutasemancipatórias, que se espalhavam pelo continente europeunas décadas de 1840 e 1850, eram estratégicas para o russo.Esta noção, junto ao crescente contato com os círculossocialistas e espaços populares, o levará, mais adiante, auma posição antiestatista mais clara e bem definida. Parao russo, estas lutas deveriam ser transformadas em guer-ras civis e, assim, caminhar rumo à revolução popular.

Esse período é também fundamental na trajetória teó-rica de Bakunin. Nos anos de 1840 e 1850, a partir da análisedo Estado russo, ele começa a elaborar sua teoria do Estadoe, em consequência, abandona sua posição de democrataradical. Durante um certo tempo chegou a nutrir espe-ranças de que as transformações pudessem vir de cima parabaixo, visão que seria reforçada, em alguma medida, pelalibertação dos servos concedida pelo czar russo em 1861.

Entretanto, em seguida, esta visão, que já vinha sendoquestionada, foi completamente descartada. Poucos anosdepois, Bakunin, ainda na primeira metade dos anos 1860,passou a defender a ideia de uma revolução popular feita

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de baixo para cima em todos os países, já cônscio de que asrevoltas nacionalistas que grassaram durante as décadas de1840 e 1850 tinham sido, todas elas, asfixiadas pelo principalinstrumento de dominação das lutas populares: o Estado.

Um exemplo concreto desta posição de engajamen-to nas lutas nacionais contra a dominação externa reali-zada de baixo para cima pode ser encontrado no apoio deBakunin à insurreição polonesa.

O marco do intervencionismo das potências euro-peias monárquicas pode ser mais claramente identifi-cado na criação da Santa Aliança, em 1815, que visavareestabelecer o equilíbrio no mapa político europeu, fra-turado pelas guerras napoleônicas. A Santa Aliançarepresentava os governos monárquicos do velho conti-nente, e sua base política era constituída por duas forçastradicionais: o trono e o altar, ou seja, a monarquia e aIgreja. Os monarcas da Áustria, da Rússia, da Prússia ede outras nações europeias assumiam o direito de intervirem qualquer país que surgisse algum movimento inspi-rado no liberalismo democrático.

Os países que passaram pelas revoluções burguesasnão eram menos intervencionistas. Tanto a França quan-to a Inglaterra intervieram variadas vezes em possessõesno além-mar. A França do Segundo Império (1852-1870)interviu no Líbano, na Síria, no Egito, na Tunísia e noSaara. Instaurou protetorados na Nova Caledônia, naCochinchina e no Camboja. Já o avanço inglês será am-pliado na África ocidental e na África do Sul, execu-tando uma política de expansão territorial na Tasmânia(1825), na Austrália ocidental (1829), na Austrália meri-dional (1836), na Nova Zelândia (1839), em Hong Kong(1842), chegando, por fim, ao Canadá e à Índia.

A expansão territorial e política dos governos aris-tocráticos ou liberais implicava a contenção dos movi-

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mentos nacionalistas/emancipatórios e, de fato, reprimiaa população local. Como exemplo desta política imperia-lista, em 1830-1831, um levante polonês foi rapidamentesufocado pelo governo czarista russo. Em 1848, na ondada Primavera dos Povos, a sublevação da pequena Polô-nia (Malopolska), mais uma vez, fracassou fragorosa-mente. Em 1863, houve uma nova tentativa de liber-tação nacional, motivada, principalmente, pela convo-cação militar de jovens poloneses para servir no exércitodo czar. Visando arregimentar toda a juventude que pu-desse causar algum tipo de perturbação da ordem, o go-verno russo obrigou uma entrada em massa no exército,que deveria acontecer no início de 1863, e que terminousendo o estopim da insurreição proclamada pelo comitêcentral clandestino de Varsóvia, que havia tido contatocom Bakunin anteriormente.

Bakunin, à época, ainda se recuperava dos durosanos de prisão e trabalhos forçados no exílio (1849-1861).Sua fuga espetacular – em que percorreu mais de 30 milkm, saindo da Sibéria, passando pelo Japão, EUA, Pana-má, e chegando à Inglaterra – recolocou-o novamentena cena política, permitindo que aprofundasse seus vín-culos com a causa polonesa.

Cabe dizer que, com exceção de Bakunin, poucosforam os que apoiaram concretamente os insurretos polo-neses. Este vínculo havia se estabelecido praticamenteduas décadas antes. Desde 1844, o russo tinha se aliadoaos poloneses, em Versalhes, apoiando agitações locais,propondo uma aliança entre o povo russo e polonês con-tra o imperialismo e em favor da autodeterminação dospovos. Em 1847, naquela que seria sua primeira grandeintervenção política, discursou sustentando esta posiçãopara 1500 presentes, na comemoração da insurreiçãopolonesa de 1831, sendo por eles aclamado. Fato este que

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lhe custou, a pedido do embaixador russo, a expulsão doterritório francês.

Bakunin tentou, inclusive, participar da insurreiçãopolonesa de 1863, mas, juntamente com soldados insur-retos que levavam um carregamento de armas ao país,viu-se impedido de prosseguir, quando o capitão do na-vio em que estavam recusou-se a seguir viagem e acio-nou as autoridades suecas. O resultado desta insurreiçãofoi negativo aos revolucionários. De 1863 a 1865 os russosliquidaram os últimos redutos da resistência e depor-taram muitos oposicionistas para a Sibéria. A dissoluçãoda Polônia, que se converteu numa província russa, for-taleceria o estado czarista, principal representante da re-ação conservadora naquela região. Bakunin, em segui-da, permaneceu na Itália.

O revolucionário russo manteve sua posição anti-imperialista e sua defesa da autodeterminação dos povosaté sua morte. No entanto, com sua passagem ao anar-quismo, alguns anos adiante, estas noções seriam apro-fundadas e associadas a outras, socialistas, classistas,revolucionárias e internacionalistas, e a negação do Esta-do surgirá como desenvolvimento lógico de suas posi-ções.

Quando estourou a guerra Franco-Prussiana em 1870-1871, Bakunin, já anarquista, tomou a defesa do lado fran-cês. Em caso de agressão imperialista, sustentava, cabia aossocialistas revolucionários defender o povo do territórioagredido e condenar firmemente o belicismo do agressor.Entretanto, esta luta pela libertação da França, sustentavaele, não deveria tomar forma de defesa do Estado francês,mas impulsionar um processo de sublevação revolucionária.Sua posição – refletindo uma sistematização e um refi-namento de toda uma experiência anterior, baseada naobservação dos levantes nacionais e populares do período

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passado – era de que, diante da invasão prussiana, cabia aopovo francês, proletários e camponeses, formar um exércitopopular e classista, fora de toda centralização governa-mental e, buscando apoio dos povos oprimidos de outrospaíses, investir para transformar a luta de libertação nacio-nal em revolução social.

Em Bakunin, portanto, a defesa do anti-imperialismoe da autodeterminação dos povos não significa defender onacionalismo. Ao passo que este último envolve a neces-sidade de uma aliança de todas as classes de um país nacio-nalmente oprimido para libertá-lo do jugo estrangeiro, oanti-imperialismo bakuniniano caracteriza-se pela busca deuma aliança classista de todos os trabalhadores de um paísnacionalmente oprimido, procurando apoio dos trabalha-dores de outros países, inclusive daquele imperialista, visan-do não apenas a libertação do jugo estrangeiro, mas umarevolução social que acabe com a estrutura de classes dopaís oprimido e que tenha condições de internacionalizar-se.

No início dos anos 1870, as subsequentes agressões dosEstados nacionais europeus às nações menores e mais frágeisfarão com que Bakunin conclua que o processo de centra-lização e expansão política dos Estados mais fortes, queocorria paralelamente ao estabelecimento do capitalismoindustrial, envolveria-os inevitavelmente em conflitos comoutros Estados e com suas próprias populações. Tal processofecharia importantes vias de acesso ao socialismo e forta-leceria os traços mais marcantes do imperialismo que domi-nará o mapa político europeu. Este mesmo imperialismo que,tragicamente, impactou o continente africano e asiático, eque levou os países envolvidos, nas décadas seguintes, àPrimeira Guerra Mundial.

Com uma análise teórica já amadurecida, Bakunin(2008, p. 27) dirá, em 1871, que a conquista (expansão) “nãoé somente a origem, é também o objetivo supremo de todos

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os Estados, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, despó-ticos ou liberais, monárquicos ou aristocráticos, democrá-ticos e até mesmo socialistas”. Isso contextualiza a críticabakuniniana do “culto ao poder de Estado [...] que pou-co a pouco engendrou uma doutrina e uma prática buro-crática”, as quais acabaram com as conquistas do movi-mento contestatório de 1848.

Por isso o russo se colocará irremediavelmente con-trário ao “patriotismo burguês” e o “princípio das nacio-nalidades”, pois, ainda segundo Bakunin (2000c), “opatriotismo burguês não é, aos meus olhos, senão uma paixãomuito mesquinha, muito estreita, sobretudo muito inte-resseira, e profundamente anti-humana, tendo por objetivoapenas a conservação e a potência do Estado nacional”.Esta hegemonia cultural estatista, como sustenta FelipeCorrêa, contribui com a garantia da manutenção da ordeminterna dos Estados nacionais e, portanto, reprime e “paci-fica” o movimento classista dos trabalhadores nos territóriosnacionais, contribuindo para sua desorganização.

A perspectiva bakuniniana difere radicalmente dasposições assumidas por Marx e Engels diante da agressãoimperialista dos norte-americanos ao México e da agressãoprussiana à França.

O “Apelo aos Eslavos” de Bakunin, escrito em 1848, játinha sido atacado duramente por Engels (1994), em umartigo do ano seguinte, que sustentava o “etapismo”, demaneira ainda mais radical que Marx, acreditando, por isso,ser justa a ocupação do México pelos Estados Unidos, ejustificando que os “enérgicos ianques” tinham o direito deocupar a terra dos “mexicanos preguiçosos”. O que estavaem jogo, para Engels, era o desenvolvimento do capitalismoe da centralização estatal, que possibilitaria, segundo a tesemarxiana, as condições de emergência de uma classe ope-rária numerosa e centralizada.

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No caso do conflito entre a Prússia e a França, Marx(1999), apesar de sua posição pública distinta, escreveu aEngels, em 1870, que “os franceses precisam de uma sur-ra”. Para ele, com a vitória da Prússia, “a centralizaçãodo poder de Estado será útil à centralização da classeoperária alemã”, transferindo o centro de gravidade domovimento operário da França para a Alemanha. Marx,nesta carta, sustentava ainda que “a classe operária ale-mã é superior à classe francesa no plano da teoria e daorganização”, e que a preponderância “da classe operáriaalemã sobre a francesa, significaria simultaneamente apreponderância da ‘nossa’ teoria sobre a de Proudhon”.

Tais posições não apenas evidenciam diferenças deprincípios políticos, mas são fruto de análises divergentessobre o papel do Estado em relação à classe trabalhadora eao capitalismo. Como coloquei, em sua análise do Estado,Bakunin irá paulatinamente enriquecer suas posições, che-gando à maturidade em seus escritos anarquistas; neles,aparece muito clara a noção de que a apropriação do Estadopelos revolucionários constituiria um empecilho às possibi-lidades de revolução social e de socialismo. Esta análise nãoera realizada com base em princípios abstratos, descoladosda realidade – como alguns, de maneira superficial e mesmomal-intencionada, tentaram afirmar –, mas tomando comofundamento as mudanças políticas e econômicas que vi-nham ocorrendo na Europa. Ela era, portanto, fruto daleitura crítica das relações concretas da sociedade europeia.

As divergências entre as análises de Bakunin e aque-las de Marx e Engels revelar-se-ão agudas no contexto daAssociação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.), ouPrimeira Internacional, entidade cujas bases cresciam etornavam-se, progressivamente, a expressão de um mecanismode organização e mobilização operária em diferentes países.Estas diferenças analíticas derivavam em estratégias e táti-

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cas distintas, as quais terminaram sendo discutidas commaior precisão, e não sem intensos conflitos, nos espaçosorganizativos da crescente classe trabalhadora.

A ESTRATÉGIA REVOLUCIONÁRIA

DE BAKUNIN E A A.I.T.

Por conta de seu refúgio na península itálica, logoapós a derrota da insurreição polonesa, Bakunin aproxi-mou-se intensamente, entre 1864 e 1867, da realidadedos trabalhadores daquela região. A escolha desta loca-lidade não parece ter sido acidental, visto que ela pos-suía uma composição de classe – incluindo desempre-gados, camponeses pobres e sem terras, e também umproletariado miserável – que estimulava Bakunin a apos-tar as fichas num trabalho revolucionário.

Some-se a isto que as cidades-estados italianas pas-savam por um processo conturbado. A memória dos le-vantes por elas protagonizados na primeira metade doséculo XIX ainda estava fresca e, desde 1859, um novoprocesso de luta contra o domínio estrangeiro, lideradopor Garibaldi, ocorria na região. Com apoio de movi-mentos populares, os piemonteses entrariam em guerracontra o Império austro-húngaro e conquistariam o rei-no da Lombardia. Posteriormente, anexariam os reinos deParma, Módena, Romania, Toscana e o sul da penínsulaitálica.

Em 1864, o processo de luta contra o domínio estran-geiro não estava ainda decidido; a Itália iria unificar-se,definitivamente, apenas em 1870. Tomando em conta aposição de Bakunin, que enxergava nestes levantes apossibilidade de convertê-los num processo revolucio-nário, o futuro parecia estar aberto a um cenário revolu-

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cionário. Bakunin, diferente de Marx e Engels, possuíauma visão mais ampla do sujeito revolucionário; para ele,os mencionados sujeitos, que eram abundantes na Itália,deveriam somar-se ao proletariado urbano e assalariado,assim como a todos os setores da classe trabalhadora,tomada em sentido amplo, para promover uma trans-formação revolucionária. Para o russo, não era necessárioque os países “atrasados” passassem por uma etapa dedesenvolvimento industrial capitalista para que pudes-sem fazer uma revolução e chegar ao socialismo; ele nega,portanto, qualquer “etapismo”.

Pretendendo influir neste contexto, Bakunin fun-dará a Fraternidade Internacional, ainda em 1864. Já esta-va claro para ele que seria preciso aglutinar os elementospolíticos que pudessem estimular um programa que nãofizesse concessões às concepções nacionalistas, as quaisvinham terminando por derrotar os levantes popularesem prol dos interesses burgueses.

De acordo com o que aponta Corrêa, num manus-crito inédito sobre a vida e a obra de Bakunin:

Dentre os membros da Fraternidade estiveramitalianos, franceses, poloneses, suecos, dinamarque-ses, noruegueses, ingleses, belgas, espanhóis e russos,que puderam compartilhar posições políticas e ir for-mulando aquilo que seria, alguns anos depois da fun-dação, o anarquismo organizado internacional-mente. Opondo-se às posições de Mazzini em tornode um dogmatismo governamental e da defesa da pro-priedade e da religião, a Fraternidade propunha umprogra-ma socialista, internacionalista e, em grandeslinhas, libertário. (Corrêa, s/d)

Dois documentos de 1866 redigidos por Bakuninconstituem a base programática da Fraternidade; ambos

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intitulados “Princípios e Organização da Sociedade In-ternacional Revolucionária”, um deles é conhecido pelotítulo de “Catecismo Revolucionário” e o outro por “Or-ganização”.1

A Fraternidade constituía uma organização políticaque visava reunir a militância revolucionária interna-cional e promover seu programa entre as massas. Trata-va-se de uma organização secreta, não por caprichos oupeculiaridade, mas porque ser revolucionário, naquelecontexto, era transigir entre o legal e o ilegal. Para man-ter a segurança interna, Bakunin inspirara-se nas socie-dades secretas e carbonárias, cujas raízes alastravam-sepela península itálica. No entanto, diferente delas, acre-ditava, já naquele momento, que a conspiração desco-lada das massas não poderia ter resultados concretos,como sonhavam os blanquistas.

Em 1867, a Fraternidade teve a primeira grandeoportunidade de expor seu programa e buscar mais ade-rentes. Por conta das tensões entre Prússia e França, querefletiam a mudança no equilíbrio político europeu, arti-culou-se, na Suíça, um Congresso pela Paz, realizado emGenebra, em 1867. O congresso mobilizou amplamente aEuropa, com a presença de revolucionários nacionalistas,socialistas e da burguesia radical. Era um movimentoextremamente heterogêneo, cuja função seria a organi-zação de estratégias internacionais para a busca da paz eda autonomia para os povos ameaçados e dominadospelas potências expansionistas. (Cf. Monteiro, 2011)Conforme aponta Corrêa (s/d), este evento contou coma participação de seis mil membros e com a adesão de ou-tros milhares de pessoas.

Bakunin compôs o Comitê Central da Liga da Paz eda Liberdade, criada neste congresso, e redigiu o docu-mento Federalismo, Socialismo e Antiteologismo, como pro-

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posta de programa para a Liga. Este texto, como bemaponta Corrêa (2014a), constitui um marco de passagemna obra de Bakunin e pode ser considerado parte de suatransição ao anarquismo que se dará logo em seguida.Muito mais acanhada do que as pretensões da Frater-nidade, a Liga, durante o segundo congresso, em 1868,não aceitou este programa. Com isso, Bakunin e um gru-po de socialistas revolucionários dissidentes cindiram eaderiram em bloco à A.I.T.

Para Corrêa, este momento, em 1868, é fundamen-tal na trajetória política de Bakunin e sua teoria. Elesustenta, apoiado nas reflexões de René Berthier, que

o “período propriamente anarquista de Bakunin” en-contra-se entre 1868 e 1876. Sua passagem ao anar-quismo conclui-se com o ingresso na Associação In-ternacional dos Trabalhadores (A.I.T.), ou, PrimeiraInternacional, e com a fundação da Aliança da Demo-cracia Socialista (A.D.S.)”. (Corrêa, 2014b)

Os próprios termos anarquismo/anarquista só serãoutilizados nos anos seguintes; Bakunin irá utilizá-los so-mente nos fins de sua vida e, na maioria dos casos, optarápor chamar-se a si mesmo e aos seus de socialistas revolu-

cionários ou simplesmente coletivistas.O contato mais constante com a realidade dos tra-

balhadores – como no caso do movimento operário suíçoe belga, e, especialmente, o ingresso na A.I.T. – contri-buirá com o amadurecimento dos elementos filosóficos,teóricos e estratégicos de Bakunin, os quais ganharãomaior consistência. É importante destacar que as análisese as propostas levadas a cabo pelo círculo próximo aBakunin não eram fruto de um debate descolado da rea-lidade, mas se ligavam a uma experiência de classe que

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despontava em lutas populares de diferentes regiões domundo.

Conservando os laços políticos e a identidade queuniam Bakunin e seus íntimos na Fraternidade, a mi-noria que rompeu com a Liga da Paz e da Liberdadesomou-se a outros trabalhadores que faziam parte daA.I.T. e ambos, por meio desta fusão, deram corpo, aindaem 1868, à Aliança da Democracia Socialista (A.D.S.),aquela que deve ser considerada a primeira organizaçãoanarquista da história. Bakunin havia sido convidadopor Marx, anos antes, a integrar a A.I.T., mas foi somenteem 1868, um pouco antes de seu rompimento com a Liga,que este vínculo firmou-se; individualmente, num pri-meiro momento, e com os outros em seguida. A partir deentão, entrou, como ele mesmo disse, de corpo e alma nomovimento operário internacional, dedicando-se a eleaté seus últimos dias.

A A.I.T. havia sido criada em 1864, constituindo-se,portanto, paralelamente à Fraternidade. O crescimentodas trade-unions que ocorria na Inglaterra desde a dé-cada de 1840 surpreendia os socialistas do século XIX,que assistiam esta forma de organização despontar nocenário europeu. Ao mesmo tempo, o mutualismo fran-cês, em grande medida influenciado pela obra de Pierre-Joseph Proudhon, também vinha adquirindo força e ad-miração significativas.

Conforme sustenta Alexandre Samis (2014), taisforam os dois setores que constituíram a A.I.T., os tra-balhadores ingleses e os franceses, depois do encontroque aconteceu em Londres, em 1862, durante a Expo-sição Universal, na qual os operários deveriam emitirlaudos técnicos sobre o maquinário exposto. Foi esteencontro que possibilitou o confronto das duas realidadesdo mundo do trabalho e motivou a criação de um orga-

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nismo operário internacional. Com um outro encontro,realizado em 1863, alinharam-se as posições que termi-naram redundando, no ano seguinte, na fundação daA.I.T.. Criou-se, em seguida, um Conselho Geral, e deli-berou-se sobre a redação de seus estatutos. Esta fun-dação, pode-se dizer, traduzia em grande medida o avan-ço organizativo do proletariado urbano na era do capita-lismo industrial.

A entrada da A.D.S. na A.I.T. foi feita com o com-promisso de que ela fosse dissolvida, sendo que seus mem-bros deveriam compor uma seção da A.I.T. No entanto,apesar deste compromisso, a A.D.S. continuou a existirsecretamente. Acusa-se, com frequência, Bakunin de,com esta iniciativa, tentar cindir a A.I.T. ou impor umaditadura invisível e um programa “secreto” para estaentidade de massas.

Bakunin e os militantes da Aliança, já naquele mo-mento, tinham claro qual era o papel do nível de massas(A.I.T.) e da organização política (A.D.S.). Para eles, “osprogramas de uma e de outra, sem serem opostos emnada, são diferentes pelo próprio grau do seu desen-volvimento respectivo”. (Bakunin, 2000d) Ou seja, aA.D.S. não deveria, de modo algum, estabelecer umarelação de dominação em relação à A.I.T., pois “a su-prema direção tem que ficar sempre com o povo orga-nizado em federações livres de associações agrícolas eindustriais”. (Bakunin, 2000e) Na questão do ateísmo,por exemplo, mesmo que este fosse defendido pelos mili-tantes da A.D.S., como parte de seu programa, sus-tentava-se que não deveria ser imposto ao restante dostrabalhadores da A.I.T. Pelo contrário, a A.D.S. entendiaque a A.I.T. não deveria dividir os trabalhadores emtorno de questões filosóficas e políticas; o que unia ostrabalhadores, em suma, era a questão econômica.

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Esta posição diferia da estratégia dos comunistasalemães, dentre os quais se encontrava Marx, que, em-polgados com a crescente participação operária na vidaparlamentar, especialmente na Alemanha, desejavamtransformar a Internacional num partido político de mas-sas e eleitoral.

A noção bakuniniana de círculos concêntricos, quedistinguia os papéis do nível de massas (A.I.T.) e do nívelpolítico (A.D.S.), era, em alguma medida, original. Elanão constituía um “espelho” às avessas da estratégiamarxista, mas, buscando inspirações em tradições ante-riores, tinha, de fato, identidade própria. Conhecê-laimplica desconstruir outra afirmação, sem qualquer fun-damento histórico mais sério, que identifica na formaçãodas organizações políticas anarquistas uma suposta in-fluência “marxista” ou “leninista”. Estas posições ignoramo esforço permanente realizado por Bakunin e seu círculopolítico mais íntimo em formar organizações políticasrevolucionárias que atuassem com um programa deter-minado nas entidades de massa.

Cumpre também desconstruir o mito difundido poruma tradicional história das ideias políticas, que consi-dera a atuação do grupo de Bakunin minoritária ou sim-plesmente marginal em meio à classe trabalhadora daépoca. Tal posição não se sustenta factualmente.

Lembremos que as posições assumidas pelo setorpróximo a Bakunin na A.I.T., o coletivismo, longe deconstituírem um resultado mecânico das posturas filosó-ficas do revolucionário russo, expressaram e alimenta-ram-se de um movimento mais amplo, das lutas de classeque ocorriam em diferentes países e que se prolongariamnos anos subsequentes ao seu falecimento. É importanterecordar, ainda conforme Samis, que durante toda a suavigência a A.I.T. teve um programa federalista e não

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centralista; num primeiro momento, ela foi mutualista e,em seguida, coletivista. Ambas as estratégias estão, por-tanto, mais próximas das posições de Bakunin do quedaquelas de Marx.

Este movimento amplo da classe trabalhadora, secontou com a dedicada atuação de Bakunin na Inter-nacional para se conformar mais explicitamente, consti-tuiu-se simultânea e transnacionalmente, por uma rederadical, que abarcou não apenas a Europa, mas tambéma América do Norte, a América Latina e o Norte daÁfrica. (van der Walt e Hirsch, 2010)

A participação de Bakunin na A.I.T., além de con-tribuir com a conformação de um campo político comum,permitiu que ele aprofundasse sua teoria do Estado, con-trapondo-a às teorias dos comunistas alemães. Na reali-dade, apesar das preocupações comuns entre Bakunin eMarx, e mesmo apesar das concordâncias entre eles, aquestão do Estado foi certamente uma diferença central,pois envolvia uma implicação estratégica determinante.A conquista do Estado era ou não um caminho para osocialismo? Ao passo que o primeiro respondia que não,o segundo sustentava que sim. Portanto, compreender ateoria do Estado de Bakunin contribui enormementepara entender não apenas as posições teóricas e políticasdestes dois socialistas, mas também para adentrar o pró-prio campo dos conflitos da A.I.T.

Após a eclosão da Comuna de Paris, que nos seus72 dias de existência imprimiu profundas marcas na tra-jetória do movimento operário e socialista da época, aconjuntura foi modificada. A dificuldade de se realizarum congresso da A.I.T. naquele contexto de imensa re-pressão fez com que se organizasse, ainda em 1871, umaconferência em Londres que, sem representação dasseções, entre outros ataques aos anarquistas, decidiu

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pela constituição de um partido da classe trabalhadora.As divergências entre Bakunin e Marx, que cresciamprogressivamente, tornaram-se, com isso, irreconciliá-veis.

Em Haia, na Holanda, seria organizado o últimocongresso da A.I.T. antes de sua cisão. Em setembro de1872, os membros presentes iriam, também com poucarepresentação e sob a influência de Marx e do ConselhoGeral, expulsar Bakunin e James Guillaume, acusando-os de desrespeitar resoluções da A.I.T., especialmente asque haviam sido deliberadas em Londres no ano anterior.Assim, consumou-se a cisão. Com Marx e o ConselhoGeral permaneceu a minoria das seções e das bases, e atransferência do conselho para Nova York terminou porsepultar a associação. Com Bakunin e o setor que sereivindicava autiautoritário ficou a maioria das seções edas bases que, em seguida, deram continuidade à A.I.T.por mais alguns anos.

Na cidade de Saint-Imier, Suíça, os excluídos edissidentes de Haia foram convidados a assistir ao con-gresso promovido pelos operários do Jura, região muitoinfluenciada por Bakunin. Espanhóis, delegados italia-nos, militantes da Comuna de Paris refugiados na Suíçae representantes das seções francesas e americanas daInternacional integraram o histórico congresso que esta-beleceu os “últimos contornos” daquilo que, nos anosposteriores, ficaria conhecido como anarquismo e de suaestratégia sindical, fundando, a chamada InternacionalAntiautoritária.

Defendendo a autonomia e o federalismo das seçõesoperárias, o congresso recomendou como armas a soli-dariedade e a defesa mútua das seções operárias, assimcomo apontou para a necessidade de destruição de todo

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poder político, compreendido como “o primeiro dever detodo proletariado”. Condenou a ação parlamentar, sus-tentando que “os proletários de todos os países devemestabelecer, fora de toda política burguesa, a solida-riedade da ação revolucionária”. Ou seja, os trabalha-dores deveriam defender que sua atuação se desse pormeio de seus organismos econômicos. (Enckell, 2004, pp.40-41) Não há dúvidas de que o anarquismo e seu con-gênere, o sindicalismo de intenção revolucionária, en-contraram em Saint-Imier um marco definitivo, depoisdo qual, em termos globais, nunca deixariam de existir.

Neste processo, Bakunin teve um papel fundamen-tal. Realizou uma análise social crítica, em meio à qualse destaca sua teoria do Estado; ajudou a conformar umcampo político por meio de uma tendência estratégicano seio dos trabalhadores; por fim, rompendo com a he-rança blanquista, com o nacionalismo e com as socie-dades secretas, definiu, com originalidade, um novo ca-minho a ser percorrido, na relação dual entre organi-zações políticas e movimentos de massa.

Bakunin aprofundou e interferiu diretamente nasestratégias do movimento operário de sua época. Suapolêmica com Marx na A.I.T. representou, muito mais doque um choque de personalidades, a disputa de duaslinhas que se enfrentavam no debate sobre os melhoresmecanismos para realizar a revolução social e chegar aosocialismo. Sua morte, em 1876, não significou, de ma-neira alguma, a morte dos principais fundamentos teó-ricos e estratégicos que desenvolveu e ajudou a conso-lidar.

Sua teoria do Estado é parte relevante deste legado,a qual poderá ser conhecida neste rigoroso, ainda quebreve, trabalho de Felipe Corrêa. No ano em que se ce-

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lebram os 200 anos de nascimento de Bakunin, resgatare compreender sua obra é uma tarefa fundamental paraabastecer a teoria e a ação revolucionárias.

Nota:1 O primeiro deles é, frequente e equivocadamente, confundidocom um documento homônimo, de autoria de Netchaiev, escritotrês anos depois. (Cf. Avrich, 1987)

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TEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADO

Felipe Corrêa

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INTRODUÇÃO

Este pequeno livro faz parte das contribuições àcomemoração, em 2014, do bicentenário do nascimentode Mikhail Bakunin (1814-1876), um dos anarquistasmais destacados da história. Espero, com isso, contribuircom um aprofundamento não somente da teoria do Esta-do, tema central na produção bakuniniana, mas tambémdos aspectos gerais da obra deste autor, até hoje poucoconhecida e investigada.

Seu objetivo é apresentar os traços gerais da teoriado Estado de Bakunin, em seu período anarquista, apartir de uma abordagem imanente, que segue seus pró-prios pressupostos teórico-metodológicos e prioridadespara a compreensão deste objeto. Para tanto, parto de umconjunto de escritos sobre o tema e de uma leitura daobra bakuniniana, visando contribuir com o avanço nasdiscussões, solucionando alguns problemas e suprindodeterminadas lacunas, na tentativa de colocar mais umtijolo nessa longa parede que urge ser construída. Nãose trata, ainda assim, de um material definitivo, devi-damente aprofundado, mas de uma primeira aproxima-ção mais detida deste assunto.

Este tema merece interesse não somente em termoshistoriográficos – para que se conheça uma das críticasanarquistas clássicas do Estado moderno –, mas também,

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e principalmente, por oferecer elementos capazes de con-tribuir, ainda hoje, com a construção de um ferramentalcrítico para a interpretação da sociedade contemporâ-nea.

Para tanto, o livro divide-se em quatro capítulos: 1.)Realizo um inventário e um breve balanço acerca daprodução sobre a teoria do Estado de Bakunin em dife-rentes idiomas; 2.) Estabeleço alguns procedimentos teó-rico-metodológicos para o tratamento da obra do autor edeste objeto; 3.) Abordo o Estado desde uma perspectivahistórica; 4.) Abordo o Estado desde uma perspectivalógica, capítulo que constitui o cerne do livro.

Ao longo do texto, em notas, algumas vezes longas,apresento elementos das teorias do Estado de Pierre-Joseph Proudhon e de Karl Marx que, creio, podem auxi-liar, em função das similaridades e diferenças, na com-preensão da teoria bakuniniana do Estado.

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Capítulo 1

TEORIA DO ESTADO DE BAKUNIN:INVENTÁRIO E BREVE BALANÇO

Tomando em conta os textos que abordam a teoriado Estado na obra de Bakunin em português, espanhol,inglês e francês, o primeiro aspecto que chama a atençãoé a escassez, algo que reforça a tese de que, apesar desua relevância, “o anarquismo é pouco estudado e, mes-mo, pouco conhecido, dentro e fora da academia”. (Cor-rêa e Silva, 2013, p. 1)

Isso surpreende, ainda mais, se forem tomadas emconta algumas questões históricas. Bakunin certamenteé um dos maiores anarquistas da história (Schmidt e vander Walt, 2009, p. 14) e possui, conforme se verá, umateoria do Estado significativamente robusta, elaboradadurante parte considerável de sua obra. As disputas in-ternacionais em vários movimentos populares acerca dacompreensão do Estado e de seu papel nos processos detransformação social foram, e ainda são, frequentes. Amaior diferença entre anarquistas e marxistas, por exem-plo, encontra-se na maneira distinta que compreendemo Estado e nas estratégias que derivam desta compreen-são. (Berthier e Vilain, 2011) Ao passo que a escassaprodução de Karl Marx sobre o assunto é amplamente

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estudada, as posições de Bakunin sequer são conhecidasentre aqueles que trabalham com a teoria do Estado.

Na busca de fontes sobre a teoria do Estado emBakunin – realizada não somente por investigação biblio-gráfica, mas também por perguntas a pesquisadores e aestudiosos do anarquismo de diferentes países – chegueia um conjunto restrito de textos. Nenhum livro tratandoespecificamente do tema; somente artigos e capítulos delivros ou produções acadêmicas que, em algumas laudas,não aprofundam muito o assunto.

Foram 14 textos encontrados. Sete em português: ocapítulo “O Estado” do livro Bakunine, de Henri Arvon(Arvon, 1971); o artigo “Bakunin e o Estado Marxista”,de Gaston Leval, que compõe Os Anarquistas Julgam

Marx (Leval, 2001); os artigos “Elementos de uma Aná-lise Bakuniniana da Burocracia” e “Estado, Direito eLegitimidade”, ambos de René Berthier, o primeiro publi-cado em Marxismo e Anarquismo e o segundo em Justiça e

Direito: uma abordagem libertária (Berthier, 2011a, 2011b);o artigo “Bakunin Fazia Política?”, também de Berthier(Éric Vilain), em Marxismo e Anarquismo (Vilain, 2011);o artigo “O Estatismo na História: experiência e teoria”,da UNIPA, publicado na revista Via Combativa no 1(Unipa, 2009); o capítulo “O Estado para Bakunin”, domanuscrito inédito de Alex Bonomo (Bonomo, s/d).Quatro em francês: o capítulo “L’Etat” do livro La Pensée

Constructive de Bakounine, de Leval (Leval, 1976); o livroBakounine Politique: révolution et contre-révolution en Eu-

rope Centrale1 e o artigo “Bakounine, L’État et l’Église”,ambos de Berthier (Berthier, 1991, 2001); dois capítulos,“Socialisme et Federalisme” e “État et Révolution: unepolitique anarchiste?”, do doutorado de Jean-CristopheAngaut, Liberté et Histoire chez Michel Bakounine (An-

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gaut, 2005). Dois em inglês: o capítulo “Critique of theState” do livro Bakunin: the philosophy of freedom, de BrianMorris (Morris, 1993); o artigo “Anarchism, Marxismand the Bonapartist State”, de Saul Newman (Newman,2012). Um em espanhol: os capítulos “El Estado, la So-ciedad y la Religión”, “El Estado y la Moral” e “El Estadoy la Comuna” do livro Bakunin y el Socialismo Libertario

de Angel Cappelletti (Cappelletti, 1986).Analisando esta produção, nota-se que os autores

são, na maioria, franceses, e mais militantes do que aca-dêmicos. Confirma-se que Bakunin, assim como o anar-quismo em geral, possui pouco espaço nas universida-des.2 Há pouco material produzido originalmente emportuguês, inglês e espanhol. Parte relevante dos textosem português, de autores franceses, foi traduzida e publi-cada pela editora Imaginário, que tem contribuído so-bremaneira com a tradução e a publicação dos originaisde Bakunin e dos estudos em questão; ainda assim, de-ve-se apontar que, por inúmeras dificuldades, as ediçõesdestes estudos têm baixa tiragem e sua distribuição ébastante restrita. Nota-se, ainda, que a produção é re-cente e toda realizada dos anos 1970 em diante, sendoque a maioria dela concentra-se no período posterior aofim do chamado “socialismo real”.

Analisando o conteúdo dos textos, observa-se quehá alguns temas e posições mais comumente abordadosque outros. Dentre os mais frequentes encontram-se: adistinção entre Estado e sociedade, mostrando que oEstado não defende os interesses gerais; a afirmação deque o Estado implica dominação de uma minoria pri-vilegiada; a crítica do estatismo de Marx, mostrando aimpossibilidade de se construir o socialismo por meio datomada do Estado.

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Temas e posições que aparecem constantemente,mas nem tanto quanto os primeiros, são: a relação entre oEstado e a sociedade, em especial a economia capitalista,a Igreja e as ideias de maneira geral, negando o deter-minismo econômico, afirmando a possibilidade de agên-cia do Estado nestas relações e mostrando a relevânciado papel da Igreja em seu surgimento; a crítica da demo-cracia representativa, enfatizando que ela adapta-se bemao capitalismo e não soluciona a dominação estatista.

Em seguida, menos frequentes, encontram-se: arelação entre Estado e classes dominantes, mostrandoque o Estado funciona para a manutenção da desigual-dade de classes; os tipos de dominação envolvidos naprópria existência do Estado, dentre os quais estão ogoverno da maioria por uma minoria, a violência e aconquista; os mecanismos de força e legitimidade utili-zados pelo Estado para estabelecer sua dominação; ahistória geral do Estado, apresentando seu surgimento naEuropa entre os séculos XVI e XVIII.

Os menos abordados são: a burocracia do Estado,seu estabelecimento e funcionamento; a formação his-tórica do Estado nos casos específicos da Alemanha, daFrança e da Rússia.

Mesmo que aparentemente longa, essa lista incluiuma série de temas e posições que, na maioria dos casos,são mencionados e brevemente discutidos, mas que nãosão aprofundados, articulados e conectados entre si.

Em geral, não há explicações mais pormenorizadase não se mostra como esses temas e posições relacionam-se,principalmente em termos de causalidade. Isso certa-mente evidencia o fato de poucos pesquisadores estaremprofundamente debruçados sobre a obra de Bakunin,buscando produzir estudos de maior fôlego, assim como aprópria dificuldade de acesso aos seus escritos originais e

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traduções. Evidencia também, muito provavelmente,dificuldades com a própria forma expositiva do autor,que, apesar do conteúdo denso e coerente de seus escri-tos, não é realizada da melhor maneira, principalmenteno que tange à sistematização dos textos.

Ainda que devamos compreender as complicadascondições em que estes escritos foram produzidos, isso,sem dúvida, dificulta as investigações.

Parece óbvio que os estudos em questão variam emseu tratamento do tema; além disso, alguns são efeti-vamente melhores que outros. Não realizarei aqui umaanálise, ou mesmo um comentário, de cada um deles,mas somente apontamentos gerais.

Os textos que discorrem sobre a teoria bakuninianado Estado, na maioria dos casos, e apesar de suas virtudes,tenham eles foco numa abordagem histórica ou lógica,apresentam lacunas.

Desde uma perspectiva histórica, os estudos quetratam do surgimento e da conformação do Estado mo-derno não relacionam estes fenômenos com os casos con-cretos da Alemanha, França e Rússia, estudados comprofundidade por Bakunin. Estudos deste tipo poderiamnão somente contribuir com uma compreensão mais ade-quada da história do Estado moderno na Europa, mastambém extrair os elementos de teoria que estão por trásdo raciocínio histórico bakuniniano.

Desde uma perspectiva lógica, os estudos não arti-culam os temas e posições devidamente, de maneira aexplicar de modo mais completo a teoria do Estado deBakunin. Ainda que se afirme que o Estado implica do-minação, poucas vezes especifica-se como e por que eledomina. Mesmo que se coloque que o Estado possui umarelação com o capital, em geral não se esclarece querelação é essa e como ela se dá.

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Embora se enfatize que a economia não determinamecanicamente o Estado, não se elucida claramente estarelação entre economia e política. Permanece oculta arelação entre estrutura e agência (ação humana). Aindaque se afirme que o Estado favorece as classes domi-nantes, não se responde mais diretamente se é possíveluma classe inteira comandar o aparelho de Estado equais são as classes que historicamente têm adminis-trado o Estado. Burguesia ou burocracia? As própriasnoções de classes sociais, e mesmo de burocracia, não sãoadequadamente discutidas. Mesmo que se coloque queo Estado protagoniza diferentes dominações, em geralnão se especificam quais são estas dominações, comoelas funcionam, como se relacionam entre si e com ou-tros tipos de dominações que extrapolam o político.

Enfim, muitos outros limites poderiam ser apresen-tados. No entanto, cumpre questionar: não estariamesses limites relacionados à própria produção de Baku-nin? Não teria, ela mesma, certa incompletude e incoe-rência, que estaria sendo refletida nestes estudos? Háevidências para afirmar que não, em ambos os casos.

De acordo com Angaut (2005, p. 435), a teoriabakuniniana do Estado começou a ser elaborada a partirda análise do Estado russo, durante os anos 1840 e 1850,quando o autor ainda não era anarquista. Entretanto, foidurante os anos 1860, em especial em seu período anar-quista, que ele desenvolveu, por meio da análise de fenô-menos ocorridos em diversos países da Europa, uma teo-ria geral do Estado mais robusta, que, além de conterreflexões sobre aspectos gerais e particulares, possui fun-damentos capazes de subsidiar uma caracterização ade-quada do Estado.

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Considero que há uma teoria do Estado em Baku-nin, em especial em seu período anarquista, que possuidensidade e coerência, e, além disso, potencial expli-cativo. Entretanto, os argumentos para reconstituí-laestão dispersos em diferentes escritos e exigem um esfor-ço significativo para serem articulados e expostos.

Em conclusão, creio que, apesar de, por um lado,haver uma escassez de estudos sobre a teoria bakuni-niana do Estado e as investigações existentes apresen-tarem lacunas, por outro, as atividades recentes destespesquisadores, militantes e acadêmicos, têm sido impor-tantes para abordar o tema, que parece, conforme colo-cado, ter relevância não somente historiográfica, mas,também, capacidade explicativa para análises contem-porâneas.

Evidentemente, o presente trabalho, muito sinté-tico e mesmo incompleto, não pretende suprir todas aslacunas anteriormente expostas. Trata-se de um textobreve que, como afirmei, visa tão somente “colocar maisum tijolo nessa longa parede que urge ser construída”.Apontei todas estas lacunas, também, no intuito de con-tribuir com investigações posteriores.

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Capítulo 2

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS E TESES

HISTÓRICA E LÓGICA

Quando me proponho abordar adequadamente ateoria bakuniniana do Estado, parece-me imprescindíveldiscutir alguns fundamentos teórico-metodológicos, queutilizarei nesta empreitada.

Para estudar a teoria do Estado anarquista de Baku-nin, é indispensável adotar uma seleção temporal acer-tada de seus escritos, que não misture os textos pré-anar-quistas com os anarquistas. Para realizar uma abordagemimanente deste objeto – ou seja, analisar a teoria bakuni-niana do Estado a partir dos pressupostos teórico-meto-dológicos do próprio Bakunin –, é fundamental com-preender o quadro de referência teórico-metodológicoutilizado pelo autor para analisar a realidade social emgeral, e o Estado em particular, assim como a maneiraque ele ordena sua análise do Estado.

PERÍODO ANARQUISTA

Foi somente em seus últimos anos que Bakunin ado-tou posições teóricas e práticas que permitem situá-lo no

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campo anarquista. Segundo René Berthier, sua vida esua obra podem ser divididas em sete partes:

1.) 1835-1840 – Adepto da filosofia de Fichte,depois da de Hegel, Bakunin é, em política, um con-servador. 2.) 1840-1842 – Estudos de filosofia emBerlim, passagem do conservadorismo a uma perspec-tiva democrática; descoberta do socialismo. 3.) 1842-1848 – Rejeição da filosofia, convivência com os radi-cais alemães, agitação revolucionária dirigida aos es-lavos. 4.) 1848-1849 – Participação na Revolução de1848 em Paris, em Praga e em Dresden; defesa dacausa eslava. 5.) 1850-1861 – Captura, prisão, depor-tação para a Sibéria e fuga. 6.) 1862-1867 – Retomadadas atividades pela emancipação eslava; Bakunin en-volve-se progressivamente no movimento operáriona Itália; até 1868, defende a aliança do movimentosocialista com a burguesia radical. 7.) 1868-1876 –Período propriamente anarquista de Bakunin. (Ber-thier, 2008a, p. 6)

Considero, em acordo com Berthier, que o períodoanarquista de Bakunin encontra-se entre 1868 e 1876.Sua passagem ao anarquismo conclui-se com o ingressona Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.),ou, Primeira Internacional, e com a fundação da Aliançada Democracia Socialista (A.D.S.).

Por isso, para a presente análise, estabeleço umcorte temporal na obra de Bakunin, evitando um errometodológico comum, quando se fundem seus textos detoda sua vida, considerando-os unitários ou parte de umsuposto universo “anarquista”. A “teoria bakuniniana doEstado” aqui apresentada é, portanto, sua teoria anar-

quista do Estado, desenvolvida de 1868 em diante.

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Tal análise fundamenta-se, principalmente, em Es-

tatismo e Anarquia, de 1873 (Bakunin, 2003a) – um dosescritos mais importantes do autor –, e é complemen-tada, na medida da necessidade, por outros textos ecomentadores. Para este complemento bibliográfico, to-mo em conta seus escritos do período anarquista e, tam-bém, Federalismo, Socialismo e Antiteologismo (Ba-kunin, 1988), produzido entre 1867 e 1868, e que marcasua transição ao anarquismo; em termos de teoria doEstado, este escrito apresenta aspectos determinantesque serão aprofundados nos anos ulteriores.

QUADRO DE REFERÊNCIA

O quadro de referência utilizado por Bakunin, emseu período anarquista, para a análise da sociedade emgeral, e do Estado em particular, é chamado por ele de“materialismo científico”. (Cf. Berthier, 2012) Este con-junto de método de análise e teoria social oferece ele-mentos para que se aborde devidamente a relação entreEstado e sociedade e para que se observe que o Estadoinsere-se em uma dinâmica social mais ampla.

Na discussão que realiza do materialismo científico,Bakunin (2000c, 2000e) sugere que método de análise eteoria social têm de constituir um quadro de referênciaque não pode oferecer respostas de antemão, dadas a

priori. Este quadro deve, segundo sustenta, nortear aanálise de fenômenos sociais que, por meio de suas pró-prias características e dinâmicas, podem colocar em xe-que elementos deste arcabouço teórico-metodológico e,nesse caso, estes devem ser revisados e aperfeiçoados.

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O materialismo científico deve nortear, portanto,como quadro de referência, o início das investigações,ingressando em caráter de hipótese e podendo ser revisto,algo que parece fundamental para que este arcabouçopossa ajudar a compreender a realidade e não para que arealidade seja nele inadequada e forçosamente encai-xada.

Conforme coloca Morris (1993, p. 78): “como outrosteóricos do século XIX, Bakunin realiza uma distinçãoentre duas abordagens contrastantes e fundamentais darealidade, idealismo e materialismo, e sustenta enfati-camente que só a abordagem materialista é válida”. Ba-kunin (2000b, p. 14) mesmo reconhece que “os idealistasestão errados e os materialistas estão certos”, visto que“os fatos têm primazia sobre as ideias”. Torna-se fun-damental, para ele, abandonar o idealismo, em especialo de base metafísica e teológica, e buscar compreender asociedade a partir de seus fundamentos materiais, dohomem real, do ser vivo em sua totalidade, avançandopara além das aparências.

Por matéria, Bakunin (2000c) entende “a totali-dade, toda a escala dos seres reais, conhecidos e desco-nhecidos, desde os corpos orgânicos mais simples até aconstituição e o funcionamento do cérebro do maior gê-nio”. O homem, considerado desde esta perspectiva ma-terialista, não pode ser tomado como um movimento deconsciência pura, mas deve ser compreendido desde suas

relações materiais.

Para se conservar, tanto o animal como o indi-víduo devem comer, e, como espécie, devem se repro-duzir. Eis a primeira base real da vida, comum a todasas espécies animais desde as mais inferiores, até ao

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homem. Todas as outras faculdades e paixões só po-dem se desenvolver com a condição destas duas ne-cessidades primordiais estarem satisfeitas. Essa é a leisoberana da vida da qual nenhum ser vivo saberiasubtrair-se. (Bakunin, 2000c)

A base real do homem, sua condição de existência,assenta-se na necessidade de garantir os meios de suaexistência e reproduzi-la. Assim, a economia – organi-zação social dos meios para garantir as necessidadesnaturais da existência e da reprodução material dos ho-mens – torna-se central e fator determinante.

Segundo Bakunin (2000d), “Marx [...] estabeleceucomo princípio que todas as evoluções políticas, reli-giosas e jurídicas na história são, não as causas, mas osefeitos das evoluções econômicas. É uma grande e fecun-da ideia.” Entretanto, este princípio é verdadeiro “quan-do se considera sob seu real aspecto, isto é, de um pontode vista relativo”, visto que os fenômenos políticos, den-tre eles o Estado, assim como os fenômenos culturais,uma vez dados, têm condições de determinar a economianum processo dialético e, por isso mesmo, dinâmico. Ba-kunin (2011, p. 55) considera fundamental tomar emconta “a reação, todavia evidente, das instituições polí-ticas, jurídicas e religiosas sobre a situação econômica”.Se é verdade que “a miséria produz a escravidão política,o Estado”, também “a escravidão política, o Estado [...]reproduz e conserva a miséria, como uma condição desua existência”.

E não é somente esta capacidade de agência doEstado que se destaca, mas também o fato de ele possuircaracterísticas e dinâmicas próprias, as quais não podem

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ser reduzidas a uma dinâmica social de base estruturaleconômica.3

Nesse sentido, trata-se, desde os pressupostos domaterialismo científico bakuniniano, de abarcar na aná-lise da dinâmica social a totalidade das relações e, mes-mo reconhecendo a centralidade da economia, reconhe-cer a influência que nela exercem elementos políticos eculturais que, se por um lado são por ela determinados,por outro possuem condições de determiná-la. Mesmoreconhecendo na economia a estrutura determinante dosocial, Bakunin também concebe que a ação humanapossui condições de determinar esta estrutura, como co-loca Morris (1993, p. 81): “ele também deu [...] umaênfase importante no indivíduo como agente criativo,determinando e sendo determinado pelas condições na-turais e sociais”. Dessa maneira, descarta o determinismoeconômico e estrutural.

Além disso, nas explicações que realiza da socie-dade, sejam elas teóricas ou históricas, o autor consideraque as classes sociais e a luta de classes constituemaspectos fundamentais.4 Por meio de uma teoria das clas-ses sociais que será explicada adiante, Bakunin (1988,pp. 15-16) enfatiza que, na sociedade moderna, “apesardas posições intermediárias que formam uma transiçãoinsensível de uma existência política e social a outra, adiferença das classes é, todavia, muito marcada” e sus-tenta que uma “minoria comparativamente muito restri-ta de cidadãos privilegiados” contrapõe-se a uma maioriade trabalhadores das cidades e dos campos, condenadaao “trabalho forçado (pela fome)”, protagonizando umprocesso de luta de classes. As diversas classes sociais,que podem reduzir-se a duas, dominantes e dominadas,opressoras e oprimidas, são “diametralmente opostas umaà outra, e inimigas naturais uma da outra” e encontram-se

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em luta constante. Deve-se, assim, reconhecer, naanálise social, a capacidade de agência das classes, e quea experiência da luta de classes possui condições deinfluir na conformação de estruturas sociais.

Dessa maneira, analisar o Estado, tomando em contao materialismo científico bakuniniano, exige não so-mente que se abandonem as posições teológicas, meta-físicas e abstratas em geral, mas que se relacione o Esta-do, desde uma perspectiva materialista, com a totalidadesocial, a sociedade civil em geral, e com as classes sociaisem particular. Mesmo que se reconheça a centralidadeda economia, deve-se reconhecer, também, a dialéticaentre ela e outras esferas sociais, as quais possuem, con-forme colocado, capacidade de determiná-la. Deve-seconsiderar, inclusive, que há aspectos próprios do Estado,que são irredutíveis à estrutura econômica da sociedade.Recusa-se, desse modo, o determinismo econômico eestrutural vulgar e concilia-se economia, política e cul-tura, assim como estrutura social e agência humana.

ABORDAGEM HISTÓRICA E LÓGICA

Conforme aponta Berthier (2001, pp. 3-4), Bakuninexpõe sua teoria do Estado em duas perspectivas dis-tintas, uma histórica e outra lógica: “há, na realidade,dois registros a partir dos quais a questão do Estado éabordada: o registro histórico [...] e o registro lógico”.Mesmo que complementares, essas perspectivas – his-tórica e lógica, o filme e a foto, o diacrônico e o sin-crônico – são distintas, visto que a conformação históricade um fenômeno não necessariamente explica seu fun-cionamento lógico. Bakunin, ao discutir o Estado, “não

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se preocupa tanto em situar o evento no tempo”, mas,principalmente, compreender “o processo”; ou seja, háuma priorização do lógico em relação ao histórico.

Dessa maneira, em coerência com o procedimentometodológico adotado, concedo neste livro maior rele-vância ao estudo lógico do Estado do que ao histórico,respeitando a prioridade estabelecida pelo próprio Ba-kunin.

AS TESES HISTÓRICA E LÓGICA NA

TEORIA BAKUNINIANA DO ESTADO

Desde uma perspectiva histórica, Bakunin identifica que

o Estado moderno surgiu no século XVI, na esteira da Re-

forma, e que se consolidou durante os séculos seguintes,

processo este que se finalizou no bojo dos acontecimentos que

decorreram da Revolução Francesa do século XVIII. A Re-

forma proporcionou condições para a institucionalização das

relações de poder que se estabeleceram no conflito entre as

forças dos soberanos e as forças da Igreja; a Revolução

Francesa garantiu outra modificação significativa nas relações

de poder, assegurando a dominação mais generalizada da

burguesia que, inclusive, utilizou-se do Estado para tanto em

variadas circunstâncias.

Esta primeira tese bakuniniana será discutida pormeio dos fatos que marcaram a história deste período, osquais, tomando como pano de fundo a Revolução In-dustrial, relacionam-se à dinâmica das relações de poderque envolvem os agentes em geral e as classes sociais emparticular, nos marcos da Reforma e da Revolução Fran-cesa. Pretendo buscar respostas a duas questões. Quan-do e como surge e se conforma o Estado? Quais são osprincipais agentes e os grandes marcos deste processo?

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Não me debruçarei, ainda assim, na discussão que Baku-nin realiza do surgimento do Estado em países espe-cíficos, como Alemanha, França e Rússia.

Desde uma perspectiva lógica, Bakunin define o Estado

em termos de natureza, caráter e função. Concilia, dessa

maneira, a reflexão hegeliana de juventude acerca da sepa-

ração-oposição entre Estado e sociedade civil com o papel

do Estado na sociedade de classes, concebido mais adiante

como fruto de sua transição ao socialismo. Na obra baku-

niniana, o Estado moderno, em todas as suas formas ou

regimes de governo, é considerado um instrumento político de

dominação de classe que possui natureza dominadora, cará-

ter de classe e função de garantir a dominação de classe.5

Esta segunda tese bakuniniana será discutida a se-guir por meio de quatro argumentos causais que possuemencadeamento lógico: 1.) Para não ser conquistado emanter a ordem interna, o Estado precisa aumentar per-manentemente sua força; 2.) A dinâmica do Estado, emsuas distintas formas, está relacionada a diferentes tiposde dominação, na esfera política e em outras; 3.) Asdominações do Estado são levadas a cabo em função deinteresses das classes dominantes, sendo que a buro-cracia é uma dessas classes; 4.) Tanto o Estado quanto aburocracia tendem a conservar-se, principalmente emcaso de a dominação em nível sistêmico e estruturalperdurar; 5.) A abolição do Estado é imprescindível parao estabelecimento do socialismo e a garantia da eman-cipação popular.

Pretendo, neste caso, buscar respostas a cinco ques-tões. Mesmo relacionando Estado e dominação, como seexplica essa natureza dominadora do Estado? Por que oEstado domina? Ainda que relacionando Estado e classesdominantes, como se definem e explicam as classes so-ciais e o caráter de classe da dominação do Estado? Como

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FELIPE CORRÊA64

e por que a dinâmica do Estado contribui com a função

de manter a dominação de classe na sociedade? Quais sãoas implicações estratégicas desta análise teórica?

A partir destas teses e deste conjunto norteador dequestões pretendo, a seguir, realizar a discussão propostae demonstrar, em linhas gerais, como Bakunin concebe ahistória e a lógica do Estado.

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Capítulo 3

HISTÓRIA DO ESTADO

Bakunin desenvolve seu argumento acerca da con-formação histórica do Estado de maneira bastante con-cisa, na primeira das “Três Conferências Feitas aos Ope-rários do Vale de Saint-Imier” (Bakunin, 2008a), de1871, e toma por base dois acontecimentos que contri-buíram, a seu ver determinantemente, com o estabe-lecimento da modernidade: a Reforma e a RevoluçãoFrancesa. Afirma Bakunin (2008a, pp. 59, 71) nesse sen-tido: “dois fatos históricos, duas revoluções memoráveis”constituíram “o que denominamos mundo moderno, omundo da civilização burguesa”: “a revolução religiosado século XVI, conhecida sob o nome de Reforma, e agrande revolução política do século passado [XVIII]”, aRevolução Francesa.

Ele analisa a constituição e a trajetória do Estadoinseridas neste contexto, não somente pela avaliação dasforças em jogo no quadro de aprofundamento da Revo-lução Industrial, mas, principalmente, das relações entreas classes sociais no período.

Para o autor, até a primeira metade da Idade Média,o clero constituía a classe dominante; selecionava seusmembros entre todas as outras classes e possuía a proprie-dade das terras.6 O poder e os direitos de reis e impe-radores deviam, naquele momento, ser reconhecidos e

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consagrados pela Igreja. O período que se estende doséculo XII ao XV caracteriza-se por conflitos, cada vezmais marcantes, entre os soberanos e o Papa e, assim,entre poder político e poder clerical e, em especial apartir do século XIV, a burguesia começa a ascender emfunção das liberdades comunais e o desenvolvimentocomercial e industrial.

A Reforma, levada a cabo no século XVI, põe fimao crescente conflito político-clerical e constitui o atofundador do Estado moderno:

Dessa revolução [a Reforma] surgiu uma novapotência, não ainda a da burguesia, mas a do Estado,monárquico, constitucional e aristocrático na Ingla-terra, monárquico, absoluto, nobiliárquico, militar eburocrático em todo o continente da Europa, comexceção de duas pequenas repúblicas, a Suíça e a Ho-landa. (Bakunin, 2008a, p. 60)

A revolução proporcionada pela Reforma, na inter-pretação bakuniniana, possui como traço central a sepa-ração entre o poder político e o poder clerical e, com isso,a proclamação da “independência dos Estados” ou, maisespecificamente, o próprio nascimento do Estado mo-derno.

Com a Reforma, não se considera mais que o podere os direitos dos soberanos se originam na Igreja, mas queemanam diretamente de Deus; os soberanos passam, des-ta maneira, a ser absolutos. Bakunin (2008a, p. 61) sus-tenta que, neste contexto, há uma modificação nas rela-ções de poder e, sobre o antigo despotismo da Igreja, seestabelece o despotismo estatista, monárquico. A Igreja,antes senhora, passa a ser serva do Estado, constituindo

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um instrumento de governo nas mãos dos soberanos,processo ocorrido “não somente nos países protestantes,onde, sem excluir a Inglaterra, especialmente pela Igrejaanglicana, o monarca foi declarado o chefe da Igreja,mas ainda em todos os países católicos, sem excetuarsequer a Espanha”.

Saul Newman (2012, p. 11) afirma, ao refletir sobreesta posição de Bakunin, que, com a Reforma, “os so-beranos coroados da Europa usurparam o poder da Igreja,criando uma autoridade secular baseada na noção dedireito divino – daqui, o nascimento do Estado moder-no”.

Assim, a Igreja passa a contar somente consigo mes-ma e, para garantir sua continuidade, precisará de apoiodos soberanos. Para tanto, terá de contribuir com seusinteresses financeiros e políticos, além de demonstrar-sedigna de apoio. Antes da Reforma, em diversos momen-tos a Igreja havia colocado-se contra os soberanos; de-pois dela, na esteira deste processo, ela se torna, em todosos países, inclusive na Suíça, aliada do Estado e contráriaà burguesia e ao povo (proletariado e camponeses).

A Igreja se estabelece nesta relação por meio dalegitimação que promove do novo modo de dominação,visto que ela deu-se “por missão pregar às massas popu-lares a resignação, a paciência, a obediência consequen-temente, a renúncia aos bens e às fruições desta terra,que o povo, segundo ela dizia, deve abandonar aos felizese aos poderosos da terra, a fim de assegurar para si mesmoos tesouros celestes”. (Bakunin, 2008a, pp. 61-62)

Promovendo a legitimidade do status-quo – quejustifica progressivamente a dominação pela força ante-riormente estabelecida –, a Igreja cumpre uma funçãorelevante ao novo poder político e estabelece, assim, sua

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posição de submissão privilegiada no seio desta relação,num movimento relativamente similar ao que se passacom a nobreza.

Esta legitimidade é fortalecida, após a constituiçãodo Estado moderno, por meio da sustentação de umanova “moral de Estado”, que não somente legitima onovo poder político, gerando discursos consoantes comesta posição e subsidiando a conformação de leis – e,assim, transformando fatos em Direito (Leval, 1976, p.199) –, mas também justifica incontáveis crimes contraa humanidade cometidos em função de interesses esta-tistas. A universalidade e o absolutismo atribuídos aosEstados os colocam em conflito, e as guerras de conquistasão frequentes.

Assim como havia se passado com a Igreja, antes daReforma a nobreza (em especial os senhores feudais), emdistintas circunstâncias, colocou-se contra os soberanose constituiu, mesmo, uma força rival ou inimiga deles.

Com a Reforma, a nobreza também terminou numaposição de submissão privilegiada – Bakunin (2008a, p.62) fala na nobreza como “serva privilegiada” do Estado– em relação aos soberanos, principalmente por ter pre-enchido praticamente todas as funções militares e civisdo Estado e por ter constituído parte significativa dascortes.

Os senhores feudais, nobres, por mais que tenhampermanecido proprietários mais ou menos exclusivos daterra, perderam sua independência política. Ainda quesubmissos ao soberano, continuaram a explorar a bur-guesia e o povo, não mais em seu próprio nome e sobrespaldo do direito divino, mas em nome do soberano ejustificado pelo interesse do Estado.

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Esse caráter e essa situação particular da nobrezaconservaram-se quase integralmente, mesmo emnossos dias, na Alemanha. [...] Prova disso são asbarbaridades ignóbeis, atrozes, da última guerra[Guerra franco-prussiana], a formação bem recentedesse terrível Império cnuto-germânico, que é incon-testavelmente uma ameaça à liberdade de todos ospaíses da Europa, um desafio lançado a toda a huma-nidade pelo despotismo brutal de um imperador-poli-cial e soldado ao mesmo tempo, e pela estúpida inso-lência de sua canalha nobiliária. (Bakunin, 2008a, p.63, colchetes adicionados)

A Reforma, além disso, conforme coloca Bakunin,ao acabar com a onipotência da Igreja, pedra angular dopoder dos senhores feudais, da nobreza, favorece a bur-guesia que, conforme mencionado, há dois séculos vinhase fortalecendo.

As liberdades comunais e o desenvolvimento co-mercial e industrial dão força à burguesia, e, também,inversamente, o crescimento da burguesia reforça taisliberdades e desenvolvimentos.

A burguesia terminou entregue ao novo despotismodo Estado, agora regularizado, que passou a atingi-laprincipalmente por meio dos impostos, permanentementecrescentes, em vista de diferentes causas.

O aumento de gastos do Estado refletiu-se direta-mente nos impostos. Dentre os fatores que contribuíramcom este aumento, encontram-se: “as guerras [...] inces-santes, que esses Estados, tornados absolutos, fizeramentre si”; “a necessidade de manter grandes exércitospermanentes”; “o luxo crescente das cortes dos sobe-ranos”; “a necessidade de alimentar toda essa multidão

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privilegiada que preenchia as mais altas funções no exér-cito, na burocracia e na polícia”. (Bakunin, 2008a, p. 64)

Por mais que os impostos tenham afetado de ma-neira mais dura o povo, eles não aliviaram muito menosa burguesia, no período compreendido entre a Reformae a Revolução Francesa.

Diferentemente da Igreja e da nobreza, a burguesia,antes da Reforma, havia, por várias vezes, sido aliada dossoberanos na luta contra as forças clericais e feudais.Possuía, por este motivo, certo nível de independência eliberdade. No entanto, com a Reforma, e o processo des-crito de subordinação privilegiada da Igreja e da nobreza,os soberanos não precisaram mais da burguesia, que, porisso, perdeu independência e liberdade.

A situação do povo, ou seja, do campesinato e doproletariado, nesse contexto, também se modificou; cum-pre apontar que ele era o responsável pelo pagamento damaioria dos impostos.

Os camponeses da Europa central, na Alemanha, naHolanda e, em parte, na Suíça, envolveram-se, no iní-cio da Reforma, em um movimento emancipador, queterminou traído pela burguesia, amaldiçoado pelo pro-testantismo burguês e sufocado em sangue. Situação queterminou por vincular o campesinato à gleba – Bakunin(2008a, p. 65) sustenta serem os camponeses “servos dedireito, escravos de fato” – até 1789-1793 na França, 1807na Prússia e 1848 em quase todo o resto da Alemanha.

O proletariado das cidades também se encontravaem uma situação análoga à dos camponeses, dividindo-se em duas categorias: aqueles organizados nas corpo-rações e os não organizados. Os primeiros estavam imobi-lizados e oprimidos pelos patrões (chefes das corpora-ções); os segundos encontravam-se privados de todos osdireitos e eram explorados por todos.

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Na Europa, o período intermediário entre a Reformae a Revolução Francesa caracterizou-se pela consoli-dação do Antigo Regime (absolutismo e mercantilismo),pela expansão da civilização ocidental, incluindo as ini-ciativas de colonização, e pela ascensão da burguesia,em cujo processo contou determinantemente o forta-lecimento mercantil, mesmo que a servidão fosse aindaa condição da maioria dos camponeses; o poder do Esta-do, conforme apontado, foi se fortalecendo progressiva-mente.

Juntamente com a Revolução Industrial, a Revo-lução Francesa conclui a conformação da sociedade mo-derna, e, portanto, do Estado, ainda que, desde o séculoXVII, na Inglaterra, a burguesia tivesse se estabelecidohegemonicamente. Com a crise do Antigo Regime, essaera de revoluções possui como marca fundamental oestabelecimento mais generalizado da dominação bur-guesa.

Ao relacionar a Revolução Francesa com o esta-belecimento desta dominação, Bakunin (2008a, p. 69)nota que a trajetória do Estado foi, desde seu surgi-mento, permanentemente atravessada por cisões entreminorias governantes e maiorias governadas, num pro-cesso que, em seus termos, “a minoria desempenha opapel de martelo e a maioria representa a bigorna”.

Com a Revolução Francesa, explica ele, a condiçãoda burguesia modifica-se significativamente:

Até a grande Revolução, a classe burguesa, aindaque em grau menor que as massas populares, tinhafeito parte da bigorna. E foi por esse motivo que elafoi revolucionária. [...] A burguesia, representada,nessa luta contra a Igreja e o Estado, por seus maisnobres espíritos e por suas maiores qualidades, acre-

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ditou de boa-fé que trabalhava igualmente para aemancipação de todos. Os dois séculos que separamas lutas da Reforma religiosa daquelas da grande Re-volução foram o período heroico da classe burguesa.Tornada poderosa pela riqueza e pela inteligência,atacou audaciosamente todas as instituições respei-tadas da Igreja e do Estado. Ela minou tudo, inicial-mente pela literatura e pela crítica filosófica; maistarde, derrubou tudo pela revolta aberta. Foi ela quemfez a revolução de 1789 e de 1793. Sem dúvida só pôdefazê-la servindo-se da força popular; mas foi ela quemorganizou essa força e que a dirigiu contra a Igreja,contra a realeza e contra a nobreza. Foi ela quem pen-sou e quem tomou a iniciativa de todos os movimen-tos que o povo executou. A burguesia tinha fé em simesma, sentia-se poderosa porque sabia que atrás de-la, com ela, havia o povo. (Bakunin, 2008a, pp. 69-70)

A Revolução Francesa constitui, assim, um marcorelevante para o estabelecimento da dominação bur-guesa em todas as esferas, ainda que sua hegemonia nãotenha se consolidado integral e concomitantemente emtodos os países europeus. Na visão do autor, apesar deusufruir das forças populares, esta revolução política, ape-sar de ter trocado o poder político de mãos e favorecidoo estabelecimento da hegemonia da burguesia, manteveas estruturas de dominação, incluindo o Estado, mas,principalmente, a sociedade de classes e, assim, a explo-ração e a opressão dos trabalhadores, do povo em geral.

Para Bakunin (2008a, p. 93), o domínio, na Europa,dos interesses e da política burgueses conclui-se em 1830,“principalmente na França, na Inglaterra, na Bélgica, naHolanda e na Suíça”; em outros países, como “a Ale-manha, a Dinamarca, a Suécia, a Itália, a Espanha ePortugal”, ainda que “os interesses burgueses” tivessem

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“sobrepujado todos os outros”, “o governo político dosburgueses” não estava ainda estabelecido.

A partir dos elementos históricos apresentados porBakunin para a conformação do Estado moderno, podem-se extrair, com o auxílio de Berthier, elementos teóricospara se refletir sobre este processo.

Conforme apontado, para Bakunin, o Estado surgeno século XVI, no bojo da Reforma, a partir de umatransformação nas relações de poder. Pode-se identificar,nesta circunstância, uma determinada dinâmica: “gru-pos organizados combatem pela tomada do poder até queum deles, melhor organizado, torna-se o senhor e formaum ‘Estado regular’”. (Berthier, 2001, pp. 4-5) O Estadomoderno surge, nesta chave, como resultado da insti-tucionalização de uma relação de poder que se esta-belece no conflito entre as forças dos soberanos e asforças da Igreja. É por isso que Bakunin (2009a, p. 55)afirma que “o Estado é o irmão mais novo da Igreja”.

Nesta disputa, como uma importante maneira deaumentar seu poder, “se a parte vencedora for inteli-gente, ela concederá vantagens aos homens mais influ-entes do grupo vencido”; e é, em grande medida, o queocorre: “a vitória desse grupo atrai para o lado dos ven-cedores uma parte do grupo vencido”. (Berthier, 2001,pp. 4-5) Os soberanos, vitoriosos, trazem para seu lado,ainda que de maneira subordinada, não somente o clero,mas também a nobreza e, assim, constituem a burocraciade Estado.

No período entre os séculos XVI e XVIII, o Estadocaracteriza-se como instrumento político das classes do-minantes, visto que soberanos, nobreza e clero fazem usodele contra a burguesia, o campesinato e o proletariado.Também neste período, inicia-se uma dinâmica que exi-ge que outros Estados sejam criados e fortalecidos.

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Conforme se estabelece um primeiro Estado, argu-menta Bakunin (1988, p. 96), é natural que “os indi-víduos que se encontrem fora dele, ameaçados por eleem sua existência e em sua liberdade, associem-se porsua vez contra ele”. Outros Estados devem ser criados,se as populações não desejam ser conquistadas. A hu-manidade divide-se, progressivamente, em “Estados es-tranhos, hostis e ameaçadores uns aos outros”, os quaisimpõem a necessidade de “devorar para não ser devo-rado, conquistar para não ser conquistado”; “cada Esta-do, sob pena de perecer, deve, portanto, procurar se tor-nar o mais poderoso”. É este conflito que caracteriza,para o autor, o período subsequente.

Com a Revolução Francesa, segundo sua interpre-tação, as relações de poder são, nova e significativa-mente alteradas, e a burguesia estabelece, em geral, suadominação definitiva sobre o povo (campesinato e prole-tariado). Para isso, ela usufrui, em alguns casos, da estru-tura do Estado.

O Estado moderno, como um agente ativo, participado estabelecimento da dominação burguesa e do própriocapitalismo, consolidados plenamente apenas durante ocurso do século XVIII; na Europa, o Estado modernoterminará de conformar-se no século XIX, no contextodas unificações alemã e italiana.

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Capítulo 4

LÓGICA DO ESTADO

Bakunin abordou o Estado desde uma perspectivalógica em parte significativa de sua obra, em especial noperíodo anarquista. Em um conjunto relativamente am-plo de escritos ele explica o funcionamento do Estadomoderno. Estatismo e Anarquia, de 1873 (Bakunin, 2003a),uma das obras mais importantes do autor, será utilizadacomo base desta exposição, complementada na medidada necessidade por outros textos e, também, por algunscomentadores do autor e teóricos dos temas relacionadosao poder e ao Estado.

Explicarei, a seguir, por meio dos quatro argumentoscolocados anteriormente, a noção de que o Estado mo-derno é um instrumento político de dominação de classeque possui natureza dominadora, caráter de classe efunção de garantir a dominação de classe.

O AUMENTO PERMANENTE DE FORÇA

PARA GARANTIR A DOMINAÇÃO DE CLASSE

A função do Estado, de garantir a dominação declasse, implica diferentes tipos de dominação, o que faz

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com que Estado e dominação estejam permanente e in-dissociavelmente relacionados: “Quem diz Estado, diznecessariamente dominação [...], eis por que somos ini-migos do Estado”. (Bakunin, 2003a, p. 212) Compreen-der como e por que se dá essa associação direta entreEstado e dominação exige, entretanto, uma explicaçãomais pormenorizada.

O Estado não é uma instituição isolada, que fun-ciona somente em torno de si mesma e de modo autos-suficiente, mas constitui parte de uma dinâmica socialmais ampla, que implica relações com outros Estados etambém com outros agentes, não somente políticos, mastambém econômicos e culturais.

Para cumprir sua função, o Estado precisa aumentar

sua força permanentemente, em especial por dois moti-vos: para não ser conquistado ou dominado por outrosEstados, e para conseguir estabelecer a manutenção in-terna da ordem.

Entender a dinâmica das relações internacionaisentre Estados, que envolvem a conquista e a dominaçãonacional (imperialismo/colonialismo), implica conhecerpor que, para Bakunin, o poder político tende, assimcomo o capital, a concentrar-se e a buscar a hegemoniapor meio da constituição de impérios. Ele sustenta haveruma similaridade entre a dinâmica do capital e a dinâ-mica do Estado:

A mesma concorrência que, no plano econômico,esmaga e devora os pequenos, e até mesmo os médioscapitais, estabelecimentos industriais, propriedadesfundiárias e casas de comércio, esmaga e devora ospequenos e médios Estados, em proveito dos impé-rios. Doravante, todo Estado que não se contentar emexistir no papel e pela graça de seus vizinhos, pelo

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tempo que estes quiserem tolerar, mas desejar ser umEstado real, soberano, independente, deve ser ne-cessariamente um Estado conquistador. (Bakunin,2003a. p. 66)

Há, assim, na esfera política, uma dinâmica similaràquela que se passa na esfera econômica. Nesta última,a tendência à concentração de capital, existente emfunção de uma série de vantagens que as grandes em-presas possuem em relação às pequenas – técnicas, fi-nanceiras, organizativas etc. –, faz com que o grandecapital derrote o pequeno na concorrência. Com isso, osgrandes ficam maiores e os pequenos tendem a desa-parecer, favorecendo o processo de permanente concen-tração.

Bakunin vê na dinâmica política, em que o Estadoé agente principal, uma dinâmica similar. Para ele, osEstados nacionais estão em permanente disputa, e osgrandes Estados (impérios) tendem a conquistar ou sub-jugar os pequenos. Recorde-se, conforme mencionado,que a conquista, para o autor, é, em alguma medida, ob-jetivo de todos os Estados, tendo em vista a necessidadede “devorar para não ser devorado, conquistar para nãoser conquistado”. No conflito político permanente, osgrandes Estados possuem imensas vantagens em relaçãoaos pequenos, e, por isso, tendem a impor-se.

Visando participar adequadamente dessa dinâmica,os Estados têm de fortalecer-se militarmente, em especialpor meio dos exércitos, conforme explica Bakunin (2003a,p. 36): “O Estado moderno, por sua essência e pelosobjetivos que se fixa, é por força um Estado militar”, quedeve, necessariamente, “tornar-se um Estado conquis-tador; se ele próprio não se lançar à conquista, será con-quistado, pela simples razão de que, por toda parte onde

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a força existe, é preciso que ela se mostre ou aja.” OEstado moderno precisa ser grande e forte, de maneira asalvaguardar-se e impor-se nas relações internacionais.Assim como as iniciativas capitalistas tendem ao mo-nopólio, “o Estado moderno, militar por necessidade, trazem si a irresistível aspiração a tornar-se um Estado uni-versal”, chegar à hegemonia, considerada “a manifes-tação tímida e possível desta aspiração quimérica ine-rente a todo Estado”; para ele, “a impotência relativa, oupelo menos a sujeição de todos os Estados vizinhos, é acondição primeira da hegemonia”.

Entretanto, é evidente que não são todos os Estadosque possuem esta vocação para a conquista e, mesmo,que conseguem levá-la a cabo. Se, por um lado, os grandese poderosos Estados tendem a conquistar os menores, aestes últimos resta aumentar suas forças de defesa, natentativa de evitar ser conquistados. E se os grandesEstados não querem ser futuramente ameaçados, devem,eles também, buscar aumentar permanentemente suaforça.

“Ninguém contestará [...] que os grandes Estadosatuais têm por objeto, mais ou menos declarado, a con-quista”. No entanto, “os Estados médios, e sobretudo ospequenos Estados, dir-se-á, só pensam em defender-se, eseria ridículo de sua parte sonhar com a conquista”.Mesmo que não estejam em condições de levá-la a cabo,a conquista permanece como aspiração daqueles quegerem os Estados médios e pequenos: “aumentar, crescer,conquistar, a qualquer preço e sempre, é uma tendênciainerente a todo Estado, qualquer que seja sua extensão,sua fraqueza ou sua força, porque é uma necessidade desua natureza”. (Bakunin, 2008b, p. 27)

Consequências deste processo são os conflitos cons-tantes: “entre todos os Estados que existem, um ao lado

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do outro, a guerra é permanente e a paz apenas umatrégua”. (Bakunin, 2008b, p. 28) A tendência à concen-tração do poder político e essa “vocação imperialista”(Cappelletti, 1986, p. 222) do Estado moderno implicam,pois, conflitos constantes entre Estados nesta luta peladominação e a resistência nacional. Mesmo os momentosde paz não significam que tenha havido o fim da domi-nação.7

Compreende-se, assim, por que Bakunin sustenta anecessidade de aumento de força para precaver-se em rela-ção à conquista e à dominação de outros Estados, e comoesta dinâmica tem como consequência as guerras.

Além disso, o Estado moderno também precisa in-vestir na manutenção da ordem em seus próprios ter-ritórios. “Para manter a ordem interna”, coloca o autor,“para preservar sua unidade imposta pela coação”, o Es-tado moderno necessita não somente de “um grande e-xército”, mas também “de uma polícia, de uma buro-cracia gigantesca”. (Bakunin, 2003a, p. 87) Em circuns-tâncias de normalidade, a ordem é preservada pelos pró-prios mecanismos de legitimação produzidos e reforçados,dentre outros agentes, pelo próprio Estado.

Quando isso não é suficiente, a ameaça da vio-lência ou a própria violência desencadeada pelo Estadoem forma de repressão vem à tona e garante a preser-vação do statu quo. Esses braços policial-militar e buro-crático do Estado agem por meios mais ou menos violen-tos, a depender da circunstância, e seus agentes – poli-ciais, militares, governantes, juízes – encarnam direta-mente essa tarefa, controlando populações inteiras e ga-rantindo que não se coloquem em xeque os aspectos fun-damentais da estrutura social.

A preservação do statu quo envolve diretamente acontinuidade dos privilégios das classes dominantes. O

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Estado não apenas garante, mas proporciona, ele pró-prio, as condições para o monopólio do poder político pelaburocracia, que usufrui do privilégio de tomar as decisõesconcernentes às regras de funcionamento da sociedade,à solução de conflitos, à execução de deliberações, àcoação e à punição. Privilégio que, ao mesmo tempo,relaciona-se aos benefícios econômicos dos quais a bu-rocracia também usufrui.

Bakunin (2003a, p. 169) sustenta que o Estado tempor “efeito consolidar, direta e infalivelmente, os pri-vilégios políticos e econômicos da minoria governante ea escravidão econômica e política das massas populares”.É também o Estado que garante a exploração do tra-balho, por meio da submissão das massas, como destacaBakunin (2003a, p. 35, 228), ao afirmar que o Estadomoderno visa “a organização, na mais vasta escala, daexploração do trabalho, em proveito do capital concen-trado em pouquíssimas mãos”. Em razão de este capitalconstituir “a alma de todo Estado político”, principal-mente por financiá-lo, o segundo garante ao primeiro “odireito ilimitado de explorar o trabalho do povo”. Pro-prietários de terras e das indústrias capitalistas têm, des-te modo, garantidos seus privilégios na apropriação departe do produto do trabalho de camponeses, operários eoutros trabalhadores.

A manutenção da ordem, levada a cabo pelos bra-ços policial-militar e burocrático do Estado, de maneiramais ou menos violenta, implica, necessariamente, agarantia de continuidade da dominação e dos privilégiospolíticos e econômicos das classes dominantes. Ela envol-ve, de acordo com o que coloca Bakunin (2003a, p. 25),diretamente, o controle e a submissão das massas popu-lares: “os Estados não podiam e não podem encontraroutro terreno de entendimento senão na escravização

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premeditada das massas populares, que formam a base eo objetivo comuns de sua existência”. Assim se carac-teriza a “vocação escravista” (Cappelletti, 1986, p. 223)do Estado moderno.

A maior ameaça à manutenção da ordem é a revo-lução social. Ela implica não somente a “abolição de todaexploração e de toda opressão política ou jurídica, gover-namental ou administrativa, quer dizer, a abolição detodas as classes por meio do nivelamento econômico detodos os bens”, mas também, e imprescindivelmente, a“destruição de seu último bastião, o Estado”. (Bakunin,2003a, p. 73)

Em sua teoria da revolução, Bakunin enfatiza queesta deve ser obra do povo, ou seja, das classes domi-nadas, das classes oprimidas da sociedade. São somenteelas que, em razão de seus interesses antagônicos aos dasclasses dominantes, e por constituírem a ampla maioriada sociedade, podem protagonizar este processo, modifi-cando radical e violentamente a estrutura e as relaçõessociais, pondo fim às classes, à dominação e aos privi-légios de maneira geral.

É por esse motivo que Bakunin (2003a, p. 44) afir-ma: “De um lado, o Estado, de outro, a revolução social;estes são os dois polos, cujo antagonismo forma a própriaessência da vida social”. De um lado, oprimidos em bus-ca da transformação da sociedade, do fim da dominaçãoe dos privilégios de classe; de outro, o Estado, instru-mento político das classes dominantes; “último bastião”da dominação de classe. Trata-se de uma clara contradi-ção entre os oprimidos na busca pelo fim da dominação edos privilégios de classe e o instrumento político que osgarante. É evidente que, para manter a ordem, o Estadodeve impedir, a todo custo, uma revolução social nosmoldes bakuninianos.8

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Compreende-se, assim, por que Bakunin sustenta anecessidade de aumento de força para se garantir a manu-tenção da ordem, e como isso implica a manutenção dadominação e dos privilégios.

Portanto, para não ser conquistado ou dominadopor outros Estados e manter a ordem interna, o Estadomoderno precisa aumentar permanentemente sua força.Neste processo, envolve-se em conflitos com outros Esta-dos e com seu próprio povo:

Todos os Estados [...] estão condenados a umaluta perpétua: luta contra suas próprias populações,oprimidas e arruinadas, luta contra todos os Estadosestrangeiros, dos quais cada um só é poderoso sob acondição de que o outro seja fraco; e como só podemconservar-se nesta luta aumentando a cada dia suaforça, tanto no interior, contra seus próprios cida-dãos, quanto no exterior, contra as potências vizinhas– resulta disso que a lei suprema do Estado é o aumen-to de sua força em detrimento da liberdade interior eda justiça exterior. (Bakunin, 1998, p. 41)

Reforçando o argumento da necessidade constantede aumento de força, Bakunin (2008b, p. 28) refleteacerca da dinâmica entre as forças sociais conflitivas queconformam a sociedade e afirma que é da natureza des-tas forças que as maiores imponham-se às menores; mes-mo uma destas últimas “não pode suportar nenhumaoutra, nem superior, nem igual” e só se submete “quandoa isso é obrigada, quer dizer, quando se sente impotentepara destruí-la ou derrubá-la”.

Na dinâmica do Estado, isso implica que se umEstado não estiver aumentando permanentemente suaforça, outros Estados poderão estar, assim como os prole-

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tários, camponeses e marginalizados; há, deste modo, umrisco em relação a seu poder. Se o Estado quer assegurá-lo, externa e internamente, e assim cumprir sua função,deve assegurar um fortalecimento constante, sua maiorgarantia de que não será ameaçado por fatores externosou internos.9

Bakunin demonstra como o Estado moderno conse-gue, de fato, aumentar sua força. A forma mais adequadapara tanto é por meio da conciliação de suas vocaçõesimperialista e escravista para transformar a dominaçãoexterior e interior em força social; tais dominações cons-tituem suas fontes mais relevantes de poder.

Há pelo menos oito mecanismos que permitem queum Estado obtenha força e a aumente, os quais podemser reconhecidos nas análises que o autor realiza da Ale-manha, e também de outros Estados europeus: extensãodo território, tipo de território, presença em territórioslivres, recursos financeiros, recursos organizativos e mili-tares, extensão da população, apoio da população e limi-te da participação política da população. Discorro, a se-guir, mais detalhadamente sobre estes mecanismos.

Quanto maior o território de um Estado, mais forteele é, visto que possui maior quantidade de espaço e derecursos e, com isso, mais possibilidades de exploração deminas e de outros recursos naturais, maior espaço paraindústrias, agricultura, pecuária, moradia etc. As con-quistas são ferramentas importantes para a anexação denovos territórios ao Estado e, no caso disso ocorrer emregiões desenvolvidas, o Estado contará ainda com ou-tros tipos de recursos, inclusive humanos, que tambémpoderão ser explorados.

No caso do fortalecimento do império germânico,Bakunin (2003a, p. 133) aponta que as ações de con-quista foram fundamentais, não somente para o aumento

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de seu território, mas também para a apropriação deoutros recursos: “ele obteve brilhantes vitórias sobre aDinamarca, a Áustria e a França”; apoderou-se “de todoo armamento desta última e de todos os seus estoquesmilitares”, obrigou-a “a pagar-lhe cinco bilhões” e ocu-pou “contra ela, ao anexar a Alsácia e a Lorena, tantosob o aspecto defensivo quanto ofensivo, uma posiçãomilitar de primeira ordem”. Principalmente por meio daGuerra franco-prussiana, a Alemanha obteve não so-mente a (re)conquista de um território, expandindo as-sim o seu próprio, mas também a apropriação de recursosmilitares (armas) e financeiros (o dinheiro cobrado daFrança ao fim da guerra).

Dependendo do tipo de território que se possui ouconquista, há maiores ou menores possibilidades de au-mento de força. Quanto maiores forem os recursos deuma região, maior será a força do Estado que a admi-nistra. Bakunin (2003a, p. 117) reflete particularmenteacerca das vantagens que possuem as regiões portuáriascom acesso aos oceanos: “nenhum Estado pode elevar-seao nível de grande potência”, sustenta, “se não possuirvastas fronteiras marítimas, que lhe assegurem comu-nicações diretas com o mundo inteiro e permitam-lhetomar parte, sem intermediário, na evolução do mundo,tanto no plano material quanto no plano social, políticoe moral.” Para ele, o acesso aos mares garante deter-minadas vantagens, que podem concretizar-se com asnavegações e o comércio marítimo.

Oceanos e mares fazem parte de “territórios livres”do mundo que ainda não foram privadamente apropria-dos, assim como a atmosfera e os ares; no entanto, anavegação e o comércio marítimo ofereciam, no séculoXIX, maiores possibilidades do que o transporte aéreo:

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As comunicações pelo mar, em razão de seu baixocusto relativo, de sua rapidez, assim como de sua liber-dade, uma vez que o mar não pertence a ninguém, sãosuperiores a todos os outros meios de comunicaçãoconhecidos. [...] Pode acontecer que, um dia, a na-vegação aérea se revele ainda mais cômoda sob todosos aspectos e adquira uma importância particular,pois criará, em definitivo, condições iguais de desen-volvimento e de existência para todos os países. Atéo presente momento, porém, não se pode falar delacomo meio de comunicação prático, e a navegaçãomarítima permanece, apesar de tudo, o principal fatordo progresso dos povos. (Bakunin, 2003a, p. 118)

Bakunin considera que a presença do Estado nestesterritórios, que “ainda não pertenceriam a ninguém”,constitui um outro mecanismo de aumento de força doEstado. É evidente que isso lhe traz benefícios não so-mente econômicos, mas também geopolíticos.

Também é claro que, para um Estado ser forte eleprecisa de recursos financeiros, dinheiro. Conforme apon-tado, as dominações externas podem ser fonte de dinhei-ro, seja por ações oriundas de guerras, como no caso cita-do, ou mesmo pela dominação imperial, nos casos decolonialismo ou imperialismo, em que se transferem re-cursos econômicos de um Estado a outro. Entretanto, oEstado consegue financiamento também a partir da do-minação interna; ele garante a exploração econômicanas cidades e nos campos pois, principalmente por meiodos impostos, recebe parte desta apropriação indevida dotrabalho.

Continuando com outro aspecto já mencionado,para Bakunin (2003a, p. 228), o vínculo capital-Estado,assegurado por este último, garante a ele próprio uma

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fonte relevante de rendimentos, visto que o capital teriase tornado a própria “alma” do Estado moderno, o qual,sendo pelo capital financiado, assegurar-lhe-ia o direitoilimitado de exploração do povo. Bakunin (2003a, p. 127)enfatiza, além disso, que “sem indústria e sem comércio,nenhum Estado, sobretudo um Estado moderno, podeexistir, porque a riqueza dita nacional está longe de ser ada nação”, pois ela não é usufruída igualmente por todos,destinando-se não somente à apropriação privada mas,também, ao financiamento do Estado; é nesse sentidoque “a riqueza das classes privilegiadas é uma força”,principalmente por contribuir com o financiamento doEstado e a garantia de sua própria apropriação.

O Estado pode ainda explorar, ele mesmo, seu povo,por meio da propriedade nacional, usufruindo direta-mente de parte do valor produzido pelo trabalho de ou-tros; pode, ao mesmo tempo, usufruir de empréstimosconseguidos com bancos e outras fontes e, conforme ocaso, como ocorria na Rússia, promover “o roubo gene-ralizado e oficialmente organizado, a dilapidação do di-nheiro público e a espoliação do povo”. (Bakunin, 2003a,p. 127)

Para obter esse dinheiro originado nos impostos, naexploração direta, nos empréstimos e no roubo direto, oEstado oferece seu apoio, tanto aos proprietários dos meiosde produção, quanto a banqueiros e comerciantes, visan-do financiar sua burocracia e seu exército.

Bakunin também considera um mecanismo de au-mento de força do Estado o investimento em recursosorganizativos (da própria burocracia) e militares, emespecial por meio da centralização e administração racio-nal visando a eficácia. No caso da dominação externa,pode-se, como no mencionado caso alemão, simples-mente apropriar-se de recursos militares do país subju-

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gado ou mesmo utilizar seus recursos financeiros, ouainda outros, para equipar e ordenar o exército. Há, noentanto, outras formas de potencializar estes recursos.

Tratando ainda da Alemanha, Bakunin (2003a, p.32) aponta o papel fundamental da liderança de Bis-marck, “homem de Estado inteligente”, que conseguiuestabelecer as bases de seu Estado “numa organizaçãoeconômica e numa administração interna a mais perfeitapossível” e, desta forma, ressalta o papel do governo e daadministração eficazes do Estado que, agindo com umafirme unidade, teriam potencializado sua ação.

Sobre o exército alemão, ele argumenta:

O exército alemão, por seus efetivos, seu arma-mento, sua disciplina, sua organização, pelo espíritode obediência e pela ciência militar de seus oficiais,mas também de seus suboficiais e soldados, sem falarda inegável superioridade de seus estados-maiores,suplanta, hoje, todos os exércitos existentes na Eu-ropa. (Bakunin, 2003a, p. 133)

Critérios militares como o número de efetivos, quan-tidade e nível de equipamentos, grau de disciplina eorganização, qualidade dos comandantes e nível de com-promisso com o Estado constituem, deste modo, meca-nismos de aumento de força do Estado.

Finalmente, Bakunin aponta os mecanismos queenvolvem a população de um determinado Estado.

Para ele, quanto maior for esta população, quantomais esta população apoiar o Estado e quanto mais oEstado puder conservar sua gestão nas mãos de uma mi-noria, dando a impressão de que ela representa a maio-ria, maior será a força do Estado. Parece evidente que aextensão de uma população determinada relaciona-se

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diretamente à força do Estado que a administra; maispessoas significa, principalmente, mais recursos finan-ceiros e maior possibilidade de crescimento do exércitocom pessoas que, ao menos em teoria, são mais fiéis aoEstado do que os mercenários.

Bakunin aponta que, quanto mais essa populaçãoapoiar o Estado, mais forte ele será; dessa maneira, esti-mular o patriotismo e a submissão de corpos e mentes dosgovernados e a dominação dos governantes tornam-setarefas fundamentais. Bakunin (2003a, pp. 133-134) con-sidera que outra virtude do Estado alemão é que eleteria conseguido conciliar, por um lado, uma massa decidadãos “dóceis, respeitadores das autoridades e dasleis” com um “instinto servil de sujeição a qualquer pre-ço, e de serena e dócil submissão à força triunfante, sobpretexto de obediência às autoridades ditas legítimas” e,por outro, “um instinto senhorial, que leva a subjugar, deforma sistemática, tudo o que é mais fraco, a comandar,a conquistar e a oprimir de modo não menos sistemático”.E continua: “Caminhando sempre juntos, completando-se e explicando-se um pelo outro, estes dois elementosde um mesmo instinto encontram-se na origem da socie-dade alemã”.

Enfim, Bakunin (2003a, pp. 213) considera que oEstado caracteriza-se pelo “governo da imensa maioriadas massas populares” levado a cabo “por uma minoriaprivilegiada”, ideia que aprofundarei adiante. Por ora,basta afirmar que, para o autor, garantir que a gestão doEstado continue sendo realizada por uma minoria cons-titui, também, uma ferramenta, se não de aumento, pelomenos de manutenção de força; além disso, quanto maisse considerar que esta minoria representa os interessesgerais, maior será a força do Estado.

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Mesmo que Bakunin (1988, p. 7) não faça tábularasa das formas de governo, realizando uma distinçãoentre monarquia e república e dizendo preferir a segundaà primeira, ele afirma estar persuadido de que um Estado ésempre um Estado: “uma grande república militar, buro-crática e politicamente centralizada, pode se tornar, enecessariamente se tornará, uma potência conquista-dora no exterior, opressiva no interior”.

Ao criticar as teorias contratualistas, especialmenteas de Hobbes e Rousseau, o autor demonstra a importân-cia de se dar aos governados a ilusão de eles estarem repre-sentados nos governos de minoria, sejam eles monárqui-cos ou republicanos.

E a democracia representativa não põe em xeque osprincípios do estatismo, nem mesmo os incompatibilizacom o capitalismo:

A indústria capitalista e a especulação bancáriaacomodam-se muito bem com a democracia dita re-presentativa, pois esta estrutura moderna do Estado,fundada na pseudossoberania da pseudovontade dopovo, pretensamente expressa por falsos represen-tantes do povo em pseudoassembleias populares, reú-ne as duas condições prévias que lhes são necessáriaspara atingir seus fins, isto é, a centralização estatal e asujeição efetiva do povo soberano à minoria inte-lectual que o governa, quer dizer, que o representa e oexplora de forma inevitável. (Bakunin, 2003a, pp. 35-36)

Este regime, coforme a compreensão bakuniniana,contribui significativamente com o aumento de força doEstado, pois amplia nos governados a sensação de que sãodevidamente representados.

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Assim, quando Bakunin sustenta a necessidade deo Estado aumentar permanentemente sua força para ga-rantir a dominação de classe, ele demonstra que há dis-tintas maneiras de isso ser feito. É importante apontarque, quando ele fala de aumento de força, não se trataexclusivamente de força bruta, coerção física, milita-rismo; força, para o autor, implica recursos que estão paraalém disso: naturais, financeiros, organizativos, humanosetc. Ou seja, trata-se de um processo que, inclusive,extrapola a esfera política e abarca elementos econô-micos e culturais. Por isso, a noção de força aqui abor-dada possui sentido de “força social”, a qual pode serconseguida de diferentes maneiras, que incluem a coa-ção e as armas, mas que não se resumem a elas.

Entretanto, o papel deste aspecto coercitivo nãodeve ser diminuído. Bakunin (2003a, p. 47, 58-59) enfa-tiza que “o Estado é precisamente sinônimo de coerção,domínio pela força, camuflada, se possível, e, se neces-sário, brutal e nua”. O monopólio da violência constitui,assim, aspecto determinante na manutenção do statu

quo, ainda que dissimulado: “o Estado, seja ele qual for,mesmo assumindo as formas mais liberais e mais demo-cráticas, está necessariamente fundado na supremacia,no domínio, na violência, isto é, no despotismo, camu-flado se se preferir, mas, neste caso, ainda mais perigoso”.

A coerção física – seja ela realmente levada a cabocom a utilização da violência, ou potencialmente uti-lizada em forma de ameaça – constitui certamente umdos mais importantes meios de ação do Estado. Conformeapontado, para além dessa força stricto sensu, o Estadoinveste em meios que envolvem a diplomacia e, o que émuito relevante, a legitimidade.

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O Estado é a força, e tem, antes de mais nada, odireito da força, o argumento triunfante do fuzil. Maso homem é tão singularmente feito que este argu-mento, por mais eloquente que pareça ser, não é maissuficiente com o passar do tempo. Para impor-lherespeito, é-lhe absolutamente necessária uma sançãomoral qualquer. É preciso, além do mais, que esta san-ção seja simultaneamente tão simples e tão evidenteque possa convencer as massas que, após terem sidoreduzidas pela força do Estado, devem ser conduzidasao reconhecimento moral de seu direito. (Bakunin,2000b, pp. 88-89)

Tal sanção pode ser garantida pelo próprio Estado,que conforma uma moral particular, que Bakunin (2008b,p. 28) elucida da seguinte maneira: “Tudo o que serve ébom, tudo o que é contrário a seus interesses é declaradocriminoso, tal é a moral do Estado”.

O Estado tem um papel fundamental na produção ena reprodução de proposições discursivas que possuemefeitos morais e que evitam a utilização permanente daviolência e, assim, o desgaste do próprio Estado.

A violência não possui eficácia se for permanen-temente utilizada. Por isso, é necessário convencer asmassas de que a situação de dominação por elas viven-ciada é normal, justa, correta; eis a eficaz legitimidadepromovida pelo Estado. Essa moral, que ganha traçosideológicos, constitui, de acordo com o que sustenta oautor, uma força material.

Com a progressiva racionalização da sociedade, oEstado promove outras ferramentas de legitimação, den-tre as quais se encontram a democracia representativa eo Direito. Este último, conforme aponta Berthier (2011b,

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pp. 69-73), constitui, no pensamento bakuniniano, assimcomo o próprio Estado, o resultado de um conflito deforças de base classista e um ferramental de legitimaçãocentral para as classes dominantes. Ainda assim, estalegitimação do Estado também possui respaldo em pro-cessos que estão para além da política.

A BUSCA DO AUMENTO DE FORÇA IMPLICA

DOMINAÇÃO EM TODAS AS ESFERAS

Creio ser possível compreender mais adequada-mente, neste momento, por que Bakunin relaciona dire-tamente Estado e dominação. Relaciono, em seguida,este processo de busca de aumento de força do Estado edistintos tipos de dominação, os quais serão brevementediscutidos e conceituados com auxílio de outros autores.

Conforme colocado, na busca pela ampliação de seuterritório e de seus recursos, diferentes Estados promo-vem a conquista que “não é somente a origem, é tambémo objetivo supremo de todos os Estados, grandes ou pe-quenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais, mo-nárquicos ou aristocráticos, democráticos e até mesmosocialistas”. (Bakunin, 2008b, p. 27) Essa vocação impe-rialista do Estado moderno não somente está por trás dasguerras, mas também da dominação imperial/colonial,levada a cabo efetivamente por um conjunto restrito deEstados em detrimento de outros, envolvendo privilégioseconômicos, políticos e culturais. Este tipo de dominaçãonacional, que poderia ser mais genericamente chamadode imperialismo, o qual é exercido pelos Estados con-quistadores, pode ser conceituado como a “dominaçãoexterna da classe dominante de um país sobre todas as

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classes de um outro país”. (Schmidt e van der Walt, 2009,p. 314)

O Estado moderno fundamenta-se, por sua vocaçãoescravista, mesmo que não somente nela, na supremaciae no domínio da violência, seja por meio da ameaça desua utilização ou por sua utilização de fato. Tal relaçãoentre Estado e violência constitui as bases da coaçãofísica, “o mais antigo [tipo de dominação] da história[que] está presente, como ‘última ratio’, em pratica-mente todos os sistemas de dominação”, manifestando-se nos “aparatos policiais, repressivos” e nas “organi-zações militares modernas”. (Errandonea, 1989, p. 95)

O Estado também busca garantir que sua gestãocontinue concentrada em uma minoria. Bakunin (2003a,pp. 213) caracteriza o Estado como “o governo da imensamaioria das massas populares [que] se faz por uma mino-ria privilegiada”. Esta cisão da sociedade entre uma mi-noria privilegiada que governa e uma maioria que é go-vernada constitui um traço marcante do Estado modernoe parte relevante de sua vocação escravista. Para o autor,não há somente separação, mas contradição entre o con-junto restrito de pessoas que gerem o Estado e tomam asdecisões políticas e um amplo conjunto de pessoas queestão alienadas em relação a elas e que obedecem àsdecisões que lhes dizem respeito, mas que são tomadaspor outros.

Tal noção do Estado como um agrupamento de mi-norias privilegiadas que possuem o monopólio do poderpolítico encontra-se na própria raiz da definição baku-niniana de Estado. Isso, para Bakunin (2003a, p. 79), temuma consequência: quanto “mais o jugo que se mantémsobre elas [as massas populares] é esmagador, mais o povofica na impossibilidade de exercer um controle sobre ele,mais a administração do país afasta-se da gestão do pró-

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prio povo”. Quanto mais o Estado fortalece-se e mono-poliza o processo de decisões, mais se enfraquecem osgovernados, tendo em vista a impossibilidade de um au-togoverno deles sobre si mesmos.10

Pode-se dizer que essa cisão minoria governante /maioria governada implica uma dominação político-bu-rocrática: “uma das [dominações] mais duradoras histo-ricamente e que possui maior relevância nos regimesatuais” caracterizando-se pela capacidade de um gruporestrito “tomar as decisões que afetam a sociedade globalem geral” sem seu envolvimento. (Errandonea, 1989, p.95)

Dessa maneira, tomando em conta somente a esferapolítica, é possível afirmar que a existência e o funcio-namento do Estado moderno implicam pelo menos trêstipos de dominação: imperialismo, coação física e do-minação político-burocrática. Entretanto, as dominaçõesrelacionadas ao Estado não se restringem à esfera polí-tica; envolvem, também, a esfera econômica e cultural,principalmente em razão da exploração do trabalho e daalienação cultural, que serão discutidas a seguir.

Conforme argumentado, para Bakunin, a função doEstado é garantir a dominação de classe. A exploraçãodo trabalho, por ele assegurada jurídica e militarmente,está entre os mais relevantes privilégios das classes domi-nantes que precisam do Estado para serem mantidos. Porisso, um dos objetivos do Estado moderno é

a organização, na mais vasta escala, da exploração dotrabalho em proveito do capital concentrado empouquíssimas mãos. [...] A indústria capitalista e aespeculação bancária modernas necessitam, para sedesenvolverem em toda a amplitude desejada, destasgrandes centralizações estatais, que, sozinhas, são ca-

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pazes de submeter à sua exploração os milhões e mi-lhões de proletários da massa popular. (Bakunin,2003a, p. 35)

É deste modo que o autor sustenta uma dialéticaEstado-exploração, ou, mais especificamente, Estado-capitalismo, em que um necessita do outro para desen-volver-se plenamente. O Estado constitui a única insti-tuição capaz de submeter as massas à exploração econô-mica, garantindo a propriedade dos meios de produçãoem geral e da extração de mais-valia do trabalho emparticular.

Bakunin (2007, p. 4) afirma que a propriedade e ocapital “significam o poder e o direito, garantidos peloEstado, de viver sem ter de trabalhar”. Visto que “nem apropriedade, nem o capital produzem qualquer coisa senão forem fertilizados pelo trabalho, isso significa o podere o direito de viver à custa da exploração do trabalhoalheio”, ou seja, “o direito de explorar o trabalho da-queles que não possuem propriedade ou capital e que,portanto, são forçados a vender sua força produtiva aosafortunados detentores de ambos”.

A exploração do trabalho é um processo econômico;este conceito “parte da noção que um indivíduo ou umaclasse de indivíduos se vê obrigado a trabalhar mais queo necessário para satisfazer suas necessidades básicas; arazão disso é que o sobreproduto aparece de um lado e onão trabalho e a riqueza suplementar aparecem de ou-tro”. (Errandonea, 1989, p. 29)

Nota-se, nesta relação entre Estado e exploração, ainfluência apontada por Bakunin na dinâmica social dopolítico em relação ao econômico, fortalecendo uma do-minação de caráter sistêmico. Pode-se dizer, ainda, queos processos de conquista, e as dominações coloniais e

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imperiais, contribuem com a exploração econômica, fun-damentalmente por meio da expropriação do trabalhodos trabalhadores de países dominados.

Bakunin considera, ainda, que o Estado modernotambém envolve outro tipo de dominação: a “alienaçãocultural” (Errandonea, 1989), que implica um distan-ciamento do conhecimento da realidade, das forças einteresses que a compõem.

Viu-se que um dos meios de legitimação do Estadomoderno é o desenvolvimento de uma “moral do Estado”.Baseada em crenças, valores e apoiada numa suposta“razão de Estado”, esta moral visa justificar e, assim,fortalecer a dominação do Estado, e tudo o que ela im-plica:

Não há horror, crueldade, sacrilégio, perjúrio, im-postura, transação infame, roubo cínico, pilhagemimpudente e imunda traição que não tenha sido ouque não seja cotidianamente realizado pelos repre-sentantes dos Estados, sem outra desculpa além destaexpressão elástica, simultaneamente tão cômoda etão terrível: razão de Estado! (Bakunin, 1988, p. 98)

Esta moral do Estado, promovida muitas vezes pormeio do patriotismo, esconde das massas a dura realidadede verdadeiros crimes contra a humanidade, protago-nizados para a proteção das classes dominantes. Por isso,Bakunin (2008b, p. 28) afirma que a “moral política foisempre não só estranha, mas absolutamente contrária àmoral humana” e, justamente por isso, conclui: “o Estadoé a negação da humanidade”.

Contraposta à moral humana, a moral do Estado édifundida principalmente por dois meios: a religião e a

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escola. “Durante toda a existência dos Estados” houvesempre “um complemento necessário”, propagado pelaIgreja com a religião, para “legitimar e santificar suasconquistas e justificar os atos iníquos, brutais e violentose as mais monstruosas crueldades”: a religião. (Bakunin,2009a, p. 19) Quanto mais a atenção humana estivervoltada aos céus, continua, mais a Terra estará conde-nada à manutenção de seu statu quo e, portanto, dasrelações de dominação.

As escolas também contribuem com esse processo,ao estimular nos alunos, desde a mais tenra idade, cren-ças e valores conformes à essa moral de Estado. Quantomaior for a ignorância e a alienação das massas, maissimples será governá-las, conseguir seu apoio e limitarsua influência nos processos políticos; o Estado promovea “ciência de enganar e dividir as massas populares, demantê-las sempre numa saudável ignorância para quenunca possam, ajudando-se e unindo seus esforços, criarum poder capaz de derrubá-los”. (Bakunin, 2003b, p. 66)A escola, por estranho que possa parecer para alguns,contribui com este processo.

Enfim, o Estado é um instrumento político que serelaciona, em todas as esferas, à dominação; e mais: estasdominações articulam-se:

A riqueza e o poder, a exploração econômica e aopressão política das massas são os dois termos inse-paráveis do reino do idealismo divino sobre a terra: ariqueza consolidando e aumentando o poder, o poderdescobrindo e criando sempre novas fontes de rique-za, e ambos assegurando, melhor do que o martírio e afé dos apóstolos, melhor do que a graça divina, o su-cesso da propaganda cristã. (Bakunin, 2000b, p. 51)

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Vê-se que o Estado funciona como um agente parti-cularmente relevante no estabelecimento da dominaçãoem todos os níveis, num processo de interdependência ereforçamento mútuo dos diferentes tipos de dominação.

Portanto, o modus operandi do Estado, em sua buscado aumento de força para garantir a dominação de clas-se, implica a dominação em todas as esferas. Algumasdelas protagonizadas pelo próprio Estado – como o impe-rialismo, a coação física e a dominação político-burocrá-tica – e outras delas sendo por ele garantidas, como aexploração do trabalho, ou mesmo por ele estimuladas,como a alienação cultural. Não há como não compreen-der a afirmação anterior de que “quem diz Estado, diznecessariamente dominação”.11

O CARÁTER DA DOMINAÇÃO DO ESTADO

É DE CLASSE E A BUROCRACIA

É UMA CLASSE DOMINANTE

Ao buscar compreender o caráter da dominação deEstado, Bakunin (2003a, p. 35) já havia notado, numcontexto de dominação econômica burguesa, que o Esta-do constitui uma organização voltada para a dominaçãode classe e para a manutenção da exploração, em espe-cial por parte da burguesia: o Estado moderno, colocouele, viabiliza “a organização, na mais vasta escala, daexploração do trabalho em proveito do capital concen-trado em pouquíssimas mãos”. Constatou o autor que, emdistintas ocasiões, a dominação econômica da burguesiatermina utilizando o Estado para reforçar-se e que, nestesentido, o Estado constitui um instrumento político bur-guês.12

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Ainda assim, Bakunin (2008a, pp. 94, 105) notouque a Alemanha continuava a apresentar, em 1871, “oestranho quadro de um país onde os interesses da bur-guesia predominam, mas onde a força política não per-tence à burguesia”. Tratava-se de uma situação seme-lhante à da França, no contexto do golpe de Luís Napo-leão em 1851; naquela situação, “o temor [da burguesia]pela revolução social, o horror pela igualdade, o senti-mento de seus crimes e o temor pela justiça popular,jogaram toda essa classe decaída [...] nos braços daditadura de Napoleão III”. Mesmo não estando no con-trole do Estado, a maior parte dos burgueses envolveu-se“exclusiva, seriamente, ao grande negócio da burguesia,à exploração do povo”, em cuja tarefa “foram eficazmenteprotegidos e encorajados”.

A manutenção do statu quo levada a cabo pelo Es-tado terminou, naquela circunstância, por favorecer aburguesia que, mesmo não estando diretamente em seucomando, pôde, com a estabilidade, desenrolar ampla-mente seus negócios e prosperar mais no campo econô-mico. Ainda que prejudicando alguns burgueses indivi-dualmente, esse procedimento favoreceu a burguesiacomo classe de maneira geral. (Cf. Newman, 2012)13

A análise destas situações, em especial tais exem-plos da França e da Alemanha, reforçam a tese bakuni-niana de que não há um determinismo automático e me-cânico da esfera econômica em relação à política.

Entretanto, estas reflexões acerca do Estado e dasclasses sociais – em especial essa ideia do “Estado bur-guês”, sustentada nas hipóteses anteriormente levan-tadas – constituem tão somente um ponto de partida dateoria do Estado bakuniniana.

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Demonstrou-se que o Estado possui uma naturezadominadora; no entanto, o caráter dessa dominação é declasse, mas não exclusivamente da burguesia. Para Baku-nin (2000f), “o Estado foi sempre o patrimônio de umaclasse privilegiada qualquer: classe sacerdotal, classenobiliária, classe burguesa; classe burocrática ao final.”Esta afirmação, ao mesmo tempo sucinta e complexa,exige uma avaliação mais pormenorizada.

Desde um ponto de vista histórico, a primeira consi-deração relevante nesta afirmação é que o Estado, mes-mo que tenha sempre funcionado como instrumento dedominação de classe, nem sempre foi um Estado burguês;este constitui somente uma das formas históricas do Esta-do.

Para Bakunin, como discutido, o Estado modernoconstitui-se no século XVI, e a burguesia, desde o iníciode sua ascensão no século XIV até a Revolução Fran-cesa, no século XVIII, foi oprimida pelo Estado. Foi so-mente a partir de então que ela passou a utilizá-lo, maisconstantemente, em seu próprio favor. Mesmo depois daRevolução Francesa, como demonstram os casos mencio-nados da França e da Alemanha, a relação entre Estadoe burguesia não pode ser direta e permanentemente sus-tentada.

A segunda consideração é que a nobreza e o clero,mesmo que no processo de surgimento do Estado no sé-culo XVI tenham passado à posição de submissão privi-legiada, continuaram usufruindo, nos séculos posteriores– mais ou menos, conforme o momento – do instrumentodo Estado para a dominação e continuaram a existir –também dependendo do contexto – como classes domi-nantes.

Nesta perspectiva histórica, portanto, o Estado, des-de o século XVI até o século XIX, foi gerido por pessoas

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vinculadas originalmente ao clero, à nobreza, à bur-guesia, não sem intensos conflitos.

Compreender o trecho “classe burocrática ao final”implica entender devidamente a teoria bakuniniana dasclasses sociais. Em Bakunin, a dominação política doEstado é uma dominação de classe, não somente pelarelação direta com as classes dominantes em geral, masporque ele mesmo tem a capacidade estrutural de pro-duzir outra classe dominante: a burocracia. (Cf. Leval,2001) Para o autor, os critérios políticos são incorporadosà própria definição das classes sociais e em sua maneirade realizar a estratificação social.

As classes sociais, aspectos fundamentais da socie-dade capitalista, constituem-se a partir da produção e dareprodução do social.

Na sociedade humana [...] a diferença das classesé, todavia, muito marcada, e todo o mundo saberádistinguir a aristocracia nobiliária da aristocraciafinanceira, a alta burguesia da pequena burguesia, eesta última dos proletários das fábricas e das cidades;assim também, o grande proprietário da terra, do ren-deiro e do camponês proprietário que cultiva sua ter-ra; o fazendeiro, do simples proletário do campo. (Ba-kunin, 1988, pp. 15-16)

Neste trecho, distinguem-se, mais ou menos clara-mente, algumas classes sociais concretas: nobreza, lati-fundiários, burguesia, proletariado (da cidade e do cam-po) e campesinato. Bakunin (2000f; 2003a, pp. 79, 30)aponta, ainda, a existência de outras classes sociais con-cretas: “classe sacerdotal”, “classe burocrática” e “pro-letariado esfarrapado”. Deste modo, além das classesanteriormente elencadas, há pelo menos outras três:

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clero, burocracia e marginalizados em geral, ou “lum-pemproletariado”, em acordo com a terminologia mar-xiana.

Ao discutir os critérios para a definição das classessociais, Bakunin (2000g) aponta como fundamento prin-cipal as noções de dominação e privilégio. Graças à rele-vância da esfera econômica na dinâmica social, as domi-nações e os privilégios econômicos constituem critériosfundamentais nesta conceituação: “a propriedade exclu-siva da terra”, privilégio da nobreza de seu tempo, e “omonopólio dos capitais e das empresas tanto industriaiscomo comerciais”, privilégio da burguesia de sua época,constituem as bases das dominações econômicas tantodos proprietários dos meios de produção e distribuição emrelação aos trabalhadores assalariados da cidade e docampo, quanto dos proprietários de terras em relação aoscamponeses rendeiros ou mesmo pequenos proprietários;a diferença entre ricos e pobres, fundamentada na pro-priedade do capital, também implica outro privilégioeconômico importante e contribui com a dominação declasse. A propriedade dos meios de produção, incluindoa terra, de distribuição e do capital implica, segundo oautor, “a exploração do trabalho sujeitado, ou forçadopela fome, das massas populares” e aumenta, assim, adesigualdade social, fazendo com que os ricos fiquemmais ricos e os pobres mais pobres.

Entretanto, os critérios econômicos não são os úni-cos nesta conceituação. A burocracia, continua Bakunin(2000g), constitui uma “classe de homens [...] privile-giados” que possui “solidariedade com os interesses doEstado” e, por isso mesmo, devota-se “de corpo e alma àsua prosperidade e sua existência”, por razão do controlede sua administração que possui e de tudo o que issoimplica. Ele aponta ainda “o desenvolvimento artificial

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e forçado da estupidez das massas populares”, privilégiodo clero de seu tempo, em função da capacidade quepossuía de promover uma determinada compreensãodo mundo. Para Bakunin (2003b, p. 59), outro critériocapaz de fortalecer essa visão da realidade é a “diferençade instrução e de educação”, que pode auxiliar a do-minação de classe, em que “uma massa de escravos” ésubjugada por “um pequeno número de dominadores”.Assim, o autor aponta, além dos critérios econômicos,outros, que são relevantes para sua definição de classessociais: a propriedade dos meios de administração, decontrole e de coerção, assim como a propriedade dosmeios de produção do conhecimento.

Em suma, pode-se dizer que as classes sociais sãodefinidas a partir da categoria dominação e forjam-senuma relação triádica, abarcando economia, política ecultura; proporcionam, deste modo, uma estratificaçãosocial que evidencia distintos privilégios.

Na esfera econômica, a propriedade dos meios deprodução, incluindo a terra, de distribuição e do capital;na esfera política, a propriedade dos meios de administra-ção, de controle e de coerção; na esfera cultural, a pro-priedade dos meios de produção do conhecimento. Emlinhas gerais, os privilégios econômicos implicam explo-ração do trabalho, os privilégios políticos implicam domi-nação político-burocrática e coação física e os privilégiosculturais implicam alienação cultural.

Tomando em conta o século XIX analisado por Ba-kunin, as classes dominantes – ou “classes privilegiadas”/ “classes superiores”, como em geral ele as chama – in-cluíam: a nobreza/latifundiários (proprietários das terras),a burguesia (proprietária dos meios de produção e docapital), burocracia (proprietária dos meios de admi-nistração, coerção e controle) e clero (proprietário dos

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meios de produção do conhecimento). As classes do-minadas abarcavam: proletariado da cidade e do campo(trabalhadores assalariados), campesinato (rendeiros oupequenos proprietários) e marginalizados (desemprega-dos, mendigos, miseráveis, analfabetos, ladrões etc.).Obviamente há frações de classes e “zonas cinza” que secolocam entre essas grandes categorias.

A luta de classes manifesta-se nas relações sociaisparticulares entre diferentes agentes em função de suaposição na estrutura social: trabalhadores e patrões, cam-poneses e latifundiários etc. No entanto, sua manifes-tação de maior envergadura envolve as relações sociaisgerais, conformadas por dois amplos conjuntos de domi-nadores e dominados, que extrapolam a estrutura sociale envolvem também os interesses e a posição assumidano conflito.

Partindo de um universo histórico-conjuntural con-creto particular, da Europa do século XIX, Bakunin esta-belece um modelo teórico e, portanto, mais abstrato egeral, que propõe reduzir o conjunto de classes sociaisconcretas de seu tempo a dois amplos conjuntos:

Todas estas diferentes existências políticas e so-ciais deixam-se hoje reduzir a duas categorias princi-pais, diametralmente opostas uma à outra, e inimigasnaturais uma da outra: as classes políticas, compostaspor todos os privilegiados, tanto da terra quanto docapital, ou mesmo somente da educação burguesa, eas classes operárias deserdadas tanto do capital quantoda terra, e privadas de qualquer educação e dequalquer instrução. (Bakunin, 1988, p. 16)

Ainda que esta citação não inclua todos os critériosutilizados pelo autor em sua definição das classes, elamostra que as classes sociais concretas de um deter-

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minado contexto podem ser reduzidas a dois conjuntos,que estão permanentemente em conflito. Eles são aquichamados de “classes políticas” e “classes operárias”, maspoderiam ser nomeados, mais adequadamente, de classesdominantes e classes dominadas, classes opressoras eclasses oprimidas, classes superiores e classes inferiores,classes privilegiadas e classes despossuídas.

A base desta redução não é a centralidade destascategorias num momento histórico determinado e nemsua perspectiva de evolução futura, mas os interesses declasse e o papel desempenhado por essas classes no pro-cesso de luta de classes mais geral. Tal conflito perma-nente fundamentado na posição estrutural dos agentes,mas potencializado por sua consciência e suas ações,constitui o conceito bakuniniano de luta de classes.

A luta de classes caracteriza-se, desta maneira maisgeral, pela contradição desses dois conjuntos motivadapor determinados interesses que, se possuem na posiçãoestrutural dos agentes sua maior influência de deter-minação, não derivam mecanicamente deles e podem serinfluenciados por outros fatores, fortalecendo ou arrefe-cendo o processo de lutas.

Aprofundarei, em seguida, a noção de burocraciacomo classe social, conceituando-a, explicando como elasurge, estrutura-se e relaciona-se com outras classes.

A burocracia é uma classe social de base políticacomposta por uma minoria privilegiada que possui a pro-priedade dos meios de administração, de controle e decoerção do Estado. Trata-se, conforme aponta Bakunin(2000b, p. 36), de “um corpo de políticos, privilegiadosde fato, não de direito, que, dedicando-se exclusiva-mente à direção dos assuntos públicos de um país, aca-bam por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquiapolítica”. Seus privilégios – a propriedade do poder, o

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monopólio das tomadas de decisão políticas – são sempreusufruídos por uma minoria, visto que as maiorias nãocabem no Estado; eles são aspectos importantes da buro-cracia e constituem as bases da dominação por ela exer-cida.

Berthier complementa, tomando por base a análisede Bakunin da burocracia alemã:

A burocracia é em primeiro lugar uma emanaçãodo Estado, sua base social, a camada que sustenta ailusão da racionalidade e da necessidade do Estado. Éela que faz do Estado uma realidade, um poder efetivoque lhe dá um conteúdo. A burocracia encarna a ideiado Estado ao mesmo tempo que é seu aparelho. [...] Aburocracia acaba por confundir-se com o Estado, comsua cascata de hierarquias constituindo o que Baku-nin denomina “corpo sacerdotal do Estado”. (Ber-thier, 2011a, p. 72)

Conforme o Estado moderno surge e fortalece-se,conforma-se a burocracia, que, mesmo oriunda de dis-tintas classes, dá sentido e conteúdo ao próprio Estado, epassa a defender os interesses do próprio Estado, esta-belecendo seus próprios interesses como classe à parte,justificados a partir da necessidade de uma adminis-tração racional do político. A propriedade dos meios deadministração, de controle e de coerção do Estado, alémdos benefícios políticos relativos ao poder, implicamtambém vantagens econômicas para os membros da buro-cracia, que pode ser mais ou menos temporária, constituídapor meio da hereditariedade, do recrutamento exclusivoentre determinadas camadas sociais ou eleita “demo-craticamente” entre a população.

Berthier (2011a, p. 72) complementa, ressaltandoque “a burocracia pode tender a autonomizar-se em

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relação ao Estado, do mesmo modo que o Estado tende aautonomizar-se em relação à sociedade”. Tal tendênciaà autonomização da burocracia forja-se sempre numatensão permanente com a dinâmica das relações entreEstado e sociedade civil em geral, e entre Estado e clas-ses sociais em particular. Desde uma perspectiva estru-tural, há uma tensão constante, mais latente ou mani-festa, entre a classe de origem dos membros da burocra-cia e a própria classe burocrática. Seus interesses, aindaque não se originem mecanicamente de sua posição es-trutural, certamente são por ela influenciados e, nesteprocesso, a tensão entre classe de origem e burocraciamostra-se relevante. Independente deste conflito, a clas-se burocrática tende a desenvolver interesses próprios,mesmo que buscando conciliá-los com outros.

Na análise histórica que realiza do Estado, Bakunin(2008a) aponta que ele se estabelece como um instru-mento de dominação de classe e como resultado do con-flito de classes. Neste processo, forja-se um determinadomodus operandi que implica a dominação generalizada ecom o qual a burocracia está diretamente vinculada.

Quando as pessoas passam a administrar o Estado,“a inflexível lógica de sua condição e outras imperiosasrazões ditadas por certas considerações de ordem hie-rárquica e de interesse político sobrepõem-se”, visto que“as exigências de uma certa situação são sempre maisfortes do que os sentimentos, as segundas intenções e asboas intenções”. Com o passar do tempo, a estrutura doEstado fortalece-se e passa a ter condições de dar conti-nuidade às relações de dominação, visto que consegue,em grande medida, moldar os interesses de seus membrose conformá-los em uma classe social à parte. A estruturado Estado foi criada para garantir a dominação de classee assim permanece, independente da vontade dos mem-

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bros da burocracia, independente de suas classes de ori-gem. “Uma vez integrados nesta classe [classe buro-crática]”, estes agentes “tornam-se, de uma forma ou deoutra, inimigos do povo”. (Bakunin, 2003a, p. 77) Mes-mo que não queiram, os agentes da burocracia estãocondenados a promover a dominação, pois dão corpo auma estrutura essencialmente dominadora.

A burocracia possui uma existência relativamenteautônoma em relação às outras classes dominantes. Sen-do a razão de ser do Estado a defesa dos interesses dasclasses dominantes, conforme aponta Angaut, a atuaçãoda burocracia pode se dar de modos distintos, em suarelação com as outras classes dominantes:

No primeiro, o Estado defende os interesses deuma das três classes socialmente dominantes (no-breza fundiária, burguesia ou clero) excluindo aquelesdo restante da sociedade: conforme o caso, o Estadotomará a forma de uma monarquia feudal, de um regi-me constitucional censitário ou de uma teocracia. Nosegundo caso, que parece o mais frequente, ou mesmoo mais determinante para a formação do Estado, astrês classes dominantes encontram-se unidas contraas populações que exploram. Sem que seja possívelsaber se existe um vínculo com essa característicapreponderante da união dos privilegiados contra osexplorados, Bakunin afirma, então, que à tripla ex-ploração social junta-se uma exploração própria doEstado, exploração que ele qualifica de política e quepode, em certos momentos, entrar em contradiçãocom as três outras formas de exploração (feudal, capi-talista e religiosa), a ponto de o Estado, bem aciden-talmente, tomar a defesa dos explorados. Mas, nova-mente, é a união dos interesses dos dominantes queparece preponderar, de maneira que a classe específica

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que fez surgir o fenômeno estatista não tarde a se uniràs outras três para garantir a exploração social. (An-gaut, 2005, pp. 436-437)

Buscando generalizar os casos históricos avaliadospor Bakunin em seu tempo e estabelecendo uma padro-nização conceitual em relação ao que foi discutindo, épossível dizer que, para ele, a burocracia pode relacionar-se com as outras classes dominantes de duas maneiras.Uma, menos frequente, quando ela simplesmente defen-de os interesses de uma delas, como nos casos colocadose, também, no caso do Estado burguês. Outra, mais fre-quente, quando a burocracia soma-se a elas para estabe-lecer uma dominação concertada sobre as classes oprimi-das de maneira geral e que possui base não somenteeconômica ou mesmo política, mas social, envolvendotodos os tipos de dominação anteriormente discutidos.

Outro aspecto relevante é que Bakunin (2009a, p.63) reconhece que, em sua dinâmica, por vezes ocorre deo Estado defender os interesses dos despossuídos em rela-ção aos privilegiados: há períodos em que “o governotorna-se ainda mais hostil às classes privilegiadas do queao povo”. Seu “instinto de conservação” termina porobrigá-lo, em alguns casos, a contrariar a lógica da domi-nação de classe; ainda assim, “esses períodos não durammuito tempo, pois o governo, qualquer que seja, não po-de viver sem as classes e estas sem o governo”.

Segundo a explicação de Angaut (2005, p. 437), issoocorre em algumas circunstâncias, quando a burocracia,fazendo com que o Estado intermedeie os conflitos declasse, atenta contra interesses das outras classes domi-nantes em nome da garantia de longo prazo da continui-dade da dominação de classe. Isso não se estabelece porum interesse do Estado em defender as classes domi-

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nadas, mas pela necessidade de se garantir o funcio-namento do sistema. Por este motivo, em situações deter-minadas o Estado atenta contra os interesses das classesdominantes, seja contra todas estas classes, uma delas oualguns de seus membros em particular.

O ESTADO E A BUROCRACIA

TENDEM À CONSERVAÇÃO

O Estado tende a manter-se como instrumento polí-tico de dominação de classe e a burocracia tende amanter-se como classe dominante, especialmente se adominação em nível sistêmico-estrutural perdurar.

Viu-se que o Estado constitui parte de uma dinâ-mica social mais ampla e relaciona-se dialeticamentecom a economia e a cultura. Foi colocado, também, queBakunin (2003a, p. 35) considera que o fortalecimentodo capitalismo implica um fortalecimento correspon-dente do poder de Estado: “a indústria capitalista e a especu-lação bancária modernas necessitam, para se desenvol-verem em toda a amplitude desejada, destas grandescentralizações estatais”. Nesse movimento dialético en-tre a economia e a política, entre o capitalismo e o Esta-do, há um fortalecimento mútuo, em que uma das par-tes, ao mesmo tempo que reforça, é reforçada pela outra.

Bakunin (2003a, p. 134) identifica também um pro-cesso semelhante com a cultura: “um verdadeiro cultoao poder de Estado [...] que pouco a pouco engendrouuma doutrina e uma prática burocrática” torna-se fatorlegitimador relevante da existência do Estado. Como oEstado contribui com o desenvolvimento e a propagaçãodestas ideias, pode-se dizer que, também, o Estado ter-

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mina por reforçar e ser reforçado por estes aspectos deconstrução de uma hegemonia cultural estatista.14

Desse modo, as dominações sistêmicas e estruturaispromovidas pelo sistema capitalista-estatista não somen-te se relacionam, mas se reforçam mutuamente. Tendo oEstado passado a funcionar como uma ferramenta paragarantir a soberania nacional e a manutenção da ordem,ele tornou-se agente central na garantia da dominaçãode classe. Na medida em que essa dominação mantém-se,independente de quais forem as classes dominantes, oEstado tende a manter-se como agente que a garante.

Um organismo deste tipo, de acordo com Bakunin,não atenta mortalmente contra si mesmo e nem sofreatentados mortais por parte das classes dominantes. Mes-mo que haja conflitos entre a burocracia e outras classesdominantes, nenhuma delas pode promover a abolição doEstado, sob pena do término de sua dominação de classe.

Para Bakunin (1998, p. 41), “a lei suprema do Esta-do é a própria conservação do Estado”. Ele tende a con-servar-se em função dos interesses das classes dominantesem geral. A burocracia possui interesse direto na perpe-tuação do Estado e em sua condição de classe, com vis-tas à manutenção de seus privilégios. Em acordo com estaposição, Bakunin (2009a, pp. 62-63) enfatiza que o Esta-do garante, ao mesmo tempo, “a dominação sistemáticae legal das classes sobre o povo por elas explorado”, etambém visa à “proteção de seus privilégios particularese da oligarquia que o compõe”. Segundo argumenta, “oprimeiro objetivo concerne ao interesse geral das classesprivilegiadas” e o segundo “não vai além da vaidade edos privilégios pessoais dos governantes”. A conservaçãodo Estado e da burocracia relaciona-se, portanto, direta-mente com os interesses e privilégios das classes domi-nantes em geral e da burocracia em particular. Esta

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última deve proteger-se como classe e renovar as con-dições para que possa manter sua dominação e, assim,seus próprios privilégios.

Quando fala dos interesses e da vaidade dos buro-cratas, o autor adentra outro tema essencial, que sepoderia chamar, de acordo com a terminologia de GastonLeval (1976, p. 221), “psicologia dominadora”. Berthier(2011a, p. 80) defende que “a originalidade da análisebakuniniana é que a burocracia é, simultaneamente, umfenômeno político, quanto toca o Estado, um fenômenosociológico quando toca as organizações, e um fenômeno

psicológico que, no indivíduo, está ligado à vontade de

poder”. (Grifos adicionados)O próprio estabelecimento da burocracia possui um

efeito estrutural sobre a personalidade dos burocratas,fazendo com que seus sentimentos passem a funcionar emacordo com sua posição de privilegiados.

Quaisquer que sejam seus sentimentos e suas in-tenções democráticas, da altura em que se encontraminstalados, não podem considerar a sociedade de ou-tra forma senão como um tutor considera seu pupilo.Mas entre o tutor e o pupilo não pode existir igual-dade. De um lado, há o sentimento da superioridade,inspirado necessariamente por uma posição superior;do outro, o de inferioridade, que resulta da superio-ridade do tutor, exercendo seja poder executivo, sejapoder legislativo. (Bakunin, 1998, p. 30)

A burocracia estatal, desta maneira, incorpora aospoucos tais sentimentos de superioridade, que terminampor estimular outros, relacionados à ambição e à vaidade,e que contribuem para que os burocratas queiram man-ter suas posições, como classe que gere o Estado e comoextrato que compõe a burocracia.

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Os sentimentos originados pela posição superior nahierarquia social, em especial o orgulho de um status

diferenciado, possuem efeitos psicológicos reais e aumen-tam as chances de que os burocratas apoiem a continui-dade da estrutura sistêmica de dominação. Bakuninainda aponta que, quanto maior a falta de oposição econtrole, pior a corrupção psicológica dos burocratas.

Pode-se compreender, assim, esta dupla tendênciaà conservação. O Estado tende a conservar-se porqueconstitui parte de uma dinâmica social mais ampla, e, sepor um lado reforça, por outro é reforçado pelo capita-lismo e pela cultura dominadora que são promovidos emnível sistêmico. As classes dominantes possuem interesseque ele continue a existir e, deste modo, a garantir quea dominação de classe tenha continuidade. Como a bu-rocracia também é uma classe dominante e seus membrosusufruem de privilégios, ela também tende a manter-secomo classe, não somente para a manutenção destesprivilégios, mas também por uma corrupção psicológicaque faz com que seus membros gostem de sua posição equeiram nela permanecer.

A ABOLIÇÃO DO ESTADO É IMPRESCINDÍVEL

PARA O ESTABELECIMENTO DO SOCIALISMO

E A GARANTIA DA EMANCIPAÇÃO POPULAR

A estratégia revolucionária bakuniniana possui am-plo respaldo em sua teoria do Estado. Conforme argu-mentei, o Estado implica a dominação generalizada; estadominação é de classe, a burocracia é uma classe domi-nante e o Estado e a burocracia tendem à conservação.Para Bakunin, independente daqueles que estejam nocomando do Estado, esta lógica continua a reproduzir-se;

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ou seja, continua a dominação de classe, a dominaçãopolítica externa e interna, o reforço de outras domina-ções e a tendência à conservação.

Por isso mesmo, um processo que promova o socia-lismo e a emancipação deve contar, inevitavelmente,com a abolição do Estado.

Sobre a bandeira da revolução social, nossa ban-deira, está gravado [...] em letras de fogo e sangue:destruição de todos os Estados, abolição da civili-zação burguesa, organização espontânea de baixo paracima, por meio de alianças livres, organização da ple-be operária revoltada e de toda a Humanidade libertae fundação de uma nova sociedade humana. (Baku-nin, 2003a, p. 233)

A liberdade e a igualdade só podem ser plenamenteatingidas por meio de uma revolução social que ponhafim à dominação em geral e à dominação de classe emparticular; que implique, portanto, o fim do capitalismo,das classes sociais e do Estado.

É com base neste raciocínio que o autor critica du-ramente as estratégias estatistas, em especial as do camposocialista. Para ele, por meio da tomada do Estado é im-possível chegar ao socialismo e à emancipação popular.Pode-se dizer sem exagero que, para Bakunin, ocupar oEstado para promover a emancipação social dos traba-lhadores equivale a tornar-se patrão para tentar acabarcom a exploração do trabalho.

Primeiramente, porque o Estado é, por definição,um organismo de minorias e, desta maneira, é impossívelas classes oprimidas, de maneira geral, e mesmo o prole-tariado, como classe, tomarem o Estado. Para Bakunin(2003a, p. 212), as maiorias não cabem no Estado; falar

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em “proletariado organizado como classe dominante”implicaria “que este, por inteiro”, esteja “na direção dosnegócios públicos” e, assim, “não haverá governo, nãohaverá Estado”. Um organismo político de maiorias, quetermine com a cisão entre minoria governante e maioriagovernada, qualquer que seja ele, já não constitui umEstado.

Em segundo lugar, por meio de uma posição bas-tante materialista, Bakunin (1998, p. 31) recorda: “nun-ca esqueçamos que as posições e as necessidades queelas impõem são sempre mais poderosas do que o ódio oua má vontade dos indivíduos”. Para ele, se o Estado cons-tituísse “um parlamento, exclusivamente composto deoperários, esses operários, que hoje são firmes democratassocialistas, tornar-se-iam imediatamente aristocratas de-terminados, adoradores intrépidos ou tímidos do prin-cípio de autoridade, opressores, exploradores”. Isso por-que se tornariam classe burocrática e tenderiam a aban-donar seus interesses de classe anteriores para concertar-se com outras classes dominantes no processo de domina-ção generalizada ao qual se relaciona à própria existênciado Estado.15

Mesmo com o fim de outras classes, no caso de oEstado continuar a existir e de se nacionalizarem osmeios de produção, o Estado criaria, por si mesmo, umaúnica classe dominante, a burocracia, que tenderia amanter a dominação na sociedade. Posição sustentadapor Bakunin em seu debate com marxistas e lassalianos:

Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situadopara considerar esta questão, chega-se ao mesmo re-sultado execrável: o governo da imensa maioria dasmassas populares por uma minoria privilegiada. Estaminoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de

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operários. Sim, com certeza, de antigos operários, masque, tão logo se tornem governantes ou represen-tantes do povo, cessarão de ser operários e colocar-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Esta-do, não mais representarão o povo, mas a si mesmos ea suas pretensões a governá-lo. (Bakunin, 2003a, p.213)

Há, enfim, elementos para compreender integral-mente a afirmação anterior, de que “o Estado foi sempreo patrimônio de uma classe privilegiada qualquer: classesacerdotal, classe nobiliária, classe burguesa; classe buro-

crática ao final.” Quando ele refere-se à “classe buro-crática ao final”, contrapõe a possibilidade de uma possí-vel tomada do Estado pelos socialistas, advertindo que,se isso ocorresse, um setor dos trabalhadores transformar-se-ia em classe burocrática e daria continuidade à do-minação na sociedade, mesmo que modificando algunsde seus fundamentos.

Bakunin (2003a, p. 47) insiste que “o povo [...] nãoterá a vida mais fácil quando o porrete que o espancar sechamar popular”. Com a manutenção da existência doEstado e da burocracia, a dominação sobre as classesoprimidas continuaria a existir, mesmo que estes reivin-diquem representar os trabalhadores. A dominação detrabalhadores do campo e da cidade, dos camponeses,dos pobres em geral, cerne do processo, seria perpetuada.

E ainda que se sustentasse, discursivamente, queeste seria um processo temporário, de transição, a ten-dência à conservação do Estado e da burocracia, fortale-cida pela continuidade da dominação, transformaria oprovisório em definitivo e o Estado nunca teria fim. Tra-tar-se-ia do “governo despótico das massas populares poruma nova e muito restrita aristocracia de verdadeiros ou

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pretensos doutos”. Sem a socialização generalizada, in-clusive do conhecimento, e, portanto, “não tendo o povoa ciência, ele será de todo libertado das preocupaçõesgovernamentais e integrado por inteiro no rebanho dosgovernados. Bela libertação!” (Bakunin, 2003a, p. 213)

Isso implicaria a imposição de uma burocracia ver-melha sobre os trabalhadores, a qual se constituiria comouma nova classe dominante. Entretanto, como bem a-ponta Berthier (2011a, p. 87), “o advento desta buro-cracia vermelha, observemo-lo, não era aos olhos deBakunin uma ocorrência inevitável. [...] Essa quartaclasse governamental só surgirá [...] na hipótese de aclasse operária mostrar-se incapaz de assumir seu papelna revolução proletária”, ou seja, no caso de os trabalha-dores não tomarem a frente do processo revolucionário.

Parece não ser um mero acaso que o processo decor-rente da Revolução Russa de 1917 tenha caminhado nosentido da dominação burocrática definida por Bakunin.Do mesmo modo não parece ser o fato de que todos

os processos de revoluções comunistas levados a cabo du-rante o século XX tenham tido o mesmo destino. Há,deste modo, elementos para afirmar que a história doséculo XX comprovou a acuidade e a precisão da teoriabakuniniana do Estado, em detrimento de outras, espe-cialmente por sua capacidade preditiva. Este parece umbom argumento para refutar a tese de que Bakunin foium homem de ação e não um teórico de substância efôlego.16

Bakunin (2009b, pp. 22, 31) não precisou esperar aComuna de Paris, em 1871, para apontar, cinco anos an-tes dela, a necessidade de “abolição, dissolução e bancar-rota social, política, judiciária, burocrática e financeirado Estado tutelar, transcendente, centralista, dublê e alter

ego da Igreja”, assim como reivindicar que “a base de

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toda organização política de um país deve ser a comuna

absolutamente autônoma, representada sempre pela maioria

do sufrágio de todos os habitantes – homens e mulheres em

igualdade – maiores”.Em seguida à experiência communarde, Bakunin

(2008c, p. 118) afirmou seu apoio à experiência revolu-cionária francesa, sublinhando: “Sou um partidário daComuna de Paris [...] sobretudo porque ela foi umanegação audaciosa, bem pronunciada, do Estado.”

Segundo a teoria bakuniniana da revolução, umprocesso de transformação social deveria extrapolar omodelo de revolução política, que vinha implicando asimples troca dos governantes do Estado e a continui-dade da dominação, e avançar para uma revolução so-cial, que modificasse não somente a estrutura econômicada sociedade – socializando a propriedade e acabandocom a exploração do trabalho nas cidades e nos campos–, mas que também abolisse o Estado, a Igreja e as pró-prias classes sociais, favorecendo um protagonismo popu-lar construtivo capaz de estabelecer um federalismo liber-tário em todas as esferas sociais.

É precisamente a esse sistema antigo da organi-zação pela força que a revolução social deve pôr umtermo ao devolver sua plena liberdade às massas, aosgrupos, às comunas, às associações, aos próprios indi-víduos, e, destruindo, de uma vez por todas, a causahistórica de todas as violências, a potência e a própriaexistência do Estado, que deve arrastar em sua quedatodas as iniquidades do direito jurídico, com todas asmentiras dos cultos divinos, esse direito e esses cul-tos tendo sido sempre a consagração obrigatória tantoideal quanto real de todas as violências represen-tadas, garantidas e privilegiadas pelo Estado. (Baku-nin, 2008c, p. 126)

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A Comuna, segundo a compreendeu o autor, emespecial pela influência dos internacionalistas ligados àAssociação Internacional dos Trabalhadores, caminhava nessesentido, até ser esmagada pelo Estado; tratava-se de umarevolução social que estava em processo de aboliçãoplena do Estado e de sua substituição por organismospopulares de base e federalistas. A Comuna não somentenão modificou a teoria da revolução de Bakunin como areforçou; pareceu-lhe um caminho correto no sentido deatingir a liberdade e a igualdade plenas.17

Seria, afinal de contas, a força popular, implicadano conflito social por meio dos organismos e movimentoscriados pelos próprios trabalhadores, pelo próprio povo –proletários, camponeses e marginalizados – que teriacondições de suprimir o Estado e constituir-se no orga-nismo adequado para a reestruturação da nova socie-dade. Isso exigia, ainda, que o movimento fosse cons-tituído com base nas linhas federalistas da almejadafutura sociedade e estimulado por uma organização polí-tica anarquista, num dualismo organizacional sem qual-quer relação de dominação, privilégio ou hierarquia. (Cf.Corrêa, 2013a)

Chegar-se-ia, deste modo, não a um “Estado prole-tário”, mas a uma sociedade sem Estado, federalista, eque tem como base

o fim do patronato, de toda dominação, e a livre orga-nização de sua [dos trabalhadores] vida social, segun-do suas aspirações, não de cima para baixo, como noEstado, mas de baixo para cima, pelo próprio povo,fora dos governos e dos parlamentos de qualquer es-pécie; como a aliança das associações de trabalha-dores agrícolas e industriais, das comunas, das regiõese das nações; e, enfim, num futuro mais distante, co-

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mo a fraternidade universal cujo triunfo se afirmarásobre os escombros de todos os Estados. (Bakunin,2003a, p. 57)

Tais seriam as linhas de um verdadeiro socialismo,em que estariam sob controle dos trabalhadores não so-mente a economia, mas também a política e, enfim, todosos aspectos importantes da sociedade.

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Notas:

1 Esse livro, ainda que não aborde diretamente a teoria de Estadode Bakunin, contribui com a análise histórica que ele realiza da“revolução alemã” e das relações germano-eslavas, que se estendemda Idade Média ao Segundo Império Alemão, e que conduziram àunificação. Esta história, da conformação daquilo que Bakuninchamou de “Império cnuto-germânico” (ou Império cnutegermâ-nico) possui elementos que podem contribuir com a reconstruçãoda teoria bakuniniana do Estado.

2 Confirmando esta afirmação, relato a dificuldade obtida paraingresso em doutorado com um projeto de tese, nas Ciências So-ciais, de um estudo comparativo entre a teoria do Estado de Marx eBakunin. Fui reprovado em todas as universidades estaduais de SãoPaulo e tive de ouvir de uma das bancas que, apesar de aqueleprojeto ser o melhor inscrito naquele ano, como o tema não tinhaespaço na universidade, reprovar-me-iam.

3 Sabe-se da conhecida afirmação de Marx (2008a, pp. 47-48), quea totalidade das “relações de produção forma a estrutura econômicada sociedade” e é “a base real sobre a qual se ergue uma superes-trutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadasformas da consciência social”. É o “modo de produção da vidamaterial que condiciona o processo da vida social, política e espi-ritual”. Entretanto, Engels (1965, p. 417), depois da morte de Marx,parece alinhar-se à posição de Bakunin, quando coloca: “De acor-do com a concepção materialista da história, o elemento determi-nante final na história é a produção e reprodução da vida real. Maisdo que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se al-guém distorce isto afirmando que o fator econômico é o únicodeterminante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, semsentido e em uma frase vazia. As condições econômicas são a infra-estrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (for-mas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, cons-

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tituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc.,formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dosparticipantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concep-ções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas dedogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas histó-ricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de suaforma.”

4 Num estudo como Estatismo e Anarquia (Bakunin, 2003a), porexemplo, que possui pouco mais de 250 páginas, Bakunin recorre àsclasses sociais nominalmente mais de 30 vezes, sem considerar asincontáveis vezes que ele refere-se às classes sociais concretas deseu tempo (nobreza, burguesia, proletariado, campesinato etc.); elasconstituem, sem dúvida, uma das categorias de análise mais rele-vantes do autor nesta e em outras obras.

5 Apesar de este enunciado assemelhar-se, à primeira vista, ao bas-tante difundido conceito de Estado como “poder organizado deuma classe para opressão de uma outra”, enunciado por Karl Marxe Friedrich Engels (2010, p. 89) no Manifesto Comunista, ele possuidiferenças fundamentais, que implicam não somente distinçõesteóricas centrais com o marxismo, mas também rupturas estratégicas

inconciliáveis.

6 Éric Vilain (2011, p. 117) coloca, ainda, que a teoria bakuninianada burocracia que aspira ao poder, aprofundada durante sua críticado comunismo de Estado, toma por base a dominação sacerdotaldeste período: “sua [de Bakunin] teoria da classe sacerdotal daIdade Média”, afirma ele, identifica “uma classe dominante semtítulos individuais de propriedade” que possui “de modo oligárquicoos meios de produção” e que governa “por um aparelho centralizadocuja estrutura é estritamente hierarquizada e que se reproduz porabsorção das elites da sociedade”.

7 Situação que é explicada por Fábio López (2001, p. 63) que, aodesenvolver uma teoria do poder baseada em clássicos libertários,

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afirma que “quando existe um conflito onde duas forças disputamo controle de um único objeto, a guerra só cessará quando se esta-belecer uma relação de poder”. Por isso, “quando existe conflito,mas não vemos guerra – ou seja, em tempos de ‘paz’ – se o agentenão estabeleceu poder, seu opositor terá estabelecido”; assim, “sem-pre, o agente que empenhar maior força social em determinadoconflito até aquele momento histórico, será o detentor do poder”.Assim, em relação aos conflitos entre Estados, quando não há guerraaberta para o controle de territórios, recursos e povos, existe efeti-vamente uma relação de dominação estabelecida que subjugou umEstado a outro, em razão da maior força social mobilizada por ele noconflito.

8 Certamente, esta noção da contradição Estado-revolução possuiinfluência de Proudhon (2001, p. 109; 2011b, p. 404), que sustenta,assim como o russo, que o Estado visa à manutenção da ordem e,assim, contrapõe-se diretamente à revolução social: “o objetivo dogoverno é, se se o recorda”, diz o francês, “não conduzir à unidadea divergência de interesses [...], mas de manter a ordem na socie-dade apesar do conflito de interesses”. “Em questão da revolução”,continua, “qualquer iniciativa entra em conflito com o Estado,assim como o trabalho com o capital”.

9 Conforme explica López (2001, pp. 68-69), “a estagnação da forçasocial significa perda de poder. [...] Primeiro, o poder só está sau-dável quando se está expandindo. Estar estagnado significa que aresistência ao poder está aumentando. [...] Com o aumento daresistência, a oposição ao poder pode se encorajar a partir para açõesdesestabilizadoras. [...] Por isto as estratégias do poder são: a expan-são da própria força computando mais aliados ou aumentando ocondicionamento e disciplina interna da estrutura que garante seupoder social e as ações desarticuladoras contra a força da oposição.”

10 Sem dúvida, esta posição continua os argumentos de Proudhon,desenvolvidos desde o início dos anos 1840 e que se encontram bemsistematizados em Résistance: Louis Blanc et Pierre Leroux, de 1849,

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no qual ele sustenta uma noção de Estado como “constituição ex-terna do poder social” e afirma: “Quem quer que diga Estado-senhor diz usurpação do poder público; quem quer que diga Estado-servidor diz delegação do poder público: sempre uma alienaçãodesse poder, sempre um poder, sempre uma autoridade externaarbitrária e não uma autoridade imanente, inalienável e intrans-ferível dos cidadãos. [...] É por essa razão que nos opomos ao Esta-do.” (Proudhon, 2011a, pp. 482, 491) Assim, o Estado é explicadonesta chave dialética da relação contraditória com a sociedade eda alienação política da força coletiva por meio do monopólio dopoder e do governo dominador da minoria. Conforme aponta JeanBancal (1984, pp. 156, 151), para Proudhon, “o Estado-monopólio éuma constituição exterior da potencia social, uma representaçãoextrassocial da força pública que nega a personalidade e a auto-nomia real da sociedade”. Ele é também “a ‘centralização única e

hierárquica dos poderes públicos’. Um monopólio de poderes quenega a ‘centralização múltipla e democrática que existe socio-logicamente numa sociedade pluralista capaz de se autoadminis-trar”. Criado pela sociedade, o Estado teria se voltado contra ela,em especial contra os trabalhadores; “‘fora e acima da sociedade’, oEstado acha-se ‘fatalmente submetido contra o proletariado’”. Ain-da segundo Bancal (1984, p. 149), em Proudhon, a burocraciaconstitui uma “elite de funcionários” do Estado, os quais “se atri-buem a propriedade do poder, alienam, usurpam a potência social,as forças coletivas do povo, e dispõem “da força coercitiva”. Numachave distinta, porém com conclusões similares, o Marx da juven-tude, em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1843, endossa anoção hegeliana de separação-oposição entre sociedade civil eEstado. Segundo sustenta, ao passo que a sociedade civil representaos interesses particulares dos indivíduos, o Estado constitui um corpoburocrático separado, com interesses corporativos e não representaa sociedade como um todo e nem os interesses gerais, universais; oEstado constitui uma espécie de perversão burocrática. Marx (2005,p. 64) argumenta que “a burocracia está, de fato, baseada nessa

separação” e “as corporações são o materialismo da burocracia. [...]

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A burocracia é a corporação do Estado.” A burocracia, verdadeiraproprietária do Estado, desenvolve interesses particulares e atua emfavor deles; por isso, materializa a alienação da sociedade civil,sendo a defesa dos interesses universais apenas um recurso de au-tolegitimação que termina por ocultar a realidade. O Estado, emverdade, produto da sociedade civil, implica alienação política, aqual se conforma no momento em que o povo submete-se à suacriatura, passando a ser oprimido e perdendo seu estatuto fundante.Como se sabe, esta noção, a partir de A Ideologia Alemã, de 1845-1846, é substituída por outra, que considera o Estado como instru-mento político das classes sociais economicamente dominantes; aquestão da cisão sociedade-Estado e a teoria da burocracia são,assim, descartadas ou, ao menos, colocadas em um plano bastantesecundário. Bakunin não realiza o mesmo movimento de Marx, masintegra, em sua teoria do Estado as noções do Estado como domi-nação de uma minoria privilegiada e do Estado de classe, dandocontinuidade, em alguma medida, às teorizações de Proudhon,mas, ainda assim, constituindo uma teoria do Estado bastante ori-ginal.

11 Desde 1840, Proudhon (1988, p. 69) estabelece esta indissolúvelrelação entre Estado e dominação; “nosso Estado civil [...], Estadoque foi de início despotismo, depois monarquia, depois aristocracia,hoje democracia, e tirania sempre.” Conforme aponta Pierre Ansart(1971, p. 127), em Proudhon, a ligação Estado-dominação consideraque as relações sociais estabelecidas e mediadas pelo primeiro,implicam obrigatoriamente a segunda: “o Estado, seja autocrata oudemocrático, é por essência uma relação de desigualdade e subor-dinação, já que concentra autoridade e exige a submissão doscidadãos”. A dominação do Estado é constatada em função de seuselementos constitutivos, apresentados anteriormente: alienaçãopolítica, monopólio do poder e governo privilegiado de minoria; oEstado, ao monopolizar o poder, não somente condena as massas àalienação política, mas, ao garantir a manutenção da ordem, tam-bém estabelece uma dominação da burocracia sobre as massas.

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12 A noção do Estado como um instrumento político burguês foiesposada por Marx e Engels (2007, pp. 75-76) em A Ideologia Alemã,de 1845-46, quando enfatizam que o “Estado não é nada mais doque a forma de organização que os burgueses se dão necessaria-mente”; para eles, o Estado, esta “forma na qual os indivíduos deuma classe dominante fazem valer seus interesses comuns”, cons-titui o instrumento político por meio do qual uma classe economi-camente dominante – naquele contexto, a burguesia – garante suapropriedade e seus interesses de classe. Posição que se mantém noManifesto Comunista, de 1848 – quando os autores afirmam que “opoder político, em sentido próprio, é o poder organizado de umaclasse para opressão de uma outra”; assim, o poder, em geral, é umpoder de classe e o Estado moderno “é apenas uma comissão queadministra os negócios comuns do conjunto da classe burguesa” – emesmo nas posições de Marx de anos depois, como em A Guerra

Civil na França, quando ele enfatiza que, em seu desenvolvimentohistórico, “o poder de Estado assumia cada vez mais o caráter dopoder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força públicaorganizada para a escravização social, de uma máquina de des-potismo de classe”. (Marx e Engels, 2010, pp. 89, 59; Marx, 2008c, p.400)

13 Nota-se que quando formula sua teoria do Estado, Bakunin estáplenamente ciente do fenômeno que depois ficaria conhecido, combase na análise de Marx, como “bonapartismo”, caracterizado poresse “descompasso” entre a classe economicamente dominante e aclasse cujos representantes estariam no comando do Estado. Em O18 Brumário de Luís Bonaparte, de 1852, Marx reconhece a chamada“autonomia relativa” do Estado em relação às classes economica-mente dominantes, analisando, em bases históricas, o golpe de LuísBonaparte, na França de 1851. Sob as ameaças de uma revoluçãoproletária, a burguesia preferiu ceder o poder do Estado, apoiandoBonaparte, para preservar seu poder econômico-social, conformecoloca Marx (2008b, pp. 71-72): a burguesia, “a fim de preservarintacto o seu poder social, tem que enfraquecer seu poder político”.

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Ou seja, em algumas circunstâncias, para garantir a paz e a conti-nuidade da exploração das outras classes, a burguesia tem de abrirmão do poder político: “a fim de salvar sua bolsa, deve abrir mão dacoroa”. “O burguês particular só pode continuar a explorar as outrasclasses e a desfrutar pacificamente da propriedade, da família, dareligião e da ordem sob a condição de que sua classe seja con-denada, juntamente com as outras, à mesma nulidade política”.

14 A própria utilização do termo “anarquia” nas obras de clássicoscomo Hobbes (2008, p. 159), Locke (2005, p. 560) e Rousseau (2010,pp. 56, 71) relaciona-se à ideia de antiestatismo e, em decorrência,fim da organização social ou da própria sociedade. A associaçãoentre Estado e sociedade, que os transformou praticamente emsinônimos, não é mais que o fruto dessa construção cultural domi-nadora visando legitimar determinados interesses. Nesta chave, ofim do Estado implicaria o próprio fim da sociedade, e foi por issoque se associou, mais à frente, o anarquismo ao caos e à desor-ganização.

15 De acordo com Ansart (1971, p. 132), Proudhon possui con-cepção semelhante: “Nem as boas intenções de um ou de outrogovernante, nem os retoques que desejam reforçar o edifício dogoverno podem modificar esta necessidade peculiar do Estado quefaz dele uma força contrarrevolucionária”.

16 Quando Bakunin (2003a, pp. 215-216) discute os possíveis desdo-bramentos de uma tomada de Estado pelos comunistas, ele coloca:“Depois de se ter apoderado do Estado, ele [o proletariado] deveria,segundo nossa opinião, destruí-lo de imediato, como eternaprisão das massas proletárias; ora, segundo a teoria do Sr. Marx, opovo, não só não deve destruir o Estado, mas deve, ao contrário,reforçá-lo, torná-lo ainda mais poderoso e, sob esta forma, colocá-loà disposição de seus benfeitores, tutores e educadores, os chefes doPartido Comunista, numa palavra, à disposição do Sr. Marx e deseus amigos, que logo começarão a libertá-lo à sua maneira. Eles

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controlarão as rédeas do governo, visto que o povo ignorante precisade uma boa tutela; criarão um Banco do Estado único, que con-centrará em suas mãos a totalidade do comércio, da indústria, daagricultura e até mesmo da produção científica, enquanto a massado povo será dividida em dois exércitos: o exército industrial e oexército agrícola, sob o comando direto dos engenheiros do Estado,que formarão uma nova casta político-científica privilegiada.” Ain-da que seja possível discutir se esta estratégia está ou não comple-tamente presente em Marx, parece inegável que os rumos do desdo-bramento histórico da Revolução Russa – encabeçado por Lênin,Trotsky e outros, incluindo, mais à frente, Stálin – tenham tomadoesta direção. Para uma discussão aprofundada deste tema, cf. Vander Walt, 2011.

17 Discordo da noção, frequentemente sustentada, de que, com aComuna e a redação de A Guerra Civil na França, Marx tenhaadotado uma posição antiestatista que, em alguma medida, seaproxima daquela de Bakunin. Conforme demonstrei (Corrêa,2013), este escrito de Marx não possui elementos político-dou-trinários capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estra-tégia política. Não é possível transformar, automaticamente, a aná-lise de Marx acerca daquilo que foi o fenômeno da Comuna deParis, naquilo que deveria ser uma teoria da revolução ou umaestratégia política recomendada para o movimento internacionaldos trabalhadores. Posições ulteriores de Marx, em especial nocontexto da cisão da Associação Internacional dos Trabalhadoresem 1872, tendem a reforçar o argumento de que há certa continui-dade entre as posições de Marx posteriores à Comuna e àquelasdesenvolvidas no contexto de 1848, que sustentam um projetoestatista de transformação social.

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Felipe Corrêa

TEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADO

Felip

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Filosofia e Política Libertárias

TEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADO

Coleção

Filosofia e Política Libertárias

D esde uma perspectiva histórica, Bakunin identifica que o Estado

moderno surgiu no século XVI, na esteira da Reforma, e que

se consolidou durante os séculos seguintes, processo este que se fi-

nalizou no bojo dos acontecimentos que decorreram da Revolução

Francesa do século XVIII. A Reforma proporcionou condições para

a institucionalização das relações de poder que se estabeleceram no

conflito entre as forças dos soberanos e as forças da Igreja; a Revolução

Francesa garantiu outra modificação significativa nas relações de po-

der, assegurando a dominação mais generalizada da burguesia que,

inclusive, utilizou-se do Estado para tanto em variadas circunstâncias.

Desde uma perspectiva lógica, Bakunin define o Estado em ter-

mos de natureza, caráter e função. Concilia, dessa maneira, a reflexão

hegeliana de juventude acerca da separação-oposição entre Estado e

sociedade civil com o papel do Estado na sociedade de classes, con-

cebido mais adiante como fruto de sua transição ao socialismo. Na

obra bakuniniana, o Estado moderno, em todas as suas formas ou

regimes de governo, é considerado um instrumento político de domi-

nação de classe que possui natureza dominadora, caráter de classe e

função de garantir a dominação de classe.

FELIPE CORRÊA

MARXISMO E ANARQUISMO

René Be r t h i e r / É r i c Vi l a i n

JUSTIÇA E DIREITO

UMA ABORDAGEM LIBERTÁRIA

Pio t r Kropo t k in / Rona ld Creagh

René Be r th i e r / Marco Cos su ta

Enr i c o Fe r r i / J ean - J . Gand in i

ESCRITOS CONTRA MARX

Mikha i l Bakun in

DEMOCRACIA E PODER

A ESCAMOTEAÇÃO DA VONTADE

Eduardo Co l ombo

SOLUÇÃO DO PROBLEMA SOCIAL

Pie r r e - Jo s eph Proudhon

A SOCIOLOGIA DE PROUDHON

Cé l e s t i n Boug l é

ANARQUISTAS, SOCIALISTAS

E COMUNISTAS

Err i c o Ma la t e s t a

TEORIA BAKUNINIANA

DO ESTADO

Fe l i p e Cor r êa

No ano em que se celebram

os 200 anos de nascimento

de Bakunin, resgatar e com-

preender sua obra é uma tarefa

fundamental para abastecer a

teoria e a ação revolucionárias.

Bakunin foi um dos maiores

anarquistas da história que, além

de intervir diretamente nas es-

tratégias do movimento operá-

rio de sua época, influenciando

de modo bastante significativo

um setor amplo da classe traba-

lhadora de vários países, produ-

ziu uma obra extensa e pouco es-

tudada.

Neste livro, Felipe Corrêa

aborda um de seus aspectos: a

teoria do Estado. Partindo de

um levantamento bibliográfico e

da análise da produção bakuni-

niana, ele propõe elementos de

teoria e método para tratar o te-

ma e realiza um estudo do Esta-

do em duas chaves, a histórica e

a lógica, tomando em conta o pe-

ríodo anarquista de Bakunin

(1868-1876).

Parte notável deste legado po-

derá ser conhecida neste rigoroso

trabalho de Corrêa.

Rafael Viana da Silva

IE

IEditora Imaginário

Intermezzo

Editorial

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