teologia e experiência na mística de mestre echhart

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  • UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    ACCIO NASCIMENTO JNIOR

    TEOLOGIA E EXPERINCIA NA MSTICA DE MESTRE ECKHART Uma anlise de como o pai da teologia mstica viveu essa aproximao em seu tempo

    So Paulo 2008

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    ACCIO NASCIMENTO JNIOR

    TEOLOGIA E EXPERINCIA NA MSTICA DE MESTRE ECKHART Uma anlise de como o pai da teologia mstica viveu essa aproximao em seu tempo

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Religio

    ORIENTADOR: Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho

    So Paulo 2008

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    ACCIO NASCIMENTO JNIOR

    TEOLOGIA E EXPERINCIA NA MSTICA DE MESTRE ECKHART Uma anlise de como o pai da teologia mstica viveu essa aproximao em seu tempo

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Religio

    Aprovado em ________ de ____________________ de 2009

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Alderi Souza de Matos Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet Universidade Metodista de So Paulo

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    SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................ 7

    1 CONCEITUANDO OS PILARES DA MSTICA CRIST.................................. 11 1.1 Teologia........................................................................................................................ 12 1.2 Experincia/Misticismo................................................................................................ 15 1.3 Teologia Mstica........................................................................................................... 22

    2 O BERO MSTICO DE ECKHART.................................................................... 30 2.1 Aspecto Histrico........................................................................................................ 30 2.2 Aspecto Religioso........................................................................................................ 38 2.2.1 O Campo Religioso dos Dias de Eckhart.................................................................... 53

    3 ECKHART: AS OBRAS DE UM MESTRE ENTRE A TEOLOGIA E A EXPERINCIA........................................................................................................ 59

    3.1 Conhecendo Eckhart................................................................................................... 60 3.2 A Teologia e a Experincia para Eckhart.................................................................... 64 3.3 Eckhart e seu Ensino entre Textos e Discursos........................................................... 69 3.3.1 Sobre o Desprendimento............................................................................................. 74 3.3.2 O Nascimento da Palavra na Alma............................................................................. 78 3.3.3 Sobre a Nobreza Humana............................................................................................ 81 3.3.4 Contemplao.............................................................................................................. 83 3.3.5 Consolao................................................................................................................... 96

    4 O PAPEL DO RECEPTOR E AS REAES AO ENSINO DE ECKHART... 88 4.1 A Recepo de Mestre Eckhart.................................................................................... 88 4.2 A Barreira da Religio Formal..................................................................................... 90 4.2.1 A Influncia do Trnsito Religioso.............................................................................. 92 4.3 A Barreira do Interior do Mstico................................................................................ 93 4.4 As Reaes ao Ensino de Eckhart em seu Tempo....................................................... 95

    CONCLUSO..................................................................................................................... 102

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................. 106

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    AGRADECIMENTOS

    Gratido ao meu Deus e Senhor nico, doador e sustentador da vida que existe em mim. Gratido minha esposa Cynthia, mulher que me tudo de bom, amada na abrangncia limitada, mas suficiente, do horizonte que me satisfaz por completo. Gratido s nossas filhas Ana Brbara, Monique e Shaila porque ajudam a compor o arrimo da alegria verdadeira que alimenta o nosso lar.

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    RESUMO

    O objetivo do presente trabalho apresentar a importncia do monge dominicano medieval Eckhart no contexto da mstica crist, matria to antiga quanto complexa. Defende-se que em nenhum outro a mstica crist alcanou tanto destaque - em parte, porque sua posio metafsica baseou-se, diferenciadamente, no pensamento dialtico neoplatnico, e em parte porque, no seu prprio tempo e tambm depois, algumas de suas asseveraes sobre Deus ainda esto para ser entendidas. Para isso foi feita uma recapitulao histrico-teolgica sobre as nfases eckhartianas basilares, a extenso da interdependncia vista entre teologia e experincia, e sobre como foi que a mstica delineada e estabelecida por ele marcou seu tempo e perpetuou-se, moldando pocas e movimentos mundiais. Esse raciocnio foi mediado pela perspectiva da fenomenologia crist, e chegou-se concluso que existe plataforma verificvel, pela qual Mestre Eckhart teria contribuio garantida para a espiritualidade nos dias de hoje.

    Palavras-chave: Mestre Eckhart. Teologia Mstica. Espiritualidade.

    ABSTRACT

    The objective of the present work is to present the importance of the medieval Dominican monk Eckhart in the context of Christian mystic, mater that is as old as is it complex. It defends that in no other Christian mystic it reached such a visible position in part, because his Metaphysical position was based, differentially, in the neoplatonic dialect thought, and in part because, in his own time and also later, some of his asseverations about God are still to be understood. For this a historical-theological recapitulation was made on fundamental eckhartians emphases, the extension of the interdependence seen between theology and experience and how the mystic delineated and established by him marked his time and perpetuated, molding times and world-wide movements. This thought was mediated under the perspective of Christian phenomenology, and came to the conclusion that there is a verifiable platform, by which Meister Eckhart would have a guaranteed contribution to todays spirituality.

    Keywords: Master Eckhart. Mystical Theology. Spirituality.

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    INTRODUO

    Teologia e experincia mstica parecem ser conflitantes, irreconciliveis, opostas e,

    em ltima anlise, excludentes. Mas esta impresso cai por terra quando trazemos tanto a teologia quanto a experincia mstica para uma plataforma onde a pesquisa a respeito de ambas as cincias encetada com seriedade acadmica e honestidade histrica. Mistrio, mstica e milagres so nfases que tm caminhado juntas, pavimentando a via da religiosidade humana. A humanidade quer ouvir e sentir a divindade. Ao examinarmos a Bblia, por exemplo, no que tange Histria de Israel e suas prticas clticas, vemos que a cultura veterotestamentria, fundamentada no que Deus falava e fazia, serviu de bero para que durante o perodo interbblico, o homem falasse para compensar o perodo do silncio de Deus, ttulo dado ao tempo decorrido entre o Antigo e o Novo Testamentos. Tambm, naquele mesmo contexto, o conceito de que aquele que fala domina o mundo foi diversas vezes suplantado pelo apelo da mstica silenciosa dos que se dirigiam aos meandros mais recnditos da alma, incurses inexplicveis s vezes, mas saciadas plenamente porque o que se queria e satisfazia no precisava ser verbalizado, comprovvel e muito menos lgico. A prpria expectativa messinica manteve aceso o cultivo do que era mstico. Por vezes em tom jocoso, outras vezes no, msticos convictos insistem que a tendncia mstica est incrustada em cada um de ns; basta termos a chance, ou mesmo uma desculpa e ela ser liberada! Num sentido, a sensibilidade mstica do apstolo Paulo (2 Corntios 12.1-6; Glatas 2.20)1, passando por Orgenes (c.185-c.254), Bernardo de Claraval (1090-1153), Francisco de Assis (1181-1226), Boaventura (c.1217-74), e evidentemente Eckhart (c.1260-1328) at chegar aos nossos dias, foi e tem sido inovadora no sentido de que um mstico convicto estar sempre pronto a ultrapassar os paradigmas j estabelecidos e sedimentados. Em certos momentos, homens resolvem reagir frieza e descaso dos seus semelhantes para com a divindade. Cada reao tem sua peculiaridade e precisa ser vista dentro do seu contexto. O desvirtuamento do conceito mstico no mundo cristo tem imperado quando a piedade se distancia das fontes objetivas como a Bblia, a patrstica e a liturgia. Ao comentar o rumo do pensamento mstico do sculo XIII e especialmente a partir do XIV, enfatizando a unio do ser criado no ser originrio, buscando a experincia espiritual

    1 Textos bblicos utilizados neste trabalho so extrados da verso Revista e Atualizada no Brasil de 1993, por

    Joo Ferreira de Almeida, da Sociedade Bblica do Brasil.

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    como sendo o encontro com Deus na alma, Ronaldo Cavalcante (2006, p. 2) menciona vrios grupos que compuseram a mstica renano-flamenca (Alemanha e Pases Baixos), dizendo que neles a cincia teolgica se fez mstica. No lhes preocupa s a indagao do caminho para Deus, seno mostrar suas ltimas possibilidades e chegar ao fundo metafsico da alma onde se realiza a unio com Deus. Falando da necessidade histrica imposta pela alma humana, conforme vista e estudada pelos telogos, e da maneira como ambos os lados cooperaram para fazer parte da sua concretizao, Cavalcante (2006, p. 29) escreve:

    As regies do Reno, dos pases baixos, vo se tornar focos privilegiados de vida espiritual que impem na Europa novas tcnicas, que perduraro durante sculos, em alguns casos at nossos dias. A espiritualidade ser uma estranha mescla de elitismo e piedade popular, de ambiente monstico que chega tambm ao povo. A escola renano-flamenca tem sua razo de ser. Por uma parte, o povo cristo do sculo XIII toma conscincia de suas necessidades espirituais. O individualismo feudal cede espao ao associalismo religioso, na piedade vivida em grupo [...]. Curiosa e paradoxalmente o associalismo dos leigos pouco a pouco se faz independente dos quadros conventuais e paroquiais, mais subjetivista e individualista.

    necessrio trazer para um ambiente comum as muitas informaes teis que hoje esto esparsas e desconexas quando estudadas sob a tica da fenomenologia antiga e sua representao nos dias de hoje. A utilizao da teologia mstica precisa ser compreendida quanto sua origem, desenvolvimento, influncias passadas e seus reflexos comprovveis na prtica religiosa contempornea. Assim, seria importante examinar o porqu de a teologia mstica ter provocado reaes to opostas. Exemplo disso foi a resposta pblica dada s idias de Eckhart mediante diviso contundente que formou dois grupos distintos e visceralmente opostos entre si. H os que o toleraram e toleram ao mesmo tempo em que h os que o

    condenaram e at hoje condenam. Ainda assim teve discpulos renomados - do porte de Johannes Tauler e Henrique Suso - e exerceu influncia sobre elementos-chave na histria religiosa como Martinho Lutero, conforme veremos adiante. Assim, h de se verificar at que ponto as nfases eckhartianas conhecidas hoje so provenientes de historicidade genuna ou de empirismo questionvel dos seus divulgadores. O caminho sugerido para se alcanar respostas satisfatrias possveis a esses questionamentos consta de quatro captulos. O captulo um trabalha a conceituao dos pilares

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    do estudo mstica crist definindo Teologia, Experincia/Misticismo, para depois se chegar a um conceito trabalhvel de Teologia Mstica nas pginas seguintes e seu papel na vida humana segundo as nfases de Mestre Eckhart, considerado o Pai da Teologia Mstica. importante mencionar que o ttulo de pai da teologia mstica no lhe foi atribudo por t-la criado (origem), mas pela primazia que teve no campo da sistematizao do pensamento mstico. Obviamente, na extenso em que o Mestre o organizou, deixou suas digitais como quem manuseou.

    O captulo dois trata do bero mstico de Eckhart, mencionando a plataforma histrica (sociedade e cultura) e religiosa (Escolstica, Bblia, Mstica e o campo religioso dos dias de Eckhart), para descrever o nascedouro e desenvolvimento de sua formao. O captulo trs apresenta o homem Eckhart na aproximao mais pessoal e menos mitolgica, visto que para muitos estudiosos, o Mestre tornou-se mito. Traz, portanto, biografia com detalhes relevantes direcionados trajetria e influncia de Eckhart voltados ao rumo escolhido para esta pesquisa e trabalha o conceito de teologia e experincia em convivncia na vida prtica do Mestre. O captulo quatro dedica-se meno e ao exame do corpo conhecido das obras de Eckhart voltadas a dois dos seus estilos na docncia: de um lado os textos acadmicos em latim que inseriram a mstica nas faculdades; de outro lado os sermes pregados em alemo que formataram a mstica nos mosteiros e tornaram o Mestre popular na sociedade. As reaes ao ensino de Eckhart nos seus dias e o porqu do paradoxo de aceitao e rejeio to intensas no mesmo contexto so igualmente examinadas.

    H que se verificar que as barreiras ao misticismo no existiram apenas nos receptores; elas surgiram antes no interior do prprio mstico e se avolumaram no seio das instituies religiosas. No entanto, foram vencidas pelo tempo e perduram at hoje. A caminhada crist e o cultivo da espiritualidade durante os sculos no tem acontecido sem turbulncias. longo o tempo em que a metodologia do descrdito tem sido mantida, ou seja, coloca-se dvida na autenticidade do que autntico para buscar suprir tal dvida atravs de conceitos subjetivos, autoritariamente particulares e muitas vezes inconseqentes quanto ao resultado alcanado na vida dos crdulos. Muitos espiritualistas cristos vieram, ensinaram e se foram, sem que deles pudssemos aproveitar algo. Seria o ensino de Eckhart caso parecido, uma ferramenta definitivamente paralela para cultivar a piedade, em rota de coliso, por no acertar o alvo? Ou uma busca espiritual genuna de intimidade da alma com Deus? com o estudo desta tendncia e os efeitos dela que nos ocupamos nestas pginas.

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    prudente, ainda, buscar estabelecer uma periodizao a fim de nortear o estudo da mstica em sua manifestao e caractersticas especficas, mesmo sabendo que definir perodos histricos algo notoriamente complexo; como tentar agarrar o que est sempre em movimento, agravado pela realidade de que parte do problema encontra-se na falta de consenso universal em torno das caractersticas que identificam um determinado perodo, como justifica Alister E. McGrath (2005, p. 67).

    No presente trabalho, os termos como Idade Mdia, medieval e medievalista sero utilizados em suas delimitaes tradicionais atreladas a eventos polticos marcantes, ou seja, um perodo total dos sculos V a XV, iniciando com a desintegrao do Imprio Romano do Ocidente (476 d.C.) e terminando com o fim do Imprio Romano do Oriente, com a queda de Constantinopla (1453 d.C.). Assim, a alta Idade Mdia decorreria do sculo V ao X e a baixa Idade Mdia se estenderia do sculo XI ao XV, posicionamento compartilhado por Etienne Gilson em A Filosofia da Idade Mdia, por Jacques Le Goff em As Razes Medievais da Europa e Paul Tillich em Histria do Pensamento Cristo, a quem recorreremos reiteradas vezes para fundamentar certas reflexes. Essa ser a nomenclatura e a periodizao adotadas.

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    CAPTULO 1

    CONCEITUANDO OS PILARES DA MSTICA CRIST

    A teoria explica provisoriamente a experincia. Esta est entre a teoria e o mtodo. Sem que haja uma experincia explicvel a ser explicada no haver uma teoria para que haja a aplicao de um mtodo. Assim, procurarmos definir o que por natureza indefinvel vai contra todos os mtodos e teorias. A experincia mstica ser sempre particular, ao menos sob ponto de vista de que ela s existir na medida em que algum afirma ter percebido ou sentido algo. Ora, toda percepo e sentimento consistem em algo subjetivo.

    Quando qualquer experincia particular levada para estudo em sua reincidncia numa esfera coletiva sofrer variaes to significativas quanto s adotadas pelos nossos olhos ao percebermos as cores estas podem nos ser parecidas, mas no o suficiente para se estabelecer um critrio rgido que possa se submeter a qualquer mtodo satisfatrio de explicao. Quando o veredicto chegar, algum discordar dizendo que o azul, na verdade, verde. Restaria perguntar: verde para quem?

    Teologia e mstica no se ajuntam espontaneamente. Em suas definies e em como se apresentam, uma objetiva e a outra subjetiva; uma aparente e a outra escondida; uma discutvel, tendo sua plataforma fora de si mesma, e por isso pode ser verificada objetivamente por quantos quiserem; a outra no pode ser discutida porque a plataforma que deveria ser examinada de foro ntimo, particular, desconhecida aos outros e, portanto, sem condies de ser debatida. , em parte, por isso, que a prpria Histria se encarrega de noticiar que os msticos tm tido dificuldades em teologizar seu misticismo, assim como o telogo de mistificar sua teologia.

    Teoricamente, mesmo se teologia e mstica terminarem na mesma plataforma,

    naturalmente elas no se misturaro a ponto de formarem matria homognea. Caso haja fuso entre elas, ambas as correntes ou nfases tero que se deixar modificar, cientes de que o resultado ser sempre amorfo, pelo menos sob a tica de anlise baseada no mtodo e na forma. O pesquisador sabe que a Teologia Mstica no e no pode ser conhecvel em qualquer forma clara e de contornos bem delineados atravs de mtodo algum, a despeito de existir nomenclaturalmente tanto nos dicionrios de Teologia quanto nos de Mstica. Ela se metamorfoseia conforme seu contexto, promotor ou expoente.

    Por isso precisamos conceituar Teologia objetivamente a fim de que se atenda satisfatoriamente a demanda da proposta aqui contida. A teologia dogmatizada tem sido pilar

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    a garantir a sobrevivncia da Igreja Crist. Mesmo assim, cabe questionar como se pode abordar com equilbrio a Teologia se forem tomadas por base as diferenas de conceito existentes entre as prprias escolas teolgicas. possvel conceituar teologia objetivamente? Tal questionamento potencializado quando a experincia mstica anexada ao processo, gerando, muitas vezes, uma teologia rasa por um lado e uma mstica de procedncia duvidosa, por outro.

    1.1 Teologia

    A palavra teologia usada primeiramente em Plato (427-347 a.C.) e comentada em A Repblica (7 ed. p. 91) com o sentido de histria dos mitos e lendas dos deuses contada pelos poetas, a qual deveria ser analisada criticamente e purgada dos inconvenientes conforme o padro de educao adotado. Na Grcia Antiga, teologia e telogo, passaram por diversas mudanas; os poetas foram os primeiros a se intitularem telogos, e a teologia referia-se s discusses filosficas a respeito dos deuses e do mundo; eram as teogonias e cosmogonias.

    Conforme McGrath (2000, p. 1), no final do segundo sculo da era crist,

    Clemente de Alexandria (c.150-c.215) escreveu estabelecendo um contraste entre a mythologia e a theologia, compreendendo por esta a verdade crist a respeito de Deus, assunto nobre e superior. Por aquela, as estrias esprias da mitologia pag com seus fenmenos indecifrveis e inferiores.

    Embora Teologia e Fenomenologia no se restrinjam a matrias de estudo apenas no campo considerado cristo, importante delimitarmos objetivamente a abrangncia adotada aqui para melhor compreenso do tema proposto voltado teologia formal em sua correlao com a experincia mstica.

    Hoje, na forma comum como este assunto tratado, pontua-se a definio de teologia como sendo um termo composto de duas palavras gregas: eos significando Deus e

    logos significando expresso racional, palavra, verbo. Ento teologia seria discursar

    sobre Deus. Mesmo tendo o Cristianismo se desenvolvido no contexto de um mundo politesta, desde o seu incio cercou-se de argumentos direcionadores insistindo que o monotesmo no era discutvel; discutvel era a escolha humana de como relacionar-se com ele. Em outras

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    palavras, se existe um nico Deus e este o Deus da Bblia e dos cristos, tanto o escopo quanto a natureza da Teologia seriam elementos claros, objetivos, definveis e efetivamente definidos. O passar do tempo no pode interferir na conceituao da Teologia para modific-la. Alfredo Borges Teixeira, em 1958, comentou em sua Dogmtica Evanglica que

    Teologia palavra de origem grega que significa discurso ou tratado a respeito de Deus. usada em dois sentidos: a) para indicar todo o corpo do sistema cristo de doutrinas; b) para significar apenas a parte desse sistema que trata especificamente de Deus. (p. 60)

    As palavras podem at mudar durante o processo de conceituao, mas a essncia da definio no sofrer variao, visto tratar de Deus que imutvel, que ontem e hoje o mesmo, e o ser para sempre conforme a Bblia em Hebreus 13.8. O interesse aqui voltado primordialmente para a Teologia conforme conceituada morfologicamente e definida historicamente nos escritos reformados e que tornou-se senso comum. Convergindo a semelhante nfase, quase cinco dcadas depois, Alister E. McGrath (2005, p. 175) escreve que a teologia representa a reflexo a respeito do Deus a quem os cristos louvam e adoram, singularizao estabelecida com propsito acadmico, visto que ele mesmo argumenta na mesma obra que a teologia crist em seu bojo proveniente de fontes diversas como as Escrituras, a razo, a tradio e a experincia. Consideram-se estas como guas divisoras porque, enquanto se pode estudar um Deus que se revela objetivamente nas Escrituras (que podem ser vasculhadas pela razo e comprovadas em sua eficcia na tradio), o estudioso ir fatalmente esbarrar nas incertezas e divergncias encontradas na publicao da experincia pessoal. No pode haver evidncia comprobatria quando no h um campo estabelecido de experincia bsica comum. Ateno voltada para a experincia tornou-se a porta principal de entrada para o que veio a ser chamado de teologia mstica. No estudo das teologias, principalmente quando a mstica trazida para o mesmo tabuleiro, rumo da presente reflexo, feita diferenciao entre teologia positiva (cataftica) e teologia negativa (apoftica). Tradicionalmente, a teologia cataftica foi desenvolvida no Ocidente, enquanto que a apoftica no Oriente.

    Assim, a teologia cataftica (do grego katafatikos positivo, afirmativo) formula uma cincia sobre Deus para a qual - na sua prpria convico - encontra apoio nas fontes da teologia e tambm na razo humana.

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    A teologia apoftica (do grego apofatikos negativo), chamada teologia negativa, baseia-se na premissa de que s podemos falar corretamente de Deus negando, dizendo que ele no , por exemplo, como ns, que no limitado por qualquer coisa, que no se submete s categorias humanas de pensamento, etc. Esta abordagem teolgica enfatiza que Deus maior e sempre diferente das palavras que usamos para mencion-lo e superior aos pensamentos que temos para invoc-lo.

    Na teologia apoftica, dizemos que Deus no nem um de nossos conceitos. Aqui, as palavras se limitam a uma srie de negaes e de negaes dessas negaes, porque Deus est alm tanto das negaes como das afirmaes. Etienne Gilson (2001, p. 85) interpreta a teologia negativa de Dionsio, ilustre representante dessa corrente, dizendo que afirmaes positivas a respeito da divindade so vs porque o que se afirma da divindade est sempre abaixo dela. No sendo luz, nem por isso treva; no sendo verdade, nem por isso erro. Causa inacessvel dos seres, ele transcende ao mesmo tempo sua afirmao e sua negao. O testemunho explcito de tal conceito fica por conta do prprio Pseudo-Dionsio Areopagita no ltimo captulo de seu tratado Teologia Mstica, escrito no incio do sculo VI:

    Ousamos negar tudo a respeito de Deus para chegarmos a esse sublime desconhecimento que nos encoberto por aquilo que conhecemos sobre o restante dos seres, para contemplar essa escurido sobrenatural que est oculta ao nosso olhar pela luz perceptvel nos outros seres.

    Quando se pesquisa a teologia de Eckhart, o estudioso ainda fortemente sacudido por conta de conceitos emitidos por esforados desconhecedores que, no af de pura e simplesmente emitirem opinio, se apresentam muitas vezes contraditrios, rotulando-o como filsofo do negativismo especulativo, no dando conta do paradoxo proferido.

    Ajuntarmos os conceitos de que Eckhart era especulativo em sua teologia e ao mesmo tempo adepto da teologia negativa paradoxal, visto que o pensamento teolgico apoftico expressa uma profunda falta de confiana na especulao e no conhecimento pela analogia. Mesmo assim, em meio a tanta complexidade envolvendo o pensamento eckhartiano, contando com o muito que se no pode compreender, s no cometeremos um erro quando afirmarmos que Deus no tudo aquilo que conhecemos.

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    1.2 Experincia/Misticismo

    Misticismo e experincia religiosa tm constitudo matria de muita pesquisa, mesmo trazendo consigo dificuldades tericas e metodolgicas. H uma vasta gama de definies. Teologia Mstica tem sido conceituada segundo os seus expoentes, segundo o seu perodo na histria, segundo as suas nfases e, muitas vezes, segundo repetio de citaes j existentes. Para muitos, a experincia mstica (o que para alguns sinnimo de experincia religiosa, embora no haja consenso) sempre reducionista, regressiva e patolgica. Alguns crculos religiosos buscam garantir sua escolha estrutural adotando abertamente uma conspirao contra o sobrenatural. Para outros, o misticismo a experincia central num escopo maior da religiosidade ou mesmo um processo espiritual essencial, uma dimenso que cria e faz acontecer.

    A palavra experincia a traduo do grego empeiria composta de en significando

    em e peiria com o sentido de tentativa, prova, experincia. Quanto sua procedncia do latim, vem da palavra experientia com o sentido de ensaio, tentativa, experincia, habilidade, prtica, etc. V-se a utilizao da palavra experincia nos contextos os mais variados possvel passando pelo experimentar de algo que marque a existncia de algum, indo at ao aprendizado que se acumula com o passar dos anos.

    J o termo misticismo foi empregado inicialmente no mundo ocidental, nos escritos atribudos a Dionsio Aeropagita, no final do sculo V. Ele usou a palavra para expressar um tipo de teologia, mais do que uma experincia. Para ele e para muitos intrpretes, desde ento, a mstica se baseava em uma teoria ou sistema religioso que concebe Deus como absolutamente transcendente, alm da razo, do pensamento, do intelecto e de todos os processos mentais. A essncia do misticismo a experincia da comunicao direta com Deus. a crena que uma verdadeira percepo humana do mundo transcenda o raciocnio lgico ou a compreenso intelectual.

    A palavra mstica tem origem no idioma grego mustikoj = iniciado nos mistrios e

    musthria = mistrios, referindo-se as iniciaes. a busca para alcanar comunho ou identidade com si mesmo, lucidez ou conscincia da realidade ltima, do divino, atravs da experincia direta, intuio, ou insight; e a crena que tal experincia uma fonte importante de conhecimento, entendimento e sabedoria. O termo mstica freqentemente usado para se referir a crenas que so externas a uma religio ou corrente principal, mas relacionado ela.

  • 16

    Lima Vaz (2000, p. 17) colocou numa perspectiva de fcil compreenso a relao mstico-mstica-mistrio bem como a originalidade da experincia mstica, dizendo que o mstico o sujeito da experincia, o mistrio, seu objeto, a mstica, a reflexo sobre a relao mstico-mistrio. A experincia mstica, em seu teor original, situa-se justamente no interior desse tringulo: na intencionalidade experiencial que une o mstico como iniciado ao Absoluto como mistrio. Sobre a inteligncia espiritual e a autenticao da experincia mstica dito que

    somente o discurso antropolgico que compreende em si a categoria do esprito, e admite como atos espirituais mais elevados os atos da inteligncia espiritual, capaz de acolher e explicar adequadamente a autntica experincia mstica. (p. 19)

    Nos sculos II e III da era crist, houve uma escola cujos mdicos foram chamados de empricos, distinguindo-se dos seus oponentes, mais ligados palavra, ao raciocnio. Na verdade, diversas esferas de atuao naquele mesmo perodo eram classificadas pela conduta escolhida em seus segmentos. Havia os que faziam experincia, ensaiavam e praticavam de um lado os empricos. E do outro, aqueles que se prendiam mais ao campo do raciocnio, do discurso, da palavra os verbais. A experincia mstica tem como seu foco e concernncia ltima a vivncia direta do encontro com a fonte do sagrado; nas religies testas, a unio com a divindade. Talvez seja possvel afirmar que o encontro direto com o Sagrado, para alm dos smbolos e das liturgias comunitrias, representa a dimenso de maior profundidade existencial na vida religiosa. Essa unio tem sido descrita e experimentada de vrios modos em diferentes comunidades religiosas atravs dos sculos.

    Na mstica judaica, a partir do sculo XVI, a prtica da espiritualidade foi vista como contemplao e absoro na Divindade. J no sculo XX, Rudolf Otto (1869-1937) em O Sagrado entende que a experincia de encontro direto com o Numinoso o centro de toda experincia religiosa. O filsofo judeu Abraham Heschel (1907-1972) em O Homem procura de Deus denomina o Numinoso de Inefvel e assim por diante conforme direcionamento que cada autor queira imprimir.

    A experincia religiosa no se resume apenas mstica. H, certamente, outras seivas

    que alimentam o tronco e os galhos da religio. No entanto, a mstica a seiva viva que torna possvel a fundao e a renovao dos smbolos, das liturgias e da comunidade religiosa enquanto comunho diante de Deus.

  • 17

    Hermisten Costa (2000, p. 6) escreveu que, no sentido epistemolgico, experincia refere-se aos conhecimentos adquiridos atravs dos rgos dos sentidos, que no faziam parte do esprito enquanto puro sujeito cognoscente quando algum diria: a experincia a nica fonte dos conhecimentos humanos. Esta tem sido a utilizao mais freqente da experincia. Mas acontece que, no campo da experincia, a subjetividade soberana. A experincia deixa de ser o que se experimenta para exprimir o que se sente, lanando-se no campo do indefinvel. Na religio crist, os riscos no esto tanto no liberalismo ou fundamentalismo teolgicos quanto na falta de se ter pressupostos que sejam, efetivamente, teolgicos. A Teologia tem objeto objetivo de estudo; a experincia subjetiva no. Da que, se entendermos ser Teologia o estudo a respeito de Deus, contraditrio o resultado teolgico que tem o homem como centro validando arbitrariamente suas mais profundas introspeces, sem ter o nome da matria mudado para Antropologia ou outro termo correlato. Mas, curiosamente, o fio mstico que permeia o ser humano e as religies que

    ele cria para satisfao pessoal, vai sempre resultar na exigncia de experincias comprovadas por sinais ou fenmenos!

    Seja qual for a abrangncia do conhecimento que se adquire possvel atribu-lo experincia imediata interna quando se declara que o conhecer veio mediante intuio psquica com um mnimo de interpretao ou de elaborao conceito mencionado por Ren Descartes (1984, p .83), quando escreveu como um de seus ttulos em Princpios de Filosofia, em 1644, que a liberdade da nossa vontade se conhece sem prova, apenas pela experincia que dela temos.

    J a mstica no um estado ou uma experincia nica e nem existe um tipo nico dela. Se mstica celebra os sensos (embora apenas algumas formas e escolas pensem assim), torna-se impossvel especific-la.

    H muitas subdivises na mstica e muitas delas no so pontuais. Ela pode ser inteiramente no-crist (como nos declarados pagos msticos), ou visivelmente crist (com os chamados cristos msticos). Ambos tm em comum vrios aspectos de crenas e prticas: crem em geral que o ser humano pode ter imediata intuio do infinito e do eterno.

    Quanto percepo da mstica na vida do mstico, h trs tipos dela: a Teoptica, que admite o mstico ligado puramente no sentimento e na sensao. A Teosfica, na qual o mstico estar preocupado em que o conhecimento de Deus resultante da experincia seja o padro para estabelecer ou validar o conhecimento, valorizando mais este do que a experincia em si. Mas h tambm a mstica Tergica, que abriga o mstico interessado em

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    experimentar vises estranhas, fenmenos complexos e inexplicveis bem como os transes, pela experincia em si. Qualquer que seja a linha adotada, na mstica haver sempre o resqucio de um tipo presente no outro.

    Mesmo assim h que se tentar definir mstica no contexto da sua aplicabilidade na vida, porque entre os termos mais antigos, ainda encontrados na literatura acadmica em relao a esse aspecto da teologia, h a utilizao das expresses teologia espiritual e teologia mstica, afirma McGrath (2005, p. 185) ao mencionar a associao natural ocorrida entre mstica e espiritualidade. Ele entende que a expresso mstica passou a ser utilizada para referir-se dimenso espiritual da teologia em contraste com a dimenso puramente acadmica. Isso teria formatado a terminologia moderna espiritualidade e mstica. Seu esforo para uma contextualizao e atualizao terminolgica continua:

    As expresses francesas spiritualit e mysticisme eram ambas usadas em relao ao imediato conhecimento interior do divino ou do sobrenatural, sendo aparentemente tratadas quase como sinnimas na poca. Desde esse perodo, ambos os termos foram resgatados e postos novamente em uso, embora alteraes em suas associaes tenham levado a um certo grau de confuso quanto ao significado preciso, havendo alguns escritores sugerindo que ambos eram apenas maneiras diferentes de falar sobre um relacionamento pessoal autntico com Deus, ao passo que outros sugeriram que o misticismo deve ser entendido como um tipo especial de espiritualidade, que enfatiza particularmente o aspecto de uma experincia pessoal, direta e imediata com Deus. (p. 185)

    A mstica no consegue estabelecer-se slida e definitivamente num certo padro, at mesmo porque muitos autores tm evitado usar a palavra misticismo por entenderem que ela tenha se tornado confusa, de pouca utilidade e instvel.

    Na realidade mstica, quando se intensifica a busca pelo sagrado, ou seja, na tentativa de se ver o relacionamento com a divindade numa esfera mais ntima, h em todas as religies uma propenso conveniente para mudar-se freqentemente a velocidade e as ferramentas com que se busca. A velocidade porque a perseguio se torna mais implacvel e quase todos os sacrifcios possveis so feitos para que tal aproximao ou intensificao no relacionamento

    se d. As ferramentas porque, quando o espiritual a rea cultivada ou, pelo menos, posto em destaque em certas circunstncias, at o que era considerado ilcito noutras ocasies muitas vezes adotado para que se atinja o alvo proposto. Mesmo parecendo irreconciliavelmente

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    paradoxal, muito do que feito no sculo XXI para intensificar a intimidade com o divino j teria sido considerado esprio e condenvel no passado.

    Mstica implica insistentemente na religiosidade, no envolvimento da criatura com a divindade conforme indica o vocbulo grego mustrion que significa mistrio, doutrina secreta, referido-se aos ritos e s doutrinas inescrutveis, daquilo que antes fora desconhecido e agora foi revelado. Pode envolver seres ou coisas, reais ou imaginrias, que sero sempre tidas como maiores ou superiores do que o prprio indivduo. Da a afirmao de Nicola Abbagnano (1985, p. 642) que misticismo toda doutrina que admita uma comunicao direta entre o homem e Deus, ou como definiu Andr Lalande (1993, p.686) em Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia que

    misticismo a crena na possibilidade de uma unio ntima e direta do esprito humano com o princpio fundamental do ser, unio que constitui ao mesmo tempo um modo de existncia e um modo de conhecimentos estranhos e superiores existncia e ao conhecimento normais.

    Quase que invariavelmente, ento, a teologia mstica tem surgido como um protesto contra o formalismo e a esterilidade na igreja, tanto a Catlica Romana quanto a Protestante; um protesto at mesmo dos protestantes contra o racionalismo e a tendncia de se intelectualizar em demasia a f crist.

    Portanto, assim como a histria da igreja crist destaca momentos em que certas nfases delimitadoras tenham sido dadas, paralelamente a histria dos msticos cravada em pocas distintas.

    Nos primeiros sculos da Igreja Crist, quando se discutia sobre a doutrina e a necessidade do seu estabelecimento, enquanto os doutores da igreja investiam o seu tempo combatendo a filosofia grega para salvaguardarem a f crist em sua pureza, o perigo era o de que todo o evangelho se tornasse a exposio de um sistema meramente intelectual. Ali, cristos diferenciados e, por isto, considerados msticos ou espiritualistas, ergueram suas bandeiras e foi estabelecido um protesto contra a intelectualizao da f crist. Os pais da igreja cumprem o seu papel com os recursos do seu tempo e com a bagagem j dominada em seus dias.

    Depois houve um renascimento da mstica na Idade Mdia (tratado mais detalhadamente em captulo posterior), com Bernardo de Claraval e outros pela mesma causa dos primeiros sculos. A Igreja Catlica Romana estava tentando reduzir a f produo de

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    uma escola formal de filosofia. Havia se tornado materialista e sem vida a ponto de ver levantando do seu prprio meio homens condenando a deciso de se adotar a filosofia to abstrata para lidar com o aspecto metafsico da religio, dizendo que aquilo negava a realidade da f crist. Novamente grande leva de msticos relevantes surgiu na histria da igreja.

    No Protestantismo existe evidncia de igual trajeto. A Reforma veio no sculo XVI, mas, como quase que invariavelmente acontece aps cada incio de movimento religioso, a igreja reformada mergulhou na estagnao. Ento vieram os telogos para pontuarem ao povo o que estava ocorrendo, mas sua boa teologia se manifestou mecnica e houve nova reao rumo espiritualidade. Os Puritanos puseram nfase sobre o Esprito Santo e, novamente, buscava-se fugir da nfase voltada para o mero intelectualismo. Mstica crist se preocupa, ento, mediante parte de sua proposta, em direcionar a nfase sobre a realidade do conhecimento de Deus em equilbrio com a possibilidade pressionada pela demanda de comunho com Ele.

    Mas tem-se tentado desvincular misticismo e mstica da nova terminologia espiritualidade. O motivo a tradio arraigada no entendimento de que mstica vem necessariamente de mistrio e que este seria condenvel em qualquer comunidade crist que fundamenta sua f no que j fora revelado.

    Mesmo que os termos mistrio e mstico sejam relacionados etimologicamente com as antigas seitas de mistrio, duvidoso se os escritores neotestamentrios e patrsticos dependiam teologicamente dessas origens. Ao mesmo tempo, embora tenha havido uma mstica essencialmente cristocntrica, buscando intimidade com Deus atravs de Jesus Cristo pelos parmetros das Escrituras, foi o predomnio do misticismo emprico, proveniente da contemplao derivada da tradio neoplatnica que formatou, no passado, a mstica prevalecente at os dias de hoje. Gonzlez (1984, vol. 5; p. 124) escreve que Plotino, o grande mestre pago deste tipo de misticismo, dizia que nesta unio a alma chegava a um estado de xtase. A religio no era a nica a definir os rumos da mstica.

    A arte de se chegar ao desconhecido e mais elevado atravs da espiritualidade tornou-se supra-religiosa. Leonardo Boff (2006, p. 11) lana luz sobre esta reflexo ao escrever na introduo obra O Livro da Divina Consolao e outros textos seletos, que

    a mstica no conhece confisses. Ela perpassa todas as religies. a irrupo de Deus dentro da vida humana. Embora dentro, Deus est

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    para alm de todas as religies. Ele se comunica a todos e se deixa encontrar por todos os que o procuram.

    Professor Denis D. Martin, em Elwell (1996, p. 744), tenta mostrar a diferena e a distncia existentes entra a mstica crist e as tendncias no misticismo pago dizendo que

    Misticismo no a mesma coisa que magia, clarividncia, parapsicologia ou ocultismo, nem consiste de uma preocupao com imagens sensoriais, vises ou revelaes especiais. Quase todos os escritores msticos cristos relegam esses fenmenos periferia. Praticamente todos os msticos cristos evitam por inteiro as artes do ocultismo. Falando de modo breve e geral, o misticismo cristo procura descrever um conhecimento de Deus experimentado, direto, no abstrato, sem intermediao e amoroso, um conhecer ou ver to direto que possa ser chamado unio com Deus.

    H uma mstica genuna fundamentada na compreenso e relacionamento que se pode ter com a divindade. Ela no descarta a introspeco e pode transitar para alm do subjetivismo, sem se deixar mergulhar unicamente nos resultados do que este capaz de criar. A chamada mstica crist pressupe que o ser humano tem uma capacidade ou qualidade apropriada para a comunho com Deus, fazendo bastante uso da doutrina dos seres humanos criados imagem de Deus e da doutrina de Deus que se tornou homem em Cristo. Em muitas situaes, mstica no pode ser dissociada com clareza da prtica correta da religio. Eis porque, em grande parte, ela no facilmente detectvel nem por seus incansveis repressores. Grosso modo pode-se dizer que os msticos nunca foram considerados hereges no Romanismo e que a igreja medieval at os encorajou como um contraponto ao Escolasticismo, exceto no caso de Mestre Eckhart. Tradicionalmente os cristos msticos tm entendido a unio mstica como uma restaurao da imagem e semelhana de Deus, que havia sido distorcida ou perdida, por ocasio da queda da inocncia. A imagem de Deus distorcida, mas no destruda, permanece como o fundamento para a viagem desde o terreno da dessemelhana onde o ser humano sem o temor de Deus se encontra at a semelhana restaurada e unio em amizade com Deus (da o significado da palavra reconciliao em teologia). Mas nisso no h consenso. Decididamente, alguns crculos religiosos buscam garantir sua escolha estrutural adotando abertamente uma conspirao contra o sobrenatural. Os protestantes, em geral, rejeitaram o misticismo e a sua parceira formal, a teologia mstica.

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    Em parte isso se tem dado devido tentativa de se querer conhecer a Deus fora de Deus, ou seja, atravs do homem. Gonzlez (2004, p. 124), ao interpretar a histria, descreveu o trajeto do foco sendo direcionado da realidade para o empirismo, histria afora, dizendo que se tem interpretado assim: visto que Deus est acima de todo conceito humano, o verdadeiro conhecimento de Deus no racional, mas intuitivo. No podemos conhecer a Deus estudando-o, mas vendo-o em contemplao mstica. Esta contemplao no alienada, como enfatiza Boff (2005, p. 31), visto ser ela veculo de conduo da alma humana para uma postura de verdadeira utilidade:

    Mstica no significa despistar a resposta s questes formuladas, nem mistificar a realidade, mas colher seu lado mais luminoso, aquela dimenso que alimenta as energias vitais para alm do princpio do interesse, dos fracassos e sucessos. Espiritualidade e mstica pertencem vida em sua integralidade e em sua sacralidade. Da nascem o dinamismo da resistncia e a permanente vontade de libertao.

    Com o correr da histria, alguns protestantes retiveram certo interesse pela tradio mstica, embora no devam necessariamente ser considerados msticos. Mas a maior parte do protestantismo geralmente tem demonstrado desconfiana ou sido abertamente hostil diante da dimenso mstica da vida espiritual, principalmente argumentando que ela pode ser conceituada, mas no pontuada; definida, mas no repetida para reconhecimento seguro, visto que ela pode ser fruto satisfatrio na teoria e na prtica para um sujeito, mas no necessariamente para outros, porque ela seu prprio referencial. Alm do mais, os crculos mais tradicionais no mundo religioso cristo argumentam veementemente que no tocante conduta, a mstica, enquanto argumento paralelo ao conceito bblico de cristianismo, provocou desvirtuamentos que a histria jamais conseguiu corrigir.

    1.3 Teologia Mstica

    Discute-se muito a validade das conceituaes e definies da teologia mstica. Como definir o inefvel, o sagrado, o transcendente? A teologia mstica constitui-se matria dependente das definies que a ela se atribuem para existir como objeto de estudo de contornos mais definidos e identificveis. Por isso, precisamos conceituar Teologia Mstica em seu veio experiencial embora seja tarefa inglria, impossvel at, faz-lo objetivamente

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    quanto ao que fundamentado na subjetividade por algumas razes: Primeiro, teologia e mstica so coisas diferentes. Segundo, experincia religiosa e misticismo no so temas sinnimos e, terceiro, o ttulo Teologia Mstica voltado mais para a didtica do que para a conceituao, o que vai nominar, mas no definir as correntes. A experincia mstica tem caminhado paralelamente teologia a ponto de influenciar os redutos mais conservadores durante a histria da igreja crist, fazendo nascer e prosperar um ramo chamado de Teologia Mstica. Um dos grandes expoentes da idia de que uma teologia s seria vlida na medida em que provada pela experincia mstica foi Eckhart, o que lhe rendeu o ttulo de pai da teologia mstica. Nele, este tema tornou-se fonte de pesquisa e com ele os princpios basilares da mstica teolgica moderna foram lanados. Parte da nfase eckhartiana pertence ao campo da fenomenologia, onde o racional foi muitas vezes suplantado pelo emocional fundamentado na experincia emprica inexplicvel, mas nem sempre.

    Coro (2008, p. 2), em artigo sobre a mstica de Santa Catarina de Sena, escreve o que poderia ser atribudo tambm postura de Eckhart quanto a querer viver uma espiritualidade serva da intimidade com Deus:

    toda a doutrina ensinada por Catarina de Sena gira em torno de dois eixos principais que tm particular importncia em nossos dias. O primeiro, relativo ordem do conhecimento, consiste no preceito: conhece-te a ti mesmo, em Deus, que Etienne Gilson chamou de socratismo cristo, e que marca toda a espiritualidade da Idade Mdia, desde Agostinho at Catarina. O segundo consiste no preceito de combater e esmagar a vontade prpria, fonte e origem de todos os pecados. E acrescenta que o sentido de autoconhecimento em Catarina de Sena no tem o sentido de introspeco psicolgica, nem o mais alto de exame de conscincia. Ambos so bons e teis, cada um em sua ordem, mas o conhecimento bsico que Catarina tem como preceito de ordem ainda mais elevada. E esta ordem mais elevada demanda que a alma se conhea em Deus, que se reconhea como criatura, como ser sustentado pela Causa Primeira, mantido na existncia pela vontade criadora de Deus. preciso que a alma se ponha diante do Senhor e que, nesse refulgente espelho, descubra o seu Nada, o No-Ser que s ser por favor, por misericrdia, por bondade de Deus.

    evidente que falar sobre experincia mstica bem mais fcil do que examinar com objetividade a Teologia Mstica. Isto se d principalmente quando comeamos a verificar as

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    bases do que temos para estudar; ou seja, como abordar com equilbrio a Teologia Mstica se tomarmos por base a discrdia sempre existente quanto essncia do misticismo? Poderia ser dito da Teologia Mstica, em seu bojo, que ela mudaria na aparncia, mas manteria sua essncia? Ou ainda, no que consiste a sua essncia? Qual a autenticidade comprovvel nos fenmenos religiosos da experincia mstica professada? certo que ficaria fcil conceitu-los, se trazidos para um contexto dominado pela ausncia de variantes,. No haveria questionamentos. Mas esse no o caso. Fenomenologia conta mais com uma rigidez flexvel, algo amorfo para uns e muito bem delineado para outros. Por isso, tambm, o Cristianismo bom hospedeiro para a espiritualidade. Huberto Rohden (1942, p. 10), na introduo do seu livro Agostinho, prepara o caminho para o enfoque que quis dar escrevendo que

    O Cristianismo um organismo espiritual ao mesmo tempo rijo e elstico. A sua rijeza lhe garante, luz da providncia e da autoridade divinamente constituda, resistncia vitoriosa contra todas as impugnaes das hostes diversas. A sua elasticidade lhe assegura perfeita adaptabilidade a todo e qualquer ambiente histrico do seu esprito.

    Obviamente nessa elasticidade que os desmandes acontecem, pois ao tratar a vida de Agostinho como um drama de humana misria e divina misericrdia, Rohden (1942, p. 281) trafega desde a firmeza objetiva do africano at suas incurses nas incertezas dos questionamentos insolveis no abandono do seu silncio e solido com trechos de suas confisses e sermes:

    No recesso da alma racional, bem no homem interior, a que deves procurar e implorar a Deus; aqui que Ele quis habitar. Os homens clamam ele, porm, ensina o silncio. Os homens falam com palavras sonoras ele, porm, fala com pensamentos de discreto mistrio [...] No meio da multido difcil ver a Cristo. Faz-se mister certa solido no nosso esprito. Numa como que viso oculta que o contemplamos... solido interior a conscincia, solitude profunda, onde no pisa o p nem penetram olhos humanos. Cheios de f, habitemos nessa solido.

    Verificando o fio histrico da Teologia Mstica, enquanto matria acadmica que mora na hospitalidade do Cristianismo atravs dos sculos, percebe-se quo relevante ela tem sido,

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    resguardadas as devidas propores. importante estudarmos como a teologia e a mstica se fundiram na pessoa de Eckhart, amlgama resultante que alcanou os reformadores do sculo XVI e perdurou nos cultos prestados divindade nas mais diversas religies, incluindo o Cristianismo, at o tempo presente.

    Sem desmerecer vrios outros fatores que influenciaram grandemente o advento da Reforma Protestante, o misticismo reconhecido como uma das guias que conduziram a sociedade e a igreja a desejarem uma postura nova frente aos desmandes praticados em nome da religio nos dias de Lutero. A propsito, seguro afirmar que a teologia da Reforma Protestante, em Lutero, teve parte dos seus tentculos sacrossantos enlaada nos altares teolgicos e msticos da Idade Mdia, incluindo Mestre Eckhart. O dbito de Lutero para com a tradio mstica largamente questionado por dois extremos: de um lado, os msticos que se autodenominam verdadeiros desprezam a intensidade da mstica de Lutero. Por outro lado, os protestantes, querendo manter fortes e independentes os pilares da Reforma, buscam livrar seu heri maior de qualquer envolvimento com princpios outros quaisquer, fora do comumente aceito. H muita controvrsia nessa via, principalmente quando se pergunta se e como Lutero teria sido influenciado por Eckhart direta ou indiretamente. Cautela nesse rumo prescrita por Heiko Oberman (1966, p. ix), por longo tempo professor de Histria Eclesistica na Universidade de Harvard, em Forerunners of the Reformation. Ele assevera que ao se estudar os precursores da Reforma (tema que titulou o seu livro) qualquer leitor ser apresentado a temas de grande destaque como conciliarismo, curialismo, misticismo, vrios tipos de escolasticismo, a espiritualidade da Devotio Moderna, e o impacto do humanismo renascentista. Depois sugere que buscar conhecer uma poca qualquer dando demasiada ateno aos seus precursores ter viso deformada da realidade presente, porque essa tica

    lana sobre qualquer perodo ou linha de pensamento intelectual um vu interpretativo que alienado ao contexto real, em vez de permitir a interpretao do perodo a partir dele mesmo e no contexto das suas prprias pressuposies. (p. ix)

    Oberman vai alm com respeito s tentativas de se ajuntar ou separar certos ensinos que se estabeleceram na Idade Mdia da pessoa e obra de Lutero. Assim, estabelecimento rgido do misticismo ou qualquer outra plataforma como verdadeiro precursor para o

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    pensamento dominante na Reforma precisaria demonstrar ausncia de mtodo apaixonado, postura indispensvel para uma anlise verdadeiramente histrica dos antecedentes ao sculo XVI no Cristianismo Ocidental (p. 4). Independentemente de conhecermos a extenso da influncia mstica medieval em Lutero, sabe-se que ela existiu mediante testemunho do prprio reformador.

    Poderia ter sido o caso, como querem alguns, de a Reforma ter sido uma espcie de filtro para equilibrar possveis exageros promovidos pela Teologia Mstica? Para Rufus Matthew Jones (1914, p. 287) em Studies in Mystical Religion: Reformers in the 16th and 17th Centuries, o testemunho dos grandes msticos permeou a formao de Lutero. Ao explicar a viso teolgica deste, escreveu:

    Deus para ele como para os grandes mestres Plotino, Eckhart e Tauler o infinito e indescritvel subsolo do universo em cuja Realidade todas as razes da vida e toda realidade das coisas esto fundamentadas [...] os sermes de Eckhart e Tauler se tornaram parte da atmosfera espiritual na qual, homens srios, respiravam [...] muitos deles conheciam os escritos dos grandes msticos.

    Tambm Gonzalez (2004, p. 46), falando sobre a conexo Lutero/Misticismo, depois de deixar claro que para Lutero a Palavra de Deus o ponto de partida da Teologia, acrescentou que tambm havia um vnculo consciente e comedido entre Lutero e o misticismo:

    A avaliao de Lutero sobre o misticismo tambm esclarecedora. Durante sua peregrinao espiritual, os msticos alemes o haviam provido com certa medida de alvio temporrio, e ele experimentara algumas das alegrias que eles descreviam. Lutero sempre sentiu grande respeito por eles. Mas ele tambm estava profundamente consciente do que ele considerava as deficincias do misticismo [...] A nfase dos msticos na experincia ganhou a simpatia de Lutero que insistiu que o que importante no conhecer a Deus, mas que Deus seja favorvel a mim. O ponto de partida da teologia no nem a razo nem a experincia, mas a prpria ao e Palavra de Deus.

    Para Timothy George (2004, p. 47), de uma forma ou de outra, as tradies msticas da baixa Idade Mdia continuaram sendo fonte vital de vida espiritual e de reflexo teolgica

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    at a Reforma e, na verdade, tambm durante esse perodo. absolutamente claro para ele que

    o misticismo deu a Lutero o arcabouo que o possibilitou lanar sua crtica doutrina medieval da justificao, embora ele no tenha conseguido chegar sua prpria formulao madura dessa doutrina central at ter abandonado as premissas bsicas do misticismo ontolgico, pelo menos. (p. 47)

    Isto nos d uma idia da intensidade do envolvimento luterano (enquanto pessoa) com os princpios msticos que o antecederam e que nele se impregnaram. A distribuio equilibrada das nfases relacionando os reformadores e a mstica foi explicitada (p. 48) assim por George:

    Nenhum dos reformadores tomou sem reservas as tradies msticas da Idade Mdia, mas a teologia de cada um deles no pode ser entendida parte de um intenso desejo por uma sensao de imediao divina que suscitava e caracterizava a viso mstica.

    Curiosamente, Max Weber (1864-1920), em A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo (2006, pp. 72, 77), ao falar sobre o conceito de vocao em Lutero, menciona um dos msticos alemes cuja influncia sobre Lutero conhecida e depois cita Tauler, um dos maiores expoentes de seu Mestre Eckhart. E para comentar o conceito da unio mstica no luteranismo (enquanto denominao religiosa), Weber (p. 102) se expressa que nesta rea o arcabouo luterano tinha outros nomes de destaque, mas j era encontrado, antes, no misticismo alemo com o sentido de contemplao:

    Como j sugere a prpria expresso [...] trata-se de um sentimento substancial de Deus; a sensao de uma real penetrao do divino na alma crente; qualitativamente igual aos efeitos da contemplao maneira dos msticos alemes e caracterizada por um cunho de passividade orientada a preencher a saudade do repouso em Deus e por um estado interior de pura disponibilidade. (destaques textuais no original)

    Em se falando do pietismo, luteranismo e calvinismo (enquanto formataes religiosas) em suas motivaes ltimas quanto ao propsito da vida humana, Weber comenta

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    sobre Spener como tendo sido fortemente influenciado pelos msticos (p. 120). Ao ampliar um pouco mais sua abordagem, diz que Spener apreciava mais que a qualquer outro, Tauler e que era absolutamente claro e perceptvel que as influncias luteranas constituram ponte entre o misticismo da Idade Mdia e alguns dos dogmas da Reforma porque Lutero descende de Tauler (p. 233). Parece haver consenso entre expoentes de diversas cincias (Histria, Filosofia, Sociologia, Antropologia, Teologia) que o rumo religioso cristo ps Idade Mdia no pode ser conhecido em sua essencialidade sem levar em conta a influncia que ali a mstica imprimiu em sua matriz.

    Schaff (1964, p. 54), ao comentar sobre a necessidade de uma reforma da Igreja do sculo XVI, menciona diversos fatores que provocaram e direcionaram aquele anseio. Depois de mencionar a ineficcia dos conclios reformatrios realizados visando imprimir mudanas satisfatrias e definitivas, diz que

    O movimento, conhecido pelo nome de Misticismo Germnico ou Dominicano, espalhou-se [...] No atacou as instituies eclesisticas prevalecentes; mas, dando nfase religio pessoal e vida correta, exaltava a piedade quotidiana em detrimento da aliana desigual dos sacramentos com o poder sacerdotal.

    Depois de citar a importncia dos sermes de Eckhart na apresentao das idias formativas do misticismo que perduraria at alcanar e influenciar Lutero, escreve (p. 55) que Aqueles msticos alemes apontaram o caminho da religio pura e imaculada e, embora tivessem afetado pouco a Igreja da poca, prepararam o terreno para a Reforma alem.

    Mas Karl Barth (1886-1968) quem mostra com distino os limites impostos por Lutero em sua prpria vida quanto influncia do misticismo proveniente da Idade Mdia em The Theology of John Calvin (1995, p. 47). Ali ele escreve que Lutero deu as costas com crescente resoluo ao que o misticismo chamava de Deus, embora a princpio pensasse ter encontrado a si mesmo naquela nfase teolgica e em Tauler. Depois, concluindo como se deu tal processo luz das demandas eclesisticas (estruturais) e religiosas (experienciais), acrescentou: vemos claramente que uma escolha precisava ser feita: Lutero ou Eckhart (p. 48). Essa ruptura com o misticismo, ou melhor, definio de terrenos onde certas nfases msticas seriam adotadas, ajudou a definir as fronteiras da espiritualidade luterana durante sua participao na Reforma Protestante.

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    Os msticos estiveram presentes no burburinho incandescente da Reforma Protestante, quando Lutero teve oportunidade de eliminar rebarbas msticas comprometedoras em sua postura ao confrontar uma comunidade que ficou conhecida como Os Profetas de Zwickau indicando que o Esprito Santo falava pela objetividade das Escrituras e no pela subjetividade do entendimento mstico.

    Sem a inteno de esgotar o assunto necessitamos, no entanto, situ-lo rumo ao destino pretendido nestas pginas. Poder-se-ia preferir terminologia mais facilmente compreensvel, mas, para no contrariar hbitos paulatinamente adquiridos e solidamente estabelecidos, citaremos diversas vezes a Teologia Mstica como um blend entre teologia, mstica e experincia, possvel de se estudar.

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    CAPTULO 2

    O BERO MSTICO DE ECKHART

    difcil enquadrar a teologia mstica numa moldura cronolgica definitiva, visto que a histria do pensamento cristo povoou os perodos mais diferentes em seu desenrolar, tendo em seu quintal a propenso mstica indo e vindo, mas deixando sempre a sua marca. V-se que h picos inegveis na histria da Teologia em que a nfase mstica prevalece mais, enquanto sistematizando o pensamento cristo.

    No entanto, vivel situar um personagem num contexto especfico e examin-lo a

    partir do seu relacionamento com a mstica de sua poca. disso que nos ocuparemos agora em relao a Eckhart e atravs dessa plataforma em seu contexto bem definido que estudaremos as obras do Mestre dominicano.

    Em todo tempo e em todo contexto em que se vive o pluralismo religioso, vive-se concomitantemente a privatizao da experincia religiosa. Nos dias de Eckhart no foi diferente. A religio, mesmo se anunciando ecltica, aberta e receptiva, ir a qualquer momento demandar que suas manifestaes se enquadrem em algumas demandas estipuladas pelo seu clero. Eckhart absorveu muito do seu bero mstico e foi no s aceito, mas amplamente promovido, at significar incmodo aos que se consideravam donos da religio. No se conhecia, ento, as palavras de Bonar (1999, p. 114) que alerta quanto ao perigo de qualquer prepotncia em qualquer rea, mas principalmente a espiritual:

    Aquele que chega concluso de que, porque j atingiu a regio da doutrina mais excelente, pode gravitar acima da lei, acima dos credos, acima das igrejas, ou acima dos pequenos detalhes dos deveres comuns, deveria manter-se em guarda contra uma conscincia embotada, uma religio do auto-esforo e uma vida instvel.

    2.1 Aspecto histrico

    Mestre Eckhart tem bero formativo especfico que precisa ser conhecido na constituio da sua histria. Seu pensamento no brotou do nada. O nascedouro de sua vocao, o desenvolvimento da sua formao e o estabelecimento da sua posio mstica se viram forjados no calor intenso de um longo tempo e nas intempries constantes do distanciamento da alma humana da sua intimidade com Deus.

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    Como acontece com qualquer outro personagem que impacta em certas reas da vida e se constitui formador de opinio til ou no, com Eckhart tambm houve um bero, um crescimento e uma influncia. Nessas instncias todas, a histria, a religio e os mtodos de ensino influenciaram grandemente no registro de sua participao na galeria dos msticos, rendendo-lhe o reconhecimento como pai da teologia mstica.

    O bero cultural da Teologia Mstica multifacetal. Nenhum movimento cultural, linha filosfica ou grupo fenomenolgico nasce apenas em torno de si mesmo. No caso da mstica medieval, a sociedade imprimiu nele sua identidade cultural. O comrcio ampliou ou restringiu sua expanso determinando muita coisa que at hoje faz parte dos contornos msticos presentes nas teologias e na fenomenologia. Mas, principalmente, a academia em sua esfera universitria, influenciou metamorfoseando o platonismo e aristotelismo em misticismo. Sem desprezar o papel dos conventos e mosteiros como fomentadores do conceito mstico, as universidades francesas e alems foram seu estopim, amparadas por seus expoentes renomados.

    A cultura fragmentada. No deveria haver insistncia em v-la como um todo mensurvel, definvel e esttico porque ela dinmica, observvel dentro de um processo que nem sempre linear e progressivo e faz parte do paradoxo onde a pluralidade cultural esconde a unicidade e nem sempre ambos so bvios em seus terrenos. Se a cultura fragmentada, muito mais a religiosa em sua dimenso voltada para a busca do sagrado, o que atia ainda mais a necessidade de se estudar o bero mstico de Eckhart.

    Para conhecermos a influncia cultural da sociedade alem na Teologia Mstica de Eckhart, precisamos abord-la sob o foco da nfase posta no contexto social dos seus dias. Diversidade no campo religioso alemo no era o prato do dia a alimentar o contexto que fabricou o bero para a mstica medieval.

    Quando se l Etienne Gilson, Jacques Le Goff e outros autores no estudo do campo histrico da Idade Mdia, v-se claramente que a multiculturalidade era matria desconhecida naquele ambiente onde a simplicidade e o retorno ao estilo de vida abnegada construam juntos o caminho que unia o corao e a vida humana ao sagrado.

    sabido que a identidade passa obrigatoriamente pela cultura, mas qual teria sido a identidade construda a partir da definio social prevalecente? Que legado exclusivo perpetuou e que poderia ser reconhecido posteriormente como proveniente singular daquela poca? At que ponto o Estado regeu a sinfonia do ardor mstico executada por Eckhart e seus discpulos, estimulando a pluralidade e refreando a diversidade mediante noo clara de que esta conspira contra a identidade nacional, e que pelos sculos afora a identidade nacional

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    quase sempre senhora das teologias que lhe nascem intramuros? Qual teria sido a marca cultural deixada nas nfases diversas que compem a espiritualidade?

    Do perodo em estudo, ao falar sobre cidade e cidado e seu peso inegvel na definio das caractersticas culturais, Jacques Le Goff (2007, p. 160) escreve que

    o cidado o beneficirio de uma cultura comunitria forjada pela escola, pela praa pblica, pela taberna, pelo teatro (primeiro renascendo nos mosteiros e nas igrejas, depois, a partir do sculo XIII, nas praas das cidades, como Le Jeu de la Feuille de Adam de La Halle representado em Arras em 1228) e a pregao.

    Mesmo sem buscar conotao religiosa, enquanto descreve um contexto o escritor descreve a histria como girando em torno de um palco aberto ao misticismo com os mosteiros, a igreja e a pregao, elementos que quando combinados abasteceram a mstica medieval.

    Parece ser comum para os historiadores e tambm os narradores da religiosidade ao longo da histria direcionar ateno primeiramente aos perifricos relacionados a movimentos e personalidades que compuseram as pocas para depois defini-las historicamente. o caso de Otto Zoff (1942, p. 13) que, antes de chegar ao tema central de sua extensa obra, busca primeiro contextualizar a interatividade da religio com a poltica na Idade Mdia, como fazem tantos outros escritores, assim:

    Naquele tempo tambm existiam fatores sociais, econmicos e polticos, os quais influenciaram na vida daquele sculo rubro [...] na Idade Mdia, todos os pases se assemelhavam. A estrutura e cdigo feudais de que partilhavam, a influncia avassalante de uma nica igreja internacional, bem organizada, de vrios pases uma genuna famlia de naes.

    Essa famlia de naes desdobrada nos comentrios especficos de Le Goff (2007, p. 173) ao escrever sobre as razes sociais medievais da Europa no campo urbano, denominando-a Europa dos cidados. No mbito comercial chamando-a Europa dos mercadores e na rea educacional destacando o xito acadmico/universitrio, chamando-os de os intelectuais da Idade Mdia. A princpio, o rumo puramente acadmico direcionou a cultura e catalisou a responsabilidade formativa dos contornos sociais, estabelecendo sua autoridade e influncia conforme narrados pelo historiador:

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    O sculo XIII europeu das cidades e do comrcio foi tambm, e sempre no contexto urbano, o sculo da Europa escolar e universitria. Viu-se que, favorecidas pelos burgueses, as escolas urbanas se tinham multiplicado a partir do sculo XII. Se essa Europa das escolas primrias e secundrias trouxe uma base essencial para o ensino na Europa, a criao mais espetacular e que inaugurou a ainda viva hoje em dia foi a das escolas superiores, ditas universidades.

    Estabeleceu-se disputa no plano universitrio dando-lhe importncia e status de entidade quase nica num universo da tantas outras instncias que definiam rumos culturais. Etienne Gilson (2001, p. 483) em A Filosofia na Idade Mdia diz que do ponto de vista filosfico e teolgico, foi a Universidade de Paris a primeira a se constituir; sua influncia no sculo XIII foi tamanha, que eclipsou completamente Bolonha, sua irm mais velha, e

    parcialmente Oxford, sua irm mais nova. Foi quando as universidades estavam em alta entre os agentes formadores de opinio

    que passou por elas uma amostra decisiva do fio mstico que adquiriu ali boa parte da sua formatao. Gilson fundamenta esta tese na evidncia histrica do ressurgimento aristotlico nas universidades do sculo XIII, dizendo que Embora as suas obras lgicas tivessem sido traduzidas h muito tempo para o latim, foi somente no sculo XIII que se descobriu nessas tradues latinas a sua metafsica, sua tica e sua poltica (p. 175).

    A tambm ocorreu uma guinada do meramente acadmico para outra tendncia mais carente de experincia sentida para compensar o intelectualismo filosfico. A relao entre as obras aristotlicas (metafsica, tica e poltica), sua influncia na academia e seu conseqente desprezo ao ser sufocado pela supervalorizao da experincia pessoal, descrita assim por Le Goff (2007, p. 175):

    Primeiro proibidas de serem ensinadas nas universidades, essas obras, que atraam vivamente a curiosidade e o desejo dos estudantes, puderam ser lidas nas universidades. Pode-se at falar de um aristotelismo latino medieval que se tornou moda e que, por volta de 1260-1270, penetrara em quase todo o ensino universitrio [...] Mas, depois de cerca de 1270, o aristotelismo recuou, ao mesmo tempo por causa da condenao de tradicionalistas, como Estevo Tempier, como, pelo contrrio, sofrendo os ataques de mestres mais modernos, que opunham a ele idias mais msticas e menos nacionalistas, tais como os franciscanos Joo Duns Scoto (1266-1308) e Guilherme de Ockham (1285-1347), e o dominicano Mestre Eckhart (cerca de 1260-1328).

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    Estabelece-se o momento em que a influncia acadmica, alimentada nas universidades, suplantada pela demanda experiencial adubada pela deciso de manter aberta a porta para a pesquisa que precisaria ir alm dos textos acadmicos. Le Goff arremata dizendo que o intelectualismo de Aristteles foi agora considerado como um obstculo cincia, que se tornava experimental e aberta discusso livre (p. 175). Abriu-se na chamada cincia uma porta para a discusso do empirismo.

    Mas no foram apenas as universidades os agentes transformadores na confeco do tecido que recebeu a estampa da mstica medieval. Tambm as tabernas e os teatros so tidos como instrumentos que excederam mero ponto de encontros ou amostras de hbitos pessoais nas tabernas ou coletivos atravs de peas teatrais que divulgavam uma opo cultural. Paralelamente, e alimentando uma opo religiosa que queria desprender-se da exclusividade universitria, a cultura foi largamente banhada pelo que se recebia nos ambientes mais variados que se podia imaginar, e a ateno volta-se para a necessidade de se valorizar os fenmenos experienciais e religiosos que deveriam exceder a influncia meramente social.

    Quanto aos mosteiros e conventos e sua influncia inegvel no estabelecimento e cultivo da espiritualidade medieval, apesar de terem surgido entre o terceiro e o sexto sculos da era crist, foi na Idade Mdia que atingiram o seu auge, com o desenvolvimento de vrias ordens monsticas.

    A ordem dos Agostinianos foi fundada entre 1233 e 1244. Os Beneditinos, trazendo uma tradio do terceiro sculo, foram reformados com o trabalho de Bernardo de Claraval (1090-1153). Este, com rompante peculiar dos msticos assumidos, desafiou aos mestres e estudantes parisienses ao refgio monstico dizendo: Fugi do meio da Babilnia, fugi e salvai vossas almas, fugi todos juntos para as cidades de refgio, ou seja, os mosteiros (Le Goff, 2007, p. 156). Os dominicanos foram formalmente estabelecidos por uma bula papal de 1216 e se organizaram definitivamente em torno de 1221. Os Carmelitas, constitudos de peregrinos terra santa, se juntaram no monte Carmelo (da o nome), para viverem a vida do profeta Elias, em torno de 1191. Os Franciscanos se organizaram pelo trabalho de Francisco de Assis em 1223, desenvolvendo-se em vrios ramos independentes, como o dos Capuchinhos.

    Mas todas essas instncias sociais (escola, praa pblica, taberna, teatro e os mosteiros) foram de certo modo esvaziadas da autoridade que tiveram um dia quanto a definir idias e inseri-las na sociedade, por diversas razes bastante abrangentes e que no cabem ao propsito dessas pginas.

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    Ao fazer apresentao dos Sermes Alemes de Eckhart (2006, p. 10), Emmanuel Carneiro Leo comenta o contexto que demandou a necessidade de mudana e deu guarida participao crucial de Eckhart instituindo um novo sistema para aqueles dias atravs de exerccios de verdadeira especulao. O terreno estava fertilizado para ser confrontado e submetido necessidade de deixar que Deus fosse gerado na alma humana, princpio que norteou a pregao e os escritos de Eckhart. Comenta Leo que

    o homem medieval comea a desacreditar que as instituies em vigor e a ordem vigente sejam modelos e paradigmas criados por Deus, quer direta, quer indiretamente [...] nestas condies, no foi difcil o homem medieval sentir-se sem continente, em transio de paradigma, de passagem para um outro mundo. Os velhos padres desvaneceram e os novos parmetros ainda no se consolidaram [...] nas cidades alems, cresce a fora das tentativas de mudanas sociais. Entre o povo surgem sempre novas seitas e emergem por toda parte movimentos religiosos diversos e opostos entre si, mas idnticos todos em contestar a mediao institucional da igreja e em reivindicar autonomia para indivduos e grupos.

    Foi a partir da segunda metade do sculo XIII que a Idade Mdia comeou a perder seu formato histrico longamente institudo e cultivado, e a ganhar um outro nem um pouco cobiado, embora seja histria. Desfigurou-se e produziu o outono medieval, grafado em papel por Johan Huizinga sob o ttulo O Declnio da Idade Mdia (1996, p. 9).

    Sabe-se que o processo outonal no se instaurou da noite para o dia, mas tornou-se irresistvel e irreversvel com a morte do imperador Frederico II em 1250, a partir de quando o imprio Romano-Germnico entrou em progressiva decadncia. Carneiro Leo (2006, p. 9) resume o desmoronamento italiano dizendo que os ltimos Staufer desaparecem. A desordem vai favorecer o fortalecimento da necessidade de alguma atitude no plano religioso falido em seu reflexo na fome da alma humana de rever a ordem e o significado existenciais, pois Manfredo morre em 1266 na batalha de Benevento, e Conradino decapitado em Npolis em 1268. A unidade do Imprio desaba... o poder histrico deixa de ser universal e passa a fundar-se no domnio territorial.

    J na Frana, houve postura mais reativa, no dependendo dos conflitos e suas mortes para dizimar vidas e mudar o rumo da histria, mas Felipe, o Belo (1285-1314) ousou contestar o poder papal de Bonifcio VIII, instaurando a prtica da autonomia nacional.

    Assim, mesmo tendo sido excomungado pelo papa, o rei Felipe no foi muito prejudicado visto que a excomunho j no era um princpio de ordem incontestvel, pois a

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    instituio eclesistica personificada no papado havia perdido sua autoridade. Carneiro Leo (2006, p. 9) arremata: As duas maiores instituies medievais, o Papado e o Imprio, perderam a urea de um poder universal incontestvel. O contexto resultante era catico, enfeitado por incertezas profundas e realado por desintegrao e decadncia, gerando adversidades e instabilidades que abrangiam todas as esferas do mundo de ento.

    A unio da Igreja Catlica com o Imprio monopolizou o direcionamento da religiosidade na era medieval. Solano Portela (2005, p. 8) comenta aquele perodo escrevendo em Religiosidade e o Misticismo da Idade Mdia Lies Para os Nossos Dias que

    No pice do poder da igreja medieval, o papa que deteve maior poder foi Inocncio III (1198-1216). Ele controlava tanto a Igreja Catlica como o Imprio. Humilhou o rei Felipe Augusto, da Frana, interditando todo o pas, forando-o a receber de volta sua esposa divorciada, que havia apelado ao Papa. A seguir, humilhou o Rei Joo, da Inglaterra, numa disputa sobre a indicao do arcebispo de Canterbury. Mais uma vez interditou um pas e convidou o rei Felipe, da Frana, a invadir a Inglaterra se o Rei Joo se recusasse a aceitar os seus termos. Mais ou menos na mesma poca, interferiu na Germnia (Atual Alemanha), definindo a sucesso imperial naquele pas, utilizando as tropas francesas como forma de presso.

    Huizinga (1996, p. 36) escreve que qualquer contexto que no satisfaz as necessidades do corao, e onde a filosofia j no encontra expresso, entra novamente a poesia e na poesia ele cita a expresso deprimente de Eustache Deschamps ao escrever em tom de desabafo melanclico e desesperado narrando a Idade Mdia que agora o mundo est covarde, decado e fraco, velho e cobioso, com as lnguas confusas; vejo apenas fmeas e machos estpidos; o fim se aproxima, na verdade [...] tudo vai mal. Tal atitude corajosa de publicar a desgraa predominante na perspectiva que abrangia toda a baixa Idade Mdia era necessria, pois que toda sorte de pantesmos e excentricidades grassavam soltos dentro e fora dos templos, na luta que se travava rumo redescoberta do sentido da existncia humana que agora direcionava ateno para a piedade e a moral. Estavam construdos os canteiros adubados para a frutificao da mstica. Huizinga (1996, p. 97) narrou que todos estes

    louvam o trabalho humilde e a caridade. Nos Pases Baixos estes caracteres concomitantes do misticismo moralismo, pietismo tornam-se a essncia de um movimento espiritual muito importante. Das fases preparatrias do misticismo intensivo de uns poucos saiu o extensivo misticismo da devoo moderna de muitos. Em vez do

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    xtase solitrio dos bem-aventurados surgiu um hbito constante e coletivo de sinceridade e fervor, cultivado pelos simples habitantes das cidades na convivncia fraterna das irmandades e dos conventos.

    A ateno geral voltou-se para a necessidade de se amainar a inquietao motivada por um esprito revolucionrio insaciado que dominou a Idade Mdia. Foi num ambiente assim onde a mistura do eclesistico e do leigo, do monstico e do secular proclamou bemvindo o Mestre Eckhart com sua chamada mstica especulativa. Alguns historiadores avolumam bastante a distino entre os msticos e os filsofos germnicos alegando que aqueles no tinham pensamento distintivamente sistemtico, exceto Eckhart, e ainda assim em nvel inexpressivo.

    Mas Gilson (2007, p. 939) quem cautelosamente argumenta contra essa possvel dicotomia entre a filosofia e a teologia j na Idade Mdia, e que teria perpetuado at o sculo XXI.

    Desde as origens patrsticas at o fim do sculo XIV, a histria do pensamento cristo a de um esforo incessante reencetado para manifestar a concordncia entre a razo natural e a f, onde ela existe, e para realiz-la, onde no existe. F e razo, os dois temas com os quais se construir toda essa histria, so dadas desde o incio e facilmente reconhecidas na Idade Mdia em todos os filsofos que vo de Escoto Ergena a santo Toms.

    Quanto presena marcante e indiscutvel de reminiscncias filosficas e religiosas medievais nas igrejas crists do sculo XXI, seja ela Catlica Romana ou Protestante, segundo Gilson (2007, p. 943), h que se notar o seguinte:

    Assim que nos perguntamos em que domnios e at que ponto a Idade Mdia preparava um futuro em que nosso presente estivesse includo, deixamos cientemente a histria pura. [...] o sculo XIII ainda passado vivo. Ele o , em primeiro lugar em toda a medida em que o catolicismo continuou a viver [...] e onde quer que o catolicismo esteja presente, as teologias dos Padres e as da Idade Mdia esto presentes e ativas, regras de pensamento e de vida para milhes de homens que vivem no sculo XX.

    Em se tratando da abrangncia desse impacto e influncia no terreno religioso indo alm do romanismo, Gilson garante que os nossos dias no podem negar que a teologia dos Doutores age bem alm das fronteiras da Igreja Catlica, que a Igreja Anglicana, por

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    exemplo, praticamente no possui outra teologia, que o calvinismo e inmeras seitas vivem

    em parte em sua zona de influncia (p. 944).

    2.2 Aspecto religioso

    No por se tratar de mstica que a religio assumiria papel incomparvel ou utilidade insuplantvel na sua formao. Como j afirmamos anteriormente, a mstica tambm resultante de uma cultura, e qualquer cultura multifacetal. No entanto, indubitvel que a nfase religiosa seja mais prxima da formatao mstica de uma poca do que qualquer outra nfase. Da a relevncia da abordagem feita aqui. A religio marcou muito mais Eckhart do que a cultura em si.

    Tambm, sabe-se que a religio integra a histria e ajuda a comp-la. No entanto, ser aqui abordada em separado mirando o lado mais voltado teologia e experincia mstica.

    Possivelmente, nenhuma decepo na prtica da espiritualidade seja to agressiva quanto a encontrada no campo da religio. A depender da forma como so utilizadas, a histria e os mtodos pedaggicos podem agir quais ferramentas torpes enquanto atuam no campo da razo, mesmo por acreditar na possibilidade de conserto posterior. Mas a religio quando mal utilizada prejudica mais por penetrar mais agudamente na emoo e na alma do que no intelecto.

    A Bblia incentiva a parceria entre emoo e razo para se viver equilibradamente. Fala da necessidade de se buscar postura estvel ao se prestar culto a Deus sem querer utilizar uma destas virtudes em detrimento da outra. Em 1 Corntios 14.15, h uma pergunta apostlica depois de observar a conduta discrepante dos corntios: Que farei, pois?. A resposta precisa: Orarei com o esprito, mas tambm orarei com a mente; cantarei com o esprito, mas tambm cantarei com a mente. Quando a nfase religiosa torna-se outra fora do seu propsito, o prprio tempo se encarregar de anunciar que hora de mudar. Portela (2005, p. 6) escreveu que o papel religioso da Igreja enquanto instituio na referida poca havia se desvirtuado. Afirma:

    Encontramos a Igreja Catlica, no pice da idade mdia (sculos13 a 15), com a maioria das prticas litrgicas, incorporadas do paganismo, j institucionalizadas dentro da estrutura eclesistica. O cenrio est sendo preparado pelo Senhor da Histria para a Reforma do Sculo XVI. A religio foi transformada de uma devoo consciente a Deus, baseada no que conhecemos de Deus pelas Escrituras e exercitada pelas diretrizes da sua Palavra, no misticismo subjetivo baseado em tradies humanas, exercitado em prticas obscuras.

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    A mesma tica parece ter dominado outros autores. Timothy George (2004, p. 29), por exemplo, menciona o distanciamento da Igreja do propsito para o qual existia, preferindo imprimir maior presso eclesistico-institucional sobre um povo j sem alternativa. Ele escreve que em nenhum outro lugar era mais evidente o carter opressivo dos deveres da vida religiosa da baixa Idade Mdia do que nos manuais de confisso e nos catecismos para leigos. Depois narrou a situao como uma crise sem sentido rejeitada pela sociedade com reao encabeada e proclamada principalmente pela influncia mstica exercida nos mosteiros e fora deles, contribuindo para que em todas as reas da vida, as antigas fronteiras estticas fossem sendo transgredidas (p.31). Talvez por isso, ao tratar a espiritualidade no contexto da baixa Idade Mdia disse que foi um movimento popular de renovao espiritual que enfatizava a iluminao interior e a unio imediata com Deus (p. 323); e isto porque a mstica brotou num contexto onde a verdadeira religio no podia esperar mais para acontecer, visto que a instituio eclesistica havia se desviado do seu propsito e a religio formal j no tinha eficcia. Portela (2005, p.6) comenta:

    A Igreja, que deveria aproximar as pessoas cada vez mais de Deus e de sua Palavra, na prtica afasta os fiis da religio verdadeira. Os rituais e a liturgia so realizados em uma lngua desconhecida (Latim). Os seguidores so sujeitos a uma hierarquia estranha Bblia, na qual os administradores maiores se preocupavam mais com o jogo poltico do que com a situao espiritual dos fiis.

    Por outro lado, a situao negativa da Igreja medieval parece no ter alcanado to abrangentemente o cristianismo ou, se alcanou, no foi percebida e considerada como tal, conforme o historiador Bruce L. Shelley em Christian History, Issue 28 (vol. 9, p.27), ao afirmar sobre o Cristianismo da Idade Mdia que

    muitos cristos viram a mo de Deus no feliz casamento da igreja Crist com o estado Romano. Uma piedade mstica floresceu sob a proteo dos imperadores ortodoxos at 1453, quando os Turcos Muulmanos trouxeram o Imprio Bizantino sua runa final.

    Aqui, cabe perguntar o que foi que pavimentou o campo religioso em seu estabelecimento mstico antes de Eckhart visto que o mesmo cristianismo inserido naquele contexto decadente parece ter caminhado acima da decadncia.

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    Ao abordarmos a mstica crist como sinnimo de espiritualidade ou intimidade experimentada com Deus, dito que ela teria nascido do Cristo, fundador do Cristianismo. Ele que veio buscar e salvar o que se havia perdido conforme o evangelho (Lucas 19.10) e que Deus escolhera dar por meio de Cristo o ministrio da reconciliao ao ser humano (2 Corntios 5.18), ou seja, criar um relacionamento de amizade.

    Msticos ao longo da histria acrescentaram contornos e cores que vieram realar ou desvirtuar a mstica em todo campo religioso, e sabido que a maneira de lidar com o sagrado que prope enfeitar em demasia ou mudar de rumo a ponto de abandonar o ideal estabelecido, criar produto amorfo, ou com deformidades pontuais comprometedoras.

    O ar que ajudou compor a atmosfera mstica que recebeu Eckhart bastante denso e no nos cabe tentar decifr-lo minuciosamente, por fugir ao propsito deste trabalho. Entretanto, h que se mencionar, mesmo en passant, alguns personagens que chamaramos de agentes modeladores da matriz mstica crist aportada na Idade Mdia como Jesus Cristo e o apstolo Paulo no contexto da Igreja Primitiva, os Montanistas, Plotino, Santo Agostinho, Joo Cassiano, Dionsio, Gregrio e Bernardo de Claraval, todos como plataforma de acesso ao misticismo de Eckhart.

    No uso neotestamentrio a palavra mistrio (grego musthrion) tem um sentido que abandona o conceito do simplesmente remoto, obscuro, recndito e de difcil compreenso, para mostrar-se cognoscvel e atingvel.

    Assim, o sculo I teve Jesus Cristo, seus apstolos, e a igreja crist primitiva para os quais a palavra mistrio fazia parte da sua conversao comum e no consistia num fim em si mesma, pois era usada para ilustrar outros assuntos, ou como parte de um argumento cuja concluso era mais importante do que as palavras utilizadas na argumentao.

    Nas palavras de Jesus conforme os evangelistas, o temo mistrio foi registrado apenas trs vezes: Mateus 13.11, Marcos 4.11 e Lucas 8.10. Mateus e Lucas usam o plural

    mistrios e Marcos utiliza o singular mistrio. O que so esses mistrios? Qual era o segredo que somente os discpulos podiam entender e qual era a importncia da palavra mistrio naquele contexto?

    Mateus 13.11 registra: Ao que respondeu: Porque a vs outros dado conhecer os mistrios do reino dos cus, mas queles no lhes isso concedido. {conhecer os mistrios} (gnwnai ta musthria). A palavra musthrion vem de musthv, algum iniciado, e esta de muew, fechar ou, segundo Eicher (1993, p. 564), fechar os olhos e olhar para o interior. Marcos 4.11 e Lucas 8.10 registram que o reino divino: A vs outros vos dado conhecer o mistrio do reino de Deus (umin to musthrion dedotai thv basileiav tou yeou). Ento

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    aqui Jesus explica que suas parbolas so abertas aos discpulos, mas fechadas aos Fariseus com sua mente hostil definiu Robertson (1930, p. 104). Assim, no caso da narrativa nos evangelhos, os discpulos de Jesus tinham sido iniciados nos segredos do reino dos cus. Ao comentar o texto de Mateus, MacArthur (1994, p. 348) diz que

    no mundo antigo mistrio era um segredo do sagrado conhecido apenas aos iniciados e muitas vezes acessvel s aos religiosos de nvel considerado superior. Mistrios no Novo Testamento so explicaes das verdades divinas que no foram reveladas no Antigo Testamento.

    Hendriksen (1987, p. 553) traz moldura histrica para os mistrios citados na Bblia ao comentar o mesmo texto dizendo que:

    Mistrio algo que teria permanecido desconhecido caso n