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Pe. João Betting (1906-1986) TEOLOGIA DAS REALIDADES CELESTES Manual de Ascética e Mística Edição PDF revisada por Fl. Castro. Aparecida, 2004

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Pe. João Betting (1906-1986)

TEOLOGIA

DAS REALIDADES

CELESTES

Manual de Ascética e Mística

Edição PDF revisada por Fl. Castro. Aparecida, 2004

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HOMENAGEM JUBILAR. A Publicação deste livro é uma homenagem sincera,

revestida de gratidão e carinho, ao nosso querido Padre João Betting, por ocasião da celebração do Jubileu de Ouro de sua Ordenação Sacerdotal, acontecida a 7 de junho de 1981.

Padre João, aceite esta homenagem dos seus ex-

alunos de Teologia que nesta data imploram para seu Ju-bileu as melhores bênçãos de Deus e a proteção de Nos-sa Senhora!

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PE. JOÃO EVANGELISTA BETTING 1906 – 986 Padre João nasceu em Denkingen (Alemanha), em

dezembro de 1906, professou no dia 17 de maio de 1926 e foi ordenado sacerdote em 07 de julho de 1931, vindo para o Brasil em 1936. Foi o último dos alemães que veio para cá. Já veio como professor do recém-fundado Semi-nário de Tietê, onde ministrou aulas durante vinte e oito anos. Durante todo esse tempo foi a figura central do cor-po docente.Lecionou quase todas as matérias, mas prin-cipalmente Sagrada Escritura, que era o seu forte.

Dedicou muitas e muitas horas a cuidar da biblioteca

da Província. Era confessor e diretor espiritual de grande número de nossos estudantes. Era conhecidíssimo em Tietê, onde passou a maior parte de sua vida, no Brasil. Muito procurado como confessor, diretor espiritual e tam-bém como benzedor, ficando afamado com suas bênçãos. Era um místico e foi um professor ”sui generis”.

Escrevia sobre curiosidades e notícias científicas

nas publicações internas da Província e em revistas dedi-cadas à espiritualidade. É de sua autoria o livro “Teologia das Realidades Celestes, manual de ascética e mística”, editado pela Província. Quando o Seminário Maior foi transferido para a Raposo Tavares, em São Paulo, o Pa-dre João foi junto. Foi aí que começaram a manifestar-se os primeiros sintomas do mal de Parkinson, do qual veio a falecer.

Foi operado na Alemanha, em 1969, com quase ne-

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nhum resultado. Os médicos, vendo o pouco que haviam conseguido, recomendaram que voltasse logo para o Bra-sil. Ele dizia que queria morrer em sua segunda pátria. Em fins de 1972 foi transferido para o Jardim Paulistano, de onde, alguns anos depois, passou para a casa de ben-feitores da Congregação: Dona Elizinha e Narciso Sutiro, sobrinhos do Padre Sotilo. Ela era sua penitente. Diante das alucinações de perseguições e de envenenamento que o padre sofria, perguntaram-lhe se queria ir para a casa dela, o que ele aceitou. O casal, seus filhos e Dona Ia, trataram do Padre João com todo carinho possível e cuidado, até a morte.

A doença ia caminhando sempre mais Vivia quase

só sentado numa poltrona. Foi se encurvando cada vez mais, à maneira de Sto. Afonso, e, por fim, não falava mais a não ser por sinais Sem se queixar, ficou privado até do que mais gostava na vida, seus estudos e seus livros. Mas enquanto foi possível, era um estudioso dedi-cado e homem de muita oração.Celebrou missa enquanto pôde, em seu quarto. Faleceu na tarde de 21 de fevereiro de 1986. Foi sepultado em Tietê. É venerado pelo povo da região como um santo (Pe. Víctor Hugo S. Lapen-ta)(Da publicação interna: Aqueles que nos precederam.)

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Nota do editor Não foi possível ter acesso ao texto original do autor.

Trabalhei com o texto publicado numa edição particular, com muitas falhas e erros de transcrição, pois aparente-mente o texto foi datilografado a partir de ditado, sem ter passado por adequada revisão e sistematização. Com isso, algumas vezes, procurei recuperar o sentido original da melhor maneira que me era possível. Esta, pois, não é uma edição crítica.

O autor às vezes usa estilo bastante telegráfico, que respeitei, como aliás o fiz a maior parte das vezes, limi-tando-me a correções gramaticais. Tomei certa liberdade na divisão de parágrafos, tendo em vista uma padroniza-ção do texto.

Espero ter assim contribuído para a preservação de um texto que merece ser conhecido, quando mais não fosse como testemunha de uma época. Com essa iniciati-va quero prestar uma homenagem ao autor, a quem muito devo.

Fl. Castro, cssr.

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Prólogo Dedicamos estas páginas a Nosso Senhor Jesus

Cristo que fez “Sumo Pontífice das Realidades Futuras” (Hb 9,10.)

“Dizei, sinos da terra em clamores supremos toda a nossa tortura aos astros de onde viemos toda a nossa esperança aos astros para onde iremos”. (Olavo Bilac). “Sou alguém para o qual existe o mundo invisível”. (Newman). “O essencial é invisível aos olhos”. (Exupéry). 2Cor 4,18: “Exorto-vos a contemplar não as coisas

visíveis mas aquelas que não se vêem, pois, o visível e-xiste por tempo limitado, o invisível é eterno”.

O Concílio Vaticano II recomenda aos cristãos: “pro-jetem-se para as realidades futuras” ( GS 38).

Há uma teologia das realidades terrestres. Todo ho-mem, posto neste mundo, tem de desempenhar na terra o seu papel; grande ou pequeno, pouco ou muito variável, conforme a época da história humana, ou da pré-história em que ele foi colocado.

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Einstein não seria o inventor da teoria da relatividade se tivesse vivido na gruta neandertalense.

Variável em dependência do continente que é o seu habitat: Europa, América, Austrália ou Antártica, ou ainda, variável segundo a quota de tempo que lhe seja concedi-do para atuar no palco da história. Um papel em grande parte já fixo e programado pelas circunstâncias de tempo e lugar, e condicionado pelos inúmeros detalhes da exis-tência de cada criatura.

Escrevi esta TEOLOGIA DAS REALIDADES TER-RESTRES para que o homem, no afã de construir a CI-DADE TERRESTRE, não se esqueça da CIDADE DE DEUS na terra, pois, a cidade de Deus, no CÉU, está toda ela por conta do próprio Deus. TP

1PT O último livro da Bíblia, o

Apocalipse, faz um croquí dessa cidade futura, mas em arte abstrata só compreendida por peritos.

A programação dos valores celestes é livre, à esco-lha de cada um, embora essa escolha, feliz ou infeliz, pe-se na contagem final dos pontos. É oferta, “gentileza” da Santíssima. Trindade que rege este mundo.

Há um convite geral, mas o amor quer uma colabo-ração espontânea, não forçada, uma livre escolha.

A Igreja está encarregada de avisar sobre o perigo de perder o sentido do Infinito, do Absoluto, do destino

TP

1PT Aqui o autor fala de “Teologia das Realidades Terrestres”: se-

ria esse o título que tinha pensado para a sua obra? Por que na edi-ção final temos “Teologia das Realidades Celestes”?

Não tendo à disposição os textos originais, pude a-penas rever o que me pareceu falha gramatical e estilísti-ca ou engano de quem datilografou o original (Fl. Castro)

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eterno. “A transformação do mundo em uma comunidade

fraterna de amor, justiça e paz é tarefa vossa (dos religio-sos monges)... e como desempenhar-se dela, se falta es-se gosto do Absoluto, que é fruto de certa experiência de Deus?” (Paulo VI na Evang. Testif. nº. 52, cf. 34).

Encerrado no estreito horizonte do momento que passa, o homem de hoje não sabe mais ver sua existên-cia à luz de Deus.

O comerciante, o industrial avaliam tudo à base do dinheiro. A jovem dificilmente se eleva acima dos seus vestidos e da moda. Um “milagre” seria a mãe de família descobrir que seu filhinho tem uma alma e não só um corpo. Um véu espesso, um smog espiritual rouba aos homens o sentido divino das coisas.

Certa amiga aconselha a outra a leitura da vida de Cristo, de Papini, e começa a contar episódios e passa-gens do livro. “Não conte nada , interrompe a outra pois, se souber como termina, perco o interesse!”...

Eis como voamos por cima das realidades como borboletas, guiados por ilusões. E isso é fatal um vez que Cristo é o Primeiro e o Último o último capítulo da história humana e da nossa em particular também! Os grandes da história humana passaram todos. Mas Cristo “é de ontem, de hoje de toda a eternidade” (Hb 13,8). Ele foi posto “como ruína e salvação” (Lc 2, 34). A cada um cabe esco-lher.

Ele sobreviverá a todos e sem ele, “o mundo é como um relógio sem números. Gira, anda dia e noite, mas nin-guém sabe para onde e para que” (Langbehn).

O Credo do Povo de Deus de Paulo VI, orienta-nos: “Confessamos que o Reino de Deus, iniciado aqui na ter-ra, na Igreja, não é deste mundo, cuja imagem passa. Seu crescimento não pode ser confundido com o progresso da civilização e da ciência ou da técnica humanas mas con-

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siste em conhecer sempre mais profundamente as inson-dáveis riquezas de Cristo; em esperar sempre mais ar-dentemente os bens eternos; em responder sempre mais decididamente ao amor de Deus; em distribuir sempre mais largamente a graça e a santidade entre os homens.

Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a preocu-par-se constantemente com o verdadeiro bem temporal dos homens. Não cessando de recordar aos seus filhos que eles não possuem aqui na terra morada permanente, com insistência os incita a contribuírem, cada um segundo a sua vocação e os seus meios, para o bem da cidade terrestre, e promoverem a justiça e a fraternidade entre os homens...

A grande solicitude da Igreja pelas necessidades dos homens... não é senão a expressão de seu ardente dese-jo de lhes dar sua presença para iluminá-los com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador.

Tal solicitude não significa absolutamente que a Igre-ja se conforme com as realidades deste mundo ou que ela perca o ardor da expectativa do seu Senhor e de seu Rei-no eterno” (Paulo VI 30-06-1966).

A mensagem de Natal de 25-12-1973, dedica-se ao mesmo tema: “Muitos hoje em dia substituem a teologia pela antropologia. Vêem no Cristianismo um valor huma-no aceitável por todos; não vêem a verdade divina... O ponto estratégico das discussões ideológicas é o huma-nismo, que se transformou numa utopia cósmica, que faz do homem o “deus” do homem e que, numa vertigem do pensamento, faz do homem a causa absoluta de si pró-prio... Diferente é o humanismo que celebramos com o Natal de Cristo pois apresenta uma outra concepção do homem”.

Eis a tabela dos valores da CIDADE DE DEUS, das realidades celestes: DESTINO — DEUS — GRAÇA — AMOR — ORAÇÃO — SOFRIMENTO.

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Meus ARGUMENTOS: Escritura, Magistério, Tradi-ção (pelo prestígio que lhe compete) e os Santos, toda vez que eles me dão uma palavra mais expressiva do que eu podia imaginar. São eles, os Santos, melhor qualifica-dos para o profetismo carismático, estando eles em “os-mose” espiritual com o divino mais do que nosso raciocí-nio opaco.

É escusado lembrar que damos esta teologia que-rigmática para o povo de Deus, dispensando o aparato científico, mas não a seriedade da argumentação, e sem deslustrar o vigor lógico e teológico.

Quanto às revelações particulares, sirva-nos de bús-sola a palavra tão judiciosa de Sta. Teresa de Ávila: “usá-las como se chupam as uvas, jogando fora as cascas, guardar o conteúdo suculento, abstraindo da origem su-postamente divina. TP

2PT As antologias são a voz do povo de

Deus. Trata-se de gênero literário. O teólogo moderno é advertido sobre as restrições segundo a teologia mística (Cf. especialmente S. JOÃO DA CRUZ, Subida 2,28, sobre as palavras sucessivas).

Aqui nós consideramos estes textos como literatura religiosa, como testemunhas. Ilustram a doutrina como flores viçosas ou como modestas ervas no jardim dos elei-tos, do vinhedo místico. Os (as) visionários (as) não nos contam novidades. Somente lembram oportunamente verdades da Revelação já conhecidas, mas talvez menos advertidas, talvez escondidas ou esquecidas em alguma

A observação volta no capítulo 9, Galeria das Víti-

mas.

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“dobra” das páginas da Bíblia. Repito: é gênero literário. Cícero, imitando os diálogos de Platão, colocou suas

idéias sobre ética e moral, na boca de antigas persona-gens dos tempos heróicos de Roma, figuras reais mas já falecidas. E ele comenta que, ao reler às vezes, as diatri-bes do velho Catão, se impressionava tanto que sucumbia à ilusão de estar ouvindo as próprias palavras do velho politiqueiro romano, embora soubesse muito bem que tu-do não passava de produção literária de sua própria ima-ginação (Lélio 1).

Ainda duas palavras de orientação e guia: Diz o Mestre: “Eu te louvo e agradeço, ó Pai, porque

ocultaste estas coisas aos sábios e inteligentes e as reve-laste aos simples” (Mt 11,25).

E seu discípulo: “Não extingais o Espírito... examinai tudo e ficai com o que é bom” (1Ts 5,13).

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1. DESTINO

PARAÍSO TERRESTRE É destino natural do homem a transformação do pla-

neta num paraíso terrestre. Na media do possível, levan-do-se em conta as contingências biológicas e ecológicas deste planeta solar, o homem deve cultivar sua moradia, seu “habitat”.

É o sentido da história que o homem evolua mais e mais, de um ser puramente animal para um ser racional, um ente intelectual. É destino do homem desenvolver e cultivar sempre mais suas qualidades mentais por meio das quais ele cria e usufrui o que chamamos de cultura: música, arte, ciência, e faz participar destes bens uma porcentagem sempre maior de seres humanos. Civilizar, cultivar, socializar em progressão sempre crescente a fa-mília humana.

Papel importante tem nisto o domínio técnico que libera o homem das necessidades puramente biológicas da sobrevivência. Tarefa que a técnica, em todas as suas modalidades, está cumprindo cada dia melhor, até chegar a uma automação completa, à substituição cabal do trabalho huma-no pela máquina, deixando ao homem o lazer de cultivar os três grandes bens naturais: verdade, bondade e beleza, ou seja, ciência, virtude e arte.

Cultura Um ideal que deve ser refeito em cada nova geração

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em vista da estabilidade precária da raça, ou, simples-mente pelo fato de o homem nascer criança. A aquisição dos bens da cultura e a adaptação social e cultural é uma tarefa que cada indivíduo tem de realizar através de uma ação pessoal, com os recursos que a natureza lhe deu, com seus talentos. E nem todos nascem poetas ou cien-tistas.

Fato curioso considerar o homem da civilização ho-dierna seu melhor passatempo caçar ou pescar, de prefe-rência na mata virgem, à beira p. ex. do Amazonas. Um atavismo inveterado da raça este retorno à pré-história adamítica.

Mas o ideal procurado, é fazer toda a humanidade participar destes bens de cultura, na medida do possível.

O corpo é parte do homem. É substrato e instrumen-to de sua atividade intelectual. É como o chassis de um auto, que não foi feito para correr a esmo pelas estradas, mas foi criado para o passageiro. O importante é ele, o passageiro, poder admirar a paisagem e demais belezas da terra, do ar e do mar.

Escritura Gênesis 1: a primeira página da Bíblia, a carta mag-

na da criação, entrega ao homem a tarefa de “subjugar” a terra.

Com muita graça exprime-se o Eclesiastes (3,11): “Deus entregou o mundo ao homem para suas disputas” (Tradução da Vulgata). “Disputa” não significa apenas, diálogo, bate-papo, mas pesquisa e uso-fruto técnico do mundo que nos rodeia, inclusive Lua, Marte e demais co-legas siderais

O texto hebraico do Ecl 3,11 diz melhor ainda: “Deus entregou o mundo ao coração deles” (a seus caprichos), “ao seu dispor”.

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TSeriado Adão-Eva T. Ora, o plano natural, desde o início, i. é., ao menos

para os descendentes de Adão e Eva, foi subordinado a um destino superior. Talvez o homem pré-histórico, do qual sobraram alguns ossos, tivesse só um destino natu-ral: o trabalho no cultivo da terra e, após a morte, uma felicidade natural em algum paraíso terrestre, felicidade proporcional a um ser composto de corpo e espírito.

Conosco, série Adão-Eva, Deus criador teve projetos superiores. Para nós, adamitas, a terra é passagem, tram-polim para um paraíso celeste.

Sabemos pela Revelação que não só a alma, mas também o corpo terá parte nessa vida sobrenatural. Natu-ralmente, a seu modo, glorificado, espiritualizado, mas sempre realmente corpóreo.

A propósito, uma palavra de Sta. Teresa (Vida 28): “Só digo que outra coisa não houvesse para deleitar a vista no céu senão a formosura dos corpos glorificados, seria grandíssima glória, em especial a humanidade de Nosso Senhor”. E Teresa viu só o vídeo-tape!

Consolem-se, pois! O burrinho de São Francisco, nossa pobre besta de carga cá na terra, a labutar de sol a sol, também vai entrar no céu e sem as orelhas compri-das!...

TTerra nova T. Sendo assim, é provável, ou possível que, a terra

(ou outro planeta mais espaçoso), após a ressurreição final dos corpos, se torne o novo lar da nova humanidade. De que maneira, porém, e em que grau, está totalmente fora de nosso conhecimento. Qualquer sugestão é pura

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fantasia. 2 Pedro 3,7-14 fala de céu novo e de terra nova. Mas ignoramos quanto há nisso de sentido literal, quanto de metáfora.

Certamente é uma idéia pernóstica a de um contem-porâneo up-to-date, a de que também no céu todo mundo terá de cumprir sua quota diária de trabalho corporal, co-mo “hobby” ou passatempo depois do café da manhã, p. ex. trabalhando uma hora na jardinagem, cultivando raba-netes ou podando roseiras... ao gosto de cada um. Um absurdo! No céu, com visão direta de Deus, creio que te-remos ocupações mais atraentes do que a de cultivar flo-res, ouvir discos, pescar ou, jogar uma partida de futebol!

TO Limbo T

De que modo aquela parte da humanidade, que per-

deu a visão beatífica sem culpa pessoal, vai passar a e-ternidade não pode estar entregue à fantasia de um Júlio Verne ou de um Orson Wells. Estou me referindo aos mi-lhões de crianças mortas sem batismo É provável que sejam iguais, em número, aos habitantes do céu, pois pa-rece que, mesmo sem crime, chegam a morrer antes do parto tantas quantas nascem. E, atualmente, o assassínio dos inocentes tornou-se um negócio de milhões!...

DESTINO DO MUNDO

No Princípio Deus criou o universo, não coagido pela necessida-

de de uma complementação nem para aumentar sua feli-cidade, mas tão somente para estender sua perfeição e sua felicidade a outros seres.

Como que forçado pelo transbordamento de seu amor, quis fazer participantes de sua própria glória outros

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seres, principalmente os racionais Quis encher também outros seres com este foco de infinito amor e de infinita felicidade, que ó o Ser Divino. O Rio Eterno da plenitude do Ser transbordou, tornou-se mar e vastidão a envolver tudo quanto existe e existirá.

Fez participantes de sua perfeição as criaturas, as quais O imitam em razão da semelhança, ainda que re-mota, de sua natureza. Imitam-no em sua atividade pelas faculdades da mente: a de conhecer, de querer, de amar.

Expo-Universo Deus criou para apresentar seus valores. E valeu a

pena! Última finalidade do mundo criado é difundir e alar-

gar a bondade de Deus e fazer o maior número possível de seres, participantes desses bens e valores. Cada ser deles participa segundo sua capacidade, de acordo com a escala da existência: pedra — planta — animal. A partici-pação mais perfeita cabe aos seres racionais O aperfei-çoamento da terra e de seus habitantes, os homens, visa apenas tornar a terra e a humanidade mais semelhantes a Deus; i. é., pretende fazê-las participar melhor da perfei-ção divina e conseqüentemente de sua felicidade.

E assim o mundo, o universo todo, glorifica o Criador com sua existência, manifestando em sua natureza a grandeza de Deus. E as criaturas racionais dão ainda maior glória a Deus, conhecendo e reconhecendo a bele-za do mundo criado e amando o Deus criador.

O último destino do universo, portanto, é a glória de Deus.

Vaticano I Resume tudo o Concílio Vaticano I: “Deus, em sua

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bondade... não para aumentar sua felicidade, nem para adquiri-la, mas para revelar sua perfeição pelos bens que comunica às criaturas, criou do nada o mundo, tanto espi-ritual como corporal!”.

Essa doutrina conciliar é haurida na: Escritura: 1. De tudo quanto existe, Deus é fim supremo Ap 22,13: “Eu sou o alfa e o ômega, o primeiro e o

último, o princípio e o fim”. Rm 11,36: “Dele e por ele e para ele são todas as

coisas. A ela, a glória pelos séculos”. Cl 1,16: “porque nele foram criadas todas as coisas,

no céu e na terra, visíveis e invisíveis, tronos e domina-ções, principados e potestades, tudo foi criado por ele e para ele”.

Hb 2,10: “Por quem e para quem existe o universo”. 1Cor. 8,6: “Deus Pai, do qual provêm todas as coi-

sas e para o qual fomos criados... e Jesus Cristo por quem tudo existe e por ele também nós”.

1Cor. 15,28: “Quando tudo estiver sujeito (a Deus), então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe sujeitou: para que Deus seja tudo em todas as coisas”.

2. Deus criou sem precisar de nada, por pura libera-

lidade Em linguagem pitoresca, quase brutal, constata o

profeta do A.T.: Jó 22,3: “Que adianta a Deus se tu és homem ho-

nesto? Qual a vantagem para ele se tu levas uma vida correta?”

Isaías 1,10: “Para que me trazer inúmeras vítimas? Estou farto (Tenho tudo quanto quero, com fartura).

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Jesus descreve a situação da criatura perante Deus (Lc. 17,10): “Tendo cumprido tudo, dizei: somos servos inúteis; fizemos o que era de nossa obrigação”.

Paulo declara perante os sábios do mundo antigo, no areópago de Atenas (Atos 17,25): “Deus, que fez o mundo e tudo quanto nele existe, é o Senhor do céu e da terra. Ele não habita em templo fabricado por mãos hu-manas, nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa houvesse precisão, pois é ele que dá a to-dos a vida, a respiração e tudo mais”.

3.Deus cria para dar O livro da Sabedoria (11,23) descreve num texto su-

gestivo, repassado de afeto, a situação existencial da cria-tura perante Deus: “O universo todo diante de ti é como um grão de pó na balança, como uma gota de orvalho matinal... Tu tens compaixão de todos pois, és todo-poderoso. Fechas os olhos aos pecados humanos quando eles se arrependem. Sim, tu amas a todos os seres que existem, e não aborreces nenhuma de tuas criaturas... Perdoas a todos porque são criaturas tuas, ó Senhor, a-mante das almas”.

4. Criatura — Imagem de Deus As criaturas são reflexos de Deus: “speculum Dei”.

Através do mundo criado podemos ver Deus como num espelho. Espelho imperfeito, é verdade, mas um reflexo real da natureza divina. Por duas vezes afirma a Escritura e cognoscibilidade de Deus.

Rm 1,19-24: “o que de Deus se pode saber, bem o conhecem eles (os homens) porque Deus lhes manifes-tou. O que nele há de invisível, contempla-o a inteligência em suas obras desde a criação do mundo; seu poder e-terno e sua divindade. Mas, embora conhecessem a Deus, não o glorificaram... Por isso Deus os abandonou à

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impureza e a ídolos falsos”. Com finas pinceladas de uma miniatura tratou do

problema da fé no criador e no destino humano. Sabedoria 13,1-9: “Estultos todos os homens nos

quais não se acha o conhecimento de Deus. Que pelos bens visíveis não chegaram a conhecer aquele que exis-te. Nem mesmo considerando suas obras reconheceram seu criador. Tomaram por deuses, governadores do mun-do, o fogo, o vento, o ar, o giro das estrelas, a água turbu-lenta ou os astros do céu. Se, encantados com a beleza dessas coisas, as julgaram deuses, deveriam entender quão mais formoso do que elas deveria ser seu dono, pois, foi o autor da formosura que criou tudo isso. Se eles se maravilharam de sua força e poder, deveriam também entender que quem as fez é mais forte, porque, pela grandeza e formosura das criaturas se percebe, por ana-logia, o seu autor. Não se lhes pode desculpar a ignorân-cia, pois se tiveram tanta inteligência para investigar o universo cósmico, como não descobriram mais facilmente o seu senhor?”

5. Criatura é louvor de Deus Sl 18,2: “Os céus cantam a glória de Deus e o fir-

mamento proclama a obra de suas mãos”. Se a criatura irracional não se cansa de cantar o louvor do criador, quão mais eloqüentemente devem fazê-lo os racionais

Sl 148,2.7.11.12 (o salmista repete incessantemente seus convites): “Louvai a Deus, ó Anjos... Bendizei a Deus, poderes do céu... Louvai-o vós, criaturas da terra... reis, príncipes e povos... jovens, velhos e crianças”. Uma enciclopédia e resumo de tudo isso é o canto dos três jo-vens na fornalha (Daniel 3).

6. Deus exige sua glória Não dispensa o que é direito do ser absoluto. Isaías

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é dramático (48,11): “Por amor de mim, por amor de mim o farei... não cedo minha glória a outrem”.

7. Deus pede o amor da criatura Mais do que nosso louvor Deus deseja o nosso a-

mor. As páginas da Escritura no-lo dizem e repetem sem cessar.

Dt 10,12: “E agora, ó Israel, o que Deus pede de ti é que temas o Senhor teu Deus; que andes nos seus cami-nhos e que o ames e o sirvas de todo o teu coração e de toda a tua alma... Para que sejas feliz... Deus é o dono do céu e da terra. Ele amou teus pais e te escolheu”.

São Paulo expressa o mesmo pensamento de ma-neira concreta e direta (1Cor. 10,31): “Quer comais, ou bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus”.

Tradição As palavras da Escritura encontram eco nos escritos

dos antigos Padres. Algumas amostras características: Lactâncio: “O mundo foi feito para nascermos. Nas-

cermos para reconhecer o criador do mundo e nosso Deus; reconhecemos para adorar; adoramos para receber a imortalidade. Recebemos o prêmio da imortalidade a fim de servir o Sumo Deus e pra sermos sempre o seu reino eterno”.

Agostinho: “Brada o céu para o céu: Tu me fizeste, não eu. Clama a terra: Tu me criaste, não eu”.

Jerônimo: “Deus exige louvor não por precisar do louvor de alguém mas porque o louvor aproveita aos lou-vadores”.

DESTINO DO HOMEM

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1. O mundo que nos rodeia foi dado por Deus para usufruto não para o domínio do homem. Em primeiro lu-gar, para sustentar sua vida corporal. O decreto divino na manhã da criação é explícito: “Crescei e multiplicai-vos e subjugai a terra” (Gn 1,28).

Os anjos não participam dessa finalidade do mundo material porque são seres incorpóreos, enquanto que as demais criaturas são o caminho necessário para o homem chegar ao conhecimento de Deus. O homem depende do mundo corporal (material) em sua atividade intelectual.

2. O progresso cultural: arte, literatura, técnica, ciên-cia, tudo isso faz parte do plano divino, desde que esteja a serviço do bem estar da humanidade e subordinado ao seu destino eterno. “Deus colocou o mundo ao dispor dos homens” (Ecl 3,11).

Os valores culturais não são suficientes para servi-rem como fim último mesmo em um mundo que não tives-se um destino sobrenatural. Deus é e fica sempre sendo o termo absoluto assim como, perante o sol, todas as estre-las desaparecem.

3. Mas a suprema felicidade do ser “homem”, seu úl-timo fim é: conhecer a Deus e dar-lhe glória. É a mais sin-gular de nossas tarefas. “Deus nos criou para servirmos de louvor à sua glória” (Ef 1,12).

O homem está única e exclusivamente orientado pa-ra a glória de Deus. Da parte de Deus, isso não é um ego-ísmo antropomorfo, é lógico. “Deus busca sua glória, não por causa de si mas por nossa causa”, diz a Summa The-ologica, II-II 132, 1,1. E Sto. Agostinho: “Por Ele ser bom é que nós existimos: Quia bonus est, sumus”.

Louvar a plenitude absoluta da verdade, da bonda-de, da beleza, é racional. Ora, Deus é bem absoluto e a beleza suprema. Ele só pode louvar a quem merece, i.é., a si próprio, o Ser Absoluto. É lógico. Igual atitude impõe-se à criatura: prestar homenagem, louvor e glória a quem

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merece, a quem de direito. É conseqüência metafísica. “Toda criatura é de Deus. Algum dia, amanhã ou depois, terá que estar diante dele e de joelhos” (F. W. Faber)

4. Na ordem natural, o homem participa da natureza divina de um modo remoto. É imagem de Deus enquanto é dotado de inteligência e de amor.

Na ordem sobrenatural, a participação atinge um grau muito superior. Sendo a natureza humana, em sua substância, elevada a uma participação da natureza divi-na, o foi ao ponto de tornar-nos, de um modo real, filhos de Deus, à semelhança do Filho Unigênito. Recebeu as-sim o homem capacidades superiores, um destino bem mais elevado: o de amar com um amor eterno o bem su-premo que pode existir. Dom gratuito que ultrapassa to-dos os recursos da criatura. Toda a humanidade foi criada para mergulhar na visão beatífica da Divindade, para vi-ver, ver e amar como o próprio Deus; para ser submergi-da na plenitude do Ser. Como retribuir tão grande con-descendência, tão grande amor?

5. A teologia distingue entre glória objetiva e glória subjetiva. A glória objetiva é a perfeição que os seres re-fletem em sua natureza. Quanto mais perfeitos, tanto maior a glória do criador. Um santo glorifica mais a Deus do que um cristão medíocre. O Cântico do Sol, de São Francisco, é a expressão amorosa dessa glória objetiva de Deus.

A glória subjetiva completa-a, embora não seja in-dispensável. Não consta entre os teólogos que Deus não pudesse criar um mundo composto somente de seres ir-racionais, sem os seres racionais, capazes de apreciar a grandeza das obras divinas.

A escritura encarrega o homem dessa tarefa com esta belas palavras: “Deus colocou uma luz em suas al-mas (nos olhos dos homens) a fim de lhes mostrar a grandeza de suas obras... para que louvassem seu santo

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nome e publicassem a magnificência de suas obras” (Ecl 17,8ss).

É assim o homem, porta-voz, intérprete da natureza. As flores desenrolam suas pétalas coloridas implorando com esta linguagem muda ao homem para que louve a Deus. Os passarinhos chilreiam desde o amanhecer, co-mo que entusiasmado o homem a louvar o criador. Foi nesse sentido que um eremita bateu nas flores com seu bastão, dizendo: “Calem-se! Já sei o que querem... que eu louve a Deus em nome de vocês”.

Por maior que seja, entretanto, a glória que a natu-reza irracional tribute a Deus é inconsciente, instintiva, forçada. A criatura irracional é instrumento que não pode deixar de glorificar o seu autor.

O astro flamejante que traça com vertiginosa rapidez sua fabulosa trajetória, não sabe o que faz. Não tem consciência de suas qualidades de pregoeiro da sabedo-ria e do poder divinos: obedece cegamente às leis da gra-vitação. Desfiando suas plangentes notas à hora do cre-púsculo, o sabiá segue a instintiva inspiração do pequeno peito. Ignora, porém, que está celebrando a bondade e real munificência do Pai Celeste.

6. Rugindo pelas estepes siberianas ou pelas flores-tas amazônicas, o furacão não sabe que canta a marcha triunfal daquele que “caminha sobre as asas do vento; que faz dos vendavais seus mensageiros e dos raios de fogo os seus ministros” (Sl 103,4).

A Deus, porém, é devida a vassalagem livre e racio-nal. E quem lhe presta essa homenagem consciente e voluntária, essa glorificação formal, são, no céu, os anjos; na terra, a criatura que “pouco abaixo dos anjos foi colo-cada” (Sl. 8,8), o homem. O homem, que é capaz de co-nhecer e amar. “O homem deve suprir a deficiência da criatura irracional, servindo-se dela como de escada para subir até Deus... Assim, o homem não é só o rei da cria-

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ção; é também o seu profeta, o seu intérprete; é o sumo sacerdote que oferece, racionalmente, o preito irracional das outras criaturas” (H. ROHDEN, Donde para onde, 1934, pgs. 109-111).

6. Desde a Encarnação é Cristo-homem o fim de to-da a criação, segundo Cl 1,15. O restante da humanidade adquire o beneplácito e o agrado de Deus na medida em que participa de Cristo (Rm 8,29).

O mundo é palco, campo, arena do Cristo místico. Deus quis rematar a criação da humanidade pelo Deus Encarnado. Deus permitiu o pecado original para dar a seu Filho predileto mais um título de honra: cruz e reden-ção. “Deu-lhe um nome acima de todo nome” (Fl 2,9).

Jesus Cristo, Homem, em toda a vastidão do mundo, entre todos os anjos e criaturas racionais, é a criatura mais amada por Deus.

CÂNTICO DO SOL Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são os lou-

vores, a glória, a honra e toda bênção. ... Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas cria-

turas, especialmente o senhor irmão sol, que clareia o dia para nós. ...

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas que no céu formaste, preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, pelo ar, pelas nuvens, pelo sereno e por todo o tempo, pelos quais às tuas criaturas dás sustento.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, tão útil, humilde, preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite. E ele é belo, jucundo, robusto e for-te.

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a Mãe-

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Terra, que nos sustenta e governa, produz frutos diversos, flores coloridas e ervas. ...

Louvai e bendizei ao meu Senhor. Rendei-lhe graças e servi-o com humildade.

LOUVAI A DEUS Inúmeras vezes, vozes angélicas cantam no Livro

Sagrado: “Glória a Deus nas alturas!” todos os dias o po-vo de Deus repete: “Glória a Deus nas alturas!”

“Toda criatura deve ser hóstia de louvor” (Hb 13,15). O livro de Jó traça, com sua maestria poética, um

quadro grandioso das obras do criador onipotente: (38 a 41) apostrofando o pequeno homem. O cântico dos três jovens repete quarenta e quatro vezes: “louvai a Deus, ó criaturas todas!”

A criatura irracional louva a Deus por sua existência, como disse Tertuliano: “toda criatura reza”. Ela oferece seus préstimos ao culto divino nos sacramentos, nos sa-cramentais, no ornato dos altares e dos templos. Melhor, porem, que tudo isso é o eco que ela provoca no coração humano: “ó homens, louvai a Deus!” O poema maravilho-so da criação foi composto para o homem. Só o homem sabe lê-lo, entende-o e o sente.

A rocha é mais forte do que o homem. O mar é mais forte do que o homem. A montanha é mais forte do que o homem. O sol, a árvore, o leão são mais fortes do que o homem. Mas nem o leão com seu rugido atroador; nem a árvore gigante com a pujança de suas raízes, troncos e galhos; nem o sol com a glória de sua luz; nem a monta-nha com a altanaria dos seus picos; nem o mar com o arremesso de suas ondas, nem a rocha com o indefinido de sua durabilidade... nenhum desses seres é capaz de conhecer, louvar e amar seu criador. Somente o homem, feito à imagem de Deus, pode ler ou ao menos soletrar o

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poema da criação. Diz São Paulo: “O homem foi criado para ser o louvor de Deus” (Ef, 1,12). Foi criado para lou-var, bendizer e agradecer o dom maravilhoso da existên-cia.

A Voz Graciosa lenda, do tempo da aurora do mundo, nos

narra o Talmud: Terminada a obra da criação, Deus con-vidou os anjos para um giro através desse novo mundo e pediu-lhes a opinião. Todos se manifestaram cheios de admiração e louvor pelas maravilhas da onipotência divi-na. Somente um deles manteve-se num silêncio estranho até que Deus o interpelou, perguntando se achava algu-ma coisa a criticar ou a corrigir. O anjo, inclinando-se em profunda adoração, respondeu: “Grande és tu, ó Senhor e grandes são as tuas obras. Só uma coisa falta; uma voz consciente, clara, forte, a jubilar sem cessar através des-se universo: Obrigado! Obrigado, Senhor!” Deus sorriu feliz: “Está previsto”, e criou o homem à sua imagem e semelhança e o fez dono e porta-voz do universo.

Logos E nós, cristãos, sabemos ainda mais Deus criou o fi-

lho de Deus feito homem, para ser o porta-voz universal, da criação. O homem do paraíso recusara a tarefa de ser cantor do mundo. Deus o substituiu, com infinita vanta-gem nossa, por seu próprio Filho feito homem. E desde o “Glória” nos campos de Belém ressoa, do oriente até ao ocidente, e por toda a eternidade, a música de louvor, gra-tidão e amor que canta o coração de Jesus.

Festival

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Como o Filho de Deus feito carpinteiro em Nazaré, e com ele, em íntima união, deve agora o cristão, a criatura redimida, tirar do trabalho cotidiano sua canção de cada dia, canção de toda vida.

A mãe de família em seus mil afazeres e preocupa-ções deve estar sempre a cantar: “Louvado seja Deus”. O técnico, o cientista atrás das retortas do laboratório, e to-dos esses inúmeros profissionais humanos, todos devem cantar o salmo 116: “Louvai a Deus, povos todos, louvai-o todas as nações.” Política, comércio, indústria, lavoura, escolas, universidades todos devem compor melodiosa sonata em louvar a Deus.

São Francisco compôs seu famoso Cântico do Sol. Mas não há dúvida que o melhor cântico do sol foi a sua própria vida. A melhor canção, a mais grata ao ouvido de Deus é a nossa vida humana transformada num louvor de Deus perene. Até que entoemos nosso “Glória a Deus” unidos a Ele nas alturas.

Canção Balbuciamos nós sacerdotes, monges, religiosos,

louvor e gratidão a Deus, recitando os salmos do rei Davi. Recitamos esses cantos de louvor do povo eleito em uni-ão com o Filho de Deus que desde Nazaré recitou os salmos em preito e homenagem ao Pai. E junto com ele terminamos cada salmo, com o estribilho e o remate de toda a existência humana e de todo o universo: “Glória ao Pai, Filho, Espírito Santo, por todos os séculos e tempos sem fim”.

Mistério da fé O máximo da glória, júbilo, louvor, honra e gratidão,

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oferece à Santíssima. Trindade o Verbo humanado, na Santa Ceia, da aurora até o pôr-do-sol, diz o profeta Ma-laquias (1,11).

Três vezes feliz o sacerdote, criatura humana, en-carregado de pronunciar, em nome de Cristo: por ele e com ele e nele é para ti, Pai onipotente, em união com o Espírito Santo, toda honra e glória. “Toda possível, infini-ta”.

Devemos começar a pensar nisto desde o início do rito sacro ao entoarmos o “Glória a Deus nas alturas”. Música, ornato, flores querem contribuir também, humil-des e mudos, para esta glória de Deus.

Sta. Matilde derrama em fervor sua alma de fogo: “Ó bom Deus, eu queria, que a cada momento, e sem ces-sar, milhares de coros de anjos te louvassem e adoras-sem... Queria ter tantos corações quantas estrelas há no céu, quantos folhas há nas árvores, quantas gotas d’água há nos mares do mundo, a fim de amar-te sem cessar...”

Apareceu-lhe Jesus dizendo: “Toda essa honra po-des preparar-me, e mais ainda do que desejas”.

Um momento de “suspense”. “Como?” E com olhos ardentes aguarda a resposta.

Jesus responde: “É só assistir à Santa Missa.” E de braços abertos sobre o altar, Jesus faz correr seu sangue de todas as chagas: “Eis as chagas que reconciliam a jus-tiça do Pai. Todas as graças que a alma perdeu por des-cuido ou relaxamento, poderá recuperá-las plenamente, aproximando-se do Sto. Sacrifício do Altar, que contém a plenitude das graças”.

DESTINO: FELICIDADE

Nostalgia eterna Ser feliz, viver na felicidade, é o desejo mais profun-

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do, mais vital dos homens. A criatura encontra essa felici-dade só em seu criador, em Deus. É que os bens criados são limitados demais, em número, em valor e em eficiên-cia. É o velho estribilho: “Vaidade das vaidades, tudo é vão e vazio (Ecl 1,1). Exclama assim quem mais facilida-de teve de saciar-se na mesa da vida, num banquete dos prazeres do corpo, da mente e do coração. É que todos os manjares do banquete da vida tem o gosto acre da morte que estraga a festa.

O homem sem destino pessoal é uma onda que passa e desaparece no vazio. Então, vale a inscrição que Dante pôs sobre o portão do inferno, e vale desde já, para a terra, para a vida terrestre: “Ó vós que aqui entrais, dei-xai toda esperança!” “Então sobre tua lápide sepulcral, só poderá negrejar este infame epitáfio: aqui jaz o rei da cri-ação, a mais desgraçada das criaturas (ROHDEN o.c. 82)

Vozes pagãs Kant é de parecer que nenhum homem teria vontade

de recomeçar a tragédia da vida. Vida que é segundo ele “período de provação, no qual a maior parte dos homens sucumbe, e em que também, o melhor, não acha satisfa-ção”.

Schopenhauer naturalmente, como filósofo do pes-simismo, carrega mais as tintas: “A vida é uma desgraça. Não dá o que promete. É uma fraude praticada a varejo e por atacado. É um negócio que não rende pelas despe-sas... O homem é destinado a ser miserável e disto não passa”.

Heine: “O mundo, que tal? Hospício ou hospital” (cf. ROHDEN 98,101)

Goethe vivia na maior abastança e, coisa rara para poetas, glorificado já em vida, por todos. Escreveu na ve-lhice: “A opinião geral faz de mim um homem favorecido

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pela sorte. Não quero me queixar... Mas podem ficar tran-qüilos: não fui feliz. Somando todas as horas realmente felizes da minha existência de setenta e cinco anos, dá mal e mal um mês. Havia sempre uma pedra a rolar morro abaixo. E era preciso recomeçar cada vez de novo”.

Palavras patéticas escreveu Nietzche. Revelam gri-tos de desespero de uma alma sedenta de amor, de uma alma sedenta de felicidade, mas torturada pelo desespero da ausência de Deus: “Sim, conheço minha origem. Sou filho da chama. Insaciável como a chama, a arder e devo-rar-me”. “Toda a bondade, toda a beleza e toda a felicida-de da criatura é efêmera, é perecível, passa e sucumbe ao correr do tempo e, todavia, todo prazer quer ser eter-no, quer vida eterna”.

Comovente é a sua nostalgia de Deus: “Os corvos grasnam, rumando à cidade. Logo vai nevar, vai estender o inverno seu lençol branco e frito. Ai de quem não tem mais lar”. Apostrofando o ateu: “Reflete, tu nunca mais irás rezar. Nunca mais irás adorar. Nunca mais irás des-cansar um aconchego perfeito. Para ti não há mais refúgio ou asilo onde buscar consolo e conforto. Ó homem de renúncia, queres mesmo renunciar a tudo isto? Quem te dará a força que até agora ninguém teve?”

De uma poesia (Ariadne): “Tocam os sinos plangen-tes da saudade ó, volta, retorna, Deus desconhecido; Tu, minha dor, minha felicidade suprema”.

Vozes Cristãs Escreve o místico medieval: “Ai, quanta alma nobre,

quanto coração generoso, quanta figura formosa que em tua companhia divina criam ser princesas, rainhas e impe-ratrizes, poderosas e potentes nos reinos do céu e da ter-ra, se embaraçam e rebaixam nos liames de criatura ter-rena. Ai delas, que se arruínam assim... Tudo quanto teu

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coração deseja, encontras em Deus, em plenitude infinita. Desejas amor, carinho, luz, verdade, conforto e consolo? Tudo isto encontras e Deus, em abundância, sem limites, sem medida. Desejas beleza? Ele é o mais belo. Desejas riqueza? Ele é o mais rico, no céu e na terra. Desejas po-der? Ele é o mais poderoso, de sol a sol, do oriente até o ocidente. enfim, tudo quanto teu coração possa desejar encontrarás mil vezes nele, no bem supremo, Deus” (De-nifle)

Imagem de Deus “Tua alma, ó homem, é uma maravilha, um milagre”,

escreveu o místico medieval Henrique Suso. “Como Deus é imenso em dar, assim alma, é imensa, insaciável em receber”.

Teu espírito alimenta-se de luz, com a luz da verda-de. Não se contenta só com uma estreita fresta de luz, talvez só com a luz do luar; ele quer toda a verdade de vez.

Teu coração deseja amor, amar e ser amado. Sem limites. Por todo o sempre. Somente Deus é capaz de saciá-lo.

Assim, como Deus é infinitamente bom, justo e san-to, assim tua alma é um desejo infinito de ser boa, justa e santa. Tua alma é centelha da divindade, e a terra toda é pequena demais para satisfazer-lhe o anseio. Todas as criaturas juntas não são capazes de compreender o Deus infinito. Todas as criaturas juntas não são capazes de en-cher de bem-estar a tua alma. Uma gota de orvalho não faz transbordar o oceano. Todos os prazeres que a terra te pode oferecer não são capazes de encher de felicidade tua alma.

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Pranto do deserto Nas noites estreladas, o vento agita de leve, os mi-

núsculos grãos de areia do deserto. Bilhões e bilhões mo-vimentam-se em leve atrito. Produzem assim um som plangente, como o gemido lastimoso de um animal gigan-tesco ferido de morte. Ouçam, diz o árabe: o deserto cho-ra. Chora saudoso pelos jardins floridos, as searas ondu-lantes de outrora.

Aonde correm todas as águas, sempre avante, deve haver um mar, a pátria de todas as águas, rios e mares. Aonde correm todos os seres humanos, e correm sem parar, aí deve haver um oceano imenso, a pátria das al-mas, a eternidade, Deus e sua felicidade. Nossos cora-ções, inquietos e infelizes enquanto não descansam em Deus.

“Deve haver uma terra pela pelas bandas do ociden-te”. Com esta idéia fixa Colombo descobriu a América. Vale o mesmo axioma da vida humana: no poente da vida terrestre dever haver outra vida. Colombo foi taxado de louco por diplomados da universidade de Salamanca... mas estava com a razão. O cristão, norteado pela fé para a vida eterna com Deus, também recebe neste mundo míope a mesma pecha, mas ele é que viverá vida eterna.

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Eldorado Um instinto secreto sussurra-nos ao ouvido que exis-

te o Eldorado. Qual agulha magnética que sempre aponto para o pólo, assim o coração humano sofre e vive dessa nostalgia, dessa saudade, vaga, indefinida, saudade de uma felicidade plena e duradoura. Quantas lágrimas de saudade derramam os seres terrestres. Até a felicidade nos faz chorar. Talvez, pelo pressentimento da pouca du-ração. Como disse alguém que experimentou as alegrias desta terra, bebeu por assim dizer de todas as águas, Sto. Agostinho: “Criaste-nos para Ti e nosso coração está in-quieto até descansar em Ti”.

E ainda alguns textos deste grande lutador cristão. “O prêmio de Deus é o próprio Deus”.

“Eis a religião cristã: venerar um Deus só e não mui-tos, porque só um Deus faz a alma feliz”.

“Tarde te amei, ó beleza eterna e sempre nova. Tar-de te amei. Eis que Tu estavas dentro de mim e eu estava fora. Eu te buscava lá fora. Atrás destas formosuras, cria-turas tuas, corri disforme. Tu estavas comigo mas eu não estava contigo. Aquelas seguraram-me afastado de ti, elas que não existiriam se não existissem por ti. Chamas-te, clamaste, rompeste minha surdez; lançaste raios e fulgores e afugentaste minha cegueira... enfim, te senti e agora estou faminto e sedento (de ti)”.

“Tocaste-me: eis que estou ardendo em tua paz”. “Ó Amor, que ardes sempre e nunca te apagas. Ó

caridade, ó Deus meu, inflama-me... dá o que mandas e manda o que queres” (Confessiones. 10,27).

“Ali repousaremos... no fim sem fim. Qual é o nosso destino senão chegar ao Reino sem fim?” (Cidade de Deus, 22,30)

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Terra da promissão Saudades de uma vida eterna, eis o problema de

cada vida humana. Vivemos como plantas ávidas da luz do sol nesta terra da promissão.

Foi um longo caminhar. Séculos se passaram, foi prometida a Abraão. Israel marchou por quarenta anos atrás desta visão. E ainda caminhamos, a humanidade toda, à sua procura, porque esse país só existe no além. Por aqui ainda marchamos nas areias do deserto.

Maran Atá Muitos sufocam essa luzinha saudosa no coração

humano. Essa centelha do além, tão irrequieta, tão fraca e vacilante.

Mas confiem na grande promessa: “Nenhum olhar humano jamais viu. Nenhum ouvido humano jamais ouviu. Nenhum coração humano jamais sentiu o que Deus re-servou à criatura que o ama” (1Cor 2,9)

Perguntemos a quem já esteve perto, já viu albores do futuro, que retornou do terceiro céu, a São Paulo após-tolo: “Desejo morrer e estar com Cristo” (Fl 1,23).

Ouçamos o clamor do coração dos primeiros cris-tãos: “Maran ata”. “Vem, Senhor, vem” (1Cor 16,22).

E o brado da mística estática, Sta. Teresa d’Ávila: “Morro por não poder morrer”.

E São Luís Gonzaga, moribundo, a exclamar, alegre, exuberante: “Agora vou para casa, vou para casa...”

DEUS PRIMEIRO E ÚLTIMO O regato d’água sempre a correr pela campina ver-

de, proseando seu murmúrio de sempre, saudando por todos os lados, sempre apressado, sem parar, até lançar-

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se no grande mar. Compreendamos sua preocupação. No momento que pára, vira brejo.

Fomos criados para a vida eterna, não para esta vi-da mortal. Estamos de viagem, a caminho da luz, da vida, do amor eterno e sem fim.

Fim A humanidade andou nas trevas. O filósofo romano,

M. Varro, colecionou e discutiu duzentas e oitenta e oito opiniões da filosofia pagã grego-romano sobre o fim do homem (Cidade de Deus 1,1). Entretanto mais trágico é a lápide tumular da catedral de S. Paulo, em Londres: “Du-bius vixi, incertus morior, quo eam nescio” ( “Vivi na dúvi-da, morro na incerteza, e para onde vou, ignoro”). Mais trágico porque o londrino deve ter lido o prólogo do evan-gelho de São João e o primeiro capítulo de Romanos.

Parábola Trágico como a parábola do Reino (Lc. 14,15). Os

convidados escusam-se um por um. Não têm tempo. O primeiro porque comprou uma fazenda. O segundo com-prou uma boiada, que trabalheira! E o terceiro, casou-se. Todos, pois, sumamente ocupados. E o Mestre manda dizer a quem interessar: “Estes não entrarão no meu rei-no”. O epílogo já fora escrito no Antigo Testamento: Ergo erravimus (Sb 5,2). “Erramos no caminho, insensatos, nos enganamos”. Calculamos mal. Remorso tardio e inútil.

Um livre pensador viu uma velhinha recitar o terço: “Boas senhora, pode deixar esta reza. Deus não precisa de sua oração”. “Ora, sim, acredito. Mas eu preciso dela”.

Analfabetos

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A humanidade passa a sua história à procura de Deus. Uns acham-no. Outros, segundo o famoso ditado de São Paulo (2 Tim. 3,7), fruto de sua experiência pasto-ral, “estão sempre à procura, sem nunca chegar à verda-de... e sua insensatez há de tornar-se manifesta”.

Não os desprezamos mas os lastimamos; nem o be-abá chegaram a aprender. Não foram capazes de ler nem sequer a primeira página desse belíssimo e ilustrado livro, no qual Deus descreveu sua existência e sua grandeza. São como crianças que seguram o livro às avessas e de-pois choram por não saberem ler.

Vira teu coração às direitas e acharás escrito na pri-meira página, em letras garrafais: o homem foi criado por Deus, a fim de conhecê-lo, amá-lo e servi-lo. A humani-dade hodierna parece-se com tal criança. Está à procura do além. À procura de Deus. E ainda estará quando toca-rem as trombetas para o recolher final, para o juízo final.

Porta fechada Céu e terra passarão. O mundo vai acabar. Só Deus

permanece (Mt 24,25) “A figura deste mundo passa” (1Cor 7,31). Sempre

oportuno o lembrete do sábio do A.T.: “Lembra-te do teu criador... Tudo o mais é vão e vazio”(Ecl 12,1.8).

Não nos atrasemos no caminho! Por favor! Seria fa-tal. Diz Gregório Magno: “Insensato o viandante que ao contemplar no caminho os prados floridos, esquece a me-ta da sua viagem”.

Vai-lhe acontecer como às virgens loucas: vai en-contrar portas fechadas. Vai-lhe acontecer como à boneca de Teresa ChappuIs. Recebera, aos seis anos, uma bo-neca que sabia dormir, chorar – uma maravilha! Mas a “filha querida” tinha de saber também todas as lições do catecismo. E lá vai a primeira pergunta: “Para que esta-

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mos na terra?” Silêncio “Como! nem isto sabe?” E a pobre pagã voou para um canto. Nunca mais nela tocou. Traste inútil. O sacerdote que ensinava catecismo no castelo, começava cada aula com esta primeira pergunta.

A marca “Deus gravou na fronte de cada uma das suas cria-

turas a marca de propriedade, selo infalsificável do seu real senhorio. É só abrir os olhos para ver que o nome de Deus resplende de todas as alturas e profundezas da cri-ação. Traça-o o raio, em caracteres de fogo, no sinistro vulcão. O orvalho desenha-o com pérolas, nas aloiradas folhas de capim. O vendaval o esculpe, em alto relevo, nos sanhudos vagalhões do mar. Enquanto as flores o pintam no vislumbrante matiz de suas pétalas. O ribombar horríssono do trovão, como o meigo ciciar da brisa ves-pertina, a lúcida claridade do dia como o negrume fatídico da noite, tudo canta, tudo apregoa, nas mais variadas to-nalidades da escala musical, o eterno hino triunfal: Glória ao Deus dos exércitos! Cheios de tua glória estão os céus e a terra. Hosana a Deus nas alturas!” (ROHDEN, 108)

O dono Os antigos romanos gravavam a fogo na testa dos

escravos fugitivos o nome do dono. O artista assina a o-bra com seu nome. Demos uma volta pelo mundo e averi-güemos a marca do dono. Cada criatura nos responde: sou de Deus; foi Deus que me fez. “Perguntei, escreve Sto. Agostinho, à vastidão do mundo a respeito de Deus e ele respondeu-me: Não eu, mas Ele me fez” (Confessio-nes, 10,6). Toda criatura é serva de Deus. Esta depen-dência não admite exceção. Tudo é dele. Tudo quanto existe. Vivo ou morto. Sol, lua, estrelas lhe pertencem. E

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na terra, todas as cidades e reinos, todos os navios e fo-guetes, todas as fazendas e lavouras, todas as fábricas e usinas, todos os talentos e gênios, todas as criações da arte da música e da literatura são domínio de Deus. Os homens dispõem disto, a título de empréstimo, por seten-ta ou oitenta anos.

Deus é senhor absoluto e, portanto, o homem seu servo. Deus põe suas mãos em nosso ombro e nos diz: “Eu te criei... eu te salvei. Tu és meu” (Isaías 43,1). Todos servem a Deus: estrelas e flores, anjos e homens, gran-des e proletários, povos e famílias. É um conseqüência lógica, metafísica da qual nem Deus pode abrir mão, por sorte nossa por ser impossível criatura tornar-se ser-não-criado, ser absoluto.

Eis, pois, a carta magna do reino da terra: servir a Deus.

Servir A palavra de Deus repete: “Nenhum de nós vive para

si, nem morre para si. Vivendo, vivemos para o Senhor. Morrendo, morremos para o Senhor. Vivos ou mortas, ao Senhor é que pertencemos” (Rm 14,7). Para criatura ra-cional-espiritual não há outro fim possível senão Deus. Sto. Agostinho o assinala, dizendo: “Deus é o supremo bem; não podemos contentar-nos com menos”. Diz o di-tado: “Quem viveu sem Deus, floriu em vão”. Disse o poe-ta (Novalis): “Deus é o sol da alma”. Sem a luz do sol, é a noite.

Deus é centro e fundamento. É construído sobre a-reia tudo que não se apóia em Deus; é oco tudo que Deus não enche: pois ele é a plenitude. Tudo morto o que Deus não anima e vivifica: pois só ele é a vida e só ele dá a vi-da.

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Vontade de Deus A suprema perfeição da criatura “homem” é servir a

Deus. Fazer a vontade de Deus é a suma perfeição. Para traçar um roteiro para a criatura humana não há outro ser mais competente, mais inteligente, mais bondoso que Deus. Os humanos podem expandir todos os seus talen-tos, que Deus lhes deu, para criar valores e culturas, mas que o façam sempre de acordo com o plano de Deus. Po-vos e governos podem e devem lutar por uma promoção social, cultural, sempre mais crescente, mas seja tudo coordenado com as leis de Deus. A política nacional e internacional desenvolva sua atividade, mas sem contrari-ar a vontade de Deus. As obras de arte e da literatura me-recem cultivo, mas não ofendam as normas divinas. Não há independência perante o Ser Absoluto e nenhum das atividades humanas é “livre”: todas devem convergir em Deus e subordinar-se à sua lei. Tudo está debaixo da so-berania de Deus. “Faça-se a Tua vontade, como no céu, assim também na terra”: eis o roteiro do cosmos univer-sal.

A exemplo do Homem-Deus, que declarou alto e em bom som: “Faço sempre o que é do agrado do Pai” (Jo 8,29), nosso modelo e exemplo até chegarmos ao Con-summatum est - terminou tua hora de trabalho e serviço. E ouvirmos o convite: servo bom e fiel, entra na glória de Deus.

Retorno O homem foi feito para viver de Deus. Como o pás-

saro foi feito para voar, e o sol para brilhar. A tragédia da humanidade atéia consiste justamente

em ter cortado o elo entre Deus e o homem. Agora nada mais tem sentido. Sem Deus não existe nem verdade,

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nem justiça, nem felicidade entre os homens. Nada mais resta ao homem do que a angústia e o desespero, o cor-rer atrás dos prazeres e ingurgitar-se de psicotrópicos. E dessa ausência de Deus a humanidade irá morrer. A lei da selva e a brutalidade do egoísmo são as leis da huma-nidade se Deus, condenada a morrer de morte lenta, mas certeira.

E esta morte é realmente “um arco de triunfo que se abre para o vazio” (Barres). “Nosso mundo perdeu o sen-tido de Deus... e a sociedade humana tornou-se um vazio, do qual ela morrerá, um deserto de Deus” (Suhard, 1948). Pio XII estigmatizou e denunciou, em 1949, um mal maior: o ódio de Deus. E hoje, após um concílio mundial, o cínico nos comunica: Deus já morreu. É o início das trevas da Angústia.

É mister subir às fontes, à origem. “Não há mais es-perança a não ser na linha vertical... Avante na estrada. Sentido único” (Claudel). É mister retornar, de causa em causa, até à luz inacessível dentro da qual se esconde Aquele que existe. “O mundo é a face de Amor Eterno inclinado sobre nós” (Laurigaudie). Os hindus afirmam com uma obstinação pedante que tudo é ilusão; mas nós sabemos que tudo é “alusão” (Claudel).

Um aviador canadense diz: “Perdido no espaço, so-zinho, estendi a mão e toquei a face de Deus. Através desse Nada magnífico que é o mundo, tocamos a presen-ça de Deus.” “O mundo é um pensamento que não pensa, suspenso num pensamento que pensa” (Lachelier).

Saiba a criatura que, através dos meandros da vida terrena, com seus percalços, ela vai eternizar-se em Deus. O teólogo medieval lapidou a sentença: “A visão do Deus Trino e Uno é fruto e fim da nossa vida” (I Sent. 2,1). Toda a grandeza e toda a miséria humana origina-se des-se destino divino. Se o homem é fiel, a sua existência co-tidiana é iluminada por esta invisível presença. Se o ho-

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mem recusa a luz, se resiste ao amor eterno, sua vida é quebrada. A nós cabe escolher... Deus renova o convite sem cessar. “Quem te criou, reclama por ti” (Agostinho). “Não haja entre nós quem falhe à meta” (Hb 4,1). O após-tolo convida para a corrida ao prêmio oferecido a todos. “Esqueço o que ficou para trás e atiro-me para frente. Mi-rando o alvo, vou à conquista do prêmio” (Fl 3,13).

Legionário Nas estradas militares da Roma Antiga, que corta-

vam o continente europeu em todas as direções, havia de espaço em espaço um marco milionário, uma pedra com as letras PPC: Pro Pátria Consumor. E, à sua vista, os olhos cansados iluminam-se. Os músculos doloridos rete-sam-se. O legionário reegue-se e de cabeça levantada, marcha com novo vigor, sempre avante.

Para nós, cristãos, também há tais marcos na estra-da da vida. A cada milha um lembrete: avante! Estás mar-chando e lutando por uma pátria eterna.

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2. DEUS “Deus, o ser único, o ser por excelência, o único que

merece este nome” (Cavallera) “Nisto deves meter todo o teu empenho que Deus

cresça em ti” (Tauler)

PARÁBOLA

A Revolução das Árvores Um altaneiro jequitibá concedeu um plano arrojado.

“Irmãs, disse ele às árvores da selva, deveis saber que a terra nos pertence. Vede, homens e animais dependem de nós. Alimentais as vacas, as ovelhas, as aves, as abe-lhas, tudo enfim vive de nós: somos o centro de tudo. Só um poder há acima de nós: é o sol. Verdade é que dizem depender dele nossa vida. Mas eu estou convencido que isso não passa de fábula para meter-nos medo.

Ora, não podemos viver sem o sol? Lenda antiqua-da, supersticiosa, indigna de plantas modernas e esclare-cidas.”

Pequena pausa. Umas figueiras seculares e um ce-dro majestoso de idade avançada, meneavam suas copas em sinal de desaprovação. Mas as árvores novas aplau-diam freneticamente de todos os lados.

O jequitibá retomou o arremesso e continuou: “Bem sei que há entre nós uma facção de ignorantes e atrasa-dos, o partido das velhas que ainda acreditam em fábulas. Eu, entretanto, sou pela autonomia e pela independência da nova geração vegetal. É tempo de sacudirmos o jugo

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do sol. Vamos à luta pela liberdade; ó velho lampião do céu, teu reino findou.”

Uma tempestade de aplausos estrugiu no ar. O en-tusiasmo juvenil abafou os protestos das árvores velhas.

“Comecemos, pois, comandou o jequitibá. Durante o dia interromperemos toda a atividade e passaremos a vi-ver só durante a noite, escura e misteriosa. De noite have-remos de crescer, deitar os brotos, florir, exalar o perfu-me, frutificar: não precisamos do sol. Somo livres”.

Nos dias seguintes os homens observavam um fato estranho. O sol resplandecia com todo o seu brilho. Seus raios quentes enchiam o ar. As flores, porém, inclinavam teimosas as cabecinhas para a terra, fingindo dormir. As árvores deixavam pender as folhas. Todas as plantas desprezavam o astro-rei. À noite abriam-se as corolas, as flores voltavam-se para a luz pálida da lua e para o firo cintilar das estrelas.

Durou isso alguns dias. Pouco a pouco surgiram curiosas alterações nas

plantas. Os cereais, antes levantados para o sol, jaziam por terra. As flores empalideceram e secaram. As folhas amareleceram e caíram. Murmurações ouviram-se então contra o Jequitibá. Este, apesar de ver suas folhas amare-las e secas, continuava teimoso:

“Tolas que sois! Ainda não percebestes que agora sois muito mais belas e interessantes, mais livres e inde-pendentes. Doentes, vós? Qual nada! Agora sois nobres, aristocratas”.

Algumas coitadas davam crédito e murmuravam à noite, cansadas e exaustas: “Estamos belas, ficamos no-bres, independentes”. A maioria, porém, percebeu a tem-po o perigo e reconciliou-se com o sol.

Quando entrou a primavera, o jequitibá lá estava de galhos desnudos, ressequidos, em meio à selva que re-nascia cheia de vida, repleta do gorjeio dos pássaros. Su-

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as estultas doutrinas estavam esquecidas. Em redor dele o perfume das flores subiu cheiroso rumo ao sol e as co-pas folhudas das árvores inclinavam-se agradecidas para o astro-rei (Joergensen).

QUEM É DEUS? Sto. Tomás, aos 5 anos, perguntava ao seu mestre

de primeiras letras: “Quem é Deus?”

Mistério Deus é o mistério. Mil nomes lhe são dados, mas

sua face continua oculta. Sei que é eterno, onipotente, onisciente, infinito, bom, formoso. Mas sei também que é muito mais do que isto. Desde sempre é eterno, existe: “paralelo a todos os tempos e espaços - onipresente” (ROHDEN, De alma para alma).

É o único ser “auto-existente”. Todos os demais são alo-existentes. São sombras, e não realidades, apesar da grossura, altura ou peso. Existem por acaso. Existem por-que o Ser Absoluto os fez existir. São partículas relativas na gramática cosmológica.

Isaías, embora profeta e visionário, declara que Javé é um Deus escondido (45,15), pois para Deus o mundo inteiro é como uma gota d’água perante o mar. Assim sendo a inteligência humana deve-se achar na mesma desproporção perante Deus: incapaz de compreender.

Deus é o mistério. Nossa inteligência conduz até perto: Deus existe; mas sua natureza está sempre envol-vida no halo do mistério. A bússola orienta com segurança o explorador rumo ao pólo norte. Chegando, porém, perto do misterioso foco de atração, ela move-se inquieta, agita-se, não serve mais Assim a mente humana perante o mis-tério de Deus.

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As inteligências mais penetrantes só sabem balbuci-ar. Hierón, tirano de Siracusa, pediu ao filósofo Simôni-des: “Diga-me, quem é Deus”. O sábio pediu um dia de prazo para responder. Depois pediu dois, depois quatro, depois oito. No fim, declarou: “Quanto mais tempo passo meditando, tanto mais difícil me parece a resposta” (Cíce-ro).

A revelação bíblica conduz-nos alguns passos mais adiante. Mas no fim, topamos também com o mistério infi-nito.

Revérberos Deus criou esse mundo: portanto ele é maior, mais

formoso, mais forte. Se o mundo criado nos empolga, deslumbra, fascina, hipnotiza: quanto mais o seu criador.

Qual foi a emoção de Newton ao descobrir a lei da gravitação dos sistemas estrelares: as estrelas menores girando ao redor das grandes, as grandes girando dentro das galáxias. E estes gigantes voando através do espaço na velocidade de cento e oitenta mil quilômetros por se-gundo (não por hora ou por minuto, mas por segundo).

Nossa mente fica barrada. E a criatura é só reflexo, revérbero, sombra, da Rea-

lidade infinita, imensa. Diz Sto. Agostinho: “Deus não se-ria Deus se não fosse superior à nossa capacidade de compreensão”.

Fragmentos A sabedoria brâmane inventou o conto do elefante

na aldeia dos cegos. O primeiro cego pegou a tromba e decretou triunfante: “O elefante é como uma árvore torta com a casca áspera e rugosa”. Os colegas protestaram: “Não, ele é como um leque grande (orelha)”. “Não, ele se

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parece com uma serpente (rabo)”. “Não, ele se parece com uma coluna (patas)”.

Nós vislumbramos alguns atributos divinos mas não conseguimos uma visão do conjuntos global. A razão hu-mana falha quando encontra luz demais Olhando o sol, fica cega.

Seres finitos e limitados, parecemos turistas a visitar a catedral de Colônia de noite, armados de pequenos ho-lofotes. Aqui se destaca um altar e não enxergamos os retábulos no alto. Ali, uma coluna que se perde no escuro da abobada. Topamos com os pés numa lousa sepulcral e deciframos a inscrição latina. Impossível ter uma visão cabal e adequada do templo, em sua majestade (T. Toth).

Vemos alguns fragmentos de Deus. Sabemos que Deus é santo, justo, misericordioso e imaginamos estes conceitos a nosso modo humano, quando na realidade, em Deus não existe essa série sucessiva de qualidades. Em Deus não há partes: é tudo uma coisa só. Intelecto e vontade são em Deus a mesma coisa. Justiça e miseri-córdia em Deus são idênticas. Impossível imaginarmos isto com a nossa cabeça. Mas de quantos conceitos errô-neos iríamos livrar-nos se nunca perdêssemos de vista estes princípios. Deus, ser infinito, difere tanto, tanto de nós, que nossas idéias sobre Deus ficam muito aquém da realidade. Nossos raciocínios sobre a natureza de Deus são balbucios. Nossos conceitos sobre Deus estão cheios de acréscimos humanos; infiltrados por ganga terrestre. Antropomorfo é todo o nosso pensar e falar de Deus.

Com Sto. Agostinho a palavra: “Tu és eterno e imu-tável. Tu não tens um hoje. E no entanto o dia de hoje com todas as suas novidades se desenrola em tua pre-sença. Poderá correr o rio do tempo se Tu não o guiares? Os teus anos não passam mas convergem para uma e-ternidade sempre presente. Desde os tempos de nossos ancestrais, quanta vastidão de tempo já passou diante da

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tua presença eterna!... Quem não o compreende, não in-sista, mas alegre-se. Alegre-se e procure encontrá-lo: eis o que importa” (Confessiones. 1,6).

Encontros Os que retornam de lá, os que O encontraram em

seus caminhos terrestres, declararam-se incapazes de dar explicações. É toda uma luta. Jacó lutou com o Anjo-Deus, exigindo-lhe dissesse seu nome. Moisés ouviu seu nome, viu-o face a face, conversou com ele como um a-migo com seu par (Ex 33,11), contemplou o invisível, diz Hb 11,27. E afinal nada nos contou, desculpando-se por ter a língua pesada. Isaías viu o trono de Deus sobre os serafins, mas: “é impossível falar com lábios impuros” (6,5). Jeremias escusa-se, balbuciando a-a-a; sou criança que não sabe articular palavras (1,6). Perante o infinito todos ficam com a língua pesada. Até mesmo o apóstolo que subiu até o terceiro céu e viu coisas impossíveis de expressar em linguagem humana (2Cor 12,2). Prece e amor nos aproximam do Deus-mistério. Não inteligência, e especulação.

Assim acorreu a Helena Most, luterana convertida, no encontro misterioso: “Meu anseio de encontrar Deus chegou a ser tão grande que me dominava toda. Às ve-zes, fugia do convívio familiar e corria ao meu quarto, pa-ra cair de joelhos pedindo, pedindo, pedindo. E Nosso Senhor deu-me a verdade”.

Hermann Bahr, crítico literário, deve sua conversão ao encontro misterioso: “Uma fé ilusória não me teria a-calmado. Belas emoções e sentimentos não me valiam. Eu queria saber”.

Carmelo de Paris, 1607. A superiora visita a jovem noviça na cela, Catarina de Jesus. Encontra-a absorta em Deus. “O que faz?” “Contemplo este Deus que enche tudo

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aqui”. E recaiu no silêncio. Seja recordada a palavra de Jesus, hoje atual como

nunca, mais do que nunca: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o revelar” (Mt 11,27).

Deus é a suprema Realidade. É o centro. Impossí-vel, metafisicamente impossível a descentralização. Anjos e demônios só se ocupam com ele. Se os demônios pu-dessem esquecê-lo, estaria findo seu inferno. Na terra, fogo e gelo, e toda a criatura rodeiam o salmista (148,8), cantando o louvor do Altíssimo.

Desencontros Com a humanidade as coisas são diferentes. Há to-

da uma variedade: não conhecer, ignorar, recusar. As desculpas são várias. Deus: isto é grande demais; se o tomássemos a sério, ele invadiria tudo. E, em todo caso, se Ele existe, é impossível compreendê-lo. Fantasma ou realidade, em todo caso inacessível. “Bagatelas”, respon-de o livro da Sabedoria (4,12).

No paganismo, o vício obsceno é Deus. A crueldade é Deus. Figuras revoltantes ou ridículas povoam o Olim-po. Degradação aviltante, castigo do orgulho humano, é este culto religioso pagão.

Sto. Agostinho conta que o senado romano reconhe-ceu oficialmente três mil deuses, mas recusou terminan-temente a homologação do Deus dos cristãos, porque é um deus orgulhoso; não tolera outros deuses a seu lado. Fora bem inspirado! Imaginem, Jesus figurar entre os três mil, todos eles criaturas da fantasia humana, ou melhor, caricatura. Jamais!

Recusar Deus que é o único ser que existe... que absurdo! Todo o universo só existe por empréstimo, numa existência precária, eternamente mendigada. É mister

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contemplar a Deus como se tudo o mais não existisse, pois Deus é o Absoluto, o único.

Cromácio pediu ao mártir Sebastião a cura. Foi-lhe exigida uma condição: tirar da casa todos os ídolos pa-gãos. Cromácio: “Certo, mas guardei apenas um peque-nino, porque é lembrança”. Sebastião: “Não podes con-servar nenhum, ainda te seja caro como o olho, se queres sarar!”... Como existem idéias infantis da humanidade so-bre o Ser Absoluto, Infinito.

DEUS ESPÍRITO Sto. Agostinho narra como mandou seus cinco sen-

tidos pelo mundo afora à procura de Deus. E, um a um, voltaram dizendo: “Não vimos nada, é impossível ver Deus na terra; somente em teu coração poderás sentir sua presença, mas ver, só na eternidade”.

Deus é espírito, explica Jesus à Samaritana. Deus é espírito perfeitíssimo, dizia o catecismo para crianças, quando na verdade nem sequer os adultos, nem o gênio mais elevado é capaz de alcançar o sentido dessa pala-vra.

Nós somos um composto de corpo e espírito. Nosso pensamento atinge a realidade intelectual não por intuição mas somente por um penoso processo lógico de abstra-ção. Como somos corpóreos, a nossa linguagem também é corpóreo e, daí, inadequada para definir um ser não corpóreo. É impossível falar sobre Deus com precisão, usando uma linguagem feita pelos e para os cinco senti-dos do organismo corporal. “Como peixes que levantam a cabeça fora d’água para ver o sol, ou o mundo florido ao redor, assim é o mundo dos seres espirituais em relação a nossa razão (Foerster). Por isso parece que Deus não se cansa de fazer repetir pelos profetas do A.T.: “Tanto quanto os céus estão elevados acima da terra, tanto se

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acham elevados meus caminhos acima dos vossos e meus pensamentos ultrapassam vossos” (Is 55,9).

Tornamos a lembrar que nosso linguajar sobre Deus ficará sempre inadequado por dupla razão: por Deus ser espírito puro e por ser absoluto, infinito. Não sabemos falar de outra maneira, a não se a humana. Falamos do olhar de Deus, da mão de Deus, do trono de Deus. A pró-pria Bíblia fala assim. Falando do trono de Deus a Escritu-ra quer dar a entender sua infinita majestade. Falando do braço de Deus entende sua onipotência. Metáforas. “Deus mora numa luz inacessível; nenhum ser humano jamais ouviu, nem o pode ver” (1Tm 6,16). Só a fé e sua luz nos guia.

A natureza criada dá-nos uma imagem de Deus, mas vaga e nebulosa. Conhecemos Deus só pelo espelho das criaturas: por aquilo que estas refletem de Deus. Cria-turas, embora obras divinas, não podem ser expressão adequada da onipotência infinita. Diz Sto. Tomás: “Sobre Deus sabemos melhor o que ele não é, do que o que ele é”.

Por outro lado, o que sabemos de Deus não se re-sume apenas a nomes e vocábulos. Por imperfeitos que sejam nossos conceitos mentais sobre Deus, eles são reais, atingem a realidade embora de um modo imperfeito e incompleto. São Paulo o afirma (Rm 1,20): “As perfei-ções invisíveis de Deus tornaram-se visíveis à nossa inte-ligência, através das criaturas”.

Temos só conceitos análogos, diz a Escola. Por en-quanto vemos com num espelho (opaco) alguns reflexos e sombras do infinito. A plenitude do Ser ultrapassa os qua-dros da mente criada e mais ainda os de um intelecto pre-so a imagens corpóreas. Sabes quando verás a Deus de verdade? Quando ao teu nome se acrescentar RIP: Re-quiescat in pace. Quando se rezar sobre teu túmulo: A luz eterna brilhe para ele (T. Toth). Belo costume bem gracio-

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so, este de despedirmo-nos dos nossos falecidos com esta saudação: “Brilhe agora para ti a luz eterna”.

E seja recordada a bem-aventurança evangélica: “Bem-aventurados, diz o Filho de Deus, bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus” (Mt 5,8).

DEUS PLENITUDE

Sinai No fundo do deserto do Sinai está Moisés pastore-

ando o rebanho, quando de súbito vê um arbusto arder em chamas sem se consumir. Moisés acorre para obser-var de perto esse fenômeno insólito. Então, voz misteriosa faz-se ouvir: “Tira as sandálias de teus pés porque estás em lugar sagrado”.

Nós também queremos penetrar nessa terra santa, nesse chão sagrado, procurando saber, e não só adivi-nhar e vislumbrar: Quem é Deus?

Que ele existe, este Ser supremo, o mundo que nos rodeia, o firmamento das estrelas sobre nossa cabeças, a voz secreta do nosso coração todos eles nos dizem, nos garantem que ele existe. E o mistério de sua natureza nos atrai. Moisés pediu a Deus que lhe dissesse seu nome. Mas, como enunciar o que é inefável? Deus respondeu: “Meu nome é Javé. Eu existo, Eu sou aquele que existe”. Resposta enigmática e todavia reveladora. Deus é o único ser que existe de verdade, existe por si próprio. Todos os demais, todo o universo, todos nós só existimos por doa-ção. “Acontece” que existimos. A existência foi-nos dada de presente. Presente este que precisa ser renovado sem cessar, momento por momento. Como a sombra não exis-te sem a luz do sol. Deus existe por si, por essência, por necessidade. Existir é natureza sua. As criaturas come-

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çam a existir. Deus existe sempre, sem começo e sem fim. Como disse Jesus a Sta. Catarina de Sena: “Tu és aquela que não é; Eu sou aquele que é”.

Uma vez que Moisés já sabia o nome de Deus, o menos inadequado, ele pede e insiste para ver a sua face. Pedido impossível. Numa casca de noz não cabem as águas do oceano. E a todas as súplicas de Moisés Deus enfim responde: “Verás minha sombra quando eu passar diante da gruta” (Ex. 33,22). E saindo desta visão, o rosto de Moisés tornou-se luminoso como o sol, e o povo de Israel não pôde suportar esta luz ofuscante (Ex. 34,29).

Séculos depois, o profeta Elias retornou ao Sinai, na esperança secreta de receber a mesma visão da “sombra” de Deus (3 Rs 19,11). E Deus mostrou-lhe figuras, símbo-los do seu Ser: um vendaval, um terremoto, fogo, e cada vez adverte a visão: isso não é Deus. E surge o último símbolo, que parece querer ser o mais significativo: um zéfiro suave, brisa do Éden celeste. Mas tudo é figura.

Plenitude Passam séculos e novamente um profeta de Israel

tenta o impossível: descrever para seres humanos, terres-tres, corporais, a natureza de Deus. Tenta dar-nos uma visão da grandeza de Deus, talvez, recordando contatos íntimos com o Ser divino, na sua oração. Mas o sábio e místico desanima e termina bruscamente: “Resumo de todas as palavras: TO PAN ESTIN AUTÓS: ele é a pleni-tude (Eclo 43,26).

E novamente, já perto dos albores da Nova Aliança, o místico israelita aborda o problema sublime. Certo de sua intuição descreve, ou tenta descrever, a natureza di-vina, propriamente da Sabedoria de Deus. i.é., a do Ver-bo, a do Filho de Deus. Enumera três vezes sete qualida-des divinas: “claro, suave, sutil, discreto, ágil, penetrante...

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clarão da luz eterna, espelho sem mancha da majestade de Deus, imagem de sua bondade... amante dos ho-mens... transfunde-se nas almas santas, faz profetas e amigos de Deus” (Sb 7,8-11).

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Pléroma O N.T. afirma, logo de entrada, no prólogo do quarto

evangelho, como que para prevenir, de início, mal-entendidos e deformações: Ninguém jamais viu a Deus; nem Moisés, nem Elias, mas só o Filho unigênito nô-lo revelou (Jo 1,18).

“Deus é a plenitude” (pléroma) Ef 3,19. “Deus é luz sem sombras” (1Jo 1,5). Deus é a “origem de todas as luzes que brilham no

céu”, declara São Tiago (1,17). E é maior que todas elas, pois “nele não há eclipses ou crepúsculos”. É o sol do u-niverso, sempre a brilhar, dia e noite, por assim dizer, tu-do não passa de figuras, de criaturas, a simbolizar o infini-to que ultrapassa o intelecto humano.

São Paulo, de volta do terceiro céu, só sabe balbuci-ar palavras confusas (2Cor 12,3).

Todavia ainda falta o remate da Palavra Revelada: “Deus é amor” (1Jo, 4,8). Amor inebriando corações hu-manos no monte Tabor e através dos séculos da história humana. Já o prometera o sábio do A.T.: “amante dos homens... faz amigos de Deus” (Sb 7,22).

Javé Deus é aquele que existe. Ele é o Alfa e o Ômega,

(Ap 1,8). Começo e fim, Origem e Destino. Ele é a eterni-dade. É de sua essência não ter nem começo nem fim. “Aquele que existe, sempre existiu, sempre existira” (Ap 1,8).

Clareia amanhã. Fulge o sol... mais um dia. E chega o crepúsculo e a noite. Tudo passa. Dia por dia, começa um novo ano. Primavera, verão, outono, inverno, as figu-ras da existência humana. O jogo perpétuo das flores a florir e a perecer. Nada no mundo é perene. No fim, a al-

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ma está às portas da morte. Deus, porém, é eterno. “Antes de se formarem a ter-

ra e o mundo, Tu és Deus, de eternidade em eternidade” (Sl 89,2). “Todos envelhecem como um vestido... Tu po-rém, existes sempre e teus anos são sem fim” (Sl 101,27). “Antes que nascesse Abrão, eu sou, eu existo” (Jo 8,58).

Cesário, irmão de Gregório Nazianzeno, presenciara a destruição de Nicéia por um terremoto. Resolveu viver só para Deus: “Quero procurar uma casa que não caia em ruínas”.

Imenso Infinito no tempo. Infinito no espaço. Collin, livre-

pensador inglês, encontra um operário, conhecido e ami-go, indo à Igreja. E deu-lhe a gana de caçoar: “Diga-me, amigo, teu Deus é grande ou pequeno?” “É tão grande que não cabe na tua cabeça, e tão pequeno que cabe em meu coração”.

O mesmo pensamento, em forma séria, transmite-nos Newton, o sábio das estrelas: “Não sei o que o mundo pensa de mim. Mas a mim mesmo pareço uma criança brincando na praia do mar e alegrando-se quando encon-tra uma pedra mais lisa ou uma concha maior, enquanto todo o oceano da verdade continua inexplorado e ignoto”.

O universo estelar em que vivemos é uma vastidão sem fim. Viajando pelo espaço com a velocidade da luz a trezentos mil quilômetros por segundo, chegamos à lua num segundo (os foguetes atuais levam três dias); ultra-passamos o mais distante dos planetas em cinco horas; chegamos à estrela mais próxima em quatro anos (os fo-guetes atuais levariam uns cento e oitenta anos). A galá-xia em que vivemos, a Via Láctea acolhe cem bilhões de estrelas, mede de ponta a ponta oitenta mil anos à veloci-dade da luz. Saindo do seu perímetro, navegamos dois

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milhões de anos-luz até a galáxia mais próxima, Andrô-meda. Estas galáxias, aglomerações de estrelas como enxames de abelhas, reúnem-se em agrupamentos. O nosso grupo consta de dezessete galáxias. O maior agru-pamento, Hércules, abrange dez mil galáxias, e está à distância de trezentos milhões de anos-luz, sempre a via-jar na velocidade da luz. Ao todo calcula-se haver pelo menos dez bilhões de galáxias, contendo cada uma não milhões, mas bilhões de estrelas.

E toda essa vastidão monstruosa cabe na mão de Deus, como diz o profeta Isaías com tanta graça (40, 12). Tudo isso, e ainda mal comparando, é uma gota d’água, é um grão de poeira em comparação à imensidão de Deus.

Podemos imaginar o máximo, e Deus é sempre mai-or. Podemos fugir até os últimos limites do universo: lá está Deus, à nossa espera. A imensidade, a plenitude de Deus, que nos rodeia, nos envolve e submerge.

Lamartine ofereceu à revista parisiense, “La Revue des deux Mondes”, um artigo sobre Deus. O diretor recu-sou: “Preferimos um assunto da atualidade”. Ora, quem mais atual do que Deus? Só ignorando a palavra de São Paulo: “Nele vivemos, nele nos movemos, nele existimos” (At 17,28).

Perfeição Deus é plenitude do Ser. O Ser Absoluto. Possui to-

da a perfeição; tudo quanto possamos imaginar e desejar, nele está. Tudo quanto se encontra de bom na terra; tudo quanto de bom, nobre, grande, viveu, vive e viverá na ter-ra. Amor paterno, amor materno, amor filial, a inocência da criança, a beleza juvenil, o pensamento filosófico, ci-ência, virtude, justiça, tudo quanto a terra em sua longa história produziu, é dádiva do alto; é uma gota do oceano infinito das perfeições divinas. Reúne tudo, purifica-o das

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imperfeições e depois aumenta e multiplica ao infinito e tens uma sombra pálida da realidade divina.

DEUS AMOR “Deus é o amor” (1Jo 4,8). Criou por amor. Remiu

por amor: Belém-Nazaré-Calvário. Continua amando: na ceia eucarística.

A humanidade levou milênios até descobrir que Deus é amor. Aliás, não o descobriu. Jesus Cristo preci-sou contar e provar. Após o desastre, no paraíso, os ho-mens esqueceram até o nome de Deus; quanto mais...

Inicialmente a humanidade viu em Deus a potência suprema, o poder invisível que se revela através da vio-lência dos elementos: raio, trovão, enchentes, terremotos. “O homem ainda carnal fez Deus à sua imagem” (Ron-det).

Deus é vida e criador da vida. O homem, até agora, só conseguiu fazer máquinas e autômatos. Máquinas tre-mendamente eficientes mas enfim máquinas mortas e incapazes sem a assistência da inteligência humana. Mas a vida continua sendo segredo da fábrica de Deus.

Deus é luz (Jo 1,5), e mora na luz. E essa luz revela-se ao homem na suma inteligência que rege o universo, em todas as esferas onde o homem ainda não se introme-teu. A inteligência humana tem a bela tarefa de seguir o vestígio dos passos de Deus na criação. Tarefa de des-cobrir o que Deus já fez antes de nós e mais bem feito do que nós.

Mas Deus não é apenas onipotência, vida, luz. É muito mais: é Amor. Da plenitude do Ser brotou a Sabe-doria em pessoa, o Verbo de Deus, e brotou logo depois o sumo amor, o Espírito Santo. “Todas as energias do po-der residem centralizadas em Ti, ó Pai. Todas as luzes do saber, que como flamas celestes iluminam inteligências

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angélicas e humanas, estuam, em Ti, Filho Eterno, Verbo Eterno. Todos os incêndios do querer (e amar), que como vivas labaredas ardem em corações amantes, lavram a Ti, Espírito Santo” (ROHDEN, a 1.11).

E a plenitude do Ser, do Saber, do Amor transbor-dando em bondade, carinho e amor, criou outros seres. E uma vez criada a humanidade, parece que Deus não po-dia mais viver sem o amor, tão mesquinho, do coração humano. Parece que se sentiu forçado por laços de amor a continuar a prodigalizar-se na Encarnação, na Reden-ção, calculando que amor produz amor.

Em vão! A humanidade não fez caso do convite de Deus, já pronunciado no A.T.: “Filho meu, dá-me teu co-ração” (Pr 23,26).

Nem nos acentos de carinho que o Espírito de Deus pôs na boca do profeta: “Carrego-vos no meu peito como uma mãe” (Is 66,13).

“Eu vos amo” (Ml 1,2). “Com grande amor, com amor ciumento amei Sião”

(Zc 8,1). “Com amor eterno te amei, desde a eternidade. Ca-

rinhoso, te atraí a mim” (Jr 31,3). “Não temas ó vermezinho, estou contigo” (Is 41,14). E o povo de Deus a lastimar-se: “O Senhor desam-

parou-me, o senhor esqueceu-se de mim” (Sl 49,14). E Deus apressa-se em responder: “Pode uma mulher es-quecer-se do filho de peito, e não ter compaixão do fruto de suas entranhas? E ainda que se esquecesse, eu não me esquecerei de ti” (Is 49,15).

“Eis que te gravei nas minhas mãos” (Is 49,16). Em vão! Deus precisou chegar às vias de fato. Co-

mo Abraão, sacrificou seu filho único, assim o Pai Eterno sacrificou seu filho unigênito. Como prova de amor. Como trato e contrato de nova aliança de amor eterno.

No A.T., Deus escrevera toda uma canção de amor.

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O Cântico dos Cânticos descreve, sob a figura do amor humano entre esposo e esposa, o amor de Deus para com a humanidade. O N.T. repete o mesmo leitmotiv mu-sical, sempre de novo: Deus é amor. E todas as obras da criação são estrofes desta canção (Pr 23,26).

Dante viu no fundo do abismo divino e viu, reunido e encadernado num único livro de amor, tudo o que se en-contra espalhado em folhas dispersas pelo mundo.

O único problema vital da criatura é este: Sou ama-do por Deus? Tudo o mais é de somenos importância.

F. W. Faber conta que uma criança derramou lágri-mas ardentes sobre este problema: “Será que Deus me ama?” E gente grande também já derramou lágrimas nes-sa angústia. A última resposta do Pai do céu é a entrega do Seu Filho. Devemos chamar Maria Santíssima. para ela nos contar quanto Deus nos ama. Ela que conversou muito com Ele e o viu no Calvário.

OS VIDENTES “Viram o invisível” (Hb 11,28). “Ó meu Deus, falar de Ti é infinitamente doce, mas

também infinitamente desesperador. O nosso coração não está à altura de tuas obras. Nem a nossa língua está à altura do nosso coração. As palavras não foram feitas para isto. Todavia como Deus está presente em nosso coração, fale o coração” (Delatte).

De tão difícil acesso é a natureza divina para o inte-lecto humano, que é melhor ceder o passo ao coração. “Ocultaste isto aos sábios e entendidos e o revelaste aos simples” (Mt 11,25).

“Minha alma abriu-se e bebia Deus. Minha alma res-pirava e bebia a vida da Santíssima. Trindade” (Lucie C-hristie).

“A alma submersa em Deus, vive pela vida do Pai,

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conhece e vê pelo Filho, ama pelo Espírito Santo” (L. C.)

Um passeio Através da terra dos que viram algo. Algumas amos-

tras, antigas e novas. TAULER: “O espírito está submerso e absorvido pe-

los abismos do oceano divino. E ele pode exclamar: Deus está em mim, Deus está fora de mim. Deus está ao redor de mim. Deus é todo meu, vejo somente Deus”.

MARINA de Escobar: “Anjos jogaram-me no vasto mar da natureza do Deus desconhecido e incompreensí-vel... A alma sente-se como que mergulhada num vasto oceano que é Deus e mais Deus. Ela não é capaz de to-mar pé, nem de achar o fundo”.

VERÔNICA Giuliani: Após longas tribulações entrou calmaria na alma e ela viu a Santíssima. Trindade, sua união amorosa, e foi também envolvida nesse abraço do Amor Eterno.

“As vezes, na oração, meu coração parece um rega-to que pouco a pouco se torna rio, e enfim um mar... a alma sente-se nadando na suavidade e na paz de um mar sem fim. Ondas potentes impelem-na através do oceano do Amor Divino”.

MARIA DE VALENÇA (1648), ex-calvinista, casada no ritual da reforma, “analfabeta, mas teodidata”, ensina-da por Deus (Brémond), viu: “O que eu via era uma coisa sem forma nem figura, mas era imensamente bela e a-gradável de se ver. Era uma coisa que não tinha cor e todavia possuía a graça de todas as cores. O que eu via não era uma luz semelhante à lua do sol, nem à luz do dia, e no entanto aquilo dava uma claridade admirável, e daí provinha toda luz corporal e espiritual. O que via não ocupava espaço nenhum e, todavia, estava presente por toda a parte e enchia tudo. O que eu via não se mexia, e

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no entanto, agia e operava em todas as criaturas” — “Sublime balbuciar” que repetem todos esses vi-

dentes do além (Brémond). ISABEL do S. Coração, Lisieux, 1882-1914: “Sem

nada ver com os olhos, nem do corpo nem da alma, eu sentia Deus presente. Sentia seu olhar sobre mim, cheio de suavidade e bondade. Olhar acompanhado de um be-névolo sorrir.. Sentia-me mergulhada em Deus. Minha imaginação, bem dócil desta vez, não se mexia. Não ou-via nada do barulho que se pudesse fazer em redor. O olhar de minha alma estava neste olhar invisível, fixo so-bre mim. E meu coração repetia, sem cessar: meu Deus, eu Te amo. E repetindo-o, sempre, com uma felicidade vaga, mas tão doce, eu desejava que o olhar divino, o sol espiritual, fizesse florir em minha alma todas as virtudes. E eu sentia que meu desejo se realizava, e que essa paz profunda, esse mútuo amar encobria uma atividade im-possível de compreender”.

ÂNGELA DE FOLIGNO Terceira Franciscana, viúva, morreu em 1309. “Quando mais te parece estar abandonada, é quan-

do eu te amo mais, e que mais próximo de ti estou”. “Vi uma coisa verdadeira cheia de majestade, imen-

sa. Não sei dizer palavra. Mas com certeza, devia ser o Bem Supremo”.

“Vi a Ele mesmo, uma plenitude, um esplendor, co-mo está no céu. De tanta beleza não sei dizer palavras. Era a suma Beleza que contém o Sumo Bem”.

“Filha, minha amada, quero fazer-te conhecer minha onipotência. Abriram-se os olhos da minha alma e vi uma plenitude divina na qual eu divisava o universo aquém dos mares e o oceano e o abismo, e todas as coisas criadas. E em tudo, outra coisa eu não via senão a potência de

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Deus”. E a minha alma cheia de espanto, exclamou: “Mas como este mundo está cheio de Deus!” E o mundo pare-cia-me uma coisica de nada. “O poder de Deus enchia tudo, transbordando por toda a parte”.

“Tendo conhecido o poder, a vontade e a justiça de Deus, fui elevada mais alto. Então não vi nem potência nem vontade, mas uma coisa só, unida e sólida, como também inefável. Só posso dizer que era o Bem Absoluto. E igualmente inefável era a alegria da alma”.

Sentia-me vazia de todo bem e recomendava-me ao Senhor. E eis que vi o amor que vinha ao meu encontro, uma coisa da qual via o começo, mas não o fim... De súbi-to, sentia-me cheia de amor, numa saciedade indizível... e com tanta fome... Não queria nem ver, nem ouvir, nem sentir criatura alguma. E este amor, creio firmemente, nunca mais me faltará. Eu via duas partes. Era como uma divisória que me percorria de cima abaixo. De uma parte via o que era de Deus: o Amor e o Sumo Bem. Da outra, aquilo que é meu: aridez e vazio. E que vazio! Assim che-guei a conhecer não ser eu quem amava quando estou no amor, mas que tudo vinha de Deus. Tudo quanto é menos do que este amor, me é pesado. Vi coisas maravilhosas em Deus, tão incomparáveis que me faz parecer inade-quado o que se diz, no Evangelho, da vida de Cristo ou alguma de suas palavras. Quando me desprendo deste amor, sinto-me numa alegria imensa e como que angeli-zada, a ponto de sentir-me disposta a querer bem até aos animais mais abjetos e nojentos, e até aos demônios. Em tal estado, se um cão me devorasse a mordidas, aos pe-daços, não me importaria; creio que não me sentiria mal. Nem a lembrança da Paixão de Cristo me faria algum e-feito: não seria capaz de uma lágrima.

“Estando em oração, uma voz suave começa a di-zer: Filha minha, meiga para mim, muito mais que sou para ti... Templo meu predileto. O coração do Deus onipo-

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tente está sobre teu coração. Deus onipotente pôs seu amor em ti. Seus olhos estão sobre ti... Não obstante me voltarem à mente todos os meus pecados, e eu não achar em mim bem algum, e parecia-me nunca ter feito algo que pudesse agradar a Deus, falei: “Tu estás em mim, criatura tão indigna”... E foi-me respondido: Tu verás como o mundo inteiro está cheio de mim. E então eu via que toda criatura está cheia dele. E Ele continuou falando: Eu pos-so fazer tudo: que tu me vejas conversando com os após-tolos ou que tu não me sintas de modo algum... Levantei a voz e disse: É fora de dúvida que Tu és o Deus todo po-deroso, e que são verdadeiras as coisas que me dizes. Mas dá-me um sinal. Respondeu: darei um sinal”.

“É este o sinal: tu irás arder sempre de amor, do amor de Deus. E terás sempre na alma a luz do conheci-mento d’Ele. Eis o sinal que imprimo em tua alma, sinal bem melhor que qualquer outro, e que ninguém pode fal-sificar. Só este meu amor basta para embriagar-te e dar-te sede contínua de mim. Ele dar-te-á paciência nas tribu-lações a tal ponto que, se alguém te disse injúrias ou te causar mal, tu irás considerar como uma graça especial da qual te julgas indigna. Foi assim o amor que eu tive por ti. Foi tão grande que me fez sofrer tudo com paciência e humildade. Ora, pois, conhecerás que eu estou em ti. Pois quando alguém te disser ou te fizer injúrias, tu terás não somente paciência, mas sentirás vivo desejo delas, consi-derando-as como uma graça. Eis o sinal certo da graça de Deus”.

“E a voz de Deus fez-se ouvir de novo: faze escrever tudo o que ouviste e sentiste. E no fim da narração faze acrescentar: Graças sejam dadas a Deus. E se alguém quer conservar a graça, não tire mais os olhos da cruz, seja na alegria, seja na dor”. Se alguém desejar sentir-me em seu coração, não me farei de rogado. Se alguém an-seia por ver-me, com alegria, de bom grado dar-lhe-ei

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uma visão de mim. Se alguém aspira falar-me, com júbilo, com prazer virei palestrar com ele”.

“Afirmo que tudo quanto os homens e as Escrituras sagradas têm dito desde o começo do mundo, não chega ao cerne da bondade divina. É como um grão de milho em comparação com o universo”.

“E para obter este conhecimento de Deus, o bem, a luz, o amor supremo, não há outro meio mais garantido nem mais eficaz que a oração contínua, humilde, violenta, oração não só de lábios, mas da mente, do coração, de todas as potências da alma, e de todos o sentidos do cor-po, acompanhada de intenso desejo”.

“A alma vê que apenas Deus é alguma coisa e que todas as coisas são nada”.

LUCIE CHRISTINE Nasceu em 1844. Casou-se em 1865. Mãe de cinco

filhos. Viúva em 1888. Morreu em 1908. Escreveu o Jour-nel, diário espiritual, de 1878 a 1908 (Ed. Poulain, 1910).

“De repente vi diante de meus olhos interiores estas palavras: Só Deus. Estranho é dizer que se vêem pala-vras. Mas é certo que as vi, e as ouvi em meu íntimo... Era uma luz... atração... força...

“Subitamente senti-me envolvida e como que inun-dada pela presença de Deus. Deus estava aqui. Perto de mi. Não o podia ver, mas sentia a certeza de sua presen-ça: como um cego que toca em alguém. Em meu coração uma unção, uma paz, um alegria divina. Durou mais ou menos uma hora. Seus efeitos não me permitem conside-rá-lo como ilusão”.

“A soberana beleza de meu Deus impregnou minha alma... Perante o encanto divino a terra não valia mais nada, e as impressões terrenas desvaneceram-se. Fiquei, por oito dias, sob a impressão sensível da beleza divina”.

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“Vi Deus, princípio de todas as coisas, dominando tudo, possuindo tudo, como fonte de tudo que é verdadei-ro, bom e belo. E sendo Ele mesmo a verdade, a bondade e a beleza, todas as coisas nada são, senão por Ele. To-da espécie de idolatria aparece como coisa espantosa. Todas as coisas criadas perdem interesse à vista do prin-cípio incriado”.

“Após a comunhão, um excesso de felicidade. Per-guntei a Jesus porque me fazia tão feliz. Foi-me respondi-do: Para desgostar-te das criaturas. Vi Deus como bem supremo, e ao mesmo tempo compreendi que o mal não é senão a negação do bem, um puro nada. Esta vista redu-ziu a nada todas as sugestões do mau espírito. Não fico mais perturbada e considero-as como nada.

“Compreendi também quão grande será a confusão dos pecadores, e que eles verão que todo o mal que ama-ram, preconizaram, adoraram, se reduzirá a nada. Ter amado o nada, ter vivido por ele e perder por ele o ser eterno, o bem supremo...”

“Os mundanos vêem na pureza da alma uma virtude negativa, ou senão, uma nulidade. Mas ao contrário, esta pureza é uma flor encantadora, um tesouro incompara-velmente belo. E a alma que a perdeu não tem senão o vazio”.

“Vi a profundeza de Deus, vista grandiosa e empol-gante. A alma vê Deus tão perto dela, dentro dela e ao mesmo tempo tão longe. É o imenso. É o infinito. A gente sente-se perdida nesta profundeza de Deus”.

“A vida íntima de Deus, vê-lo e senti-lo... É impossí-vel dizer o que é. E o coração fica abrasado de amor e do desejo de dedicar-se a Ele. Cada favor que Deus conce-de, enriquece a alma de um grau de graça e de glória”.

“Essência divina... impossível é dizer o que tu és. Não és admirada e amada. A alma é atraída por uma for-ça irresistível, é submergida em Deus como num universo

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sem margens. Goza um repouso incomparável. Sente-se penetrada por esta natureza divina. Sente que vive nela. Que existe só por ela... Sente que Deus a possui mais que ela a si mesma. Afunda-se nele como uma gota d’água num mar sem limites”.

“Minha alma compreende: na outra vida veremos tu-do em Deus. Minha alma parece-se a um vaso repleto, até à borda, de vida divina”.

“Vi de novo como todas as coisas estão em Deus... Depois vi uma fonte muito pura e abundante que jorrava do sopé de uma montanha, e depois se derramava sobre a planície, onde se dividia numa multidão de filetes de água muito delgadas e mais ou menos limpos ou barro-sos, segundo o terreno que percorriam. Muita gente corria à procura desses filetes d’água, mas poucos subiram o suficiente para haurir na fonte. Nosso Senhor me diz: Vê como os homens vão a estes filetes, regatos pantanosos, insuficientes para apagar a sede, em vez de subir a ori-gem de todas as coisas. Aqueles que abandonam tudo por mim, encontrarão tudo em mim”.

“A presença de Deus é tão evidente que as coisas exteriores nada mais parecem que sombras”.

“A alma percebe de certo modo o Pai, de outro modo o Filho, de outro ainda o Espírito Santo, e fica impregnada da unidade três vezes santa... A Santíssima. Trindade está, atrevo-me a dizer, está em casa. Bendito seja Deus. Minha alma sente que para louvá-lo necessita nada me-nos que a eternidade”.

“Um coisa que arrebata é Deus imprimir na alma uma de suas perfeições. É a vista clara e profunda de que Deus e essa perfeição são uma coisa só. Que Deus é o que é. Jesus mesmo é a sua amabilidade. Não posso es-crever essas palavras sem sentir pular meu coração. Compreendo que os amigos de Deus desfaleceram quan-do viram tais coisas. Devo ter a cabeça e o coração muito

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duros ou devo estar muito agarrada a terra para não me acontecer o mesmo”.

“Parece-me que Deus enche a alma de tal modo que não há mais lugar senão para Ele. Fica para trás todo o resto”.

“Imutável, Deus não muda. Nós e as coisas todas, mudamos”.

“Fui admitida a ver o “nó” que une Deus e a alma”. “Imensidade divina, de modo que parecia a esta po-

bre alma, que ela caminhava por toda parte com Deus, que é em toda parte, sem limites, sem fim”. Jesus: “De-pois de tudo o que viste ainda há o desconhecido, que é infinito.”

“Em Deus, entre as três pessoas, há sempre o júbilo da admiração e do amor, um júbilo eterno, sem começo e sem fim”.

“Deus, princípio de tudo: a alma toca com o dedo to-da a erronia do panteísmo. Tenho sentido, tenho visto de maneira certa que se, por um lado, Deus é princípio de tudo, por outro, ele é diferente do tudo. De tudo quanto existe, é ele o único que existe. A alma sabe disso, tem certeza de ter visto Deus”.

“Ciência divina: “Eu sou aquele que sabe e tu és a-quela que não sabe”. “Nosso Senhor tem me mostrado que só existe um problema no mundo, a saber, a glória que Jesus, Rei da criação deve entregar a Deus-Pai, pela criação. Vi o nada de todas as outras questões: política, questões sociais, que tanto agitam os homens. Os impé-rios desmoronam, uns após outros, como também as nossas grandes questões científicas; todas essas coisas não tem sentido a não ser pela glória que delas resulta para Deus; o resto nada é”.

“Através de uma porta entreaberta no céu, percebi o concerto unânime dos anjos e dos eleitos em honra da Santíssima. Trindade; compreendi como, no futuro, todas

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as vozes do mundo moribundo terminarão na canção da imortalidade. Vozes do gênio, vozes da ciência, vozes do poder, vozes do amor e de suas ternuras. Vozes da cora-gem, do temor, da alegria, da dor. Vozes da natureza, trovão e tempestades. Reviravoltas dos impérios sacudin-do o equilíbrio da sociedade humana, de alto abaixo, até os alicerces. Tudo irá apaziguar-se, tudo irá silenciar, tu-do, um dia, dará lugar ao aleluia eterno dos anjos e elei-tos”.

“A alma sente: sua vida flui em Deus, onde ela es-quece de si mesma, não vendo senão a Ele, vivendo pelo Pai, conhecendo pelo Verbo, amando pelo Espírito San-to... beatitude antecipada”.

“Jesus continua a cativar minha alma. Nessa oração a alma vive de Deus, sente estar vivendo por Deus. Toca em Deus, sem intermediário. Conhece-o por conhecimen-to experimental, como sentimos o ar penetrar nos pul-mões. Ela bebe o amor e a luz. Aspira a sua fonte e ori-gem no seio da divindade”.

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3. GRAÇA “Eu vim para que tenham a vida. E a tenham em a-

bundância” (Jo 10,10) “Elevado da terra atrairei tudo a Mim” (Jo 12,23) “Quem adere a Deus torna-se um só espírito com

ele” (1Cor 6,17) “Em nossa tenda atual, suspiramos cheios de sau-

dades de sermos sobrevestidos da nossa habitação ce-leste” (2Cor 5,2)

A LUZ DO CRUZADO A cidade de Jerusalém tinha sido arrancada aos infi-

éis Os lugares santos, que Nosso Salvador santificou por seu sangue, voltaram às mãos dos cristãos, graças à he-róica bravura dos cruzados.

O exército vitorioso organizava uma procissão, velas acesas nas mãos, pela cidade santa. O cavaleiro mais valente, aquele que sempre combatera na primeira fila, que no assalto final, tinha escalado a muralha em primeiro lugar, devia ser também o primeiro a acender sua vela na lâmpada do santo Sepulcro. Era um florentino, da família dos Pazzi. Compreendemos que só pensar nessa hora única, as lágrimas subiram aos olhos do rude guerreiro, quando se abaixava para acender sua vela naquele lugar onde outrora havia pousado o corpo de Nosso Senhor.

Neste momento solene, inclinado sobre o Sto. Se-pulcro de Jesus Cristo, o cruzado fez a promessa de pôr mãos à obra a fim de levar intacta essa santa chama até à

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sua terra natal, e de acender com ela as velas no altar da Virgem, em Florença, sua cidade natal.

Logo, tomou o caminho de volta, levando consigo a vela acesa bem protegida numa lanterna; levava também uma boa quantidade de velas de reserva, para nunca chegar a faltar no caminho. Não era nada fácil pôr em e-xecução e sua resolução. Bandidos o surpreenderam e o pilharam; entregou-lhes tudo sem todavia permitir que tocassem na sua vela. No meio do sono acordava sobres-saltado para ver a vela acesa. Se uma vela se extinguia, acendia uma nova na chama antiga. Assim chegou, afinal, ao termo de sua empresa, aparentemente impossível. Trouxe feliz, até Florença a luz tirada do sepulcro de Cris-to.

É uma figura da graça santificante que devemos le-var, através da vida terrena, até às portas do céu.

GRAÇA Graça é favor gratuito. É benevolência e amizade de

Deus para com a criatura. Nosso destino eterno é Deus. Pela graça Deus nos

quer fazer participar, desde já, na terra, dessa vida divina. Consideramos até agora o destino de todo ser racio-

nal: Deus, a plenitude do Ser. Mas por assim dizer, Ele foi visto de fora. Foi um contato externo com Deus. Foi, por assim dizer, participação na esfera marginal da divindade. É esse o destino que deve caber a habitantes de outros planetas, no vasto universo. Destino, quiçá, que coube ainda aos problemáticos ancestrais de nosso Adão.

Mas Adão, e sua descendência, foi elevado a um destino acima do seu destino natural. Destino sobrenatu-ral . Foi destinado a participar da própria vida de Deus, da sua vida mais íntima em grau máximo, acessível à criatu-ra.

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Sabemos como Adão vendeu sua primogenitura por uma maçã, como Esaú por um prato de lentilhas (Gn 3). O Filho de Deus feito homem veio substituí-lo, restaurando a união da família humana com Deus.

A origem O mistério dessa união renovada é maior do que foi

no paraíso. Aí Deus unira graça e natureza, suspendendo ao

mesmo tempo todos os defeitos laterais da natureza hu-mana. Assim a graça podia contentar-se com a elevação sobrenatural. A união era pacífica e sem lutas. Na restitui-ção, e redenção por Cristo, Deus porém deixou a nature-za humana em seu estado natural, no qual ela recaíra pelo pecado original, viu e vê, com nitidez, a sua pobreza sem Deus e sua incapacidade de atingir o destino sobre-natural, castigo da justiça divina. Todavia, após o batismo desaparece toda culpa. Rm 8,1: nihil damnationis, “nada de culpável” resta na criatura humana, embora continue desprovida de todos os recursos espirituais. Mas aumen-tou, assim, a glória de Deus. Nada glorifica mais a Deus do que a criatura reconhecer a realidade, suas limitações e insuficiências, e suportar de boa mente o seu nada, ofe-recendo-se em holocausto total a Deus.

Escreve Scheeben: “Eis a maior glória da criatura: dar-se, oferecer-se humilde e submissa a Deus, como holocausto. Ao contrário, nada mais a rebaixa tanto quan-to o orgulho e a rebeldia contra o criador. O fogo que de-vora este holocausto é a graça do amor ardente. Ardor que aniquila a sensualidade herdada e, mais ainda, a re-beldia e independência inatas. Exige a renúncia de bens naturais, bens reais, a fim de pertencer exclusivamente a Deus. Amor que faz a natureza alegrar-se na sua miséria natural, a exemplo de São Paulo: “Prefiro gloriar-me, jubi-

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loso, das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo” (2Cor 12,9). Amor que faz desejar humi-lhações e dor, porque vê nisto maior glória de Deus.

Deseja crucificar a natureza à semelhança do Re-dentor, que quis sofrer e morrer para maior glória do Pai (Cf. Gálatas).

A natureza geme, mas deve não só suportar sua de-ficiência natural mas também sacrificá-la e oferecê-la, em expiação pela revolta paradisíaca. É o mistério da cruz. Mas a crucificação não produz a destruição da natureza e da força. A fraqueza da carne assemelha-nos ao Reden-tor, que também precisou sofrer tudo, a fim de entrar na glória (Lc 24,26) a fim de realizar o mistério pascal!”.

Elevação cristã Subir altas montanhas é gosto ancestral do homem.

A visão do alto eleva nosso coração. Os revérberos do sol nas geleiras, nas neves eternas... O silêncio e a solidão... O céu parece mais perto.

Quem mora nas planícies terrestres, talvez lisas e monótonas como um tabuleiro, que ouça uma música. Uma sonata de Beethoven, Scherzo opus 31 de Chopin, trechos da Aída ou da Traviata de Verdi: elevam a alma.

A elevação cristã porém, não é alpinismo, nem mú-sica, nem literatura. É a elevação do homem interior, a Cristo, e de Cristo até Deus.

Elevação não somente afetiva, mas real, ontológica, existencial.

A natureza humana é unida à graça-enxertada, diz São Paulo, como uma sombra-natureza de ordem divina. Natureza e sobrenatureza harmonizam-se tão bem que o sobrenatural da graça aparece como um complemento conatural.

Um íntimo desejo “subconsciente” do homem pelo

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sobrenatural, vislumbra em Deus o seu maior bem. Até Sartre, filósofo pagão, dá testemunha desse desejo inato. Escreve, em 1943: “O sentido de desejo é, em última aná-lise, o projeto de se tornar Deus...” Ser homem é tender a ser Deus, ou se preferem, o homem é fundamentalmente desejo de Deus (L’Être et le Néant, pg. 653).

A promoção sobrenatural encontra, pois, dentro de nós, uma aspiração instintiva.

Os primeiros cristãos sentiam-se mais familiarizados com esse nosso contato com o além. Tinham olhos mais claros para captar essas luzes do espaço etéreo. E, chei-os de fervor, rezavam usando a língua bíblico-aramaica: Maran atha! Vinde, Senhor Jesus, vinde! A ordem sobre-natural era para eles realidade invisível mas real.

São Paulo, talvez mais que os Evangelhos, abriu-lhes os olhos e a mente. Ele menciona, nas suas cartas, inúmeras vezes, como sendo o essencial de sua mensa-gem, a graça, a cáris ou carisma de Deus. Um pagão, que chegasse a ler as cartas paulinas, deveria ter ficado intri-gado com esse vocábulo usado num contexto tão misteri-oso. De fato, ele é a chave do enigma cristão.

Contagioso, o otimismo do apóstolo: “Superabundou a graça” (Rm 5,20).

“Ó riqueza de sua graça, que em torrentes derramou sobre nós” (Ef 1,8).

“Tudo quanto existe no céu e na terra fez novamente convergir em Cristo” (Ef 1,10).

VIDA DIVINA Deus quis intensificar a efusão de sua bondade inici-

ada na obra da criação. Quis levá-la ao máximo possível fazendo a criatura, angélica e humana, ter parte na sua própria natureza divina. E assim criou a Graça, aquela emanação da essência divina que enxerta, infiltra na cria-

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tura a vida própria de Deus. O A.T. não teve noção disto. Os livros sapienciais

sentem o mistério. “Mas só o Filho de Deus nô-lo revelou” (Jo 1,18).

É um renascer da água e do Espírito Santo (Jo 3,5). Renascimento invisível como o soprar do vento misterio-so, pois nasce do Espírito (3,6).

É como videira e sarmento: em ambos corre a mes-ma seiva (Jo 15,1).

E finalmente, quase no fim da Bíblia, revela São Pe-dro a grande palavra: “Deus, o que há de mais precioso, fez-nos participantes da natureza divina” (2Pd 1,4).

Essa participação não suspende a linha divisória en-tre Deus e a criatura. Não resulta em panteísmo. Mas tão pouco é apenas uma divinização moral, metafórica. Faz termos parte real e física na vida divina. É participação ontológica e existencial.

Por isso, a palavra de Jesus à Samaritana: “Se sou-besses o dom de Deus” (Jo 4, 10). A Nicodemos sobre o renascimento: “Somos renascidos de Deus” (Jo 1,13). “Quem ama é nascido de Deus... e conhece a Deus” (1Jo 4,7-8).

FILHOS DE DEUS De filhos da terra tornamo-nos, por este segundo

nascimento, filhos de Deus, à semelhança do Filho Uni-gênito, pois ele deu-nos este poder de tornar-nos filhos de Deus (Jo 1,13). “Somos chamados filhos de Deus e o so-mos de fato” (1Jo 3,1).

São Paulo apregoa uma renovação espiritual. Exor-ta: Revesti-vos de Cristo! “Revesti-vos do novo homem” (Ef 4,22). “Batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (Gl 3,27). E quem “vive em Cristo, é uma nova criatura” (2Cor 5,17). A graça de Deus é “uma nova criação” (Gl

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6,15). Pois recebemos a plenitude de Filho Unigênito “graça sobre graça” (Jo 1,16).

É o grande mistério da Encarnação do Verbo Eterno, do Filho de Deus, realizada a fim de elevar todas as cria-turas humanas à mesma dignidade por participação (Ef 3,4). O dom que Cristo nos trouxe é sua vida divina. “Dei-lhes a glória que me deste” (Jo 17,22).

Agora podemos “ousar” rezar o Pai-Nosso. O Espíri-to Santo (Rm 8,16) autoriza-nos a chamar a Deus de nos-so Pai.

Luiza de França, filha de Luís XV, ao receber uma censura da governanta, retrucou-lhe: “Não se esqueça, sou filha do rei da França”. A governanta respondeu, com calma: “Eu sou filha do rei do céu”.

Não somos só filhos adotivos, que dos novos pais só recebem o nome, e talvez futuramente recebam uma he-rança, mas sem com eles terem ligame biológico. Não; o que Jesus é por natureza, Filho de Deus, somos nós pela graça, por participação real, física. “Há dois nascimentos, um da terra, outro do céu. Um na carne, outro no espírito. Um para a morte, outro para a eternidade. Um de homem e mulher, outro de Deus e da Igreja” (Sto. Agostinho).

Portanto, Deus Pai nos ama. Imagine-se o despro-pósito: Deus nos amar...

Agora Ele vê em nós seu Filho predileto. Junto com ele ama-nos, desde toda a eternidade (Jr 31,3). “São mi-nhas delícias estar com os filhos dos homens” (Sb 8, 1): palavras do Verbo de Deus.

Dom de Deus A natureza desse dom é um mistério da fé. Podemos

dizer que é uma realidade permanente, interior, que tem suas raízes na substância da alma, espalhando-se pelas potências e faculdades. Não é idêntica ao amor de Deus,

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que nos é infuso pelo Espírito Santo (Rm 5,5), embora esse dois dons vivam e cresçam sempre paralelos.

A vida humana é acrescida de uma sobrenatureza, de uma vida divina.

A pedra existe, mas é sem vida. A planta tem vida vegetal. Num estágio superior temos a vida do animal. O homem acrescenta à sua vida animal a vida intelectual. Acima de nós estão os anjos, seres intelectuais sem cor-po. E acima de tudo isso, na culminância da escala dos seres está o cristão partícipe da vida divina.

A natureza íntima dessa vida divina participada está envolta no mistério do sobrenatural. Dispomos só de ana-logias, figuras e comparações.

Jesus usou a figura da videira e dos sarmentos. Fala de renascer para uma vida nova. Compara-a com a veste nupcial.

São Paulo recorre à figura do enxerto de um galho de oliveira selvagem numa oliveira cultivada. E, contra todas as leis da botânica, o enxerto selvagem assume a natureza da oliveira de cultivo (Rm 11).

Os antigos santos padres gostam de compará-la a um selo impresso na cera. Ou à ação do fogo sobre o fer-ro. O fogo torna-o brilhante, maleável, sem destruir-lhe a natureza; assim o cristão invadido pelo fogo divino (Basí-lio). Ou a uma gota d’água num barril de vinho (Greg. Naz).

Valor Deus mesmo está deslumbrado. Perguntou a uma

santa, ao mostrar-lhe uma alma na graça santificante: “Veja, não acha que valeu a pena morrer na cruz por cria-turas tão bonitas?” Diz o teólogo; “O menor grau de graça santificante é superior, em valor, a todo o universo” (I II 113,9). “Reintegrar um pecador na graça é obra maior que

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criar um novo mundo” (1. c. ad 2). A graça santificante do último dos homens supera, em valor, o mais alto dos an-jos. Graça santificante, i. é., fazer a criatura participar da vida divina é o maior milagre da onipotência divina. Real-mente, “a quem Deus enriquece, ninguém será capaz de empobrecer” (Cipriano de Cartago).

Superior à graça santificante é só a Encarnação e a dignidade da Mãe de Deus.

Imagem Destarte verifica-se a palavra do paraíso: “Deus cri-

ou o homem à sua imagem e semelhança”, e isso num grau e modo inaudito. Pela natureza intelectual “figura-mos” a natureza espiritual de Deus. Mas pela graça santi-ficante, participando da natureza divina de um modo real, existencial, tornamo-nos espelhos que refletem a Deus. De um modo particular a vida Trinitária.

Somos filhos de Deus, participantes da vida divina de modo análogo ao modo como Jesus pela união hipos-tática. Como ele também nós somos gerados pelo Pai, ao infundir-nos a graça. Assim como ele é a imagem do Pai, reflexo de luz eterna (Hb 1,3), assim nós, pela graça, so-mos imagens do Verbo Eterno. E como no Verbo se refle-te a vida trinitária, tornamo-nos também espelhos da San-tíssima. Trindade, embora muito opacos.

Sta. Catarina de Gênova viu uma alma na graça de Deus, e comentou: “Se não soubesse que há um só Deus, pensaria que fosso um Deus, que era o próprio Deus”. Jesus sorriu e desenganou: “É só uma cópia...”

Como disse Eckehar OP.: “O que Deus é por natu-reza, é a alma por graça. Deus fez uma segunda edição humana bem melhorada: e a segunda é digna da vida eterna (Prohaska). Um pagão batizado, aos oitenta anos, morre aos oitenta e dois anos: “Quantos anos tem?”, per-

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guntam-lhe. - “Dois” (de filho de Deus). E essa beleza celeste já está aqui na terra conosco,

dentro de nós (Ef 1,14). Explica São Paulo que o selo, que o Espírito Santo nos imprime, é não somente penhor (como se traduz em geral) mas a primeira prestação. Sto. Agostinho já reclama contra a tradução inexata da Vulgata para arrabon. Rm 8,5 garante que já recebemos as primí-cias do Espírito, suas primeiras “prestações”.

Graça é vida, revérbero da divindade. E porque nada disso percebemos? Presença invisível, insensível? Esse tesouro é subtraído aos nossos sentidos corporais Nem o intelecto consegue contato. Só o amor chega a pressentir a presença do amor.

Até à última revelação final será a fé o nosso guia, no dizer de São Pedro (1,1-5). Não vemos a Deus e suas riquezas, embora esteja tão perto de nós, com toda a ple-nitude do seu Ser, por falta de iluminação. A luz da fé tem voltagem tão reduzida! E é insuficiente para tão majestosa catedral; insuficiente para clarear e iluminar todo esse palácio de Deus dentro de nós.

Esperemos a luz eterna! Mas o que então veremos, já está agora em nós, tal

qual, idêntico. Como uma catedral, no escuro da noite, na penumbra da lamparina. No céu, a luz da fé será substitu-ída pela luz da glória, que é “algo” que nos põe em condi-ções de ver Deus face a face. Mas a graça santificante é a mesma.

Ela é a única coisa que levamos conosco da terra para o outro mundo. E ainda sua irmã gêmea, o amor de Deus. As demais virtudes, mesmo a fé, são dispensadas. O mérito das boas obras já está registrado na graça santi-ficante.

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VER DEUS Sta. Teresa d’Ávila, foge aos sete anos, com seu ir-

mão mais velho, a fim de em Marrocos morrer mártir pela fé. Interrogada explica-se: “Parti porque quero ver Deus e para ver Deus é preciso morrer antes”. Antes de morrer obteve a graça de ver a majestade divina: “Toda a graça, toda a nossa graça, não vem do alto do céu, mas do ínti-mo da alma, onde Deus mora no centro do castelo dos sete patamares”. Nessa ocasião Sta. Teresa descobriu também “experimentalmente” (Vida 18) que Deus está presente na alma como criador do corpo e da alma, ver-dade que ela ignorava, pois havia lhe ensinado um teólo-go ignorante que Deus está presente só pela graça santi-ficante.

Tudo subsiste em Deus (At 17,28). Deus cria a alma humana tornando-a imagem de Deus Uno e Trino, ou me-lhor, tornando-a figura, esboço, rascunho, ser, intelecto, vontade. E Deus passa, uma segunda vez, pelo centro da alma, e desta vez imprime-lhe uma imagem perfeita. Não! imprime-lhe sua própria vida divina, a graça santificante. Então sim, mora no centro da alma o Rei e de lá, desse fundo ou ápice, age sobre ela. E neste fundo foi derrama-do o amor de Deus pelo Espírito (Rm 5,5). Deste centro interior é que ele fala e nos pede para deixarmos por sua conta a direção de nossa alma, segundo Rm 8,14: “Aque-les são filhos de Deus, que se deixam guiar pelo Espírito de Deus”.

Essa presença divina opera uma união experimen-tal, especialmente a partir da quinta morada, união pro-gressiva a invadir a alma da gente até transformá-la em Deus.

A alma “vê a Santíssima. Trindade” por uma visão intelectual... Vê a distinção entre as pessoas divinas... entende serem todos as três uma substância, um poder,

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um saber, um só Deus... As três pessoas comunicam-se e falam à alma, e dão-lhe a compreender aquelas palavras do Senhor no Evangelho... que ele viria com o Pai e o Es-pírito Santo morar na alma que o ama” (STA. TERESA, Mo-radas 7,1).

“O que eu entendo disto é que aquilo que eu chamo de espírito da alma, se torna uma coisa só com Deus... como a água da chuva que cai num rio e se confunde to-talmente com a água do rio... como uma gota d’água que cai num barril de vinho... como as chamas de velas unidas se fundem numa só chama” (Moradas 7,2).

“Agora, morre a borboleta mística com indizível sa-tisfação... e Cristo torna-se sua vida... Vê-se claramente ser Deus quem dá a vida à alma... E ela não pode deixar de exclamar: “Ó vida da minha vida e sustento que me sustentas” (Moradas 7,2).

Teologia Experimental São João da Cruz mostra-nos a que grau pode che-

gar a divinização da alma humana aqui na terra, na união mística transformante, se deixarmos a graça santificante livremente exercer sua ação santificadora, sem opor-lhe embargos:

“Deus comunica à alma o seu ser, de tal sorte que ela parece ser Deus mesmo: parece que ela possui tudo o que Deus possui... poder-se-ia dizer que a alma mais pa-rece ser Deus do que alma” (Subida 2,5).

“É uma transformação total em seu bem-amado... É uma união tal que a alma é feita divina e feita Deus por participação, quanto se pode nesta vida” (Cântico 22,1).

“Vive a mesma vida com Deus” (Cântico 22,2). “Seu entendimento é o entendimento de Deus. Sua

vontade é a vontade de Deus e seu amor é o amor de Deus, aquele amor como qual Ele se amava a si mesmo”

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(Cântico 38,1). “Torna pois, a alma deiforme e Deus por participa-

ção” (Cântico 39,1). Portanto, “ama a Deus por Deus mesmo” (Llama 3,6).

“Brilha-me na alma uma luz espiritual cheia de amor, pela qual conheço plenamente o mistério da união dessa nossa carne com Deus” (Ângela de Foligno).

“Senti-me penetrada pela glória de Deus, que me in-troduziu no conhecimento, pelo qual ele mesmo se co-nhece, e no amor, no qual ele mesmo se ama. Percebi... que as três pessoas da Santíssima. Trindade renovaram tudo em mim e fizeram comigo uma aliança de amor e misericórdia”.

“Tornei-me uma coisa com Deus... fiquei repleta do conhecimento de Deus em seu próprio entendimento” (A-na Madalena Remuzat)

“Senti como a minha alma foi investida pela Santís-sima. Trindade. Quantas vezes ouvi as palavras: não são graças que te dou; mas o próprio autor da graça... Retribui o que me deves, em amor” (Maria da Conceição, 1920)

MORADA DE DEUS “Estar na graça de Deus, lamenta Pe. PLUS, significa

para muitos cristãos não ter pecado, i. é., não ter nada. Já no capítulo anterior vimos quão rico tesouro é a graça santificante. A graça “diviniza-nos” e traz consigo mais uma conseqüência maravilhosa: a presença da Santíssi-ma. Trindade em nossa alma, uma verdade esquecida, uma letra morta, um espaço branco na folhinha de nume-rosos cristãos.

“De todas as nossas aptidões, a mais singular é sa-ber passar ao lado de maravilhas sem dar por elas. So-mos mestres na arte de não nos dar conta das esplêndi-das realidades que nos cercam” (Deus em nós, 11).

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A palavra de São Paulo, no areópago de Atenas (At 17,28), válidas na filosofia pagã, realiza-se no cristão de um modo superior: “Nele vivemos, nos movemos e existi-mos”. Pela graça santificante concretiza-se em nós uma presença nova e mais íntima de Deus; e por sinal, do Deus Trino, das três pessoas da Santíssima. Trindade.

No sermão da despedida, Jesus anuncia aos seus discípulos: “Um dia” compreendereis que eu estou em vós e que vós estais em Mim” (Jo 14, 20). Pois “quem me a-ma, guarda minha palavra. Meu Pai o amará, e nós vire-mos a ele e nele faremos nossa morada (Jo 14,23).

Eis a grandiosa promessa do Filho de Deus para nós seus irmãos menores, que ainda peregrinamos no exílio, longe da pátria. Quanta alegria devia infundir-nos esta promessa. Amando a Deus, com nosso amor mesquinho e pobre, toda a Santíssima. Trindade desce do céu e vem fixar morada em nós.

Da vinda das três Pessoas escreve o discípulo predi-leto (1Jo 4,9): “Deus é amor e aquele que permanece no amor, permanece (mora) em Deus, e Deus nele”.

São Paulo revela a presença da terceira pessoa, do Espírito Santo: “Não sabeis que sois um templo, e que o Espírito Santo mora em vós?” (1Cor 3,16; 2Cor 6,16). E novamente (Rm 5,5): “O amor de Deus foi derramado em nós, pelo Espírito Santo que nos foi dado”.

Os primeiros cristãos viviam compenetrados desta presença divina. Sto. Inácio de Antioquia, mártir, diz que os cristãos são “teóforos”, isto é, levam Deus em sua al-ma.

Muitos mártires repetiam perante o tribunal pagão, o que narram as atas do martírio de Sta. Lúcia: “O Espírito Santo mora em ti?”, pergunta o juiz. “Sim, todos aqueles que levam uma vida casta e piedosa são templos do Espí-rito Santo”.

São Leônidas, a caminho do martírio, despede-se do

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pequeno filho, beijando-lhe o coração: “Aqui mora Deus”. Orígenes, ilustre filho deste Leônidas, escreveu a

bela palavra: “Ó cristão, tu és um céu e irás ao céu”. Sto. Agostinho: “Carregando em nós o Deus do céu, somos céu”. Repete-o a Imitação de Cristo (3,39), dizendo ao cristão: onde tu estás, aí está o céu.

Presença sensível, visível, para os santos: nós te-mos certeza pela fé, estamos certos da palavra de Jesus. Um anjo, diz a Henrique Suso OP: “crava os olhos em teu peito e verás”; tornando-se como que transparente, ele viu Deus em si.

A teologia tentou explicar o modo desta nova pre-sença de Deus sem chegar a uma conclusão unânime. O mistério supera as categorias do nosso intelecto. Coligi-mos algumas idéias convergentes.

1. Deus está presente onde age. Ora, criando a gra-ça santificante torna-se presente na alma humana. Mas presente como criador. Desse modo está presente o Deus Uno, não o Deus Trino.

2. Nosso amor para com Deus, a base da graça san-tificante, é amor de amizade mútua. Scheeben fala até de um amor nupcial entre Deus e a criatura. Ora, amizade deseja presença mútua. Deseja, mas não produz. A cari-dade sobrenatural estabelece só uma união afetiva. Falta o fator que a transforma em união efetiva. Subamos mais

3. No céu, a substância divina está realmente pre-sente na alma do bem-aventurado. Sendo a graça santifi-cante de natureza idêntica à glória (somente será substi-tuída a luz da fé pela “luz da glória”), conclui-se que já na terra, através da graça santificante, existe uma presença real da divindade na alma do justo, de acordo com os tex-tos da Escritura. Essa presença “nova” consiste em ficar o Deus Trino diretamente atingível por nossa mente, ficando o Deus Trino conhecível e amável por nós, como que ex-perimentalmente: por assim dizer, como que por contato.

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Conhecimento experimental, intuitivo, que se aper-feiçoa na media da purificação espiritual da alma. Realiza-se o anúncio de Jesus: “Naquele dia conhecereis (senti-reis, vereis) que eu estou no Pai e Vós em mim” (Jo 14,20).

Na Escritura temos, ainda, alguns outros indícios desse nosso contato direto e imediato com a realidade sobrenatural.

No cenáculo, diz ainda Jesus, para espanto dos dis-cípulos: “Quem me ama... eu o amarei e me manifestarei a ele” (Jo 14,21).

Rm 8,1: “O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus”. Podemos, pois, chegar a sentir o amor de Deus.

Semelhante é o versículo de 1Jo 2,27: Permanecei na união que dele recebestes. O que sua unção vos ensi-na, é verdadeiro. É conhecimento experimental da Deus.

Isto nos explica a misteriosa tese de São Paulo, em 1Cor 2,14: que o homem natural não compreende o que é o Espírito. Tem-no em conta de estultície. Nem o pode compreender... Mas o homem espiritual compreende tudo.

O homem espiritual compreende e julga por uma i-luminação especial, por uma intuição que recebe pela pre-sença do Espírito Santo em sua alma.

Desta experiência espiritual fala também o Ap 2, 17: “Ao vencedor, darei o maná misterioso. E um nome novo que ninguém conhece senão ele”.

Contato divino Esse contato íntimo abre-se ao amor. Quem ama re-

cebe a visita divina, repete Jesus. Enérgico, incisivo é o texto de 1Jo 4,8: “Quem não ama, não chegou a conhecer (ver) Deus; porque Deus é amor”. Para tantos cristãos repete-se o caso de Jacó, na visão da escada do céu.

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Realmente esse lugar é sagrado e eu não sabia” (Gn 28,16).

A mesma queixa, nos tempos hodiernos. “Os homens vivem à superfície de suas almas, sem

penetrar nunca no interior” (Leseur) “Deus habita em nós. Como, e com que recolhimen-

to recebemos um tal hóspede? Eu me confundo ao pen-sar que, mal deu entrada em mim, lhe volto as costas e o abandono, para entreter-me com ninharias” (Paulina Rey-nolds)

Jesus queixa-se a Benigna Consolata: “Sou, em mui-tos corações, como um tesouro infrutuoso. Eles me pos-suem porque têm a graça. Mas não me fazem valer. Su-pre essa indiferença”.

Todo o nosso empenho seja como de Isabel da Trin-dade: “fazer com que a casa de Deus (sua alma) seja in-vadida pelos três”.

Não sejamos como o jumento que, no domingo de Ramos, carregou o próprio Deus sem o perceber. Como disse São Bernardo: “O jumento não deixou de ser jumen-to”.

Em Deus Nossa vida está escondida em Deus, diz São Paulo.

Valha, pois, também o imperativo: esteja escondida em Deus! Realizemos nossos privilégios sobrenaturais

Não sinto nada, me dizes. Respondo: só falta sin-cronizar, ou melhor: ligar o contato. “Quem me ama”... repete Jesus. Portanto, ame mais!

O Deus Trino está pertinho. E toda a vida íntima da Trindade realiza-se dentro de nós... “Somos um céu”, dis-se Orígenes. Desde toda a eternidade o Pai gera o Filho, sua imagem perfeita. Não outrora, mas hoje e agora num presente eterno. E o Pai, contemplando o Filho, ama-o, e

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o Filho ama o Pai, e esse olhar de amor que eles trocam condensa-se, por assim dizer, numa terceira Pessoa, o Espírito Santo, o amor feito pessoa.

E essa vida divina está dentro de nós, realizando-se em nós neste momento, e envolvendo-nos também nesse intercâmbio: o Pai gerando o Verbo e ambos produzindo em nós a cada instante o Espírito de amor.

“Usamos sobre nós escapulários, medalhas, relí-quias e consideramo-los como tesouro. Mas temos em nós o Deus vivo do céu, e nem pensamos nisso. Somos portadores de Deus, no sentido estrito do termo. Cabe de novo a advertência de São Leão Magno: reconhece, ó cristão, tua dignidade”! (No silêncio de Deus, 54).

Oportuno, sempre oportuno, o recado-aviso de Tau-ler: “apressa-te de voltar para a casa: há visitas”.

INVADIDA PELOS TRÊS Isabel da Trindade, nascida em 1880, teve infância

piedosa. Fez a primeira comunhão em 1891; retiro espiri-tual em 1899. Entrada no Carmelo de Dijon, agosto 1901. Vestidura, 8.12.1901. Votos, 6.1.1903. Março de 1906, enfermaria. Morte, 9.11.1906

“Cinco anos no Carmelo: aqui o pessoal se santifica depressa”, comentou um eclesiástico.

No céu dos três Parece que desde a primeira comunhão sentia, mui-

tas vezes, a presença de Deus, especialmente nas festas e bailes. Desde o grande retiro de 1899 sentia-se “habita-da”. Seu lema na vestição foi: Deus em mim e eu Nele.

“Você deve apaixonar-se por Jesus”, diz a uma ami-ga. Coopera com ardor na missão paroquial dos redento-ristas, em 1899. “Ó Jesus, peço o sofrimento em altas

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vozes. Estou pronta a tudo sofrer, mas dai-me almas”. “Meu coração anseia pela conversão dos pecadores. A idéia persegue-me, mesmo durante o sono”.

Ainda em 1900: “Jesus, quero não só salvar a minha alma; desejo dar-te também outras”. Pediu sofrimentos. Renunciou as consolações. “Sou tua vitimazinha; dispo-nha”!

“Deixemo-nos transportar para aquelas regiões onde não há senão Ele, Deus só... Trazemos o céu em nós. Parece-me ter encontrado o céu na terra; pois o céu é Deus e Deus está em minha alma” (Carta, 1902).

“Ao pegar a caçarola (ajudando na cozinha por um dia), não entrei em êxtase como Sta. Teresa, mas senti sua presença e meu coração o adorava em seu íntimo”.

“Ele mora no centro da alma como um sacrário onde quer ser adorado” (Carta, 1905).

Conversando com uma carmelita amiga, exclama: “Mas não sente os três? Eu os sinto”.

Laudem Gloriae “Em 1905, Isabel topou na Bíblia com seu novo no-

me: Louvor da glória divina, e tratou de viver este nome, seu cântico novo, o nome pelo qual o divino Pastor chama cada ovelha. “Meu esposo fez-me entender que era a mi-nha vocação no exílio, à espera da eternidade”.

“Quero ser uma humanidade de acréscimo para Je-sus perpetuar pelos séculos afora a sua vida de adorador, de redentor, usando sua esposa, a fim de nela oferecer louvor, amar, e desagravo ao Pai’.

“Em Maria Santíssima., na Virgem do Carmelo, Isa-bel encontra a perfeita realização do seu ideal espiritual, principalmente no mistério da Encarnação, paralelo da habitação trinitária: Deus nela e ela em Deus.

Colhemos ainda alguns textos de dois retiros espiri-

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tuais, que Isabel redigiu no Carmelo: “Deus nos criou à sua imagem e semelhança. Tal foi o sonho do Criador: poder contemplar-se em sua obra; ver aí brilhar todas as suas perfeições, toda a sua beleza, como através de um límpido cristal... Ele me pede para viver com o Pai num eterno presente, nem antes nem depois, toda inteira, no eterno Agora... Um louvor de glória é uma alma silencio-sa, que vibra como uma harpa, sob o misterioso toque do Espírito Santo. Ela sabe que o sofrimento é uma corda que produz os sons mais belos... Um louvor de glória é uma criatura em ação de graças perene. Cada um dos seus gestos, pensamentos... é um eco do Três vezes Sto. do céu. Seu cântico é ininterrupto... Canta sempre, adora sempre, é transformada no louvor, no amor, na paixão da glória de Deus... No céu de nossa alma sejamos louvor de glória da Santíssima. Trindade”.

Isabel resume tudo na conhecida oração: Meu Deus, Trindade, eu Te adoro... “Vivamos na Santíssima. Trinda-de, que desde o batismo habita em nós. Vivamos para dentro de nós, para aquele que nos escolheu como sua morada (Jo 14,23). Portanto, silêncio, recolhimento. A Santíssima. Trindade é “nosso lar”, nossa vida de intimi-dade com o Pai, com o Verbo e com o Amor”.

Maria da Trindade “Encontro em meu nome íntimo, Hostia Laudis, se-

gredos de luz, de força, de amor. Cada vez que o pronun-cio é como um ímpeto novo que me põe em contato com Ele. Parece-me que posso tomar parte, como esposa, nesse divino colóquio que se faz eternamente. Que posso viver no meio de minha família real” (Carta, 25).

“Desde que o amor de minha alma se uniu e fez fu-são com o amor infinito, parece-me que fico constante-mente unida a Deus, como um pequeno archote sempre a

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arder. Minha vida está como que se movendo na essência divina, tendo disto consciência mais ou menos clara. Nes-sa unidade, parece-me encontrar Deus todo inteiro, e go-zar de todas as suas perfeições... Há algum tempo penso ter atingido o fim, o fundo, o máximo. Isso me faz viver como que na eternidade e ver coisas como Deus mesmo as vê” (Carta 27).

“Por toda a parte, e sempre, só vejo Deus, e nele encontro tudo o que há de bom, de belo, de atraente nes-se mundo, e além disso, Ele próprio. E, portanto, acho nesse mundo uma felicidade sem nome. Mas que felici-dade? Deus está sempre oculto. Os habitantes do céu parecem dormir. Nada também de Maria Santíssima. Mas possuo Deus todo inteiro: tenho consciência de nossa união. Tenho consciência de dá-lo sem cessar a Ele pró-prio, glorificando-o assim sem medida. Tudo o que faz a minha felicidade nesse estado é poder amá-lo, com amor digno dele, e fazer-lhe um dom infinito. É loucura o que estou dizendo. Mas me parece verdade. Pois que nós fa-zemos um só, e que só posso amá-lo com seu próprio amor. E dando-me, é por assim dizer a ele que dou. Fico abismada na minha miséria e transbordo de gratidão” (Carta 32).

Terminamos com Sto. Agostinho: “Procurei-te mal lá fora, pois tu estás dentro de mim”.

São João da Cruz: “Ó almas criadas para essas grandezas, com que bagatelas perdeis o tempo. Vossas ambições são só miséria. Como estais cegas para tanta luz, surdas para tão grandes vozes. Ignorais tesouros i-mensos” (Cântico 39,7).

“O Reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17,21).

JESUS CRISTO MÍSTICO

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O Corpo Místico Pela graça participamos da vida divina. E a porta de

entrada, que nos dá acesso à vida divina, é Jesus Cristo, o Deus-homem. Jesus é a causa meritória, modelo e cau-sa eficiente da nossa divinização. Unindo-nos a ele, en-xertando-nos nele pelo batismo, chegamos a participar da sua divindade e através dele, da Santíssima. Trindade. Todos os batizados, marcados pelo caráter sacramental, formam um organismo, um corpo místico. E Cristo é ca-beça dirigente e santificante desse organismo sobrenatu-ral.

O mistério É o grande mistério escondido no meio da eternida-

de, agora manifestado por Cristo (Rm 16,25; Cl 1,26; 1Cor 2,7). E por uma revelação especial manifestado a São Paulo (Ef 3,3).

Cristo criou um novo homem (Ef 2,15), e reuniu to-dos num corpo único, num organismo sobrenatural (Ef 2,16), um acréscimo a Cristo, um corpo por extensão, o corpo místico de Cristo.

Místico não quer dizer irreal. Ao contrário, é mais re-al do que nossa existência física. Chama-se místico, por ser misterioso, invisível e ultrapassar nossa compreensão terrestre.

Morte e Vida Diz São Paulo que pelo batismo somos sepultados,

enterrados dentro de Cristo; inseridos, incorporados ao Cristo crucificado (Rm 6,7). Morre o velho homem, herda-do de Adão. Morre ao pecado. Morre à lei antiga. Morre à carne. “Ser batizado em Cristo, quer dizer, ser batizado no

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Cristo Moribundo; significa morrer misticamente com Ele; significa ser incorporado a Ele, no momento em que nos salva como redentor”. E ressuscitamos com Ele para uma vida nova (Rm 6,4.5; 8,10). Vida celeste(1Cor 15,44). Vida de união ou até de identidade com Cristo (Gl 2,21; Fl 1,21). Pois “que morrestes a vossa vida está oculta em Deus” (Cl 3,3).

Alma A alma deste corpo místico é o Espírito Santo. Vi-

vemos pelo Espírito (Gl 5,25). Todos os dons dessa vida nova são do Espírito (Cl. 3,4). Temos em nós o Espírito que nos faz orar Pai-Nosso (Rm 8,15). Somos templos de Deus pelo Espírito (Ef 2,21). E o Espírito mora em nós (Rm 8,15).

Evangelhos Essa doutrina paulina está nos Evangelhos sinóti-

cos, incluída na mensagem do reino de Deus. São João traz a doutrina esotérica do Mestre: o misterioso renasci-mento no colóquio com Nicodemos (Jo 3). Depois, o mis-terioso alimento que dá união vital com Jesus (Jo, 6). E principalmente a parábola da videira (Jo 15). Jesus é a videira donde nos vem a seiva vital.

Sto. Agostinho Sto. Agostinho transmite-nos o belo eco desta dou-

trina no cristianismo antigo: “Congratulemo-nos e demos graças a Deus, pois tornamo-nos não somente cristãos e sim Cristo. Entendestes, irmãos? A graça de Deus sobre nós, a graça da cabeça. Admiremos e alegremo-nos: tor-namo-nos Cristo, pois se Ele é a cabeça, então nós so-

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mos os membros. O homem todo: Ele e nós”. “Totus ho-mo, ille et nos”.

O novo plano O primeiro plano de Deus fora comunicar-nos sua

vida sobrenatural, a graça santificante, por Adão e Eva, os primeiros pais da atual humanidade. Eles nos dariam, jun-to à existência humana, também a existência sobrenatural de filhos de Deus. O pecado original destruiu esse plano. Deus não tardou em substituí-lo por outro. Instigado por excesso de amor pela criatura, estabeleceu outro plano, superior em tudo ao primeiro, milagroso, beirando o im-possível: Deus pessoalmente se tornaria criatura humana a fim de reerguer assim toda a humanidade, a raça hu-mana à altura de filho de Deus (Gl 4,4). E como toda a humanidade estava vinculada numa solidariedade moral-orgânica sob a chefia de Adão, assim de um modo supe-rior estabeleceu Deus uma comunidade sob nova chefia, sob Cristo, Verbo Eterno, Filho Unigênito de Deus, um novo Adão (Rm 5). Com razão exclama a liturgia: feliz culpa de Adão. A troca foi toda a nosso favor, nessa se-gunda edição refundida e melhorada.

Cristo e a humanidade formam um novo ser. Enxer-tados em Cristo participamos da sua vida divina, unidos com ele, na simbiose sobrenatural de um organismo vivo misterioso. Nossa graça santificante é crística. Pois so-mos agregados à Santíssima . Trindade, não pelo Pai ou pelo Espírito, mas pelo Verbo feito carne. Isto marca e caracteriza nossa divinização pela graça.

Revesti-vos Revesti-vos de Cristo (Ef 4, 24). Revesti-vos do novo

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homem (Cl 3,10). Não, porém, com um manto que só en-volva e encubra a natureza humana, mas sim numa co-municação vital de infiltração, de absorção pela vida divi-na. O invólucro deve absorver todo o miolo, com licença da expressão. “Somos uma nova criatura em Cristo” (2Cor. 5,17). É melhor a outra metáfora de São Paulo.

Enxertados Enxertados em Cristo (Rm 11,17). São Paulo aplica

essa figura à mútua relação entre Israel e os gentios. A comparação, talvez inspirada na parábola da videira, ex-pressa e bem a nossa incorporação em Cristo. Somos ramos bravios e selvagens enxertados na árvore de culti-vo; e ao invés do que sucede com a lei da natureza, é o tronco que deve cultivar os galhos selvagens. O enxerto deve assimilar-se à árvore, i.é., nós a Cristo. Como os enxertos biológicos da medicina moderna devem ser as-similados pelo organismo. A ciência médica diz que se processa uma lenta substituição do corpo enxertado. É nosso caso com relação a Cristo.

Eis o mistério do pequeno planeta azul perdido no espaço: seus habitantes são filhos de Deus, ou antes são um filho de Deus. Um Mega-filho-de-Deus. Embora o va-lor esteja todo na cabeça, e o acréscimo seja apenas de volume e de uma boa porcentagem de escória.

Cristo Místico nos Santos Essa nossa união com Jesus Cristo foi para os san-

tos não apenas uma metáfora bonita, uma figura poética, mas rigorosa realidade.

São Paulo, prostrado no caminho de Damasco, ouve a reclamação: “Saulo, por quê me persegues?” (At 9,4).

Sta. Gertrudes e Sta. Matilde escutam as batidas do

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coração de Jesus. Camila Varani vê como o pecado arranca pedaços

de carne viva do corpo de Jesus. Ida de Lovaina sente-se incorporada a Cristo de tal

maneira que não sabe mais onde Jesus acaba e onde ela começa. Às vezes, seus membros se transformam em outros tantos corações, todos cheios de Deus.

Sta. Gertrudes sente-se como uma árvore que sai da ferida do coração salvador, florida e oloroza.

Sta. Matilde sente que Cristo é a voz que em seu ín-timo louva Deus e adora. Cristo vive nela de um modo tão real que ele lhe diz: “Meu coração é o teu e o teu é meu”.

“Jesus deves viver para mim tão plenamente que possa atribuir a mim todas as tuas ações... numa palavra: sejas um manto debaixo do qual eu me escondo e sob o qual eu posso agir”.

Freqüentemente na literatura mística, há a troca do coração por Cristo. Tudo isso são figuras simbólicas de uma realidade espiritual.

Maria Cecília de Roma, da Congregação de Jesus, morta em 1929, em Casa (Quebec), aos trinta e três anos de vida terrestre e nove anos de vida religiosa, escreve na sua Autobiografia Espiritual, pg. 126: “Jesus mostrou-me um altar bastante alto, sobre o qual se erguiam chamas luminosas: era o altar de seu amor. Eu vi em sua mão meu coração, aquele meu coração que ele tinha tirado no retiro do postulantado (dois anos antes). Ele o mostrou longamente, a fim de dar-me a oportunidade de me entre-gar mais uma vez inteiramente e livremente a Ele. Depois colocou-o sobre o altar. O fogo envolveu-o, eu o vi quei-mar até a última fibra. Não restou nada, absolutamente nada.

Em seguida Jesus me convidou a subir eu mesma ao altar. Havia cinco degraus em honra das cinco santas chagas. Impossível dizer o que se passou em meu íntimo.

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Eu senti como que uma repulsa, uma revolta da minha natureza; mas a alma estava na paz e na felicidade. Pus o pé sobre o primeiro degrau, o segundo, e continuando com abandono cheguei rapidamente ao centro do altar. As chamas ficaram afastadas e não me tocaram. O bom Mestre, sempre com seu olhar sobre mim, me fez abrir os braços em forma de cruz. E imediatamente precipitaram-se as chamas sobre mim. Com uma intensidade violenta e todavia com certa lentidão em sua ação, consumiram todo o meu ser. Durante o incêndio divino parecia-me que mi-nha natureza fremia e gemia, e enfim parecia estar morta no momento da destruição completa... Quando o braseiro não encontrou mais alimento, o fogo abaixou-se e extin-guiu-se. No centro sobrou só cinza. Jesus aproximou-se e soprou sobre as cinzas e aniquilou-as. E não sobrou mais nada de mim.

Eu estava morta... mas como vivia ainda na terra? Sim, mas Jesus tomará meu lugar. Ele substituíra-se a mim. Ele me fez desaparecer. O campo estava livre. Ele podia agir com liberdade. Ele me mostrou que minhas aparências exteriores não eram nada mais que um manto de que ele era obrigado a se servir. Um manto que o ocul-tava aos olhos humanos e que lhe permitia continuar sua vida na terra.”

Visão e figura simbólicas e todavia uma realidade espiritual, uma mudança espiritual mas real que se operou na alma...

Às vezes, até a aparência externa assemelha-se a Jesus, fenômeno freqüente nos estigmatizados.

Sta. Coleta parecia semelhante ao Ecce-homo. Frei Pio de Pietralcina, sacerdote capuchinho estigmatizado, morreu em 1969, representou também o Cristo coroado de espinhos. Um fotógrafo tirou, às escondidas, seu retra-to. Ao revelar o filme, frei Pio apareceu com uma coroa de espinhos. O fotógrafo correu ao convento e pediu descul-

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pas pela indiscrição (que fora premiada por um milagre). Frei Pio contentou-se de resmungar por entre a barba: “Nos tempos de hoje não há outro jeito”.

Uma religiosa do convento de Catarina de Ricci du-vidava sempre da realidade das visões desta. Rezando, certo dia na capela, num banco diante da santa, virando-se para trás, viu o rosto de Catarina transformado no rosto de Jesus, com barba longa. E uma voz forte perguntou: “Quem sou eu?” Tremendo dos pés à cabeça, respondeu: “Tu é os Cristo”.

Joana da Cruz (Verona), parecia às suas alunas vi-sivelmente penetradas pela presença de Jesus, especial-mente nos dias de comunhão. Diziam: precisamos ficar quietas (na aula); nossa mestra recebeu Jesus, vejam como está toda vermelha”.

Reflexos do Eterno, como os raios luminosos no ros-to de Moisés. “Vós sois uma carta de Cristo escrita por nós, não com tinta, mas com o Espírito de Deus. Não em tábua de pedra, mas na carne de vossos corações” (2Cor 3,3).

Uma mística medieval, Jutzi Schultes de Toes OP (morreu em 1292), viu como após a ressurreição univer-sal, Jesus nos fará participar não só da sua divindade mas também de sua humanidade, numa espécie de co-munhão eterna, “assim como na comunhão cada um re-cebe das mãos do sacerdote Deus e homem”.TP

3PT

TP

3PT A mesma visionária precedeu a astronáutica, por

seis séculos, e o sistema copernicano, pos dois. Pois ela “viu” que “a terra, em comparação com o céu estrelado, é

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tão pequena, como a palma da nossa mão em compara-ção com a terra.”. Conheceu que “cada uma das estrelas é tão larga e vasta com a nossa terra”. Aliás, foi precedida pela beata Alpais (falecida em 1211), que “viu” a terra suspensa no ar, redonda como um ovo e rodeada por á-gua, sendo o sol muito, muito maior. TP

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DESTINO (Bis)

A tarefa Deus deu ao homem um destino final superior à sua

condição natural. São Paulo descreve, com palavras magníficas, nosso destino sobrenatural em Rm 8,29: O Pai nos predestinou, desde toda a eternidade, “a tornar-mo-nos conformes (symmorpheis) à imagem de seu Filho a fim de que este seja o primogênito entre muitos irmãos” (Cf. Cl 3,10; 1Cor 3,18).

Crescer O modelo está proposto não tanto para ser imitado

numa cópia perfeita, mas para ser realizado, para identifi-car-nos com ele. Já fazemos parte do grande corpo místi-co. Já vivemos em união vital com Jesus. Nossa tarefa portanto é crescer sempre mais, Cristo adentro, com diz o apóstolo (Ef 4,15), “Até que Cristo se forme em nós” (Gl 4,19).

União com Cristo e graça santificante são sinônimos. Santidade é aumento da graça santificante, é união cada vez mais intensa com Cristo, participação crescente na vida de Jesus. Santidade é desenvolvimento pleno dessa nossa união mística com Cristo, até se tornar unidade, até se tornar identidade, até se realizar em nós o “Não vivo mais, Cristo vive em mim” (Gl. 2,20).

Cristianismo é vida. Vida que nasce, cresce e age. Nasce pelo batismo. Cresce pelo amor. E age pelo Filho de Deus, em união com ele.

Como no sistema solar, não é a Terra que está no centro, mas é o Sol. Tudo gira ao redor do Sol e do Sol recebe a Terra luz e calor, ou seja, todas as fontes de sua energia físico-vital. Assim também toda a nossa vida cris-

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tã deve girar em torno de Cristo, para dele receber luz e calor, e poder crescer, crescer sempre mais Cristo aden-tro.

A vida física humana cresce apenas até atingir plena saúde (e daí não passa). A vida divina da alma pode cres-cer sempre. Não em tamanho físico, mas em intensidade, e a vida de Deus vai invadindo e penetrando mais e mais a alma humana.

Cresce pelo amor de Deus e pelo sacramento. Não diminui com faltas, imperfeições, pecados veniais: só re-tarda. Somente o pecado grave destrói tudo, mata, é mor-tal. Esse crescimento deve tornar-se uma realidade.

Transformação Transformação em Jesus Cristo. Uma visão mostra

a Sta. Catarina de Sena um grupo vestido de veste nupci-al. “Quem são esses?” Responde Jesus: “Eles são um outro Eu” (Dialoghi 1). Depois, ela comenta: “A alma que ama seu criador não mais se considera, nem ama a si mesma ou a outros. Não pensa mais em si. nem em cria-tura alguma... Essa visão do Amor transforma a alma em Deus. Pensamento, coração, memória só vêem Deus. A alma já não vê mais criatura, vê somente a Deus”.

O velho homem deve ser transformado, substituído pelo novo modelo (Rm 8,29). O velho prédio deve ser substituído, tijolo por tijolo. E deve doer. Onde os pedrei-ros mexem... Em Cl 3,3, o apóstolo fala também da morte que produz nossa incorporação em Cristo: “Pois que mor-restes e vossa vida está oculta com Cristo em Deus”.

É uma substituição ontológico-mística do humano pelo divino. Ou, se preferirmos um vocábulo up-to-date, é a formação existencial do cristão, filho de Deus; sua ges-tação espiritual, diz Gl 4,19.

E uma experiência de séculos, que vai de São Paulo

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até Catarina de Sena, até Juán de la Cruz, até Marie des Vallées, até Marie Ste. Cecile em nosso século. Ou me-lhor: Atravessa a folhinha de primeiro de janeiro e vai até São Silvestre.

A existência aparente, fachada sem fundo, sombra da realidade, é substituída pela existência real, existente de verdade por imposição do seu Ser, ao qual não “acon-tece” existir por acaso contingente. Mas que existe por metafísica necessidade: Deus. Tudo começou quando nosso Salvador nos pôs em convivência sobrenatural com o Pai e o Espírito vindo morar em nossa alma.

Residência de Deus Deus trino não está na alma como morto, mas como

Deus Vivo e operante. E sua ação realiza-se no sentido de infundir e de implantar a sua vida divina, de açambar-car o pequeno ser que se lhe entregou, de infiltrar-se co-mo água na esponja. Pouco a pouco substitui a substân-cia humana por sua natureza divina, célula por célula, por assim dizer. Substitui, no fim, também as potências da mente, o pensar e o agir, por seu intelecto divino e sua vontade divina.

Está na alma como enxerto num organismo vivo, que o absorve e substitui. Inevitável que santificação-divinização seja um processo doloroso. Deus é uma pre-sença atuante, viva que desmonta o prédio velho. Sendo de cimento armado, tem de doer; choupana humilde, de sapé, é menos laborioso desfazer. “Onde há cruz e dor, sinal que Deus está perto” (Chardon OP). “Em obras”.

As peças são substituídas aos poucos. Colaborar com essa ação divina é a preocupação dos espirituais. Confira, p. ex., Os Diálogos de Sta. Catarina de Sena. Encontrou uma expressão drástica, plástica e pitoresca em Maria des Vallées. Mas no fundo é o mesmo brado de

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surpresa de São Paulo apóstolo: “Cristo se fez a nossa justiça e a nossa santidade” (1Cor 1,30). Por isso reza Sta. Terezinha: “Ó meu Deus, sejais vós mesmo a minha santidade”.

Santidade Como Jesus se fez por nós pecado (Gl 3,13), assim

tornou-se ele agora “nossa sabedoria, justificação, santifi-cação e redenção. Quem portanto quiser gloriar-se, glorie-se no Senhor” (1Cor 1,30). A economia salvífica da incor-poração no corpo místico modificou, um tanto, quadros e estruturas da moral natural. E, assim, santidade cristã é a santidade do próprio Deus que Jesus Cristo nos comuni-cou no batismo. Varia, e muito, de um indivíduo para ou-tro, mas em sua essência é participação da santidade di-vina, através do Verbo. Mais santo é quem participa, em grau mais intenso, de uma união maior com Jesus. E o laço que nos une a Deus é o amor divino.

Amor divino E este amor, por sua vez, não é um produto do nos-

so coração, um afeto. Este afeto, chamado amor, tão de-cantado e desencantado pela psicanálise, não tem valor no regime sobrenatural em que nos encontramos pela Encarnação do Verbo. Esse amor de Deus, para valer algo na ordem nova, deve ser uma participação do amor com que Deus se ama a si próprio. “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5,5). O que a mística no conta da vida dos santos, sobre a troca dos corações com Jesus, corresponde a uma reali-dade sobrenatural objetiva, embora envolta em simbolis-mo antropomorfo, chamejante, antecipando a futura gló-ria.

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Oração O que foi dito vale também para a oração. Toda ela,

não apenas a litúrgica, é dom de Deus. É o Espírito Santo que reza no coração dos fiéis (Rm 8,26).

Virtudes O mesmo vale para as virtudes. Nossas boas obras

são dons de Deus, não são resultado de mero esforço humano. Ouça Ef 2,10. A salvação “não é merecimento nosso; é dom de Deus. Não é devida às obras. Pois so-mos criaturas dele, destinadas em Cristo Jesus para as obras que Deus preparou de antemão”.

“Toda nossa vida moral deve ser fruto da árvore di-vina que é Cristo” (VONIER, Nova e eterna Aliança, 189). Deve ser uva da videira divina.

“Toda a perfeição moral, no cristianismo, consiste na perfeita união do homem com Deus e em Deus com seu próximo. Realizada esta, atingiu a perfeição... Ao invés, mesmo cumprindo com todos os deveres, mas negligen-ciando o amor de Deus vive uma vida inútil, estéril” (VONI-

ER, 107). As boas ações, insignificantes, da nossa vida cotidi-

ana, são operações do corpo místico de Cristo. Devem ser feitas em união com Cristo, i.é., por motivação sobre-natural, por amor de Deus.

Santidade cristã é, portanto, união com Cristo em grau intenso ou graça santificante “intensa”. Os dois con-ceitos são idênticos. Nosso destino, portanto, é crescer, sempre mais Cristo adentro. É estreitar sempre mais a união com Jesus. E assimilar a vida divina do Filho de Deus, numa semelhança sempre mais perfeita, até a iden-tificação, até à plena fusão.

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Subir Se participamos da vida divina, é mister participar-

mos também da atividade divina, enquanto compatível com o estado de fé e com a condição de criatura. Já que temos a vida eterna precisamos também produzir frutos da vida eterna.

E a bondade de Deus aparelhou-nos de uma manei-ra generosa e maravilhosa. Enxertou dentro de nossa psi-qué três novas forças sobrenaturais que nos põem em condições de operarmos à altura de Deus, com permissão da hipérbole. São elas a fé, a esperança e o amor. Jun-tamente com um complexo de dons celestes, os sete dons do Espírito Santo, já previstos para o reino messiâ-nico pelos profetas (Joel, Isaías), encarregados de elevar o aparato de nossas virtudes naturais (na nomenclatura usual: prudência, justiça, temperança, fortaleza e respec-tivas virtudes subalternas) a um nível mais alto de opera-ções, conformes a esta vida nova que invadiu a humani-dade. Aliás, estas virtudes parecem mais ter uma tarefa negativa, a de desimpedir a estrada de árvores caídas, de rochas despencadas do barranco e outros obstáculos na rodovia. A pista tríplice de asfalto são as virtudes teológi-cas: fé, esperança e amor. E o motor que movimenta a viatura, é o Espírito Santo, através dos setes dons. Sem-pre presente, age, inspira, puxa e empurra, arrasta às al-turas. A graça santificante elevou-nos à altura da divinda-de. Os dons do Espírito fazem-nos agir nesta altura. Agir, não à maneira humana, mas à maneira divina (1Cor 2,15). Eles é que fazem maravilhas em nossa alma tão chã, pe-dante e comodista. Maravilhas que espantam a nós mes-mos. O Espírito fortalece nossa fé sugerindo tudo quanto Jesus tem dito (Jo 14,26). Reza, em nosso lugar, ao Pai, numa confiança inabalável. E principalmente ele ama a

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Deus dentro de nosso coração. Nosso amor de Deus é e deve ser um eflúvio do Espírito, da Terceira Pessoa divina (Rm 5,5).

Uma parábola. Um moleque de rua foi levado ao castelo para ser príncipe e filho do rei. Banho. Roupa no-va. Modo de se comportar nesse novo ambiente, tarefa particularmente difícil.

É o que Deus fez com os filhos de Adão. Deu-lhes a graça santificante, i.é., o mesmo sangue real do Pai. Deu-lhes auxiliares-camareiros: os sete dons do Espírito. E as três virtudes teológicas: virtudes, forças sobrenaturais que nos põem em condições de agir como filhos de Deus. Um encargo difícil, tendo em vista a distância entre o mundo divino e esse mundo terreno, distância maior do que a do barro da rua ao palácio de mármore. Promovido, transfe-rido da vida humana para a vida divina, que mudança i-naudita!

E, atrás de tudo, ergue-se o grande amigo da huma-nidade, amigo íntimo de cada alma, que entra neste mun-do (Jo 1,9), sempre pronto a ajudar seus irmãos menores. Compreende-se o otimismo de São Paulo, baseado nesta amizade divina (Fl 4,13): “Tudo posso naquele que me fortifica”. Ou, ainda com toda franqueza (2Cor 12,9): “Pre-firo gloriar-me nas minhas fraquezas para que habite em mim a força de Cristo”. Rematando com 1Cor 15,10: “Pela graça de Deus sou o que sou. E sua graça não tem sido estéril em mim; ao contrário, trabalhei mais que todos, i.é., não eu, mas a graça de Deus comigo”.

Amor As três virtudes teológicas conduzem-nos ao céu. A

Fé e a Esperança ficam na porta. Mas o Amor entra. Tal qual, por assim dizer. O amor não está enquadrado pelo conhecer (sempre imperfeito na terra), mas visa e atinge o

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objeto amado diretamente, em seu real existir. Por isso o amor de Deus do cristão na terra é da mesma natureza que o amor de Deus do bem-aventurado no céu; só difere a modalidade. Por isso até os nossos simples afetos de amor em concreto: as orações jaculatórias, que por si são apenas pensamentos, valem como atos reais do amor divino, do amor com que Deus ama. Por isso São Paulo salienta os privilégios do amor do cristão que o acompa-nha até a eternidade (1Cor 13). E é misterioso e inebrian-te, não só no céu, mas desde agora na terra (1Cor 2,9).

Insondável é a sua altura. Sua profundeza e largura excedem toda compreensão (Ef 3,18). Releia o cântico do amor na Imitação (3,5).

E esse amor divino deve dominar e animar toda a a-tividade do cristão-filho de Deus. Móvel de toda ação deve ser ele. Por ele, e só por ele, cresce nossa união com Cristo Jesus. Daí a paixão de São Paulo por Cristo. O amor por Jesus “constrange-o” (2Cor 5,14). Cristo morreu por todos a fim de que “não vivam mais para si mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 5,15).

Seu único desejo: amar a Cristo eternamente (Ef 6,24). Uma expressão mais violenta do mesmo amor en-contramos em 1Cor 16,22: “Quem não ama o Senhor Je-sus, seja anátema”.

Jesus por sua vez Jesus, por sua vez, ama o Pai junto, com e por meio

do Espírito Santo. O Pai é a grande devoção de Jesus. Vive e morre por Ele, literalmente. Ele “vive pelo Pai” (Jo 6,57). Só procura a honra do Pai (Jo 9,30; 11,4).

O amor perfeito consiste em fazer a vontade de Deus. Por isso declarou, ao entrar no mundo (Hb 10,5): “Eis que venho cumprir a tua vontade”. Reafirma em Jo 8,29: “Faço o sempre o que é do seu agrado”. Sua missão

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é fazer sempre a vontade de quem o enviou; é seu ali-mento (Jo 4,34). “Glorifiquei-te sobre a terra (Jo 17,4). Manifestei teu nome (Jo 17,6). Manifestei teu nome (Jo 17, 6). “Desci do céu para cumprir a vontade de quem me enviou” (Jo 6,38). E ao morrer exclama: “Está consumado; Pai, em tuas mãos entrego minha alma”.

Assim também para o cristão. Consiste sua vida na entrega ao Pai: “Eis que venho cumprir a tua vontade”. Eis o seu destino novo. Grandiosa tarefa. Nobre destino. Fa-zer sempre o agrado do Pai, como fez nosso irmão maior. Não sozinhos, mas juntos com Ele. Ele guia e orienta; é só perguntar. Ela fortifica nossa fraqueza, é só pedir. Está sempre ao nosso lado. Que digo? Está dentro de nós, pronto a nos socorrer com sua graça.

Graça de auxílio A graça atual, ou graça de auxílio, é outra invenção

celeste, de natureza tão misteriosa como sua irmã gêmea, a graça santificante, e igualmente necessária para os fi-lhos de Deus na terra. Necessária e indispensável. Nosso aparelhamento sobrenatural está perfeito. Mas requer, por assim dizer, a energia elétrica para entrar em ação. A teo-logia distingue:

Graça externa Graça externa são os objetos ou palavras que apon-

tam para Deus: Igreja, ritual do culto, Escritura, sermão, quérigma, tudo quanto foi instituído no intuito da salvação humana. Sua eficiência é precária: sugere a adesão a Deus e à sua mensagem.

Graça interna

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A graça interna é a ação de Deus que atinge direta-mente a mente humana, principalmente intelecto e vonta-de. É atuação direta, dinâmica de Deus sobre a mente criada, enquanto que a graça externa age pelo processo natural, psicológico, humano. Procura impressionar senti-dos e fantasia e, através deles, intelecto e vontade.

Necessitamos Da graça interna de um modo absoluto. O sarmento

necessita da seiva da videira a fim de poder brotar, florir e produzir frutos. Necessitamos deste auxílio de Deus a fim de podermos agir com nossa forças naturais no plano so-brenatural. Isso sobretudo porque padecemos das taras inatas da raça de Adão, cujo grau mais leve é certa indis-ponibilidade obsessiva contra tudo quanto transcende os sentidos. E Deus, tão inacessível aos sentidos corporais, é a primeira vítima desse melindre ancestral. Por isso dis-se o Verbo feito homem: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). E ainda: “Ninguém pode chegar a mim, se meu Pai não o atrair” (Jo 6, 44), palavra prenhe de mistérios.

Precisamos Precisamos desse impulso paternal para o primeiro

ato de fé e para todos os demais atos preparatórios da nossa conversão-justificação. Carece o pecador da graça de Deus para não cair em novos pecados. O justo não persevera por longo tempo sem esse auxílio de Deus.

Antigo Concílio (Orange 529) já condensou a men-sagem da revelação em sentenças sempre memoráveis: “Pensar e agir direito é dom divino. Praticando o bem, é sempre Deus em nós e conosco que faz com que o prati-quemos”. “Deus nos ama tais como seremos por seus dons: não como somos, por nosso mérito ou demérito”.

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“Amar a Deus é, de todo, um dom de Deus”.

Perseverar Precisamos da graça para perseverar até ao fim da

longa jornada pela vida terrena. A graça da perseverança final é um conjunto que graças atuais, uma série de auxí-lios divinos que nos guiam e ajudam no caminho, nas en-cruzilhadas. É um grande dom, diz o Concílio de Trento. Só Deus dá esse dom, diz o apóstolo (1Cor 1,18 etc.). É fruto da prece, da oração, diz o Concílio de Orange. Re-sume a Teologia: não se adquire pelo mérito das boas obras, mas somente se obtêm por humilde súplica. E essa súplica, afirma Sto. Afonso com os demais teólogos, é infalivelmente atendida. Jesus o prometeu: “Tudo quanto pedirdes a mim, ou ao Pai, em nome, eu o darei” (Jo 14,14).

Natureza A graça atual é uma qualidade, uma ação que influi e

opera. É obra exclusiva de Deus, uma emanação da natu-reza divina, à semelhança da graça santificante. Atua so-bre o intelecto e a vontade. Produz em nós, e conosco a ação salutar, sendo esta efeito de Deus e do homem, co-laboração misteriosa da Bondade com a miséria humana.

Origem “Todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai

das luzes” (Tg 1,17). Desce com predileção sobre os hu-mildes e pequenos (Tg 4,6, 1Pd 5,5; Mt 11,25).

Desce com prazer sobre os pedintes: “Se alguém tem falta de sabedoria, e quem não a tem? Peça-a a Deus que a dá com generosidade e sem regatear” (Tg 1,5).

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Jorra em abundância do Cristo visível, presente en-tre nós, que é a Igreja e suas sete fontes sagradas.

Como reza uma prece medieval do século 15, Jesus interpela a alma: “O que tu não és, eu o sou. O que tu não fazes, eu faço. O que tu não podes, eu o posso: sou Oni-potente”.

“O Espírito e a Esposa dizem: vem. Quem tiver se-de, venha. Quem quiser, venha buscar a água viva, de graça”(Ap 22,17).

TRANSFORMAÇÃO EM DEUS

Tauler “Ó alma, apressa-te a voltar para casa. Esqueçe tu-

do quanto viste e ouviste cá fora. Vais encontrar Deus lá dentro. Desocupa o lugar. Onde não mais estás, aí Deus está”.

Sta.Gema Galgani Exclama num êxtase: “Ó Jesus eu te sinto. Sinto teu

sangue correr pelas minhas veias. Como estou contente! Agora posso descansar junto ao teu coração. Agora, que-rendo encontrar-te, procuro-te no silêncio do meu cora-ção. Oh! sinto-te em meu coração. Sinto-te tão vivo”.

Sta.Margarida Alacoque “Eis a veste da inocência com a qual adorno tua al-

ma, a fim de que vivas somente a vida de um homem-Deus. Pois sou eu tua vida e tu não viveras mais, senão em mim e por mim.”

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Matilde de Helfta “Pedi a Jesus uma lembrança perene. Jesus res-

ponde: “Dou-te meus olhos para que olhes tudo por eles. Dou-te meus ouvidos para que compreendas tudo que ouves. Dou-te minha boca para que faças passar por ela todas as tuas palavras, preces e cantos. Dou-te meu co-ração a fim de que penses por ele, e por ele me ames a mim, e todas as coisas por causa de mim.” E parecia-me ver com os olhos de Deus; ouvir com seus ouvidos; falar com sua boca. E parecia-me não ter outro coração, senão o de Deus”.

Droste -Vischering Jesus: “Ponha-me no lugar de tua vontade; então

quando trabalhas, eu trabalho por ti... para o futuro não terás mais vontade própria. A minha vontade será a tua. Quando trabalhas, eu trabalho por ti. Quando tomas re-pouso, eu descanso em ti. Eu vejo com teus olhos; traba-lho com tuas mãos; falo com tua boca; oro por ti; e visto que meu maior desejo foi sofrer, sofrerei ainda em ti e por ti; contínuo assim minha paixão e aplico-a às almas, so-frendo na pessoa dos meus eleitos”.

Sta.Catarina de Sena Bebera água com o pus de uma doente. Jesus re-

compensou-a, deixando que bebesse na chaga do seu coração. Em seguida, Jesus tirou-lhe o coração, e deixou-a alguns dias sem coração. Quando voltou: “Dou-te, ago-ra, o meu em troca.” E uma cicatriz no peito ficou até a morte.

Catarina comenta: “Não pude mais dizer: recomen-do-te meu coração ó Jesus.” Interpela o confessor, Pe.

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Raimundo: “Não estás vendo; não sou mais aquela que fui; estou mudada em outra pessoa, e se soubesses o que sinto.” Uma “outra” transformação dera-se anos antes: Raimundo estava ainda duvidando das visões. Subita-mente o rosto de Catarina se transforma no rosto de um homem, barbudo, olhando-o com severidade. “Quem está me olhando?” exclamou assustado. “Aquele que existe”.

Teresa d’Avila Engenhosa é a palavra de Sta. Teresa comparando

a alma com o bicho-da-seda. “Vive comendo, dia e noite sem parar, a folhagem verde. Depois, encasula-se e sur-ge a borboleta, a adejar de flor em flor, alimentando-se então apenas com o néctar das flores. Que contraste!”

“Ele começa a lavrar a seda e construir a casa onde há de morrer. Para nós, esta casa é Cristo. Parece-me ter lido que nossa vida está escondida em Cristo (Cl 3,3).

Que sua Majestade mesma seja nossa morada, e que nós fabriquemos (quer dizer: ele vai juntar nossos trabalhinhos com os grandes trabalhos que padeceu e fazer de tudo uma só coisa...) [sic]

Demo-nos pressa em tecer esse casulinho. Morra, morra este verme...

Sai uma mariposinha branca, quão transformada!... A mesma alma não se conhece mais. Que diferença entre um feio verme e uma branca mariposinha...

Nasceram-lhe asas, não se contenta mais ir passo a passo, pode voar. Tudo quanto faz por Deus, julga por ninharia. Não acha demais o que passaram os santos... Tudo a cansa depois que experimentou que o verdadeiro descanso não vem das criaturas...

Que grandeza de Deus! Ainda há poucos anos, e quiçá há poucos dias, andava esta alma que não se lem-brava senão de si. O Senhor a fez entrar na adega dos

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seus vinhos, e ordenou nela a caridade. O Senhor quer que saia dali marcada com o selo divino. Basta que a cera esteja mole, e é só ficar quieta e consentir. Ó bondade de Deus, que tudo há de ser a vossa custa. Só quereis nossa vontade, e não encontrar impedimento na cera.” (Morada 5,2)

“Tudo quanto se pode entender, fica a alma, ou o seu espírito, feita uma coisa só com Deus...

Como duas velas de cera perfeitamente unidas dão uma só luz...

Vê-se claramente ser Deus quem dá a vida à alma. Sente-o muito bem a alma e exclama: ó vida de minha vida e sustento que me sustentas.” (Morada 7,2)

Vivendo na presença da Santíssima. Trindade “esta-va espantada de ver tão grande Majestade em coisa tão baixa como minha alma, e ouvi: não és baixa, filha, pois és feita como minha imagem” (Relaciones (Bac), 11)

“Veio-me a idéia de uma esponja embebida e satu-rada de água: assim se me afigura minha alma repleta da divindade... Também entendi: “Não trabalhes para me teres a mim encerrado em ti, senão para te encerrares em mim” (Relaciones 18)

Gertrudes Maria Jesus: “Não quero mais que te ocupes contigo. Que-

ro que te esqueças, por completo. Deves ter um só pen-samento: Deus e as almas. Deves ser como cera mole em minhas mãos. Não quero mais que procures consolação. Nem que a desejes. Darei consolo quando bem me pare-cer.

Como na Eucaristia de pão e vinho só ficam as apa-rências, assim é preciso que em ti nada mais sobre do que é natural; que tudo seja divino.”

“É a presença de meu Filho que me atrai para ti.”

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“Nosso Senhor dilatou minha alma para poder pas-sear dentro, à vontade. Minha alma, de repente, de pe-quenina tornou-se grande, larga. Vi-a como um espaço imenso no qual Nosso Senhor caminhava. Ele, o Infinito, parecia estar à vontade naquele canto estreito, pobre e escuro.”

Jesus: “Devemos ser como dois gêmeos tão pareci-dos que se julgue sempre ver a mim, ouvir falar a mim... Quando tiver tristezas, tu as terás também. Quando tiver alegrias, tu as sentirás também.

Como prenda de nossa união (transformante) dou-te meu coração e minha cruz. Meu coração representa a união da tua alma com minha natureza divina, com o Ver-bo Eterno. Minha cruz representa a união de tua alma com minha natureza humana, com o Verbo Encarnado.

Todos os meus bens são teus. Minha pessoa é tua. Somos uma coisa só. Não temos mais que uma vontade. Somos proprietários um do outro. Não temos mais que um coração para amar o Pai e o Espírito Santo. Um só cora-ção para amar Maria. Um só coração para amar os anjos, os santos. Um só coração para amar as almas do purga-tório. Um só coração para amar as almas que estão sobre a terra e todas que ainda virão. Nós daremos a vida às almas.”

“A imensidade de Deus é aquele palácio vasto, do qual não se consegue sair. Viro-me para todos os lados, e encontro por toda parte Deus. Ele me envolve de todos os lados.

O Espírito Santo vai encher todos os vazios de tua vida.

O Espírito Santo vai fazer crescer Jesus em ti”.

MARIE DES VALLÉES O processo de divinização foi ilustrado em Marie des

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Vallées (1590-1656) numa série de visões, através de figuras e símbolos significativos, que se destacam na ha-giografia usual por sua originalidade digna dos Fioretti; notável também o bom humor de Jesus.

E tudo numa linguagem pitoresca, volta e meia lin-guagem santamente maliciosa, de subentendidos saboro-sos. Espírito fino, pensadora original, esta mulher do po-vo. “Águia” foi seu apelido popular.

Esse processo divinizante pertence à segunda me-tade de sua vida; levou anos, culminou na morte mística em 1649, mas só terminou em 1654, com a “morte” dos sentidos.

“Procurando-vos, Senhor, eu me perdi a mim”, quei-

xa-se. Jesus responde. “Ora, e perdeu vantagens na tro-ca, se eu estou em teu lugar?”

Outro dia, Maria não se achando bem, N. Senhor lhe diz: “Vou ajudar a te achar. Vamos ter com Sto. Agosti-nho. Ele te mostrará o caminho. Escuta, ele diz: se amar-des a terra, sereis terra; se amardes o céu, sereis céu, se amardes Deus...” Jesus não terminou, mas saiu rindo, dizendo: “Alô, te encontraste?”

Num excesso extático ela apostrofa os quatro ele-

mentos que (segundo a medicina da época) compõem o corpo humano.

“Retira-se, ó terra porque nós não queremos outra terra que a santa humanidade de Nosso Senhor. Retira-te, ó água, só queremos as águas da sabedoria eterna. Retira-te ó ar, só queremos o doce zéfiro do Espírito San-to. Retira-se também, ó fogo, pois só queremos os fogos do Espírito Santo e do amor divino”.

Mas, antes de os quatro elementos da física deso-cuparem a área, já havia começado o êxodo de dentro. As faculdades mentais, narra ela, uma por uma caíram doen-

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tes, agonizaram e morreram. “Primeiro o espírito, depois a memória, depois o inte-

lecto. Antes de ir embora vieram dizer adeus à vontade que é a sua rainha (e patroa) dizendo que iriam ver o Es-poso. Depois partiu também a vontade. E não os vi mais; nem sei onde estão”.

“Querendo lembrar-me de alguma coisa, é Nosso Senhor que responde: pois a memória se transformou nele”.

Essas parábolas e simbolismos lembram curiosa-

mente Hb 4,12: o Verbo de Deus, mais cortantes que es-pada de dois gumes, penetra até a medula e divide alma e espírito. A teologia, ao interpretar, vai pensar Hb 4,12 como a misteriosa ação dos sete dons do Espírito Santo, os quais, a partir de certo grau de fervor, “suplantam” as virtudes e tomam a iniciativa na ação espiritual. Ultrapas-sando a razão, iluminada pela fé, as almas agem sob im-pulso superior.

“Foram para o Nada; é a casa deles” “Os sentidos internos entraram também em agonia,

por sete anos. Os sentidos externos também, por sua vez, foram para sua casa, e se perderam no mar infinito da divindade”. E no final, Jesus mesmo aponta Gl 2,20 (“não vivo mais...”), visto que São Paulo também sentiu em si essa dupla personalidade: a sua antiga, humana, embora só restassem dela sombras e contornos emaciados, e a nova realidade, o Cristo e sua presença.

Quando o espírito ia partir, Jesus perguntou-lhe se

não queria dizer adeus. “Só faltava essa”, respondeu o espírito: “Meu adeus será: factus obediens usque ad mor-tem. Aliás, só faço o que o Senhor já fez primeiro”.

“Teu espírito sou eu, lhe diz Jesus. Ou ele é minha veste. Pois estou revestido do teu espírito, que morreu,

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como de uma roupa que não tem sentimento. Teus senti-dos também já estão mortos e os meus sentidos vestiram-se com eles”.

Outra vez: “Eu sou tudo, e tu nada mais és que a roupa que uso. A roupa não tem nenhum movimento afora do que lhe dá a pessoa que a veste”.

Certa vez Jesus pergunta: “Se teu espírito voltasse,

gostarias dele?” “Não”. “E por que não?” “Porque não consigo mais amá-lo.” E donde lhe vem isso? “Porque amo só a Deus”.

Mas certo dia o espírito voltou para uma visita rápi-da, e ela gostou dele. Jesus estranhou. “É que ele veio de todo mudado: tem voz tão agradável. Jesus interrompeu: “Essa voz não é dele, é minha. E tudo o mais que ele tem, é meu. Teu espírito é somente meu revestimento exter-no.”

Festa de todos os Santos de 1649. Assistimos ao di-

álogo extático: Jesus: “Quem és tu?” Maria, “Não sei nada”. Jesus: “Mas fala, fala” — “Sou a mais miserável das criaturas”. Jesus: “Não é bem assim...” E houve uma reviravolta atrás dos bastidores e ei-la

a gritar: “Verbum caro factum est”. Jesus: “Dize-o em francês!” Maria: O Verbo revestiu-se da minha carne e é ele

que sofre nela. Jesus insiste: “Dize a esses santos convidados da

festa: Em que estado te achas? — “Não sei”. — Dize-o comigo. Eloi, Eloi lama sabactani (Meu

Deus, por que me abandonaste?).

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Eis o estado em que te encontras. Tempos depois lhe diz Nosso Senhor: “As almas de-

vem ser aniquiladas, a tal ponto que nada mais reste de-las. Tão pouco quanto resta do pão numa hóstia consa-grada”.

Certo dia, Jesus perguntou: “O que minha esposa me dá de presente?” “Meu coração”. Reponde Jesus: “Nem tens mais; pois é o meu. Tu te pareces a um cam-ponês a dizer ao rei: Majestade, ofereço-lhe seu palácio”.

Maria guardou a lição. Outro dia, Jesus pergunta: “Onde está teu coração?” “Não sei de nada; nem sei se tenho um”. Jesus: “Vou te mostrar”. E tira seu próprio co-ração do peito: “Eis o teu coração. É também da minha Mãe. É também o teu. Eu, minha Mãe e tu temos um só coração: é este”.

Uma parábola pós-evangélica, de Jesus: “Um cam-

ponês vende sua cabana a um rei, e este faz construir no lugar um castelo esplêndido. E o camponês procura em vão, sua antiga palhoça.

E dizem-lhe: ela virou castelo. Certo dia, Jesus explica: “Os santos, estando todos

deificados, não são senão amor divino, de modo que seu nome é amor divino, e não Pedro e Paulo. É este o nome que eu lhes dou.”

A VIA DE DEUS Quatro reflexões complementares sobre a Via de

Deus. Meditações de ordem prática sobre o encontro com Deus.

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1. SANTIDADE CRISTÃ “O que faz o fundo da minha tristeza – creio que nin-

guém o suspeita – é que eu queria ser santo. É tudo... Sinto, de verdade, que eu passo sem cessar à margem daquele que eu queria ser.

Aquele, que eu queria ser, continua existindo. Está lá e era triste, a sua tristeza é minha” (JULIEN GREEN, Diário, I, 390)

Só Deus é santo. E a nossa santidade é imitação da sua, ou melhor: é participação, mais ou menos bem suce-dida. A santidade, a nossa, é dom de Deus, fruto da bon-dade divina e de nossa prece.

A criatura deve tornar-se santa pela santidade de Jesus.

Sta. Gertrudes, a santa litúrgica e do mistério pascal, julgando-se mal preparada para a banquete divino, vê o Filho de Deus aproximar-se. Ele lava-lhe as mãos, em remissão dos pecados. Depois tira todo o seu ornato, co-lares, braceletes, anéis e enfeita com eles sua esposa. Revestida assim, com os méritos do Filho de Deus, Jesus ordena-lhe andar com garbo, com elegância, como com-pete a uma princesa do céu, i.é., com plena confiança nos méritos do divino Salvador.

Diz a Escritura: “De sua plenitude recebemos todos nós, graça sobre graça” (Jo 1,16).

Há a tendência de acentuar o lado moral: de se con-siderar a perfeição uma soma de virtudes, um conjunto de atos e afetos. É o lado humano. Constitui as primeiras letras no campo espiritual. É o andar térreo. A escolástica, inspirada pela filosofia, sintetizou tudo nas quatro virtudes cardeais: prudência, justiça e caridade social, fortaleza e temperança.

Mas a santidade é teológica. Não consiste em pri-meira linha em atos e afetos, mas é existência vital. É u-

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nião com Deus, é participação vital da santidade divina. Impõe-se, portanto, uma metodologia própria. Daí as su-gestões que seguem.

Deus é santidade substancial. E santo é o ser hu-

mano que mais participa desta santidade de Deus. Impor-ta pois abrirmos nossa alma, de par em par, a fim de que a santidade possa invadir-nos, penetrar-nos. É mister criar espaço onde a vida divina possa domiciliar-se na nossa alma. É o amor que faz nosso coração derreter-se, e li-quefeito ele se esvazia e deixa derramar-se nele a santi-dade divina. Desocupa, também tu, o lugar para Deus encher o vazio. O amor faz cumprir os mandamentos do Pai, segundo Jo 15,9. E não apenas os dez, mas também os mínimos desejos e vontades.

A propósito, a pitoresca frase de Tauler, traduzida em bom português: “O teu tu está demais. Desocupa, dá lugar a Deus”.

Pois aí deve começar o trabalho ascético: criar es-paço vazio para Deus entrar. E, mais uma vez, projeta-se o papel primordial do amor de Deus, na vida do cristão. O amor divino substitue-se pouco a pouco à vontade huma-na, ao afeto humano e às demais peças do inventário. “Até que Cristo se forme em nós” (Gl 4.19). Até que se veja “Cristo em tudo e em todos” (Cl 3,11). E Cristo nos conduz ao Pai “para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,29).

Jesus dera a Sta. Gertrudes a graça da união místi-ca e Deus Pai confirma: “Agora posso dizer de ti como no monte Tabor: Este é meu filho bem-amado em quem pus a minha complacência”.

Cristo enche com sua santidade toda a Igreja. “Nos-sas boas obras são dons de Deus e não produto do mero esforço humano... Porque somos obra sua, criados em Jesus Cristo para realizar obras boas que Deus preparou

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de antemão, segundo Ef 2,10 (VONIER, Nova e eterna ali-ança, 51)

“No cristianismo, toda a perfeição moral consiste na perfeita união do homem com Deus e, em Deus, com seu próximo. Realizada esta união, atingiu a perfeição. Cum-prindo todos os deveres, mas negligenciando o amor de Deus, passamos vida inútil, estéril” (VONIER, 107)

“Toda a nossa vida moral deve ser fruto da árvore divina que é Cristo... uvas da videira divina (Jo 15,1). As boas obras da nossa vida cotidiana são operações for-mais do Corpo místico de Cristo” (Daí a necessidade da motivação sobrenatural. VONIER 190)

O mesmo vale para toda oração, não só para a litur-gia. Ela é um dom de Deus. É o Espírito Santo que reza na Igreja, no coração dos fiéis (Rm 8,26).

A graça não destrói a natureza. Não destrói a obra de Deus. Mas Jesus nos insinua como dela tirar o máximo proveito, usando-a como ele a usou na cruz.

“A graça não destrói a natureza, escreve Carré OP, mas muitas vezes esquece-se até que ponto ela a trans-forma, retifica, modifica, alarga, até achar-se à vontade”

No rosto de todos os santos, desde Sto. Inácio mártir até Vianey e Sta. Teresinha, “atrás de seus rostos sempre aparece, em filigrana, o mesmo rosto” (Carré).

Feliz a sentença de uma jovem carmelita: “Não de-sejo ser pobre, mas desejo ser Ele”.

Portanto: 1.Nossa santidade é Deus, sua vida divina. É a única

santidade que interessa. Essa nossa vida, apesar de nos ser tão íntima, é mistério que só a revelação da Nova Ali-ança, o Filho Unigênito nos contou (Jo 1,18). Ele nos ofe-receu um segundo nascimento (Jo 1,13), um renascimen-to do alto, pelo Espírito (Jo 3,3). A contrapartida é a árvo-

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re genealógica da humanidade adamítica carregando ta-ras de milênios. Opte pelo renascimento, pelo enxerto da graça. Portanto, impossível conquistar essa santidade, à força de virtudes, Deus quer nô-la dar de presente, gratui-tamente. É só pedir com fé e perseverança (Tg 1,17; 4,6; Mt 7,7). É só jogar fora do coração tudo quanto ponha obstáculos à entrada de Deus.

2. Agir nesse nível superior. Agir como filhos de

Deus. Porque “o homem natural não compreende o que é do Espírito de Deus. Julga-o como estultícia” (1Cor 2,14); enquanto o homem espiritual julga tudo segundo o Espíri-to de Deus (2,16). Quer nos parecer que todos os confli-tos, divergências e problemas da humanidade se originam dessa diferença, desse ponto de vista divergente. Cristo é feito marco divisor. Uns querem continuar a linha adamíti-ca. Outros querem seguir o Homem Novo.

Um acordo, um compromisso, é impossível. Porque essa divergência de motivação tem sua repercussão em cada ato, em cada manifestação do espírito e da vida hu-mana. No entanto, deve valer a Escritura: “Com efeito, todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus” (Rm 8,14).

Quanto mais fiel for a alma à voz do Espírito de Deus, tanto mais ela se aproxima de Deus, até que se realize em verdade a palavra paulina: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

A vida divina é conhecer e amar. A graça santificante nos faz conhecer e amar a Deus. Conhecer, por enquan-to, pela fé que não atinge seu objetivo diretamente, mas “representando-o” em si próprio. O amor, porém, lança-se fora de si, ao encontro do Amado: assim, pelo amor, atin-gimos Deus diretamente, desde agora.

E vale vice-versa. Um ser criado é bom na medida em que é amado por Deus, e isso porque, nosso amor por

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Deus participa do amor divino. É parte, parcela, faísca do Amor eterno. Este amor é atuante, operante, transforman-te. Vem como um incêndio, como labaredas de fogo. As suas exigências na vida dos santos dão testemunho.

As ações de um filho de Deus têm o apreço e o a-grado de Deus.

A teologia diz: tem um mérito. Duas pessoas que praticam a mesma virtude, por exemplo a de dar esmola, estando uma em estado de graça e a outra em estado de pecado, praticam duas ações bem diferentes; apenas a aparência externa é igual.

3. Princípio: Somos incapazes de adquirir essa san-

tidade. Seria enganar as almas deixá-las crer que somen-te a boa vontade e a energia bastam para torná-las san-tas. A nossa concupiscência dura até o último suspiro, e está sempre alerta para combater, para recusar o nosso amor ao Infinito. Amar o infinito é para ela o absurdo. Só nos resta repetir o que Jesus nos ensinou: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,1ss); “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai não o atrair” (Jo 6,44).

Nossa santificação é obra de Deus. A nossa colabo-ração não é à meia, nem à terça. Talvez seja um 0,0001; Deus sabe. Talvez, nossa única contribuição seja a de aceitar e deixar Deus agir em nós, à vontade. Talvez, seja tudo, fruto da oração: pedir e bater à porta (Mt 7,7). E tu-do o mais, é dom e obra de Deus. Mistério da sabedoria eterna, da bondade imensa, da misericórdia sem limites do Amor infinito. Convém reconhecer que somos “nulida-des”. Convém concordar com o Cura d’Ars em nos figu-rarmos como um “zero” depois do número “um”. Só este dá valor.

Tendo o “um” na frente, é até vantagem possuir nu-merosas nulidades a acrescentar.

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2. “INFÂNCIA ESPIRITUAL” Esta nossa situação, no plano salvífico, denominou-

se, “Infância Espiritual”, atribuindo-se o vocábulo a Sta. Teresinha. Mas o certo é que ela nunca usou esse termo; ele é de Madre Inês (mesmo na edição de Novíssima Ver-ba), ele não é original. Teresinha fala de “seu método”, de “seu pequeno caminho”. Mas a mensagem doutrinal fica igual. Criança pequena, esforça-se em vão, com suas perninhas curtas, por subir a escada do céu. E todo seu esforço será inútil, até Cristo descer do alto da escada, tomá-la em seus braços e carregá-la até em cima. É o caso de todos. Não é apenas um dos vários métodos de santificação. É válido para todos. É a impossibilidade me-tafísica.

Meses antes de morrer, a santa resumiu sua “men-sagem” (NV 6-8-1897): “Permanecer pequeno é reconhe-cer o seu nada e esperar tudo de Deus. É não se afligir demais com as próprias faltas. Enfim, não pretender fazer fortuna (espiritual: acumular méritos). Não se inquietar por coisa alguma”.

“Mesmo na casa do pobre, a criança enquanto é pe-quena, recebe tudo o que necessita. Mas logo que chega à maioridade, seu pai lhe diz: “agora, vai trabalhar; já po-des cuidar de ti”. Precisamente a fim de jamais ouvir isto eu não quis crescer, sentindo-me incapaz de ganhar mi-nha vida, a vida eterna do céu. Permaneci sempre peque-na, sem outra preocupação, que a de recolher flores de amor e de sacrifícios e oferecê-las a Deus para lhe dar prazer”.

“Ser pequeno, significa também, não atribuir a si mesmo as virtudes que se praticam, julgando-se capaz de algo, mas sim reconhecer que Deus coloca este tesouro de virtudes na mão do filhinho, para dele se servir quando precisar. Mas o tesouro sempre pertence a Deus”.

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“Ser pequeno, consiste, enfim, em não desanimar com as próprias faltas, pois as crianças caem muito; são porém pequenas demais para se machucar”.

Resumindo o conteúdo teológico: 1. Somos incapazes de santificar-nos com os recur-

sos naturais: boa vontade e esforço. 2. As virtudes que temos são dons de Deus e não

conquista nossa. 3. Nem as nossas fraquezas, nem as nossas faltas

nos devem desanimar, pois sabemos, e Jesus sabe me-lhor que nós, que sem Ele, “não vai”. Mas sabemos tam-bém que a bondade, a liberalidade, a misericórdia de Deus não tem limites; são infinitas com Ele mesmo. E as-sim, toda honra e toda glória cabe a Deus. Mentirosa a criatura que se julga algo. Autenticidade em tudo e honra a quem de direito.

Eis o segredo do sucesso espiritual. A essa criatura Deus pode dar de olhos fechados suas graças em profu-são. E Deus sente-se impelido a dar-se de todo, pela con-fiança, pela fé em seu amor e em sua bondade. É, como foi dito, pegar a Deus pelo seu lado fraco, pelo carinho confiante. E o amor infinito faz descer sobre esta criatura um oceano que inunda e afoga. Afoga toda a nossa misé-ria.

Purifica toda a nossa impureza. Inflama o nosso co-ração. Assim, “Deus é tudo em todos” ( 1Cor 15,29).

Sobre esta base do primado da graça de Deus deve-

se construir a espiritualidade cristã. Daí sua definição ge-ral de santidade: “Santidade não consiste em tal ou tal prática. Santidade consiste numa disposição de coração, que nos faz humildes e pequenos nos braços de Deus, conscientes de nossa fraqueza, mas confiantes até à au-dácia na sua bondade de Pai” (NV. 3-8-1897)

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Não se trata de um quietismo barato, “de um dolce far niente” na vida espiritual. Não, explica a santa à Ir. Genoveva (Celina): “É preciso fazer tudo o que está em nosso poder. Dar sem medida, renunciar-nos constante-mente; numa palavra, provar nosso amor por todas as boas obras ao nosso alcance. Mas na verdade, como tudo isso é pouca coisa!... e quando tivermos feito tudo quanto cremos dever fazer, é necessário confessar que somos “servos inúteis” (Lc 17,10), esperando, entretanto, que Deus nos dê de graça tudo o que desejamos. Eis a espe-rança de todas as pequenas almas que “correm” na vida da infância; digo que correm, e não que “repousam” (Con-selhos 63).

Santidade não é sentir-se disposto aos atos mais he-róicos de virtude. Não é realizar obras heróicas de aposto-lado. Não consiste em mortificações físicas sobre-humanas. Comer só um pedaço de pão por dia durante quarenta anos, dormir diariamente apenas duas horas, e em cima de uma cadeira, e gastar as restantes vinte e duas horas do dia ininterruptamente cuidando dos doen-tes num grande hospital, e isto até a idade de 70 anos... Impossível, dentro dos recursos humanos. É Deus quem realiza estas virtudes heróicas.

Santidade é amar a Deus. E nossa tarefa é provar a Jesus, por todos os pequeninos meios ao nosso alcance, este nosso amor por ele: em pensamentos, em palavras e em pequenos sacrifícios, essas pequenas renúncias do amor próprio na vida cotidiana. Tudo com uma confiança grandiosa e audácia amorosa na bondade de Deus. “O caminho da infância espiritual (o termo é de madre Inês) é o caminho da confiança e do abandono total. Quero ensi-nar-vos os meios singelos que tão bom resultado têm da-do... Obsequiar Jesus com as flores dos pequenos sacrifí-cios... ganhá-lo pelo carinho... Foi assim que o conquistei e por isto serei tão bem recebida no céu” (NV. 17.8.1897)

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Um precioso texto, numa carta a Celina, já Sóror Genoveva: “Desde que Jesus nos vê bem convencidos do nosso nada, ele nos estende a mão. Mas se nós tentamos de novo fazer algo de grande, mesmo sob pretexto de zelo, o bom Jesus nos deixa sozinhas. Corramos ao últi-mo lugar; aí ninguém nô-lo virá disputar” (Carta: 215).

“Não terei nada para apresentar ao Senhor, na hora da morte. Terei as mãos completamente vazias”, lamen-tava-se sua irmã. Responde: “Encontro-me nas mesmas condições. E é justamente isto que me alegra. Porque, não tendo nada (como o servo inútil), receberei tudo de Deus”; “Imagino que Nosso Senhor se verá em apuros comigo, pois não tenho obra alguma. Por conseguinte, não poderá premiar-me segundo minhas obras”... “Tenho muitas fraquezas; mas não me aperto com isto. Digo de mim para mim: ai de mim, ainda estou parada no primeiro degrau, como sempre. Sem tristeza, cheia de paz. É tão gostoso reconhecer-se fraca e pequena”... “A esperança cega que tenho em sua misericórdia, eis meu único tesou-ro”...

“Antigamente, exigiam-se vítimas puras e sem man-cha para satisfazer a justiça divina. Mas agora, vale a lei do amor e o amor escolheu para holocausto a mim, criatu-ra fraca e imperfeita. Porque o amor se abaixa até ao na-da e transforma em fogo este nada... Ó Jesus, sou pe-quenina demais para fazer grandes coisas. Minha loucura consiste em esperar que teu amor me aceita como víti-ma... Ó meu bem-amado, teu passarinho ficará sem for-ças e sem asas todo o tempo que quiseres. Mas sempre com os olhos fixos em Ti... Virás buscar-me e mergulhar-me no ardente abismo do amor”.

Concluímos, com a carta 176: “Só o desejo de ser vítima basta; mas é mister consentir em ficar sempre po-bre e sem força. Fiquemos bem longe de tudo o que bri-lha. Amemos nossa pequenez. Amemos não sentir nada.

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Assim, seremos pobres de espírito e Jesus virá buscar-nos e transformar-nos em chama de amor”.

3. HUMILDADE O que Sta. Teresinha ensinou, sob a figura alegórica

da Infância Espiritual, “meu pequeno caminho”, ensina-o a teologia técnica no tratado da humildade.

Sua importância fundamental é inconteste entre os teólogos espirituais. E, dizem, será mister retornar sempre a este assunto, pois a humildade é o alicerce da perfeição e da santidade. A propósito o aviso chistoso de Sta. Tere-sa d’Ávila: “Se o nosso alicerce é fraco, Jesus então não poderá erguer um edifício muito alto; senão, dá tudo no chão” (Morada 7,4,8)

Há duas humildades. A primeira é psicológica e refe-

re-se à nossa ambientação social. Não há razão alguma para a criatura humana fazer pouco caso de seu próximo, ou até mesmo desprezá-lo, por ter recebido dez talentos enquanto ele apenas dois. “Porque, quem é que distingue (declarando-te superior aos outros)? E que tens tu, que não recebeste? Mas, se o recebeste, porque te vanglorias como se o não tivesse recebido?” (1Cor 4,7). Se o ho-múnculo abusa dos talentos que recebeu emprestado pa-ra desprezar ou desestimar seu irmão, é o cúmulo do ab-surdo. E todas as torneiras de graças do alto fecham-se automaticamente, segundo a parábola evangélica (Mt 18,32).

O segundo grau da humildade é o mais importante.

Queria chamá-lo de humildade ontológica. Ou com a pa-lavra da moda: “existencial”. Refere-se à nossa situação perante Deus. Como chegar a Deus, nosso destino eter-no? Temos força e capacidade? A humildade existencial

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responde com um não. Humildade que é expressão da verdade, diz Sta. Teresa. Não, porque o destino sobrena-tural, que a bondade de Deus nos deu, transcende as for-ças naturais de modo absoluto.

Também não por termos, na opinião de escolas teo-lógicas, sofrido com pecado original um enfraquecimento e debilitação das forças naturais da vontade. Mas sim-plesmente pelo fato de sermos criaturas. Vale o mesmo para os anjos. A primeira opção por Deus e sua renova-ção durante os anos da vida humana, a quem cabe sua realização? A heresia responde: Deus marca, escolhe quem ele quer, e abandona os demais ao adversário. A Escritura diz que Deus quer a salvação de todos, sem exceção; que Deus inflige a condenação eterna, a contra-gosto, àqueles que não querem optar por ele. A respon-sabilidade final cabe, portanto, à criatura. E, portanto, ela tem força suficiente para realizar a opção por Deus. Se não a realiza, é porque não quer. É o mistério. Combinar duas verdades opostas e aparentemente contraditórias: a força do homem e sua miséria. Sua capacidade e sua in-suficiência. A teologia tentou explicar e entender o pro-cesso da nossa adesão a Deus. Não o conseguiu. Em Rm 9,11ss, o apóstolo Paulo tentou explicar a apostasia de Israel negando o Messias, e resume tudo em Rm 9,16. Não depende de querer ou de correr, mas depende da misericórdia de Deus. Pode-se entender que o texto se refere à graça externa de pertencer ao povo eleito ou não. Mas a opção individual por Deus, dependeria bem de cor-rer também um pouco.

A solução é a humildade. Não temos forças suficien-tes para praticar o bem, principalmente a longo prazo, para aderir a Deus sempre e a todo o transe.

Temos, sim, “força” ilimitada para recusar, para dizer não, para não aceitar. Incapazes todavia de agir. Mas, afinal, temos forças de sobra ao nosso dispor: é só pedir o

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auxílio de Deus. E, como diz Sto. Afonso para consolo nosso: Deus dá a todos, em superabundância a graça da oração, a graça de pedir. “Pedi e recebereis”. É bem ver-dade: não adianta correr, mas adianta recorrer à miseri-córdia de Deus.

Possuir Deus na eternidade é dom da Misericórdia. Deus quer nossas virtudes, nossa fé, nossa opção por Deus sempre renovada até morrer. Deus quer dar-nos tudo isto de presente, de graça: é só pedir. Humilhar-se, reconhecer a fraqueza e pedir, rezar.

A solução do mistério está, portanto, em Mt 7,7-10. e em Jo 14;16,23. Está na humildade de coração.

Para terminar, o testemunho carismático. “A pobrezinha (da alma), por muito que se esforce,

não consegue fazer tudo como quisera. Nada pode sem que lhe dêem. E sua maior riqueza é ficar cada vez mais devedora, quanto mais serve a Deus. Quisera amortizar um pouco a sua dívida. Mas, façamos todo o possível. Não temos a oferecer senão o que recebemos. Resta re-conhecer nosso nada, e fazer o que está em nossas mãos: dar a nossa vontade... Só tem algum poder a hu-mildade, não a adquirida pelo entendimento, mas a infusa por Deus” (STA. TERESA, Caminho, 32,13)

Passando por forte prova de aridez, aparece-lhe Je-sus: “Estou sempre aqui perto. Mas quis que tu visses o pouco que vales sem mim” (Relationes (BAC) 26).

“Uma vez, estava considerando qual seria a razão de Nosso Senhor ser tão amigo desta virtude da humilda-de. E veio-me, de repente, esta resposta: Deus é a Ver-dade suma, e ser humilde é andar na verdade. Por nós mesmos não temos bem algum. Somos miséria e nada. Quem não compreende isto, anda na mentira” (Moradas 6,10,7)

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4. ESPÍRITO SANTO Onde buscar auxílio para tão grande empresa de

nossa santificação? Em Deus, no Espírito Santo, pedindo-lhe para repetir o milagre de Jerusalém, e descer de novo sobre a terra como furacão pentecostal. Seus sete dons são fogo, labaredas chamejantes. Seus dons são um vendaval que varre o mundo, e o arrasta consigo para o alto. São sete motores a jacto.

Bem pertinente é a crítica ferina de Feuerbach e de Renan sobre a terceira pessoa da Trindade, tão esqueci-da pela cristandade; sem adoradores e sem amadores, feito uma fabulosa alegoria poética.

E no entanto, é Ele, o centro, o foco e o coração da vida sobrenatural. É Ele a renovação espiritual. Faz florir os galhos secos da Igreja.

Por que a média da cristandade é de tamanho tão pequeno, liluput? Débil demais para as tarefas agiganta-das? Falta a coragem para carregar a cruz de Cristo. Fal-ta a coragem para subir a montanha das “bem-aventuranças”. Falta o sopro do Espírito. Falta o dom do alto.

Pedi e recebereis “Perseveravam unânimes na ora-ção com Maria, a Mãe de Jesus” (At. 1,14).

O Espírito Santo é fruto e expressão do amor entre o Pai e o Filho. É o amor feito pessoa. É o amor incriado que inflama a vida íntima de Deus.

E é o amor-irradiação, que projeta os raios do amor divino sobre a criatura: ilumina, aquece, abrasa, enrique-ce. Sua missão específica é: comunicar, transmitir, infun-dir o amor da divindade nas criaturas. Amor é santidade. Sua tarefa santificar a criatura.

O Primogênito

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Sua primeira obra santificadora foi o filho de Deus feito Homem. Sua concepção humana: “o Espírito Santo descerá sobre ti” (Lc 1,35). E todos os filhos de Deus nas-cem dele (Jo 3,5). Assiste e acompanha todos os filhos de Deus. Como anunciou o profeta: “Repousa sobre Ele o Espírito de Javé, o espírito de sabedoria e entendimento, o espírito de conselho e fortaleza, o espírito de ciência e piedade, e será repleto do espírito do temor de Deus.” Jesus confirma esta profecia em Nazaré (Lc 4,21).

O Espírito Santo revela o Primogênito de Deus no batismo do Jordão (Jo 1,33). Ele dirige todos os seus passos: conduz ao deserto (Mc 1,12); reconduz à Galiléia (Lc 4,14); assiste-o na pregação da Palavra (Lc 4,18). E Jesus nô-lo promete em herança após a sua morte. Ele argüirá o mundo (Jo 16,8). Dará testemunho de Cristo (Jo 15,26). Anunciará sua mensagem (Jo 16,13). Será conso-lo, arrimo nosso na peregrinação terrestre (Jo 14,15; 16,13) até à segunda vinda de Jesus.

Maria Santíssima Especial carinho dedicará o Espírito Santo de Deus

à Mãe dos filhos de Deus. Santificou-a para ser digna Mãe do Salvador, e desceu sobre a terra pela súplica da Mãe de todos os viventes (Gn 3,20), a corredentora e me-dianeira de todas as graças. Ela é o instrumento de santi-ficação do Espírito de Deus.

A Igreja Sua terceira obra de santidade é a Igreja. Fez-se

sua alma, confirmando-a sempre na verdade, santifican-do-a no amor divino. A hierarquia está sob a sua égide. “O Espírito Santo constituiu-vos bispos do rebanho” (At

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20,28). O sacerdócio é ministério do Espírito ( 2Cor 3,80). Através do sacrifício eucarístico, e através dos sete sa-cramentos, penetra o “Espírito da graça” (Hb 10,29), “o Espírito da santidade” (Rm 1,4).

Os Filhos de Deus Ele gera os filhos de Deus (Rm 8,15.16). “Fostes pu-

rificados, fostes santificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de Deus” (1Cor 6,11). Ele fez em nós sua morada; somos seu templo (1Cor 6,19; 3, 17; Rm 8,9). Com ele rezamos (Rm 8,26). Com ele amamos (Rm 5,5), a ponto de: “nenhuma criatura ser capaz de nos se-parar do amor de Deus” (Rm 8,39).

Por ele tornamo-nos cristãos perfeitos, cristãos adul-tos “conforme a idade madura de Cristo homem” (Ef 4,13). Dando frutos de vida eterna (Gl 5,22;1Cor 13,1ss). “Her-deiros de Cristo”, herdeiros de seu Espírito e cooperado-res da salvação, “desde que padeçamos com Ele” (Rm 8,17). Por ele, torna-se fecundo nosso apostolado: “Rece-bereis o poder do Espírito Santo” (At 1,9).

Assim, o Espírito Santo completa a obra do Reden-tor. “Assinalou-nos com seu zelo, crismou-nos, e como penhor, infundiu o Espírito em nossos corações (2Cor 1,22). “Não temas, servo meu. Derramarei água sobre a terra árida e rios sobre o solo seco. Derramarei meu Espí-rito sobre a terra árida, e eles crescerão como plantas à beira d’água (Is 44,3). “Derramarei meu Espírito... Vossos filhos e filhas profetizarão. Farei prodígios entre o resto que o Senhor tiver chamado” ( Jl 2,28.32).

Míriam de Abellin Humilde filha de Deus, flor do Carmelo e flor da Ter-

ra Santa, Míriam de Abellin, comunica-nos da parte do

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Espírito de Deus (anos de 1877): “O mundo (cristão) e as comunidades religiosas pro-

curam novidades na devoção, e descuidam da verdadeira devoção ao Espírito Santo Paráclito. Por isso, há tanto erro e desunião. Não há paz nem luz. Não se invoca a luz como deveria ser invocada. É ela que faz crescer conhe-cer a verdade. Mesmo nos seminários há este descuido. Reinam as perseguições. E há inveja entre as ordens reli-giosas. Por isso o mundo está nas trevas.”

“Todo sacerdote que pregar esta devoção, receberá a luz na pregação”.

“Foi-me dito que no mundo todo se estabeleça que cada sacerdote celebre todos os meses uma missa em honra do Espírito Santo. E todos que a assistirem, recebe-rão graças e luzes particulares”.

Ó cristão! Assinala teus dias, horas e obras com o sinal do Espírito Santo: Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Assim seja.

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4. AMOR DE DEUS

PREFÁCIOS Seguem-se três realidades celestes do alto do céu,

mas que brotam no chão desta terra. Três pérolas do Rei-no de Deus, brancas e rosadas: amor de Deus, prece e dor.

1. “Como meu Pai me amou, assim eu vos amei.

Permanecei no meu amor! Guardando meus mandamen-tos, permanecereis no meu amor. Como eu permaneço no amor do Pai, guardando seus mandamentos” (Jo 15,9).

2. “Sabeis, meu Deus, que não desejei jamais, se-não, amar-vos. Não ambiciono outra glória. Vosso amor me acompanha desde a infância” (STA. TERESINHA, MSCR C 322).

3. Eterno amor de Cristo. “A primeira condição para vencer a atual crise na Igreja, é o amor por Jesus Cristo. É esse amor que “faz” o cristão. E ele não muda. Confor-me os séculos e segundo os indivíduos, o amor se reves-te de várias formas e muda de matizes, mas nunca pode-rá faltar. Ora, hoje em dia ele é atacado; é declarado ca-duco, ilusório ou ridicularizado... A propósito: “Quem não ama o Senhor Jesus Cristo, seja anátema” (1Cor 16,22)... Opor o amor do próximo ao amor de Cristo, que é a sua fonte, é um puro engano, como não cessam de provar os exemplos daqueles que há vinte séculos se abeberaram neste fonte... Como ainda ontem um Charles de Foucauld e um Júlio Monchamin e quantos outros. Enfim, para jul-gar o que é ou não é verdadeiro cristianismo, prefiro sem-pre, ainda ater-me aos santos, que vivem hoje como ou-trora.. não aos filósofos que o pretendem ultrapassar” (HENRI DE LUBAC, SJ, NRT 1969, 592)

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A melodia misteriosa Foi um desses trovadores, desses músicos andari-

lhos da epopéia romântica, que se meteu na cabeça que-rer tocar com seu violino a mais bela melodia que há nes-te mundo de Deus. E ele foi ter com os passarinhos da mata, escutando e imitando seu gorjeio. E as cordas do violino vibraram como canários, pintassilgos, sabiás, um chilrear estonteante, feliz. Mas o músico não se sentia satisfeito. E pôs-se a escutar o vento e sua canção. Ora, o zéfiro suave agitando-se na folhagem verde ou sussur-rando nas ondulações do trigal dourado. Ora o fragor do vendaval vergando, torcendo e fazendo gemer a floresta. E foi um concerto, uma orquestra, como som de órgãos escondidos na penumbra verde... Mas o artista, ainda in-satisfeito; faltava algo... E lá se foi a imitar, em sons e música, o marulho das águas, o rumorejar do regato ser-penteando sonolento pela campina. Ou o bramido da cas-cata, lançando-se através das gargantas da serra para o abismo. Ou, enfim, o rugir das vagas do mar em revolta. Que sinfonia a empolgar o coração humano. E ainda o maestro a sentir saudade daquela melodia misteriosa que estava procurando em vão.

Finalmente foi ter com os seres humanos a tocar to-das aquelas melodias, alegres ou tristes, que fazem vibrar o coração humano, canções de dança e de festa de ca-samento ou graves corais de igreja. E, de vez em quando, sentiu algumas notas a vibrar e feri-lo... pedacinhos de melodia misteriosa... mas foi um só rápido compasso que passou.

E de tanto cismar e sonhar ficou velho, grisalho, e estava a morrer sozinho, como sempre passara a vida toda, na solidão de sua arte e de seu mistério.

Deitado sobre pobre enxerga, ouviu de repente uma

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melodia na sua mente, e soube que era enfim a melodia misteriosa, a mais bela que há. E, com mãos trêmulas, pegou do violino, e pela primeira e última vez tocou a sua canção. A sua. Conseguiu tocar até o compasso final. En-tão a corda arrebentou-se, como que emocionada pelos sons e vibrações misteriosas. E o músico andarilho mor-reu. Chegara à meta final.

Desde os albores da vida humana sussurra uma voz, uma melodia na cabecinha encrespada e cismadora. O pequeno coração fica horas a sonhar, a escutar, e tenta juntar as notas. Idade feliz dos sonhos e ideais Oxalá du-rasse para sempre. Com o correr dos anos, muitos desis-tem desanimados, desiludidos. Mas fica-lhes, no íntimo da alma, esse fundo musical de nostalgia, de saudade, sau-dade de algo “diferente”, a melodia misteriosa a flutuar no ar.

Deus pôs, em cada coração humano, uma melodia misteriosa para cantar. E temos uma vida toda para en-saiar, para descobrir a nossa melodia, eco longínquo do paraíso que se foi, eco distante do paraíso por vir. Sauda-de de algo indefinido, misterioso, grande, belo, ideal. E essa melodia acompanha-nos por toda parte, por todos os anos, soando, ora suave como harpa, ora forte e fortíssi-mo na orquestra, conforme o compasso. A nossa tarefa é acertar o tom. A nossa tarefa é aprender essa melodia, a fim de entrarmos harmoniosamente, não em dissonância, no coral da comunidade humana. A fim de podermos can-tar a nossa parte, um dia, no conjunto do céu, na grandio-sa sinfonia mundial, perante o trono de Deus.

Já conhece a sua melodia? A sua canção? Já sabe cantá-la? Ou ao menos solfejá-la? Cada um tem a sua própria melodia, que lhe cabe descobrir. Descobrir, não nos cinco minutos antes de morrer.

Por isso, haja ensaio de canto, todos os dias. De madrugada com os passarinhos. Na prece matinal. Peça

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a um anjo que lhe ensine a cantar a melodia, bem afina-da.

Uma Canção: 1Cor 13 “Apresento-vos um caminho mais excelente. Se eu falasse as línguas dos homens e dos anjos,

mas não tivesse caridade, seria como o soar do metal ou do tinir duma campainha.

Se eu tivesse o dom da profecia; se soubesse todos os mistérios e possuísse toda a sabedoria; se tivesse a fé total a ponto de transportar montanhas, mas se não tives-se a caridade, nada seria.

E se distribuísse de esmola todos os meus haveres, e se expusesse minha vida num incêndio, mas não possu-ísse a caridade, de nada valeria.

A caridade é paciente, não é interesseira, não se irri-ta, não guarda rancor.

Não é melindrosa. Não folga com a injustiça, mas se alegra com a ver-

dade. Tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre. A

caridade não acaba, jamais. Terão fim as profecias. Expiará o dom das línguas.

Perecerá a ciência. Porque imperfeito é nosso conhecer, imperfeito nos-

so profetizar. Mas quando vier o que é perfeito, acabará o que é

imperfeito. Quando eu era criança, falava como criança, pensa-

va como criança, julgava como criança. Mas quando me tornei homem, despojei-me do que era pueril.

Vemos, agora, como que em espelho e enigma. En-tão, conhecereis de todo, assim como eu mesmo sou de todo conhecido.

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Por ora, ficam a fé, a esperança e a caridade: estas três. A maior delas porém, é a caridade.

Aspirai a caridade”.

Um convite “Ouço uma voz que começa a falar-me: tu chamaste

o meu servo Francisco, mas eu quis enviar-te outro men-sageiro. Eu sou o Espírito Santo, e venho justamente para dar-te uma consolação, como jamais provaste no passa-do. Quero penetrar em ti, e conversar contigo durante to-da a tua jornada, sem cessar um momento. E tu não po-derás dar atenção a outra coisa. Porque eu te prendi a mim, e não me separarei de ti, senão quando passares por aqui outra vez. Então te deixarei, privando-te apenas dessa consolação. De resto, estarei sempre contigo, se me amares”.

E para incitar-me a amá-lo, assim prosseguiu: “Ó minha doce filha, filha minha e templo meu, filha

minha e minha delícia, ama-me, porque eu te amo muito mais do que tu a mim”. E freqüentemente me repetia: “Mi-nha filha e minha doce esposa”. E depois acrescentava: “Amo-te mais que a qualquer outra do vale de Spoleto. Por isso, como eu vim a ti e em ti busquei o meu repouso, vem tu também a mim e descansa”. “Eu estive com os apóstolos, que me viam com os olhos do corpo. Mas não me sentiam como tu me sentes. E quando chegares à tua casa, provarás nova e maior alegria; e então, me sentirás e não apenas ouvirás a minha voz como agora. Tu pedis-te ao meu servo Francisco, esperando com ele e por ele obter o que desejavas. Francisco muito me amou e por isso operei nele coisas admiráveis Mas em verdade te digo: se outra pessoa do mundo me amasse mais do que ele, eu saberia operar nela coisas mais admiráveis”.

Além disso me dizia: “Quão poucos são hoje os

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bons, e quão débil é sua fé.” Lamentando-se ajuntava: “Amo com imenso amor a alma que me ama com amor sincero. Se eu encontrar uma alma que me ame com a-mor perfeito, enriquecê-la-ei com minha graça, como ja-mais fiz com os maiores santos, desde que o mundo é mundo. Não há quem possa recusar esse amor, porque cada um pode amar a Deus, e Ele, outra coisa não quer senão que a alma o busque e o ame, amando-a também Ele verdadeiramente, e sendo ademais o próprio amor da alma. Profundas são essas palavras”.

Mostrou-me, depois, que Ele é o amor da alma, com o grande argumento de sua vinda à terra e da cruz carre-gada por nós, Ele que é tão imenso e glorioso. E, expli-cando-me sua Paixão, e quanto fez por nós, acrescentou: “Vê se em mim há outra coisa que não seja amor”. E mi-nha alma bem compreendia que ali não existia, senão amor. Lamentava-se além disso de não encontrar nestes tempos senão poucos que são dignos de sua graça. E prometia que usaria, com aqueles que agora o amassem, de maior liberalidade em graças do que tinha usado, com outros santos. E me repetia: “Minha doce filha, ama-me sem medida, porque és muito mais amada por mim do que eu por ti. Minha amada, ama-me. Imenso é o amor que voto a cada alma que me ama sem sombra de malí-cia”.

E parecia-me que Ele queria que a alma, segundo sua virtude e capacidade, o amasse com aquele grande amor com que Ele a amava. E bastaria que ela manifes-tasse este desejo, para que ele suprisse a sua deficiência. E, de novo, me dizia: “Ó minha amada, ó minha esposa dileta, queiras-me sempre bem. De fato, toda a tua vida, o comer, o beber, o dormir, toda a tua vida em suma, me é cara, se tu me amas”. E então, acrescentou: “Operarei em ti grandes coisas em presença dos povos. Em ti serei co-nhecido, glorificado e exaltado; meu nome será louvado

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em ti por muitas nações”. Essas e outras coisas mais me foram ditas. Eu, porém, ao escutar-lhe a voz, enumerava os meus pecados e defeitos e me via completamente in-digna de tão grande amor. E minha alma, voltando-se à voz que lhe falava: “Se fosses o Espírito Santo, dizia-lhe, tu não me dirias certas coisas, que de maneira alguma me convém; pois eu sou frágil e poderia surgir em mim a van-glória”.

Responde: “Vê e pensa se consegues ensoberbe-cer-te às minhas palavras; vê se podes pensar em coisas diferentes dessas”. E eu, para ver se era verdade o que se me dizia, e se era mesmo o Espírito Santo, procurei ensoberbecer-me: olhei de um lado e do outro, os vinhe-dos, somente para distrair-me dessa voz: “Olha e con-templa tudo isso que vês, é criatura minha”. E eu provava uma doçura inefável. Todavia, afluíam-me à mente, todos os meus pecados, e de minha parte nada via em mim se-não pecados e defeitos, e senti-me mais humilde do que nunca” (Ângela de Foligno, em romaria a Assis)

Mensagem: 1Jo 4 “ P

7PCaríssimos! Amemo-nos uns aos outros, porque o

amor vem de Deus e todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece a Deus.

P

8PQuem não ama, não conheceu a Deus, porque

Deus é amor. P

9PEis como se manifestou entre nós o amor de Deus:

enviou ao mundo seu Filho único, a fim de que vivamos por Ele.

P

10PNisto, consiste seu amor: não fomos nós que a-

mamos a Deus; foi ele que nos amou e enviou seu Filho como vítima de expiação por nossos pecados.

P

11PCaríssimos! Se Deus nos amou assim, nós também

devemos amar uns aos outros.

142

P

12PNinguém jamais viu a Deus. Mas se nos amarmos

uns aos outros. Deus permanece (mora) em nós, e seu amor atinge em nós a perfeição.

P

16PConhecemos o amor que Deus tem por nós, e nele

acreditamos. Deus é amor. E quem permanece no amor, permanece em Deus, e Deus nele.

P

19PAmemos, porquanto ele nos amou primeiro.

P

5,2PNisto conhecemos que amamos os filhos de Deus,

se amamos a Deus e observamos seus mandamentos. P

3PNisto consiste o amor de Deus: que guardamos

seus mandamentos”.

“O MISTÉRIO” O mistério do amor de Deus por nós... Por que Deus

nos ama? Mistério! Do nosso lado: não somos nada. Somos pecadores.

Somos egoístas eternamente, mesquinhos, incorrigíveis Da parte de Deus: sua justiça é toda contra nós. A

santidade de Deus: idem. A beleza de Deus não lucra na-da conosco. A sabedoria tão pouco. A misericórdia, que se compraz em tolerar e perdoar, não explica a nossa cri-ação e santificação primordial (elevação à ordem da graça santificante) anteriores ao pecado.

Daí, só resta aquele amor transbordante, explosivo que “criou” as três Pessoas divinas. E que, ainda não con-tente, se extravasou por fora da divindade, para as criatu-ras. Deus nos ama, não por aquilo que somos, mas por causa “do que ele é”. Deus é bondade essencial que se expande, se dá e transborda.

Todos os motivos do amor de Deus estão do lado dele. Do nosso lado, nenhum. Curioso é que tratamos a Deus como se entre ele e nós existisse um contrato de igual para igual, e sentimo-nos obrigados a cumprir nos-sos compromissos sob a condição que ele cumpra primei-

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ro com os seus. Quando, na realidade, o dever fica com-pletamente de um lado, enquanto do outro lado tudo é liberalidade.

O nosso modo de servir a Deus é quase um insulto. O homem é a negação de tudo quanto possa valer algo perante Deus. É próprio dele a mesquinhez e a covardia. Até a misericórdia divina devia largar-nos; se não o faz, é só porque é infinita, porque o amor não se cansa.

Por que Deus nos ama? Porque nos criou. E por que nos criou? Círculo sem saída. Por amor estamos presos neste círculo. Bela prisão. Oxalá fiquemos sempre cativos desse amor, cá na terra como depois lá no céu.

Amor forte Deus nos criou para O amarmos. Isso não lhe traz

vantagem alguma; não aumenta nem sua glória, nem sua felicidade.

Deus deseja ser amado por nós. Por quê? Falta-lhe alguma coisa? Em absoluto. Impossível Deus precisar de suas criaturas. E quando deseja o nosso amor, não é só uma veleidade, um “gostaria”. Oh! não. É um ímpeto divi-no que quer abraçar o mundo das suas criaturas, e aper-tá-lo ao seu coração.

Se Deus nos dá leis, origina-se isso do seu imenso desejo de poder ser amado por nós, na eternidade. Se Deus mandou seu Filho para nos resgatar a qualquer pre-ço, é porque não se conforma com a perda do amor dos homens. Seu desejo é tão vivo que parece esquecer-se que é Deus – com perdão da palavra, mas a impressão é essa. Parece esquecer sua majestade a fim de conseguir nosso amor. Sua felicidade em perdoar não é contradição flagrante com sua justiça e santidade infinitas?

Entenda porque exigiu de Cristo tão horrendos sacri-

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fícios. Entenda porque as crianças batizadas entram no céu sem mais. Ou porque o operário da undécima hora passa por igual com os demais Dá a impressão que Deus põe justiça, santidade e dignidade de lado, a fim de ter o maior número possível de convidados no banquete de amor no céu. Profundezas de Deus.

O GRANDE MANDAMENTO Foi Ele o primeiro a amar-nos (1Jo 4,19). E desde

toda a eternidade (Jr 31,3). Criou a fim de derramar nas criaturas sua própria felicidade. Derramar nas almas seu amor incontido, infinito. Daí o grande preceito que incum-be à humanidade qual servidão inata, herdada: amar a Deus.

Antiga Aliança Aliás, o preceito é antigo. Já é da Antiga Lei (Dt 6,5). E no Novo Testamento, Jesus o repete na mesma

formulação tão expressiva: “Amar a Deus de todo o cora-ção, de toda a alma, com todas as forças, com todo o es-pírito”. A repetição mostra que Deus quer amor total. Base e razão: é o absoluto, é o Ser Absoluto... “Eu sou aquele que existe, e tu és aquele que não existe.” Amamos a Deus por ser Deus, o Ser infinito? e porque, tudo o mais, fora dele, não passa de sombra? É o mandamento princi-pal da Revelação. Ele não deixa dúvida sobre a sua ex-tensão. Judeu, cristão e pagão devem cumpri-lo. “Escuta, ó Israel: o Senhor teu Deus é o único Deus. Tu o amarás de todo o coração, com toda a alma, com todas as for-ças”.

Nova aliança

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O N.T. aperta mais os laços de amor que unem Deus e as criaturas. Manda amar a Deus como autor da vida sobrenatural. Deus comunicou-nos e fez-nos partici-par da sua vida íntima, da vida das Três Pessoas da San-tíssima. Trindade. Não somos mais servos, mas amigos (Jo 15,15), filhos da casa. Fez-nos partícipes da sabedo-ria eterna. Infundiu-nos o amor infinito do Espírito Santo. Mandou seu próprio Filho, a fim de que tenhamos a vida eterna (Jo 3,16), a vida de Deus.

Paulo tem razão ao falar de um excesso de amor (Ef 2,4) com que Deus nos ama. Chega a falar de loucura, estultícia, pensando na morte de Jesus na Cruz, como condição prévia para podermos participar da vida eterna (1Cor 1,18): “A palavra da cruz é estultícia para os que se perdem, mas para os remidos, para nós, é poder de Deus e sabedoria celestial”. O amor transborda. O amor infinito transbordou, terra adentro, invadindo a história humana... E qual é a nossa resposta a esse Deus amoroso?

Se todo o mundo amasse a Deus, que paraíso na terra! Mas quão pequeno o número de santos, santos a-nônimos: multiplique-os por cem, por mil. De outro lado, sobra uma multidão de bilhões, de trilhões de indiferentes ou ateus, ou meio-devotos, a amar a Deus com grande moderação e comedimento. A medida de amar a Deus é amá-lo sem medida (São Bernardo). Eis a vontade de Deus a nosso respeito, enquanto andamos nesta terra no clarão bruxuleante da fé. Depois, na luz de Deus, vere-mos pessoalmente que Deus é o único amor possível no universo. Veremos, não precisaremos mais de provas pa-ra nos convencer.

Moisés ficou durante quarenta dias diante da face de Deus. Retornou depois para junto dos homens. Mas o seu rosto tornara-se radioso. Os israelitas pediram que velas-se o rosto. É que não podemos olhar para o sol, sem que a vista nos doa.

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Sta. Teresa d’Ávila viu a Deus, e depois sentia tal aversão a se ocupar com as coisas da terra que padeceu real martírio.

Sto. Tomás de Aquino estava escrevendo o último volume da Suma Teológica. Acontece que vê a Deus nu-ma visão, e não escreve mais nenhuma linha sequer, a-pesar da insistência dos confrades para terminar a gran-diosa obra. “Não; é só palha, perante a realidade”.

São Paulo subiu até o terceiro céu. Viu o que o olhar humano jamais viu . Sentiu o que o coração humano ja-mais sentiu; impossível narrar o inefável.

Ver a Deus neste mundo mata, diz um provérbio po-pular do A.T. A saudade que a alma sente de Deus fá-la arrancar-se para fora do corpo. O corpo desfalece, esfria como cadáver. E quando a alma retorna ao corpo, sente-se como numa prisão, ansiosa por voltar ao céu.

Êxtase Mais cedo ou mais tarde todos os santos sucumbem

a essa doença do amor de Deus. Como Sta. Teresinha que morreu num êxtase de amor, exclamando: “Ó Deus, eu te amor!” Bela entrada na glória.

Por que amar a Deus? Porque é o bem supremo, o bem absoluto. Deus é a saudade do purgatório. Por uma visão momentânea, logo após a morte Deus se revela a todos os homens. Quando o pecador mergulha no tor-mento, seu primeiro grito não é de dor. Seu primeiro grito é de saudade de Deus.

Os êxtases dos santos são reflexos, revérberos da beleza imensa de Deus. O fogo do amor divino chega a queimar a roupa do corpo.

Sta.Catarina de Sena brincava com o fogo na cozi-nha, como um prestidigitador no circo. Dizia ela: “É frio, em comparação com o calor de dentro”.

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São Pedro de Alcântara pulou dentro de um tanque gelado e fê-lo ferver.

São Wenceslau, em suas visitas noturnas à igreja, deixava na neve pegadas quentes para seu friorento ser-vo. São Francisco de Paula acendeu a lamparina do sa-crário com o dedo. Almas de fogo. Deus é amor.

Coração Nosso pequeno coração humano tem uma força ex-

traordinária. Pulsa cem mil vezes em vinte e quatro horas. Quatrocentas vezes por hora, conta-se, impulsionando a massa sanguínea de doze a quinze quilos através do cor-po. Que potência, que força! E há mais: qual potente imã magnético, atrai o coração de Deus. Quem lhe resiste? Como bem expressou a Imitação de Cristo (III, 5,5) de um modo original: “O afeto ardente da alma, seu amor, é um grito forte aos ouvidos de Deus”.

“Subam nossos afetos de amor, quais estrelinhas no céu noturno, perante o trono de Deus”, escreve F. W. Fa-ber; “um único ato de amor a Deus é uma obra perfeita. Todas as demais coisas, em comparação, são bolhas de sabão; talvez, brilhantes como o arco-íris, mas tão fuga-zes! Um ato de amor é uma obra perfeita, e atua mais que qualquer outra ação. E um ato de amor, rápido como um raio, pode ser feito num instante, numa elevação momen-tânea de nossa mente e sobe aos céus.”

Ó profundidade das riquezas de Deus! Nossa alma respira. Cada pensamento, um ato de amor a Deus. Cada palavra, um ato de amor. Cada gesto um ato de amor, nos mil afazeres do dia. Nossas mil distrações, mil atos de amor. Deus é amor.

O AMOR DE DEUS DENTRO DE NÓS

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Romanos 5,5: “O amor de Deus foi derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado”.

1. É amor de amizade, amor de benevolência. Ami-

zade mútua, benevolência mútua. 2. É a maior, a mais alta virtude. As demais virtudes

referem-se à moralidade humana. As três virtudes teolo-gais referem-se a Deus e nos unem com Deus. A fé e a esperança, de um modo imperfeito. A caridade-amor põe-nos em contato com o próprio Deus de modo imediato, direto.

3. A nossa santidade, ou graça santificante, é Jesus

Cristo, no qual estamos incorporados pelo batismo. E as-sim o amor com que amamos a Deus é participação do amor com que o próprio Deus Trino se ama; é uma partí-cula do amor divino.

Como disse Jesus a Sta.Catarina de Sena: “Eu sou o fogo, vós as centelhas”. É fruto da oração sacerdotal de Jesus: “A fim de que o amor com que me tens amado, esteja neles” (Jo 17,26).

Pela graça santificante, participamos da natureza di-vina. Pela virtude do amor de Deus participamos do amor incriado da Santíssima. Trindade. A fé e a esperança par-ticipam da imperfeição da natureza terrena. O amor, po-rém, atinge por contato a essência divina.

Uma Jacquelina de cinco anos é interrogada pelo sacerdote: “Queres bem a Deus”? “Oh sim, padre”. Com todo o teu coração? “Oh, não. O meu é muito pequenino. Amo-o com o coração dele”. Resposta precoce na vida espiritual. Mas teologicamente tão exata: desde que fo-mos batizados, vivemos e amamos com o coração de Cristo.

Sta.Coleta rezou certo dia: “Bom Mestre, eu bem

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quisera amar. Mas meu coração é pequeno demais”. E logo viu descer um grande coração, todo inflamado. E uma voz disse-lhe: “Ama-me agora tanto quanto queres”.

4. Segue-se daí, o valor supremo desse amor divino.

Este amor divino dá valor às demais virtudes. Sem ele, todas as virtudes ficam no andar inferior das virtudes na-turais, incapaz de atingir o Deus Uno e Trino da Revela-ção. O amor divino imprime-lhes valor sobrenatural, eleva-as ao plano sobrenatural. A teologia cunhou o termo: é a forma de todas as virtudes. É o seu elemento formal. Esse amor divino deve, pois, exercer um santo império na vida espiritual. Deve comandar virtudes e boas obras, atos de culto e práticas de piedade. Quanto mais for enérgico e veemente este comando espiritual, tanto maior será seu valor.

5. E tanto maior o mérito. Mérito é o valor que uma

ação representa perante Deus. Base (Sto. Tomás diz: ra-iz, radix meriti) e medida é o amor de Deus, tanto quanto influiu numa boa ação. Grau de amor e grau de mérito, correspondem. Assim como na visão beatífica no céu e o correspondente grau de amor no céu são calibrados, com licença desta palavra antropomorfa, pelo grau e fervor de amor com que temos agido na terra.

É o prêmio essencial, diz a teologia. Enquanto as demais virtudes, mesmo heróicas, não entram na conta-gem. Dão direito ao prêmio acidental, uma espécie de distinção pessoal, uma auréola, que destaca mártires, virgens, penitentes, apóstolos, esmoleres etc. Mas a nos-sa relação para com Deus é graduado apenas pela virtu-de do amor divino, e do seu santo império no organismo das virtudes.

6. Diz São Francisco de Sales: “Todas as virtudes

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juntas, sem o amor divino, não passam de um montão de pedregulho... A balança de Deus, tem outro calibrador. Uma pequena obra feita com um grande amor pesa mais que uma grande obra feita com pouco amor”.

Ainda de uma forma mais rude: Tamerlan é o chefe inconteste dos tártaros. Um camponês, indica-lhe um te-souro no campo. “As moedas levam meu retrato?” “Não, mas o ouro é legítimo”. “Sem meu retrato não tem valor”. Arrogância infantil. Mas assim é perante Deus, valor infini-to e único: somente as obras carimbadas pelo amor têm valor.

Duas irmãs são religiosas no mesmo convento. Mor-re a mais nova a 15 e outubro, e no dia 2 de novembro aparece: “Já estou no céu. Mas não subi muito alto, por-que não pratiquei muito o amor de Deus. Fiz meus deve-res cotidianos mais por dever ou por hábito. Só o amor por Jesus é que vale, recebe o prêmio.”

Segue-se daí: a perfeição espiritual, a santidade cris-tã identifica-se com o amor a Deus. Por isto Sta. Teresi-nha pôde dizer: “Desejais um meio para conseguir a per-feição? Só conheço um: amar”. A santidade não é um conjunto de virtudes, nem de atos de culto e de piedade externa e interna, nem de austeridades e penitências. Nem a vida do deserto. Nem a morte de martírio. Nem mesmo a contemplação, como ato do intelecto. Tudo isto entra na contagem enquanto é expressão do amor a transbordar em nós. Nem mesmo os três conselhos evan-gélicos. São meios, instrumentos para fomentar o império do amor de Deus. Nem mesmo a mais ilibada virgindade conta perante Deus sem o amor. A glória do céu, a visão beatífica não dependem da virgindade, mas do grau de amor.

Diz a revelação que o amor é o caminho mais exce-lente para se chegar a Deus (1Cor 13). Jesus Cristo afir-mou que o amor de Deus é o grande mandamento e que

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“resume toda a Lei de Moisés e os profetas”, isto é, é a quintessência da Revelação.

São Paulo acentua: “A finalidade da exortação é o amor em coração puro” (1Tm 1,5). Ele é o vínculo da per-feição (Cl 3,14).

A própria fé recebe dele sua eficiência (Gl 5,6). Sem ele as virtudes nada são (1Cor 13).

São João remata: “O amor é de Deus... e Deus é amor” (1Jo 4,7.8).

E qual é o papel das outras virtudes em relação com a perfeição? A moral cristã não é um conjunto de prescri-ções virtuosas, um código de boa conduta cívica. Santi-dade é amor de Deus. As virtudes são subestruturadas. Como a vida vegetal e animal do ser humano é dirigida e absorvida pela vida intelectual, própria do homem, assim as virtudes morais devem ser movidas pelo amor de Deus. E nenhuma delas entra na glória do céu: somente o amor de Deus. Razão: nosso destino sobrenatural de fi-lhos de Deus.

Fé e esperança abrem caminho. E na porta do céu somem. As virtudes morais: justiça, fortaleza, temperança e afins, entram no quadro da santidade cristã:

a) Como deveres de estado, diferentes de pessoa para pessoa. Supõem, de cada vez, um quadro especial de deveres e virtudes. Foulcauld, eremita entre os tuareg, tinha outro conjunto de virtudes a cultivar que seu con-temporâneo São Pio X.

b) Entram como partes integrantes aquelas virtudes morais que facilitam, fomentam, aperfeiçoam a prática do amor de Deus, como por exemplo: a humildade, a oração.

c) A caridade para com o próximo, praticada por amor a Deus e não por filantropia, destaca-se de um mo-do peculiar nas duas categorias acima indicadas. Além disso é ela, tanto para Deus como para nós e perante o mundo, o teste, o campo de provas de amor divino. Dos

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frutos do amor concluímos que ele ficou não só no afetivo, mas é efetivo e autêntico. E ainda mais: o amor do próxi-mo entra no quadro do amor de Deus, porque no próximo amamos Cristo, de quem é parcela.

A título de ilustração, duas anedotas hagiográficas:

São José de Cupertino foi consultado a respeito de uma religiosa de São Cesário, com fama de santidade. Res-pondeu: “Sim, vocês têm lá uma santa verdadeira. Uma pobre viúva que luta penosamente para vencer na vida com suas filhas, e que faz tudo por amor a Deus.

São Macário ficou sabendo, por uma visão, que em Alexandria moravam duas senhoras mais santas do que ele. Foi lá para aprender. Eram duas pessoas simples que, havia quinze anos, viviam na mesma casa, em contí-nua concórdia, e agindo sempre por amor.

Crescendo sempre O amor de Deus deve crescer sempre. Não tem limi-

tes em nossas limitações humanas. Sem fim, portanto. Mas Deus é camarada, perdão pela irreverência. Ele mar-cou um bloco de virtudes como expressão mínima de a-mor: os dez mandamentos e mais os deveres individuais de estado. E, no mais, continue a criatura na mediocrida-de, chão a chão. Os homens podem adiar a tarefa e con-tentar-se, por hora, com o mínimo. Felizmente existe após a morte um curso vestibular, onde os retardatários ainda podem aprender como se ama o Ser Absoluto e o Amor infinito.

Mas Deus também continua convidando a subirmos mais alto. Seu desejo é o máximo fervor: nunca chegare-mos a amá-lo tanto quanto somos amados.

Faz-nos um convite às alturas. O céu recusa os ser-vos; só se abre aos amigos. Generosidade!

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Sempre mais Amar a Deus, porque Ele deseja o nosso amor. A-

mar a Deus porque nos ama com amor supremo. Amá-lo porque nos amou primeiro. Amá-lo por sua infinita perfei-ção. Amar a plenitude do Ser. Eis a essência da religião, da piedade. Amar a Deus como nossa origem e último fim: nisso, está tudo.

Amar é a ocupação dos bem-aventurados do céu. Amar fez os santos na terra.

Eis o fascínio do amor de Deus. Jovens, virgens de-licadas e moços da mais alta estirpe, que triunfaram sobre fogueiras e cavaletes de tortura, que os dentes das feras trituraram. Mártires antes da idade, como Venâncio, Á-gueda, Inês, Catarina, Cecília. Santos precoces ou gente humilde das favelas romanas, que passaram toda uma existência no penar da pobreza ou da doença por amor ao Deus Salvador. Filhos de reis que desprezaram a glória deste mundo em troca do amor de Deus. Soldados valen-tes como Sebastião, ou pecadores convertidos como A-gostinho.

O amor de Jesus é sempre excessivo, a fim de re-ceber de nós, em troca, não um amor excessivo, coisa impossível perante o Bem infinito, mas um amor menos minguado. “Bastava Jesus derramar uma gota de sangue para nos salvar: quis derramar todo o sangue do seu co-ração. Bastava transformar o pão num sacramento, a fim de nos transmitir graças: fez questão de ficar pessoalmen-te presente como dom... Cada um de seus dons é duplo, triplo, cêntuplo” (F. W. Faber)

Vivemos rodeados do amor divino, num oceano de graças, como o peixe nas águas do mar. Graças que es-tão acima de nós, abaixo de nós, ao redor de nós e por toda a parte. É uma maré que sobe sempre, que não co-

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nhece refluxo. E Deus paga o nosso amor (mesquinho). Paga logo.

Pelo aumento da graça santificante, da qual um grau vale mais que todo o universo.

Cada aumento é uma vinda na da Santíssima Trin-dade. Uma verdadeira antecipação do céu. Porque desde já estão conosco não só alguns dons de Deus, mas o próprio Deus Tri-pessoal. Desde o instante da nossa justi-ficação, ele é nosso. “Deus nos pertence”.

E cada ato de amor é um novo contato divino na al-ma. Até os nossos pensamentos são atos de amor, iguais em valor às mais difíceis ações, penitências e sofrimen-tos. “Não por sermos bons é que Deus nos ama, mas porque ele nos ama é que somos ou ficamos bons” (Um trapista de 32 anos).

Medíocres Cultivamos um catolicismo “com grandes abatimen-

tos”, com 95% de redução de preço. É uma prisão de me-diocridade em que vivemos aqui na terra. Nosso signo astral é a vulgaridade banal. “A perfeição cristã, não é mais nada do que a conquista da normalidade... É um modo de dizer, mais delicado, que os estultos constituem a maioria (François Mauriac).

Caçoaram das excentricidades do Cura d’Ars: “Ele tem um quê de loucura”. Seu bispo respondeu: “Oxalá, todo o meu clero tivesse um pouco dessa loucura”.

Inquietos Narra, Eva Lavallière: “Em meio aos meus maiores

sucessos, eu retornava do palco com uma tristeza indizí-vel. Às vezes, chorava. Um voz perseguia-me: “Eva, tu não foste feita para isso. Às vezes, desesperei-me a pon-

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to de querer suicidar-me”. Inquietude feliz. São Vicente de Paulo a lastimar-se: “Mas eu não fiz

nada, ainda.” “Mas o que é preciso fazer?” “Mais”. “O santo é alguém a quem Deus não dá sossego”

(Paul Claudel) A única medida de amar a Deus é amá-lo sem medi-

da (São Bernardo) Os Santos nunca cessaram de amar a Deus. Pois

tudo em Deus é sem fim. Principalmente, o seu amor.

Como aprender a amar Amando, responde o provérbio. Ao bom irmão coadjutor, Afonso Rodrigues, santo

porteiro do colégio jesuíta de Maiorca, certo dia pergunta-ram de que sofria. Respondeu: “De amor próprio”. Ora, tinha ele oitenta e sete anos, e era um santo de Deus. Outro santo, Francisco de Sales, que não era porteiro mas bispo e doutor da Igreja, adverte-nos que o amor próprio é tão vivo em nós, que morre só um quarto de ho-ra após a nossa morte.

Aí o ponto nevrálgico da questão: esse amor próprio, fonte universal e fecundíssima de nossos defeitos e peca-dos.

O amor de Deus é também mais difícil do que o a-mor humano, cuja face se vê, cuja voz se ouve, e que em geral admite e tolera um tanto de amor próprio. Enquanto que a Deus temos de amar “sem tê-lo visto face a face” (1Pd 1,8).

O amor humano em suas múltiplas manifestações, é um vislumbre da realidade divina, que nos faz adivinhar o amor infinito de Deus. Cá na terra, temos de caminhar sob a orientação da fé. Nem assim adianta muito, nem multi-plicando o amor humano por quantos algarismos quiser-mos. O amor humano, no grau mais elevado da paixão,

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não passa da luz de um lampião de querosene compara-do com a luz do sol.

Devemos amar a Deus com um amor que possa a-gradá-lo. Temos de amar a Deus com o amor dele: com o amor com que ele mesmo se ama. Só podemos amá-lo com o coração dele. Urge pois, pedir ao Espírito Santo que se derrame em nossos corações (Rm 5,5). Dos dons que descem do céu sobre a terra é o mais excelente.

Fruto da prece Pedi e recebereis Fazemos esforços ascéticos e es-

quecemos que santidade é amor de Deus. Avisa São Francisco de Sales que devemos tender à perfeição, não para nosso contentamento, mas para agradar a Jesus”. Avisa Sta. Teresa d’Ávila (fruto da experiência) que trope-çamos tanto na estrada da santidade por não mantermos os olhos fixos em Jesus, no alto (nas estradas terrestres, aconselha-se o contrário!). E, como adverte com muita graça o monge medieval: “O homem é uma árvore virada às avessas, porque suas raízes sorvem a santidade na cabeça: Cristo” (Isac Estrela), Repete o monge hodierno (Houtrive): “Não devemos colocar o acento sobre o esfor-ço moral. Nós não somos o centro do mundo, mas Deus. Não devemos procurar tanto aperfeiçoar-nos, mas amar. Quem quer aperfeiçoar-se, considera-se a si mesmo. Vive preocupado com seu próprio eu. Enquanto que, quem ama, se perde de vista e se esquece para agradar a Deus... O mérito de um boa obra, não se mede por sua importância ou utilidade, mas pelo motivo que lhe dá im-pulso. Como no Antigo Testamento. Deus mandou dizer (pelo salmista): De nada me adiantam bois e carneiros, ó Israel... interessa o amor da oblação.”

E sempre de novo seja lembrado: Jesus Cristo é nossa santidade. Ele supre tudo o que nos falta. Até nos

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empresta o seu Coração para amá-lo. Pedi e recebereis

A tarefa final Os ascetas medievais chegaram a especificar de

dez a quinze graus de amor a Deus. Sem importância. Subamos sempre, sem contar; Deus merece o amor total, pois é infinito, é o amor por essência. De todas as varie-dades de amor, paterno, de amizade, infantil, nupcial, ca-be a Deus a parte de escol. “Não receiemos nunca amar demais, e sim de menos”, adverte Sto. Agostinho.

Feliz São Felipe Neri, cujo coração, de tanto amor divino, abriu espaço e rompeu-lhe duas costelas.

Sta. Teresinha joga pétalas de rosas sobre o crucifi-xo, no jardim do claustro: –“Está pedindo alguma graça?” Respondeu com vivacidade: –“Não. É para fazer agrado. Não quero dar para receber. Quero viver de amor”.

No leito da morte é interrogada: –“Que estava dizen-do a Jesus?” Respondeu, sorrindo: –“Não lhe digo nada; eu o amo”.

E logo, no grande encontro, a alma submerge na di-vindade como gota d’água no imenso mar. “Agora viver e amar são a mesma coisa. Mortificação, penitência, sofri-mento, tudo passou. Fé e esperança também já estão superadas pela visão de Deus” (Houtrive)

Com a palavra final a Palavra de Deus: “Não viver mais para si, mas para aquele que por eles morreu e res-suscitou” (2Cor 5,15). Eis o programa a ser vivido pelo cristão.

VÍTIMAS DO AMOR “Agora, não tenho mais nenhum desejo, a não ser, o

de amar Jesus até à loucura” (Sta. Teresinha)

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Pertence a este capítulo o oferecimento de Sta. Te-resinha como vítima do amor de Deus, e sua súplica a Jesus para suscitar “uma legião de pequenas vítimas dig-nas de seu amor”. Ela mesma explica-nos a idéia: “Pen-sava nas almas que se oferecem como vítimas à justiça de Deus, a fim de desviar e atrair sobre si os castigos re-servados aos culpados. Esse oferecimento parecia-me grande e generoso, mas sentia-me longe de ser levada a fazê-lo. Ó meu Deus, exclamei no fundo do meu coração: não haverá senão vossa justiça a receber almas imolan-do-se como vítimas? Vosso amor misericordioso não pre-cisa delas também? De todas as partes ele é desconheci-do, rejeitado. Os corações, aos quais desejais prodigalizá-lo, voltam-se para as criaturas, mendigando-lhes a felici-dade com sua mísera afeição, em vez de se lançarem em vossos braços, aceitando vosso amor infinito. Ó meu Deus! Vosso amor desprezado ficará em vosso coração? Parece-me que, se encontrásseis almas oferecendo-se como vítimas de holocausto ao vosso amor, consumi-las-íeis rapidamente. Parece-me que vos sentiríeis feliz por não comprimir as ondas de ternura infinita que estão em Vós. Se vossa justiça compraz-se em se desarmar, ela que se estende só sobre a terra, quanto mais vosso amor misericordioso desejaria abrasar as almas; pois a vossa misericórdia eleva-se até aos céus. Ó meu Jesus, seja eu esta feliz vítima. Consumi vosso holocausto no fogo de vosso divino amor” (Manuscrito A 226 s)

Feito o oferecimento, escreve: “Rios, ou antes, oce-anos de graças vieram inundar minha alma. Desde este dia feliz, parece-me que o Amor me penetra e me envol-ve. A cada instante, este amor misericordioso renova-me e purifica-me. O fogo do amor é mais santificante que o purgatório... Quanto deseja fazer sempre a vontade de Deus” (Vida 227).

Teresinha fez propaganda. Celina faz, juntamente

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com ela. Maria do Sagrado Coração, franca como sem-pre, recusa: “Mas certamente que não! O bom Deus toma a gente pela palavra, e o sofrimento me dá medo demais. Aliás, a palavra “vítima”, me desagrada muito”. Teresinha defende-se: “Não é para pedir sofrimento; é para amar mais a Deus, por aqueles que não querem”. “Ela foi tão eloqüente, que me deixei conquistar e não me arrependo”, declarou Maria, em 1940, ano de sua morte (Conselhos 82).

As vítimas do amor divino têm em comum com as ví-timas de expiação e de desagravo, pelos pecadores, so-mente o nome. Ambas são holocaustos queimados; u-mas, no fogo da dor amorosa; outros, no fogo do amor doloroso. São diferentes na finalidade e nos meios. A ví-tima de expiação só quer resgatar pecadores, oferecer-se a sofrer por eles. A vítima do amor de Deus oferece-se para receber em seu coração todo aquele amor divino que foi rejeitado e ficou “represado” no coração de Deus. A vítima oferece-se para Deus “desabafar”, desagravar todo este amor retido. Seu meio é a entrega total à vontade divina. “A palavra vítima era a única a se empregar na circunstância. Porque é um tormento para o pequeno co-pinho, para o dedal, ver o oceano precipitar-se sobre sua pequenez, para enchê-la de amor infinito. Mas é delicioso tormento, ó martírio inefável” (Conselhos 228)

Sta. Teresinha foi vítima nos dois modos. Pouco de-pois de sua oferta amorosa, desceram sobre ela as tre-vas, a provação dolorosa, moral e física. “Sentou-se à mesa dos pecadores”, padecendo a noite da falta de fé até a morte, acompanhada no último ano pelas dores físi-cas da tuberculose óssea.

Nunca pediu sofrimentos. Almas pequenas não fa-zem isso. Pouco antes de morrer, ainda diz: “Felizmente, não pedi o sofrimento, pois se o tivesse pedido, o sofri-mento seria meu. E eu tenho medo de não poder suportá-

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lo” (Conselho 220) Mas naturalmente aceitou “com prazer” tudo quanto

Deus lhe enviou, consolo ou desconsolo. Desde os cator-ze anos, reza pelos pecadores. Com redobrado fervor, quando carmelita. E se Deus acha que o resgate dos pe-cadores requer expiação dolorosa, a resposta de Teresi-nha é o “sim”. Alguém lhe diz na última doença: “É horro-roso o que estás sofrendo. Responde: “Não, não é horro-roso. Uma pequena vítima não pode achar horroroso o que seu esposo envia” (NV 26-IX)

No dia de sua morte, confessa: “Nunca teria julgado fosse possível sofrer tanto. Jamais, jamais. Só posso ex-plicá-lo pelos desejos ardentes que tive de salvar almas” (NV 30-IX)

As vítimas do amor sofrem também: mas de um mo-do bem diverso (A legião das almas pequeninas não pre-cisam amar o sofrimento; basta suportá-lo). O texto do oferecimento indica-o bem no tópico central: “A fim de viver num ato de perfeito amor, ofereço-me como vitima de holocausto a vosso amor, ofereço-me como vítima de holocausto a vosso amor misericordioso, suplicando-vos me consumais sem cessar, deixando transbordar em mi-nha alma, ondas de ternura infinita que estão encerradas em vós e que assim eu me torne mártir de vosso amor, ó meu Deus”.

Esse martírio de amor é um fenômeno bem conheci-

dos da teologia mística. Deus faz ver à alma o amor infini-to que ele merece e a incapacidade da criatura finita de amar um Deus infinito a contento. Este contraste, este abismo causa uma ânsia, um mal-estar, real tortura. Para-lelo ou idêntico é o fenômeno das “feridas de amor” des-critas por Sta. Teresa (Vida, 29; Moradas, 6); e por São João da Cruz, (Cântico e Chama de amor).

Ruysbroeck escreve: “A ferida do amor é o que há

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de mais terrível”. Celina comenta o pensamento de Sta. Teresinha citando suas palavras: “O que satisfaz o amor é abaixar-se até o nada, a fim de transformar este nada em fogo” (Vida, 248)

Este oferecimento teresiano ao amor de Deus não visa reparar culpas ou expiar ofensas a Deus, mas convi-da Deus a desabafar e derramar seu incontido, infinito amor nos corações humanos. A resposta de Deus não tardou. Três dias depois, recitando a Via-Sacra, “fui presa de repente por tão violento amor de Deus! Era como se estivesse mergulhada toda inteira em fogo. Que fogo e que doçura ao mesmo tempo! Eu ardia de amor e sentia que um minuto, um segundo a mais, não poderia suportar o ardor sem morrer. Compreendi então o que os santos dizem destes estados que experimentaram tantas vezes. Para mim foi só uma vez e só por um instante: pois recaí logo na minha aridez habitual” (NV VII)

Resposta de Deus a esta oblação foi a graça da intu-ição de sua vocação, de sua missão espiritual descrita em Vida, B. Páginas de teologia espiritual grandiosas em sua elevação vertical; profundíssimas pela intuição das graças do Reino de Deus. Citamos os textos mais marcantes:

“Hoje é o sexto aniversário de nossa união (profis-são). Ser tua esposa, ó Jesus, ser carmelita, ser mãe das almas, isto deveria bastar-me. Mas não é assim. Estes três privilégios: carmelita, esposa, mãe, são sem dúvida minha vocação. Entretanto, sinto em mim ainda outras vocações. Sinto-me com a vocação de guerreiro, de sa-cerdote, de apóstolo, de doutor, de mártir. Enfim, sinto a necessidade, o desejo de realizar por Ti, ó Jesus, todas as obras mais heróicas.”

“Sinto em minha alma a coragem de um cruzado. Quisera morrer sobre um campo de batalha pela defesa da Igreja”.

“Sinto em mim a vocação de sacerdote. Com que

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amor, ó Jesus, tratar-te-ia em minhas mãos... Apesar da minha pequenez, quisera instruir as almas como os profe-tas, os doutores”.

“Tenho a vocação de ser apóstolo. Quisera percorrer a terra, pregar teu nome nas cinco partes do mundo. Qui-sera ser missionária, não somente durante alguns anos. Quisera tê-lo sido desde a criação do mundo e sê-lo até seu fim”.

“Quisera sobretudo, derramar meu sangue por ti até a última gota. O martírio, eis o sonho de minha juventude. E este sonho cresceu comigo nos claustros do Carmelo”. “Jesus, Jesus, se quisesse escrever todos os meus dese-jos, ser-me-ia preciso emprestar o livro da vida onde são relatadas as ações de todos os santos, e essas ações quisera tê-las realizado por ti”.

“Ó Jesus, que vais responder a todas as minhas lou-curas? Haverá uma alma mais pequenina, mais importan-te do que a minha? Entretanto, por causa da minha fra-queza te apraz, Senhor, cumular meus pequenos desejos infantis. E hoje, queres realizar outros desejos, maiores que o universo”.

“Fazendo-me estes desejos sofrer um verdadeiro martírio, abri as Epístolas de São Paulo, a fim de procurar alguma resposta... Em 1Cor 12,13, li que nem todos po-dem ser apóstolos, profetas, doutores etc. Que a Igreja é composta de diferentes membros. Continuei a leitura... Procurei com ardor os dons mais perfeitos.

“Vou mostrar-vos uma via ainda mais excelente”. E o apóstolo explica como os dons mais perfeitos nada são sem o amor. Que a caridade é a vida excelente que con-duz seguramente a Deus. Encontrei enfim. A caridade deu-me a chave de minha vocação. Compreendi que a Igreja tinha um corpo composto de diferentes membros e não lhe faltava o membro mais necessário, o mais nobre de todos. Compreendi que a Igreja tinha um coração. E

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que este coração era ardente de amor. Compreendi que só o amor faz agir os membros da Igreja. E que, se o a-mor viesse a se extinguir, os apóstolos não anunciariam mais o Evangelho. Os mártires recusariam derramar seu sangue... Compreendi que o amor encerra todas as voca-ções. Que o amor é tudo... abraça todos os tempos e to-dos os lugares. Numa palavra, ele é eterno.

No excesso de minha alegria delirante exclamei: “Ó Jesus, encontrei enfim minha vocação. Minha vocação é o amor. No coração da Igreja, minha Mãe, serei o amor. Será realizado o meu sonho...

Sou apenas uma criança impotente e fraca. Mas é a minha fraqueza que me dá a audácia de oferecer-me co-mo vítima a teu amor, ó Jesus... A justiça divina exige ví-timas perfeitas. Mas o amor, para ser plenamente satisfei-to, abaixa-se e desce até ao nada, a fim de transformar em fogo este nada”.

E, segue o remate final, numa metáfora deliciosa: “Sou filha da Igreja. A Igreja é rainha, pois é tua es-

posa, ó divino Rei dos reis! Não são riquezas e glória, nem mesmo a glória do céu que reclama o coração da criança. A glória pertence por direito a seus irmãos, os anjos e santos. A criança só sabe uma coisa: amar-te, ó Jesus. As obras brilhantes são-lhes interditas. Que impor-ta? Seus irmãos trabalham em seu lugar e a criança fica junto do trono do Rei e da Rainha, amando por seus ir-mãos que combatem, jogando flores e cantando com sua voz argentina o cântico do amor. Não tenho outro meio de provar-te meu amor a não ser jogando flores, isto é, não deixando escapar nenhum sacrificiozinho, nenhum olhar, nenhuma palavra, aproveitando todas as pequeninas coi-sas e fazendo-as por amor”.

Ó Jesus meu, eu te amo! Amo a Igreja, minha Mãe Recordo-me que o mais pequeno movimento de puro a-mor lhe é mais proveitoso que todos os outros juntos (São

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João da Cruz) Duas reflexões após esta longa citação. Sta. Teresi-

nha não se considera como o coração da Igreja, mas o amor deste coração. A intuição teresiana não se originou da carta paulina. Ela ultrapassou o pensamento do após-tolo, que serviu de ponto de partida (Combas)

A santa vai à procura do amor com que Deus ama. “Ó farol luminoso do amor, sei como chegar a ti!... Encon-trei o segredo de aproximar-me de tua chama... Com as próprias asas da águia divina quero chegar até o sol do amor” (Vida, 254)

Oportuno este anúncio carismático, esta mensagem: retorno ao núcleo central da espiritualidade cristã, ao a-mor de Deus. Retorno das tarefas periféricas para o cen-tro.

Oportuno recordar que não é somente a dor e o so-frimento de vítimas “salva”, mas também, ou antes, o a-mor de Deus. As vítimas sejam, pois, em primeiro lugar suplentes do amor desprezado. Oportuna e grandiosa a intuição de que o amor divino é a seiva vital da Igreja. É o sangue que circula no corpo místico, que condiciona a saúde e o bem-estar espiritual. Cabe à piedade cristã a tarefa de o fornecer com abundância a todo o mundo. Ta-refa de nunca deixar faltar o óleo na lamparina. E como é fácil cumpri-la: amando, jogando flores (e certamente, admitem-se algumas folhas de capim, de permeio). Até simples pensamentos são amor de Deus. Eis uma boa tarefa para nós, pequenos que somos para obras de vulto. Recitemos e renovemos sempre a oblação como vítimas de amor. Não há perigo. Quando muito desaba sobre nós uma torrente ardente de amor de Deus, torturante como fogo, mas é um fogo do céu. Um dia antes da morte, Sta. Teresinha confirma sua mensagem: “Já disse tudo, só o amor é que conta” (NV 30-IX)

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“A santidade não consiste em tal ou tal prática. Con-siste, naquilo, que nos faz humildes e pequenos nos bra-ços de Jesus, conscientes da nossa fraqueza, e confian-tes, até a audácia, na sua bondade de Pai” (NV 3-VIII)

“Sinto que minha missão vai começar. Minha missão de fazer amar o bom Deus como eu O amo” (NV 17-VII)

AMOR AO PRÓXIMO

Prólogo “Temos dois pés para ir ao céu: o amor de Deus e o

amor ao próximo”. “E será um Cristo só amando a si mes-mo” (Sto. Agostinho)

“Todos os pobres levam escrito na testa o nome de Jesus” (São Paulo da Cruz)

“Amar o homem por amor de Deus foi até agora o sentimento mais nobre e mais elevado que a humanidade alcançou” (Nietzsche)

“Ó amigo, não lhe dou amor, porque tenho pouco e este pouco quero dar a Deus. Mas dou-lhe bons afetos, boas palavras e obras, e principalmente uma paciência sem limites” (HB)

“O primeiro e mais necessário dom é a caridade com que amamos a Deus acima de tudo, e por causa dele ao próximo... Caridade, para com Deus e para com o próxi-mo, é o sinal do cristão verdadeiro” (Vat. II, LG 42a).

Crise Antigamente, foi talvez preciso lembrar aos cristãos

que não se esquecessem do próximo, de tanto amarem a Deus. Hoje, acontece o contrário. O humanismo ateu sen-tenciou: o primeiro mandamento (amar a Deus) era provi-sório; era para humanizar a besta humana; agora, “reti-

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rem-se os andaimes”, e suprima-se o primeiro, com gran-de vantagem para o segundo mandamento (cf. SALET, Encontrar o Cristo, p. 141). Esta linguagem impressionou muitos cristãos e até teólogos monoteístas.

Rahner, por razões filosóficas, não teológicas, acha que o amor ao próximo substitui e dispensa o amor a Deus. “Ambos são radicalmente idênticos”. Objeto primá-rio do amor de Deus é o próximo. Objeto secundário é Deus Pai, Filho e Espírito Santo. A prova bíblica não con-vence, nem a ele mesmo (RAHNER, Escritos VI, 282). E o mais é construção não teológica, mas filosófica: pois as razões aduzidas revelam-se da alçada da antropologia filosófica.

Abandonamos, portanto o sistema copernicano e re-tornamos ao ptolemáico: a terra é o centro imóvel do uni-verso; sol, lua, galáxias, estrelas, giram ao seu redor. Es-tranha teologia. Ouvimos a queixa do Filho de Deus: “A-bandonaste teu primeiro amor” (Ap 2,4).

Sempre novo Não vou desmentir ou desprestigiar esta filha do céu,

três vezes bendita que contém todas as promessas do céu e da terra, desde o “Sermão da Montanha” até o La-va-pés. Mas ela fique como segundo lugar. O primado é do Ser Supremo, Deus. E suas criaturas são um ótimo campo de treino, onde podemos testar e comprovar nosso amor pelo Deus invisível, tratando bem, em pensamentos, palavras, obras e omissões suas criaturas visíveis. Não há dúvida: amar a Deus, sem amar os homens, está erra-do. Mas com uma ligeira correção: sem amor sobrenatu-ral. É sumamente desagradável combater uma idéia boa e perfeita em si. Nosso século não só viu acesas verdadei-ras fornalhas de ódio infernal; viu também florir, de um modo descomunal, a caridade fraterna. Assim o movimen-

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to dos focolari (Mariápolis). Assim a Cruzado do Pe. Lom-bardi, um “carismático” no melhor sentido da palavra. Mas repito: o primeiro próximo é Deus, e ele não tem vontade nenhuma de renunciar ao afeto do nosso coração.

Mandamento antigo e sempre novo. “Infelizmente, continua novo porque o cumprimos mal. O fermento e-vangélico deve lutar durante toda a vida para vencer as resistências obscuras e sempre renascentes (do egoís-mo). Passados anos, após nosso batismo, parece que muitas zonas do nosso eu não estão ainda batizadas. É preciso cristianizar-nos (SALET, 137). Como prova, basta a história das guerras militares ou econômicas perpetradas pela humanidade. Ou há quem prefira a psicanálise, que também sabe contar algo sobre a “bestia bionda”.

Em Cristo É mandamento antigo. Já figura no código mosaico

(Lv 19; Dt 6). Mas Jesus deu-lhe novo vigor, uma nova motivação.

Na perspectiva ascética, espiritual, é mister acentuar que a perfeição, a santidade, consiste basicamente na união de cada um com o Cristo místico, na intensidade desta ligação de cada indivíduo com o Cristo-cabeça. Neste or-ganismo circula a seiva vital, e é transmitida a cada um diretamente por Jesus-Homem. Assim, no nível ontológi-co. Membros doentes não transmitem o vírus do contágio neste nível teológico, mas só na linha externa, moral. Mas no foco central deste organismo místico arde em labare-das o amor de Jesus por todos os seus irmãos. Por todos morreu. A todos quer salvos e santos. Nesta perspectiva cristológica une-se a nós com um novo laço. Ele não é somente criatura do mesmo Pai; Ele, tornou-se pelo Ba-tismo, parte de nós, parcela do Corpo Místico. E aí entra em função outro ordenamento de Jesus, que vai bem a-

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lém do “Lava-pés”: “Este é meu novo mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). A cari-dade fraterna de Jesus é medida, modelo e motivo da nossa caridade fraterna. Como Jesus, por sua vez, imita o amor do Pai.

Todos têm um lugar, afeição e carinho no coração de Deus. Tenham-no, também no nosso. Deus quer que partilhemos deste seu amor pelas suas criaturas. Quer que façamos todo o empenho a fim de impedir que elas recusem o amor de Deus. Amor que quer abraçar eter-namente todos os seus filhos, bons ou pródigos... É este o valor do ser humano: sua capacidade de ser amado por Deus. É o que a criatura tem de “amável” aos olhos de Deus. É o que possuímos em valores reais para sermos amados; tudo o mais é de somenos importância.

Trampolim “O mundo de hoje protesta: não quer ser trampolim

para o cristão ganhar o céu. Não quer ser uma ocasião para amar a Deus, um pretexto para o amor a Deus e um degrau para nos elevar até Deus. Parece evidente que assim o homem não é amado por si mesmo, no seu valor concreto. Quer dizer, que não é amado absolutamente” (SALET, 138).

Mas é difícil a Lua suplantar o Sol. Sua luz é em-prestada do sol. Mas outro valor o homem não possui que ser filho de Deus, ou ter a possibilidade de vir a sê-lo. Com exatidão e nitidez expressa-se o teólogo: “A razão de amar o próximo é Deus; pois, o que devemos amar no próximo é que ele esteja em Deus” (II 25,1); “Deus é a-mado em razão da bem-aventurança eterna; e o próximo como participante conosco” (II II 26,2). É a doutrina que encontramos na Escritura do N.T.

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Escalas Numa fase preliminar, a caridade induz a dar abun-

dantes esmolas, a fim de granjear com esta riqueza mate-rial, tentação perene de injustiças, bons amigos no além, que nos acolham em suas casas. Trata-se, pois, de com-prar casa no céu. A esmola é pagamento, a prestações, do loteamento. Quem não tem dinheiro supérfluo para dar esmola, dê caridade-bondade (Mt 7,1).

Creio que devemos ver na parábola de Lc 16 mais que um bom chiste.

Numa linha superior, São Tiago (5,20) salienta uma recompensa especial para quem trabalha pela conversão dos pecadores: o perdão dos próprios pecados.

No sermão da montanha, lemos: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7).

Mas tudo isto é trampolim; pertence ao campo da virtude moral humana. Não é a virtude teologal. Ainda não é a irmã gêmea da caridade divina. Devemos subir mais alto. No “Lava-pés”, encontramos exemplo e doutrina: “Dou-vos um novo mandamento: Que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13,34). E Jesus não se contentou em lavar os pés de seus discípulos. O amor de Jesus é medida, modelo e motivo, razão de ser do nosso amor pelo próximo. No A.T., a medida da caridade para com o próximo foi a amá-lo como a si mesmo. No Reino de Deus, a medida é o amor de Jesus, que morreu na cruz por amor do próximo. Jesus mesmo declarou que é o maior amor que se pode ter para com o outro (Jo 15,13).

Amor Teologal O motivo do nosso amor para com o próximo, amor

disposto a dar até a vida, é Jesus, é Deus. Escreve Sta.

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Teresinha, com muita graça (Vida, 280): “Como e por que Jesus amou seus discípulos? Ah! Não eram suas qualida-des naturais que poderiam atrai-lo. Havia entre eles e Je-sus uma distância infinita. Ele era a ciência, a sabedoria eterna; eles, pobres pescadores, ignorantes e imbuídos de idéias terrestres. E Jesus chama-os de amigos, ir-mãos”. Nesta luz sobrenatural, a santa declarou: “Deus tem prazer em mostrar seu amor ao próximo, usando-nos como seu instrumento”.

Assim, desta maneira, a caridade para com o próxi-mo é realmente teologal. É a terceira e a mais elevada das três virtudes.

E ela recusa-se a ficar no plano do amor humano. Sto. Tomás proclama, em fórmulas sem ambigüidade: “Só tem caridade para com o próximo, quem ama a Deus” (II II 103,3). Escreve Clara Lubich: “Trata-se de amar o próxi-mo como Deus o ama... se permanecerem restos de afe-to, é sinal que o irmão foi amado, ou por nós ou por ele mesmo, e não por Jesus: aqui está o mal” (Meditações, 17).

Mas esta caridade é um amor real pelo homem. Por sinal, o mais forte dos amores possíveis Que ilusão a da-queles que dizem: “Não quero este vosso amor; quero um amor humano...” (SALET, 164). Oh! Não querem ser ama-dos com amor divino; só com o amor humano. Será, este o mais forte? Mais autêntico? Mais sincero? Que ilusão! Iludem-se, esquecidos do egoísmo humano, que brota sempre como tiririca. Iludem-se, desconhecendo o amor infinito de Deus Pai e de Jesus Salvador. Maior amor não é possível. E é com este amor que o cristão ama o próxi-mo!

Entenda-se: o cristão autêntico. Não os cristãos de meia tigela, que são uma legião, mas os Santos, que re-almente amam a Deus acima de tudo e até acima do pró-ximo, e brilham pelo fulgor da caridade fraterna. Como

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exemplos, só dois, bem conhecidos: São Vicente de Pau-lo e Carlos de Foucauld.

Deus versus Homem O amor de Deus não faz concorrência com o do ho-

mem. Aliás, se o fizesse, o homem perderia fatalmente. Enfim, Deus vale algo mais, para ser mais amado.

Deus não reclama pão ou dinheiro de esmola, que faria falta aos subdesenvolvidos. Deus ama para dar, e nós amamos no próximo os dons de Deus, atuais ou futu-ros. Devemos ajoelhar-nos aos pés de Jesus, quebrar o vaso de alabastro e derramar o óleo perfumado do nosso amor sobre os seus pés, e apesar do protesto dos eco-nomistas (Jo 12,7). Jesus está à nossa espera.

Mas uma vez com a palavra, Salet (168): “O homem tem um valor autêntico, somente pela sua relação com Deus. Como criatura não tem, em si mesmo, solidez e consistência, nem a razão de sua própria amabilidade. Ele não é amável, senão dentro de suas possibilidades, do seu mistério, do seu futuro divino... O homem não é ver-dadeiramente amado se não é amado por Deus”. “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amar-des uns aos outros” (Jo 13,35).

ANTOLOGIA Antologia imperfeita do amor perfeito. Do Jardim do

Eleitos, flores e modestas ervas.

O Sufi Os sufis do Islão, filhos do deserto, têm o gosto da

solidão, do infinito, do mistério das estrelas do céu notur-no.

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Jalal al-Din al-Rumi conta-nos: “Ele bateu à porta do bem-amado. Uma voz de dentro perguntou: Quem é? Ele respondeu: Sou eu. E a voz respondeu: Esta casa não é capaz de conter nós dois, a mim e a ti. E a porta perma-neceu fechada. O amante retirou-se para a floresta, orou e jejuou na solidão. Um ano depois regressou. Bateu de novo à porta e de novo a voz perguntou: Quem é? Res-pondeu: Sou tu. E a porta abriu-se de par em par”. O a-mor divino reduz-se a um só. Ou melhor: ele suplanta o amor próprio. “Feliz o homem que mereceu chegar a este (quarto) grau onde se ama a si próprio só por Deus” (São Bernardo)

Sto. Agostinho “Deus não te proíbe amar as criaturas, mas só de

afeiçoares a elas como última felicidade. Podes apreciá-las e louvá-las, a fim de amar Criador.

Irmãos! Se o esposo manda fazer para a sua esposa uma aliança, e esta chega a amar mais a aliança recebida do que o noivo que lha deu... É como se dissesse: basta-me esta aliança; mas não quero ver mais a cara dele... Tu amas o outro em vez do esposo. Tu amas o anel em vez do noivo. Ele te deu este penhor a fim de ser amado atra-vés do presente.

Assim, Deus te deu tudo. Ama, pois, quem tudo fez. E ainda mais: quer dar-te a si mesmo quem tudo fez. Se tu porém amas as criaturas e fazes pouco do Criador, bem se vê que teu amor é falso.”

Recém convertido, Sto. Agostinho lamenta: “Tarde aprendi a amar-te, ó eterna beleza; tarde na vida”.

São Bento Deixou-nos a sentença lapidar: “Nada seja anteposto

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ao amor de Cristo” (4,21). E ele retorna ao tema: “Nada tenham em maior apreço do que o amor de Cristo” (5,2). “Não prefiram absolutamente nada a Cristo” (7,11). “De-vem viver não no temor do inferno, mas no amor de Cris-to” (7,69). “Pelos graus da humildade o monge chega logo à caridade, àquela que sendo perfeita expulsa o temor” (7,67).

Sta.Margarida de Cortona “Como é fácil salvar-se. Basta amar”. Jesus: “Quero enriquecer-te da minha graça. Tanto

que nenhuma mulher do século tem recebido igual. Ama-me, portanto, pois eu te amo. Publica meus louvores e eu te louvarei e far-te-ei louvada no mundo inteiro”.

Jesus: “Terei cuidado de ti em tudo, porque és mi-nha filha, minha amiga, minha irmã, a que eu mais amo entre todas as mulheres que agora vivem na terra... Serás grande no céu... Não quero que proves alegria do mundo, porque eu também não as tive. Tu me seguirás, partilhan-do minhas dores. Estou te preparando tribulações, porque ainda estás a caminho, não na pátria. Estarei contigo. Até o fim da tua vida crescerás, sem cessar em seu amor”.

Ângela de Foligno “Sétimo dom, o amor. Dá-me ter o amor, porque os

anjos e os santos não pedem outra coisa que ver aquele que amam e amar aquele que contemplam. Ó dom, que não há outro igual, pois é tu mesmo o Senhor!”

Jesus: “Eu não te amei por fita. Não fui teu servidor só por fingimento”. Ângela comenta: “É verdade, bem ver-dade”. Jesus continua: “Todos os amantes e seguidores da pobreza, da paixão, da minha humilhação são meus filhos legítimos e meus eleitos. Todos os que fixam sua

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mente na Paixão e Morte, e não alhures, são meus filhos legítimos; os outros, não”.

“A alma vê que só Deus existe e que todas as de-mais nada são”.

A Santíssima. Virgem aparece-lhe durante a missa e diz: “Sê abençoada por meu Filho e por mim, e não te preocupes com coisa alguma, senão em amar com todas as forças, pois tu és muito amada e chegarás à visão e-terna”.

“Ficou-me tanta certeza, tanta luz, tanto fogo de a-mor divino, que andava afirmando com profunda convic-ção que é uma nulidade quanto se prega sobre o amor de Deus. Os pregadores não são competentes nesta matéria. Não entendem o que estão dizendo”.

Sta. Brígida Jesus: “Quando criei o homem, apaixonei-me pela

beleza de minha criatura, pois ela foi feita à minha ima-gem e semelhança.”

“Não podíamos pedir a Deus que nos criasse, mas Deus, impelido por um fogo de amor, criou-nos à sua pró-pria imagem, numa dignidade que a língua é incapaz de dizer; o olho incapaz de ver; nosso espírito incapaz de compreender. Eis a nossa dívida para com Deus, dívida que reclama pagamento; reclama amor. A alma não pode viver sem o amor, porque foi feita de amor. Criei-a por amor, diz o Senhor Deus”.

“Ó abismo, ó Divindade eterna, ó oceano sem fundo, que mais poderias dar além de ti? Tu és o fogo que quei-ma e jamais se extingue. Tu és o fogo que desfaz toda frieza. Fogo que derrete o gelo. Fogo, cujo clarão me fez conhecer a verdade”.

“Se é verdade que Cristo, o Filho de Deus, morreu na cruz, mister se faz que todo coração se transforme

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num Gólgota, e que os olhos não se deslumbrem mais com outras flores que não as cinco rosas vermelhas de-sabrochadas no jardim do Corpo de Cristo. Nenhum outro amor é permitido, a não ser o amor deste esposo de san-gue. Que sua mão esquerda ensangüentada me abrace com força... Impossível resistir-lhe”.

Num êxtase, após a comunhão, exclama: “Ó Trinda-de eterna, pequei todos os dias de minha vida. Ó alma miserável. Nunca te lembraste de teu Deus? Certamente, não. Se o tivesses feito, tu te terias consumido na fornalha do seu amor”.

“Em tua natureza, ó Deus eterno, eu reconheço mi-nha própria natureza. Minha natureza é o fogo.” Jesus, sorrindo, corrige: “Eu sou o fogo e vós as centelhas”.

Matilde de Helfta “Nosso Senhor pôs suas mãos divinas sobre as

mãos da sua esposa para lhe dar todo o trabalho e todas as obras de sua santa humanidade. Pôs em seguida seus olhos tão suaves sobre sua bem-amada, comunicando-lhe os méritos dos seus santos olhares e das lágrimas abun-dantes por ele derramadas. Pelo contato com seus ouvi-dos deu-lhe todas as operações de seu ouvido divino. Pe-lo contato com seus lábios vermelhos, todas as palavras de louvor, de ação de graças, de petição e até mesmo de suas pregações públicas. Enfim, uniu seu doce Coração com o de sua bem-amada e aplicou-lhe o fruto de todo o seu trabalho de meditação, de devoção, de amor, e enri-queceu-a de todos os seus bens. Então, esta alma, toda incorporada em Cristo, derretida pelo amor como cera pelo fogo, recebeu o selo da semelhança divina. Tornou-se uma só coisa com seu bem-amado”.

Ela viu abrir-se a chaga do sagrado Coração e ouviu dizer-lhe: “Contempla toda a extensão do meu amor. Co-

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mo meu Pai me tem amado, assim eu vos tenho amado... Quando a lança abriu o meu lado, eu ofereci a todos o meu Coração para beber a vida, a todos que em Adão tinham bebido a morte; a fim de que todos se tornassem filhos e herdeiros da vida eterna”.

Certa vez, chegou atrasada à missa, sem culpa sua e ficou triste. Jesus lhe diz: “Julgas que não tenho valor suficiente para pagar todas as tuas dívidas... para suprir todas as tuas omissões?”

Maria Santíssima a instrui: “Oferece o meu Coração por todas as negligências, e tuas faltas serão amplamente reparadas”.

Recebe a graça da transverberação do coração, como mais tarde Sta. Teresa d’Ávila e outros.

Jesus: “Dou-te meus olhos para que vejas tudo por eles. Dou-te meus ouvidos, a fim de que, compreendas tudo o que ouves. Dou-te a minha boca para que faças passar por ela todas as tuas palavras, tuas orações, teus cantos. Dou-te o meu coração, a fim de que, por meio de-le, penses; por ele me ames e todas as coisas por mim”. “A esta última palavra, Jesus atraiu-a a si e uniu-a consi-go, a tal ponto que a alma parecia ver com os olhos de Deus; ouvir com os seus ouvidos; falar por sua boca e não ter mais outro coração, senão o coração de Jesus”.

“Doce e amoroso Senhor, como gostas de me ver ocupada?”

Jesus: “No louvor de Deus. ... Para reparar tuas ne-gligências e recuperar o tempo perdido, saúda o meu co-ração. Aí há superabundância de graças e de bondade”. Viu o coração de Jesus como um labareda chamejante.

Jesus: “Queria que os corações de todos os homens fossem assim inflamados”.

Jesus: “Quando derramo sobre ti minha graça, deixa tudo, suspende teu trabalho e entrega-te em plenitude à graça. Nesse momento não podes fazer coisa melhor ou

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mais vantajosa”. Jesus: “Tu deves suportar toda pena corporal ou es-

piritual, não por ti, mas por mim, como seu eu padecesse em ti. Não sejas mais do que um vestido, com o qual eu me revista, e sob o qual eu possa coordenar e executar as tuas ações”.

Rezando Matilde por uma pessoa aflita, Jesus res-ponde: “Por que essa pessoa não quer aceitar o que eu desejo lhe dar? Minha santa e inocente vida na terra, eu lha ofereço todinha e de boa mente. Ela que a tome para suprir tudo o que lhe falta...”

Matilde: “Se tu, Jesus, gostas tanto que a gente se apodere do que é teu, dize-me por favor, ó Deus bondoso, dize-me como fazê-lo?”

Jesus: “A alma ofereça ao meu Pai, todos os dese-jos e orações. Toda oração penetra o céu, mas não tem o mesmo valor se não está unida à minha. O mesmo vale para as ações”. Matilde: “Apoderemo-nos da santa vida de Cristo, a fim de suprir o que nos falta”...

Jesus: “Oferece-me cada manhã teu coração a fim de que nele derrame o divino amor”. Matilde: “Mestre, o que fazes tu, quando rezo ou recito Salmos?” “Fico escu-tando. Quando cantas, ajusto minha voz à tua. Quando trabalhas, descanso. Quando te alimentas, eu trabalho, porque eu me alimento de ti e tu de mim. Quando dormes, vigio e te guardo”.

Jesus: “Na Santa Missa ofereço-me com todo o a-mor de meu coração para suprir tudo quanto falta aos homens”.

Jesus: “A face de tua alma é imagem da Santíssima. Trindade. Tua alma deve contemplá-la sem cessar. Ocu-pando a mente com pensamentos terrestres e inúteis, a imagem fica manchada”.

Jesus: “Se o homem compreendesse o quanto pode merecer num só dia, mal esteja acordado, seu coração se

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dilataria de alegria ao ver luzir mais uma jornada a ser vivida para Deus e sua glória”.

Matilde, caíra em profunda tristeza, julgando-se inú-til. Após tantas graças recebidas, não amava quanto devi-a. Jesus: “Oh, minha bem-amada, nada de tristezas! Pois tudo o que é meu é teu.” Matilde: “Se é realmente assim, então teu amor é meu, e eu te ofereço este amor para que supras o que me falta”.

Jesus: “Está certo assim. Quando me queres louvar ou amar, e não consegues satisfazer teu desejo, então dize: Eu te louvo bom Jesus; tudo que me falta, queiras completar, por favor. Quando desejas amar-me, dize: Eu te amo, bom Jesus e tudo que me falta queiras suprir, ofe-recendo ao Pai por mim, o amor de teu coração... E dirás à pessoa pela qual estás rezando, que ela faça também assim. E se ela voltar mil vezes por dia, mil vezes me ofe-recerei por ela ao Pai. Não sou capaz de sentir lassidão ou aborrecimento”.

Num dia de festa, a monja-cantora cai doente. Matil-de lamenta não poder servir a Jesus na liturgia. Jesus: “Desde quando estou proibido de entreter-me alegremen-te com minha bem-amada? Quando uma pessoa está do-ente, eu me revisto de sua alma como de um manto de glória e apresento-me ao meu Pai, dando graças e louvo-res por todos esses sofrimentos’.

Jesus: “Se alguém deseja que eu me revista de sua alma, deve suspirar por mim, desde a madrugada, e com ardor. Seus desejos fazem-no tornar-se meu vestido. A alma que vive de mim, age por mim”.

Jesus: “Minhas chagas curam todas as fraquezas da alma. Há tantos corações tímidos que não ousam confiar-se à minha ternura”.

Gertrudes, a abadessa falecida, recomenda após sua morte: “Que não se prefira nada ao amor de Deus”.

Maria Santíssima recomenda: “Faze tudo pela glória

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de Deus e pela salvação do mundo”.

Juliana de Norwich, 1430 “Nosso Senhor, mostrou-me, na palma da minha

mão, uma coisa pequenina, do tamanho de uma avelã, redonda como um bolinha. Olhei, pensando: o que será isto? Foi-me respondido: “É uma figura de tudo quanto foi criado”. Como estranhei que isto pudesse subsistir, ouvi a resposta: “Subsiste, sim, e sempre subsistirá porque Deus o ama. Tudo o que existe, deve sua existência ao amor de Deus”.

“De todos os sofrimentos que conduzem à salvação, este é o maior: ver sofrer o Amor”.

Jesus: “Então, estás bem contente por que padeci por ti?” “Oh, sim, muito agradecida, bendito sejas.” “Se estás satisfeita, eu estou mais ainda. Para mim é uma alegria, um prazer, uma satisfação imensa, ter sofrido mi-nha Paixão por ti. Se pudesse sofrê-la de novo, bem que o faria”. “Estás contente? Se é assim, estou contente também.” É como se dissesse: “Em recompensa de mi-nhas dores, só quero uma coisa: teu agrado e contenta-mento”.

“Todo radioso, mostrou-me Jesus, seu coração transpassado pela lança: Vê, quanto te amei”. “Queres ver a Senhora? Ela é, depois de mim, a alegria maior que eu te possa revelar. Ninguém me agrada e me honra tanto como ela. Por amor de ti, fi-la tão grande, tão nobre, tão bela: estou satisfeito, e queria que estivesses também”.

“Convém que haja pecado. Mas não te preocupes. All shall be well: tudo vai acabar bem. O pecado de Adão foi a coisa mais detestável que se fez ou será feito até ao fim do mundo... Considera como a satisfação gloriosa ofe-recida a Deus lhe é infinitamente mais agradável e presta-lhe mais honra do que o pecado lhe tem causado ofensa.

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Tenho a possibilidade de fazer que tudo vá bem. Tenho o poder. Tenho a vontade. Sim, farei que tudo corra bem. Tu verás”.

“Para mim é uma alegria, um prazer que nunca aca-bará, o ter sofrido a Paixão por ti. Tudo irá bem. Tem con-fiança. Algum dia tu também o verás”.

Durante toda a nossa vida Jesus nos diz: “Deixa-me ser todo o teu amor. Interessa-te por mim. Eu deveria bas-tar-te”.

“Não percebi a diferença entre Deus e a nossa subs-tância (alma na graça santificante). Diríamos que tudo era Deus”.

“Na alegria ou na tristeza, para agradar a Deus de-vemos compreender que na verdade estamos mais no céu do que na terra”.

“Nossas mães puseram-nos no mundo para sofrer e morrer. Nossa mãe verdadeira, Jesus, criou-nos para a alegria e a vida eterna. Bendito seja! E ainda diz: Se pu-desse sofrer mais, sofreria ainda mais”.

“Depois das nossas quedas, façamos como a crian-ça: Quando se machucou ou tem medo, corre com toda a pressa para junto da mãe, ou pede socorro, gritando com toda a força”.

“Serás libertada subitamente de toda a dor, doença, mal-estar e pena, e subirás. Eu mesmo serei tua recom-pensa. Por que te entristeces por sofrer um pouco, quan-do vês que é da minha vontade e para minha glória?”

Sta. Catarina de Gênova Jesus: “Se tu soubesses o quanto eu amo as criatu-

ras, não quererias mais saber de outra coisa neste mun-do... Meu amor é infinito. Só posso amar o que criei”.

“Não quero saber de amor criado, isto é, de um a-mor no qual me possa deleitar. Decidi que, enquanto esti-

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ver viva, direi sempre ao mundo: Quanto ao meu exterior, faze de mim o que quiseres; mas quanto ao meu íntimo deixa-me, porque não posso, não quero nem queria que estivesse em meu poder ocupar-me com outra coisa que não seja só Deus, que trancou tão bem meu íntimo, e que de tal forma não quer abri-lo para ninguém. Sabe que a força que ele emprega é tão grande como sua onipotên-cia”.

“Ele não faz outra coisa do que consumir esta (mi-nha) humanidade, por dentro e por fora. Em meu íntimo só consigo ver a ele; porque aí não deixo entrar nenhum outro; nem a mim, menos ainda que os outros, porque de mim é que sou mais inimiga. Às vezes é necessário usar a linguagem do mundo para designar este eu: mas quan-do o menciono, ou quando sou chamada por outros, digo a mim mesma: meu “eu” é Deus; não conheço outro fora de meu Deus. E meu ser é Deus, não por simples partici-pação, mas por uma transformação verdadeira, e pelo aniquilamento do meu próprio ser”.

“Vejo claramente como o homem se engana neste mundo, ocupando-se com coisas que não existem e dan-do-lhes valor... Tudo o que há neste mundo, por bom e bonito que seja, por útil que seja, aquilo que vês não exis-te, tão grande é Aquele que existe” (Jacopone da Todi).

“ Nosso espírito foi criado para amar e ser feliz. Ele não encontra jamais a paz nas coisas temporais Engana a si próprio. Um possesso gritou: eu sou infeliz, privado que fui do amor. Oh! como gritava com voz desesperada! Cor-tava o coração”.

“Este amor de Deus liquefaz em mim toda a medula do corpo e da alma, e às vezes sinto como se o meu cor-po estivesse transformado-se em pasta; e na aversão que tenho por coisas corporais, ele se me torna insuportável”.

“Ordenas-me amar meu próximo. Ora, não posso amar senão a ti, nem tolerar nenhuma mistura nesse a-

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mor. Que faço?” Jesus: “Quem me ama, ama tudo o que eu amo”.

“Deus fez-se homem, para fazer-me Deus. Quero, pois, tornar-me toda de Deus, por participação”. “Ó amor, não posso compreender, que outros, além de ti, devam ser amados. E se o compreendesse, estaria bem aflita”.

“O amor a Deus, afinal, nada mais é que o amor a nós mesmos, porque para aquele amor é que fomos cria-dos. O amor a qualquer outra coisa deve chamar-se pro-priamente ódio a nós mesmos, porque nos priva do amor único que é Deus. Por conseguinte, ama a quem te ama! Deixa quem não te ama! Isto é, todas as coisas abaixo de Deus; porque todas elas são inimigas deste amor verda-deiro”.

“A alma perde todo o gosto... O homem fica sem al-ma e sem corpo, sem céu, sem terra. Ele come, bebe, gosta, pensa, quer, recorda, mas todos estes atos reali-zam-se sem atuação da natureza. Realizam-se acima da natureza. Porque é Deus quem dá gosto, entendimento, vontade, memória, como lhe apraz”.

“Comendo pão, a sua substância útil sustenta o cor-po; e o resto inútil é eliminado, e isso é necessário, senão se toma veneno. Suponhamos que este pão te diga: “Por que me privas do meu ser? Não gosto de ficar aniquilado.” E que respondas: “Pão, teu ser é destinado a sustentar meu corpo, que é mais digno que tu. E tu deves até dese-jar atingir teu fim para o qual foste criado. É este fim que te dá a dignidade; sem isto és jogado fora, como coisa inútil. E tu me deves dizer: depressa, depressa, tira-me meu ser e põe-me na finalidade para a qual fui criado”.

É o que Deus faz com o homem, criado para a vida eterna. Aproveita o que é bom. O resto é eliminado pouco a pouco. Corta a raiz das más inclinações e o galho res-pectivo seca. “Dei as chaves da minha casa ao Amor, e com elas amplo poder para fazer tudo o que é precioso,

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sem levar em consideração a alma, o corpo, os bens, pa-rentes, amigos, mundo. Ele aceitou a tarefa... e eu fiquei esperando, atenta”.

Camila Batista Varna - 1524 “Meditando sobre o amor de Deus, percebi que es-

tava-me afundando num abismo sem fundo. Por duas ve-zes tentei retroceder, e foi-me impossível. Uma luz me fez entender três coisas:

1. Que nunca poderemos retribuir o amor com que Deus nos amou primeiro.

2. Que todo o nosso amor por Deus mais parece ser ódio; nossos louvores, sacrilégios; nossas ações de gra-ças, blasfêmias.

3. Vi, com toda a clareza e certeza, que nem a santa Mãe de Deus, nem todos os anjos, nem todos os homens juntos são capazes de agradecer ao amor divino, de um modo suficiente, pela mais pequenina flor da terra, criada para nosso uso e deleite, tão grande é a distância entre o nosso nada e nossa miséria e a infinita bondade e gran-deza de Deus.

E fui lembrando-me de todas as graças que recebe-ra de Deus, e certamente foram algo mais que flores e ervas. E caí em desespero por causa de mim e de todas as minhas boas obras...

Cessou a luz e veio um fogo que inflamou a alma to-da, um desejo sem limites, sem medida, de estar com Je-sus. Padeci um verdadeiro martírio”.

Sta. Teresa d’Ávila Jesus: “Ah! filha, quão poucos me amam de verda-

de... Sabes o que é amar-me de verdade? É compreen-der, que é mentira tudo quanto me desagrada” (Vida 40,1)

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“Dás bem a entender que nos basta amar-te deveras e renunciar a tudo para que tornes tudo fácil... Quem te ama de verdade, anda seguro, trilha caminho largo, estra-da real” (Vida 35,13)

“Quem muito amar, verá que pode padecer muito por ele. Quem o amar pouco, pouco poderá.” (Caminho 35,7)

“Pois tudo ele sofre em troca de uma alma que o re-ceba e o guarde com amor; seja essa alma a vossa.” (Ca-minho 35,2)

“Praza à sua Majestade dar-nos seu amor antes de nos tirar desta vida, porque grande consolação causará, à hora da morte, saber que seremos julgados por Aquele a quem amamos acima de tudo. Seguros, poderemos partir com o processo de nossas dívidas” (Caminho 40,8).

Ferida pela seta de fogo, vivendo num martírio de amor: “Valha-me Deus! Ó Senhor, como apertas aos que te amam. Mas tudo é pouco... em comparação a este tor-mento e angústia que não pode haver maior na terra.” (Morada 6,11).

Isto também é amor. “Cansei-me de o ofender, antes que ele se cansasse de me perdoar. Ele jamais se cansa de dar, nem se pode esgotar sua misericórdia. Não nos cansemos também de receber. Seja bendito para sempre. Amém” (Vida 19,15)

Ainda uma palavra de consolo na hora amarga. Je-sus: “Alimenta-te por amor de mim. Dorme, por amor de mim. E tudo o que fizeres, seja por meu amor. Como se já não vivesses tu, mas Eu” (Revelações 56)

Para terminar, um recado peculiar. Após uma visão do céu, Jesus conclui: “Vê, filha, o que perdem os que são contra mim. Não deixes de lhes dizer...”

“De algumas almas aprouve ao Senhor mostrar-me os graus que têm de glória. É grande a diferença que vai de umas às outras” (Vida 38, 3.32)

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São João da Cruz “Ao entardecer da vida, sereis julgados sobre o a-

mor” (Avisos 57) “Aquela única coisa que a esposa disse ser necessá-

ria é a constância e o contínuo exercício do amor de Deus. Não há obra melhor e mais necessária do que o amor... Convém notar que, enquanto a alma não chegou a este grau de união de amor, convém-lhe exercitar o amor tanto na vida ativa, como na vida contemplativa. Mas quando já chegou a ele, não lhe é conveniente ocupar-se de outras obras e exercícios exteriores que lhe possam impedir um pouco aquela assiduidade no amor de Deus, embora sejam de grande serviço de Deus, porque é mais precioso para ele e para a alma um pouquito deste amor, e aproveita mais à Igreja (embora pareça que nada faz), do que todas essas obras juntas.

Se, pois, uma alma está neste grau de solitário a-mor, grande agravo lhe fariam, tanto a ela própria como à Igreja, se ainda que por pouco tempo a quisessem ocupar em coisas exteriores, embora fossem de muita importân-cia, pois se Deus conjura que a não despertem desse amor, quem se atrevesse a fazê-lo irá ficar sem repreen-são? Porque, enfim, para este fim de amor fomos criados.

Advirtam pois aqui os que são muitos ativos e pen-sam abraçar o mundo com suas prédicas e obras exterio-res, que dariam muito mais proveito à Igreja e muito mais agrado a Deus, além do bom exemplo, se gastassem a metade deste tempo com Deus, na oração, mesmo que não tivessem chegado a um grau tão alto de oração. Cer-tamente fariam mais e com menos trabalho, com uma o-bra mais do que com mil, merecendo-o sua oração... Se-não é tudo martelar e fazer pouco mais que nada, e às vezes nada, e até, às vezes, dano. Deus os livre que se

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comece a desvanecer o sal.” (Cânticos 29)

São Francisco de Sales “Quando o homem pensa com um pouco de atenção

em Deus, sente doce emoção no coração: o que demons-tra que Deus é o Deus do coração humano”.

“Há uma correspondência desigual entre Deus e o homem para a recíproca perfeição. Não podemos ser ver-dadeiros homens, se não possuímos uma natural inclina-ção para amar a Deus mais do que a nós mesmos. Na raiz de nosso ser há o secreto aviso de que pertencemos à bondade divina, por aflitiva que seja nossa impotência de realizar naturalmente essa inclinação”.

“Nossas misérias e fraquezas não nos devem sur-preender. Deus já viu coisa pior”. “O amor de Deus é, en-tre as virtudes, como o sol entre as estrelas. Distribui a todas sua claridade e beleza. A fé, a esperança, o temor de Deus e a penitência geralmente precedem-no, para preparar-lhe o alojamento. Mas desde que ele chega, o-bedecem-lhe e servem-no com as demais virtudes. E a todas as virtudes o amor de Deus anima, embeleza e vivi-fica com sua presença”.

“O amor é a bandeira no exército das virtudes. E to-das essas devem enfileirar-se atrás dele. É o único estan-darte sob o qual Nosso Senhor as faz combater, como general em chefe do exército”.

Maria da Encarnação (Ursulina), 1599 - 1672 Jesus: “O amor é meu nome. Os homens dão-me

muitos nomes. Mas não há nenhum que me agrade tanto e que melhor exprima o que sou para eles”.

“Meu espírito estava deslumbrado com a grandeza e a majestade de Deus. Todas as suas perfeições, que se

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mencionam, não são bem assim! É preciso deixar todas as palavras e todos os nomes e contentar-se em excla-mar: Deus, Deus! Pois tudo é menos do que se deveria dizer”.

“Vi Deus como se fosse um abismo sem fundo: im-penetrável, incompreensível para todos a não ser para ele mesmo”.

“Eu estava encantada de ser nada e de Deus ser tu-do, porque se eu fosse algo, Deus não seria tudo”. “Não existindo mais, permaneci nele, na intimidade de amor e de união. Não me enxergava mais, sendo Ele por partici-pação”.

“Neste sofrimento (martírio do amor) ele punha em mim uma plenitude mais difícil de suportar do que uma morte cruel”.

“Um dos meus principais assuntos de queixa é: Não o amar bastante. Eu via, em espírito, o amor que tantos santos e santas tiveram por ele, e todo esse amor não me era suficiente, não podendo suportar um amor limitado. Tudo aquilo parecia-me pouco em relação a Jesus. Minha alma era insaciável, querendo só a plenitude do amor”.

“Vejo claramente que ele é tudo e que eu nada sou. Que ele se dá todo, e que eu não lhe posso dar nada”. “Minha alma sentia que seus atos de amor eram produzi-dos por aquele no qual eu estava engolfada”.

Madalena Vigneron Jesus: “Minha filha, de tempo em tempo preciso de-

sabafar com minha melhor amiga. É que não me amam. De uns tempos para cá, ao menos tu começas a me amar um pouco”.

Ana Marg Clément

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Jesus: “A penitência que te imponho é o amor”.

Esprite Jesus: “Os anjos estão extasiados ao ver o amor

com que te amo”.

Marcelina Pauper Jesus: “Só desejo dar-me; mas exijo corações pu-

ros”.

Crescência Hoess “Se eu tivesse mil corações, amaria Deus com todos

os mil corações”. Interrogadas sobre o que estava fazen-do no momento, sempre e em qualquer trabalho, sua res-posta era sempre a mesma: “Amo a Deus”.

Sta.Margarida Alacoque “Estou admirada e estranho que o mundo não corra

após ti, Senhor, com afã”. Ao que Jesus respondeu: “Eu me dou na mesma medida em que a alma se me entre-ga... Estou abrasado do desejo de ser amado”.

Mírian de Abellin Jesus: “Nenhuma alma se perde sem que eu lhe te-

nha falado mil vezes ao coração”.

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Clement Roux Ex-marinheiro, rude penitente durante 28 anos, fale-

cido em 1892, desafia seus ex-colegas de farra: “Loucura por loucura, prefiro ser louco de amor de Deus, a ser lou-co de amor pelo mundo”. “Aliás, Deus declarou-me certo dia: Amei-te desde toda a eternidade”.

Droste-Vischering “Ter brilho e perfume só para Ele: é a única coisa

que o contenta”.

Sta. Gema Galgani Jesus: “Se me amas, farás tudo quanto quero de ti.

Quanta ingratidão, quanta maldade no mundo! E os peca-dores se obstinam em seus erros”.

Visitandina, 1910 Jesus: “Como são raras as minhas esposas nas

quais não encontro numerosas decepções”.

F. W. Faber “Jesus nos pertence. Ele se dignou colocar-se à

nossa disposição. Ama-nos com um amor que nenhuma língua sabe exprimir. Ama-nos mais do que o nosso inte-lecto possa entender, ou a nossa fantasia conceber. E ainda tem a condescendência de desejar que nós o ame-mos. Seus méritos podem ser considerados tanto seus

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quanto nossos. Sua redenção é menos tesouro seu do que nosso”.

“De qualquer lado que lancemos a vista, dentro da Igreja de Deus, lá sempre vemos Jesus. Ele é para nós, princípio, meio e fim. Ajuda-nos em nossas penitências; consola-nos em nossas penas; sustenta-nos em nossas aflições. Podemos exagerar em muitas coisas, mas nunca podemos exagerar a grandeza das misericórdias e do amor de Jesus em nós. A eternidade não bastará para conhecermos o que é e o amor que tem por nós”.

“Reunamos o amor espantoso de todos os santos, que passaram dias ininterruptos em êxtase de amor... Juntemos o amor divino do coração de Maria Santíssima que, segundo Sto. Afonso, supera o amor de todos os anjos e santos juntos. Tudo isso não passa de uma pálida imagem do amor de Jesus por cada um de nós”.

“O que me espanta, não é que ele conduza a tão longe seu amor por nós, mas simplesmente que sinta a-mor por nós... que não temos nenhum título ao seu amor, a não ser talvez nossa miséria e maldade. E tão mal-agradecidos nós somos para com ele”.

Sta. Teresinha “Após a minha primeira comunhão, senti nascer em

meu coração um grande desejo de sofrer... O sofrimento tornou-se meu atrativo; arrebatava-me. Até então, tinha sofrido sem amar o sofrimento. A partir deste dia, senti por ele um verdadeiro amor. Senti também o desejo de amar unicamente a Deus; de não encontrar alegria senão nele. Muitas vezes, após minhas comunhões, repetia as palavras da Imitação (3,26): ó Jesus, doçura inefável, mu-dai para mimem amargura todas as consolações da terra!” (Vida 109).“Sei que ama menos, aquele a quem se per-doa menos. Mas sei também que Jesus me perdoou mais

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do que a Sta. Madalena, pois perdoou-me antecipada-mente, impedindo-me de cair. Jesus não esperou que eu o amasse muito como Sta. Madalena, mas quis que eu soubesse como me amou, com um amor de inefável pre-vidência, a fim de que agora eu o ame até à loucura” (114)

“Compreendi que sem o amor, todas as obras, mesmo as mais brilhantes, como ressuscitar mortos, con-verter pecadores, nada são” (220)

Na tomada de hábito: “Queria tanto amá-lo; amá-lo como nunca fui amado. Meu único desejo é fazer sempre a sua vontade, enxugar-lhe as lágrimas que lhe fazem verter os pecadores” (Carta 51)

“É preciso que haja diferentes famílias, a fim de hon-rar especialmente cada uma das perfeições de Deus. A mim, ele deu uma misericórdia infinita. E é através dela que contemplo as outras perfeições divinas. Então, todas parecem-me brilhantes de amor. Mesmo a justiça (e ela, talvez mais ainda que qualquer outra) aparece com um halo rosado de amor. Que doce alegria pensar que Deus é justo, isto é, que leva em conta nossas fraquezas e co-nhece perfeitamente a fragilidade de nossa natureza. De que teria medo? Deus infinitamente justo, que se dignou perdoar com tanta bondade todas as faltas do filho pródi-go, não deve também ser justo para comigo que “estou sempre com ele?” (Vida 226)

“Só há uma coisa a fazer durante a noite desta vida, a única noite que só virá uma vez: amar a Jesus com toda a força do coração e salvar-lhe almas, para que ele seja amado” (Carta 74)

“No momento de aparecer perante Deus compreen-do, melhor que nunca, que não há senão uma só coisa necessária: trabalhar unicamente por ele, e nada fazer por si mesma, nem pelas criaturas (Carta 216)

“A perfeição consiste em fazer a sua vontade, em

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sermos o que ele quer que sejamos” (Vida 32) “Agora, não tenho mais nenhum desejo, a não ser,

amar a Jesus até à loucura... Não desejo nem o sofrimen-to, nem a morte; no entretanto, amo os dois Mas é só o amor que me atrai... Nada mais sei pedir com ardor exce-to o perfeito cumprimento da vontade de Deus... “Agora, todo o meu exercício consiste em amar (São João da Cruz)” (Vida 223, 224)

“Compreendo que só o amor pode tornar-nos agra-dáveis a Deus, e este amor é o único bem que ambiciono” (236)

E ainda o remate final, com as palavras pronuncia-das nos últimos meses de vida: “Não posso pensar na felicidade que me espera no céu. Uma só coisa faz bater meu coração: é o amor que receberei e aquele que pode-rei dar” (NV 12/VII)

Faziam-lhe uma leitura sobre a felicidade no céu. Ela interrompeu: “Não é isso que me atrai, mas o amor. Amar e ser amada e voltar à terra para fazer amar o Amor” (NV 18/VII). “Nunca dei ao bom Deus a não ser amor. Ele me retribuirá o amor” (NV 22 – VII). “Eu disse tudo: só o amor é que conta” (NV 29 – IX).

Lucie Christine, +1908 Jesus: “A vida sou eu. A parte melhor sou eu. A ca-

ridade sou eu. A caridade de Deus abraça a todos os pe-cadores e todos os justos como numa rede de amor. Nin-guém lhe escapa, a não ser aqueles que o querem abso-lutamente”.

“Ó Senhor, porque jogas pérolas tão belas num monturo? Não encontras servidores melhores do que eu? Serás melhor servido por outrem, do que por mim”.

“Não posso suportar o pensamento de que alguém te ame mais do que eu. Puseste em meu coração este

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desejo como uma chama ardente, mas isto não basta. Faze ainda que eu te faça amar: dá-lhes teu amor”

“A gente ama estes fiapos e fagulhas de amor e de beleza que ele espalha sobre o mundo. Mas no infinita-mente amável, quem pensa? Quem se lembra dele? Nós ao menos... Ó cegos do espírito mundano, se soubésseis o que é Deus... Meu segredo, ardia-me sobre os meus lábios.. Vi o olhar adorável de Jesus... Ele me dizia: “Eu te amo; que te importa o resto?”

“Acontece também que a alma se acha unida à San-tíssima. Virgem de uma maneira especial. Ela o sente como uma laço bendito a firmar sua união com Jesus”.

Jesus: “Que só eu exista em tua alma”. Jesus queixa-se que quer dar-se na comunhão, mas

muitas vezes só encontra corações estreitos... está sobre o altar de braços abertos, mas a maioria não responde ao convite. E ele vê-se forçado a reter os tesouros de amor e de graças que tanto deseja poder distribuir.

Jesus: “Fui eu que comecei tua santificação. Sou eu que a terminarei. Não te perturbes. Não temas. Teu sofri-mento aceito por meu amor é uma oração; permanece unida a mim sem o sentir”.

Jesus: “Tu és a favorita de Deus”. “Eu, Senhor? Mas não possuo nada para ser tua favorita”. “É verdade. Só tens o que eu te dei. Os homens não vêem meus dons mas eu os vejo. Tu és meu sacrário.” “Mas se eu fosse tu, não a mim é que eu escolheria como criatura favorita.” “Mas Jesus gosta de dar-se a quem nada é e nada tem, e felizmente disso sabe.”

“Ó meu amor e meu Deus! Faze que meu coração jamais se esqueça do que viu e entendeu. Minha alma foi repentinamente elevada ao mais alto céu. E ali ela vos contemplava, ó Pai, ó Filho, ó Espírito Santo! Vós a cumu-lastes toda inteira... Meu coração sentiu que tem necessi-dade de Deus em toda a sua plenitude, nas suas três

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Pessoas, e à esta hora estava satisfeita. Esta Trindade adorável imprimiu-lhe um respeito que não tem nome na terra, ao mesmo tempo que a convidava suavemente a repousar nela”.

Jesus: “O coração dos homens freqüentemente está repleto de apegos quando vêm comungar. Podes derra-mar um licor precioso num vaso cheio até a borda? As-sim, meu amor é rejeitado”. Jesus garante-lhe que nunca cometeu pecado deliberado: “O Esposo celeste havia es-tendido seu manto real ao redor desta plantinha frágil. Ela carregava frutos e sementes que recaíram sobre outras almas.”

“Criatura alguma, nem a mais digna, nem a mais querida não será jamais necessária ao nosso coração. Não! Há somente um único ser que o nosso amor recla-ma! Um único que o nosso coração procura... Até o ter encontrado. Há um clamor que parte com espontaneidade das profundezas da alma. Este ser, este grito é Deus. Ó Deus, o mundo não te conhece!”

Jesus: “Queixar-se a mim é rezar. Ora, pois, dize-me tuas mágoas. A mim podes dizer tudo... Sê paciente con-tigo mesma; eu também o sou para contigo”.

“Sua bondade deixa-nos certas imperfeições, a fim de lembrar-nos de nossa miséria e manter-nos na humil-dade”.

“União com Maria Santíssima: a Mãe bendita é o la-ço de união entre Deus e nós. Jesus me fez ver e sentir isto”.

“Não posso e não devo afastar-me de Deus no so-frimento. É preciso aceitá-lo como inseparável do amor aqui na terra. O amor sofre como a voz canta. Ver menos a cruz que aquele que a traz”.

Jesus: “Não temas; sou eu. Toma tudo o que te con-duz a mim e deixa o resto”.

“Deves amar mais o que Deus ama”.

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“Repousa na cruz. Ela não é uma árvore estéril e morta. Tem seiva possante. Traz flores e frutos. Na Cruz não estás só. Teu Deus nela está à tua espera”.

“Sou a misericórdia”. “Sou tudo para ti. Não busques nada fora de mim. Isto não é exigência, é ternura e mise-ricórdia”.

Jesus mostra que encontra poucas almas que con-sintam ocupar-se só dele: “Será que não sou bastante atraente, sem igual, para que as almas estejam satisfeitas comigo e se ocupem de mim?”

Jesus: “Sou eu que vivo em ti, ainda que não me sin-tas... Se não estás perto de mim, estou ao teu lado”...

“Já não sou eu que estou aqui: é Ele. Não me vejo mais: só vejo Jesus. Não sou destruída, mas sua vida a-podera-se de mim; domina-me; absorve-me. Não me co-nheço mais. Só vejo o Filho de Deus real e sacramental-mente presente neste lugar. Eu o adoro: mas a ação divi-na penetra e transforma minha adoração. O ser divino pensa, vive e ama em mim. Não tenho mais vida senão, nele”.

É necessário ocupar e entreter em casa os filhos maiores. Sou costureira, ensaísta, repetidora e diretora de elenco. Mando as cartas de convite, preparando uma re-presentação teatral. “Nossas afeições na terra são um só começo; na outra vida é que atingem seu pleno desenvol-vimento”.

Jesus explica suas predileções: “O amor não tem outra razão de ser, senão ele mesmo”. “O reinado de Je-sus baseia-se em muitos títulos: de criador, de redentor...” “No céu haverá entre os eleitos um pequeno grupo prefe-rido: as almas das quais é esposo.” “Pedi que aumentas-se a fé de meus filhos, e Jesus mostrou-me que ele é mais pai para eles, do que eu a mãe. E disse-me: Reza daqui em diante: Senhor, recomendo-te nossos filhos.”

Jesus: “Nunca me recusaste nada. A última chama-

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da (a morte) também será um apelo de amor e corres-ponderás”.

Maria Marta Chambon, +1907 Jesus: “Ama a vida do céu que te é destinada. Desta

vida é que deves viver quanto possível. O único necessá-rio é possuir Deus”.

Jesus mostra seu coração aberto pela lança: “Eu te ensinarei como deves amar-me, pois não sabes amar-me. A ciência do amor é dada à alma que contempla o divino Crucificado e lhe fala de coração”.

“Minha filha, tenho milhares de almas favoritas. Sou único para cada uma. É um segredo de amor que perma-necerá entre o esposo e a esposa durante toda a eterni-dade”.

Ao ver seu futuro lugar no céu, Marta pergunta: “Bom Mestre, não há nada em mim que me impeça de ali chegar”. Jesus: “Ora, se há! Mas o amor apaga tudo”. “A-qui na terra estamos sempre expostos a ofender-te”. Je-sus: “O amor apaga tudo. Minha união contigo é teu único bem. Nela realiza-se teu progresso e ninguém consegue impedi-lo”.

Jesus mostra chaga do coração: “Sinto necessidade de teu coração, e tu tens necessidade do meu”. “Na inti-midade, do coração a coração, na (oração) eu me refaço da ingratidão dos homens”.

“Minha filha, sobe o Calvário comigo. Quero-te víti-ma, de pé”.

Gertrudes Maria, +1908 Jesus: “Sou um Deus cioso. Quanto mais uma alma

me ama, mais exijo. Ela nunca me dá o bastante. Isto vem do ardoroso amor que lhe tenho... As religiosas não são

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sempre suficientemente religiosas; não são bastante mor-tificadas; não sabem esquecer-se suficientemente”.

Jesus: “Transforma tudo no ouro do amor. Transfor-ma cada uma de tuas ações numa moeda de ouro, para pagar a dívida dos ingratos... Todas as riquezas de meu coração estão ao teu dispor...”

“Senhor, empresta-me o teu coração por hoje; as-sim, ao menos uma vez na vida, te amo quanto mereces”.

Jesus: “O amor me consome e os homens continu-am indiferentes. Se soubesses o que sofro... Meu amor é ignorado. Minhas ofertas ficam sem resposta.” “Sinto em todo o meu ser um fogo que me devora”. Jesus: “Para amar quanto desejas, toma o meu coração”.

Deus Pai: “Não acreditas suficientemente que amo com ternura. Não estás bem compenetrada do pensamen-to que deves ser comigo como uma criança. Há em ti grande sentimento de respeito: quero que o substituas pelo amor filial”.

Jesus: “Dize-me, ainda uma vez, que me amas. Sin-to prazer em ouvi-lo”.

“Ó Jesus, o que é que te atrai em mim?” “Tua gran-de miséria”.

Jesus: “Ninguém sabe até onde iria minha familiari-dade com uma alma que se abandone totalmente em mim”.

Jesus: “Quando alguém pronuncia com grande a-mor: ‘Pai nosso que estais no céu’, uma flecha fere meu coração”.

Jesus: “Deve-se servir a Deus por amor, por puro amor, sem esperar favores”. “Não sabes que sou o Infini-to? Sendo o Infinito, posso variar ao infinito meus dons e minhas graças em cada alma! Minha bondade, minha mi-sericórdia e minha sabedoria jamais se esgotarão, ja-mais!”

Jesus: “Vocês não conhecem o coração do Pai. Vo-

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cês não sabem aproximar-se dele. Vocês não sabem cla-mar “Pai!” Poucas almas na terra usam para com Deus Pai a familiaridade que ele espera de seus filhos”.

Jesus: “Esquece tudo quanto não é Deus”. Gertrudes.: “Outro tormento veio juntar-se aos ante-

riores: o tormento do amor divino. É o sofrimento dos so-frimentos. Sentir como Deus é tão digno de ser amado por seus filhos. Sentir quão pouco o amamos. Quão pouco é amado por seus filhos. É a mais cruel das torturas; todas as outras nada são em comparação. Hoje não pude reter as lágrimas. Chorei, sim, chorei de amor por Jesus. Cho-rei por amá-lo tão pouco. Chorei por ver as penas de seu coração”.

Jesus: “Ama com meu coração”. “Eu te amo, Jesus. Eu te amo com um amor que ja-

mais poderás compreender”. “Se eu mostrasse tua miséria, tal qual ela é, não po-

derias suportar a feiura. Ficarias desanimada; o que não quero; amo-te demais para desconfiar de ti”.

Gertrudes, na união transformante: “Teu amor por mim, ó Deus, me assusta”.

Jesus conduziu-me a uma fornalha acesa: “Tens co-ragem de jogar-te aí dentro? Para alcançar o amor com que me amou Teresa d’Ávila, é preciso passar por esta fornalha do amor divino”.

Jesus: “Quero que me ames como me amaram os grandes santos. Não quero que me ames com moleza, mas com fortaleza, como eles. Não quero que me ames com intervalos, mas sempre, sem pausa”.

“Não deves ter laços que te prendam à terra”. “Minha filha, eu te prometo: não morrerás antes de amar-me com perfeição, e quanto é possível na terra. Prometo. É ne-cessário que fiques reduzida à cinza pelo fogo do amor divino”.

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Carlos de Foucauld, +1916 “Estando triste e abatido, basta ajoelhar-se aos pés

do sacrário e dizer: Senhor, tu és infinitamente feliz e na-da te falta. Portanto, eu também sou feliz e nada me fal-ta”.

“Logo que acreditei que existia um Deus, compreen-di que daí em diante só poderia viver para ele. Deus é tão grande e há uma diferença tão grande entre Deus e o que não é Deus! Vivo aos pés de Jesus, dizendo-lhe que o amo. E ele a responder-me que, por maior que seja meu amor, jamais o amarei tanto quanto ele me ama.”

“Mesmo cumprindo nosso dever, lancemos sem ces-sar nosso olhar para ele, sem nunca dele desprender o coração e os olhos. Fixemos nossos olhos no trabalho apenas o necessário, mas de modo nenhum nosso cora-ção. Quando se ama, pensa-se só numa coisa: no ser amado. Uma única coisa preocupa: o bem-estar do ama-do. A gente sente-se absolutamente incapaz de dar o mí-nimo apreço a outras coisas. Quando se ama, uma só coisa existe: o ser amado. O resto do mundo é como se não fosse, não existisse. Quando um coração ama a Deus, pode haver lugar para preocupações? Para cuida-dos materiais?”

Jesus: “Tu me perguntas em que mais me ofendes? Não me amas com bastante pureza, com bastante exclu-sividade, pois amas a ti e amas as criaturas por ti e por elas. Não deves fazer nada por ti. Nada para as criaturas, por amor de ti, ou por amor delas. Em tudo que tens de fazer, considera somente a mim. Pergunta-te em tudo, unicamente, o que teria feito o Mestre, e faze aquilo. As-sim, tu amas só a mim. Assim, eu vivo em ti. Assim, te perdes em mim. E meu reino terá chegado a ti”.

“Em tudo tenhas em vista só a Deus. Em coisa al-guma tenhas em vista a ti, ou a outra criatura”.

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“Não é possível praticar o preceito da caridade fra-terna sem consagrar a minha vida a fazer todo o bem possível a estes irmãos de Jesus aos quais falta tudo, porque lhes falta Jesus”.

Regina Consolata, +1916 Jesus: “Não se devia amar os homens como eu os

amo. Não se devia morrer por eles como eu fiz. Os ho-mens são minha conquista. Por que o demônio está rou-bando? Ó Benigna, faço questão do amor dos homens! Sou sequioso dele a tal ponto que, encontrando um cora-ção que me abra as portas, eu me precipito ali com todas as minhas graças”.

“Que maus tratos me fazem os pecadores! Mas amo-os, a estes pobres pecadores. Não acho demais es-perá-los, ainda que durante toda a sua vida: contanto, que os tenha na hora da morte. Então serão meus, por toda a eternidade”.

“Odeio o pecado, mas amo o pecador. Amo a cada alma, como se ela fosse a única no mundo”. “Faço tudo quanto posso para salvar as amas mas quando me pe-des, faço ainda mais”. “Estou esmolando o amor das cria-turas, e elas mo recusam, enquanto o dão a tantas coisas que dão na vista”.

“Se soubesses, ó Benigna, quanto é doloroso amar tanto e não ser amado! Não faço afrontas. Continuo pe-dindo o amor e ninguém mo dá; pelo contrário, me odei-am”. “São as preces dos justos que desarmam minha jus-tiça divina”.

“Não podes acreditar, minha esposa, quanto prazer eu sinto na companhia das minhas criaturas. Ando à pro-cura de corações que me amem. E como acho poucos, derramo sobre este pequeno número a plenitude de mi-nhas graças. Amo tanto as almas que ficam fiéis. Benig-

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na, se soubesses a fome que tenho de ser amado pelas almas! Eu as amo e não sou amado tanto quanto desejo. O mundo não acredita neste meu desejo. Mesmo os que acreditam, acreditam pouco. Eu queria falar a todos os corações, mas não me querem escutar. Quando encontro um que se abre às minhas graças, a este coração eu i-nundo”.

“Há por aí uma idéia estreita demais sobre a bonda-de de Deus, sobre sua misericórdia e sobre seu amor pe-las criaturas. Mas Deus não é tão estreito. E sua bondade não conhece limites”.

“Escreve, ó apóstola da minha misericórdia, que a principal coisa que desejo é que se saiba que sou todo amor, e que a maior pena que se possa causar ao meu coração é duvidar da minha bondade. Meu coração não somente se compadece, mas se rejubila quanto mais es-tragos encontra a consertar, contanto que não haja mal-dade. Se tu soubesses o trabalho que eu faria numa alma, ainda mesmo que cheia de misérias, se me deixasse a-gir!”

“O amor não precisa de nada; basta se não encon-trar resistência. E, muitas vezes, tudo o que quero de uma alma, para fazer dela uma santa, é que me deixe agir. As imperfeições, quando não se lhes tem afeição, não me desagradam, mas atraem a compaixão de meu coração. As imperfeições devem ser degraus para subir a mim pela confiança e pelo amor”.

Maria Angélica, +1919 “Senti-me de repente e fortemente presa por Jesus.

Era o Amor, e eu estava como que envolvida, absorvida. Vi que ele me amava com loucura. Mostrou-me minha alma pequenina: vi que era radiosa, resplandecente de luz. Ao mesmo tempo, Jesus mostrou que todo este es-

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plendor, toda esta beleza vinha dele; que era obra sua. Ele fizera tudo isso, num pequeno nada impuro... Parecia triunfante pelo que fizera. Ao mostrar-me que tudo provi-nha dele e que eu era nada, foi como uma luz ofuscante a inundar-me a alma”.

“Ele quer que eu abandone todas as criaturas para ocupar-me só dele e do meu dever; que me abandone para amar só a ele. Repreende-me quando tenho ainda mesmo que só um pouquinho de cuidado de minha alma. E diz: Deixa aí teus interesses, minha filha, e não te ocu-pes senão com os meus. Minhas pequenas esposas de-vem pensar mais em amar-me do que em santificar-se. Tu és o pequeno nada e eu sou tudo”.

“As criaturas parecem-me todas tão pobres, verda-deiros nadas. Não me atraem mais”. “Creio que agora toda afeição natural me será impossível. Mas sinto que por isto mesmo posso amá-las tanto melhor. Agora todo o amor em mim é caridade. É o que procuro realizar de ma-nhã à noite”. “Compreendi que Jesus é tão louco de amor, que agora não estranho mais nada da parte dele. O que estranho é minha lentidão, minha lerdeza em amá-lo”.

“Encontrei-me diante da Santíssima Trindade. Era o infinito... Não via nada. Somente o intelecto via, admirava, adorava. Eu não era mais nada. Jesus fez-me entender que ele seria meu mediador junto ao Pai e ao Espírito Santo em prol das almas”.

Jesus: “Para provar-me teu amor, vi que eras capaz de sofrer”.

“A vida da alma está na oração. Porque aí ela se une plenamente a Deus”.

“Parecia-me que Jesus me revestira de sua santida-de, como uma esposa ornada com suas jóias. Jesus per-gunta: quem és tu? Respondi por três ou quatro vezes: um nada. Depois me disse: tu és a minha esposa. Vi que ele me tratava como esposa e que seus tesouros eram

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meus”. Jesus: “Quanto mais uma alma se sente miserável,

tanto mais tem direitos sobre o meu coração”. “Jesus tem tanta necessidade de almas que queiram

sofrer por seu serviço.” “A vida de união é o que há de mais importante, e é

a menos compreendida. Tudo se baseia na oração”. “Para elevar-se ao amor é necessário crucificar sem

cessar o que não é amor. Amor sem cruz é impossível”. Jesus: “Peço-vos o sofrimento como meio de amor”. “Jesus sabe, às maravilhas, moer seu trigo e tratá-lo,

para dele fazer um pão bem branco que se tornará hós-tia”.

“Nada esperar de nós, tudo esperar de Deus”. “Rezemos à Santíssima Virgem, pois ela torna suas

filhas agradáveis a Jesus”. “Queria transformar todas as almas em almas de

luz... Toda a minha vida será amar a Jesus e torná-lo a-mado”.

Josefa Menendez, +1923 Jesus abraça-a e aperta-a ao seu coração: “Vês co-

mo te seguro para que não possas mover-te sem mim: é assim que quero prender minhas esposas”.

“Se me amas fico sempre perto de ti”. “Tua miséria me atrai. Sem mim, o que serias?

Quanto menores fores, mais perto de ti estarei”. “Não peço que mereças as graças que te dou. Que-

ro apenas que as recebas”. “Quero apenas o amor das almas, mas elas respon-

dem com ingratidão. Quero enchê-las de graças, mas elas traspassaram-me o coração. Chamo-as e elas fogem de mim”.

Josefa foi fechar as janelas de um corredor. Apare-

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ce-lhe Jesus: “Donde vens?” “Fui fechar as janelas.” “Para onde vais?” “Vou terminar”. “Não sabes responder, Jose-fa: Venho do amor e vou para o amor”.

“Não tenhas medo. Sabes que é loucura de amor o que sinto por ti”.

“Dize-me que me amas. É o que mais me consola”. “Não te aflijas demais pelas tuas faltas. Para fazer

de ti uma santa, não preciso de nada. Não resistas ao que peço e deixa-me agir”.

Josefa repete na aridez: “Amo-te meu Jesus.” E de repente, Jesus responde: “Eu também”.

Ao varrer o corredor, Jesus pergunta: “Por quê estás fazendo isto?” “Por teu amor. Vê quantos ladrilhos: tantas vezes digo que te amo”.

Maria Santíssima: “É bom que sofras em silêncio, mas sem angústia. Que ames muito, mas sem sabê-lo. Se tropeças, não te aflijas demais. Nós dois estamos aqui para te levantar”.

“Se tu és um abismo de miséria, eu sou um abismo de bondade e de misericórdia. Repito mais uma vez: Pou-co me importa tua miséria... meu coração acha consolo em perdoar. Servir-me-ei de ti porque és miséria. Ao que te falta, suprirei. Deixa-me fazer”.

“Tiro o bem mesmo das maiores quedas. Olha mi-nhas chagas. Sabes quem m’as fez? O amor. Sabes quem me enterrou esta coroa ? O amor. Sabes quem me abriu o coração? O amor”.

“Venho descansar em ti. Quero que me consoles. Que penses muito em mim. Que me ames com tal ardor que só eu ocupe teus pensamentos e teu desejo. Não temas sofrer. Sou bastante poderoso para cuidar de ti. Não te ocupes senão em amar-me”.

“Meu coração é o trono da misericórdia. Os mais mi-seráveis são os mais bem recebidos. Fixei meus olhos em ti, porque és pequena e miserável. Eu sou tua força”.

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“Encontro poucas almas que respondam ao meu amor. Eis o que desejo: envolver-te, consumir-te a fim de ser eu quem viva em ti”.

Jesus segura seu coração na mão: “Eis a prisão que te preparei desde toda a eternidade”.

“Miséria e nada, eis teu nome. Quem é pequena é ainda alguma coisa. Mas tu Josefa, tu és nada. Servir-me-ei de ti para mostrar que amo a miséria, a pequenez e o nada. Darei a conhecer às almas o quanto meu coração as ama e lhes perdoa, e como suas quedas me servem de complacência. Sim, escreve isto: de complacência. Vejo o íntimo das almas seu desejo de agradar-me, con-solar-me, glorificar-me. E o ato de humildade que são o-brigadas a fazer, vendo-se tão fracas, é justamente o que consola e glorifica o meu coração. Pouco me importa sua pequenez. Supro o que lhes falta”.

“Muitas almas me recebem bem quando as visito com a consolação. Mas quando lhes bato à porta, com minha cruz, poucas abrem-se de bom grado”.

“É amor que procuro. Amo as almas e espero a res-posta de seu amor”.

“Não procuro nem grandeza, nem santidade. Procu-ro amor e farei eu mesmo, todo o resto”.

“Pensa sem cessar em mim; as almas me glorificam tanto quanto se lembram de mim”.

“Há tantas almas que me esquecem e tantas que se ocupam com mil futilidades, e me deixam só durante dias inteiros”.

“Se vos peço amor, não mo recuseis E é tão fácil amar aquele que é o próprio amor”.

“Maria, minha mãe, glorificou-me mais que todos os espíritos celestes juntos; é a ela quem mais amo no mun-do”.

“Quero teu coração. Hoje, vou arrancá-lo e porei em seu lugar uma centelha do meu...” “E Jesus partiu levando

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meu coração e agora sinto no peito um fogo quase insu-portável”.

“Dai-me vosso coração vazio: eu o encherei. Sou vosso complemento”.

“Não pensem que vou falar de outra coisa senão da minha cruz. Salvei o mundo pela cruz Vou reconduzi-lo à fé e ao amor pela cruz”.

“Se tu és fraca, eu sou forte. Se tu és miséria, eu sou o fogo consumidor”.

“Amo todas as almas. Mas tenho predileção pelas mais fracas e mais pequenas”.

“Esta chaga (do coração) é o vulcão onde quero que se inflamem as almas”.

“Que fizestes, Josefa, para merecer o céu?” “Nada, Senhor, mas prometestes dar-me teus méritos”. “Deixa-me escolher a hora.”

Maria Santa Cecília, +1929 “Jesus deu-me seus olhos, seus ouvidos, seus sen-

tidos; isto quer dizer que ele é a vida da minha vida”. “A-mo em ti e por ti. Daqui em diante te chamarás Jesus. Mas quando fizeres alguma falta ou tolice, te chamarei de Cecília”.

“Se conhecêssemos este tesouro infinito (da cruz) dia e noite não cessaríamos de dirigir a Deus súplicas ardentes a fim de obtê-lo. Se compreendêssemos o valor de nossas cruzes, ficaríamos paralisados de alegria e feli-cidade ao recebê-las. Provações, tribulações, angústias, provocariam nossos cantos de alegria e espontaneamente entoaríamos o Te Deum. Jesus abraça a cruz com paixão. Ama-a até à loucura. E quando nos presenteia com uma parcela desta riqueza mística, hesitamos em estender a mão”.

“Saboreio a felicidade perfeita, e ao mesmo tempo o

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favor inestimável de ressentir a agudeza do sofrimento”. “Estou pedindo a Jesus amor sem medida e sem limites, a fim de satisfazer o desejo insaciável que o tortura de dar-se às almas. Bem poucas almas se deixam invadir por suas torrentes de felicidade. O amor procura corações abertos. Infelizmente só encontra recusas. Não o querem receber. Têm receio de se abandonarem a ele. Têm medo que lhes falem de renúncias. A abnegação é apenas um tênue envelope que envolve a pérola preciosa. Se con-sentimos em morrer a nós mesmos, o invólucro se rasga”.

“Não existo mais. Meu ser foi aniquilado. Meu substi-tuto, Jesus, trabalha em meu lugar”. “Devo dar, irradiar, derramar o amor de seu coração”.

“Sinto-me fraca, pobre e incapaz. Por causa disto minha confiança é como oceano sem horizonte, deglutin-do o abismo de minhas misérias. A bondade de Deus: eis a minha segurança”. “Sofro muito interiormente: como é bom isto”.

“Jesus ordena-me rezar pelas almas consagradas. O dom de Deus para elas é seu Coração. Ah! Se o conhe-cessem! Desde algumas semanas (precedera uma estig-matização invisível) Jesus compraz-se em chamar-me seu pequeno “Eu”. Ele tomou meu lugar”.

Jesus: “Meu coração pensa continuamente nas al-mas e a maior parte não se interessa por mim. Estou à procura de uma alma que represente a humanidade intei-ra. Uma alma à qual eu possa dar a graça de pensar con-tinuamente em Deus. E escolhi a ti. Quero passar ao teu nada o meu pensamento de Deus”.

Jesus: “Por minha Mãe Santíssima dou-te a graça de pensar continuamente em mim, de pensar em Deus. Dou-te o meu pensamento contínuo de Deus, meu pen-samento de amor. Meu coração pensa sem cessar nas almas. Mas elas, mesmo as consagradas, esquecem-me tantas vezes”.

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“Meu coração eucarístico gosta de fazer confidên-cias às almas. É como que uma necessidade. Mas encon-tro poucas almas que o compreendam. Para receber mi-nhas confidências íntimas, requer-se uma alma muito pu-ra, que se esforce em pensar e agir somente por mim”. “Deixa-te penetrar por minha ternura. Dou-te meu pensa-mento, hoje e amanhã. Quero que me consoles, sobretu-do em nome das almas consagradas”.

“Como, Jesus?” “Sempre, do mesmo jeito: com a-mor e sacrifício. Com a atenção voltada continuamente para o cumprimento da minha vontade”.

“Jesus fez-me ver a multidão inumerável das almas consagradas, como ele as viu no horto de Getsêmani. Jesus disse-me: “Olha todas estas almas consagradas. A maior parte vive em união comigo. No entanto, não me retratam de um modo mais perfeito. Vê esta aqui: tu me reconhecesses nela, mas conserva apegos que me impe-dem de lhe conceder grandes graças. Esta outra me irra-dia mais; me ama mais, mas meu coração está ferido por pequenos espinhos: são as pequenas coisas que ela me recusa. Esta outra: minha imagem é apagada e fraca; mãos, pés e coração estão ligados por cordas. É uma al-ma tíbia e minha ação nela está paralisada...” “Ó Jesus, como tu és belo nesta alma!” “Ela não me recusa nada. Não vês nada que seja dela. Já me coloquei em seu lu-gar. Posso derramar livremente os tesouros do meu cora-ção. Ela me consola”.

“Sentindo-me em presença da santidade infinita, ex-clamei: “Ó Jesus, como sou culpável!” Jesus: “Não olhes para ti. Confia na minha misericórdia. Justamente por se-res fraca e miserável é que te escolhi”.

Jesus: “Poucas almas, mesmo religiosas, consentem em viver do Infinito durante sua vida terrestre. No entanto, só o infinito pode satisfazer seu coração”.

Jesus: “Perdem-se muitas vocações sacerdotais e

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religiosas. É o medo da renúncia e do sacrifício. Querem gozar livremente. E têm medo de entregar-se a Mim”.

“O mundo ofende-me (no carnaval). Os religiosos esquecem-me... sua piedade é superficial... seu amor, sem profundeza. Sou tão sensível a um amor desinteres-sado!” “Procuro amor. Sou tratado como um ser ausente... Deixa-me dar-te todo o meu amor. Gosto, tenho necessi-dade de dar-me todo inteiro”.

“Muitas almas consagradas não sabem o que é a renúncia perfeita. Não estão desapegados do amor pró-prio. Com tão poucos posso comunicar-me quanto dese-jo”.

“Meu prazer é retratar-me nas almas que criei por amor. Acho prazer imenso em transformar uma alma em mim, em deificá-la, em absorvê-la toda inteirinha na divin-dade”. “Jesus, como estás triste!” “Não me amam suficien-temente; amam-me demais pelo próprio interesse. A mai-oria tem medo de amar-me por mim. São numerosos de-mais as que não compreendem que os sacrifícios, que lhes peço, são chamas de amor, que se evadem do meu coração divino para atrair e santificar o coração humano”.

“Como obter a graça da união?” “É só pedir. Dou es-ta graça a toda alma que ma pede”. “Jesus, sabes como somos fracos, caímos muitas vezes...”

Jesus: “Então? É só levantar-se com muito amor. Retornar a mim sempre de novo. Contar comigo. Grande número de religiosos não contam comigo. Eis o que vos falta; deveis contar comigo em tudo: nas dificuldades, pe-nas, lutas, mesmo nas quedas e faltas. Contem comigo, sem receio de contar demais.”

“Quero absorver-te a tal ponto que eu esteja em teu lugar. Quero deificar-te, assim como uni a humanidade à minha divindade na encarnação. Quero que a santidade de meu Pai se realize em ti, por mim”.

“Jesus, que queres para teus sacerdotes?” “Amor,

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amor. Tanto deles não me sabem amar”. “Como é bom amar-te, ó Jesus.” Jesus: “Se soubes-

ses como é bom para meu coração ser amado”.

Martucchi “Só Jesus pode encher um coração. Quero ser um

holocausto perfeito de todo o meu ser, consumido pelo amor divino, a fim de igualar-me à imagem do Filho de Deus crucificado”.

“Só ele é a plenitude. Todavia é difícil para ele entrar em concorrência com um ser que se vê, se ouve, se sen-te... Custa. Corta. Rasga. Sangra o coração. Mas Jesus também teve suas mágoas. E piores que as minhas: cruz, espinhos... E tudo porque me amou”. “Por isso tenho ne-cessidade dessa entrega total, desse morrer a tudo, para ser como ele, e para mostrar-lhe que o amo. Quero dar-lhe as primícias, o melhor que tenho, minha juventude ardorosa, minha vida exuberante, meus vinte anos de fo-go e de entusiasmo, todas as minhas ilusões...”

“Amá-lo apaixonadamente como ele me amou” (Y di-je si, p. 360ss.)

Antonietta Cheuser, +1918 “Poder amar a Deus, com o mesmo amor de Deus, é

privilégio de toda a alma em estado de graça. Mas uma coisa é saber isto pela fé; outra coisa, é senti-lo por uma espécie de experiência direta” (PLUS, Consummata, 180)

A “desapropriada por utilidade pública”, como Anto-nieta se chama certa vez, descreve sua experiência: “É um amor tão forte e tão vivo que se enraíza profundamen-te em Deus, dando origem a uma confiança tão audacio-sa, que não duvida de nada. A alma tem de tal forma consciência do poder e do amor infinito do Pai que, sen-

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tindo esse poder, mal tem necessidade de pedir. Parece-me que tudo é de ambos, e que a licença que me dá para beber o seu amor só tem por limite esse amor infinito”.

“Espalhar neste mundo o reino da verdade e do a-mor, essa é, creio, minha missão. Quisera deixar, como sinal de minha passagem nesse mundo, unicamente um raio luminoso de verdade e um grande incêndio de amor divino” (Cartas, 160)

EPÍLOGO

1. GRANDES DESEJOS Para gente pequena subir mais alto no céu (do amor

divino) vai este capítulo. Abre tua Bíblia. Nosso Senhor te diz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de santi-dade, porque serão saciados” (Mt 5,8). E ouve a voz sua-ve de nossa Mãe do Céu: “Minha alma engrandece ao Senhor... Porque ele sacia de bens os famintos” (Lc 1,53) os famintos de Deus...

Cá na terra somos todos indigentes, pobres, paupér-rimos. Só nos resta pedir de esmola a riqueza do céu, a única que nos interessa: o amor de Deus.

Ensina Sto. Agostinho “que toda a vida cristã consis-te em santos desejos”. Os desejos valem pelas obras. Ao menos para nós, gente pequena, que outra coisa não te-mos para dar.

Morreu, no Mosteiro de Sta. Madalena de Pazzi, uma jovem de poucos anos de vida religiosa, Maria Bene-dita Vettori, em 1598. Ficou por cinco horas na “sala de espera”, por um pequeno ato de amor próprio. Na missa de enterro, Sta. Maria Madalena de Pazzi caiu em êxtase, vendo-a na glória “acima de muitas outras virgens, con-templando face a face a humanidade e a divindade do Verbo. – Ó Feliz de ti, que soubestes aproveitar o tesouro

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escondido! Ó coisa grandiosa! Poucos méritos haveria de remunerar o Verbo de Deus se considerasse somente as obras externas. Breve foi tua vida, mas grandes e ininter-ruptos foram teus bons desejos! Ó grandeza das obras internas tão pouco compreendidas! Mais vale um ato in-terno, que mil obras exteriores. Ó filhinha minha, quando ainda estavas conosco na terra, caminhando, comendo, trabalhando, sempre permanecias unida a Deus. Não me admiro que te tenha chamado tão depressa para junto de si. Agora, na glória, não andas mais de cabeça baixa, mas com passo triunfante e venturoso marchas através dos coros celestiais. Deus seja louvado!”

Bons desejos são atos de amor. E um único ato de amor é mais valioso que mil obras exteriores. “Um único ato de amor a Deus é mais perfeito do que uma estátua de Miguelangelo. Mais firme do que o fundamento dos Alpes. Todas as coisas, em comparação, não passam de bolhas de sabão... Um ato de amor é uma obra perfeita. Atua mais que qualquer outra obra. E é tão fácil: um olhar da alma para o alto... Rápido como um raio, atravessa o universo e brilha como estrelinha no trono de Deus (F. W. Faber)

Ó riqueza do amor divino! Cada palavra, um ato de amor. Cada gesto, um ato de amor. Os mil afazeres que tentam distrair-nos, mil atos de amor. Cada passo, um ato de amor. Cada suspiro da alma nos conduz para mais perto de Deus. Cada gemido, um sorriso para Deus!

Portanto, bons desejos são ações, são obras saluta-res que abrem o Coração de Jesus; abrem as portas do céu. Consolo para nós, pobres de espírito, indigentes da graça. Basta desejar. E a bondade de Deus aceita a boa vontade. Contenta-se com o bom afeto do coração. As-sim, abrem-se novos horizontes, nascem novas esperan-ças. Das míseras criaturas que nós somos, fracas, subnu-tridas, subdesenvolvidas, nosso Pai do céu, contenta-se

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em receber bons desejos. Que alívio! Pois desejamos re-almente, sinceramente ser bons. Desejamos amar a Deus acima de tudo; sinceramente, até mesmo acima do nosso próprio coração. Mas, quantas vezes nos obedece e nos põe diante de fatos consumados... Podemos, pois, alegrar a Deus com bons desejos...

Nossos bons desejos têm valor salutar, porque são atos de amor. Por serem fáceis de fazer, têm o peso do amor divino. Valem perante um coração enamorado, co-mo é o coração de Deus por nós. Eis porque aquela irmã-zinha, colega de Sta. Maria Madalena de Pazzi, pôde vi-ver triunfante na glória, “porque amou”.

Valem nossos bons desejos, porque Jesus supre o que falta. Supre com prazer, basta convidá-lo para isto. Supre com os recursos imensos do seu Coração, que en-cerra os méritos infinitos da paixão.

Sta. Gertrudes escusa-se: “Ai de mim, indigna que sou de estar com os coros celestes”. E ouve a resposta da Santíssima Virgem: “Tua boa vontade supre tudo”. Je-sus reafirma: “Em virtude da minha divindade, dou-te ple-no perdão de todos os teus pecados e negligências”.

Jesus oferece-se para substituir, no coro das mon-jas, uma cantora rouca e desafinada. E como nós, em nossa vida cotidiana, cantamos também tão desafinados o louvor de Deus, convidemos Jesus a cantar por nós. Jesus repete: “Minha bondade aceita o desejo e a boa vontade como ato... Basta que o homem deseje ter gran-des desejos, mesmo que não os consiga realizar: perante Deus, vale o que deseja desejar”. É a realização de Rm 8,34 e Hb 7,25: “sempre intercedendo por nós”. “O que descuidastes (foi um dia de faxina geral no mosteiro) eu supri”.

Sta. Matilde, mestra e amiga de Sta. Gertrudes, re-corre também a esta substituição espiritual; já citamos os textos respectivos.

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Valem nossos bons desejos, porque nossas obras-virtudes espirituais não são nossas. São obras de Jesus. Ele tem de operar em nós “tanto o querer como o fazer” (Fl 2,13). Valem nossos bons desejos porque somos parte do Corpo místico. Valem porque os murmuramos ao ouvi-do de Jesus, nosso irmão.

Sejam grandes nossos desejos, porque se endere-çam a Deus, imenso como o céu. Sejam dignos de um Deus infinito, infinitamente poderoso, infinitamente bondo-so, infinitamente amável. Adverte Sta. Teresa: “Não res-trinjamos nossos desejos. Sua Majestade é amigo de gen-te corajosa e animada... Espanta-me ver quanto importa neste caminho animar-se a grandes coisas” (Vida 13,2)

Deus gosta de gente de iniciativa. “Tudo posso na-quele que é minha força” (Fl 4,1).

2. CONFIANÇA Mais um capítulo para gente desanimada, para gen-

te sem muita fé no amor de Deus. Disse Jesus a Sta. Ca-tarina de Sena: “Os pecadores, que no fim da vida deses-peram por causa de seus pecados, ofendem-me com es-se único pecado mais do que com todos os outros, pois destroem, por assim dizer, minha misericórdia infinita, que é infinitamente maior que toda a malícia humana”.

Disse Jesus a Sta. Brígida: “Eu sou o supremo amor. Tudo quanto fiz desde toda a eternidade, fi-lo por amor; e tudo quanto faço, e futuramente farei, procede e procede-rá de meu amor. Meu amor aos homens ainda é tão gran-de, tão incompreensível... como foi quando salvei os elei-tos por minha própria morte. E se fosse necessário morrer tantas vezes quantas almas há no inferno, com a máxima prontidão e com o máximo amor sacrificaria minha vida por cada alma”.

Disse Jesus a Sta. Gertrudes: “A confiança alcança

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tudo facilmente”. E em outra oportunidade: “O olhar da alma amante, que fere meu coração, é a confiança inaba-lável, a firme convicção que eu tenho poder, saber e que-rer para ajudá-la em tudo. Tal confiança força minha mise-ricórdia com tal ímpeto que é impossível recusar-me”.

Diz o Pai Eterno: “Amei-te com amor eterno e te a-

pertei ao coração” (Jr 31,3). “Não quero a morte do ímpio. Quero sua conversão

e sua vida eterna” (Ez 33,11). “Se os vossos pecados fo-rem rubros com escarlate, tornar-se-ão brancos como a neve. Se forem vermelhos como carmesim, ficarão bran-cos como a lã” (Is 1,17). “Quanto o céu se eleva acima da terra... quanto o Oriente dista do Ocidente, assim, afastou de nós nossas maldades” (Sl 103, 11).

Diz o Filho de Deus: “Em verdade, em verdade (juro-

vos): tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei” (Jo 14,13).

“Se tiverdes fé como um grão de mostarda... nada vos será impossível” (Mt 17,21).

“Tudo é possível a quem crê” (Mc 9,23). Fé no poder, na bondade, na misericórdia de um

Deus Infinito. Diz o Espírito Santo: “Quem tiver sede, venha bus-

car água viva, gratuitamente” (Ap 22,17). Repetem os apóstolos de Deus: João: “Conhecemos e confiamos no amor de Deus”

(1 Jo 4,16). Paulo: “Tudo posso naquele que é minha força” (Fl

4,13). Repetem os carismáticos através dos séculos: O

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amor de Deus por nós é infinito, incrivelmente infinito. São Vicente Ferrer prega com tal veemência e un-

ção sobre este amor de Deus por nós, miseráveis pecado-res, que uma pecadora pública prorrompeu em soluços. E tal foi sua dor dos pecados, tal o seu amor por um Deus bondoso, que o coração se rompeu; caiu morta no chão. “Já está na glória de Deus”, concluiu o santo, seu sermão.

Tal a mensagem de Sta. Teresinha: “Nunca se pode

ter confiança demais em Deus”. “Sinto que se fosse pos-sível, encontrares uma alma mais fraca, mais pequenina que a minha, tu a cumularias de favores maiores ainda, contanto que ela se abandonasse com inteira confiança à tua misericórdia infinita” (Vida 254). A sua autobiografia termina com este apelo de confiança tão consolador para nós, pobres pecadores: “Sinto que, embora tivesse na consciência todos os pecados que se podem cometer, iria com o coração partido de arrependimento lançar-me nos braços de Jesus, pois sei quanto ele ama o filho pródigo”. Dois meses antes de morrer pediu que completassem o texto: “Dize, minha mãe, que se eu tivesse cometido todos os crimes possíveis, sempre teria a mesma confiança. Sentiria que essa multidão de ofensas seria como uma gota d’água lançada num braseiro ardente” (Vida 320)

Tal a mensagem de Benigna Consolata. “Descobrin-

do em mim um sem número de misérias, fiquei toda con-fusa, quando ouço Jesus dizer-me com brandura: Venda-se à minha misericórdia”. Jesus manda escrever: “A alma nunca deve ter medo de Deus, porque Deus está sempre disposto a usar de misericórdia. O maior prazer do cora-ção de teu Jesus está em levar ao Pai o maior número possível de pecadores. São suas jóias”. “O maior prazer que se me possa dar é acreditar no meu amor. E quem

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me quer dar um prazer imenso, não deve pôr limites a esta confiança”.

“Sou todo amor. A maior mágoa que os homens me possam causar é duvidar da minha bondade. Meu cora-ção não só se compadece, até mesmo se regozija quando encontra muita coisa para corrigir e aperfeiçoar... Se para todos sou bom, sou boníssimo para aqueles que em mim confiam. As almas confiantes arrebatam, roubam minhas graças”. “Minha misericórdia alimenta-se de misérias. Cresce tanto quanto maior o número dessas misérias. Ó Benigna, se os homens soubessem quanto eu os amo e quanto se rejubila meu coração, quando se crê em meu amor... Podem os pecados ser enormes e numerosos, estou sempre disposto a tudo perdoar, a tudo esquecer.”

“Benigna, tu és a apóstola da minha misericórdia; escreve, que faço as minhas melhores obras primas com os mais miseráveis elementos, contanto que me deixem trabalhar”. “O maior dano é a desconfiança. É certo que cem pecados me ofendem mais que um; mas se este um é uma desconfiança, magoa-me no íntimo do coração”.

“Não podes calcular o prazer que sinto em cumprir minha missão de Salvador. É a minha maior consolação. Faço minhas maiores obras-primas com as almas que arranquei do abismo do mal. Pecados e imperfeições são pedras preciosas; eu as transformo em atos de humilda-de... Se os homens, na construção de casas, pudessem aproveitar as ruínas e os entulhos como material de cons-trução, que vantagem seria. A alma confiante transforma suas faltas em pedras fundamentais do edifício de sua perfeição”.

Tal a mensagem de Josefa Menendez. Jesus: “O meu amor e a minha misericórdia para

com as almas não conhece limites. Desejo perdoar. Re-pouso perdoando. Estou sempre esperando com amor a

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volta das almas. Não desanimem. Não tenham medo. Sou seu pai”.

“Não é o pecado que mais fere meu coração. O que o despedaça é que não venham refugiar-se em mim, de-pois de terem pecado. Desejo perdoar. Quero que se a-nuncie isto a todo o mundo”

“Quero que todos saibam que sou o Deus do amor. Amo tanto as almas que dei minha vida por elas. Desejo que venham lavar suas faltas, não com água, mas com meu sangue. Quero que creiam na minha misericórdia. Que espere tudo da minha bondade. Que não duvidem nunca do meu perdão. Por isso, inclina-se para os pobres pecadores com infinita misericórdia”. “Amo as almas quando humildes vêm pedir perdão do primeiro pecado. Amo-as, quando choram seu segundo pecado. E se esse se repetir um bilhão de vezes, digo: um milhão de bilhões, amo-as e perdôo sempre. Lavo no mesmo sangue o pri-meiro e o último pecado”.

“Não me canso das almas. Meu coração sempre as espera, por mais miseráveis que sejam. Eis o que desejo explicar; ensinem-no aos pecadores: a misericórdia do meu coração é inesgotável. Ensinem às almas frias e indi-ferentes que meu coração é fogo. Ensinem às almas pie-dosas que o meu coração é o caminho da perfeição. En-sinem às almas consagradas, aos sacerdotes, aos religio-sos, às minhas almas escolhidas... Peço-lhes mais uma vez que me dêem seu amor e nunca desconfiem de mim. Que me dêem sua confiança. Não duvidem de minha mi-sericórdia. É tão fácil esperar tudo do meu coração”. “Olha minhas chagas! Aqui quero introduzir os pecadores”.

3. PRESENÇA DE DEUS O exercício da presença de Deus é a realização

concreta desse capítulo sobre o “Amor de Deus”. É uma

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das práticas fundamentais da espiritualidade. São Fran-cisco de Sales diz certa vez (Filotéia 2,13), e Sto. Afonso o repete, que em certas ocasiões e necessidades, até a meditação diária pode ou deve ser dispensada. Mas o exercício da presença de Deus é indispensável e insubsti-tuível. Pode e deve ser praticada em quaisquer apuros e apertos, tribulações e doenças da existência humana. Consiste em “pensar” atos de amor de Deus. Não é ne-cessário recitar fórmulas, isso só atrapalha. Basta um pensamento de amor de Deus, dirigido não ao céu lon-gínquo e distante atrás das estrelas, mas ao céu que está dentro de nós.

O pensamento seja freqüente. Seja renovado com uma suave pertinácia no decorrer das horas. Ideal seria o pensamento-amor contínuo, ininterrupto. Mas não é pos-sível. Nossos nervos não suportam uma tensão tão conti-nuada. Quem tem força de vontade e vive num ambiente escolhido consegue a realização quase ininterrupta, mas corre o perigo de um esgotamento nervoso, porque os nervos gastam assim seu “fosfato” sem ter os necessários intervalos de descanso para recuperar os gastos. Tome-se em consideração que os nervos não são de aço.

Portanto, uma pertinácia suave, tolerante, paciente. Tolerante com as numerosas interrupções e todavia tei-mando suavemente na freqüência do pensamento-amor. Pertinácia impertinente, mas suave e humana. Em geral, as mil distrações dos mil afazeres de cada dia encarre-gam-se de fornecer as pausas necessárias.

Existe o pensamento-amor contínuo, ininterrupto, de sol a sol e noite a dentro. Mas é dom, graça. Nossa tarefa é a perseverança suave e amorosa em saudar o Deus presente em nós com assiduidade e freqüência. Até ele querer dar-nos esse dom extraordinário, por espaços de tempo mais ou menos prolongados. E nos intervalos, con-tentemo-nos (e Jesus concorda) em executar nossa tarefa

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cotidiana, nossos trabalhos e afazeres, por amor de Deus, e porque também esses são atos de amor divino. “Tocar no órgão uma peça de Bach e pensar durante esse tempo intensamente e ininterruptamente em Deus, é sobrenatu-ral” (Fidelis Weiss, OFM 1923)

Frei Lourenço, soldado, eremita, carmelita, morto em 1693, afirma que ao dirigir sua numerosa equipe auxiliar na cozinha conventual de Paris, fica mais recolhido do que na meditação na capela. Ficamos admirados ao ouvir tal coisa. Mas isso, também está acima do natural.

Disse Sta. Teresinha: “Li, há tempo, que os israelitas construíram as muralhas de Jerusalém trabalhando com uma mão e segurando na outra a espada. É bem a ima-gem do que devemos fazer: trabalhar só com uma mão e com a outra, defender a alma da dissipação que a impede de se unir a Deus” (Conselhos 88)

E, logo mais, a confidência à Celina: “Creio que nun-ca fiquei três minutos sem pensar em Deus”. “Mostrei-me admirada por ser possível uma tal aplicação”. “Pensa-se naturalmente em quem se ama, replicou” (Conselhos 90)

Por numerosas vezes repetimos que santidade cristã não é força de vontade, treino, método, mas dom, fruto da prece. Aqui, tocamos num ponto onde Deus espera que façamos uma forcinha, no exercício da presença de Deus; não precisa ser ininterrupto, mas freqüente. Com uma insistência suave e perseverante. Creio que é o caminho. Se quiser, pode-se dizer que é um atalho para subir a montanha. Creio que Deus espera por essa nossa coope-ração. Pois é o amor.

Outro exercício ascético que deve complementar o primeiro: o desapego. Indiferença, diz Sto. Inácio. “Dista-co”, Sto. Afonso. Abandono, a escola francesa. Desape-go, a escola carmelita. Renunciar a todas as satisfações, visando em tudo só a vontade de Deus, e exclusivamente o seu gosto e contentamento. Não, a nossa vida não pode

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desmentir o pensamento-amor. E neste exercício não precisamos ser suaves, mas rudes até, porque se trata do nosso amor próprio, não dos nervos. Não rebenta nada. Pode puxar.

Haja, pois, em nossa vida nada de inútil para a vida eterna; nada de inútil para o reino. Nada para contentar nosso gostinho, mas só para satisfazer os gostos e inte-resses de Jesus. Alegrar-nos, entristecer-nos só por coi-sas que alegram, entristecem a Deus. Dupla é a tarefa: apegar-se a Deus pelo pensamento-amor. E desapegar-te de si e demais criaturas.

Por sua importância, voltaremos ao assunto.

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5. ORAÇÃO

ORAÇÃO “Não se deveria contar o tempo passado em oração,

mas o tempo em que não se reza... Questão de amor... Rezar sempre? Quais novos “Nicodemos”, respondemos: impossível! Oração é vida teologal em exercício... vida da alma em Deus... vida das três Pessoas Divinas em nós. É para isso que a alma foi feita” (Lochet)

Rezar é dever. Dever honroso. Rezar é falar com Deus Altíssimo. Nunca o homem é tão grande, como quando reza. Nunca o homem é tão santo como quando reza. Nunca o homem é tão celestial como quando reza.

Um homem rezando, um sacerdote rezando, uma mãe rezando, uma virgem rezando, uma penitente rezan-do, uma criança rezando, visões do céu na terra.

É a queixa do Papa. “De uns tempos para cá, até os bons, até os fiéis, até os consagrados a Nosso Senhor, rezam menos” (Paulo VI, 13.8.1969)

“Sem uma íntima contínua vida interior, de oração, de fé, de caridade é impossível conservar-nos cristãos” (20.8.1969)

Salazar visita um colégio. “Mais importante é saber ler ou saber orar? Sem dúvida: saber rezar. Porque rezar é ler no livro da vida eterna”.

Há no universo uma força misteriosa que atinge e agita até a Onipotência divina: a prece, a oração. É a rea-lidade do Reino dos céus na terra, realidade número dois. Sem oração, própria ou alheia, ninguém se salva. Sem oração, ninguém consegue chegar até Deus.

O santo sacerdote, Eduardo Poppe, formulou a sen-tença: “Trabalhar (trabalho sacerdotal, apostolado) é bom;

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rezar é melhor; e sofrer, melhor ainda”. Os santos têm maior sensibilidade sobrenatural para

captar as forças ocultas da graça. Jesus propriamente não exige virtudes e penitências para entrarmos no céu: exige apenas a oração. O céu é conquistado gratuitamen-te. Ninguém terá desculpa. Basta pedir e o receberá de presente. Ninguém na eternidade pode se queixar de sua sorte. “Por que não rezou?”, perguntará Jesus. “Eu teria ajudado”. Deus quer manifestar sua total liberalidade. Somos incapazes, por natureza, de adquirir o céu por mé-rito. Tudo é bom. Tudo é graça. E a graça só é dada a quem pede, como pobre e humilde mendigo. Oração é condição prévia da graça por decreto divino. Quem reza, se salva. Quem não reza, se perde, a não ser que arranje um suplente.

Evangelho Os quatro evangelistas fornecem-nos, sobre a ora-

ção, material em abundância: prova que a oração foi tida na Igreja primitiva como assunto importante.

Prova que Jesus falou da oração com empenho. Ele insistiu na importância da oração, na vital oração de súpli-ca, desde o início da vida pública. Começa a insistir no Sermão da Montanha: “Pedi e recebereis Batei e abrir-se-vos-á. Todos os que pedem, recebem” (Mt 7,7). E retoma no sermão de despedia, o mesmo assunto, três vezes: “Tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei; tudo quanto pedirdes a mim em meu nome, eu o concede-rei” (Jo 14,13). “Se permanecerdes em mim (pela graça santificante), pedi o que quiserdes e alcançá-lo-eis” (Jo 15,7). E, finalmente (Jo 16,23): “Em verdade, em verdade eu vos digo: se pedirdes alguma coisa ao meu Pai em meu nome, ele vo-lo dará. Pedi e recebereis e será com-pleta vossa alegria”.

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E, de permeio, vão três anos de pregação que repe-tem como um estribilho: pedi e recebereis a graça de Deus. “É preciso rezar sempre” (Lc 18,1).

E a solene promessa (Mc 11,24): “Digo-vos: crede firmemente que recebereis tudo quanto pedirdes na ora-ção”. E as parábolas sobre a oração: Do vizinho que bate à porta da casa em plena noite (Lc 11,5). Da viúva imper-tinente que força o juiz de má vontade (Lc 18,1) ilustram de maneira precisa o valor e a eficiência infalível da prece perseverante, diante de homens maus e, quanto mais, perante o “Pai dos céus”. Jesus reforça suas palavras com o exemplo. Passa noites inteiras em oração. “Dei-vos o exemplo”.

Ora, para o cristão, palavras e exemplos do Salva-dor têm valor de lei em todos os tempos. Sabemos que lhe seguindo as pegadas chegaremos com segurança à casa do Pai. Ao contrário, por mais atraente que seja e pareça um caminho; por mais convincentes que pareçam algumas palavras, se não concordam com as palavras de Cristo, são suspeitos; o caminho não é de Deus. Não nos é lícito fazer cortes na doutrina e no modelo “a fim de tor-nar o cristianismo mais a gosto de uma geração pusilâni-me”. “Só Cristo é verdadeira Vida”. Só Ele.

PLUS - Valor A oração tem duplo valor: valor de mérito e valor de

petição, isto é, força para alcançar graças (valor impetra-tório). O mérito resulta do grau de amor de que inspira a prece, pois, afinal de contas, rezar é amar. Como disse Isabel da Trindade, ainda criança, a uma senhora que estranhou suas longas horas de adoração perante Jesus no sacrário: “Madame, nós nos queremos muito”.

Todavia, a oração tem ainda, valor a mais: a eficácia de conseguir graças do céu. E esta eficiência própria da

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oração, independente do grau de santidade, embora re-forçada por esta, baseia-se na confiança, na fé com que pedimos. Diz São J. Crisóstomo: “Nada é mais poderoso do que a oração. Nada se lhe pode comparar. O impera-dor, em sua púrpura, não é tão magnífico como o devoto na oração”.

A oração é onipotente, afirmam Teodoreto e Sto. A-fonso; ou em tradução moderna: “A oração realiza tudo”.

Essa força toda-poderosa não se fundamenta nas palavras que formulamos, mas nas promessas de Cristo. Jesus até fez um juramento: “Em verdade, em verdade vos digo (segundo os rabinos do Talmud, essa expressão é fórmula equivalente a um juramento): tudo recebereis se pedirdes em meu nome”. E, em virtude dessa promessa, até as orações do pecador têm valor e força para alcançar graças. De côngruo, diz a Escola; por misericórdia, diz Sto. Tomás (II II 83,16). E o cristão, unido a Cristo como o sarmento unido à videira, tem um valor a mais a apresen-tar: a prece é em nome de Jesus. Eis as palavras de Cris-to: “Se permanecerdes em mim, pedi o que quiserdes e recebereis” (Jo 15,7).

Igreja Antiga Inspirados pelos Evangelhos , expressam-se os por-

ta-vozes da Igreja antiga: Sto. Agostinho: “A oração do justo é chave do céu.

Sobe a prece, desce a misericórdia. E por sua bondade excessiva, o Senhor dá sempre mais do que foi pedido”.

Sto. Ambrósio dá, como prova, o bom ladrão que prontamente recebeu, e mais do que pedira.

São Gregório Magno contribui para o ramalhete com o gracioso episódio do encontro-despedida de São Bento com sua irmã Sta. Escolástica. Sabendo-se na vigília da morte, ela quis prolongar os piedosos colóquios com seu

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santo irmão. Esse não queria atendê-la, mas retornar ao seu mosteiro. Então, Sta. Escolástica, pediu a intervenção de Deus. Pesada tempestade desabou do céu, de um céu sereno e as chuvas tornaram impossível a partida de São Bento. E a santa a triunfar: pedi e tu não quiseste; pedi a Deus e ele me atendeu com prontidão.

Raios de Sol Bruxelas, 1934. A capital da Bélgica está cheia de

cartazes. Grandes exposições de flores, de 10 a 15 de junho. Os pavilhões repletos de povo. Pobres e ricos, grandes e pequenos, extasiados admiram as maravilho-sas formas, figuras e cores daquela florada. Alvoroço no quarto pavilhão: flores em vasos. Lá está o primeiro prê-mio: um brinco-de-princesa (fúcsia). E quem teve essa sorte? Que firma, que floricultura? Ah! É, de um particular. Um simples nome: Marta Multer.

Marta Multer é uma criança, do quarteirão dos po-bres, morando num porão da rua N.N.. Sua mãe, viúva, pobre faxineira e lavadeira, luta penosamente pelo pão de cada dia. Mas conseguiu por de lado um pouco de dinhei-ro e comprar, para o aniversário da filhinha, um vaso de flor: um brinco-de-princesa, uma pequena muda, ainda miúda e verdolenga. Marta teve uma alegria extraordiná-ria. Enfim, tinha a quem dar amor e carinho. Sentia-se menos sozinha e menos triste, durante as longas horas de ausência da mamãe no serviço. Dedicou todo o carinho à sua florzinha. Os raios dourados do sol penetravam na-quele porão só por fresta estreita, e só por algumas horas, rodeado como estava pelas altas paredes de tijolos ver-melhos dos prédios alugados para pobres. Mas o amor é engenhoso. Toda manhã, mal apontava o sol no pátio, Marta pegava sua florzinha e colocava-a de modo a rece-ber bem de cheio os raios do sol. E, à medida que eles

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avançavam, mudando de direção, Marta também mudava sua florzinha, pondo-a sempre em meio à luz e ao calor do sol. Fazia assim com cuidado amoroso, até ao cair da tarde. E graças a tão carinhoso trato, e graças ao raio de sol, a plantinha desenvolveu-se tão maravilhosamente, que mereceu o primeiro prêmio.

A criança somos nós. A flor é nossa alma. Os raios do sol: Deus e sua graça. Deixemos o sol divino irradiar-se sobre a nossa alma, os seus raios na oração, na ado-ração diante do sacrário, por longas horas. E nossa alma também florirá, e ganhará o primeiro prêmio no reino dos céus.

É do Cura d’Ars a comparação. O peixe nunca se queixa de ter água demais; assim, o bom cristão nunca deve se queixar de ficar com Deus por demasiado tempo.

Fonte das Virtudes A oração é a terra fértil que faz crescer todas as vir-

tudes. “Quem sabe rezar bem, também sabe viver bem” (Sto. Agostinho)

Diz Jesus a Sta. Catarina de Sena: “Saibas que pela prece assídua e perseverante, a alma alcança a perfeição e toda a virtude”. “A oração é uma mãe, que concebe e alimenta na alma todas as virtudes. Sem ela, todas se enfraquecem e são de vida curta”.

Ângela de Folinho: “Luz e graça divinas são princí-pio, meio e fim de toda a perfeição. Se quer obter luz, re-ze. Se quer crescer na graça, reze. Se quase chegou ao ápice da perfeição e deseja mais luzes, reze. E reze lendo atentamente o livro da vida, o Homem-Deus crucificado. Quanto mais dedicar-se à oração, mais luzes receberás”.

Sta. Teresa d’Ávila, especialista e perita na oração afirma: “A oração é a porta de entrada do castelo da alma” (Castelo 1,7)

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Confirma a Sagrada Escritura: “Invoquei e recebi o espírito da Sabedoria” (Sb 7,7).

Sto. Afonso parafraseia com prazer o texto de São Tiago (1,5): “Precisando alguém de sabedoria (entenda: de amor divino) peça a Deus, que costuma dar à mão lar-ga, e dá sem reclamar dos desgostos que lhe temos cau-sado e sem relembrá-los. Esquece toda nossa ingratidão, acolhe-nos e atende-nos”.

Ainda a palavra de teologia (Sto. Tomás): “A oração de súplica não se apóia em nossos méritos, mas tão so-mente na misericórdia divina” (II II 178, 2,1)

Portanto, nós, pobres em santidade, pobres de amor divino, temos recursos, credenciais para a nossa prece.

Caminho do Céu Recorda Sto. Afonso: dois pecadores morreram ao

lado de Cristo no Calvário. Um deles rezou e salvou-se. O outro não rezou e não se salvou. Sem a graça, nada feito. E a graça só se alcança pedindo, rezando.

E novamente Sto. Afonso, transmitindo sua experi-ência pastoral: “Sem a oração, segundo a marcha comum da providência, ficam todas as reflexões, resoluções e propósitos sem efeito”.

“A terra que nos carrega. O ar que respiramos, o pão que nos alimenta; o coração que bate no peito, não nos são tão necessários para a vida humana como a oração é necessária para levar uma vida cristã” (São J. Eudes)

O mesmo, em linguagem moderna: o que o motor é para o avião, é a oração para alma em seu vôo para o céu. Se o motor pára a tantos quilômetros, no alto, o avião cai como uma flecha em alguns segundos, no abismo.

Quem não reza cai, perde-se. Seja papa, bispo, sa-cerdote; seja imperador, mendigo, proletário ou capitalis-ta, homem, mulher ou criança.

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Rezar é absoluta necessidade. Como a respiração para a vida corporal, assim, a oração é necessária para a vida espiritual. Quem é privado da respiração, morrerá em pouco tempo. Nada é tão indispensável à vida, quanto o fôlego. A falta de respiração é sinal de morte. Privar a al-ma da oração é sufocá-la. Nada é tão indispensável à vi-da espiritual como a oração. Nem por brevíssimo tempo pode ser suspendida. Jesus nos advertiu: “Deveis rezar sempre”.

Antipatia, alergia contra a oração, desleixo da ora-ção, sinais certos que a alma está prestes a morrer. Para perseverar no caminho do bem é necessária a graça de Deus. E em geral, muita graça. Para receber a graça de Deus é necessária a oração, oração assídua. A teologia ensina-o há séculos. Após o batismo, para o homem en-trar no céu ainda é necessária a oração assídua” (III 39,5). “O homem santificado pela graça, ainda tem neces-sidade de pedir a Deus o dom da perseverança” (I II 109, 10). É a doutrina da Igreja antiga. “Deus dá a graça da fé; mas a perseverança é dada só aos que rezam” (Sto. A-gostinho)

Diz Sto. Afonso em linguagem ardente: “Todos os condenados perderam-se por não rezar. Se rezassem, não se teriam perdido. Todos os santos fizeram-se santos pela oração. Se não rezassem, nem se teriam salvado”. E a graça de rezar é dada para todos. “Para fazer do ho-mem um santo, observa Pascal, só mesmo a graça de Deus. Quem duvida disto não sabe o que é ser santo e o que é ser homem”.

Honra do Amor O ideal é atingido quando rezar quer dizer: amar.

“Quando o amor de Deus e oração coincidem” (Lekeux). “A melhor oração é aquela em que há mais amor. Quanto

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mais se ama a Deus, melhor se reza” (Foucauld). E o me-lhor método de rezar é ainda aquele do camponês de Ars. Interrogado sobre o que dizia a Jesus nas longas horas de adoração ao Santíssimo, respondeu: fico olhando para o bom Deus e ele fica olha pra mim. Disse com muita gra-ça o biógrafo de São Francisco de Assis (Celano), “ele não rezava, mas era todo oração”. Essa oração-amor é o ouro entre os materiais de construção da nossa morada celeste, no dizer de 1 Cor 3, 12; tudo o mais é prata, ferro, barro, palha e sapé.

Como rezar 1. Rezar com o Espírito Santo. Aqui cabe a leitura de

São Paulo em Rm 8,26: “O Espírito vem em auxílio de nossa fraqueza, porque não sabemos o que devemos pe-dir, como convém. O próprio Espírito intercede por nós com gemidos, sem palavras. E Deus que perscruta os corações, sabe o que o Espírito deseja; porque ele inter-cede pelos santos segundo a vontade de Deus”.

2. Rezar com coragem impertérrita. Rezar é muitas

vezes “a hard grinding work”, diz o Pe. Doyle, SJ. Em por-tuguês: é carregar pedras. Com bom humor expressou-se o santo eremita da Suíça, Nicolau de Flue: “Há dias em que a gente vai à oração como à guerra; outras vezes como ao baile”.

3. Rezar com confiança e perseverança. Como a

mulher cananéia que, recusada por Jesus, lhe responde: “Até os cachorrinhos podem comer as migalhas que caem debaixo da mesa de banquete”. E Jesus declarou-se por vencido: “Mulher, grande é a tua fé; tua filha está curada” (Mt 15,28). E lembremo-nos da outra advertência de Je-sus, da fé que transplanta montanhas.

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4. Pedir muito. Jesus queixou-se do Ven. Pe. Balta-

zar dizendo-lhe: Por que és tão comedido em teus pedi-dos, sabendo tão bem que sou generoso em dar? Não deves pedir pouco e coisas pequenas, mas grandes, im-portantes e difíceis, porque assenta bem aos poderosos dar grandes presentes”.

Quando uma alma pára de rezar, nós a considera-mos como nossa, disse o demônio ao santo milagreiro Pierre Lamy, vigário num subúrbio de Paris, +1931. E em uma outra ocasião: “Cessa de rezar e eu deixarei de te molestar”. Só a vista do terço o deixa furibundo, um com-plexo ancestral. Nossa Senhora assiste à sua missa, e no memento dos vivos insiste: “É preciso pedir mais; pois há abundância e superabundância para dar”.

5. Não se esqueça de unir-se a Cristo Redentor,

nosso mediador perante o trono, como nas preces litúrgi-cas que terminam com o estribilho: Por Cristo Senhor Nosso. “Jesus, vem! Vamos rezar a dois”.

6. E não se esqueça de pedir tudo em união com

Maria Santíssima, medianeira de todas as graças. 7. São Félix de Nola foge dos perseguidores que lhe

estão ao encalço. Na pressa, esconde-se no vão de duas casas. Mal se escondeu, uma aranha diligente começou a tecer sua teia na entrada. Minutos depois os esbirros in-vestigam: aqui não entrou, porque teria rasgado essa teia de aranha; avante! Uma coisa tão leve, tão tênue salvou-lhe a vida. Uma figura da oração! Tenha fé no amor de Deus.

A SÚPLICA

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Alavanca Sta. Gertrudes de Helfta pergunta a Jesus qual seria

a prática mais indicada em memória de sua Paixão. Jesus responde: “Rezar de braços abertos, como eu fiz na cruz”. Gertrudes: “Mas então, é preciso esconder nos cantos da casa”. Jesus: “Ora, seria um prazer para mim; dá mais intimidade”. Mas acrescentou: “Quem reza assim, sem medo, em público, esse me honra como rei em seu trono”.

Benigna Gojoz gostava de rezar de joelhos e de bra-ços abertos em forma de cruz, sentindo com isso o agra-do de Jesus.

Catarina Emmerich atribuía a essa oração de “bra-ços abertos” um grande poder. “Rezando assim, Deus não me recusa nada, porque seu Filho predileto ficou re-zando dessa maneira até à morte”.

Pai Nosso Dos quatro modos de oração: adoração, agradeci-

mento, desagravo, súplica ou petição, a oração de súplica é a última na hierarquia das preces. Mas somente é a úl-tima quando, por insensatez humana, pedirmos apenas bens temporais e terrestres: saúde, bem-estar, prosperi-dade. Quando, na verdade, o fim desta oração – por sinal a única enriquecida por grandiosas promessas de Jesus –são as graças sobrenaturais. Finalidade que o Pai-Nosso põe em primeiro lugar: santificar o nome de Deus, implo-rar a vinda do Reino, fazer a vontade de Deus com perfei-ção. Devemos pedir o que interessa a Jesus: seu Reino, o aumento da graça, a conversão dos pecadores. O resto será dado de acréscimo. A oração é alavanca para trans-formar o reino da terra no reino do céu.

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História Humana A prece do justo é uma superpotência. “Intelectual-

mente é difícil crer na força da oração. Mas passemos só uma semana no serviço de Deus e sentiremos seus efei-tos... Experiência, mil vezes repetida, mostra que o Imutá-vel se deixa mudar pela oração. Por meio dela os santos suspenderam até mesmo as leis da natureza”.

“A oração está sempre ao nosso dispor, pronta e rá-pida como o raio, enérgica e eficaz. No vôo ao céu ela se reúne às preces de Jesus que lá “vive rezando por nós” (Hb 7,25), às intercessões de Maria Santíssima, aos su-frágios de todos os santos e bem-aventurados, às preces ardentes da Igreja militante, como uma grandiosa tempes-tade de súplicas. Como uma ladainha cantada em altas vozes pela criação inteira. Ela embate no trono de Deus com poder e majestade. E seu eco reboa na terra. Gotas grossas de graças caem sobre o orbe como o orvalho da madrugada, como chuva impetuosa”.

“Será uma das alegrias no céu verificar o poder da oração, alavanca a modificar a história humana, pelo po-der dos pequenos... Mil caminhos nos estão abertos para cuidarmos dos interesses de Jesus: dar bons exemplos, pregar, escrever, emprestar bons livros, dialogar afavel-mente... todos estes meios são bons. Mas o verdadeiro meio, quase diria, o único meio para obter resultados é a oração”.

“Reza-se pouquíssimo em nossos dias. É triste ver a falta de fé dos homens na oração. Julgam fazer tudo pela própria habilidade. Rezemos e Deus estará do nosso la-do. Rezemos, e os interesses de Jesus prosperarão nes-se mundo” (F. W. Faber). Tudo por Jesus.

O Mistério

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Estamos perante o mistério da oração. Quem reza é um ser miserável, saído do nada. Miserável em sua ori-gem, em sua conduta, pecador, inimigo de Deus. Mesmo depois de convertidos em amigos, quão mesquinhos, quão egoístas somos perante Deus (Que graça tem para Deus, prestar ouvidos a um ser de nossa laia?)

Mistério! “Onde rezamos? Reparemos bem: seja on-de for, sempre estamos no seio de Deus. Estamos nele, como o peixe perdido nas águas do mar... Em toda parte, ao formular preces, nossos lábios tocam, roçam o ouvido de Deus (sem que o sintamos; se o sentíssemos, morrerí-amos de susto e de felicidade). Ele ouve sempre o mur-múrio de nossos lábios (e corações). A qualquer distância, com perfeita nitidez. E os gemidos, ouve-os ainda me-lhor”.

“Para falar com Deus, não é necessário talento. Elo-qüência e oratória são inúteis. Cartas de recomendação (dos grandes desta terra) são contra-indicadas, e em na-da favorecem. Miséria e humildade ainda são a nossa melhor recomendação. Nada de cerimônias. Nada de ru-bricas e etiquetas a observar. Basta a fé que transporta montanhas” (F. W. Faber 1. c.)

Eficácia prometida: “Pedi e recebereis”. Palavra de rei não volta atrás. E Deus é mais que rei. E Deus, assim segreda-nos Tertuliano, gosta de ser importunado pela oração.

ORAÇÃO APOSTÓLICA

Árvore de Chuva No planalto andino cresce uma palmeira de rica fo-

lhagem que os indígenas chamam de tamai caspi, árvore de chuva. As folhas dessa palmeira têm um poder estra-nho: absorvem a umidade da atmosfera e deixam-na cair

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no chão como gostas de orvalho. O chão ao redor está sempre úmido, mesmo na maior seca.

Cristão, sê árvore de chuva para teu próximo atrain-do o orvalho da graça de Deus sobre ele.

Apostolado da Oração A tua salvação eterna depende de tua oração. Mas

não percas muito tempo contigo mesmo. Reza pelos ou-tros. Entra no Apostolado da Oração. Não na confraria que o Pe. Ramière SJ. fundou no século passado, mas na irmandade na qual entramos pelo batismo: na corporação do corpo místico de Cristo. Vivendo nesse organismo so-brenatural, cujo chefe e cabeça é Jesus, temos poder e dever de interceder, de rezar pelo próximo. Já São Tiago recomenda-nos: “Rezem uns pelos outros para se salva-rem” (5,16). “Quem dá um copo d’água ao sedento, não perderá sua recompensa” (Mc 9,40); quanto mais...

Ângela de Foligno, no dia da morte, afirma a seus discípulos: “Garanto-vos que recebi mais graças de Jesus quando chorava os pecados dos outros do que quando chorava os meus. O povo vai achar graça, que alguém possa chorar mais sobre os pecados do próximo do que sobre os seus... Mas o amor faz isso, não é deste mun-do”.

Sta. Teresa d’Ávila fala com a mesma convicção: “Há algumas pessoas às quais parece duro não rezar muito pela própria alma. Mas que melhor oração do que esta: rezar pela Igreja e pelos sacerdotes? Por ela tere-mos desconto das penas do purgatório. E o que ainda faltar, que falte. Que importa ficar eu no purgatório até o dia do juízo, se pela minha oração se salvar uma só al-ma? Quanto mais tratando-se do proveito de muitas e da glória do Senhor” (Caminho 3,6)

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Os Precursores Onias, o sumo pontífice, santo e mártir do ano 180

antes de Cristo, figura simbólica do Sumo Pontífice Cristo Jesus, é apresentado em 2 Macabeus 15, 12: “É este que reza tanto pelo povo de Deus”.

Retornemos ao início da religião judaica. Moisés re-za de braços erguidos, figura da cruz, pela vitória de Israel contra Amalec. Cansado, o ancião deixa cair os braços e logo Israel começa a perder. Finalmente, Hur e Aarão sustentam-lhe os braços até a vitória final (Ex 17,8).

Retornemos ao início do povo de Deus. Abraão é o primeiro na história da salvação a praticar o apostolado da oração: Gn 18. Deus revelara-lhe a destruição de Sodo-ma, em castigo de seus crimes. E Abraão intercede. “Per-derás o justo com o ímpio? Longe de Deus”. “Se houver cinqüenta justos na cidade, perecerão todos juntos?” E Deus declara: “Perdoarei por causa deles à toda a cida-de”. Abraão tomou coragem e começou a negociar. “E se houver só quarenta e cinco?” “Perdoado”. “E se houver somente quarenta?... E se houver só dez?” E Deus res-pondeu: “Não destruirei a cidade por amor dos dez jus-tos”. Comovente e condescendência de Deus, tão huma-na. “Deus não quer a morte do pecador, mas sua conver-são a fim de que ele viva” (Ez 33,11).

Outrora e Hoje Pio X encarregou o Pe. Fonch, SJ. da Fundação do

Instituto Bíblico. Faltavam porém todos os recursos finan-ceiros. O único recurso possível era o Coração de Jesus. E os dois fizeram juntos trinta novenas. Custou... e Pio X era um santo... A perseverança em bater, abre todas as portas.

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Sta. Mônica rezou durante dezoito anos pela conver-são do filho pecador e dele faz um santo.

Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Guerra Junquei-ra morrem cristãos, mercê das preces de almas cristãs, suas esposas. Paulo Setúbal narra como as orações da esposa e da sua filha o trouxeram de volta a Cristo.

Sta. Catarina de Sena reza pelos pecadores. Seu primeiro troféu é o blasfemador André Nandini, convertido ao amor de Deus na hora da morte. Depois Deus pede-lhe expressamente: “Recomendo-te que rezes com fervor e com perseverança pela conversão dos pecadores; que-ro que por eles me faças violência com preces e lágri-mas”. Sta. Teresinha salvou o tríplice assassino, Pranzini, um minuto antes de morrer na forca. Maurras deve sua conversão às orações (e às doenças) de Reine Colin, +1935.

Alta Política Grandes generais venceram batalhas à custa de re-

zar o terço. Sobiesky, o herói da Polônia; Tilly e Radetzky. E figure aqui o melhor general de Frederico II da Prússia, o piedoso general Ziethen.

O’Connel, o libertador da Irlanda no século XIX, re-zou terços no Parlamento de Londres, durante as sessões que decidiram o destino de sua pátria. Ganhou batalhas parlamentares tão deslumbrantes, diz ele, graças aos ter-ços de sua mãe, na Irlanda. Famosos médicos declara-ram que, antes de uma operação difícil, fazem questão de assistir à Santa Missa, de comungar ou de ao menos re-zar um terço.

Um B-29, durante a Segunda Grande Guerra, em vôo de treinamento. Inverno. Os lemes recusam-se a o-bedecer. Em vôo reto, continuariam até acabar a gasolina e acabariam em algum ponto do oceano. Aí, o piloto se

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recordou e gritou para o artilheiro: Bob, passa-me aquela coisa de teu pescoço. Bob tinha sempre no pescoço uma medalha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ainda ontem, caçoaram dele; mas nem ligou. O piloto encostou a medalha nos botões de comando. Todos funcionaram novamente. Retornaram são e salvos.

Um missionário da África conta: um negrinho pasto-reava o pequeno rebanho de cabras. Deitou-se na sombra de uma árvore. Era dez da manhã, quando ouviu barulho atrás de si no mato. Virou-se e viu os dois olhos faiscan-tes do tigre que, num salto, chegou ao seu lado. Menino pulou em pé, ajoelhou-se e rezou o Pai-nosso. O tigre assistiu à reza, finda a qual, retornou ao mato.

Luís XIV da França, em desmedida ambição, tinha reunido em guerra contra si todos os países da Europa. Era em 1690. Então Nossa Senhora mandou um anjo pa-ra pedir as orações de uma camponesa analfabeta, de nome Bendita Rencournel, em Laus, nos Alpes Marítimos. “Reza muito, minha irmã, pela paz, pois a guerra há de durar ainda muito tempo. Vai haver logo uma grande bata-lha na qual vai morrer muita gente. Se fizessem preces públicas, a guerra logo acabaria; mas como o povo não reza, ao contrário, fica cada vez mais ímpio, a guerra não terminará tão cedo Que se façam preces pela paz; que o rei não seja traído; que ele viva por muito tempo ainda. Seus inimigos querem envenená-lo. Se o rei chegasse a morrer, isto seria a grande desgraça para a França”. Até na política, mete-se a oração.

Almas Mas o campo ideal da prece de súplica é o mundo

espiritual. Em data mais recente (1883), escreve Lucie Christine (Journal 140): “Na oração da noite pedi muito angustiada pelas almas da França. Jesus garantiu-me

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que não permitiria nenhuma delas se perdesse por falta de recursos, assim como os pagãos que procuram since-ramente a verdade, não perdem a Deus, apenas pela falta de meios de O conhecer. Disse eu ‘Mas, meu Deus, vede os perigos e as más influências nestes tempos perturba-dos! Não será isto prejudicial à virtude e à salvação das almas?’ Respondeu-me Jesus: ‘Daqueles que viverem nestes tempos exigirei menos. E de mais a mais ignoras como eu sei tirar o bem do mal?’.”

Em nosso século, Jesus diz a Gertrudes Maria (1907): “Vem comigo. Vou percorrer o mundo todo. Bato à porta de todos os corações. A maioria recusa entrada. Vem, acompanha-me. Enquanto bato, tu rezas. Quando sou rejeitado, tu me consolas”. “Fiz o que Jesus pediu. O dia todo ficamos visitando o mundo inteiro: com Jesus, tudo vai ligeiro”.

A mãe do Cardeal Vaughan de Westminster, conver-tida pouco antes do casamento, fazia diariamente uma hora de adoração diante do Santíssimo Sacramento por seu lar, para seus treze filhos tornarem-se bons cristãos. Resultado: todas as cinco filhas tornaram-se religiosas; seis, dos oito rapazes, tornaram-se sacerdotes, e três de-les tornaram-se bispos (Westminster, Sidney, Sebasto-pol).

Paulina Reynolds entra no Carmelo aos cinqüenta e sete anos, por ter sido preciso cuidar de sua mãe. E Je-sus lhe diz: “Serás carmelita por meus sacerdotes”.

A aldeia de Lu (Itália) ficou sem sacerdote, pela es-cassez de clero. Um grupo de mulheres organizou, para todas as tardes de domingo, uma hora santa pelas voca-ções; aliás, logo freqüentada pela paróquia toda. Resulta-do: em cinqüenta anos a cidadezinha produziu sacerdo-tes, religiosos e religiosas num total de quinhentos.

É bem conhecido, nos anais da hagiografia, o caso de Jacques Olier, fundador dos seminários sacerdotais na

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França do século XVII. Converteu-se de uma vida banal e medíocre a uma vida santa e apostólica, graças a Inês de Langeac, dominicana, e às suas orações.

Caso semelhante deu-se no século XIX, com a do-minicana Clara Moes, destinada a converter Lacordaire e a reerguer a Ordem Dominicana na França por meio da oração e da penitência.

A providência de Deus, sua intervenção na história é uma realidade que dirige os acontecimentos. Em geral, fica encoberta, mas de tempo em tempo aflora à superfí-cie.

São Clemente Hofbauer faz romaria à Roma para tornar-se missionário redentorista. Seu companheiro de-siste na última hora. Clemente ajoelha-se ao lado da sua cama, rezando terços a noite inteira pela vocação de seu amigo. Quando este acorda de manhã e vê o amigo ao lado rezando, está decidido a entregar-se também a Deus. Foi o braço forte de Clemente em seu vasto aposto-lado.

Famoso o caso do bispo Ketteler de Mogúncia (1850-1877). Estava na Universidade, no segundo ano de direito. Nas férias revelava-se apaixonado caçador. Certa vez, no retorno da caça de patos selvagens, não conse-guiu arrancar dos pés as botas molhadas. Encolerizado, pegou do punhal e cortou o couro em pedaços. Uma a-mostra do homem. Certa noite sonhou com uma freira; só viu o seu rosto e suas mãos postas e teve a impressão de ouvir: “Ela reza para você ficar padre”. Ketteler mudou de rumo e decidiu dedicar-se a Deus no sacerdócio.

Anos depois, como bispo, fez uma visita pastoral a um convento de religiosas. Ao distribuir a sagrada comu-nhão, a última a comungar deixou-lhe a impressão: “Você já viu esta religiosa, mas onde?” Durante o final da missa só pensou nessa religiosa, procurando lembrar-se. Enfim, surgiu da memória: “É aquela do sonho”. Após o café,

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pediu para conversar com toda a comunidade reunida na sala. Rapidamente correu os olhos: a tal não estava... “Mas estão todas as irmãs, todas mesmo?” A superiora também correu os olhos e confirmou: “Sim, todas; só fala a irmã ecônoma, que cuida do curral”, dando a entender que ela não fazia falta. O bispo quis vê-la. Foi chamada. Era ela. O bispo fez sua palestra geral e despediu-as to-das. Mas ainda quis falar com a irmã que cuidava do cur-ral, a sós. Perguntou-lhe sobre sua oração. A irmãzinha toda confusa desculpou-se; não sabia rezar; mal sabia ler, não entendia os livros. Rezava seus Pai-nossos e Ave-Marias quando tratava dos animais na estrebaria. Ofere-cia, sim, orações e trabalhos pelas vocações... Ah! mais um informe: nascera no dia em que o estudante jurista tivera aquele sonho...

Nhá Chica, Francisca de Paula Isabel de Jesus, de Baependi MG (1808-1895), passou a vida rezando. Órfã de pai e mãe, aos dez anos consagrou-se a Deus pelo voto de virgindade. Vivia pobremente em seu rancho de sapé. Distribuía aos pobres do lugar todas as esmolas que recebia. Famosa pelas graças que alcançava em su-as orações, declarou: “Isto acontece porque rezo a Deus pelos merecimentos de sua divina Mãe, Maria Santíssima e ela me atende...” Interrogada sobre as profecias, res-pondeu sorrindo: “Não sou sibila. Nunca fiz milagres. Re-zo à Nossa Senhora que me ouve e me responde”.

Um missionário do Congo sentiu que a obra da con-versão, após um longo e penoso ano de trabalho, não progredira quase nada. Lembrou-se das crianças de sua terra natal. Escreveu-lhes pedindo que o sustentassem com suas orações infantis O resultado foi prodigioso. Al-deias bastante renitentes pediram o sacerdote e o cate-quista, porque todos queriam tornar-se cristãos.

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Cartas de Recomendação Apresentar cartas de recomendação é inútil se não

tiverem a assinatura do Filho de Deus. Elisabeth Leseur gostava de apelar para o sangue de Cristo a fim de obter êxito na oração. Por intermédio de Marta Chambon acon-selhou-nos Jesus a oferecer ao Pai suas cinco chagas pelo resgate dos pecadores.

É útil reforçar nossas súplicas, utilizando-nos dos seguintes tesouros da Igreja militante:

– Oferecer a humanidade gloriosa de Cristo que vive intercedendo por nós no céu.

– Oferecer a paixão e morte, tema predileto dos san-tos de séculos atrás, como São Francisco, São Bernardo, Sto. Agostinho.

– Oferecer a Santa Missa, celebrada a toda hora do dia, em algum lugar do mundo.

Dom Afonso de Albuquerque, navegando no Atlânti-co, teve sua caravela ameaçada de sossobrar num violen-to temporal. O que faz? Arranca uma criança de dois anos dos braços de sua mãe, ergue-a ao céu, rezando: “Ó Deus, nós todos que aqui estamos somos pecadores e não merecemos ser salvos. Mas por esta criança inocen-te, perdoa os culpados”. E a tempestade amainou. Figura da Santa Missa.

E nunca deixes também de unir tuas preces à ora-ção de Maria Santíssima. Depois de Jesus é no céu a mais interessada pela nossa salvação. E pelo prestígio que tem, é a mais poderosa. “Basta que eu peça”, decla-rou. Seja pois ela sempre a nossa associada no apostola-do; pois é co-redentora e medianeira, segundo o Concílio Vaticano II.

Números

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No reino da graça sempre prevalece a qualidade so-bre a quantidade. Mas enfim... Para salvar Sodoma e Gomorra teriam bastado dez justos.

Sta. Margarida Alacoque deixou-nos dito: “Um justo pode alcançar o perdão de mil pecadores”.

Sta. Coleta pediu certa vez a conversão de mil pe-cadores. Depois, refletindo melhor, ou pior, espantou-se do seu pedido, que lhe pareceu temerário. A Santíssima Virgem apareceu-lhe sorrindo e mostrando-lhe os conver-tidos. Eram mil.

A Sta. Gertrudes de Helfta Jesus mesmo ofereceu um milhão. Ela pedira a Jesus: “Não me queres dar esta alma?” E a resposta: “Por que só esta? Por que não mil vezes mil? É só pedir”.

Sta. Catarina Racconig, +1548, viu uma imensa mul-tidão de almas que estariam na glória de Deus, se ela re-zasse e sofresse por elas; senão pereceriam... Numa ba-talha sangrenta, rezou com fervor pela salvação eterna dos combatentes, e teve o consolo: só alguns foram para o inferno; mil foram para o purgatório, e três voaram dire-tamente ao céu (até soldados! hein?). Em uma ocasião posterior, no ano de 1541, do lado inimigo, todos (uns cin-co mil) foram para o inferno: eram hereges, apóstatas re-centes. Do lado de cá, todos salvaram-se: pouco antes tinham feito a páscoa.

Em nosso século, temos Benigna Consolata Ferrero, +1916. Jesus disse-lhe: “Quantas almas tu me ganhas, na América, na África, na Austrália, no mundo inteiro, mas especialmente na cidade de Turim... Quem salva uma alma, salvou a sua. E tu já me salvaste mais de um mi-lhão”.

A mística analfabeta Maria de Valença (França), +1648, (teodidata, segundo Bremond) teve a visão de dois cortejos pelos quais devia rezar. A primeira “procissão” começava com o papa; a seguir iam os cardeais, bispos;

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todos em ordem hierárquica; logo depois iam os impera-dores, embaixadores, duques, militares, juristas, médicos, burgueses, negociantes, artesãos, camponeses. Depois, como num toque de orquestra, a procissão se reagrupou sob o aspecto da eternidade, das necessidades espiritu-ais: abrindo o cortejo estavam os pecadores, seguindo-se depois os convertidos, os penitentes, os inocentes, os justos e por fim, os santos.

Deus fez conhecer à vidente que contava com ela para seu apostolado, e atribuiu-lhe cinqüenta mil pecado-res para converter; trinta mil penitentes para firmar na graça; quinze mil justos e doze mil santos para manter e fazer crescer na graça. Doze mil santos na lista: a propor-ção deve alegrar-nos. Eis a generala de um exército de cento e sete mil soldados da Igreja militante, “generala” importante.

Não sabemos o que pensar destes números. São simbólicos? Folclore religioso? Durante um exorcismo, o demônio deixou escapar que o Cura d’Ars lhe roubou oi-tenta mil pecadores. Num exorcismo, que o próprio santo realizou, o demônio ao fugir gritou: “Como me fazes so-frer; três como tu e estaria acabado meu reino na terra”.

Talvez calhe aqui a anedota papal do século XVI. Bramante apresentou ao papa Júlio II os planos da nova basílica de São Pedro. Levou consigo o filho pequeno de cinco anos. Júlio II, sumamente satisfeito, mandou trazer um pequeno cofre com moedas de ouro. O papa mandou o menino tirar um mão cheia. Mas o pequeno Bramante respondeu: “Sto. Padre, tire o Senhor; sua mão é maior”.

A ORAÇÃO DO REINO A oração é invenção cristã. O pagão de todos os cul-

tos, tempos e regiões contentam-se com breves invoca-ções, à maneira de nossas jaculatórias, ou repete meca-

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nicamente a prece-da-flor-do-loto. As meditações tibeta-nas não se dirigem a Deus: são auto-hipnoses. Rezar pa-ra o cristão é, ou deve ser, amar a Deus e pedir seu auxí-lio.

Rezar é reconhecer que Deus é tudo, o único Tudo. Rezar é o fim da criatura. A primeira entre todas as ativi-dades humanas é: adorar e amar a Deus. Imaginar que exista ação mais importante é um erro.

O mundo sorri desta preferência pela oração. Não se deve rezar, mas agir! A situação chegou à calamidade pública. Não há tempo a perder! É uma lástima que tantas forças vivas restam inativas, encerradas nos mosteiros contemplativos! Acusa-se, até, certos grupos de leigos piedosos de se agarrar à sua vidinha interior, em vez de se lançar, com ímpeto, na luta apostólica. A oração afigu-ra-se, aos super-ativos, como uma evasão, como medo diante dos compromissos.

Há possíveis deformações. Mas nem todos os sol-dados da retaguarda são poltrões a fugir do perigo. Dono-so Cortés é de outra opinião: “Eu creio que aqueles que rezam fazem mais pelo mundo que aqueles que lutam nas batalhas. E se o mundo vai de mal a pior, é porque há mais batalhas do que orações. Se pudéssemos penetrar nos segredos de Deus e da história, tenho certeza ficarí-amos cheios de admiração perante os efeitos prodigiosos da oração, mesmo em assuntos humanos. Eu creio que se houvesse ainda que uma só hora, de um só dia, em que a terra não enviasse nenhuma prece ao céu, esse dia e essa hora seriam o último dia e a última hora do univer-so”. Idênticas afirmações no século passado.

“O espírito apostólico é antes de tudo teocêntrico... convergindo para a Santíssima Trindade... Depois, de modo secundário e subsidiário, fixa-se sobre a criatura” (Thils, 1949)

“À contemplação cabe o primeiro lugar, por direito, e

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deve sê-lo de fato. Ao homem se chega através de Deus. O apostolado não surge da necessidade das almas mas do amor de Deus” (CARDEAL SUHARD, Essor, 1948)

O Reino Toda a cristandade está inscrita no apostolado da

oração, uma vez que, desde Pedro e Paulo, rezamos dia-riamente: “Venha a nós o vosso reino”.

Vivemos na união mística com Cristo. Cada membro deste organismo místico tem o poder de intercessão por seu próximo. Foi o apostolado de Maria Santíssima e de inúmeras almas anônimas. O apostolado da oração não é inferior, em valor e eficiência, ao apostolado da palavra, pois Jesus lhe dedicou trinta anos, e ao apostolado públi-co somente três anos. E ainda mais: começou sua vida pública com quarenta dias de jejum e de oração contínua. E depois, passou noites inteiras em oração. A oração atrai as graças para o apostolado.

Os doze apóstolos entenderam tão bem a lição do Mestre que nos deixaram o precioso princípio de Atos 6,4: “Não é justo deixarmos de lado a pregação da palavra de Deus, para servir as mesas... Mas devemos continuar a dedicar-nos à oração e ao ministério da palavra”. Deste modo, os Doze ofereciam junto com a mensagem, a graça de Deus para que essa, fosse aceita. Lição para os seus sucessores no apostolado. Não fique esquecido pelos cristãos hodiernos, o mandato de Paulo (1 Tm 2, 1-4): “Insisto que se façam preces... por todos os homens... porque isto é bom e agradável a Deus, nosso Salvador, que quer que todos se salvem”.

Escreveu São Tiago (5,16): “Grande poder tem a o-ração do justo”.

Eis a tarefa da cristandade toda. Rezar, rezar pelo reino de Deus. Assim, ficamos associados à prece do

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Sumo Sacerdote Jesus que está sentado à direita do Pai, rezando sempre por nós (Rm 8,34 e Hb 7,25). Escreve São João (1 Jo 2,1): “Temos um advogado junto ao Pai, Jesus”. Jesus exerce essa tarefa de intercessão todos os dias, na Santa Missa, na grande prece de Filho ao Pai, e a ela quer associar todo o povo de Deus. Junto com o Filho de Deus, rezamos a prece final: o Pai-nosso. E re-zamos no plural: todos pedindo por todos.

Também à oração comunitária, não litúrgica, prome-teu Jesus sua assistência, ou melhor, sua presidência. “Onde dois ou mais estão reunidos em meu nome, aí es-tou em meio deles... e tudo quanto pedirem, lhes será da-do pelo Pai” (Mt 18,19).

Essa é a razão de ser das ordens contemplativas. A união faz a força, diz o ditado. A união com Cristo, diz o cristão.

Monges e Monjas Segundo o Vaticano II (PC 7): “As ordens contem-

plativas, que vivem só para Deus na solidão e no silêncio, na prece assídua e alegre penitência” sempre serão “par-te insigne” da Igreja. “São ornato da Igreja e manancial de celestes graças”. Confirma-o a GS 38.

A LG 44 declara que os religiosos “consagrados to-talmente a Deus, são destinados ao seu serviço e à sua honra”, e que a oração é a substância de sua vida consa-grada ao culto de Deus. A oração é como que a expres-são da sua contínua inclinação para Deus, expressão de amor, de todo o coração.

PC 6, insiste de novo, que “cultivem o espírito de o-ração e a própria oração”. Paulo VI fala “do primado da oração no campo da ação da Igreja”. “Para tornar-se ora-ção é preciso fazer oração” (20.7.1966).

E novamente, em 1969, numa alocução às monjas

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camaldulenses: “Vós, contemplativas, vos consagrastes a este absorvimento de Deus sobre vossa alma. Ora, bem: a Igreja vê em vós a expressão mais alta de si mesma. Vós estais, de certo modo, no vértice” (cf. Venite seorsum, nota 38).

O magistério de João XXIII revelamos precioso tex-to: “O apostolado propriamente dito consiste em participar da obra salvífica de Cristo: o que só se realiza pela prece fervorosa do devotamento. Já que o Salvador remiu o gê-nero humano principalmente oferecendo preces ao Pai e imolando-se... Donde segue: quem se empenha em se-guir esta íntima razão do múnus salvífico de Cristo, embo-ra se abstenha de ação externa, faz apostolado, de exce-lente maneira” (ASS 1962, 568).

E retornemos às origens. Sto. Agostinho já se vê o-brigado a defender a vida dos anacoretas: “A alguns pa-rece terem (os eremitas) abandonado a vida social mais do que se deve. Mas esses não compreendem quanto se nos aproveita o fervor deles nas orações e sua vida para o nosso bom exemplo”.

A oração dos antigos monges foi muito estimada e procurada pelos devotos. Para fugir às romarias dos de-votos, Sto. Antão e seus companheiros embrenham-se cada vez mais pelo deserto adentro, embora com pouco resultado: não tardaram a serem descobertos.

São Basílio pede a seus monges oração contra a he-resia (ariana). Aliás, a liturgia, pelas preces do ofertório, recordava aos monges e fiéis os grandes interesses da Igreja de Cristo.

A partir do século XI, as ordens contemplativas to-maram consciência de sua missão de orantes, escreve Vandenbroucke. Quer dizer: desse tempo abundam as notícias, mas das épocas anteriores falta documentação. O elemento formal da vida do monge é a prece. Prece pelo reino. Prece pelos inimigos de Deus. Enfim, há o ro-

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teiro de praxe para a oração, indicado no Pai-nosso. A austeridade da regra, considerada pelo monacato ociden-tal como martírio vitalício, a fogo lento, é complemento e sobremesa.

Aliás, os monges e a cristandade antiga nada perde-ram ao fixar, de preferência, como meta aquela oração-de-fogo (do amor), que Cassiano preconiza como meta final do monaquismo. Dom e dádiva de Deus, diz ele, e a descrição quadra perfeitamente com o que hoje chama-mos de contemplação mística. Ora, este amor abrange também os demais membros do Cristo místico, transmi-tindo seu calor aos frios e mornos. São João da Cruz fala deste amor de fogo e de seu imenso valor na Igreja, no Cântico 29. Antigos e modernos encontram-se.

Vem a propósito uma frase de São Tomás, raramen-te citada: “Quem vive na caridade, tem parte em todas as boas obras que se fazem no mundo inteiro” (Expositio in Symbolum 10).

Ainda da Idade Média uma página luminosa de Tau-ler: “Todos os bons cristãos são co-redentores, pois re-zam pela Igreja e sofrem as calamidades públicas e as doenças pessoais por amor de Deus. Mas de um modo insigne, colaboram os “amigos de Deus”. Deus se apraz tanto neles... Meus filhos, se não tivéssemos estes ho-mens, estaríamos em má situação. Sobre eles apoia-se a santa Igreja. E se eles não existissem na cristandade, a cristandade não sobreviveria nem uma hora. A sua sim-ples existência é mais preciosa e mais útil que toda a ati-vidade do mundo. São vasos transbordantes que ofere-cem tudo pela Igreja”.

Um contemporâneo anônimo, inglês, místico de pro-funda espiritualidade, escreve sobre a prece do monge e eremita: “Os demônios se enfurecem quando te aplicas à oração e fazem todos os esforços para impedi-la... Os homens, que vivem ainda na terra, tiram dela grande pro-

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veito, embora não saibas como. Sua força alivia as almas do purgatório em sua padecimento. E, quanto a ti, ne-nhum outro exercício contribui tanto para purificar-te e tornar-te virtuoso” (Nuvem da ignorância)

Sta. Teresa d’Ávila afirma que suas carmelitas con-templativas são os anjos de Deus na terra, assim como os anjos no céu constituem a corte de louvor a Deus. Como nos diz o Concílio (PC 7): “Os contemplativos oferecem a Deus o exímio sacrifício de louvor”. Depois Sta. Teresa acentua e ressalta que a finalidade de seus mosteiros é a de rezar pela Igreja, rezar pela conversão dos hereges e rezar pelos sacerdotes. “Parte-me o coração ver como se perdem tantas almas... Ó irmãs minhas, ajudai-me a su-plicar ao Senhor que elas se salvem, pois para este fim vos chamou ele aqui. Esta é a vossa vocação. Estes de-vem ser vossos negócios. Estes os vossos desejos. Aqui se empreguem vossas lágrimas. Estas sejam vossas peti-ções, e não as súplicas pelos negócios do mundo... Aflijo-me por ver as coisas que nos pedem... rendas, dinheiro... O mundo está pegando fogo: querem condenar novamen-te a Cristo e lançar por terra sua Igreja... Irmãs, não é tempo de tratar com Deus negócios de pouca importân-cia” (Caminho 1,5)

Três séculos mais tarde, sua neta espiritual, Sta. Te-resinha, dedica-se a este apostolado da oração. “Quero ser filha da Igreja, como nossa santa madre Teresa, e rezar pelas intenções do Sto. Padre o Papa, sabendo que suas intenções abraçam o universo” (Vida 320)

O apostolado da oração é mais elevado que o da pa-lavra. Eis as palavras de Jesus: “Erguei os olhos e vede. Vede como no céu há lugares vagos. Cabe a vós preen-chê-los. Vós sois meu Moisés rezando no monte... O Cri-ador do universo espera a prece de uma alma para salvar outras” (Cartas, 118).Disse um sábio: “Dai-me uma ala-vanca, um ponto de apoio e levantarei o mundo. O que

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Arquimedes não pôde obter, os santos obtiveram-no. O Onipotente deu-lhes por ponto de apoio, a Si mesmo e a Si somente; por alavanca, a oração que abrasa com o fogo do amor. E é assim que levantaram o mundo... e o levantarão os santos vindouros, até o fim do mundo” (Vida 325)

Ainda uma voz recente (Gertrudes M.). Diz Jesus: “Gosto que me peças e muito. Não se reza bastante pelos sacerdotes. Tenho para eles graças de reserva que eu daria se fossem pedidas... Reza, reza, minha filha, reza...” “Que é preciso para agradar-te, Jesus?” “Rezar... de tua boca, que se torna cada dia minha pousada, e de teu co-ração, que é meu sacrário vivo, deveria sair uma oração contínua... Deve-se rezar muito e por grandes e imensas intenções”.

É a oração apostólica que o Vaticano II proclama e reclama. Oração do tamanho da Igreja ou dizemos me-lhor: do tamanho do Coração de Jesus que abraça o mundo inteiro. Nossas orações, nossa Ave-Marias correm mundo, mas rápidas que as ondas de rádio, e atingem céu, terra e purgatório. Vivemos em união com o reino de Jesus. Seja tudo por Jesus. Misturando esse gemido ami-úde ao nosso trabalho cotidiano, quanto bem não faremos no reino das almas.

Vivemos em união com Jesus. Tudo é nosso. Damos e recebemos. Como o sangue, do coração percorre o cor-po, mas retorna, assim podemos, ora colaborar, ora usu-fruir todo o bem praticado em algum ponto da Igreja, e sem prejuízo de ninguém.

De que dependem as vitórias de Deus? Da ação? Da agitação? Não. Do silêncio, da oração. O cristão nun-ca é mais forte do que quanto está rezando, porque então a onipotência está ao seu lado.

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A DEVOÇÃO PELOS PECADORES Numerosos os afilhados dessa irmandade. É antiga.

Já Orígenes, +250, a conhece e recomenda: nas guerras de Deus “mas vale um santo rezando, do que uma multi-dão de soldados batalhando... procura, pois, em primeiro lugar a justiça de Deus”.

O mundo desse fim de século XX, vive na angústia da guerra atômica. Mais angustiante nos devia ser o trági-co fim de tantas almas imortais Cada alma humana é uma chance de Deus.

Nossa Senhora precisou lembrar-nos em La Salette, Lourdes, Fátima, o mandamento da Bíblia: “Rezai pelos pecadores” (Tg 5,16). Nossa mais decepcionante negli-gência, a mais vergonhosa das nossas omissões é aban-donar esta tarefa grandiosa... de praticar a misericórdia”.

Sta. Teresa d’Ávila confessa singelamente, quantas vezes Nosso Senhor atendeu suas orações, livrou almas do pecado e conduziu outras a uma vida mais perfeita: “Nem posso contar tudo” (Vida 39,5). E segue uma anto-logia de textos.

Sta. Gertrudes passou mal à noite, com febre alta, e julga poder dispensar-se das matinas da meia-noite. Mas a voz conhecida de Jesus chama: “Levanta-te, levanta-te e vai rezar pelos pecadores”.

Sta. Matilde. Jesus: “Vamos, faz-me o favor e reza pelos pobres pecadores que eu resgatei por preço tão caro”.

Sta. Gertrudes: “Vê como os pecadores são feridas e ulcerações do corpo de Cristo. Tocar nelas com mãos ásperas, dói”.

Sta. Catarina de Sena já estava morta, havia quatro horas na câmara ardente, quando de repente “acorda”, rompendo num choro sentido. “Por que choras?” “Já esti-ve no céu e tenho de voltar à terra... para salvar mais al-

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mas. Vi a essência de Deus... os tormentos do inferno e do purgatório. Impossível descrevê-los. Se os pobres ho-mens tivessem a mínima idéia disso, eles prefeririam so-frer mil vezes a morte, do que padecer lá, ainda que só um dia”. E Jesus fala: “Vês que glória perdem e quanto padecem os que me ofendem. Retorna pois à vida, mos-tra-lhes seus enganos e o perigo que os ameaça. A sal-vação de muitos exige teu retorno”.

Em outra ocasião, Jesus mostra-lhe uma alma em estado de graça (não na glória), salva pela intercessão de Catarina. “Eis, por ti pude recuperar essa alma perdida. Não te parece graciosa e bela? Quem não aceita sofrer, não importa quantas dores, para ganhar criaturas tão ma-ravilhosas? Eu que sou a beleza suprema, senti-me preso de amor pela beleza das almas ao ponto de descer à terra e derramar meu sangue por seu resgate, para não perder criaturas tão bonitas. Mostrei-te essa alma, para tornar-te mais fervorosa em procurar a salvação de todos.”

Sta. Madalena de Pazzi: “Assim, como o Verbo En-carnado fez de seus apóstolos, pescadores de homens, assim quis que suas esposas, as religiosas, se engenhas-sem em salvar almas por suas orações... Rezai pelos pe-cadores. Se não o fizermos, ninguém mais o fará. Ai, quantos pecadores estão no inferno porque ninguém tem rezado por eles.”

Sta. Verônica Giuliani: Jesus: “Eu sofria muito carre-gando a cruz no caminho do Calvário. Sofria muito mais ainda, quando do encontro com minha Mãe. Mas o maior tormento foi a vista contínua do grande número de filhos meus que não iriam querer aproveitar sofrimentos tão a-trozes”.

“Se tu soubesses quão numerosos são os pecado-res. Por toda parte só há pecadores e pecadoras. E co-metem tão grandes pecados que merecem castigo e não perdão. Tornaram-se animais Não pensam em Mim, nem

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em suas almas. Ofereço graças, poucos aceitam...” Verô-nica: “Vou amar-te por mim e por todos esses que não te amam”. Jesus: “Eis o que quero de ti... É necessário que fiques ainda alguns anos na prisão terrestre, a fim de que me ganhas muitas almas”.

Verônica experimentou que rezar pelos pecadores é mais excelente remédio contra a aridez.

Benigna Cojos, 1615-1692, ouve da boca de Jesus: “Desde quinze anos, em cada comunhão tua, concedo, a teu pedido, algum herege, principalmente de Genebra (naquele tempo, ainda era herege a República)... Peça-me a salvação do meu povo (Sabóia). Peça-me que eu lhe perdoe. Emprega para esse fim teus dez dias de reti-ro”.

Maria da Encarnação (Ursulina): “Meu espírito per-corria o mundo inteiro, para buscar as amas resgatadas pelo sangue do Filho de Deus. Eu trazia em mim, um fogo que me consumia. O espírito apostólico, que é o espírito de Jesus Cristo, apoderara-se do meu espírito e me leva-va em pensamento às Índias, ao Japão, à América, ao Oriente e ao Ocidente, a toda a terra habitada. Eu via, por uma certeza interior, o demônio triunfar dessas pobres amas que ele roubava do domínio de Jesus Cristo; de Jesus que as resgatara com seu sangue precioso... Eu ficava com ciúme; não agüentava mais; abraçava todas essas pobres almas; segurava-as em meu seio; e apre-sentava-as ao Pai eterno, dizendo: que era tempo de Ele fazer justiça a meu esposo. Que ele bem sabia haver-lhe prometido em herança todas as nações. E, além do mais, que Jesus prestou satisfação com seu sangue por todos os pecados dos homens”.

Madalena Vigneron: “Vê como me maltratam... mas todos esses tormentos não me importariam, se eles qui-sessem converter-se a bons sentimentos. Mas eles se recusam...” Jesus mostrou um rosto cheio de indignação e

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parecia prestes a fulminar tudo; depois, retornou sua do-çura, dizendo: “Minha filha, tu não me podes fazer coisa mais agradável, do que empenhar-te por esses pobres miseráveis”.

Sta. Margarida Alacoque: Preparando-se para co-mungar, Jesus lhe fala: “Vê minha filha, o mau tratamento que recebo nessa alma que acaba de comungar; tibieza, frieza, pouco caso. Ela renova todas as dores da minha Paixão. Quero que tu faças desagravo a meu coração, oferecendo ao Pai o sacrifício cruento da cruz e toda a tua pessoa, para reparar as indignidades que recebo nesse coração”.

Nosso Senhor apresenta cinco corações infiéis, di-zendo: “Encarrega-te desse fardo e participa das amargu-ras do meu coração”.

“Minha filha, meu amor me fez sacrificar tudo pelos homens, sem receber deles retribuição. Quero que tu su-pras esta ingratidão”.

Certa vez, Margarida sentia pesar sobre ela a santi-dade de Deus; sentia-se esmagada. “Isto é só uma pe-quena amostra. As almas justas suportam-na, mas se ela cai sobre os pecadores?...”

Catarina Emmerich, a vidente da Paixão, recebera do céu, desde pequena, a tarefa de rezar pelos pecado-res. Diz ela: “Desde pequena rezei muito, menos por mim do que pelos outros, a fim de que se salvem. Nisso fui bem ousada, pensando: Jesus pode tudo e ele gosta que lhe peçamos com coração e coragem”.

O santo Cura d’Árs foi grande devoto dos pecado-res: “As almas custaram tantos sofrimentos a Jesus. Que lástima se perderem eternamente... Oh! esses pobres pe-cadores que estão na eminência de se decidir pró ou con-tra Deus! Um Pai-nosso, um Ave-Maria pode inverter a balança ao seu favor. Rezemos pela conversão dos pe-cadores! É a mais bela e a mais útil das orações, por-

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quanto os justos já estão no caminho do céu. As almas do purgatório estão seguras de entrar nele. Mas os pobres pecadores... os pobres pecadores... E quantos estão em suspenso! Rezemos. Todas as devoções são boas, mas nenhuma melhor que essa”.

Contam dele a seguinte entrevista, “Tudo pela con-versão dos pecadores”:

– Mas, sr. Cura, se Deus vos propusesse: ou subir-des ao céu agora mesmo, ou ficardes na terra para traba-lhar na conversão dos pecadores?

– “Creio que ficaria”. – “Será possível? Os santos são tão felizes. Lá não

há mais tentações, não há mais misérias...” Com um sorriso angélico, respondeu: – “É verdade, mas os santos são tão felizes; são uns

capitalistas (vivendo dos juros); não podem mais, como nós, glorificar a Deus pelo trabalho, pelo sofrimento, pelos sacrifícios para salvar almas”.

– “E ficaríeis na terra até ao fim do mundo?” – “Do mesmo modo”. – “Nesse caso, teríeis muito tempo pela frente. Le-

vantar-vos-ieis também de madrugada?” – “Oh! Sim. À meia-noite. Não me incomodo. Seria o

mais feliz dos homens”. Sta. Bernadete, na gruta, recebeu da Mãe de Jesus

a ordem de rezar todos os dias pelos pecadores. Ao mor-rer, ficou preocupada e só sossegou quando o confessor lhe prometeu continuar rezando pelos pecadores, em seu lugar e em seu nome.

Sta. Teresinha tem a idéia de ser missionária, tran-cando-se atrás dos quatro muros da clausura, e ficar re-zando. Leia o capítulo final para ver como deu certo.

Carlos de Foucauld: “Corramos por meio da oração, atrás dos pecadores. Em nossa prece, peçamos a Jesus para amá-lo, e peçamo-lhe que todo o mundo o ame. Ou

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então, creio que este é o melhor sistema, digamos-lhe toda manhã, que tudo quanto pedimos para nós, pedimo-lo também, sempre, por todos os homens sem exceção. Dito isso, não me parece que devamos nos preocupar com os outros. Não pensemos mais nas criaturas. E fale-mos com o Esposo, só sobre ele e nós, como se ele e nós estivéssemos sozinhos no mundo. Quanto mais pedirmos para amá-lo de todo o coração, tanto mais faremos bem à humanidade inteira, que tem parte em todas as nossas preces”.

Ainda figure nesta antologia a palavra do venerável clérigo capuchinho, Frei José Maria de Palermo, que de moleque número um tornou-se frade santo. Dize com ele: “Por cada pecado meu, uma alma”.

Sentindo o fervor espiritual, pensamos expressá-lo bem com mortificações corporais, sempre úteis e às ve-zes necessárias. Tal como sóror Consolata Betrone, +1946. Havia um pecador a converter: seu tio de nome Felice, mas de fato infeliz, muito infeliz. Até os sessenta anos nunca se confessara; nunca recebera a santa co-munhão. Depois de ela ter passado uma semana a dormir sobre tábuas, com disciplina diária e dois cilícios por dia, ao fim da novena Felice declarou-se disposto e até satis-feito de ir para o inferno. Foi para Consolata o sinal. En-tregou à superiora todos os seus instrumentos de peni-tência. “Jesus não quer isto de mim”. Jesus: “O cilício de penitência que quero de ti é amar-me sem cessar”. E tio Felice converteu-se pelos atos de amor de Consolata.

Cada alma recebe de Deus sua missão, sua melodia própria. Uns trabalham com ferro e fogo. Outros só com o fogo do amor de Deus.

Disse Isabel da Trindade, com graça peculiar, que quer “fazer Jesus esquecer as ofensas, à força de amor”.

Terminamos o capítulo com Charmot: “A oração sal-va muito mais almas que a ação. E toda ação tira a força

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redentora da oração que a fecunda”.

MARIA BROTEL

Vítima de Oração – 1819-1888. “Aos treze anos vi Nosso Senhor. Ele ofereceu-me a

cruz: “Eis, minha filha, o que quero que carregues”. Aos catorze anos, um dia após minha primeira co-

munhão, Nosso Senhor mandou-me fazer meditação todo dia. Abriu-me seu coração, dizendo que nesse coração se encontra todo o amor que ele me queria dar... Mostrou-me as almas para fazer-me rezar por elas. Mas eu achava o tempo longo; não fazia nada”.

“Entre os quinze e vinte anos, no dia da comunhão eu fazia uma meditação de uma hora. Mais tarde, uma hora e meia. Nosso Senhor pediu ainda mais Portanto, fiz duas horas de meditação, depois três”.

Dos 24 aos 26 anos: “Minha filha, eu quero que fa-ças quatro horas de oração por dia.” Achei que era longo demais. Mas foi preciso obedecer”.

1861: “Nosso Senhor, Nossa Senhora e São José vieram mostrar-me as almas que morrerão nesse dia. Sin-to grande pesar, pois vejo quais se perdem”.

1862: “Jesus faz-me sofrer pelas almas. Unida a ele, eu sobrevoava todo o universo. Via por toda a parte, al-mas na agonia”.

1863: “Sofro todas as noites pelos agonizantes. Mui-tos caem no inferno. Muitos vão para o purgatório. Quão poucos vão diretamente ao céu”.

1870: “Vejo que, se a oração parasse, logo a justiça se abateria sobre o mundo... ruínas... sangue... Preces fervorosas podem salvá-lo. Jesus incita-me a trabalhar. Tenho a eternidade no céu; mas na terra vale o tempo. Também para a obra das almas. E o tempo passa; ele é

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precioso”. “Continue rezando”, repete-me Jesus sempre de no-

vo. “Vi o Pai. Impossível descrever a imensa bondade de Deus Pai”.

“Eu pensava que no Pai havia sobretudo majestade e onipotência. Mas eu vi, sobretudo e acima de tudo, a-mor”. Ele me disse: “Filha, os homens não me conhecem. Por isso, eles me servem com temor de escravo, julgan-do-me severo. Mas tu estás vendo meu amor pelas criatu-ras, e meu desejo de vê-las felizes...” Ele falou de sua bondade paternal para comigo, de seu amor pelas criatu-ras, durante quatro ou cinco horas. Jesus apareceu, esta-va triste e disse-me: “Desde muito tempo ando à procura de uma alma que queira entreter-se comigo por longo tempo na oração, e não encontro. Ninguém quer entrar dentro de si e de mim. Não há ninguém que queira con-versar comigo. Ou não têm tempo, ou acham o tempo longo. Procuram a si próprios e não ao Pai nem a mim. Assim também não chegam à santidade... tempo perdi-do... graças perdidas”.

“Jesus, toca essas almas, falei, modifica-as”. “Mas como fazer, se só na oração posso dar luz e amor?” En-tão Jesus fez-me ver melhor a triste cegueira de tantas almas. Fiquei espantada vendo-as afundar-se dia por dia numa noite profunda; precipitar-se no inferno por si mes-mas, sem que os demônios tivessem muito a fazer. Jesus estava profundamente triste, chorava ao mostrar-me tudo isso. Ele recomeçou: “Afirma-se que Deus não reclama o que não deu. Mas eu vou exigir dessas almas tudo o que não lhes dei. Porque elas privam-se das graças por sua preguiça, por pouco caso. Porque não querem incomodar-se, mortificar-se. Exigirei tudo o que lhes teria dado se tivessem sabido querer. Reclamarei delas as almas que teriam salvo”.

“Parecia-me, posso dizer, que é difícil ir ao céu sem

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a oração. Jesus continuou: “Quero que tu me indenizes por toda essa frieza e por isso passarás quatro horas co-migo na oração”.

“Ah! não posso”. “Queres tu também fazer-me pena como essas almas que te mostrei?” “Mas é impossível. Tanto tempo!” “Cuida bem de teu tempo, e verás que po-des. Não percas um minuto, e acharás quanto te é preci-so, e mais”.

“Eu tinha de aceitar... comecei a fazer quatro horas de oração. Muitas vezes passaram depressa quando Je-sus fazia tudo”.

“Gosto que tu me procures. Quantas almas procu-ram-me por um momento apenas, e vão-se embora di-zendo que perdem seu tempo. Elas não me acham por-que não se dão ao trabalho de procurar-me seriamente”.

“Ah! se essa gente tivesse perdido seus bois, suas vacas, como os procurariam até encontrá-los. Mas por mim, não vale a pena”.

“Não é por mim, por elas é que eu sofro. Vejo as graças que elas perdem por sua culpa e para sempre. Eu procurei-as com tanto amor. Não, eu não me canso. E elas, dois minutos bastam para se aborrecer... Minha filha, quero que me busques por aqueles que não querem”.

“Mas, Jesus, tu queres que a gente te procure tan-to... mas a gente não te encontra logo. Muitas vezes Tu te deixas procurar por longo tempo!”

“É verdade, respondeu, mas aí está o mérito do a-mor. Se as almas me procurassem durante a vida toda, sem me encontrar, teriam feito apenas sua obrigação. Encarregar-me-ia de recompensá-las largamente”.

“Muitas vezes, ao pôr-me na oração, estava na ari-dez, e ficava horas sem que Jesus viesse falar-me, ou me ver. Esperava. Chamava. Em vão. Então dizia-lhe: vou passar a vida aqui, mas não irei embora de modo ne-nhum. Quando veio, sorriu: “Não pude resistir. Foi preciso

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descer. Tu atrais meu coração. Preciso vir e abri-lo e fa-zer-te ver meu amor por teus irmãos e por ti...”

Às vezes Jesus me censurava de não ter bastante confiança. “Deixa-me fazer; isto não é da tua conta; é da minha. Se quero que morras, isto não tem nada a ver con-tigo. Eu tenho de ver. Eu mando, não tu. Tu obedeces e nada mais. Não queres abandonar-te. Tu me amarras”.

“Maria Santíssima disse-me muitas vezes que a ora-ção foi seu alimento corporal e espiritual. Que passava dias e noites sem beber, sem comer, na oração com Je-sus.”

Jesus: “Não consigo conversar bastante contigo. Fa-ze um retiro comigo”. E Jesus mesmo marcou os pontos da meditação.

“Pensas que é por tua causa que te peço isto? Oh! não. É por teus irmãos. Sabe que nunca me pedes bas-tante... Reza pelas almas sem pensar em ti”

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ORAÇÃO – PROBLEMA Rezar é conversar com Deus. Pode ser feito em fór-

mulas fixas (oração vocal). Pode ser feita em conversação espontânea (oração mental meditação).

Meditação Inicialmente aconselho-te tomar como base de inspi-

ração algum texto bíblico ou ascético. É a meditação na qual, após as reflexões mentais, seguem-se os afetos da vontade ou, se preferir dizer, os afetos do coração, mistu-rados com preces e súplicas ao Deus onipresente e oni-potente. Os afetos atingem todos os assuntos e revestem-se de todas as feições. Preferivelmente sejam atos de fé, de confiança e de amor.

Oração Afetiva Com o tempo sobrevém certo desgosto em fazer re-

flexões: a alma quer amar a Deus. Um pensamento rápi-do, como base mental dos afetos de amor, e já passa a alma aos afetos. Estes, variados em conteúdo, brotam do íntimo, com espontaneidade, com facilidade, dando gran-de satisfação à alma fervorosa. É a oração afetiva de que as obras de Sto. Afonso, principalmente suas Visitas ao Santíssimo. Sacramento, nos dão os melhores modelos.

São os afetos de início muito variados, expressando todas as virtudes. Com o correr do tempo, mantendo-se o fervor espiritual, prevalecem os afetos de amor de Deus; e por fim, são os únicos que interessam à alma. Aliás, está bem de acordo com a tese teológica de que nossas virtu-des agradam a Deus segundo o grau de amor com que são feitas. Como disse Carlos de Foucauld: “A melhor oração é aquela que contêm mais amor” (172).

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A alma quer amar e expressa seu amor a Deus sob formas várias. São afetos ferventes, veementes até, mas estão por assim dizer na superfície da alma. A contempla-ção infusa fará entender essa afirmação.

A oração afetiva é mais fácil à mulher. O homem a-proveita mais da meditação.

Sta. Joana de Chantal conta que São Francisco de Sales aconselhou às suas filhas espirituais passar rapi-damente a essa oração afetiva, sem se demorar muito nas reflexões teóricas da meditação. Corresponde mais aquela ao seu temperamento feminino. E ambas as for-mas de oração são fases de transição.

Simplicidade Como o tempo a pessoa enjoa de dizer a Jesus

sempre as mesmas palavras, que ele já deve saber de cor e salteado, à força de ouvi-las cada dia. A alma prefere expressar seu afeto com um olhar amoroso para o sacrá-rio, ou para o Crucifixo, ou ao Deus presente no íntimo da alma. Prefere sentir o amor, sem expressá-lo em pala-vras. Simplifica assim sua conversação com Jesus. É a oração de simplicidade, chamada assim por ser uma sim-plificação proveitosa dos mecanismos psíquicos da medi-tação e da oração afetiva. A alma prefere contentar-se com o pensamento simples da presença de Deus. Pen-samento amoroso, que diz tudo ao Jesus bem-amado. Daí os outros nomes dessa maneira de rezar: oração de simples olhar, da simples presença de Deus, de simples entrega a Deus (São Francisco de Sales), oração de sim-plicidade (Bossuet)

Noite Esse afeto amoroso é agora menos impetuoso do

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que na oração afetiva, mas de fato é mais íntimo e mais forte: mais agradável a Deus. Passam meses, passam anos de fervor e de consolação espirituais Supondo-se que a alma continue dedicando-se à oração tanto quanto o tempo lhe permite, supondo-se que a alma durante suas ocupações e trabalhos se esforça por manter-se em fre-qüente contato com a presença de Deus por meio de afe-tos, atos de amor, comunhão espiritual etc., acontecerá que ela irá sentir durante seus afazeres mais fervor do que durante a oração na capela. Vai sentir um desejo for-te de correr e de rezar a Jesus presente no sacrário, mas chegando lá, se desvanece todo o fervor. É que está che-gando o tempo da provação do amor. Se é permitido falar assim: Deus faz um teste, privando a alma das consola-ções sensíveis, externas. Quer ver se a alma é capaz de amar também sem receber em troca as consolações espi-rituais como comprovante de seu amor por Jesus, e de ser correspondida por Ele. Deve a alma viver da fé, da confiança na palavra de Deus. Pouco a pouco a alma sen-te-se numa grande aridez espiritual. Ou melhor, há um sentimento de vazio, de fastio, de desgosto.

Antes, ela corria com alegria à oração, ao primeiro sinal do sino. Agora, vai por dever. Vai pela fé no amor de Deus. Vai, convicta que Jesus é o mesmo, embora se es-conda. Embora aparentemente não mais se interesse por ela. É o tempo de prova, do amor sem consolo.

Clarões Às vezes, um clarão rápido, fugaz, atravessa a noite

e o coração humano sente de um modo novo, diferente, a presença de Deus e do seu amor . Momentos fugazes, seguidos novamente pela ausência aparente de Deus;

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seguidos pelo fastio da oração, misturados todavia com um desejo de rezar, com uma atração misteriosa pela so-lidão em Deus. Mas a aridez contínua.

Purificação Ficou noite onde antes parecia brilhar para sempre o

sol do meio-dia, luminoso e caloroso. É a noite dos senti-dos, segundo São João da Cruz. É um processo de purifi-cação espiritual, um processo de espiritualização do nos-so amor por Deus. Principalmente é purificação, pois nos-sa alma, mesmo no estado da graça santificante, está manchada pelas marcas que deixaram os pecados e im-perfeições.

Escreveu Antonieta de Geuser: “Jesus revelou-me um pouco a ofensa que eu lhe fiz com meus pecados. Fiquei horrorizada de mim mesma. O dia todo tentei amar-me por amor de Deus, por caridade, mas não consegui. Amar gente antipática, amar o inimigo, sim, com todo pra-zer. Mas amar uma coisa tão suja, é difícil.” E Jesus a responder: “E eu irei fazer aí minha morada”.

Até aqui passaram anos. Excetuando-se os casos a prazo curto que a hagiografia narra, numerosos mas mila-grosos, em vista força instintiva do nosso amor próprio que requer logo tratamento de saneamento.

Sinais Está na hora de ler os três sinais de São João da

Cruz (Subida 1,13 e Noite 1,9) que mandam a pessoa renunciar à meditação metódica, renunciar a fazer afetos e reflexões; mandam contentar-se com uma “atenção a-morosa à sua presença”.

Primeiro sinal: Uma indiferença geral a respeito de

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tudo quanto existe neste mundo. Tanto lhe faz lugar, ocu-pação, ambiente em que tem de viver. Mesmo a atividade profissional, que antes lhe dava satisfação e estímulo, perdeu todo o interesse natural. Cumpre suas obrigações por dever perante Deus. Sente só o desejo de estar tran-qüilamente na presença de Deus. E, encontrando em tudo só aridez, sente-se um tanto desesperada por essa im-possibilidade (aparente) de progredir na união com Deus.

Segundo sinal: É a alma viver na aflição de estar

volvendo para trás no serviço de Deus, “por causa do desgosto que sente nas coisas espirituais”. Aflição de es-tar em tibieza, por causa dessa aridez espiritual.

Terceiro sinal: É a impossibilidade, por mais esforço

que empregue, de meditar com a mente e ajudando-se com a fantasia, para fazer algum raciocínio ou afeto. Con-tente-se com um olhar amoroso em Deus.

Contente-se com um vago pensamento, com “uma

atenção amorosa a Deus”. Contente-se com “uma amoro-sa e tranqüila advertência em Deus”, sem outra solicitude, sem esforços (Noite 1, 10,5)

Tentar meditar como antes, com raciocínios e afetos, só atrapalha a obra de Deus. Como pessoa que se mexe continuamente ao ser retratada por um pintor. É a obra purificadora de Deus para a alma receber a contemplação infusa.

A noite dos sentidos “é uma desconcertantes mistura de escuridão e luz, de secura e amor, amor de Deus em estado latente, de impotência real e surda energia” (Tan-querey). De fato, já é a contemplação infusa em estado de aridez, com numerosas distrações, deixando na alma um desejo doloroso de Deus. O fogo do amor divino está a-ceso, mas encoberto como brasa sob cinza.

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Progressos Vêm depois os graus iniciais da contemplação infusa

como Sta. Teresa d’Ávila os descreve: recolhimento infu-so, quietude, união conformativa, simples ou extática. E passam-se anos nestas fases iniciais, com grandes con-solações. A alma sente-se unida a Deus, aumentando sempre mais a sua semelhança com ele. Mas requer ain-da uma transformação total, uma identificação com Deus.

Segunda noite Para realizar essa transformação total e definitiva, a

alma deve submeter-se a uma nova purificação, mais ri-gorosa e talvez mais longa do que a noite dos sentidos. É a noite espírito, tão magistralmente descrita por São João da Cruz. A parte sensitiva da alma deve ser sujeita ao espírito, e esse por sua vez deve ser purificado de todo e qualquer apego a criaturas, vivas ou mortas, pessoas ou objetos. A alma humana vai ser fundida totalmente em Deus Uno e Trino, a ponto de se realizar a palavra paulina ao pé da letra: “Já não vivo eu, mas Deus vive em mim” (Gl 2,20).

Transformação que se estende a todas as partes e funções da alma humana. De tal maneira que até os mo-vimentos espontâneos procedem de Deus. De tal maneira que o Espírito Santo dirige a alma em tudo, segundo a outra palavra paulina: “Os que são guiados pelo Espírito, esses são os filhos de Deus” (Rm 8,14).

Resultado final: a alma humana, a criatura, é trans-formada num ser divino, participando da vida de Deus, sentindo-se mergulhada dentro do abismo da imensidade divina. Sente-se não só unida a Deus: sente-se vivendo dentro de Deus.

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Penas e Dores As provações principais são cinco: 1. A alma recebe um conhecimento de si própria

como nunca dantes. Vê e descobre faltas como nunca dantes. Descobre-se em si tal feiura que fica horrorizada consigo mesma.

2. A alma sente pesar sobre si a ira de Deus, aliás, bem merecida, encontrando-se em tal estado. Sente-se estar perante “a Justiça divina”, não perante o Deus de misericórdia.

3. A ira de Deus parece-lhe ser perene, sem fim. Sente-se sem esperança de tornar a ser agradável a Deus. Sente-se condenada merecidamente ao inferno.

4. A alma recebe agora um conhecimento novo e profundo da grandeza de Deus, do Ser Infinito, o unica-mente digno de ser amado. Sente um desejo ardente de amar essa bondade e beleza infinitas. E sente-se repelida por Deus como indigna; repelida aparentemente para sempre.

5. Sua maior aflição é sentir quanto esse Deus me-rece ser amado. Sente ânsia insaciável de amá-lo, e por outro lado sente sua incapacidade de amá-lo. Sem falar da sua incapacidade de amá-lo quanto merece.

Aflições Algumas provações colaterais acompanham e refor-

çam o martírio da alma: 1. A recordação da felicidade anterior, com Jesus,

deixa um sabor amargo. A alma sente-se incapaz de ja-mais tornar-se digna da aceitação divina.

2. Sente-se incapaz de rezar. Durante o tempo da oração jaz diante de Deus prostrada, inerte, gemendo sob

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a desgraça que lhe parece sem remédio e sem fim... E isso não é só uma ficção mental. É a realidade de

nossa posição no mundo sem a graça de Deus, preveni-ente e cooperante.

3. Impossível receber apoio ou conforto da parte do confessor, ou diretor espiritual, imaginando a alma que eles não a compreendem, julgando-a com excessiva bon-dade que ela não merece.

4. A esses males internos juntam-se tentações con-tra as três virtudes teologais, dúvidas contra a fé, dúvidas contra a esperança, desespero da salvação e finalmente tentações contra o amor de Deus, sentindo ódio contra Deus, impulsos de blasfêmias. É tudo uma confusão psi-cológica indescritível.

A purificação dura meses e anos, felizmente entre-cortada por tempos de intensa união com Deus, até por êxtases que ajudam a alma a superar a provação. Aliás, durante todo esse tempo de desespero, sente-se a alma fortalecida por uma misteriosa atração para com Deus, um desejo incontido de amá-lo. Assim, Deus a sustenta, sem todavia deixar de fazê-la sofrer.

Atitude a ser assumida: renovar sua fé, sua confian-ça, seu amor a Deus. E suportar tudo com resignação à vontade de Deus (Não deve tentar fazer meditação: é inú-til e só faz sofrer mais). No fundo, não há remédio huma-no. A alma tem de passar por esse crivo purificador.

Da hagiografia hodierna, duas amostras.

Antonieta de Geuser Antonieta relata assim sua experiência espiritual: “A-

quilo não é só purgatório. Aquilo é inferno. E não sei, em absoluto, se correspondo às graças de Deus. Não vejo absolutamente nada... Não consigo nem rezar, nem pen-sar, nem querer. Não compreendo nada. Tudo é obscuro

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demais, é ardente demais Tudo está morrendo em mim: e numa morte sem consolo...”

“Sofrimento, dor, angústia, desprazer, desgosto, tor-tura, martírio, tentação, agonia, morte, um arrasamento total. Todas as palavras são incapazes de descrever o estado de minha alma. Essa tentação só pode ser tradu-zida por um página em branco...”

E todavia escreve: “Meu cálice está cheio, mas eu o queria maior... O bom Deus é bom demais para comigo. Quanto mais eu lhe agradeço pelo sofrimento, mais ele manda. Estou no fim das forças”.

Gema Galgani Mais dramático ainda é o testemunho de Gema Gal-

gani. Poucos dias antes da estigmatização, em junho de 1899, Jesus revela-lhe toda a sua vida futura: “Fez-me conhecer tudo quanto devia sofrer no percurso da minha vida. Disse-me que logo mais poria à prova minha virtude, para ver se verdadeiramente o amo; para saber se a o-blação que lhe fiz era verdadeira. Disse-me que o conhe-ceria quando meu coração me parecesse uma pedra de granito. Disse-me quando estarei árida, aflita, tentada. Quando todos os meus sentidos se rebelarão e parecerão feras famintas. Quando estarei inclinada ao mal. “Retorna-rão à tua mente os prazeres desta terra. A memória apre-sentará à tua mente tudo aquilo que não queres. Sempre terás diante de ti tudo que é contrário a Deus”.

“Tudo que é de Deus, não o sentirás mais. Não per-mitirei que teu coração tenha algum consolo. Os demô-nios, com minha permissão, farão esforços contínuos para desesperar-te. Colocarão na tua mente maus pensamen-tos, um grande ódio à oração; terrores e tremores tê-los-ás sempre, tantos que nunca te faltarão. Nunca te faltarão ultrajes e injúrias. Ninguém mais acreditará em ti, nem

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teus superiores”. “O céu tornar-se-á para ti de bronze. Jesus parecerá

aos teus olhos tão severo. Irás fazer oração e nada con-seguirás. Quererás recolher-te e eu te distrairei. Chama-rás e clamarás por Maria Santíssima e todos os santos, mas nenhum terá piedade de ti... Irás receber a santa Comunhão, irás confessar-te e não sentirás nada; sentirás ódio por tudo... Praticarás todos os exercícios de devo-ção, mas tudo de modo forçado e tudo te parecerá tempo perdido... Terás sempre esperança, mas será como se não a tivesses.”

“Amarás Jesus, mas será como se não O amasses: porque durante esse tempo ele nunca se fará sentir...

E mais, terás nojo de ti e de tua vida. Terás medo da morte. E faltará até o desabafo de chorar.”

“Disse-me que quer tratar-me da mesma maneira como o tratou seu Pai celeste”. E a resposta de Gema: “Jesus foi o homem das dores; eu quero ser a filha das dores”.

E Jesus continua: “Vê, minha filha. No céu há pou-cos de tua idade, aos quais eu tenha dado gozar todos os meus sofrimentos”. “Vê filha! O maior presente que eu possa fazer a uma alma, que me ama e que me é muito cara, é dar-lhe o dom de sofrer”.

“Filha, olha para mim e vê como se ama. Não sabes que o amor me matou? Vê estas chagas, este sangue, estes açoites, esta cruz: é tudo obra do amor”.

E a resposta de Gema: “Bem sei, sou uma grande pecadora, e ouço de ti mesmo que pior do que a mim não podias encontrar. Concordo”.

Passada a noite, segue-se a aurora da vida eterna.

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6. A DOR

A CRUZ

Mistério A realidade número três do triunvirato de origem ter-

restre é a dor, o sofrimento. No céu não há sofrimento de espécie alguma.

O amor, o número um, entra tal qual no céu. Só que suas labaredas elevar-se-ão sete vezes mais alto (Dn 3).

A oração também entra no céu, mas muda um pou-co de conteúdo; todavia, a grande devoção pelos pecado-res continua no coração de todos os eleitos, até findar o tempo.

O sofrimento não entra no céu: fica na porta e retor-na à terra. O sofrimento é como a fonte de água viva de João (4,14), que brota da terra mas lança suas águas pa-ra o além, para a vida eterna.

Um escritor meteu-se na cabeça a idéia de conden-sar um livro numa página só, e de resumir essa página numa só palavra. Tentou, mas desistiu. A nossa fé resol-veu esse problema. Crucificado, Cristo na cruz, eis o re-sumo de todo o cristianismo, de toda a redenção.

Por sobre a cruz ressoam as palavras: “Maior amor não existe do que dar a sua vida” (Jo 15,13). Com a cruz chegou a hora da qual fala o Filho de Deus: “Tanto amou Deus o mundo que entregou o seu Filho único à morte, a fim de que tenham a vida eterna” (Jo 3,16). E novamente: “Nisto conhecemos o amor de Deus que deu a vida por nós” (Jo 3,16)” (T. Toth).

Sofrimento – dor – cruz: é a terceira dimensão do cristianismo. Escreveu Anatol France: “Jamais pude per-

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doar o sofrimento”. Idêntico, só mais brutal, o protesto de Nietzsche. A

dor é um mal no plano natural. Mas aos olhos da fé, no plano sobrenatural, realizada a redenção; o único mal a-inda existente é o pecado. Tudo o mais, morte, doença, sofrimento transformou-se num bem, num valor positivo.

O sofrimento atraiu a Deus para a terra. Bens ele os possuía de sobra no céu e não invejava o paraíso terres-tre. A criatura humana tem inveja dos bens da terra e tem medo dos sofrimentos. Com Deus deu-se justamente o contrário. Ele tinha, por assim dizer, inveja do sofrimento, até realizar-se a Encarnação. Por trinta e três anos parti-cipou da nossa sorte. E ainda não contente, incorporou os remidos ao Corpo místico, e assim os sofrimentos huma-nos tornaram-se sofrimentos de Deus, até ao fim do mu-no. Agora, o Deus do céu está satisfeito. O maior valor da terra é seu, a pérola grande da parábola.

Amor Deus ama a Jesus Cristo mais do que todas as cria-

turas juntas, incluindo os anjos. E a máxima prova desse amor foi entregá-lo à morte na cruz. Pois assim formou-se a plenitude de graça da qual todos nós participamos (Jo 1,16).

As páginas do N.T. dão eloqüente testemunho do ardor que consumia Jesus ao dar-se como vítima de amor ao Pai. Hb 10,7 recorda o estábulo de Belém, o Menino-Deus a rezar: “Formaste meu corpo, eis que venho, ó Deus, para cumprir a tua vontade”.

E durante toda a sua vida terrestre paira diante de sua alma o grande ideal a ser realizado: o Filho de Deus veio “para dar sua vida pela redenção da multidão” (Mt 20,28).

“Eu vim jogar fogo sobre a terra... Tenho de ser bati-

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zado. E quando anseio que ele se realize” (Lc 12,32). São Pedro quer tirar de Jesus esses pensamentos

melancólicos, de uma morte triste e ignominiosa na cruz. Jesus o repele com veemência inesperada: “Retira-te de mim, tentador. Tu não entendes as coisas de Deus. Só tens idéias humanas (Mt 16,23).

Tão longe vai o amor de Jesus pela cruz que a põe como condição prévia do apostolado. “Quem quer seguir após mim, carregue sua cruz cada dia e me acompanhe” (Lc 9,23; 14,27).

Uma hora antes de iniciar a paixão, mais uma vez Jesus se explica: “Ninguém tem maior amor do que aque-le que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15,13).

A propósito, a conhecida palavra de Sto. Agostinho: “Amor meus pondus meum”. “O amor é minha força de gravidade”. O amor dirige Jesus e o faz vergar sob a cruz, amor pelos seres humanos que o Pai do céu entregou ao seu cuidado e ao seu carinho.

Bossuet disse a famosa frase: “Quando Jesus entra em algum lugar, ele entra com sua cruz. Traz consigo to-dos os seus espinhos e os distribui àqueles que ama”.

MORTIFICAÇÃO “Quem não orienta para a mortificação, para a cruz,

não leu o evangelho; não é cristão” (Bremond) O naturalismo, presente em todos os séculos da his-

tória da Igreja, apregoa que o cristianismo é uma doutrina de vida, não de mortificação. O cristianismo não quer re-núncias inúteis, mas deve integrá-las em todas as ativida-des humanas. Pobreza não tem sentido num século de máxima produção técnica.

Virgindade e celibato são valores negativos em face do matrimônio cristão. Nada de obediência, porque o cris-tianismo nos trouxe a liberdade. A providência divina co-

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locou-nos no mundo não para destruí-lo, mas para aper-feiçoá-lo. O espírito-iniciativa é uma força constitutiva.

Misturam-se habilmente verdades e falsidades. A graça supõe a natureza, não a destrói, diz o conhecido brocado escolástico. Mas não tomando cuidado, a nature-za é capaz de destruir a graça.

E Cristo? Está com a palavra a Escritura. Cristo não veio para

fundar alguma obra de beneficência, de filantropia, mas para dar à humanidade a vida nova que brota da cruz do Calvário. Ele exige do seu discípulo renúncias, renúncia à família, à propriedade. Exige carregar a cruz de cada dia (Lc 14, 26.33).

Para os mesmos discípulos vale a parábola do grão de trigo que deve morrer na terra par dar fruto (Jo 12,24). Para todos vale que é preciso podar os desvios da natu-reza a fim de dar mais fruto (Jo 15,1).

Para todos vale que, “quem ama a sua vida, perdê-la-á; e quem neste mundo, odeia a sua vida, salva-la-á para a vida eterna” (Jo 12,25 e Lc 9,24).

“Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se chegar a perder a sua alma?” (Mt 16,26). “Quem perde a sua vida por minha causa, salva-la-á” (Mt 16,25).

Paulo São Paulo, discípulo fiel, pratica a mortificação e e-

xige-a dos fiéis: “castigo meu corpo” (1 Cor 9,27), “pois a carne protesta contra o espírito” (Gl 5,17). “Se viverdes segundo a carne, morrereis” (Rm 8,12). Portanto:

1. O vocábulo mortificação é invenção de São Paulo:

fazer morte, fazer morrer. “Mortificai o vosso corpo” (Cl

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3,5). “Se pelo espírito mortificardes os apetites da carne, vivereis” (Rm 8,13).

2. Despojamento. “Despojai-vos do velho homem e revesti-vos do homem novo” (Ef 4,22; Cl 3,9).

3. Crucifixão: “Os que são de Cristo, crucificaram seu corpo” (Gl 5,24; Rm 6,6).

4. Morte e sepultura: “Pelo batismo fomos sepulta-dos com ele na morte” (Rm 6,4). “Vós morrestes e vossa vida está com Cristo, oculta em Deus” (Cl 3,3). “Estamos entregues à morte... Embora se destrua em nós o homem exterior, o interior se renova dia após dia” (2 Cor 4,11.16).

Não vejo como combinar essas palavras da revela-ção com as teses do naturalismo.

Tradição A tradição cristã é fiel à mensagem evangélica. Mor-

tificação é caminho necessário para a perfeição: mão úni-ca.

“Devemos tomar a terra como caminho, não como pátria” (São Gregório Magno)

“Deus te criou; examina-te e destrói em ti, tudo o que não saiu de sua oficina” (Sto. Agostinho)

Eckehart, grande mestre espiritual da Idade Média, escreve: “Prestai atenção, ó vós, espíritos intelectuais! O corcel mais rápido para conduzir-vos à perfeição é o so-frimento”.

Sta. Teresa d’Ávila: “Os dois pés com os quais ca-minhamos na vida da perfeição são: mortificação e amor de Deus. Aquele é o pé esquerdo; este é o direito”.

São Francisco de Sales: “Os verdadeiros devotos são os verdadeiros mortificados. Sofrer é quase o único bem que somos capazes de realizar na terra. Uma onça de paciência vale mais do que um quilo de ação”. E insis-te o santo, em seu modo gracioso; “A festa da Purificação

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não tem oitava, o que quer dizer que até o nosso último suspiro temos de purificar-nos. Portanto, é preciso termos duas resoluções iguais. Uma, de ver crescer sempre as ervas más em nosso jardim. A outra, de ter coragem de arrancá-las”.

São Vicente de Paulo: “Se alguém acredita que já está com um pé no céu e omite a mortificação, este está no supremo perigo de despencar logo que puxar o outro pé”.

F. W. Faber: “Vede a fileira dos santos. Para a maio-ria deles foi a dor que lhes abriu os tesouros do amor divi-no. A dor conduziu-os àquela paragem venturosa.

A dor formou as coroas que ornam suas cabeças. A dor profunda, prolongada, fá-los contemplar, agora, a gló-ria”.

“O ponto em que os nossos contemporâneos ficam evidentemente atrás dos antigos, é o apreço e a prática da mortificação” (Saudreau)

Escritor ascético, moderno, criterioso, Zimmermann SJ, escreve: “Não há dúvida que dentro de nós há forças contrárias à perfeição. Se nós não as impedimos, elas é que impedem a perfeição, e isto em todos os seus de-graus, desde o simples estado da graça até o mais alto vôo do amor... Ou mortificação ou perda da perfeição, e com isso perda de maior felicidade aqui e acolá... E não valem escusas. A natureza defende-se e esconde-se a-trás de mil pretextos corriqueiros. Quando não prefere contestar a submissão e obediência abertamente. Mas não há como fugir...”

“Ao céu, via-se com um pequeno pedregulho no sa-pato” (L. Veuillot)

Finalidade Finalidade da mortificação:

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1. Libertação dos pecados cometidos. 2. Preservação de novos pecados. As feras das pai-

xões ainda uivam famintas em nosso coração. Não se deve perdê-las de vista.

3. Abertura à graça. Jesus a Benigna Consolata: “A mortificação é o canal da graça. Se o canal é estreito, passa pouco”.

São Francisco de Sales: “Quem mais mortifica suas inclinações naturais, mais atrai sobre si as inspirações sobrenaturais”.

4. Imitação, seqüela de Cristo. O discípulo ardoroso não quer passar melhor do que o Mestre. Envergonha-se de viver na folga, quando Jesus passa mal. Deseja seguir-lhe as pegadas (1Pd 2,21). Só a vítima santa, o Cordeiro imolado consegue solver, desfazer os selos (Ap 5,1).

5. Finalmente, e principalmente, abertura ao amor de Deus. “Morrer a todo outro amor, a fim de viver só para o amor de Jesus” (São Francisco de Sales)

RENÚNCIA TOTAL PELO AMOR TOTAL

Reservas Contam as crônicas antigas, do tempo em que a Ir-

landa se converteu à fé cristã, que de vez em quando um dos guerreiros, mergulhados na água batismal, erguia o braço direito para fora da água: este, com o qual brandia a arma na batalha, não devia pegar a água santa; devia continuar ao livre uso e dispor do cavalheiro.

Cristo Jesus adverte no Evangelho: ninguém pode servir a

dois senhores. “Os que vivem, já não vivam para si, mas

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para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2 Cor 5,15).

Jesus fez entrega total de tudo em nosso favor, e espera o mesmo de nós. Seu amor total espera, como resposta, amor também total. E este nosso coração hu-mano a inventar mil pretextos para fazer restrições, pe-quenas e mesquinhas; para reservar-se algum apego aos bens da terra. “É avarento demais aquele a quem Deus não basta”, dizia Sto. Agostinho.

Ao novato, desejoso de afiliar-se, perguntavam os antigos monges do deserto: “Trazes um coração vazio?” Num corpo cheio de terra não cabe mais nada. Nosso coração deve estar vazio de tudo para o Espírito Santo poder derramar nele seu amor divino (Rm 5,5).

O místico medieval Tauler, num sermão sobre o nascimento de Jesus em Belém, fala daquelas coisas ter-renas que põem obstáculo à entrada de Deus em nós: “Satisfação e gosto por criaturas vivas ou mortas... ami-zades, sociedade, roupas, comidas... tudo o que o homem aprecia. Cada um tem o seu gosto, apego, prazer. E essa coisinha pequena priva-te e rouba-te o teu grande Deus e o delicioso nascimento que ele quis fazer em ti. Tu ficas sem o desejo e o consolo que devias ter por Deus e por este nascimento. É esse pequeno gostinho que o impede e embarga. Vê, tu mesmo, o que é. Ninguém sabe melhor do que tu. Não perguntes a mim, pergunta a ti, que não tens amor nem fervor. Queres sempre Deus e a criatura juntos.

E isto é impossível. Quanto mais de um, tanto me-nos do outro. Quanto frio sai, tanto calor entra. Enquanto tens voluntário apego e afeição à criatura, pessoa ou coi-sa, não podes sentir a morada de Deus em tua alma. Deus deu todas as coisas a fim de que sejam caminho para ele. Mas a meta final é ele só, e mais ninguém, nem isto nem aquilo”.

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Séculos mais tarde recebemos a mesma mensa-gem. Sta. Teresa d’Ávila não se cansa de repetir que o empecilho principal para o progresso na vida mística é algum apego egoísta. Aliás, o único obstáculo, pois se tomamos a sério a entrega total, Deus não falta com sua parte. “O ponto está em que lhe demos por seu (o palácio de nossa alma) com total determinação, e lho desemba-racemos, para que nele possa pôr e tirar como em coisa própria...

Como não violenta nossa vontade, toma o que lhe oferecemos. Mas não se dá de todo enquanto não nos damos de todo...

Se atravancamos o palácio de gente baixa e de se-vandijas, como há de caber nele, o Senhor com sua cor-te?” (Caminho 28,12)

“Temos demasiado amor a nós mesmos e extrema circunspecção para defender os nossos direitos. Oh! que grande engano” (Morada 5,4,6). Que fina ironia!...

“Mãos à obra, despojando-nos do nosso amor pró-prio e de nossa vontade, do apego por qualquer coisa da terra... Morra, morra este nosso verme, como o verme da seda, terminando a obra para a qual foi criado” (Morada 5,2,6).

São João da Cruz traçou o quadro perfeito dessa en-trega total ao Absoluto. Quadro maravilhoso para o espíri-to, quadro horroroso para a natureza. Mas é tal a mensa-gem paulina: despojar o velho homem, crucificá-lo, enter-rá-lo a fim de renascer e ressuscitar em Cristo Jesus. Eis o apelo à generosidade (Subida, I 13):

“Procura sempre inclinar-te não ao mais fácil, senão ao mais difícil.

Não ao mais saboroso, senão ao mais insípido. Não ao mais gostoso, senão ao menos gostoso. Não ao que é consolo, senão ao desconsolo. Não ao que é descanso, senão ao trabalhoso.

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Não ao mais, ... senão ao menos... Para chegar a gozar do tudo Não queiras ter gosto em nada. Para chegar a possuir tudo Não queiras possuir algo em nada. Para chegar a ser tudo Não queiras ser algo em nada”. Em outras palavras: fazer em tudo e sempre a von-

tade de Deus e não a tua.

Alguns conselhos concretos 1. Nada de inútil e fútil em tua vida. Não pensar, fa-

lar, fazer coisa inútil. Quantas bagatelas e ninharias en-chem horas e quiçá dias de nossa vida. Tempo precioso para o amor de Deus em nós.

2. Deus só basta. Gravar esse princípio em nossa mente: Deus só. Norma do nosso pensar, querer, falar, agir deve se Deus, Deus só. Desejar somente o que Deus quer. Alegrar-se somente por aquilo que alegra a Deus. Entristecer-se só por aquilo que entristece a Deus: peca-do, perda das almas.

3. Radicalismo espiritual. “Deixa tudo e tudo acha-rás” (Imitação 3,32,1). “Meu filho, Eu devo ser teu supre-mo e último fim” (Imitação 3, 9,1)

Abertura irrestrita ao amor total. É mister renunciar a todos os amores terrestres, principalmente ao amor pró-prio, em troca do amor de Deus.

A pequena Anita foi ensinada a oferecer seu coração ao bom Deus em sua oração da manhã. Certo dia omite as palavras da oferta. A mãe pergunta: “Hoje não dás o coração a Jesus?” E vem a resposta num sussurro miste-rioso: “Não posso, mamãe.” “Como é que não podes?” “Já dei ontem, e ainda está lá”... Ah! quem nos dera assim fosse; que bastasse dar uma vez para sempre. É que te-

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mos cuidado de perder o coraçãozinho para sempre e mandá-lo registrado, ou até por reembolso. Pudera! Assim retorna sempre de novo ao remetente. Deus quer doação total. Somente assim ele também nos pode dar seu amor total.

E é preciso repetir nossa doação. Repetir todos os dias. Até o coração não mais retornar. Pois é hábito nosso dar e retomar, ou melhor, surripiar pouco a pouco toda a nossa oferta generosa. O único remédio é repetir a doa-ção sempre de novo. E martelar na cabeça e no coração: Deus só te basta e de sobra.

Impõe-se uma revisão de tempo em tempo. Revisão de todo o almoxarifado espiritual. Eliminem-se, sem dó, todos os fios de apego que prendem o grande Guliver pri-sioneiro dos Liliput...

A frase-chave: por que fazes isto? Por amor de Je-sus. Por que pensas, falas? Sempre por Jesus.

“Torno a dizer: deixa-te, renuncia a ti mesmo e goza-rás paz. Dá tudo por tudo.” (Imitação 3,37). O discípulo pergunta como São Pedro: quantas vezes devo renunciar-me? Resposta: “Sempre e a toda hora; no muito e no pouco” (Imitação 3,37)

“Por isto encontram-se tão poucos contemplativos, porque tão poucos sabem desapegar-se das criaturas mortais” (Imitação 3,31)

São Francisco de Sales: “Quando a casa pegou fo-go, jogam-se todos os móveis pela janela. Quando o fogo do amor de Deus incendiou um coração, queima-se tudo o que não é Deus”. Deus quer ser amado com todas as forças do coração.

Magistério Para finalizar, palavras do Cristo na terra: “A Igreja exorta insistentemente a todos os cristãos

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que juntem à conversão interior também os atos externos de mortificação corporal!... Com maior razão têm o dever de abnegação os sacerdotes, ornados de um caráter pe-culiar de Cristo, e aqueles que professam os conselhos evangélicos para imitar mais fielmente o aniquilamento de Nosso Senhor, e para tender mais eficazmente à perfei-ção... Exige-se dele uma adesão por excelência, em seu significado interior, pois o religioso, como cristão, deve dar uma adesão total ao mistério de Deus.

Sua vida é, ou deve ser, uma imersão na água ba-tismal, ou melhor, um lançamento no fogo do Espírito Santo. Ele está imerso na circulação da vida do Corpo místico e eclesial... Os atos do religioso devem, por pro-fissão pública, ser medidos em todas as dimensões pelo evangelho. As expressões de sua vida, da manhã à noite, significam obséquio a Deus...

A árvore que não produz frutos de penitência será cortada, diz o Batista (Mt 3,8). Ora, o religioso coloca nas mãos da Igreja toda a realidade de vida, de tempo, de energia, a fim de que ela disponha à vontade. Seus valo-res mais íntimos e invioláveis, liberdade pessoal, consci-ência, amor, são oferecidos à Igreja em doação gratuita por todos.

A vida religiosa prova que a economia salvífica não está em falência.

Mostra a todos a grandeza de Cristo reinante e o in-finito poder do Espírito Santo operando maravilhas na I-greja (LG 44)

Assim, a vida religiosa manifesta-se como a resposta adequada ao grito da salvação, ao convite à penitência, num eco contínuo na história da Igreja” (AAS 1966, 182).

SOFRIMENTO E FÉ

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Deus tem servidores por toda a parte. Mas os maio-res deles, ele os educa no mosteiro da santa cruz.

Batiza-se Clóvis, o primeiro rei cristão da França, em Reims. Ou realmente deslumbrado pelo brilho litúrgico da cerimônia, pelas centelhas de velas acesas etc., ou ironi-zando, Clóvis pergunta a São Remígio: “É este o céu que me prometestes?” “Não. É só uma pálida sombra da reali-dade. Mas o caminho para lá é esse”. E apontando um grande crucifixo: “E esta é a porta de entrada”.

A Parábola P. Luís Coloma conta e garante que é verdade, não

invenção dele, o seguinte: “Era uma vez um homem chamado João. Tinha uma

boa esposa, uma filha e seu pequeno sítio para sustentar a família. Vieram os gafanhotos devastando os campos. João fez romaria ao Cristo de Mimbral rezando: “Senhor, guardai a colheita, conservai-me o pão, não deixeis faltar o pão na casa de nosso servo”.

Mas Deus não atendeu o pedido de João, e em vez da pobreza reinou a miséria em sua casa. “Não importa, disse João. Temos saúde e dois braços fortes. Nosso Se-nhor irá abençoar o nosso trabalho”.

Porém, não demorou que sua esposa caísse doente, doença grave que a levou à beira do túmulo. E João fez outra romaria pedindo saúde para a esposa: “Não deixeis minha filha sem mãe, e nossa pobre casa sem um raio de sol”. Três dias depois morreu a esposa, deixando um viú-vo e uma órfã após si. “Devo suportá-lo, disse João, Deus tirou-me a mulher, mas deixou-me a criança”.

Não tardou e a doença da mãe manifestou-se tam-bém na filha. E João fez nova romaria ao santuário, aper-tando o rosto contra a grade de ferro. “Senhor, salva mi-nha filha. Estou velho e abandonado. Que irei fazer só, no

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mundo, como árvore sem galhos e sem frutas?”. Animado, retornou ao lar. Sua filha querida morrera.

Deus quis assim. João, gemendo, mas resignado: “Perdi a colheita, perdi a esposa, perdi a filha. Deus não quer que lhe peça tais coisas. Não irei pedir mais nada. E diaria-mente visitava a pequena capela, ajoelhava perante Nos-so Senhor, juntava as mãos calosas e dizia humildemen-te: “Senhor, aqui está o João. Seja sempre a vossa von-tade. O Senhor sabe melhor o que faz”.

“Quando Deus descobre uma alma desejosa de se dar sem reserva, manda seu furriel de predileção; àquele que em menos tempo é capaz de fazer melhor trabalho, o sofrimento...” (PLUS, Consummata, 171)

L. Bloy Ouçamos ainda outro “filósofo da dor”. O peregrino

do absoluto exalta em sua conhecida linguagem, vigorosa e insolente, o amor à cruz e o valor do sofrimento. Escre-veu no início deste século:

“Quando não se tem fé, não se pode saber o que é uma alma, porque se desconhece forçosamente o que ela custou; por preço elevado fostes resgatado, diz São Pau-lo.

Muitos me querem bem: isso é evidente para mim. Até estão dispostos a privar-se de bens. Mas de que bens? Estão falando de melhorar a situação dos que so-frem. Como podem crer que isto seja possível, tendo em vista somente o bem-estar material? E estão forçados a visar também só este, porque não têm absolutamente na-da a dar às suas almas. Ninguém tem feito tanto pelos pobres, mesmo materialmente, como aqueles grandes homens de fé que a Igreja chama santos. Ora, os santos sabiam que o corpo humano é somente a aparência do homem; eles trabalhavam sobretudo pelas almas que não

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morrem. Eles sabiam também que o sofrimento é bom, sobrenaturalmente, para todos. E que o homem que não sofre ou que não quer sofrer é filho deserdado do Filho de Deus, que esposou a dor. Pois só quem é capaz de vis-lumbrar o preço de sua alma, aceita sofrer. Os santos, sem dúvida, não pretendem trabalhar, como fazem os socialistas, para que não haja mais pobres e que o sofri-mento desapareça deste mundo. Pois, então, quem paga-ria? Seria uma sociedade de porcos insolventes, falidos, de uma feiura indizível”.

O Problema O problema da dor na existência humana é antiga

preocupação, não somente dos médicos mas também dos filósofos e pensadores. Os poetas dedicaram-lhe os três grandes poemas da humanidade: Guilgamêsh de Assur-Babel, a Odisséia de Homero e o Livro de Jó, com suas paciências e impaciências.

Se há um Deus, então nenhum mal, nenhum sofri-mento nos pode atingir sem que ele o saiba. E se esse Deus é bondoso, e ele é bondoso, ele não nos envia ne-nhum sofrimento somente para torturar. Sabemos que a primeira edição do mundo foi “indolor”.

Mensagem Todo sofrimento é um apelo de Deus que nos diz:

“Homem, teus caminhos não são bons; volta!” Ou o sofri-mento é uma saudação de Deus que nos diz: “Quero tor-nar-te melhor do que és; quero transformar-te numa obra de arte, digna de enfeitar o paraíso celeste”. Ou é um convite a sofrer pelos outros; sofrer em substituição ou procuração por algum seu próximo ou remoto.

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Liberdade Mais uma vez L. Bloy, filosofando sobre a dor huma-

na, com seu jeito peculiar: “Acredita-se comumente que Deus não necessita recorrer a toda a sua força para do-mar os homens. Ora, esta crença manifesta uma singular, profunda ignorância do que é o homem e do que é Deus em relação a Ele. A liberdade, este dom prodigioso, in-qualificável, incompreensível, pelo qual nos é dado vencer o Pai, o Filho e o Espírito Santo, pelo qual nos é dado ma-tar o Verbo Encarnado, apunhalar sete vezes a Imaculada Conceição, numa palavra, trazer em reboliço todos os espíritos criados, nos céus e nos infernos... esse dom ine-fável nada mais é que o respeito que Deus tem por nós. O respeito de Deus vai tão longe que, no período da lei da graça, ele nunca tem falado aos homens com autoridade absoluta, mas ao contrário, com a timidez, a mansidão, até diria com a submissão de um pedinte indigente...

Entre o homem revestido involuntariamente de sua liberdade e Deus, despojado voluntariamente de sua for-ça, o antagonismo é normal. Ataque e resistência equili-bram-se razoavelmente. E este eterno combate da natu-reza humana contra Deus é a fonte borbulhante de pere-ne sofrimento... Deus é o eterno mendigo do amor”.

Intervenção A mortificação ativa, selfmade, autodeterminada,

costuma não ser suficientemente eficaz. Há honrosas ex-ceções. De um lado, não queremos ter dó demais. Por outro lado, de fato, precisamos ser prudentes, tendo em vista a saúde; devemos temperar excessos nas penitên-cias e mortificações corporais. Recorramos pois, a um interventor neutro.

As doenças e os sofrimentos que vêm de fora traba-

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lham e atuam sem comiseração, e não oferecem perigo de nos esmagar ou de nos reduzir a zero (ou a pó do ce-mitério). Também não são infeccionados pela vontade própria, ou seja, por aquela vaidade refinada que se infil-tra por todos os poros, também na vida espiritual. Daí nos diz a Palavra de Deus: “Como eras grato a Deus, foi pre-ciso que a tentação te provasse (Tb 12,13 e Hb 12,5 re-corda aos cristãos antigo ditado da Velha Aliança: “Deus castiga a quem ama” (e quando não castiga?...).

E a prova experimental é a vida dos santos, sem ex-ceção alguma. Provam as noites místicas de purificação, graças de escol, nas quais doença e sofrimento, físico ou moral, fazem parte do enxoval.

Providência Mestre pintor, no alto do andaime, terminou um gru-

po de figuras na abóbada da igreja. Distancia-se da pintu-ra para ver o efeito e, mergulhado nos seus pensamentos, recua sobre uma tábua até o fim, sem o perceber. Seu auxiliar repara de repente no perigo: mais um passo para trás e ele cai no vazio. Gritar é perigoso, pois então ele se vira e tomba no abismo. Com presença de espírito, o ser-vente enche um pincel de tinta qualquer e arremessa-o em meio do quadro pintado. Furioso e desesperado o mestre corre para frente, a fim de salvar sua obra. Depois vira-se indignado para o auxiliar. Mas este aponta o lugar onde estava antes: “Era o único meio de salvar-te a vida.” Eis o papel providencial que doença e sofrimento repre-sentam em nossa vida espiritual.

Padre Nadal pergunta a Sto. Inácio qual o meio mais rápido para atingir a perfeição e a santidade. E a respos-ta: “Mestre Nadal, pedi a Deus que vos faça a graça de sofrer muito por seu amor.”

Já conhecemos o parecer da mística medieval: “O

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cavalo mais rápido para carregar-vos à perfeição é o so-frimento” (Eckehart)

Sofrimento-amigo Sua finalidade é podar os desvios e vícios. Os maus

instintos do velho homem, como São Paulo chama o filho de Adão. São as marteladas do escultor para tirar do már-more bruto a imagem do Filho de Deus. E isso não se faz sem doer.

“O sofrimento é um bom mestre. Ele não é muito querido. É que suas maneiras são um tanto indelicadas. Seu método de ensino é severo. Mas quem o suporta pa-cientemente, não se arrepende. Progride em horas e dias, mais que sem ele em meses e anos” (Kepler)

Remata a velha e amiga “Imitação de Cristo” (2,12): “Se houvesse para nós caminho melhor e mais seguro de salvação do que o caminho da dor, Cristo de certo no-lo teria ensinado com palavra e exemplo”. Portanto, paciên-cia e perseverança. De alunos e aprendizes mais ou me-nos pacientes, bem ou mal humorados, devemos tornar-nos, pouco a pouco, sem pressa, em amigos da cruz.

Jesus Interessa a opinião de Jesus a esse respeito. Jesus

não dá nos Evangelhos uma resposta direta, uma expli-cação doutrinal. Procede por vias de fato. Ensina pela vida. Torna-se, morrendo na cruz, o homem das dores previsto pelo profeta. E com isso ficamos sabendo: dor e sofrimento não são um mal; senão, Jesus o teria recusa-do. Não é necessariamente castigo: pois Jesus não tinha culpa. Não separa de Deus, ao contrário: embora sofren-do, nós nos sintamos mais dispostos à oração e a atos de amor. Assim, pois, o sofrimento não é escândalo, não é

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pedra de tropeço no caminho do céu. Da atitude de Jesus concluímos que o sofrimento: 1. É um grande bem; já que Deus o escolheu para

si. 2. Sofrer é imitar o Verbo Encarnado. É tomar Jesus

Cristo em sua realidade total. Significa não escolher a nosso gosto, por assim dizer, uma antologia “ad usum delphini”, para jardim de infância. Aceitar Cristo significa marchar sobre a via real da cruz (Imitação 2,12).

3. Sofrimento é matéria do sacrifício litúrgico. Pela morte de Jesus na cruz, entrou definitivamente no culto, como elemento integrante da religião. Pelo sofrimento, somos colocados sobre o altar da cruz. Somos hóstias. Exercemos uma função litúrgica.

4. Sofrimento faz parte do mistério. Suposto que Je-sus é Filho de Deus, o problema da dor está resolvido, visto que o próprio Deus assume e diviniza o sofrimento. Nossa incompreensão perante o sofrer é medida do grau de fraqueza da nossa fé.

A seguir, a mensagem doutrinal (cf. Combes, Dieu et souffrance, 1961, pág. 52-65)

Mensagem Doutrinal TP

4PT

1. O essencial no cristianismo é seguir a Cristo. Ora,

ele nos garante: quem quer seguir após mim, deve tomar a cruz e renunciar a tudo. Leia: Jo 12,24; Mt 16,24; Lc

4 Cf. COMBES, Dieu et souffrance, 1961, pág. 52-65)

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14,25. 2. E Jesus se explica: se o grão de trigo não morrer

na terra, não dará fruto (Jo 12,14). Quem ama a sua vida aqui na terra, vai perdê-la. Sofrimento é condição de fe-cundidade sobrenatural. Sofrer e morrer na seqüela de Cristo significa trazer como Ele, e com Ele, muito fruto.

3. Jesus se explica em Mt 5,10: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição pelo reino”. É a única bem-aventurança repetida e ampliada em dupla via, e remata-da por um júbilo incontido: pois alegrai-vos, vosso prêmio será grandioso. Ora, isto é o martírio, graça excepcional e rara. E as nossas dores, doenças, useiras e vezeiras? Leia adiante:

4. Bem-aventurados os tristes, porque serão conso-lados. Bem-aventurados os pacientes, pois possuirão a terra da promissão (Mt 5, 4.5).

5. A Eucaristia põe-nos em contato com a paixão e morte de Jesus; é seu memorial (1 Cor 11). Alimentados pela eucaristia, todo o nosso sofrer é co-redentor. Co-mungando, entramos em contato com Cristo-vítima, e par-ticipamos fatalmente dessa mesma tarefa, do mesmo des-tino. Verdade é que, enquanto o cristão não chegou a ser santo, acha-se numa situação pouco confortável. Sente a dor e seus problemas filosófico-teológicos, sem participar da alegria de sofrer.

Conclusão 1. Aceitar as cruzes que vêm por aí, com resignação

e santa paciência. Diz São Francisco de Sales: “Não sa-bemos de que maneira foi a cruz de Cristo, por isso, a-memos todas as cruzes que aparecem”.

E outra vez: “Em que caldo, doce ou azedo, Deus nos meta deve ser-nos igual”.

2. Fazer cara alegre. Tenta.

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3. Preferir as cruzes secretas e os sofrimentos igno-rados.

4. Pedir mais? Não. Só se houver nítida inspiração por parte de Jesus.

5. Sofrer alegre na esperança. 6. Principalmente sofrer com amor. Por amor a Je-

sus. Talvez algum dia, quando menos esperas, terás.

São Paulo São Paulo entra nas pegadas do Mestre e explica-

nos: 1. Devemos viver a vida integral de Jesus Cristo (Gl

2,20): “Eu não vivo mais, vive em mim Cristo... com ele estou cravado na cruz”.

2. O cristão é membro vivo de Jesus Cristo, nele en-xertado pelo batismo. Pois fomos batizados, isto é, mer-gulhados na sua morte (Rm 6,3). O batismo destina-nos à mesma sorte de Cristo. “O batismo é uma graça de martí-rio” (Eudes)

3. E isto até o fim. Como nos diz a fé pascal: “A mor-te de Cristo matou tão bem o pecado que o verdadeiro cristão deve crer, com a mesma força, tanto na ressurrei-ção de Cristo como na sua própria libertação do pecado e ressurreição futura” (Combes)

4. Co-herdeiros que somos de Cristo, herdamos também o sofrimento. “Sofremos juntos e juntos seremos glorificados” (Rm 8,17).

Mas é um sofrer que não se compara com a glória futura (Rm 8,18).

Podemos gemer à vontade, mas na absoluta espe-rança da libertação (Rm 8,20).

5. E vivemos na esperança. Ainda não na plenitude. Segundo o modelo do apóstolo: “Atribulados, mas não em desespero; perseguidos e oprimidos, mas não aniquila-

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dos... A cada instante entregues à morte para que a vida de Jesus se faça patente também em nosso corpo mor-tal... O sofrimento é um tesouro que produz em nós um peso de eterna glória” (2 Cor 4, 7-18).

Loucura É de São Bernardo a palavra. Mas já era praticada

na Igreja de Cristo desde as origens. Pudera! Jesus deu o exemplo. Entrando no mundo já se ofereceu, logo de en-trada, à cruz (Hb 9,13). E com ardor, como lemos em Lc 22,15: “Ansiosamente desejei comer esta ceia pascal an-tes de sofrer”.

São Pedro anima os fiéis: “Sendo que Cristo pade-ceu segundo a carne armai-vos também vós, do mesmo pensamento” (1Pd 4,1).

São Paulo, amante da cruz de Cristo, exclama: “Fol-go de sofrer” (Cl 1,24). “Tenho prazer na minha fraqueza, nos ultrajes, privações, perseguições e angústias por a-mor a Cristo; porque quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12,10).

Completa a Imitação (3,56) a frase do apóstolo: “Não carregamos a cruz sozinhos; Jesus fica ao lado como nosso Cireneu”.

E ainda São Francisco de Sales: “O Calvário é a montanha dos amantes. Todo amor que não toma sua origem na paixão de Nosso Senhor é fútil e perigoso”.

Entusiasmos O entusiasmo de sofrer e morrer por Jesus abre seu

caminho através da história cristã. O primeiro campeão, após os apóstolos, é Sto. Inácio de Antioquia. Segue-se a turma gloriosa dos demais mártires. Segue-se a longa galeria dos amigos da cruz nos dois milênios cristãos.

Sto. Tomás perguntara a São Boaventura, donde ele

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tirava tanta doutrina. São Boaventura apontou o crucifixo na parede.

São Francisco de Assis exclama: “Como, ó meu Je-sus , tu estás na cruz e eu não?”

São Felício Benício, um dos fundadores da Ordem dos Servitas, moribundo, pediu seu livro. Deram-lhe o bre-viário. “Não”. Deram-lhe a Bíblia. “Não”. Levantando os olhos, fixou o crucifixo na parede. Tiraram-no e deram-lhe. “Eis o meu livro”. Beijando-o, morreu.

Sta. Brígida teve, aos dez anos de idade, uma visão da paixão de Jesus. Daí em diante não podia mais ouvir falar do crucificado sem chorar . A cruz é contagiosa.

São João da Cruz, fiel ao seu nome, colocou um crucifixo do convento na Igreja, para a devoção pública. E o crucificado lhe perguntou: “Que prêmio desejas, João?” “Sofrer e ser desprezado por teu amor”. E ainda um texto de suas Sentenças (83): “Se queres chegar a possuir Cristo, jamais o busques sem a cruz”.

Sta. Teresa d’Ávila reza: “Ou morrer ou sofrer”. Sta. Madalena de Pazzi: “Não morrer, mas sofrer”.

Sto. Inácio de Loiola disse que pediu para a Compa-nhia, para a sua Ordem, adversidades, sofrimentos, lutas e cruzes... Bom presente!

Século XX Isabel da Trindade escreve a sua mãe: “Aspiro che-

gar ao céu não somente pura como um anjo, mas trans-formada em Jesus crucificado”.

Escreveu Gay: “Quem na escola de Jesus Cristo in-terrompe o estudo para cá da cruz, não terminou as clas-ses”.

Emmy Gierl, prostrada na cama por meio século, +1915, aprendeu por experiência: “A cruz é uma carta de Jesus na qual está escrito: Eu te amo”. Teve certa vez um

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sonho. Viu um anjo apresentar-lhe um cálice de ouro di-zendo: “Beba um pouco”. “Mas o que há dentro?” “Sofri-mento”. “Ah! então, quero beber tudo”.

E nossa santa carioca, filha do barão do Rio Negro, madre Francisca de Jesus, 1877-1932, passando por pe-sadas provações e sofrimentos de toda espécie, excla-mou: “Mas Senhor, que vos fiz eu?” e logo ouviu dentro de si a resposta: “Tu me amaste”. Outra vez Jesus lhe diz: “Para beber assim, a longos sorvos, na chaga do meu coração é mister ser coroado de espinhos”.

Numa conferência às suas irmãs: “Jesus jamais pro-curou escapar ao sofrimento. Muito ao contrário. Fez até um milagre, e mais de um, para poder sofrer. Sede, pois, para o futuro, mas generosas e procurai dizer em todas as dificuldades: Deo gratias”.

Conhecida e famosa a anedota de Sta. Teresa d’Ávila. Viajando em tempo de inverno (a Burgos) encon-tra dificuldades em atravessar os riachos e ribeiros intu-mescido pelas chuvas. Numa passagem realmente peri-gosa, ela avança sozinha. No meio, aparece Jesus, para dar apoio. A santa aproveita a ocasião para se queixar: “O Senhor arranja cada dificuldade no caminho!” “Não te queixes, filha; é assim que trato meus amigos.” “Ah!, por isso tens tão poucos”, replicou Teresa.

Uma postulante no Carmelo ouve falar de todas as penitências e mortificações praticadas no convento. “Será que agüentas?” Ela pergunta: “Há um crucifixo na cela?” “Sim”. “Então, não há problema”.

Padre Plus completa a narração: “No Carmelo, os crucifixos são sem o Cristo. Para lembrar ao morador da cela que ele tem de fornecer o material.”

Assim, chegamos aos últimos tempos. Após longas aberrações, retornou Strindberg à fé em Deus e Jesus Cristo, e mandou que se colocasse sobre seu túmulo uma cruz com a inscrição: “Ave crux spes unica”.

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E concluímos com Plus: “A humanidade não é bela. Em geral é gozadora e covarde. Mas que haja em seu seio alguns discípulos de Cristo, apaixonados pela cruz de Jesus, e isto num grau que ultrapassa admiravelmente a média comum, é o que engrandece singularmente esta pobre raça”.

OS AMIGOS DA CRUZ “O anúncio da cruz faz-se mister em nosso tempo,

porque este aspecto do quérigma cristão está omisso, por várias razões. Mas desde as origens, a confrontação com a cruz do Redentor foi o desafio da mensagem cristã. É preciso devolver-lhe em nossa pregação o lugar devido” (Gnilka)

Escândalo da Cruz: Gl 5,11 Dou a palavra à exegese moderna: Ortkemper (A cruz na pregação paulina, 1968): “A

cruz é o centro determinante do pensamento paulino, ao redor do qual gira todo o cosmos da teologia paulina. O Evangelho de Jesus Cristo é a palavra da cruz” (1 Cor 1,18). (88)

“Para Paulo, a cruz é o critério e o medidor do pen-samento cristão autêntico e da vida cristã autêntica” (90). Pois diz A. Schweizer: justificação é “inserção no aconte-cimento salvífico da cruz e da ressurreição”.

Também a eucaristia paulinha deve-se entender “na moldura de uma teologia Crucis” (KAESEMANN, 95)

Como o escândalo da cruz acompanhou o apóstolo na sua carreira missionária “sem atenuações” assim, “a cruz é indiscutivelmente e sem compromisso o mediador da experiência cristã neste mundo” (98)

Conseqüência: o cristão, crucificado com Cristo no

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batismo, é chamado a sofrer com Cristo a fim de chegar assim à glória (Rm 8,17). (99) O mundo para São Paulo é esse mundo “perturbado”, no qual penetraram o pecado e a morte (Rm 5, 12.21). Daí, o aviso de não nos conformar com ele (Rm 12,12). (99)

“Sofrer, a fim de ser glorificado, eis a regra básica da existência cristã neste éon” (100)

“A pregação hodierna deve, com toda seriedade, co-locar-se perante a pergunta se hoje a cruz não se reduz a um simples emblema externo, em vez de ser fator decisi-vo de nossa existência cristã. Todo o otimismo mundial, por justo que seja, encontra seu limite na cruz “pela qual o mundo para mim está crucificado e eu para o mundo (Gl 6,14)... Não haveria em nossa mentalidade atual (e talvez, mesmo na teologia) com toda a abertura otimista ao mun-do, o perigo de esquecer a cruz?... Uma ruptura atravessa o mundo. Redenção não é possível sem cruz, isto é, sem a prontidão de con-sofrer” (100)

Amor da Cruz Para São Paulo, a “cruz da existência humana” é so-

lidarismo com Cristo. Ele quer ter os mesmos sentimentos que seu Mestre, inclusive seu entusiasmo pela cruz, no qual se tornou obediente até à morte (Fl 2,8).

Paixão e sofrimento são as raízes das quais brota o Corpo Místico. Os membros deste organismo espiritual são pregados com Cristo na cruz (Gl 2,19), estão enterra-dos com Cristo (Rm 6, 4-5).

Daí se segue que Paulo considera tudo quanto é fo-ra de Cristo como perda, como lixo (Fl 3,7), e deseja “ter parte nos seus sofrimentos e ser configurado com sua morte” (Fl 3,10). Deseja ter o estigma de Cristo (Gl 6,17). A marca de pertencer a Cristo é o sofrimento. Deseja imi-tar o Cristo pobre, humilde, sofredor. Os valores da cultu-

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ra humana não interessam; não quer “ostentar outra ciên-cia a não ser a de Jesus Cristo, e do Jesus crucificado” (1 Cor 2,2).

Sofre com alegria. Pois é graça “não só crer em Cristo, mas sofrer também por ele” (Fl 1.29). É sua única ambição: “Longe de mim gloriar-me, a não ser na cruz de N. S. Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,14). Sua ambição é ser colega do Cristo sofredor: “Ufano-me na tribulação” (Rm 5,3; 2 Cor 12, 10; Fl 1,20).

Sua ambição é completar a paixão de Cristo: “Folgo de sofrer completando em minha carne... o que falta ainda na paixão de Cristo” (Cl 1,24).

As duas coroas A escolha das duas coroas é um leitmotiv que se re-

pete na hagiografia com certa freqüência. 1. Catarina Racconigi, ainda menina de dez anos,

está perante duas coroas a escolher, uma de flores, outra de espinhos. Ela pega logo a de espinhos, a fim de tornar-se mais semelhante a Jesus. Jesus concorda contente, mas responde sorrindo: “Por enquanto és criança; fica para mais tarde”. E mandou-a mesmo.

2. Sta. Catarina de Sena está perante a mesma es-colha. Pega logo a coroa de espinhos, e ela mesma aper-ta-a sobre a cabeça: “Quero estar conforme a tua Paixão”. Jesus: “Então, suporta a tua aflição!”.. (A calúnia da can-cerosa: Catarina fizera-se enfermeira de uma mulher can-cerosa. E a doente agradeceu falando mal de Catarina, caluniando-a na cidade inteira, como tendo um filho ilegí-timo.)

3. Sta. Verônica Giuliani: Jesus aparece-lhe como menino de sete anos, e oferece-lhe duas coroas, uma de espinhos, outra de pedras preciosas. Verônica sente vivo

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desejo de escolher a de espinhos. Mas prefere deixar a escolha à vontade de Deus. Então, Jesus aperta-lhe a coroa de espinhos sobre a cabeça.

4. Sta. Margarida Alacoque: Jesus segura nas mãos dois quadros; o de uma vida feliz no convento, e outro de uma vida humilhada e crucificada. “Escolha, minha filha, o que mais te agrada. Dar-te-ei as mesmas graças na esco-lha de um, como do outro”. Margarida declara querer a vontade de Deus; Jesus insiste na escolha e Margarida repete a primeira resposta. Então, Jesus entrega-lhe o quadro da vida crucificada. “Foi este que escolhi para ti e que me agrada mais; o outro fica para o céu”.

Margarida de Cortona Jesus fala: “Todo o tempo que ficaste perto da cruz

(na igreja dos franciscanos), eu te enriqueci com os dons da minha graça; e teria dado mais se não te tivesses afas-tado. Volta pois àquela cruz. Fica ajoelhada aos meus pés desde a meia noite até a Noa. Sim, retorna à minha cruz, sem tardar”.

“Não cesses de apregoar minha paixão, e conta a todo o mundo que eu passei minha vida toda em labores e sofrimentos”.

“Eu fui buscar-te pelo preço das angústias mais ter-ríveis. Assim, tu te deves chegar a mim pelo caminho das amarguras”.

“Estás bem cansada: mas eu estive ainda mais no caminho do Calvário”.

“Mesmo escrevendo um novo evangelho, os homens jamais compreenderão como foi dilacerante minha dor no Jardim das Oliveiras. Eu te garanto, a ti e a toda criatura: não darei, repito, não darei os dons da minha graça a quem não se renuncia a si mesmo, e não toma sua cruz para me acompanhar”.

300

“Por que buscar o paraíso na terra, já que nem eu o tenho achado lá?”

Margarida: “Por que tenho de sofrer tanto agora?” Jesus: “É que te quero dar novas consolações”.

Ângela de Foligno Ouve da boca de Jesus: “Bendita sejas pelo Pai dos

céus, porque tivestes compaixão de minhas dores”. “A visão da paixão de Cristo que narrei, fez tanto

crescer minhas dores... Ao recordar-me, não me posso alegrar; e eu, que costumava ser alegre, o sorriso apa-gou-se em meus lábios”.

“Uma pobreza perfeita, suma, contínua; depois uma abnegação perfeita, suma contínua; enfim, um sofrer per-feito, sumo, contínuo... este foi o caminho pelo qual eu (Jesus) subi ao céu. Este é o caminho pelo qual a alma deve subir a Deus. Como a cabeça, assim os membros”.

Ângela pediu que lhe desse algo bem seu. E Jesus lhe fez o sinal da cruz.

“Não há outro caminho, não há outro meio que con-duza à vida eterna. É este o caminho real, porque traçado por Jesus Cristo mesmo. Ele sabia que a virtude cresce nas tribulações, como a rosa entre espinhos; por isso, Ele escolheu sofrer, fez-se escravo, declarou detestáveis os prazeres e comodismos mundanos. Depois que o Filho de Deus nos mostrou por sua vida, e de uma maneira tão maravilhosa, o caminho que devemos tomar, a escolha a fazer, quem pode hesitar e recusar-se a segui-lo? Bem, eu creio que ninguém, a não se um estulto... Pobres cria-turas, fatigamo-nos dia e noite a procurar ansiosamente prazeres, delícias, divertimentos e satisfações vãs. Na verdade, este não é o caminho do homem-Deus... Quem sente ao menos uma centelha de amor por Jesus, empe-nha-se em segui-lo até o Calvário.

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Maria, a mãe de Jesus só procurou a angústia, a amargura, a cruz.

“Vinde pois, filhos de Deus, ao pé da cruz, e trans-formai-vos com todo o esforço neste homem-Deus marti-rizado por nosso amor. Vinde, contemplai esta cruz... lede o livro da vida”.

“Quem sofre pena, de alma ou do corpo, possui um sinal bem garantido de ser querido por Deus. Coragem, pois, nas adversidades temporais Suportá-las, não digo com paciência, mas com exultação, como sinal de predi-leção, como prenda da eterna herança. Seja bendita a tribulação, um tesouro do qual não se conhece o valor, e que eu invejo àquele que o possui”.

“A tua cruz é doce cama. Tenho nela por travesseiro a pobreza. E como companhia a dor e o desprezo. Ele mesmo nasceu aí e aí morreu. Deus Pai gostou da pobre-za, da dor, do desprezo, e fez deles presente ao Filho. E o Filho não quis outro leito”. “Eis o caminho reto de salva-ção: amor de Deus e desejo continuo de sofrer por seu amor”.

Henrique Suso, OP Jesus: “Tuas penitências renovam minhas forças.

Tuas mortificações descansam meu dorso fatigado. Tua dura resistência ao pecado é um repouso para meu espíri-to. A piedade de teu coração acalma minhas dores. E teu fervor inflama meu coração”. O Menino Jesus lhe diz: “Tu não sabes ainda sofrer bem. Vou te ensinar. Quando uma moça colhe uma rosa, não se contenta; quer sempre co-lher mais uma”.

“O sofrimento é o orvalho matinal para a alma”. Suso pede para Jesus mostrar-lhe quanto ainda teria

de sofrer. E Jesus levanta os olhos ao céu, onde brilham milhares de estrelas.

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Jesus: “Quanto mais sofreres, tanto mais serás re-cebido no céu com atenção e honras”...

“Para chegar à minha divindade, é mister passar an-tes por minha humanidade padecente”.

A sabedoria eterna instrui: “O sofrimento é para o mundo um horror, mas para mim é de uma dignidade sem igual. O sofrimento apaga a minha cólera, e adquire a mi-nha graça. O sofrimento torna o homem agradável aos meus olhos; pois quem sofre, é semelhante a mim. O so-frimento é um tesouro, ninguém é capaz de pagar seu preço. Se alguém ficasse ajoelhado durante cem anos, pedindo a graça de sofrer bem, não a teria merecido. O sofrimento faz de um homem na terra um homem do céu.

Afasta do mundo, mas em troca dá minha amizade. Diminui o número de amigos, mas aumenta em graça. É o caminho, o mais seguro e mais curto para conduzir à per-feição. Quantos homens, que foram filhos da morte eter-na, ressuscitaram pelo sofrimento para um vida boa! Quantos animais ferozes e passarinhos ariscos, que o sofrimento fechou numa gaiola, teriam fugido à sua felici-dade eterna!

O sofrimento é uma bebida salutar, uma planta me-dicinal, mais que todas as plantas do paraíso... O sofri-mento puxa e empurra o homem para Deus, quer queira, quer não; como o freio doma o cavalo, tão admirado no torneio, como o homem que sofre é admirado por todo o exército celeste... É o caminho estreito que conduz reto até a porta do céu. O sofrimento faz o homem companhei-ro dos mártires; seu manto é púrpura, sua coroa de rosas vermelhas...

Numa palavra: os que sofrem, o mundo chama-os de infelizes. Eu os chamo de bem-aventurados, porque eles são meu eleitos”.

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São Bernardino de Sena Pede a Jesus para manifestar-lhe sua vontade. Je-

sus: “Tu me vês despojado de tudo e pregado numa cruz por teu amor. Se me amas, deves despojar-te de tudo e viver uma vida crucificada”.

Bernardino faz-se franciscano. Anos depois repete a mesma pergunta. E Jesus: “Meu filho, tu me vês ainda pregado na cruz. Se me amas, crava-te também na tua cruz. Assim, terás certeza de me encontrar”.

Verônica Giuliani Pedia muitas vezes aumento dos sofrimentos. Je-

sus: “Se queres mais, é preciso que primeiro cresça teu amor”.

Rezando perante o crucifixo, Jesus puxa conversa: “Fica sossegada, tua vida será um sofrimento contínuo. Eu o quero assim. Quero que sejas mais parecida comigo, teu esposo crucificado”.

Aparece com um cálice na mão: “É para ti; tu deves ter o mesmo gosto que eu”. Outra vez: “Tenho prazer em te ver sofrer, porque és minha bem-amada... Daqui em diante tudo te servirá para sofrer mais.. E não poderás contar-me os teus males. Terás penas em tudo. Eu é que o quero assim. E em todos os sofrimentos tu participas neste tesouro. É o nome que dão à cruz aqueles que me amam”.

“Agora que estás no sofrimento, é tempo de graças”. “Pede penas e tormentos: aí se encontra o amor”.

“Aprende de uma vez para sempre, e saibas que o sofri-mento é o caminho do amor; um e outro caminham jun-tos”.

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ATRAVÉS DOS SÉCULOS Madalena de Pazzi: “Jesus manda carregar a cruz e

não arrastá-la”. “Filha, a loucura da cruz é suprema sabedoria... Nin-

guém pode chegar a mim senão pelo caminho estreito”. Benigna Gojoz: “Benigna, tua glória é a cruz. Esposo

e esposa têm o mesmo trono... E ela viu-se pregada na cruz de Jesus pelos mesmos cravos. Não te divirtas a dis-tinguir e a contar tuas cruzes. A lei está promulgada. Elas durarão até que chegues à minha glória. Estou te polindo como pedra a ser colocada num belo edifício”.

Madalena Vigneron Jesus: “Toca nas minhas chagas; chega com tua

mão”. Madalena: “Jesus, eu te sinto bastante pelos sofri-

mentos que me deste. Tuas chagas não doem mais que as minhas”. Jesus: “Sim, filha; são as carícias mais sua-ves que dou a uma alma”.

Inez de Langeac Dialogando com Jesus: “Não, meu amigo; não, meu

esposo. Eu não quero estas graças exteriores. Somente quero penas e dores”.

Jesus: “Não te faço sofrer bastante? Estás sofrendo as penas do purgatório. Já te mostrei as penas do inferno. Então... não basta?”

Madalena Orsini Aparece-lhe Jesus crucificado, exortando-a a sofrer

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com ele pacientemente. “Mas tu ficaste na cruz só por três horas, enquanto eu, estou sofrendo estas dores já faz a-nos”. Jesus: “Ó ignorante, eu padeci tudo desde o primei-ro instante da concepção”.

Paulo da Cruz Estando ainda no início da carreira espiritual, aos

vinte e cinco anos, Jesus lhe diz: “Meu filho, quem se a-proxima de mim, aproxima-se dos espinhos”.

Marcelina Pauper Jesus mostra-lhe um letreiro e diz: “Lê”. “Amor”. De-

saparece e surge outro texto. “Lê”. “Cruz”. “Um se prova pelo outro”.

Crescência Hoess “O amor de Deus inflama-se pelo sofrimento. Amar a

Deus sem medida, e sofrer por ele são duas coisas inse-paráveis”.

“Não há cruz a não ser esta: a de não ter nenhuma”. “Sou como uma bola. Quanto mais Deus me bate, tanto mais subo”.

“Deus está polindo a madeira, raspando, cortando, picando... Sei que ele quer esculpir em mim um anjo”.

Maria Catarina Putigny “Não basta contemplar minha bondade e derramar

algumas lágrimas sobre os sofrimentos que padeci. O verdadeiro amor quer partilhá-los comigo”.

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Clara Moes “Agora que és toda minha... o presente de núpcias

que te dou é o mesmo que me foi dado por meu Pai: so-frimentos, perseguições, humilhações e penas. Deves sofrer, trabalhar, agir só por mim”.

Gema Galgani “Tem paciência se te deixo só. Sofre com resignação

a aridez. Consola-te, se te conduzo por caminhos ásperos e dolorosos. Deves considerar como honra ser tratada assim. Este martírio cotidiano e escondido prova e purifica tua alma. Se eu te seguro sobre a cruz, é porque te amo. Não limites certas almas que na aridez diminuem pouco a pouco suas orações, por não encontrar mais consola-ções”.

Isabel da Trindade Escreve a sua mãe: “Aspiro a chegar ao céu não

somente pura como um anjo mas transformada em Jesus Crucificado”.

Gertrudes Maria Jesus: “Tenho amigos na terra: aqueles que sofrem

por meu amor. Do sofrimento escorre um suco que ali-menta, vivifica, transforma a alma”.

“Se tu recusas o sofrimento, recusas graças de es-col”.

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Pe. José Passerat, C.Ss.R. “Um dia passado na doença vale por dez anos de

austeridades voluntárias”.

Sta. Teresinha “A todos os êxtases, prefiro o sacrifício”. “A felicidade consiste no sofrimento, e sofrimento

sem consolação” (Carta 50). “Agora não tenho mais nada a esperar sobre a terra, nada mais que o sofrimento e a-inda sofrimento. Quando estivermos no fim, ainda o sofri-mento. Estará lá a estender os braços. Oh! que sorte dig-na de inveja! Os querubins no céu invejam nossa sorte” (Carta 58)

“Não pensemos poder amar sem sofrer e sem sofrer muito. Aí está nossa pobre natureza; ela não nos é dada em vão: é a nossa riqueza, é nosso ganha-pão. Ela é tão preciosa que Jesus veio à terra expressamente, para pos-suí-la. Soframos com amargura, isto é, sem coragem. Je-sus sofreu com tristeza. A alma sofreria sem tristeza? E nós gostaríamos de sofrer generosamente e grandiosa-mente. Oh! Celina, que ilusão!” (Carta 65)

“O martírio, eis o sonho da minha juventude. Este sonho cresceu comigo nos claustros do Carmelo... meu sonho é uma loucura, pois não me limito a desejar um gênero de martírio. Para satisfazer-me precisaria de to-dos” (Vida 245)

Ainda algumas palavras pronunciadas nos últimos meses da vida, fiel à sua missão de mostrar o caminho do céu aos pequenos:

“Estou bem contente de não ter pedido ao bom Deus o sofrimento: assim ele está obrigado a dar-me coragem” (NV 26, VIII)

“Não quero pedir a Nosso Senhor maiores sofrimen-

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tos; porque estes seriam sofrimentos meus, da minha vontade; e eu teria que suportá-los só. Ora, sozinha, ja-mais fui capaz de fazer algo” (NV 11, VIII)

“Sofrer é o que mais me agrada. Por quê? Porque é a vontade de Deus” (NV 15, VI). “Sofro muito, mas o im-portante é sofrer bem” (NV 18, VIII)

“Mandou celebrar uma missa para meu alívio?” In-dagou da madre. “Sim, para seu bem”. Ah!, meu bem ago-ra está só em sofrer” (NV 24, IX)

“O que escrevi (sobre o sofrimento) é a pura verda-de. É verdade que desejei sofre muito por Deus e é ver-dade que ainda o desejo” (NV 25, IX)

“Não sou um anjo. Os anjos não podem sofrer. Não são tão felizes como eu” (NV 28, IX). “Tudo o que escrevi sobre meus desejos de sofrer é a absoluta verdade. Não me arrependo de ter-me entregue ao Amor” (NV 29, IX)

Carlos de Foucauld “Mágoas da alma, dores corporais, alegremo-nos,

vibrando de prazer: é Jesus que nos chama, que nos pe-de dizer-lhe que o amamos, e repeti-lo quanto tempo du-rar nosso sofrimento”.

“Cada cruz, pequena ou grande, cada contrariedade, é um chamado do bem-amado. Pede-nos uma declaração de amor, uma declaração que dure enquanto dura a cruz... Pensando assim, quanto desejaríamos que a cruz durasse sempre”.

“Tristezas, dores, amarguras, eis a parte que coube a Nosso Senhor. Como somos felizes de delas participar. Lastimemos aqueles que as alegrias, mesmo as mais pu-ras, mesmo as mais legítimas, prendem à terra. Como o bom Deus foi bom de ter-nos tirado tudo, a fim de que só conseguíssemos viver aspirando por ele”.

“Quanto mais abraçamos a cruz, mais estreitamos a

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Jesus que nela está pregado”.

Eva Lavalliere Ramalhete Espiritual: “Meu nome predileto: Jesus.

Meu enfeite predileto: a coroa de espinhos. Meu vestido predileto: a veste batismal. Minha paisagem predileta: o Calvário. Minha oração predileta: dor, gratidão, amor. Mi-nha pátria: o céu”.

Maria Cecília “Eu queria fazer compreender a todas as almas o

valor da cruz. A dor moral ou física é uma mina de ouro inesgotável...

Se soubéssemos o peso de amor infinito que cada uma de nossas cruzes encerra, não poderíamos nem de dia nem de noite cessar de oferecer a Deus súplicas ar-dentes para recebê-las, e de dirigir agradecimentos deli-rantes para agradecê-las. Se compreendêssemos o valor de nossas cruzes, estaríamos paralisados de alegria e de felicidades ao recebê-las.

As provações, as tribulações, as angústias provoca-riam nossos cantos de alegria e de entusiasmo, e espon-taneamente entoaríamos o “Te Deum”. Nosso Senhor não é compreendido. Não, o coração tão delicado e tão bon-doso do Esposo adorável não é conhecido. Jesus esco-lheu a cruz como um bem sagrado. Ele abraçou-a com ardor apaixonado. Ele amou-a com loucura. E isto por nós. E quando ele nos apresenta uma parcela desta ri-queza mística, nós hesitamos em estender a mão.

Infelizmente, a natureza humana é um abismo de trevas...

Como sente-se feliz o Mestre divino ao ouvir um “o-brigado” de gratidão quando nos oferece um espinho de

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sua coroa, ou algumas gotas amargas de seu cálice. To-dos os sofrimentos, todos os suplícios, todos os martírios reunidos pareceriam suaves à minha alma para agradecer a Providência pela mais ligeira aflição”.

O Filho de Deus Escreve Montalembert: “Mas quem é este amante? Invisível, morto num pa-

tíbulo há dezoito séculos, e que ainda atrai a si a juventu-de, a beleza, o amor?

Que aparece às almas com tal brilho e atração, que elas não conseguem resistir? Que se atira sobre as almas e faz delas sua presa?

Prende por toda a vida a carne de nossa carne (a fi-lha predileta, fez-se religiosa...). É um homem? Não! É um Deus. Só Deus é capaz de colher tais frutos”.

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7. EXPIAÇÃO

NA ESCRITURA No campo espiritual, mais eficiente do que a oração

é o sacrifício, o sofrimento, a dor (física ou moral), a ter-ceira realidade celeste com domicílio na terra. A morte dolorosa de Cristo foi uma expiação da Divindade, insul-tada pela criatura. O pecado é ofensa a Deus, ingratidão e recusa do amor. Exige reparação e desagravo. A cruz de Cristo satisfez como expiação.

Nossos sofrimentos humanos só têm valor salvífico quando unidos, bem unidos ao da Paixão. E assim mes-mo, por bondade divina. É o sacrifício de Cristo, oferecido em união com a rainha das almas vítimas, Maria Santís-sima, são os sofrimentos de Jesus que salvam, redimem e expiam. Não as nossas dores.

Sangue a gotejar Comovedor, constrangedor nas primeiras páginas da

Bíblia, o sacrifício de Caim e Abel. Que oferta pobre. Al-guns produtos da roça e um carneiro do rebanho. Destro-em pelo fogo objetos que lhe são necessários para a exis-tência na terra, querendo significar que estão devendo a Deus propriamente sua vida. A humanidade sentia-se cul-pada Sua vida não era mais como devia ser pelo plano de Deus. Deus quis os homens, seres nobres, sem sofrimen-to, sem pecado, sem morte, felizes e imortais. Não mais o eram, por própria culpa. Tornaram-se fracos, inermes, expostos aos mil terrores de um mundo ainda desconhe-cido, pobres, forçados a reconhecer humildemente a pró-pria miséria. Tornaram-se culpados, impelidos a invocar o

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Criador: Senhor, não merecemos mais o dom da vida; pois tornamo-nos incapazes de realizar teus desígnios.

Em vez da própria vida, a humanidade oferece o que a represente simbolicamente: alimentos, fruto da lavoura e carne dos animais. E ao derramar o sangue da vítima, o homem levanta os braços para o alto: ó Senhor, é minha vida que devia ser destruída; meu sangue é que devia ser derramado; já que serviu para te ofender. E no correr dos séculos, os homens, sentindo o pouco valor da expiação, multiplicaram as ofertas, matando centenas de animais num só dia. Até julgaram dever oferecer vida humana, sangue inocente de crianças e virgens, uma aberração pagã que continha um núcleo de verdade: só o sangue humano é digno.

Mas sangue inocente? Até a criança é culpada pe-rante Deus (Rm 5,14). Todo este rio de sangue dos sacri-fícios, através da história humana, foi uma súplica vã, até ser derramado o sangue do Filho de Deus.

Jesus satisfez plenamente ao amor e santidade divi-na ofendidos. Mas na cruz, Jesus fez o trabalho sozinho (“pisei o lagar sozinho e nenhum homem me ajudou”, Is 63,3), auxiliado pela Co-Redentora. Ora, na aplicação e distribuição dos frutos da redenção, os teólogos usam o termo técnico de redenção subjetiva, aí Jesus conta com a nossa colaboração.

Uma vez, na história da salvação, Deus exigiu justiça plena e Jesus “pagou”. E agora é a nossa vez. Não digo de tornar-nos co-redentores: nossa contribuição é tão in-significante! Deixemos este título à Mãe do Redentor: ela o merece. Ela contribuiu realmente à redenção objetiva, à aquisição dos méritos no Calvário, onde nós brilhamos pela ausência, e, aliás, também como réus e culpados pela incapacidade de satisfazer. Somos muito honrados por podermos ser auxiliados na segunda redenção, servi-dores na distribuição das graças da salvação. Podemos,

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por mercê de Deus, oferecer-lhe nossos sofrimentos em prol do próximo e de sua salvação espiritual, numa expia-ção substituinte e suplementar.

A primeira tentativa de Jesus de procurar apoio hu-mano na obra da salvação falhou. Na agonia do horto pe-diu duas vezes consolo humano aos apóstolos. Por fim, Deus mandou-lhe um anjo (Lc 22,43).

Cristo Vítima Este mistério da nossa colaboração, auxiliar e subal-

terna, na redenção, o grande mistério da expiação suplen-te, por substituição, não fazia parte do quérigma primitivo dos Evangelhos sinóticos. Porque não costuma ser pró-prio e específico dos principiantes na fé e na vida espiritu-al. Mas a idéia da expiação e reparação do mal cometido impregna, pervade o Antigo Testamento e seu culto litúr-gico com os sacrifícios expiatórios. E o A.T. é “pedagogo para conduzir-nos a Cristo” (Gl 3,24).

No Novo Testamento é Cristo a grande e única víti-ma de expiação. Entre todos os encargos do Filho de Deus Encarnado, o múnus mais excelente é a redenção. Ora, ele nos remiu na qualidade de sacerdote. E vítima de seu sacrifício foi ele mesmo. Com este espírito de expia-ção entrou no mundo (Hb 10,5) e saiu do mundo na cruz.

Paulo vítima A primeira vítima (declarada) foi Paulo apóstolo.

Como ele foi resgate do martírio de Estevão (como o insi-nua At 7,58), assim já no dia da sua conversão depara com o sofrimento expiatório, dizendo-lhe Cristo: “Vou mostrar quanto te cumpre sofrer por meu nome” (At 9,16). E o apóstolo aceita e mantêm-se fiel a esta tarefa salvífi-ca. O texto clássico (Cl 1,24): “Folgo de sofrer por vós,

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completando assim na minha carne, pelo corpo de Cristo, isto é, a Igreja, o que ainda falta à paixão de Cristo”. E assim está consignada a doutrina sublime da expiação suplente que, séculos mais tarde, desabrochou em flores multicores, no florão vistoso da devoção ao sagrado Co-ração.

Sob a luz deste texto devem-se entender outras ex-pressões paulinas, num sentido mais profundo, mais teo-lógico. Ele considera-se como vítima de salvação. Em Fl 2,17 declara, e com entusiasmo: “Mesmo que deva tornar-me vítima sacrifical (literalmente: ser derramado sobre o altar do holocausto como o sangue das vítimas), alegro-me e congratulo-me com todos vós... alegrai-vos também comigo”.

A segunda epístola aos Coríntios (4, 10-12) fala da expiação substituinte por sua grei. Paulo se diz: “Sempre mortificado. A morte atua em mim e a vida (de Cristo) em vós”. “Sempre trazemos em nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo. Enquanto vivemos, seremos entregues continuamente à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. Assim, a morte opera em nós e em vós a vida”.

Na véspera do martírio renova a sua entrega (2 Tm 4,6): “Já estou para ser imolado” (Como vítima de sacrifí-cio).

E em 2 Tm 2,10: “Suporto tudo por amor aos eleitos a fim de que também eles alcancem a salvação em Cristo Jesus e a glória eterna”.

Cristãos vítimas São Paulo não somente se consagra a si próprio

como vítima de expiação, mas anda à procura de outras

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vítimas, e faz um convite geral a todos os cristãos. Assim, a exclamação patética de Rm 12,1: “Rogo-vos, pela mise-ricórdia de Deus, que oferteis os vossos corpos em holo-causto a Deus”. Novamente em Ef 5,2: “Sigamos o exem-plo de Cristo, que nos amou e se entregou a Deus por nós, como oblação e sacrifício de suave odor”. Está aqui a vocação universal e o convite a todos.

Lástima que a grande maioria se contente em usu-fruir os labores de Jesus Cristo. Cristianismo animal. São Paulo julga até que o fim de sua vocação apostólica e do seu ministério sacerdotal é buscar outras vítimas para Deus “para que os pagãos se tornem holocaustos de Deus” (Rm 15,16).

Aliás, está implícito na teologia paulina: imitar a Cris-to, e isto num sentido total, isto é, também como vítima. Não só a sua vida contemplativa em Nazaré. Não só a sua vida apostólica nos três anos de sua vida pública. Mas também sua vida (e morte) de vítima expiatória da redenção, seu múnus supremo. Devemos seguir suas pegadas até o calvário, pois devemos crescer Cristo a-dentro (Ef 4,15).

Devemos deambular nele (Cl 2,6). Compenetrar-nos dos mesmos sentimentos de Cristo (Fl 2,5). Ele deve viver em nós e em nosso lugar (Gl 2,20).

Em Gl 6,2, manda cada um carregar o peso do ou-tro. Estaria excluído deste auxílio fraterno justamente o peso mais pesado, culpa e castigo perante Deus? Pois é, todavia, mais importante do que suportar o mau humor mútuo.

Assim também Jo 3,16 ganha outra perspectiva: “Nisto conhecemos o amor (de Deus) em que deu a vida por nós. Assim devemos também nós dar a vida por nos-sos irmãos”. Interpretar este texto no sentido do serviço militar, como foi feito, é chiste de mau gosto.

Nossa união com Jesus realiza-se pelo batismo. Ele

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nos torna carne de sua carne e osso de seus ossos, diz Ef 5,30. Ora, submersos na água batismal fomos “submer-sos na sua morte” (Rm 6,3); enxertados na sua paixão e morte de vítima de expiação. Cabe-nos portanto, nossa parte.

Seqüela de Cristo São Pedro continua e até mesmo reforça a teologia

paulina (I Pd 2, 5-9) ao dizer aos cristãos: “Vós sois sa-cerdotes... e vítimas de sacrifício”. E logo mais exorta os escravos cristãos mostrando que:

1. “Sofrer é graça de Deus” (2, 20 texto grego). 2. Faz parte da vocação do cristão: “A isto é que fos-

tes chamados” (2,21). Vale para todos. Não somente para os escravos, grupo humano em que sofrer injustiça faz parte da profissão e das bem-aventuranças evangélicas de Lc 6,20-24.

3. É o exemplo de Cristo: “Porque Cristo também padeceu por vós, deixando-vos exemplo para que lhe si-gais as pegadas” (2,21).

a) Jesus deixou “o modelo para copiar”; assim o tex-to grego: hypógrammos.

b) Deixou suas pegadas para o povo cristão segui-las. E segue-as carregando a cruz de cada dia. Seguir, pois, o Cristo na totalidade de sua vocação, isto é, princi-palmente como vítima redentora, carregando junto com Ele sua cruz, em expiação por nós e por nosso irmão. Imi-tação de Cristo perfeita é seqüela de Cristo até ao Calvá-rio. É convite para todos. É compromisso formal para o discípulo.

Discípulo Sua tarefa não é só transmitir a palavra revelada,

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mas continuar a missão redentora em sua totalidade. Ser alma vítima de expiação com Cristo na cruz.

Knoch (Um é vosso Mestre, 1969) resume a situa-ção do discipulado do modo seguinte:

1. Jesus escolhe quem ele quer e recusa várias ofer-tas espontâneas.

2. Suas exigências são: a) Séria reflexão e firme decisão (Lc 14,35 ss). b) Pobreza voluntária (Lc 14,33). NB: só para o dis-

cípulo-apóstolo, não para o simples fiel. José de Arimatéi-a, Nicodemos, Lázaro de Betânia não estão adstritos a este programa.

c) Liberdade de compromissos humanos; por exem-plo, do parentesco (Lc 14,26; Mt 10,37).

d) Renúncia ao matrimônio (Mt 19,29; Lc 14,26). e) Possivelmente o martírio (Lc 14,27; 9,23; Mt

10,38; Mc 8,34). Tudo resume-se em carregar a cruz cada dia, ou se-

ja: estar em situação de vítima expiatória. Pobreza e celi-bato parecem querer reforçar esta situação. O discípulo é redentor-mirim; assim como o sacerdote do Novo Testa-mento o é considerado em sentido pleno.

Os dois filhos de Zebedeu ouvem a resposta: “Ireis beber meu cálice da amargura” (Mt 20,23). E Jesus com-pleta: para “Quem entre vós quer ser o primeiro...”, eis o modelo: “O Filho do homem veio para servir e dar sua vida em expiação” (Mt 20,28; Mc 10,45).

Jesus termina a procissão de Ramos repetindo a profecia de sua morte (Jo 12,23-26): chegou o dia da mi-nha glória (morte na cruz)... como o grão de trigo...

“Quem quiser estar ao meu serviço (ser discípulo), siga-me. Porque onde eu estiver, aí há de estar também o meu servidor”. Portanto, o discípulo perfeito, fulltime, seja também vítima no calvário. Daí, em São Paulo, sua voca-ção à santa Cruz (1 Cor 2,2; Gl 5,24; Rm 6,5).

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Daí Sto. Agostinho: “Por que esperam os membros uma sorte mais feliz do que a cabeça”, a qual antes de reinar, consentiu na paixão?

Eis a palavra misteriosa de Jesus em Jo 17,19: “Eu me santifico por eles, a fim de que eles também sejam santificados”.

Na linguagem do A.T., santificar significa destinar ao culto, a ser sacrifício. Traduza-se pois: Eu me sacrifico na cruz, a fim de que eles também sejam sacrifícios e víti-mas.

Conclusão final, no Ap 14,4: “São virgens e seguem o Cordeiro aonde ele os conduz”, até mesmo ao Calvário.

Apóstolos, discípulos, pobres e virgens, acompa-nham a missão de Jesus, cordeiro-vítima, em tudo. O convite universal para o cristão é compromisso de honra para os discípulos, antigos e hodiernos.

EXPIAÇÃO NA TRADIÇÃO ECLESIAL Na Igreja primitiva predomina a idéia: o pecador pa-

gue por seus pecados. A idéia da expiação alheia, ainda está à espera do aprofundamento teológico. “Na Igreja primitiva a teologia do pecado e da sua reparação é mais vivida que formulada”, diz Rondet. Está implícita na dou-trina patrística segundo a qual, na Santa Missa, é ofereci-do como vítima todo o corpo místico (idéia, particularmen-te cara a Sto. Agostinho). Pertencem a São Cipriano as bonitas palavras: “A água misturada ao vinho é o povo que se mistura com Cristo; e essa união é indissolúvel...”

Lactâncio: “O culto é verdadeiro quando a mente do ofertante se oferece a si própria como hóstia imaculada”.

“Quais as vítimas? Sede, vós mesmos, as vítimas.” Sto. Agostinho: “Este é o sacrifício dos cristãos, mui-

tos (formando) um corpo em Cristo... Toda a cidade redi-mida é oferecida a Deus pelo Sumo Pontífice como sacri-

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fício universal”. Os Mártires não são apenas a maior expressão do

amor (Jo 15,13), mas são também vítimas redentoras co-mo Jesus; seu sangue faz germinar conversões.

Após a era dos mártires, elevaram os monges o es-tandarte da redenção penitencial, vivendo “a vida apostó-lica” (discipulado, sem apostolado externo), até a idéia da reparação expiatória surgir do estado latente no segundo milênio. Desde as origens o monge sente-se incumbido de rezar, em nome do povo de Deus, e pelo povo de Deus, numa espécie de divisão de trabalho entre os di-versos membros do corpo místico. E assim também na cruz do Salvador cabem-lhes as primícias. O monge quer ser discípulo do Mestre em maior plenitude; portanto, maior seja também seu quinhão. “Quem quer seguir após mim, tome sua cruz cada dia e venha atrás de mim” (Lc 14,25). A fim de que haja sobras de graça para os mem-bros mais necessitados do Cristo místico.

O valor redentor-expiatório do sofrimento (e da peni-tência), unido à Paixão de Cristo não está declarado em texto nenhum do primeiro milênio com nitidez teológica, mas vive em estado latente. Aqui, acolá apontam alguns indícios.

Sto. Inácio mártir deseja oferecer seu martírio por seus irmãos na fé (Carta à Igreja de Êfeso). “Minha vida e minhas cadeias sejam por vossas almas” (Carta à Igreja de Smirna).

Clemente Alexandrino: “A partir de um só e por um só foram salvos (os cristãos), e salvam outros”.

Orígenes Seu espírito penetrante, intuitivo e profundamente

piedoso já descobriu a pista certa. “Além de Cristo, também seus filhos tiram os peca-

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dos dos santos, isto é, dos cristãos, a saber: os apóstolos e os mártires...” E a prova: São Paulo ofereceu-se com vítima de imolação (2 Cor 12, 13 e 2 Tm 4,6).

“Os mártires, segundo Ap 6,9, assistem ao altar. O-ra, assistir ao altar é função sacerdotal, e o ofício do sa-cerdote é interceder pelos pecados do povo... Já não me-recemos sofrer perseguição por Cristo. O demônio sabe agora que o sofrimento do martírio produz perdão dos pecados. Por isso, ele não quer promover contra nós per-seguições públicas... No entanto, N. Senhor conhece os seus; e em pessoas, em que não se espera, tem ele seus tesouros. Eu não duvido que também nesta assembléia estão alguns conhecidos só por ele, os quais valem pe-rante ele, em sua consciência íntima, como mártires, dis-postos a derramar, se necessário, seu sangue pelo nome de N. Senhor Jesus Cristo. Não duvido estarem aqui al-guns que carregam a sua cruz e o seguem” (In Numeros 10).

Falando dos holocaustos da lei mosaica, Orígenes explica que o cordeiro é figura de Cristo. Os outros ani-mais de sacrifício talvez figurem os profetas que derrama-ram o seu sangue, desde Abel até Zacarias. Vítima é Pau-lo, porque deseja ser anátema pela salvação de Israel (Rm 9,3).

“E enquanto houver pecados é mister haja vítimas...” Verdade que o sacrifício de Cristo foi tão valioso “que uma vítima bastou pela salvação do mundo inteiro”... “Convém porém sacrificar ainda vítimas do coração. Festejemos, pois, no espírito, este dia e degolemos sacrifícios espiritu-ais”... No fim do capítulo declara: “Fiz um esboço; só Deus pode esclarecer tudo” (In Números 10).

Comentando Rm 12,1, Orígenes distingue quatro classes de vítimas após os apóstolos: os mártires, as vir-gens, os celibatários e (firme na linha escatológica) aque-les casados que seguem 1 Cor 7,5.

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Tertuliano Escreve apostrofando o pecador: “Teus irmãos ver-

tem lágrimas sobre ti, é o Cristo que suplica ao Pai por ti; penitência!”.

Como montanista, combate o costume de abreviar a penitência pública do pecador através da intercessão de um mártir.

São Cipriano Defende esse privilégio dos mártires, verdadeira ex-

piação por suplente. Só recomenda não facilitar.

São Jerônimo Aproxima-se mais da idéia com a famosa sentença:

“O monge não tem ofício de doutor, mas de penitente, chorando sobre si ou sobre o mundo”.

Sto. Ambrósio Explica: “Como o fermento invade a massa, assim o

luto, a prece, a dor da Igreja aproveita ao pecador peni-tente.

Sto. Agostinho Moisés intercedeu por Israel (Ex 27), para nosso e-

xemplo. “Quando nossos méritos nos pesam, impedindo de sermos amados por Deus, podemos se auxiliados ser-vindo-nos dos méritos daqueles que ele ama”. Agostinho deve ter pensado em sua santa mãe, cujas orações e lá-

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grimas o reconduziram à salvação. Mas a modéstia cristã hesita apontar nomes de ascetas ao lado de Moisés. A época heróica do martírio havia passado.

Cassiano Porta-voz dos monges do Oriente informa-nos: 1. Tarefa especial, ou até diria, o esporte dos mon-

ges do Egito foi a luta contra os demônios. Luta “apostóli-ca”, visando libertar a Igreja e seus membros da influência maléfica do Mal. Expulsam o demônio seguindo a receita evangélica de Mt 17,21: “Não se expulsam, senão por força de jejum e oração”, portanto, pela penitência expia-tória supletória.

Aliás, os monges aplicaram o axioma evangélico, em primeiro lugar, à sua própria pessoa, e não lhes veio a idéia de bancar redentores da humanidade pecadora. O rival também era de tamanho superior e a luta desigual para humanos (São Paulo ter-lhes-ia gritado: revesti-vos de Cristo).

2. Outro encargo monástico é a prece de petição pe-lo povo de Deus. Esta “terceira espécie de oração”, de interceder pelo próximo, cabe de um modo especial aos “perfeitos”.

3. Ainda o caso dos irmãos monges na Vida dos An-tigos Padres (citado por Sto. Tomás, Supl 13,2): Foram à cidade vender seus trabalhos. Um caiu na tentação com mulher e, sentindo-se indigno, não quis retornar ao mos-teiro. Então, o irmão fingiu ter caído também no pecado: “Mas vamos voltar, acusar-nos e fazer penitência.” Dito e feito. Poucos dias depois, Deus revelou que um era ino-cente e o outro tinha sido perdoado por causa do irmão. Remata o cronista: isto se chama dar sua alma pelo ir-mão.

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São Bento Responde pelo monaquismo ocidental. Indica mo-

destamente como fim da vida monástica, no prólogo da regra, que “o monge participa da paixão de Cristo, a fim de ter também parte no seu reino”.

Humilde, não se julga competente para completar a redenção de valor infinito. Pelo próximo, seu irmão, o monge oferece o saltério recitado em nome da Igreja. Quanto aos méritos de sua vida penitente, nem pensa. E tudo o mais está aos cuidados de Cristo, chefe, supremo abade e Pai da cristandade.

Concluindo A idéia da expiação substituinte está em estado em-

brionário. A teoria, entenda-se. A prática espiritual deve ter agido por intuição e carisma.

A semente evangélica e paulina por fim germina, brota e torna-se árvore frondosa e florida no segundo mi-lênio cristão, progredindo até seu auge na devoção ao Sagrado Coração. E por fim, a evolução espiritual dos séculos recebe a aprovação oficial do magistério, por Pio XI, em 1928.

Talvez tenha contribuído, para retardar esse desen-volvimento doutrinal, a reflexão de humildade mais que justificada: mesmo sendo pecador, como interceder pe-rante Deus pelos semelhantes? Até que (a meu ver) Deus mesmo sugeriu aos carismáticos a expiação suplementar, convidando-os a colaborar, isto é, no caso, a “con-sofrer”...

Como desagravar e consolar Jesus na sua paixão, se nós todos pecadores somos a causa de seus males?... Até que o amor sobrepuja os receios da própria indignida-de. Assim o segundo milênio, suscitando a devoção à

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Paixão, às Cinco Chagas, ao Coração de Jesus, abriu caminho.

Quero crer que esse embaraço doutrinal se deva a-tribuir também à falta de literatura mais autobiográfica. Falta a literatura espiritual introspectiva até o início da I-dade Média. Antes temos quase só alguns poucos trata-dos teológicos e a grande massa de sermões populares, sermões paroquiais, que não perdem tempo com alta mís-tica. Os sermonários populares dos Santos Padres prefe-rem ser realistas e cuidar dos fundamentos da vida espiri-tual. Logo que surge uma literatura eclesial mais intros-pectiva, aparecem informações abundantes sobre expia-ção e almas vítimas. Haja vista, Inês de Viterbo, +1252, a francesa Lidwina, a beata Alpais, +1211.

Um texto casual de São Gregório Mago, +604, (Car-tas 26): Roma conta com três mil religiosos “e sua vida é tal que às suas lágrimas e abstinências rigorosas” deve-mos a graça de Roma não ter sido invadida pelos longo-bardos.

Se Deus atualmente recorre ao regime de vítimas convocadas por ele, tal deve ter sido a economia de sal-vação também no primeiro milênio, mas ficou tudo encer-rado no segredo do coração das almas santas e eleitas.

São Bernardo Tem a feliz idéia de aproveitar o trabalho já feito... e

feito por quem pode... isto é, de aproveitar a paixão de Jesus. Antecipou mesmo o elevador de Sta. Teresinha. Escreve: “Desde o início da minha conversão, irmãos, em vez de méritos que, eu o sabia, me faltavam, recolhi e segurei sobre meu coração este buquê de mirra formado pelas angústias e amarguras de meu Senhor. Eu pus ali primeiro as privações de sua infância. Depois, os labores de suas pregações, as canseiras de suas caminhadas, as

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suas vigílias noturnas em oração, suas tentações e jejuns no deserto, suas lágrimas de compaixão, as traições das disputas, os perigos de falsos irmãos, os insultos, cuspi-das, bofetadas, caçoadas, batidas e tudo quanto sofreu, na floresta das suas dores, pela salvação do gênero hu-mano. Julguei não dever esquecer a mirra que bebeu na cruz... a amargura dos meus pecados...

Por toda a minha vida lembrar-me-ei da sua abun-dância e suavidade, e não esquecerei jamais seus gestos de misericórdia que me deram a vida”

São Bernardo dá-nos a primeira referência clara do valor redentor do sofrimento. Exorta seus monges: “De-veis molhar, com vossas lágrimas, todo bocado de pão que tomais. Entramos neste mosteiro para chorar as nos-sas culpas e as do povo. Comendo o pão que os fiéis nos dão, nós comemos seus pecados para chorá-los como se fossem nossos”. Assim São Bernardo ressuscitou o texto de São Jerônimo, dando-lhe um sentido inequívoco de penitência expiatória suplente; só falta a referência à Pai-xão. Esta ligação fez, no século seguinte, uma sua discí-pula, Sta. Lutgarda, Ord. Cist., 1182-1246.

Sta. Lutgarda Devota do Coração de Jesus e das cinco chagas, foi

encarregada por Jesus de viver rezando e penitenciando-se pelos pecadores. Merece destaque outro cisterciense do mesmo século:

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Helinardo, +1235 Ele antecipou Pascal dizendo: “O corpo místico ain-

da não nasceu inteiro. Ele nasce toda vez que uma alma se torna cristã... E ele ainda não padeceu toda a sua pai-xão: até o fim dos tempos ele sofrerá em seus membros”.

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Sta. Hildegardis Contemporânea de São Bernardo, reduz toda peni-

tência ao bom exemplo que as monjas dão na imitação dos anjos e no desprezo do mundo. “Elas imitam a paixão do meu Filho e suas penitências; contribuem com brilho vívido ao ornato da Igreja”.

São Francisco A voz do crucifixo alerta: “Francisco, vai reconstruir

minha casa que está prestes a ruir”. Francisco não tardou a descobrir que não se tratava da igrejinha de São Dami-ão, mas da Igreja de Cristo. Chamado a segurar o palácio do Latrão, ameaçado de ruir (sonho de Inocêncio III), isto é, chamado a renovar a Igreja, Francisco funda a Ordem da Penitência e do amor ao Crucificado. Não somente para dar testemunho ao povo de Deus, mas também, ou sobretudo, para ser um aqueduto de graças para a cris-tandade. Fez-se vítima pelos irmãos, eleito por Cristo co-mo porta-bandeira dos estigmatizados. O supremo favor que ele pede ao Crucificado: “Sentir no corpo e na alma as dores da Paixão”. E a segunda graça: “Residir em meu coração, enquanto possível, aquele amor que ardia em Ti, ó Filho de Deus, e que te levou a sofrer tanta pena por nós, miseráveis pecadores” (Fioretti). E Francisco restau-rou a casa de Deus pela pregação, e mais ainda pela ora-ção e penitência dos irmãos.

Sto. Tomás de Aquino Cristo mereceu por nós e satisfez por todos, porque

somos um com ele: ele a cabeça; nós, os seus membros. Assim automaticamente passam os méritos e satisfações

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da cabeça para o corpo. Há também intercâmbio entre os membros. “Com

respeito à remissão das penas, um pode merecer por ou-tro, e o ato de um transfere-se a outro mediante a carida-de, pela qual somos todos um em Cristo” (Suppl. 13,2).

Mas o texto pivô, “completar a paixão” (Cl 1,24), Tomás interpreta-o de maneira divergente, dizendo: “Os padecimentos dos santos (na terra) aproveitam à Igreja, não como redenção, mas como exortação e bom exem-plo” (segundo 2 Cor 4,8;5,3 [sic?]). Tomás acentua, pois, o valor infinito da redenção de Jesus, ao qual é impossível fazer um acréscimo.

Evoluindo a tradição eclesial, mais por intuição ca-rismática do que especulação teológica, aprofundou o problema. Distinguiu entre redenção objetiva e redenção subjetiva, sendo a primeira realizada por Jesus sozinho, em super-abundância. Na segunda, na distribuição da graça, Jesus pode admitir e de fato pede colaboradores.

A idéia da expiação suplementar pelos pecadores, em união com Cristo padecente, progride e recebe cada vez mais colaboradores voluntários e generosos. O clarão fugaz bernardino que iluminou o horizonte por um mo-mento (Vandenbroucke) a partir do século XIII, faz-se ar-co-íris da paz. Chegou seu kairós.

Sta. Lutgarda penitencia-se pelos pecadores e pro-paga a devoção ao Sagrado Coração. Ângela de Foligno, +1309, preconiza a devoção ao sofrimento, seguindo as pegadas de São Francisco. Aliás, já meio século antes, sua patrícia e irmã terceira, Sta. Inês de Viterbo, +1252, reconhece-se vítima expiatória pela Igreja ameaçada pelo imperador gibelino Frederico II.

Alma vítima em sentido formal é Sta. Catarina de Sena. Diálogo, Cartas e vida dão testemunho. Aos sete anos começa por tomar três disciplinas por dia; a primeira por si, a segunda pelos pecadores, a terceira, pelas almas

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do Purgatório. Ainda na última carta a Raimundo escreve: “Ó Deus eterno, aceita o sacrifício da minha vida pelo corpo místico da santa Igreja”.

Também no norte europeu desse século, estão a flo-rir as rosas da paixão: Henrique Suso, OP, e se saboroso livrinho da Eterna Sabedoria, e Tauler, em seus sermões da mais sublime espiritualidade.

E começou a procissão dos estigmatizados: visíveis e invisíveis. Sta. Catarina traz as marcas de Jesus. O Crucificado torna-se o grande modelo a meditar e a copi-ar. Sto. Inácio de Loiola coloca o pecador perante o cruci-fixo: “Que fiz eu por ele? Que farei?” Pascal presenteia-nos com a famosa sentença: “Jesus está em agonia até ao fim do mundo? Não se deve dormir durante este tem-po”. Embora desagravo e reparação expiatória não lhe pudessem interessar, como jansenista que era; estava predestinado, e bastava agradecer a Deus.

É lei da economia salvífica da Redenção que “Jesus, por não poder mais sofrer, se faz substituir por seus ami-gos” (MATILDE DE HELFTA, Obras, 36).

Como remate final, o texto grandioso e gracioso de Sta. Gertrudes de Helfta: “Metade do Corpo Místico de Cristo Jesus está coberta de vestidos ricos, com todo o luxo; a outra metade está nua, coberta de feridas e esca-ras, representando os imperfeitos. E Nosso Senhor deseja que suas feridas sejam tratadas e curadas. E curadas com mãos macias e suaves, não à ferro e fogo” (3, 69). As graças do corpo místico de Jesus são bens comuns, intercomunicáveis (3, 69).

Ampliando a alegoria, veremos na visão que a mor parte do Cristo místico só veste chita barata. É raro o ves-tido de púrpura, do flamejante amor de Deus.

EXPIAÇÃO E MAGISTÉRIO

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O Magistério explicou e recomendou aos fiéis o de-sagravo, a expiação e a reparação em quatro encíclicas.

Pio XI Dedicou ao assunto toda a encíclica Miserentíssimus

Redemptor, 1928: “A tarefa da expiação suplente é de todo o gênero humano”. Portanto, não só os místicos, mas todos os cristãos comuns podem e devem oferecer a Deus desagravo pelos pecados da humanidade. “Nenhu-ma criatura poderia expiar os crimes da humanidade”. Por isto, Cristo se ofereceu (Hb 10,5).

Podemos, e até devemos, juntar nossas preces e expiações às de Cristo. “Principalmente na Santa Missa os fiéis ofereçam-se como hóstias vivas, santas, agradá-veis a Deus (Rm 12,1). São Cipriano não hesita em afir-mar que o sacrifício do Senhor não se celebra com devida santidade se a nossa oblação e nosso sacrifício não lhe correspondem”.

Jesus pediu a Hora Santa e a comunhão reparadora. “A paixão expiatória de Cristo é renovada, continua-

da e completada em seu corpo místico, como disso dá mostras o Senhor Jesus, dizendo a Saulo: por que me persegues? (Atos 9,5)... É justo, pois, que Cristo, pade-cendo ainda em seu corpo místico, deseje ter-nos como sócios em sua expiação. E nossa ligação com ele exige-o. Visto que pertencemos ao seu corpo (1 Cor 12, 27), é preciso que tudo quanto a cabeça sofra, seja partilhado por todos os membros”.

Em 1934, Pio XI retorna ao tema: “A alma crucifica-da com Cristo por um martírio do coração adquire, para si e para os outros, abundantes frutos de salvação. São es-tas almas puras e sublimes que padecendo, amando, re-zando, realizam na Igreja um apostolado silencioso, pro-veitoso para todos”.

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Pio XII Abordou o tema três vezes na: Mystici corporis,

1943, na Mediator Dei, 1947, na Haurietis aquas, 1956. Citamos alguns textos da “Mystici corporis”:

“Cristo adquiriu a Igreja com seu sangue (Atos 20, 28), e seus membros gloriam-se de serem remidos por uma cabeça coroada de espinhos: prova manifesta de que as obras mais gloriosas e exímias só nascem da dor” (1Pd 4,13)...

“A fim de remir a humanidade por meio de suas do-res e torturas, o Verbo de Deus quis usar da nossa natu-reza. Assim também, a Igreja usa da sua, a fim de conti-nuar a obra iniciada” (1 Cor 12,21)...

“Nosso Salvador quer ser coadjuvado, na execução da obra redentora, pelos membros do corpo místico, quando se trata de distribuir aquele tesouro... mistério tremendo e nunca assaz meditando, que a salvação de muitos depende das orações e mortificações voluntárias dos membros do corpo místico... Se muitos ainda vivem no erro, longe da verdade católica ... isso acontece por-que não somente eles mas também os fiéis não rezam com fervor por essa causa”...

“Nossas dores devem unir-se aos padecimentos do Divino Redentor. Seja isto ofício de todos. Principalmente nesta tremenda deflagração bélica... Ouçamos ainda Leão Magno, quando afirma que pelo batismo nos tornamos carne do Crucificado”.

Concílio O Concílio Vaticano II vê na ceia pascal a renovação

cotidiana da “obra de nossa redenção” (LG 3). E o povo de Deus dela participa “sendo vítima com a

Vítima” (LG 11).

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Todo o povo de Deus participa do sacerdócio de Cristo; portanto, ofereça-se “como hóstia viva, santa, a-gradável a Deus” (Rm 12, 1; LG 10).

“E todas as ações da vida cotidiana dos fiéis unidas aos sacrifício eucarístico... tornaram-se hóstias espiritu-ais” (LG 34).

EXPIAÇÃO NA REFLEXÃO TEOLÓGICA 1. Fomos solidários, tristemente solidários, no peca-

do original para a nossa perdição. Por mercê de Deus, somos agora também solidários na redenção com Cristo para a salvação do nosso irmão.

2. A razão disto é a grandiosa realidade do corpo místico. A humanidade remida forma com seu Redentor um organismo espiritual. E se a cabeça do corpo místico é vítima, deseja-se, ou melhor, exige a lógica que os mem-bros também sejam vítimas pois devem ser da mesma natureza.

3. O batismo enxerta-nos na morte de Cristo (Rm 6). Somos enxertados como galhos de oliveira (Rm 11,17) no Cristo crucificado, em Cristo-vítima. Cabe, pois, a todos os batizados o poder e o dever de desagravo, de repara-ção.

4. O sacerdócio espiritual, participado por toda a cristandade, impõe também a todos o poder e o dever de expiar o pecado, a ofensa a Deus.

5. Pertencemos a Cristo. Ora, sua missão essencial foi a reparação, o desagravo ao Pai celeste, a redenção. E há um só Cristo para todos, e este, crucificado (1 Cor 2,2). Há um só, igual para todos, protesta São Paulo (1 Cor 1,13).

Cristo mesmo explicou aos discípulos de Emaús e a nós, os epígonos: “Ó homens, sem critério e sem visão; tão lentos de coração para crer nos profetas: Não era ne-

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cessário que o Cristo padecesse tudo aquilo para entrar na glória?” (Lc 24,25). Aqui também vale: “Eis que vos dei o exemplo” (Jo 13,15).

Sofrer? Por que sofrer, se Jesus já sofreu o bastante, em

super-abundância? Resposta: “O mundo está todo entregue ao mal” (1

Jo 5,19). Apesar da salvação sangrenta por Cristo, o mundo continua despreocupado em sua faina de pecar, de ofender a Deus. As mágoas do coração de Deus conti-nuam, depois do Calvário, profundas como no tempo do paganismo. Quão numerosos são os pecadores profissio-nais e vitalícios! Provavelmente constituam até a maioria. “Há abismos em volta de nós” (Walcherem)

Estes pecadores já gastaram a herança paterna das graças de salvação. Já esgotaram sua quota, sua ração. Necessitam de mais graças, de mais auxílios divinos. Como consegui-los? Fácil: rezando. Mas eles não rezam nunca. Por preguiça, ou por princípio, isto é, por estupi-dez. São abismos que se mostram hiantes. Jesus já fez sua parte. Então a misericórdia de Deus recorre a seus irmãos e irmãs na terra. Recurso de emergência. De S.O.S., ao pé da letra. E o Salvador aparece de novo na terra, caminhando por entre as nações. E pergunta aqui e acolá: Não queres aceitar algum sofrimento suplementar por teu irmão em perigo? E corações generosos respon-dem: sim.

Ressuscitou Jesus está no céu, não sofre mais; já passou tudo.

Mas sofreu na terra. Sofreu a valer. 1. “Quem ama, compreende”, diz Pio XI, citando Sto.

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Agostinho. 2. Semanalmente repetimos no saltério: “O impropé-

rio partiu-me o coração. Desfaleci. Esperei por quem se apiedasse de mim, mas não veio ninguém. Por quem me confortasse, mas não encontrei” (Sl 68,21).

3. Cristo na terra continua perseguido. Como ele mesmo em pessoa explicou a São Paulo, no caminho a Damasco: “Por que me persegues?”

4. Cristo na terra continua sofrendo, ferido, chagado por nossos pecados. Nossos pecados são outras tantas feridas no corpo de Cristo. Merecem especial amor os pecadores porque são a parte mais doente, mais dolorida do corpo místico de Jesus. São feridas que pedem o bál-samo do bom samaritano. Pedem o sofrimento expiatório de almas vítimas. A agonia de Cristo continua até o fim do mundo.

5. Assim como os nossos pecados do século XX a-charam um jeito de se apresentar no ano trinta do século I, no horto, na Via-Sacra, no Calvário, assim também os nossos desagravos, nossos sofrimentos de expiação, nossas pobres palavras de consolo a Jesus encontrarão também o jeito de retroceder os 1900 anos, e acompa-nhar a Cristo em sua Paixão.

6. Não somente o Cristo doloroso é objeto de desa-gravo, mas toda a Santíssima Trindade, que é ofendida e injuriada todos os dias, e a todas as horas, pelos pecados das criaturas. E é um assunto sempre atual, não é remi-niscência histórica.

Dolorismo Mas este desejo de sofrer é coisa desnatural, capaz

de criar complexos. Não! Jesus é o primeiro a estimular este culto ao sofrimento, o primeiro e o mais interessado. Ele deu o exemplo. E ele não sofreu de nenhuma doença;

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nem física, nem metal. “Tenho de passar por um batismo e como anseio, porque se realize” (Lc 12,50).

Desde o início, a cruz foi escândalo para os judeus e loucura, isto é, estupidez para os gregos.

Crueldade? A justiça vindicativa de Deus afigura-se cruel. Por

que exigir compensação, em forma de castigo, de sofri-mento inútil? Por que desagravo da justiça, como se Deus Pai precisasse descarregar sua cólera ou seus nervos?...

Antropoformismos contestados pela cruz, pela maior expressão do amor do Pai celeste, pelas suas criaturas na terra.

1. Deus é justo. E não se deixa guiar por ressenti-mentos, como nós.

2. Cruel é o pecado. Temos uma idéia muito imper-feita, mesquinha do pecado-ofensa a Deus. O pecado tem Deus em conta de nada. Quer suprimi-lo. É praticamente deicídio formal, embora ineficaz.

3. Jesus morreu vítima de dor. Quaisquer que sejam as tão discutidas teorias atuais sobre a redenção, o certo é que Jesus escolheu para si o caminho da dor e da mor-te. Segundo Hb 12,2, “em lugar do gozo, abraçou a cruz”.

E Jesus escolhe o mesmo caminho para as almas convidadas à cooperação redentora. “Se o grão de trigo não morrer e não for enterrado, não produzirá fruto”. É a resposta às ironias cínicas de Nietzsche e ao otimismo beato de Chardin.

“Por que foi preciso que o sofrimento redentor de Cristo fosse tão terrível? Não há outra resposta senão seu amor... Ele quis descer até o fundo de sua tragédia” (Journet). Quis ser “provado em tudo como nós, com ex-ceção do pecado” (Hb 4,15). “Amou-nos e lavou-nos em seu sangue” (Ap 1,5).

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“Ninguém tem maior amor”.. (Jo 15,13). “Acredita, minha filha, diz Jesus a Sta. Teresa

d’Ávila, os que recebem do meu Pai maiores sofrimentos são os mais queridos. Os sofrimentos são medida do seu amor...Posso mostrar melhor a minha predileção do que escolhendo para ti o que escolhi para mim? Olha estas chagas! Tuas dores nunca chegarão a tanto... É este o caminho da verdade. Assim, me ajudarás a deplorar a perdição em que andam as pessoas do mundo”.

Recapitulando 1. A dor, o sofrimento físico ou moral, não é castigo.

O Livro da Sabedoria (1,13) protesta: “Não foi Deus que fez a morte”. O sofrimento não estava previsto no princí-pio da criação. O pecado forçou a mudança de regime. E a sabedoria e bondade divinas souberam tirar uma vanta-gem maior. Pela receita de Rm 8,25, “Para aqueles que amam a Deus, tudo redunda para o seu bem”.

2. O sofrimento tornou-se salvífico mediante a cruz de Jesus. Em virtude do corpo místico realiza-se a rever-sibilidade do valor satisfatório de nossas ações. Efeito da comunhão dos santos no reino de Deus. E Deus aceita esta substituição penal com a mesma prontidão com que acolhe em nosso favor a oferta do seu Filho Unigênito na cruz.

3. Nossa salvação toda é fruto de desagravo, de ex-piação, de redenção suplente. Cl 2,14 usa uma expressão interessante: “Deus anulou o título de dívida, pregando-o na cruz”. “A doutrina da reparação, da expiação, é essen-cial ao cristianismo. Deus quis salvar os pecadores pelos pecadores” (Bro OP)

Digam o que quiseram: há uma dívida a pagar, mas a pagar pela cruz de Jesus. O mal é que os seus não o receberam. O amor de um crucificado não foi aceito. Este

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mal deve ser reparado. 4. A redenção é sempre atual, porque são sempre

atuais os pecados, os meus, os nossos. E as almas hu-manas ou se santificam neste mundo, ou se perdem. Nes-te drama, que abrange o planeta todo e todos os conti-nentes, neste drama, cada um de nós tem seu papel pes-soal e ativo a desempenhar. A redenção é sempre atual porque nós mesmos temos de ser remidos, cada dia.

5. Este drama está sempre presente entre nós: a Santa Missa. “Todos os dias, incansável, a redenção con-tinua a salvar os homens” (Cesário de Arles)

6. Neste drama, Deus não quer simples espectado-res, mas que todos sejam atores. Adão foi posto no jardim do paraíso para trabalhar.

“O homem é contra-mestre da graça” (Claude Ber-nard). O mundo não é um espetáculo a ser contemplado, mas uma obra a ser realizada. Se isto vale para a cidade terrestre, urge muito mais para a cidade de Deus. Somos uma corporação única.

Colaboração Pede-se colaboração. Uma jovem expressou sua

desilusão e a de toda a sua geração: “Nunca seremos grandes; nunca seremos famosos. Nem sequer estamos em condições de ter grandeza. A história nunca de ocupa-rá de nós”. Sob o ângulo cristão, respondo: Não apoiados, ó filhos de Deus! E se a história não se ocupa conosco, pior para ela. O Reino de Deus precisa de grandes douto-res, como Agostinho, Tomás; de grandes missionários como: Paulo, Xavier; de santos estigmatizados como Francisco, Frei Pio; mas também da humilde Bernadete com o terço na mão. Precisa também da colaboração do cristão humilde, oferecendo seu trabalho de cada dia: é o que constrói o reino das almas completando o que falta à

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redenção. Todo o povo de Deus está convidado a colaborar

nesta tarefa. “A graça de Cristo tem um duplo peso: o pe-so da glória que dirige à divindade e abre espaço para a plenitude da habitação da Santíssima Trindade. E o peso da cruz que arrasta à seqüela de Cristo para remir com ela o mundo.” (Journet) “O amor inclina os cristãos a se-guir o itinerário traçado pelo Salvador. É um dos grandes pensamentos de São Paulo que as etapas da vida de Cristo, paixão, morte, ressurreição, deveriam reproduzir-se de algum modo em seus membros, pois afinal somos co-herdeiros de Cristo (Rm 8,17). A Igreja é continuação, plenitude, pleroma do Redentor” (Berulle)

Vítimas Suplentes Como Jesus inocente substitui a humanidade peca-

dora, assim ele procura, agora também, almas amantes para substituir os pecadores. Primeiramente a vítima sofre pagando suas próprias dividas no braseiro do amor. Uma vez purificada, a vítima entre em plena função e rende cem por cento.

O Onipotente publicou esta lei de substituição e foi o primeiro a aplicá-la em seu Filho, mandando que resga-tasse a humanidade pecadora por esta permuta mística. Agora Jesus-vítima procura almas que entrem na suces-são de seu holocausto, herdando sua missão. Tanto mais que, depois da Ressurreição, ele é incapaz de sofrer pes-soalmente. Se ainda quer sofrer, só o pode fazer pade-cendo nos membros de seu corpo místico. Assim estas almas reparadoras sobem o Calvário, e deixam-se pregar na cruz, no lugar deixado por Jesus. Imitam-no. Fazem mais: Dão ao Filho de Deus Onipotente o que lhe falta agora, a possibilidade de sofrer ainda por amor a nós. Saciam este desejo de Jesus que sobreviveu à sua morte,

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porque é como o amor que O gerou. “São estas almas diques de defesa contra as ondas do mar. Se não existis-sem, a humanidade seria engolida pela cheia dos peca-dos. Estamos pois ao abrigo destas vítimas” (Huysman)

Redenção Objetiva Na redenção objetiva, no resgate primordial (na a-

quisição dos méritos salvíficos, como diz a Escola) não há possibilidade da cooperação humana, com exceção da cooperação da Santíssima Virgem. Só um Deus podia oferecer satisfação cabal, expiação condigna; ainda mais que todas as criaturas estavam vinculadas ao pecado ori-ginal. Unicamente Maria Santíssima, a imaculada de todo o pecado, está em condições de contribuir à redenção desde o seu primeiro passo. É co-redentora, junto com Jesus, auxiliar e subalterna. No Calvário, Maria Santíssi-ma tornou-se nova Eva, tornou-se mãe de todos os remi-dos, segunda mãe da humanidade (Cf. Vaticano II, LG c.8)

Redenção Subjetiva A cooperação na redenção subjetiva, isto é, na apli-

cação dos frutos da redenção no Calvário, é acessível à criatura. É a missão da Igreja, corpo místico do Redentor. Tal foi a super-abundância da redenção que ela se trans-mite aos membros.

A Santa Missa é oferta de toda a Igreja. A Prece Eu-carística I reza: “Nós teus servos, e todo o teu povo san-to”. Os graus de cooperação variam: em primeiro lugar está Cristo-cabeça; em segundo lugar estão os sacerdo-tes; em terceiro lugar o povo de Deus. Os três oferecem e atual sacerdotalmente e os três são vítimas oferecidas no altar, enquanto que na cruz Jesus estava só com Maria

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Santíssima, nas duas funções, de sacrificador e de vítima. O grau de cooperação depende da união com o Cristo místico.

Obras Todas as boas obras, amar, rezar, sofrer, têm tríplice

valor: meritório, impetratório e satisfatório, ou expiatório. 1. O valor meritório é intransferível porque corres-

ponde ao grau de amor de Deus; e sendo um assunto pessoal, não admite substitutos.

2. Valor impetratório, funda-se e apoia-se na miseri-córdia de Deus. Seu âmbito é vasto como o universo. Seu poder e alcance, infinitos como a misericórdia divina. Sua eficácia para a pessoa orante é infalível diante das pro-messas formais de Jesus nos Evangelhos.

3. Valor expiatório. O perdão da culpa não admite suplente. É assunto íntimo e pessoal. Só se extingue pela conversão, pelo arrependimento. Perdão da pena, sua remissão, reparação da injúria cometida contra Deus, ad-mite suplente.

Condição: estar na graça de Deus. Sua eficiência não é simples conveniência baseada na bondade divina. Como somos parte do mesmo organismo místico, nossos bens são comunicáveis E assim podemos oferecer à justi-ça divina um bem equivalente, condigno, como alguém que paga dívida de amigo seu.

“A penitência de um pode transferir-se a outro medi-ante a caridade, pela qual somos um em Cristo” (III 13,2).

4. A teologia atribui a toda ação virtuosa um valor de merecimento por conveniência (de côngruo). Assim, po-demos merecer para o nosso próximo até a graça primei-ra, inicial, de conversão, coisa impossível em nosso pró-prio proveito, porque o pecador não tem direitos ou méri-tos sobrenaturais

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A grande graça da perseverança final do próximo podemos merecer na base da amizade com Deus. Nosso própria perseverança na graça de Deus, porém, não é objeto de mérito; deve ser pedida pela prece. E esta prece é de efeito infalível, prometido por Jesus.

Mas deixemos de lado estas opiniões teológicas so-bre a transmissão de graças ao próximo. Para nós basta saber: as boas obras que mais contribuem para esta transferência de graças e favores divinos são: amor, ora-ção, sofrimento, a conhecida trilogia. E mãos à obra. Deus saberá distribui-las aos necessitados.

Vaidade Os autores espirituais previnem do perigo de nos

considerarmos alma vítima, quando somos perfeitamente ou quase inúteis no reino de Deus, e usurpamos o título para fomentar nossa vaidade. Advertem que é ridículo qualquer um intitular-se alma vítima, hóstia, holocausto: carregar-se com cruzes quiméricas e fantasias, e negli-genciar entrementes o dever de cada dia.

Mas o abuso não tolhe o bom uso. E é mister gravar, na mente de todos, que o nosso

sacrifício e sofrimento tem valor de satisfação e expiação unicamente porque Cristo morreu primeiro na cruz, “sinal dos tempos da graça” (1 Tm 2,6). Em seguida, incorpo-rou-nos pela graça santificante e pelo caráter batismal em seu corpo místico. E agora, só agora, estamos em situa-ção de poder expiar; capacitados para o desagravo a Deus. Tudo quanto oferecemos em expiação são os so-frimentos de Cristo na cruz, dos quais participamos como filhos de Deus. Dos quais podemos dispor como irmãos do Filho de Deus, como partes de seu corpo místico.

Sta. Teresa d’Ávila, planejando a fundação de um novo Carmelo, disse: “Teresa e um ducado de ouro não

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valem nada. Mas Jesus, Teresa e um ducado valem mui-to”. Nossa ação só terá grandeza e eficiência se for unida, bem unida à do Redentor. Só então é que vale a palavra do Papa Leão Magno: “Pelo batismo tornamo-nos carne do Crucificado”. É sempre a velha história: o homem pen-sa poder dar a Deus algo de valor, quando de fato nada tem, nada que possa interessar a Deus. E para o reino só interessa se for um ato sobrenatural, isto é, realizado em colaboração com Cristo pela graça e pelo amor. Só assim, estará no nível. E desagravará a Santíssima Trindade a-penas na proporção dessa união com Cristo Místico.

Por isso, precisamos arder. Sta. Teresinha queria ser apóstola, missionária no mundo inteiro, profeta... Pa-rece entusiasmo poético. Mas sua vida é comentário au-têntico, mostrando que não era simples fraseado, mas realidade divina, ardente de amor.

Presunção Foi dito: oferecer-se como vítima de expiação é pre-

sunção tremenda para os principiantes na vida espiritual (Marin). Todavia, Pio XI afirma: “A expiação é dever de todos os batizados”... Enfim, há vítimas de todos os graus de intensidade, desde o número um, até quase o infinito. Desde o humilde pecador, recém-convertido, rezando de braços em cruz o terço pelos companheiros, até a Virgem-Mãe do Salvador, rainha das almas vítimas. O Mestre a-ceitou de boa mente também o óbulo da pobre viúva “por-que deu de sua indigência tudo quanto tinha” (Mc 12,44).

Como expiar Expiação, desagravo são necessários enquanto a

terra pecar contra o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A compaixão pala Paixão de Jesus visa também o desagra-

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vo da Divindade, pois o martírio de Jesus na cruz é mais uma das injúrias do pecado contra Deus. Porque os pe-cadores crucificam novamente o Filho de Deus e fazem-no alvo de ludíbrio (Hb 6,6).

Expiação, satisfação, reparação, compensação rea-lizam-se: ou, primeiro, pagando a pena devida, o que im-plica e supõe a conversão do pecador; ou, segundo, su-prindo a recusa de glorificar, de adorar, de amar a Deus, recusa esta, implícita em todo o pecado.

A número um, implica sofrer mais ou menos, como veremos depois. A número dois, porém, é acessível a to-dos: consolar o Cristo da paixão, consolar com palavras, por falta de melhor jeito. Um anjo do céu consolou Jesus na agonia do Horto (Lc 22,43). Daí a Hora Santa, na qual rezamos e pedimos perdão e misericórdia, por nós e por todos. E principalmente amamos. O pecado é sempre re-cusa de amor. E é recusa do amor infinito de Deus, amor de Deus que foi até à loucura.

Desagravo de injúria reclama sofrimento; por isso oferecemos a Deus os sofrimentos de Jesus. Eles foram sofridos como compensação das injúrias do pecado. Ofe-recemos em desagravo, as Cinco Chagas, o precioso Sangue, a ferida do Coração. Oferecemos o sacrifício da missa, pois a Santa Missa é a paixão de Jesus cotidiana-mente presente entre nós.

Enfim, em questão de sofrimentos, aproveitamos an-tes o trabalho já feito. E bem feito, na cruz. Depois, acei-tamos os sofrimentos que a bondade de Deus se dignar enviar-nos. Pedir sofrimentos? Dizem os tratadistas que requer prudência (mas o pedido vai a Jesus e ele tem pru-dência, segundo Mt 7,10).

Requer, sim, humildade. Ou melhor, requer convite. Siga a atitude de Sta. Teresinha.

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Concluindo 1. Em primeiro lugar, e sempre à mão, nossas pala-

vras de consolo, de compaixão, de amor. Jesus pediu a Sta. Margarida Alaquoque a Hora Santa nas quintas-feiras, das onze à meia noite. Pediu a comunhão repara-dora nas primeiras sextas-feiras de cada mês.

2. Sofrer, se tiver uma oportunidade (!) com e por Jesus. “Doentes são radioemissores da graça”. Valor re-almente expiatório cabe à dor, física e moral, tão somente se é sofrida por amor de Deus. O pecador apegado ainda ao pecado, portanto inimigo de Deus, não está em condi-ções de oferecer a Deus algo que seja do seu agrado.

O valor expiatório sobe com a intensidade e a dura-ção do sofrimento. Qual a escala de valores, ignoramos. Mas podemos dizer que um pequeno sofrimento, ofereci-do com um grande amor, agrada mais que o inverso. E tudo que agrada, satisfaz e desagrava.

3. Sofrer a vida cotidiana. Para reparar, nada mais indicado do que a vida cristã de cada dia, vivida na fideli-dade ao dever, ao trabalho, na caridade fraterna, vivida num grande amor a Deus e, eis sua terceira dimensão, associada à paixão de Jesus, oferecida em expiação.

4. Sugerimos uma penitência-mortificação: conten-tar-nos apenas com Deus. Em sua forma elementar, é essencial à existência cristã e indispensável. Mas o amor de Deus eleva-a a altura vertiginosas. É o desapego dos tratados ascéticos. Ou expresso em outra fórmula e sob outro ângulo: é procurar em tudo, apenas o agrado do Pai. Rigorosamente em tudo, apenas o agrado do Pai. Rigorosamente em tudo, de manhã à noite. Como fez Je-sus: “Faço sempre o que é do agrado do meu Pai” (Jo 8,29). Eis a suma de toda espiritualidade. Eis a suma san-tidade.

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Pecados O primeiro assunto para a reparação são os próprios

pecados. Quem porventura não tiver material, faça como Sto. Agostinho, e terá assunto e motivo de sobra: “Deveis crer que Deus perdoou todos os pecados nos quais a sua graça vos impediu de cair”.

Pode expiar pelos outros quem ainda tiver a pagar as próprias dívidas. Pode e deve. Deixa tuas dívidas pes-soais para depois, e pensa primeiro em socorrer aqueles teus irmãos que estão em perigo de perder tudo. teu caso pessoal não tem pressa. Mas quero crer que, pagando dívidas de outros irmãos em Cristo, recebes também teu desconto na mesma proporção.

Todavia, ser vítima, no sentido pleno, que talvez se consagra a Deus por voto de vítima, supõe ter liquidado todas as dívidas pessoais, manchas e defeitos da alma. Parece. Falando em linguagem técnica: após a noite do espírito e suas purificações. Então, todo o seu ser e tudo quanto faz é expiatório. À semelhança do Salvador.

Justiça - Amor? Um estrago feito num objeto material, por exemplo,

num automóvel, exige reparação por justiça. A lesão da boa reputação, embora assunto imaterial, é questão de justiça. Mas há outros domínios onde a justiça não basta (Rondet). Uma injúria entre marido e esposa, entre pais e filhos, não se repara por um ato de justiça, por generosa que seja a reparação; exige também amor. Entre Deus e nós: o pecado ofende a Deus e exige desagravo por justi-ça. Jesus, por sua paixão dolorosa satisfez plenamente à justiça do Pai em nosso lugar. Mas há mais: “O pecado é injúria à grandeza de Deus e ofensa à sua honra, mas acima de tudo é recusa de amar” (Rondet). O amor de

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Deus foi até a loucura. Compreensíveis as loucuras de amor dos santos. Ainda mais sendo aguilhoados pelo pouco caso da humanidade, por seu ódio ao amor de Deus. Portanto, o amor é elemento indispensável na expi-ação. Mas por que Deus exige expressamente de alguns santos também as macerações e mortificações? É a parte da justiça. Porque o pecado é injúria, é injustiça. É o que falta para completar a paixão. São as dores do Cristo mís-tico.

“Nós e Cristo somos o Cristo total”, diz Sto. Agosti-nho. O sofrimento do Cristo físico é completo. Mas a parte que cabe ao corpo místico ainda está faltando. Quase se pode dizer: que ainda falta tudo. Precisa ser completado. Um trabalho que recomeça sempre de novo, de século em século. E para este drama da salvação é que Jesus pede colaboração. Conta com nosso apostolado da pala-vra. E pede almas vítimas da oração e da dor. Convite que Isabel da Trindade formulou com acerto e muita gra-ça: “Quero ser para Jesus uma humanidade de acrésci-mo, por extensão, para salvar almas junto com Ele”.

Meditando “Jesus parece salvador infrutuoso, salvador que não

salva bastante” (Plus). Desde 1900 anos já existe o cristi-anismo, e não chegou a implantar o reino de Deus. Não é defeito do Salvador. Os cristãos esqueceram que o Cristo completo, total, abrange a todos na Igreja; que todos os membros são chamados à colaboração. E esta colabora-ção falhou. O convite ao banquete foi feito. Mas cada um foi para a sua fazenda tratar da sua vida.

“Que frêmito doloroso ao olharmos o Crucificado! Não o nosso artisticamente moldado em fino metal ou marfim, mas o Crucifixo real, verdadeiro. O Cristo estirado sobre as duas travessas mal esquadriadas, olhando do

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Calvário para os dois mil anos de cristianismo... De onde veio o fracasso? É certo que não foi do sangue de Cristo. A falha está no nosso lado...”

“Reparação não é somente uma questão de prudên-cia: mortificar-me, a fim de manter os sentidos rebeldes debaixo das ordens. Nem é apenas uma questão de justi-ça: tendo pecado, devo também expiar. Mas é uma ques-tão de amor a Jesus, e as almas às quais meu sofrimento pode salvar” (Plus)

Há mais. Há uma tremenda responsabilidade, pois de mim, do meu fervor ou desleixo, depende a salvação e felicidade eterna de tantas criaturas humanas. Daí o em-penho de entregar-se como vítima da paixão e redenção em Bérulle, Grignion de Montfort, em Paulo da Cruz que gravou com ferro em brasa o nome de Jesus sobre o pei-to, ... e o Crucificado tira o braço dos cravos para abraçar o amigo fiel.

E o inverso. Se Ario, Nestório, Lutero, Calvino tives-sem trabalhado pela verdade e pelo amor de Deus, fica-mos a sonhar essa outra cristandade que se teria visto na terra.

Se na história humana acontece que o inocente pa-ga pelo pecador, como diz o provérbio, na história da sal-vação acontece o contrário e sempre: que o pecador se salva pelo inocente, pela lei do solidarismo cristão, pela união do corpo místico.

Final “Apesar dos pesares, nós, os últimos Te aguarda-

mos. Nós Te esperamos, não obstante nossa indignidade e contra toda esperança. E todo o amor que conseguimos extorquir de nossos corações devastados será por Ti, Crucificado, que por nosso amor tens suportado todas as torturas. E que por tua vez nos torturas com toda a força

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do teu implacável amor” (G. PAPINI, História de Cristo)

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8. AS FONTES DA SALVAÇÃO “No céu sempre se agradece. Na terra sempre se

pede, e cada coisa de arrepiar o cabelo dos anjos! Não podíamos abrir uma pequena, gentil exceção e, em vez de pedir sempre, dar?” (F. W. Faber). Já que ganhamos afinal alguns presentes, presentes gratuitos, de elevado valor: o precioso sangue de Cristo, as cinco chagas, o Coração de Jesus, a Santa Missa.

A fim de expiar o pecado do mundo, devemos haurir nestas fontes da salvação. Aproveitar o trabalho já feito. O mundo não se converte em razão das nossas penitências e mortificações que são perfeitamente nulas, sem valor, mas em razão da Paixão da vítima divina.

E daí se segue que o primeiro ato é oferecer o que Jesus padeceu. Jesus a Sta. Margarida Alacoque: “Ofere-ce-me a meu Pai Eterno, para que aplaque sua justa ira e incline sua misericórdia”. Margarida escusava-se de não possuir nada a oferecer. Jesus: “Toma este coração e oferece-O ao teu Deus. Por ele podes pagar todas as dí-vidas. Apresenta muitas vezes a meu Pai o sangue do meu coração. Ofereça todo o meu sangue divino; seu preço é infinito”.

Semelhantes pedidos faz Jesus a Josefa Menendez, que ofereça os méritos da Paixão e da Santa Missa. O único que agrada ao Pai é seu Filho Unigênito, no qual pôs todas as suas complacências.

Elisabet Caroni-Mora reza: “Por favor, Senhor, dize-me que devo fazer para compensar as injúrias que rece-bes de mim e de tantos pecadores?” “Nada mais que ofe-recer meus méritos ao Pai Eterno”.

Gertrudes diz em nome de Cristo: “Todo pecador, por enorme que seja o peso dos seus pecados, pode res-pirar aliviado na esperança do perdão, oferecendo a Deus

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Pai, minha Paixão e morte inocente”. Em 1922, morreu no Congo africano uma menina de

14 anos, vítima de Jesus. “Quando não sofro, não sei mais que fazer porque não tenho mais o que oferecer pe-las almas”. Inclinamos a cabeça, estamos num santuário, perante uma filha de Deus. Mas temos uma resposta: “O-fereça a paixão de nosso Jesus”.

Rezamos pelos pecadores, a fim de que recebam a graça da conversão. Não apelamos para nossos méritos. Apelamos para a misericórdia divina. Se for necessária uma compensação, se um peso de culpas impedir a en-trada da graça, saberemos procurá-la na paixão de Jesus nosso Irmão. Nas cinco fontes da salvação.

1. CINCO CHAGAS “Abriu-lhe o lado com a lança e saiu sangue e água”

(Jo 19,34). O rei Afonso I Henriquez enfrenta em Ourique, 1139,

cinco reis mouros. Cristo teria-lhe aparecido mostrando-lhe as cinco chagas. Grato pela vitória, fez figurar no bra-são de Portugal as cinco chagas de Nosso Senhor: as quinas de Portugal. A devoção às cinco chagas de N. Se-nhor surge na espiritualidade cristã, no segundo milênio, particularmente com o primeiro santo estigmatizado. Um dos primeiros textos é de um franciscano, Tiago de Milão.

“Jamais quero separar-me do crucificado. Nele quero construir três tabernáculos: um na chaga das mãos; outro na chaga dos pés e o terceiro na chaga do lado. Aí, falarei ao seu coração e obterei tudo quando desejo. Por esta entrada penetrarei até ao íntimo banquete do amor” (Es-tímulo do amor).

Em nossos tempos, Jesus desejou recordar à cris-tandade estas cinco fontes de salvação. Escolheu como mensageiro uma visitandina, Maria Marta Chambon,

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1841-1907.

Maria Marta Chambon Seu exterior não era atraente, dizem. Algo desajeita-

da. Linguagem rústica. Inteligência frusta. Analfabeta. Portanto, estamos longe do sorriso cativante de Sta. Te-resinha. Mas é eleita de Deus, portadora de graças. Ainda criança, com nove anos, viu Jesus na cruz, na sexta-feira santa. “Não me disse nada, só ficou olhando”, narra mais tarde. Já religiosa viu-o de novo, coroado de espinhos, a dizer-lhe: “Eis a quem tu procuras”. Marcada pela graça, entrou no convento de Chambéry com vinte e um anos de idade, como irmã conversa Nunca chegou a aprender a ler ou a escrever. As superioras faziam-se de secretárias da mensagem de Deus. As superioras cederam somente depois de prudentes exames por diretores espirituais e, digamo-lo também, após experimentar os efeitos saluta-res e inequívocos. Jesus começou por pedir que Marta dormisse de braços em cruz, no chão da cela. Não rece-bendo licença, passa as noites em claro, enquanto que no chão dorme sono bem profundo como uma criança.

Em seguida Jesus exige que a irmã carregue dia e noite um rude cilício. Depondo-o por obediência e com alegria, pois o cilício causa-lhe dores vivas, Jesus se vin-gou, mandando outros sofrimentos tão agudos que foi preciso ceder.

Ainda no mesmo ano de 1866, Jesus quer que ela ponha à noite uma coroa de espinhos. Jesus mesmo en-sinou-lhe trançá-la. Certa noite, parecia-lhe a dor insupor-tável. Jesus lhe diz: “Minha filha, aperte ainda um pouco mais” e a dor desta vez desapareceu.

Abril de 1867, Jesus manda que peça licença para comungar diariamente, permissão que logo foi concedida. Mas em maio de 1867, Jesus pede que Marta passe as

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noites em adoração diante do Santíssimo. Sacramento. Assim passou a maior parte da vida sem dormir, passan-do depois, o dia todo em trabalhos domésticos, ininterrup-tos e fatigantes.

Em compensação, via na santa comunhão (e parece que sempre), pela vida toda, o Menino Jesus. Em com-pensação, também aconteceu que, interrogada como a-güentava passar tantas horas da manhã de joelhos, em oração e em jejum, respondeu: “Não sei, não percebo; a gente não pensa nisto”. Fica cansada? “Oh! não, a gente nem sabe mais onde está”. E o que diz a Jesus? “Oh!, nada, a gente se ama”.

Durante quatro anos exigiu-lhe Jesus completa abs-tenção de comida e bebida, deixando-lhe porém muitas vezes a sensação de fome e sede.

Por um ano teve também as cinco chagas visíveis no corpo; invisivelmente, só Jesus sabe por quantos anos.

Sua Missão Sua grande missão: comunicar ao mundo as graças

das cinco chagas. São Francisco de Sales revela-lhe: “Deus te escolheu para completar a devoção ao S. Cora-ção. O Coração foi manifestado a Sta. Margarida Alaco-que, e as santas chagas à minha pequena Maria Marta”.

Jesus lhe diz: “Eu te escolhi para reavivar a devoção à minha paixão. Não tires teus olhos deste livro, e saberás mais e melhor que os maiores teólogos. Minha filha, o fim de tua vida consiste em ser mensageira de meu amor a fim de que o mundo me conheça e me ame pelas cinco chagas. Na contemplação das minhas chagas as pessoa encontra tudo para si e para os outros... O caminho das minhas chagas é tão simples. É o caminho mais fácil para o céu.”

“Uma das minhas criaturas me traiu e vendeu meu

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sangue. Mas vós podeis tão facilmente resgatá-lo gota por gota. Uma única gota basta para purificar a terra, e vós nem pensais nisto. Não conheceis o valor das minhas chagas... Elas são o tesouro do mundo... são fortuna... Darei tudo quanto se me pede pelas santas chagas. To-dos que as venerarem, receberão profundo conhecimento de Deus e profundo amor”. “Não deveis ficar pobres, sen-do vosso Pai do céu tão rico. Qual a vossa riqueza? Mi-nha Paixão. E este tesouro vos pertence”.

Jesus mostra-lhe as chagas todos os dias, ora bri-lhantes, ora ensangüentadas. “Nestas chagas do teu es-poso deves haurir para o mundo: eis a tua tarefa”.

Das cinco chagas faz parte proeminente a coroa de espinhos: pés, mão esquerda, mão direita, coração, coro-a. “Minha coroa de espinhos causou-me mais dores que todas as outras chagas. Foi depois da agonia no horto, a dor mais cruel. A fim de aliviá-la, observa bem a tua re-gra”.

“A minha coroa de espinhos dou-a somente aos meus amigos preferidos. Ela é o quinhão próprio das mi-nhas esposas. Ela é a glória dos bem-aventurados e é o sofrimento para meus amigos da terra”.

“Veja em que estado estou! Contempla os espinhos da minha cabeça, oferecendo ao Pai do céu os méritos das chagas pelos pecadores. Vai à procura de almas”.

Jesus mostra-lhe também o Coração aberto: “Põe aqui os teus lábios, a fim de nele sorver o amor e espalhá-lo sobre o mundo. Põe aqui tua mão, e tira meus tesou-ros. Não consigo mais conter-me, tanto desejo dar”. Sen-tindo-se torturada pela fome e sede, Jesus a apertou ao seu coração: “Bebe aqui”.

Visando todas as almas consagradas, Jesus lhe diz: “Eis o vosso centro. Ninguém vos poderá impedir de me amar. Quero que me ameis sem apoio humano... Estou mendigando amor perfeito. Mas a maioria recusa-me este

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amor. Filha, ama-me acima de tudo, só por mim, como fez Sóror Margarida”.

“Por voto obrigou-se Marta a oferecer as chagas a Deus Pai, ao menos de dez em dez minutos, pela conver-são dos pecadores, pelo triunfo da Igreja, pelas almas do Purgatório. De fato, foi sua prece, interrompida apenas pelos êxtases. Inúmeras vezes subiu ao céu a prece ar-dente: “Pai eterno, eu te ofereço as chagas de N. Senhor Jesus Cristo para curar as chagas das almas. Perdão e misericórdia pelos méritos das santas chagas”. Se o seu fervor arrefecia um pouco, Jesus em pessoa encarregava-se de reclamar, em queixa amorosa: “As minhas chagas estão sempre olhando para ti, mesmo que tu as esque-ças... Estão sempre frescas; é preciso oferecê-las como da primeira vez. Já tas mostrei tantas vezes. Devia ser o suficiente. Mas não, tenho de inflamar o teu zelo sempre de novo”. E apresentou-se no lastimável estado a que o reduziram os pecados.

Certa vez, Jesus mostrou-se com uma coroa de três fileiras de espinhos grossos, espetáculo tão doloroso, que Marta não pôde conter-se e exclamou: “Jesus, deixa-me ter parte também”. Imediatamente, foi atendida.

Outra vez, Jesus apresentou-se novamente na sua vestimenta de dor e repetiu: “É preciso copiar-me”. Pouco depois, Jesus como que pede licença: “Minha filha, que-res ser crucificada ou preferes ser glorificada?” A resposta generosa do amor; “Jesus, prefiro ser crucificada”.

No retiro de 1868, Jesus lhe diz: “Retira-te para o in-terior de teu coração e fecha a porta. Queremos estar so-zinhos”. Ao deitar-se de noite sobre o chão, com os bra-ços em cruz, ouve Jesus dizer-lhe: “Dize-me agora: Je-sus, eis a tua vítima”. Mas diante da cruz oferecida, a na-tureza humana se revolta. Até meia-noite durou a luta. Jesus insiste fazendo ver as torturas de sua paixão até ouvir o fiat. “Filha, tua superiora te deu como livro de retiro

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o crucifixo, eis-me aqui”. Marta passou a noite toda nesta visão dolorosa. “Tu és mártir. Prepara-te para receber to-das as minhas chagas, uma após outra”.

Irradiando Jesus escolhera sua comunidade para irradiar e ini-

ciar a devoção às cinco chagas. “Filha, não penses que posso ficar surdo às almas que invocam minhas chagas. Não tenho o coração ingrato das criaturas humanas. Meu coração é grande. Meu coração é sensível. A chaga do meu coração abre-se em toda sua largura para bastar a todas as vossas necessidades”.

“Para contemplar bem as chagas de Jesus, diz-lhe Maria Santíssima “é mister não ter nenhum apego no co-ração”.

Premidas pelas instâncias de Jesus e por suas pro-messas, as superioras introduzirem a Hora Santa em lou-vor das cinco chagas, feitas todas as sextas-feiras por cinco voluntárias, e a recitação diária do terço das cha-gas. Houve oposição; e se soubessem que na origem de tudo estava a Irmã Maria Marta, irmã leiga e analfabeta, teria havido ainda mais. Jesus mandou perseverar no empenho. “Mas se quiserem, posso escolher outro mos-teiro”. Uma irmã, cuja inteligência fazia autoridade, lidera-va a oposição. Então Marta, em nome de Jesus, transmi-tiu-lhe um segredo entre Jesus e ela, que somente ela podia saber. Surpresa, convenceu-se da origem divina e tornou-se defensora infatigável e propagandista das cha-gas de Jesus.

E Jesus a renovar suas promessas: “Minhas chagas são vossas... Quanto mais e maior a contradição, quando mais numerosas os empecilhos, tanto mais ricas correrão minhas graças”.

E as almas das religiosas tornaram-se conchas aber-

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tas de incenso. Jesus aprova o louvor: “Alegra-me ver como estais venerando as minhas chagas. Agora, posso repartir com mais abundância as graças da redenção”... “Vossos mosteiros atraem as misericórdias de Deus sobre as dioceses em que se encontram. Quando ofereceis mi-nhas chagas ao meu Pai, eu contemplo com satisfação vossas mãos levantadas ao céu... E alcançais tudo aos necessitados da graça... Senti-vos felizes; pois eu vos ensinei uma oração que me desarma e vence: ‘Meu Je-sus, perdão e misericórdia pelos méritos das vossas san-tas chagas’. As graças que estais recebendo, por esta prece, são graças de fogo; vêm do céu e retornam ao céu”.

Aula Celeste “Bom Mestre, diz Marta com simplicidade, ensina-me

o catecismo”. E Jesus aceita: “Vai à tua casa (o Coração de Jesus)

e serei teu Mestre, ensinando-te como te sacrificar por mim e pelo próximo”. Depois entregou-lhe o manual de aula explicando; “O crucifixo é teu livro. Toda a ciência está encerrada no estudo e na meditação deste livro. Os meus santos lêem neste livro por toda a eternidade”.

Uma aula em resumo: 1. “Considera minha coroa e verás a mortificação. 2. Considera como estou desnudo na cruz e aprenda

a pobreza e a pureza do coração. 3. Considera a chaga do meu coração e aprende de

mim, e encontrarás a mansidão e humildade. 4. Considera meus braços abertos e aprenda a obe-

diência. 5. Vê-me todo coberto de feridas. Na cruz fixei mi-

nha atenção não nos algozes, nem em suas blasfêmias,

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mas só em meu Pai. Assim, vós também deveis cumprir o vosso dever, e fazer o que eu quero, sem respeito huma-no, olhando para meu Pai.

6. A única ciência é a ciência do amor. Esta não se tira dos livros. Somente a recebe a alma que medita sobre o crucifixo e com ele conversa”.

Maria Santíssima também dignou-se ser sua profes-

sora: “Filha, tenho tanta fome de almas. Se soubesses, quanto eu e meu Filho desejamos a sua salvação! Por isso, reza, reza muito pelos pecadores. Assim alivias e consolas meu coração de mãe”... “Se quereis dar-me ale-gria, deveis colocar-vos aos pés da cruz de meu Filho, e humildes oferecer ao Pai os seus méritos, em satisfação dos pecados dos homens”.

E ainda uma breve aula do Pai do céu: “Filha, deves humilhar-te muito no trabalho; e pelo

oferecimento contínuo das santas chagas do meu Filho, deves completar o que falta na reparação e desagravo da justiça”. A aluna interrompeu a lição exclamando: “Ó meu bom Pai, se pudesse, ficaria já convosco”. E a resposta consoladora também para nós: “O que farias no céu, se-não oferecer continuamente as chagas do meu Filho? É na tarefa dos santos na glória. Eis que é também a vossa na terra”.

Cumpre tua missão Irmã Marta foi nomeada missionária e seu campo de

ação abrangeu o orbe, desceu até o Purgatório. Freqüen-temente insistia Jesus que ela cumprisse bem fielmente sua missão. “Minha filha, deves cumprir a tua missão, que consiste em oferecer ao Pai do céu as minhas chagas, porque a vitória final da Igreja será realizada através des-

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ta prática e por intermédio da Imaculada”... “Tira, tira sem cessar destas fontes a fim de que a

Igreja alcance plena vitória... A Igreja nunca terá um triun-fo visível. Sabe: a vitória final da Igreja consiste na salva-ção das almas”.

Numa visão panorâmica do mundo, vê a multidão dos pecadores: “Eu t’os mostro a fim de que não percas teu tempo”...

“As santas chagas: eis com que pagar por todos que têm dívidas”...

Jesus insiste no apostolado: “Vamos dois a dois Vem, ajuda-me a colher muitas almas. Vamos sempre lado a lado. Vem com um coração vazio, eu saberei en-chê-lo. Vem, para ganhar almas. A grande miséria do sé-culo é que há tão poucos que se salvam. Deveis pedir pelos pecadores sem cessar... A justiça divina está pres-tes a castigar o mundo pecador. Para o mundo ser rege-nerado seria necessária uma segunda redenção.” Mas intervêm o Pai Eterno: “Não posso crucificar meu Filho mais uma vez”.

Irmã Marta sentia que através das santas chagas podemos realizar esta segunda redenção.

A comunidade de suas irmãs começara a rezar o terço das chagas pelos pecadores, e Jesus mostrou-se agradecido. “A cada palavra que as Irmãs pronunciam no terço da misericórdia, deixo cair uma gota do meu sangue sobre uma alma pecadora. Cada vez que vós apagais pecados por meio das minhas chagas, estais fazendo o-bra maior que Verônica: enxugar e limpar meu rosto foi fácil; tirar os pecados é bem mais difícil”.

“É dever dos religiosos, de um modo especial, salvar almas por suas orações, sacrifícios e pela observância regular”.

Jesus ensina uma oração forte: “Se um pecador reci-tar com humildade: ‘Pai Eterno, ofereço as chagas de N.

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Senhor Jesus Cristo para curar as chagas da minha al-ma’, ele se converterá”.

Hora decisiva é a hora da morte. Para tantos é a graça da salvação. Jesus pede: “Deves oferecer, muitas vezes ao dia, o mérito de minhas chagas por aqueles que morrem naquela noite ou no decorrer daquele dia... Para a alma que morre nas minhas chagas, não há morte. Mi-nhas chagas dão vida eterna... O caminho das minhas chagas é caminho tão simples e tão fácil para o céu”.

Também as almas do purgatório se beneficiam com as chagas de Jesus. Ele muitas vezes mandou almas do Purgatório para junto da Irmã Marta, a fim de lhe pedir o oferecimento das chagas. E depois retomaram agradeci-das o caminho para a glória. Certa vez, doente, de cama, Marta viu que a cada oferecimento, uma alma subia ao céu. Na Via-Sacra recebeu a mesma graça, uma alma libertada em cada estação. Diz-lhe Jesus: “Cada olhar compassivo sobre minha paixão liberta cinco almas do purgatório”.

Palavras finais “A ciência do amor é dada à alma que contempla o

crucificado... É mister copiar-me. Todos os pintores fazem retratos mais ou menos conformes o original. Mas aqui sou eu o pintor, e faço minha imagem em vós, se ficais olhando para mim... Queria ver todas as minhas esposas transformadas em crucifixos”.

“Minha filha, tenho milhares de almas favoritas. E sou único para cada uma delas. É um segredo de amor que ficará unicamente entre esposo e esposa durante a eternidade”.

“Bom Mestre, o que vais encontrar em meu miserá-vel coração?”

“Encontrarei tudo o que eu coloquei lá dentro; e en-

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contrarei também tuas faltas para destrui-las”. Tendo visto seu lugar no céu, Marta pergunta: “Bom

Mestre, mas não há nada em mim que me impeça de chegar ali?” Jesus: “Ora, se há! Mas o amor apaga tudo”. Deseja morrer: “Jesus, aqui na terra a gente está sempre exposto a ofender-te”. “Minha filha, o amor apaga tudo. Quando vindes ter comigo com amor, não reparo mais em vossas faltas. O amor apaga tudo”.

“O amor purifica tudo. Bom Mestre, é só por hoje que estarei purificada?” “Não filha, a alma é purificada toda vez que ela ama com amor forte. Mas deve ser amor verdadeiro, puro e desapegado de tudo”.

“Minha união contigo é teu único bem”.

2. A SANTA FACE “Sua face resplandecia como o sol” (Mt 17,2). “Cuspiram nele, cobriram-lhe o rosto, deram-lhe bo-

fetadas” (Mc 14,65). “Veremos face a face” (1 Cor 13,12). Irmã Maria de São Pedro: 1816 - 1848 Nove anos de vida conventual. Morre, aos 32 anos,

no Carmelo de Tours. Costureira de Rennes, aborreceu-se de passar a vida fazendo roupas para sustentar vaida-des. Foi recebida no Carmelo de Tours como irmã leiga. Terminando o noviciado, ficou porteira até a morte. Quis ser a empregadinha, ou melhor, o burrinho da Sagrada Família, lastimando que Jesus tivesse tido necessidade de pedir emprestado o burrinho até para a sua procissão de ramos. Mas de agora em diante teria sempre um ao seu dispor. Conta que no noviciado os seus dias eram “uma só peça de oração”: sucesso que tentou manter também na portaria e parece que com sucesso.

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Ainda postulante, Jesus vem pedir os serviços do seu burrinho. Mostrou-lhe a multidão de almas que caem no inferno, e pediu-lhe que lhe cedesse, em favor dos pe-cadores, todos os seus méritos. Em troca, ele mesmo iria ter cuidado dela, e a faria participar dos seus méritos. A superiora, porém, não quis dar autorização para esta o-blação total; só emprestaria a Jesus o seu burrinho. Mas quatro anos depois, quando a irmã já era professa, con-cordou em vender o burrinho em troca de terreno e capital para a necessidade de transferência e reconstrução do Carmelo.

Uma fez feita vítima, Jesus encarregou-a de fundar uma arquiconfraria de orantes em desagravo às blasfê-mias contra o santo nome de Deus. Fundada com apro-vação pontifícia de 1847.

Lúcifer em pessoa, diz-lhe Cristo, guia os blasfema-dores; são seus prediletos. As blasfêmias ferem o coração de Jesus como flechas douradas [?] que o ferem com prazer.

Dois anos depois, em 1845, Jesus empenha-se mais a fundo e revela sua face, alvo das blasfêmias; pede-lhe que seja uma Verônica amorosa a enxugar-lhe a face en-sangüentada e insultada.

“Estou procurando Verônicas para enxugar e adorar minha face divina”. A visão não foi imaginativa. Tendo visto pinturas, também do quadro (dito) de Sta. Verônica, não soube dizer se era semelhante ou não.

Os blasfemadores foram mordidos pela serpente e pegaram a raiva; o remédio, a vacina, é olhar a face de Cristo Jesus.

A humilde porteira do Carmelo oferece, inúmeras vezes, sua humilde homenagem à santa face de Jesus e exclama num arroubo; “Apertemos estas feridas divinas, e o sangue precioso correrá em abundância sobre os peca-dores”.

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Jesus reafirma-lhe sempre de novo: “Pela santa face conseguireis a salvação de muitos pecadores”. Ela nos conta um segredo: “Eu acompanho a Santíssima Virgem, como sua empregadinha, junto àqueles que viajam do tempo para a eternidade”. Jesus; “Eu te seguro nas mi-nhas mãos como uma flecha. Agora vou lançar essa fle-cha contra os meus inimigos. Para combatê-los dou-te como armas a minha paixão, os instrumentos do meu su-plício. As armas dos meus inimigos causam a morte; as minhas, dão a vida”.

“Se tu soubesses a vantagem para tua alma de so-frer estas penas, agradecer-me-ias por tê-las dado. Bem mereceste estas penas, por tuas infidelidades. Mas não é para castigar, é por bondade que te dou estes sofrimen-tos”.

“Estes blasfemadores cortaram-lhe o coração, e fize-ram dele um segundo Lázaro coberto de chagas. Jesus convidou-me a imitar os cães que consolavam o pobre, lambendo-lhe as feridas. Render-lhe-ia um grande serviço empregando minha língua a glorificar todos os dias o san-to Nome de Deus desprezado e blasfemado”.

“Nosso Senhor fez-me ver a multidão de almas que caem continuamente no inferno, convidando-me a socor-rê-las... é obrigação de toda alma religiosa. Sua miseri-córdia abriria os olhos destes pobres cegos, se almas ca-ridosas pedissem por elas graça e misericórdia. Disse-me N. Senhor que, assim como Ele vai pedir conta aos ricos pelos bens temporais que lhes confiou para socorrer aos pobres, com maior severidade pedirá contas a uma car-melita, a uma alma religiosa, rica de todos os bens de seu esposo, possuindo os tesouros dos méritos de sua vida e de sua Paixão, pelo uso que deles fez; verificará se soube haurir nestes tesouros para os pobres pecadores”.

Jesus: “Enquanto o homem está na terra, está num estado de infância. Por esta razão deve, como criança

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pequena, recorrer sem cessar à mãe”. Os últimos dois anos introduzem a irmãzinha no mis-

tério da maternidade espiritual, como colaboradora, asso-ciada da Mãe dos homens, que é a Co-redentora das al-mas pecadoras, justamente com seu divino Filho. A última intervenção de Jesus é um apelo angustiante, em 1848: “A Igreja está ameaçada por terríveis tempestades... re-za...reza... Ensinou-me a rezar aquela prece que ele reza-ra na quinta-feira santa: “Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me destes” (Jo 17,11).

O fim de 1847 e o ano de 1848 passa em purificação e provações místicas e expiatórias. Em março de 1848 ouve Jesus dizer-lhe: “Logo verás minha face no céu”. A 8 de julho de 1848 morre feita imagem do Crucificado, do seu amor, uma chama só, o corpo inteiro.

A Sagrada Face Convidamos as criaturas humanas a prestar o tributo

de admiração ao mais belo dos homens, o Filho da Vir-gem Maria. Convidamos todo o orbe e expiar os insultos que o rosto sagrado do Filho de Deus teve de suportar, da sexta-feira santa até aos dias de hoje, insultos cuja cruel-dade está estampada no rosto do Santo Sudário de Tu-rim. O convite para expiar parte de Jesus em pessoa, e traz consigo gratas promessas de amor e gratidão de gra-ça e de glória.

1. Sta. Gertrudes de Helfta ouviu da boca de Jesus:

“Os devotos da Santa Face serão transformados numa imagem viva da minha Divindade”.

“Quando dois rostos se defrontam, surge um silên-cio, porque duas eternidades se antolham” (Piccard). Quanto mais se estamos diante da Face de Cristo.

Os olhos são reflexos, revérberos do mistério da e-

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xistência, do mistério do destino. E os olhos do Salvador refletem os fulgores da visão eterna. No fundo da alma, dizem os místicos medievais, tremeluz uma centelha divi-na; está gravada desde o batismo a semelhança divina, a face da eterna divindade.

No rosto de todos os santos brilha a face de Jesus, seja luminosa como o Tabor, seja purpurada como o horto das Oliveiras.

2. Sta. Matilde, a grande amiga de Sta. Gertrudes,

pediu, num arroubo espiritual, por todos aqueles que ado-ram o doce semblante do Salvador, e Jesus afirma: “Ne-nhum deles ficará separado de mim”. Terá, portanto, a graça de contemplar, na glória, a Face Sagrada, por toda a eternidade.

3. Maria de São Pedro: “Nosso Senhor prometeu,

aos que venerarem a Santa Face, imprimir-lhes na alma a face de sua divindade”, diz irmã Maria de São Pedro, 1844.

Como Verônica, ao enxugar o rosto de Jesus, rece-beu impressa a imagem de Cristo, assim Jesus gravará em nossa alma sua Santa Face, tornando-nos semelhan-tes a ele.

4. “Meu rosto é como a marca, o selo da divindade, que transforma as almas cada vez e de novo na imagem de Deus”. Felizes, pois, as almas que se fazem carimbar, impregnar sempre mais, da divindade.

5. “Por minha Santa Face fareis milagres? Para quê? Mais vale cumprir a vontade de Deus”. “Não interessa?” “Oh!, interessa, sim!” Veja o ponto seguinte: milagres para converter os pecadores.

6. “Pela Santa Face obtereis a salvação de muitos pecadores”.

“Cada vez que ofereceis minha face ao meu Pai, mi-

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nha boca pede misericórdia”. Salvar a própria alma é fácil. E vai num instante. Um ato de amor e a graça divina já invade e inunda a nossa alma.

Salvar os outros é um caso diferente. Custa. Mas por quê? Deus não é Onipotente? Sim, mas ele não quer escravos forçados em seu reino. E se a graça de Deus convida cada dia dez, vinte ou cem vezes, o homem é capaz de responder cem vezes não. Até o raio quente do sol divino derreter o gelo de um coração humano, demora, demora. Há corações supergelados.

Cabe aos devotos da Santa Face dirigir os raios da face luminosa do Salvador até o coraçãozinho começar a esquentar devagar e se entregar cativo ao amor divino. A conversão de um pecador é obra maior que a criação do mundo inteiro (F. W. Faber)

Ouçamos o repicar dos sinos e o júbilo festivo dos anjos e bem-aventurados com a conversão de um peca-dor.

7. “Por esta oferta nada vos será recusado. Se sou-bésseis quão grata é ao Pai a vista da Santa Face do seu Filho!”

Portanto, peçamos o dom de crescer sempre mais, Deus adentro, no amor, na entrega total, na disponibilida-de completa à vontade de Deus. Renovemos e repitamos sempre o Fiat: Eis a tua serva; faça-se a tua vontade em tudo e sempre.

8. A Santa Face é a moeda do reino do céu. Com a moeda gravada com a efígie do príncipe pode-se comprar tudo: assim também com aquela moeda celeste.

Tratemos pois, de encher a carteira com as moedas do reino, e poderemos comprar tudo. Tudo mesmo? Ri-quezas? Não, Deus te livre! É um perigo. Saúde? Mas para que? Sofrer é mais útil para os dois, para Deus e para você. Pede graças do céu. Pede para degelar o co-ração tão frio, tão egoísta e enchê-lo com o fogo do amor

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de Deus. Pede coisas que duram para sempre. Pede gra-ças que te acompanharão até o além, na vida eterna.

9. “Quanto mais cuidado tiverdes em consolar e de-sagravar o rosto insultado do Salvador, tanto mais ele res-tituirá à nossa alma, desfigurada pelo pecado, a beleza primitiva, a inocência batismal”.

Que consolo! Que gentileza da misericórdia divina esta oferta generosa do Redentor! Corramos a essa ofici-na de conserto, a esse salão de beleza, segurando na mão o bilhete premiado: a imagem do Cristo insultado, coroado de espinhos.

10. “Os que contemplam as feridas da minha Face, um dia irão vê-la radiante de glória”. “Os que defendem a minha causa, defenderei também a sua perante o Pai e dar-lhes-ei o reino. Não morrerão da morte eterna. Enxu-garei a face de suas almas, apagando as manchas do pecado, restituindo-lhes a pureza batismal”.

Eis, pois, uma regeneração perfeita e um sólido pas-saporte para a viagem do tempo para a eternidade.

A devoção à Santa Face consiste, em primeiro lugar, em consolar a Jesus pelas injúrias sofridas manifestando nossa compaixão. Em segundo lugar, consiste em louvar, abençoar, santificar o nome sagrado de Deus e do seu Unigênito, em desagravo das blasfêmias que os ímpios lhe lançam em rosto. Consiste, em terceiro lugar, em ofe-recer a Sagrada Face ao Pai Eterno. Entende-se oferecer os sofrimentos do Salvador, infligidos durante a paixão ao seu rosto, sofrimentos físicos e morais, ferimentos, insul-tos e tudo sobre o fundo da coroa de espinhos.

Sta. Teresinha Sta. Teresinha foi inscrita na confraria aos doze a-

nos. Viveu sua vida conventual sob a égide da Santa Fa-ce. É seu segundo nome adotivo. “Tua face é minha única

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pátria”. Introduziu suas noviças nesta devoção. Levou consigo até à morte uma foto e uma mecha de cabelos da irmã Maria de São Paulo.

Maria Pierina de Micheli, 1890 - 1945 Deus dignou-se mandar, neste século, mais uma

apóstola da Santa Face: talvez numa reposta antecipada à teologia da morte de Deus.

Aos doze anos, esperando na fila do beijamento da cruz, na sexta-feira santa, Pierina ouve a voz de Jesus: “Ninguém se lembra de dar-me um beijo na face para re-parar o beijo de Judas”.

“Custe o que custar: nem uma só gota de sangue de Jesus deve ser inutilmente derramado”. Rezando no novi-ciado, perante um crucifixo, Jesus lhe diz: “Beija-me”. E ao beijá-lo, em vez do gesso, sente o rosto de Jesus.

“Desejo que a minha Face seja mais honrada... Quem me contempla, me consola”. “Por meio da minha Face as almas participam dos meus sofrimentos, sentem a necessidade de amor e de reparar. E não é isto a ver-dadeira devoção ao meu coração?” “Minha filha dileta, renovo-te a oferta da minha Face, para que incessante-mente a ofereças ao Eterno Pai. Com esta oferta obterás a salvação e a santificação de muitas almas. E quando a ofereceres pelos meus sacerdotes, operar-se-ão maravi-lhas”. “Contempla minha sagrada Face e penetrarás nos abismos de dor de meu coração. Consola-me, e procura almas que se imolam comigo pela salvação do mundo”.

Maria Santíssima: “O mal está propagando-se. Os verdadeiros apóstolos são poucos. É necessário um re-médio divino, e esse remédio é a Santa Face de Jesus. Visita o Santíssimo Sacramento todas as terças-feiras para desagravar”.

Jesus: “Vês como sofro. E são pouquíssimas as al-

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mas que me compreendem. Quanta ingratidão recebo daqueles mesmos que dizem me amar. Dei ao mundo meu coração como figura visível do meu amor pelos ho-mens. Agora dou minha Face como figura visível da mi-nha dor pelos pecados da humanidade... quero a comu-nhão reparadora na terça-feira do carnaval”.

“Quero que minha Face seja honrada de modo es-pecial às terças-feiras”.

“Queres participar da agonia do meu espírito no Get-sêmani, por causa dos pecados dos meus filhos mais queridos, pelas recusas que recebo de tantas almas reli-giosas?”

Meditando sobre Jesus coroado de espinhos: “Que-res participar de minha dor para reparar os pecados de soberba das almas que me são consagradas? Se sou-besses quantas são e como elas me ferem! ‘Desejo-o tan-to’. Jesus respondeu: ‘Isto me basta’, e deixou-me o céu no coração”.

3. SAGRADO CORAÇÃO “Abriu-lhe o lado com uma lança” (Jo 19,34) A chaga do Coração de Jesus, da qual nasceu a I-

greja e os seus sacramentos, da qual jorram todas as graças da salvação, simbolizada pela costela de Adão, da qual saiu a mãe de todos os viventes, sempre teve seus devotos.

Figure aqui o mais belo texto (de Sto. Agostinho, in Joannem, 120): “O evangelista serviu-se de uma palavra atenciosa. A fim de não dizer: transpassou ou feriu, es-creveu “abriu o seu lado” (Fazendo ver que) aí se descer-rou como que a porta da vida, da qual jorraram os sacra-mentos da Igreja, sem os quais não há acesso àquela vida que é a verdadeira. Aquele sangue foi derramado

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pela remissão dos pecados, e aquela água mistura-se ao cálice da salvação. É lavacro e bebida. Foi pré-figurado pela porta que Noé foi mandado fazer no lado da arca, pela qual entraram os seres que não deveriam perecer pelo dilúvio, figurando a Igreja. Por isso, a primeira mulher foi feita do lado do homem adormecido, e foi ela chamada vida e mãe de todos os viventes... O segundo Adão a-dormeceu de cabeça inclinada, a fim de criar-se uma es-posa que jorrou do costado do adormecido. Ó morte que faz reviver os mortos! Que sangue é mais imaculado que este? Que chaga mais salutar que esta?”

No segundo milênio São Bernardo, penetrando, en-controu o Coração de Jesus visível e acessível, através da chaga aberta. Seus filhos, os teólogos de Cister, inau-guraram o culto do Coração de Jesus. Os místicos segui-ram-nos de perto (Guerricus, Drogo).

Sta. Lutgarda, +1245, ainda jovem colegial e interna na abadia, aguarda a visita de um pretendente, quando surge de repente ao seu lado Jesus Cristo, mostrando-lhe a chaga do lado e dizendo-lhe: “Não procures mais os devaneios da afeição de uma criatura; eis aqui o que de-ves amar e como deves amar”.

Anos depois, já consagrada a Deus pelos votos so-lenes, receberá de Deus o dom de curar doenças. A aflu-ência de doentes causara-lhe numerosas distrações na oração. Queixou-se a N. Senhor; “Para que serve esta graça que me atrapalha tantas vezes de unir-me a Ti?” “Teu coração, Senhor, eu quero teu coração”. “E eu tam-bém, responde Cristo, eu quero o teu”. “Assim seja, Se-nhor!”.

Tiveram papel importante na propagação do culto ao Sagrado Coração de Jesus as monjas de Helfta, as duas Matildes, a de Magdeburgo e a de Helfta, e Gertrudes. Para elas o Coração de Jesus é sede do amor divino, é fonte de graças de redenção, é suplente de todas as nos-

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sas deficiências, é expiação de nossas faltas, dá valor às nossas obras É centro ao redor do qual gira a vida espiri-tual, e oferecimento ao Pai do coração do Filho predileto.

Matilde de Magdeburgo “Deus mostrou-me a chaga do seu coração dizendo:

vê o mal que me fizeram”. Matilde de Helfta Jesus aparece-lhe no altar, de braços estendidos,

jorrando sangue por todas as chagas, para aplacar. Maria Santíssima chama a monja: “Aproxima-te e saúda a cha-ga do coração amantíssimo”.

“Ao abrir-se o costado pela lança, brindei refresco de vida de meu próprio coração a todos aqueles que, pelo pecado de Adão, tragaram o porção de morte, para que se tornem filhos da vida eterna”.

“Deposita todas as tuas penas em meu coração. Eu lhes darei a perfeição mais elevada possível. Eu as unirei à minha Paixão e participarão da minha glória...”

“Confia cada uma de tuas penas ao Amor’. “Para reparar tuas negligência e reaver o tempo per-

dido, saúda meu coração, fonte de todas as graças”. Matilde viu o coração de N. Senhor qual uma chama

de fogo. E Jesus lhe diz: “Assim queria que todos os co-rações ardessem em chamas de amor”.

“Oferece-me, cada manhã, o teu coração para que eu derrame nele meu divino amor”. “Minha bem-amada, por que estás triste? Tudo o que é meu, é teu”. “Ah, se é assim, de verdade, então teu amor é meu... ofereço-te este amor para suprir minha falta”. E Jesus ensina a dizer: “Jesus, eu te amo; completa por favor o que falta...”. “E se mo disser mil vezes por dia não ficaria aborrecido ou can-

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sado”. Gertrudes de Helfta Recebeu a ferida do amor. Recebeu a troco de cora-

ções. Recebeu estigmas invisíveis Jesus prende sua mão direita à chaga do seu coração.

“Eis, aqui tens o meu coração, a lira da Santíssima Trindade... Podes pedir-lhe com confiança que supra por ti... meu coração está sempre diante de ti, à tua disposi-ção, para suprir a qualquer hora tuas negligências”.

Estando impedida pela doença de cantar no coro, Jesus a substitui: “Tu cantaste muitas vezes por meio do meu coração. Por isso vou pagar-te com a mesma moe-da; cantarei por ti”.

Século XV No século XV o culto ao Sagrado Coração de Jesus

é devoção popular. Mas sobreveio a revolução religiosa, qual uma geada. Sobreveio o tenebroso jansenismo. Je-sus julgou necessário revelar de novo à cristandade a sua bondade, sua misericórdia, seu amor que vence de longe a justiça e a santidade tétrica do jansenismo.

E Jesus escolheu Sta. Margarida Alacoque. Maria da Encarnação Mas houve uma sua precursora, no mesmo século,

Maria da Encarnação, a ursulina, 1599-1672. Em 1635, Deus Pai lhe diz: “Pede-me pelo Coração

de Jesus, meu Filho tão amável. É por ele que te julgarei”. “Esforço-me por praticar os conselhos que dou, es-

pecialmente ofereço-me como vítima perpétua ao Pai E-

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terno, pelo Coração de seu Filho bem-amado. Quero que isto seja minha principal tarefa espiritual”.

Trinta anos mais tarde ela redige a seguinte prece: “É através do Coração de Jesus, caminho, verdade e vi-da, que me aproximo de Ti, Pai Eterno. Por este coração divino, eu Te adoro por todos aqueles que não te amam. Dou-te graças por todos os cegos voluntários, que por desprezo não te agradecem. Por meio deste divino Cora-ção quero satisfazer os deveres de todos os mortais. Em espírito, faço a volta ao mundo para procurar todas as almas resgatadas pelo sangue precioso de meu esposo divino, a fim de satisfazer por todas este divino Coração. Eu as abraço para apresentá-las por meio dele. E por ele peço sua conversão. Ora, Pai Eterno, podes Tu tolerar que elas não conheçam o meu Jesus, e que não vivam nele que por elas morreu? Vê, divino Pai, elas nem vivem ainda; fazei-as viver por este Coração divino. Sobre este Coração adorável apresento-lhe também todos os operá-rios do evangelho, a fim de que seus méritos se encham do teu Espírito Santo...

Ó meu esposo divino, por tua divina Mãe, quero ren-der-te graças. Apresento-te seu sagrado Coração, como apresento o teu ao teu Pai. Permite que te ame por este mesmo Coração que tanto te amou”.

Margarida Alacoque Faltava realçar o desagravo, a reparação, a expia-

ção. Eis a missão de Sta. Margarida. Jesus fê-la fazer voto de virgindade aos seis ou sete anos, e explicou-lhe anos mais tarde: “Eu te escolhi para minha esposa; e eu quis ser o primeiro em teu coração”. Assim a filha de São Francisco de Sales foi encarregada de nos revelar, de um novo modo, as dimensões do Coração de Jesus, “a largu-ra, altura e profundidade do amor de Cristo” (Ef 3,18).

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“Oferece-te a Jesus como uma tela branca, que a-guarda a mão do pintor”, diz-lhe a mestra de noviças. E Jesus explica-lhe: “Sim, irei pintar aí os traços da minha Paixão: amor, renúncia, solidão, sacrifício”.

Preparando-se para a profissão, Jesus lhe diz: “Lembra-te que é a um Deus crucificado que irás despo-sar. Deves, pois, tornar-te semelhante a ele, despedindo-te das alegrias da vida humana, pois não haverá mais para ti a não ser as que serão atravessadas pela cruz”.

Na mesma ocasião: “Vou fazer-te ler no livro da vida que contêm a ciência do amor: meu coração... Eis a cha-ga do meu coração. Nela deves morar, agora e sempre, pois que aí conservarás a veste da inocência com que te revesti”.

E enfim a grande revelação e a grande promessa, em 1675: “Eis o Coração que tanto amou os homens. Que a nada se poupou para lhes provar seu Amor. Em paga, só recebo da maior parte deles ingratidão, irreverências, sacrilégios, frieza e desprezo com que me tratam neste sacramento do amor. E o mais doloroso é sofrer isto de corações que me são consagrados”.

Forneceu o fundo escuro a heresia jansenista ainda em pleno vigor nos ambientes eclesiásticos. E Jesus re-clama desagravo. Desagravo:

1. Por uma festa especial na sexta-feira, após a oita-va do Corpo de Deus.

2. Pela comunhão reparadora na primeira sexta-feira de cada mês.

3. Pela Hora Santa, expiação particular pela agonia no horto. Jesus ainda acrescenta doze promessas para os devotos do seu Coração. Especialmente promete a graça da perseverança final para os que fizerem a novena de comunhões nas primeiras sextas-feiras do mês.

Margarida julga-se indigna e incapaz de tarefa tão

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santa, por faltar-lhe tudo. Jesus replica: “Toma este meu Coração. Aí há tudo para suprir o que te falta”. A resposta é válida para nós.

“Quero transformar-te num santuário, no qual o fogo do meu amor fique a arder perenemente”. Tal qual o fogo perene do Templo de Jerusalém. Tal qual a lamparina do Sacrário. Ofereçamos, nós também, o nosso coração.

“Eis os maus tratos que me dão”, queixa-se Jesus das comunhões, não sacrílegas, mas tíbias e frias. “É co-mo derramar meu sangue sobre um cadáver podre”, por-tanto, sem produzir efeito. Que expressão forte, Jesus usou!

Estando cansado, foi ter com Margarida, certo de ser bem recebido. Apareceu como Ecce-homo. “Ninguém quer oferecer-me um lugar de descanso, por causa do meu aspecto”; todos fogem dele como de um criminoso, de um leproso.

No ano de 1682, Jesus revela-se coroado de espi-nhos, carregando a cruz, coberto de sangue e de contu-sões. O sangue escorria de todas as feridas, tingindo o chão. E o olhar triste a perguntar: “Será que não há nin-guém que tenha compaixão, que queria sofrer um pouco comigo?”

Margarida ofereceu-se imediatamente, e no mesmo instante uma cruz pesada, de pontas de ferro, foi pesar em seu ombro. “Recebe a cruz, e planta-a no teu cora-ção”. O Salvador pede o amor da criatura, amor, desagra-vo, gratidão. Uma voz a repetir: estou cansado de espe-rar; meu povo eleito a me trair...

Jesus mostrou-lhe o Coração ferido: “Eis as feridas que recebo deles (das almas consagradas)... Os outros batem em meu corpo; mas eles atingem meu coração. O coração deles é tão vazio, sem amor, são religiosos só de nome!”

“Uma alma justa pode alcançar o perdão para mil

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pecadores. Não deixes meu sangue ficar inútil para tantas almas”.

4. SANGUE PRECIOSO Jo 6,54: “Quem bebe meu sangue tem a vida eter-

na”... “Quem bebe o meu sangue permanece em mim”. Jo 19,34: “E saiu sangue e água”. Hb 9,14: “O sangue de Cristo purificará a nossa

consciência das obras mortas para servirmos o Deus vi-vo”.

Hb 9,22: “Sem efusão de sangue não há remissão”. Hb 12,24: “Vós vos achegastes... a Jesus, o media-

neiro da nova aliança, e ao sangue de aspersão que fala melhor que o sangue de Abel”.

Hb 9,12: “Com seu próprio sangue entrou no taber-náculo, prestando uma expiação eterna”.

Hb 10,19: “Pelo sangue de Cristo esperamos, com confiança, entrar no Santíssimo”.

1 Pd 1,2: (sois) “destinados à aspersão do sangue de Jesus Cristo”.

1 Pd 1,19: “Fostes resgatados, não pelo ouro ou pe-la prata... mas pelo sangue do Cordeiro sem mancha”.

1 Jo 1,7: “O sangue de seu Filho nos purifica de todo o pecado”.

1 Jo 5,6: “Jesus Cristo veio pela água e pelo san-gue...Três dão testemunho: o Espírito, a água e o san-gue”.

Ef 2,13: “Chegastes perto pelo sangue de Cristo”. Cl 1,20: “Reconciliou-nos, pelo sangue de sua cruz,

trazendo a paz”. Ap 1,5: “Ele nos amou e nos lavou de nossos peca-

dos no seu sangue”. Ap 5,9: “Foste imolado e com teu sangue nos con-

quistaste para Deus... e nos fizeste reis e sacerdotes”.

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Ap 7,14: “Estes vieram da grande tribulação... lava-ram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro”.

Ap 19,13: “Trajava uma veste ensangüentada e seu nome era Verbo de Deus”.

Ap 22,14: “Bem-aventurados os que lavaram suas vestes (no sangue do Cordeiro); terão direito à árvore da vida”.

Sangue é elemento dos contratos divino-humanos.

Sangue é vínculo da aliança de Deus com a humanidade. Sangue de Deus é vínculo e cria o povo de Deus.

1. Sangue é vida (Plínio Jr) É vida divina. Foi derramado nas ruas de Jerusalém.

Ficou grudado nas lajes da Via-Sacra. Descuidados e ig-norantes, os homens pisam em cima. As sandálias tin-gem-se de sangue vermelho, sangue de Deus. Os anjos desceram do céu para adorar o preço da redenção, que os homens pisaram sem consideração. No entanto vale: quem beber este sangue, viverá eternamente.

No A.T. beber sangue era sacrilégio, porque nele es-tava a vida (humana) reservada a Deus. No N.T., ao in-vés, está no sangue a vida de Deus. A fim de participar da redenção é mister beber o sangue redentor.

No A.T. era proibido beber a vida natural, porque a família humana está destinada a viver da vida divina (Bet-tencourt).

2. O Sangue é salvação. O sangue do Cordeiro pascal salva e protege contra

o anjo exterminador. O sangue de Deus purifica nossa alma no sacramento.

Ângela de Foligno passou o último dia de sua vida em êxtases contínuos. “Minha alma foi lavada e purificada no sangue de Cristo. Estava quente, como se saísse na

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hora do corpo do Cristo Crucificado..., e uma voz disse- me: “É este o sangue que te purifica”.

3. Sangue é paixão, amor. Osana de Mântua não podia ver sangue sem cair em

êxtases. Francisca da Mãe de Deus, OCD, após a comunhão,

viu sua alma coberta de sangue. Ana de Jesus, OCD, sentia na comunhão a boca cheia de um sangue delicio-so.

Ângela vê Jesus abraçando seus sacerdotes e aper-tando-os contra o coração, introduzindo-os na chaga a-berta. Vários voltaram com os lábios tintos de vermelho e Jesus explica: “Estes são meus irmãos”.

Como deve ser eloqüente a palavra do Evangelho, e penetrar nas almas, quando os lábios estão tingidos pelo sangue do Redentor.

ANTOLOGIA Mediator Dei Pela voz de Pio XII, a Igreja chama todos à piscina

salvífica do sangue de Jesus. “Pode-se dizer que Cristo estabeleceu no Calvário uma piscina de expiação salutar, enchendo-a de seu sangue. Mas se os homens não mer-gulham nestas ondas, e não lavam as manchas de suas culpas, não podem ficar purificados e salvar-se. Para os pecadores todos se tornarem brancos no sangue do Cor-deiro requer-se a colaboração amiga de todos os fiéis”.

Crisóstomo Vê o povo de Deus que assiste à Santa Missa “todo

vermelho pelo sangue precioso”.

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Sta. Catarina de Sena O sangue de um Deus, preço e meio de redenção do

mal e do pecado, é tema que aparece sempre nos escri-tos da santa.

“Esta é a chave do Sangue do meu Filho Unigênito, é esta chave que abriu a vida eterna”...

“O Cordeiro tostado no fogo da divina caridade... O Cordeiro exangue, sangrando por todas as feridas”...

“Ponde, ponde a boca no costado do Filho de Deus; porque é uma abertura que lança fogo de amor, e derra-ma sangue para lavar nossas iniqüidades...

É um banho de sangue. Mergulhai-vos, afogai-vos no Sangue do Crucificado, lavai-vos no Sangue, embria-gai-vos no Sangue... Revesti-vos do Sangue... E se fostes infiéis, rebatizai-vos no Sangue. Se o demônio vos ofus-cou o olho da inteligência, lavai-o com Sangue. Se caístes na ingratidão por danos desconhecidos, sede gratos no Sangue... No ardor do Sangue deveis dissolver a tibieza e na luz do Sangue expulsai as trevas...

E de novo quero vestir-me de Sangue e despojar-me de toda vestimenta que usei até agora”...

Disse-lhe Jesus: “Quem contempla o preço de meu Sangue, que por ele paguei, tem a certeza da salvação”.

Pensando bem, temos de reconhecer que Jesus tem razão. O que Ele faz é apenas a recordar Rm 8,32 ss: “Se nem poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos dará tudo?... Criatura alguma será capaz de nos separar do amor de Deus”.

Juliana de Norwich “Contemplai e vede! A divina abundância do seu

Sangue precioso desceu até aos infernos. Quebrou cor-

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rentes. Libertou as almas que lá estavam, mas que de direito pertenciam à corte celeste.

A divina abundância do Sangue precioso subiu aos céus no Corpo de N. Senhor Jesus Cristo, e lá está ... sangrando e rezando por nós ao Pai, por tanto tempo quanto for necessário e preciso. E durante toda a eterni-dade este Sangue bendito correrá a flux no céu, rejubilan-do-se de ter salvo todos os homens que estão lá, e que lá estarão completando o número daqueles que falharam, os anjos que caíram”.

Catarina de Gênova Gênova, 22 de março de 1473. Uma jovem senhora,

irradiando perfume e beleza, entrara com passos rápidos na igreja. Vestido, porte, movimentos, gestos manifestam a dama perfeita da sociedade. Toda a cidade de Gênova estimava e admirava a incomparável dona Adorno, a rai-nha das festas.

Bela e admirada, mas não era feliz. Louco foi o Car-naval daquele ano. Verdade é que só tomara parte por amor ao jovem marido, que não era capaz de passar sem essas festas mundanas. No início, Catarina ia raras ve-zes, depois ia sempre. Todavia, em todo o barulho da fes-ta e das músicas, não era capaz de esquecer Deus, uma obsessão, embora já rezasse pouco e comungasse raras vezes.

Muitas vezes comparou o contraste de outrora com o de então. Queria tornar-se religiosa. Mas tinha de casar-se. Os pais o exigiam. Quem sabe, seria o anjo da paz e reconciliação dos dois partidos políticos. E o jovem marido era homem mundano. Não era mau, mas leviano. Podia deixá-lo só, no turbilhão das festas? Não; por isso ela o acompanhou. Mas sentia-se cada vez mais aborrecida, enjoada dessa vida. “Que devo fazer?”, perguntou na sala

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do convento à sua irmã Simbiana. “Vai confessar-te”, dis-se ela. Esperando o sacerdote, de súbito foi inundada por uma luz divina. Num instante viu todos os refolhos mais íntimos de sua alma. Sua miséria; sua covardia; seu mun-danismo; sua infidelidade. E do outro lado a incansável e amorosa fidelidade do bom Pastor. “Agora não posso con-fessar-me”. Correu para fora. Correu para casa. Derra-mando lágrimas. Repetindo: “Nunca mais pecar, nunca mais”. Chegando em casa, encontra o Divino Salvador que subia a escadaria de mármore, carregando a cruz, coberto de chagas a sangrar. O Sangue divino descendo em filetes vermelhos sobre o mármore branco. Parecida inundar todo o palácio. E Catarina a ouvir seu clamor: “Por ti, por ti”, a arder de amor estuante em seu coração.

Armela Nicolas, +1671 Empregada doméstica, analfabeta. Gosta de ouvir a

leitura da vida dos santos. Certa vez, ouviu a narração da Paixão de Cristo. Inflamou-se de compaixão por Jesus, e de dor por seus pecados. Daí em diante, por onde andas-se, o que estivesse fazendo, via-se sempre banhada e orvalhada pelo precioso Sangue. Tomando sua comida, parecia-lhe que todos os bocados estavam embebidos no Sangue de Jesus. Não podia mais ver sangue ou cor vermelha sem sentir-se quase sufocada pela emoção. Às vezes, transitando pelas ruas da cidade, estas parecia-lhe tintas de sangue, como outrora em Jerusalém.

Sta. Margarida Alacoque Jesus: “Apresenta muitas vezes ao meu Pai o San-

gue de meu Coração. Oferece todo o meu Sangue divino. Seu preço é infinito”.

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Leonardo de Porto Maurício Começou sua vida sacerdotal vomitando sangue à

toa, “sem fazer nada”. Depois, missionário ativo, por qua-renta e quatro anos, pregando até quatro vezes por dia e passado o resto do dia sentado no confessionário. Para descansar, escreveu livros, onze grossos volumes. E para santificar-se e a seus ouvintes, ofereci trinta e três vezes por dia o Sangue de Jesus ao Pai Eterno.

Maria de St. Pierre, OCD Jesus: “Dou-vos minha Face. Dou-vos meu Coração.

Dou-vos meu Sangue. Abro-vos minha chagas. Hauri e difundi. Comprai sem dinheiro. Meu Sangue é o preço das almas. Que sofrimento o de meu coração, ao ver que os remédios que me custaram tanto são desprezados. Pedi ao meu Pai tantas almas quantas as gotas de sangue que derramei na minha paixão”.

Marta Chambon, OV Jesus: “Uma das minhas criaturas traiu-me e vendeu

meu Sangue. Mas vós podeis resgatá-lo tão facilmente, gota por gota. Uma só gota basta para purificar o mundo todo e vós nem pensais nisto. Nem conheceis o preço”.

Josefa Menendez Muito sangue saindo da chaga do coração. Jesus:

“Repete comigo: Pai Eterno, considera estas almas tintas pelo Sangue de teu Filho... Este Sangue não seria bastan-te poderoso para salvar todas as almas?”.

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Sta. Teresinha “Olhando certo domingo uma fotografia de N. Senhor

na cruz, fiquei emocionada vendo o sangue que corria de uma de suas mãos divinas. Senti grande dor, pensando que esse sangue caía por terra sem que ninguém se a-pressasse em recolhê-lo. Resolvi conservar-me em espíri-to ao pé da cruz, para o recolher, e em seguida espalhá-lo sobre as almas. O grito de sede de Jesus na cruz ressoa-va continuamente em meu coração: tenho sede... Queria dar de beber ao meu bem-amado e sentia-me também devorada pela sede das almas” (Vida 131).

5. A CEIA DO CORDEIRO

Triste Realidade “As pessoas que retornam da missa, falam e riem;

julgam não terem visto nada de extraordinário. Não des-confiam de nada, porque não se deram ao trabalho de ver. Parece que acabam de assistir a algo muito simples e natural. No entanto, é algo que, mesmo tendo acontecido só uma vez, seria suficiente para arrebatar em êxtase um mundo apaixonado”.

“Elas retornam do Gólgota e falam da temperatura. Essa indiferença preserva-as de ficarem loucas. Se al-guém lhes dissesse que João e Maria desceram do Cal-vário conversando sobre coisas frívolas, elas retrucariam que é impossível. Mas elas o fazem”.

“Acabam de assistir à execução capital de um con-denado. Um instante depois, nem pensam mais nisto. Es-ta falta de imaginação impede-as de sofrer vertigens e de morrer”.

“Ficaram por vinte e cinco minutos numa igreja sem compreender o que aí acontecia. Algumas ficaram senta-

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das. Outras ficaram em pé também durante a elevação. A realidade é a mesma, apresentada sob um aspecto que leva em consideração a fraqueza humana. Os israelitas não podiam suportar o brilho da face de Moisés, que no entanto era apenas um homem. Escondido sob as espé-cies de pão e de vinho está mais que um anjo, e certa-mente mais que Moisés. Uma das características mais estranhas da Santa Missa é que ela não mata as pessoas que a assistem... Elas ouvem a Santa Missa tranqüila-mente, sem lágrimas sem coração! Coisa admirável! Que seria preciso para emocioná-las?”

“Para ver até que ponto elas são pobres de coração, é preciso examinar o que se faz por sua causa. O que se faz todos os dias. Em todas as partes do mundo para sal-var suas almas desatenciosas. Sua pobreza de coração, não é grande nem pequena: é infinita. Se elas pudessem espantar-se, estariam salvas. Mas fazem de sua religião mais um de seus hábitos, isto é, algo comum e ordinário. E é este hábito que condena o mundo” (Julien Green)

A grande graça dos cristãos Na verdade, é a Santa Missa, a ceia pascal, o ponto

culminante de toda a religião cristã (Vat. II, SC 10) Teologia e piedade cristã repetem, desde séculos,

com São Francisco de Sales: o sacramento eucarístico é “o sol da vida espiritual; é o centro da religião cristã; é o coração da devoção; é a alma da piedade; é o inefável mistério” (Filotéia 2,14)

Uma única missa equivale a milhões de ações hu-manas, das mais heróicas. O santo Cura d’Ars diz, com aqueles expressões originais que o caracterizam: “Todas as boas obras juntas não equivalem a uma única Santa Missa... Nem o martírio se compara com a Santa Missa. No martírio um homem dá a Deus sua vida humana; na

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Santa Missa, Deus dá sua vida por nós... Mesmo as boas obras de toda a humanidade por milhares de anos... Que felicidade assistir a Santa Missa. Se compreendêssemos, iríamos morrer de alegria. Só no céu iremos compreendê-lo”.

“Preferiria perder o mundo inteiro, se o possuísse, do que perder uma Santa Missa” (Berniéres)

Uma única seria suficiente para salvar o mundo. Verdades sabidas e sempre esquecidas.

O Cardeal Newman, ainda arcediago anglicano, co-gitava tornar-se católico. Um amigo sincero quis dissuadi-lo: “Vais perder teu bom ordenado (equivalente a cinco mil dólares anuais). Newman respondeu: “Uma única missa verdadeiramente vale muito mais”.

A Santa Missa presta a Deus Uno e Trino um culto perfeito. Tudo quanto a humanidade deve em homena-gem ao Ser Absoluto, uma Santa Missa o realiza com va-lores infinitos. Adoração, ação de graças, expiação, súpli-ca, amor, tudo isto recebe Deus em cada missa, em tal abundância e perfeição, que não pode exigir mais, pois é Jesus Cristo em pessoa que celebra a Santa Missa. E nós, pequenos servos de Deus, sentimo-nos imensamen-te gratos e satisfeitos por podermos prestar a Deus um serviço perfeito.

A Santa Missa não é uma devoção, é uma ação. O trágico na vida de certas almas é que sempre querem, e nunca realizam. Ora, na Santa Missa há ação. Fogo cai do céu, imola o Cristo e incendeia seus irmãos na terra. Ação desencadeia ação.

Quantos se queixam que sua vida é tão incompleta, tão penosa, tão torturada por inúmeras e insignificantes bagatelas. Nada de grande, de sublime. E os anos pas-sam, e esfriam, e endurecem meu coração! Vida tão inútil, tão banal, tão vazia!... Engano seu, minha alma! Assiste, digo melhor, celebra com o sacerdote o sacrifício da nova

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Aliança. Faze todos os dias a oferta do Reino de Deus e viverás uma vida cheia, rica, divina. Lança todo teu cuida-do sobre o Redentor. Identifica-te com o Filho de Deus feito homem, Salvador e vítima. E vive com ele sobre o altar. E tua vida pequena tomará a altura de Cristo. Sinto que um júbilo perpassa tua alma.

Bem-aventurados! Vosso é o Reino! A liturgia romana achou a fórmula sublime, que deve

brilhar no frontispício de cada novo dia como sol irradian-do luz, calor, felicidade: “Todas as vezes que se celebra a memória deste sacrifício, realiza-se a obra da nossa re-denção” (Secreta do 9.º Dom. depois de Pentecostes).

A Santa Missa, o ponto culminante de cada dia de tua vida.

Um boato Se um dia corresse pelo mundo a notícia inaudita

que N. Senhor voltou à terra... tomou domicílio em Jerusa-lém, ou em Roma, e atende a todos... que alvoroço seria! De todas as nações e regiões sairiam as romarias a fim de ver o Filho de Deus humanado. A televisão daria as primeiras imagens. Mas cada um quereria ir ver pessoal-mente. A gente iria guardar as últimas economias para fazer esta viagem, ao menos uma vez na vida. A gente iria sangrar os pés na longa marcha. A fim de falar só uma noite. Até chegar a nossa vez. Entramos com o coração a bater. E estamos face a face com Jesus. “Ó Senhor, quanto coisa para dizer, para pedir. Ó Jesus, vê de quan-to peso estou carregado!... tira isto ou ajuda-me carre-gar...” Iríamos cair de joelhos e pedir a sua bênção, para o corpo e para a alma. Quantas preces ardentes iriam jorrar com ímpeto do nosso coração, estando lá perante N. Se-nhor, e vendo-o face a face....

Mas não é boato, é realidade. Pois ele veio. Está

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morando aqui na terra. Se tivéssemos fé, fé viva, aquela fé que transporta e sacode, revolve a fundo um coração humano! Se tivéssemos essa fé, então nossas Igrejas estariam cheias, dia e noite. Os adoradores iriam rodear os sacrários, abismados pela presença divina. Mãos sú-plices levantar-se-iam ininterruptamente ao Filho de Deus, pedindo sua bênção santa e toda poderosa. Não haveria mais alma amargurada que não recebesse aqui alguma doçura. Não haveria mais sofrimento na terra que não buscasse, e não recebesse aqui alívio e conforto. Não haveria mais no mundo criatura desconsolada.

Não poderia mais haver, se tivéssemos fé, fé viva, fé santa, forte. Aquela que se levanta como um vendaval, e arrasta num turbilhão para o alto. Longe do marasmo e da mesquinhez terrestre. “Ó Filho de Deus, dai-nos essa fé!”

Se tivéssemos essa fé viva, forte, iríamos acorrer com ímpeto ao sacrifício eucarístico, à Santa Missa... Que mistério! Que mistério profundo como a eternidade: O Fi-lho de Deus apresenta-se todos os dias ao homens di-zendo-lhes: “Vou levantar minhas mãos ao Pai. Minhas mãos chagadas. Ponham nelas vossas falhas e culpas, vossas privações e frustrações, vossas misérias do corpo e da alma. Vou levar tudo aos pés do trono de meu Pai e vou pedir por vós, e meu Pai me atende.”

Que mistério, profundo como a eternidade! Todos os dias N. Senhor aparece entre nós, de braços abertos, e pergunta: há alguém aqui a carregar um peso? Há alguém padecendo necessidades? Dai-me tudo. Vou levar tudo ao céu. Na Santa Missa, no Pai-Nosso, Jesus abre os braços e reza conosco. Ele alcança tudo. Se tivéssemos fé... Mas somos frios, desinteressados, atarefados de-mais; não há tempo para o Reino de Deus.

Se tivéssemos fé viva, luminosa e ardorosa, nunca falharíamos ao banquete do Reino, à grande ceia pascal que nos alimenta para a vida eterna. Quando o corpo tem

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fome, damos-lhe comida. Quando a alma tem fome, rece-be drogas. E Jesus a oferecer-nos sua própria comida, aquele pão e vinho que transfundem em nossas veias a vida de Deus, luz e fogo. Se tivéssemos fé, estaríamos incendiados, estuantes de amor...

“Ó Jesus Cristo, dai-nos fé grande e alargai nosso coração estreito!”

No sagrado mistério pão e vinho transformam-se, mudam de natureza. Pão e vinho! O pão é Corpo de Cris-to. Vinho é Sangue de Deus. E uma grande saudade deve brotar da alma: “Ó Senhor, muda também a mim. Trans-forma-me em Ti, ó Deus Onipotente.

Aqui jaz minha alma fraca; transforma-a em força. Aqui jaz minha alma escura; transforma-a em luz. Aqui jaz minha alma fria e dura; faze-a ficar fogo. Transforma meu ser terreno em vida divina.”

Gólgota Perene A vida de Deus, a vida da salvação, é a cruz do Sal-

vador, a única via: a dor de Cristo e a dor do Corpo místi-co. Calvário e Missa. Em rigor, todos nós que somos ne-cessitados da salvação, deveríamos retornar no tempo, ao ano trinta, e colocar-nos debaixo da cruz de Redentor, oferecendo-nos junto com a vítima divina, porque o que nos salva é o contato com a cruz. “Com Cristo cravado na cruz” (Gl 2,19). “Em simbiose com sua morte” (Rm 6,5). Mas, sendo impossível o retorno no tempo, Jesus inven-tou um modo de tornar seu sacrifício, sua cruz, sua morte, presentes a todos os séculos da história da humanidade: todas as ondas das gerações humanas embatem no mor-ro do Calvário. Ou melhor: Jesus plantou sua cruz e sua morte salvífica dentro do rio humano, colorindo suas á-guas com sangue divino. E todas as gerações futuras passam, quais ondas, debaixo de sua bênção.

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Assistindo à Santa Missa, tornamo-nos contemporâ-neos de Jesus. Com Maria Santíssima, com as mulheres, com João, o apóstolo, assistimos de um modo misterioso, mas real, à morte de Jesus no alto do Calvário.

Paixão e morte foram para Jesus o caminho neces-sário para a glória. Vale a mesma lei para seu Corpo mís-tico, para nós. A Santa Missa introduz-nos no mistério pascal. Ela se repete a fim de incorporar todas as gera-ções sucessivas, até se completar Cristo total.

Infinita E sua bênção é poderosa, infinita. É o maior sacrifí-

cio da humanidade, e maior que todos aqueles milhões de sacrifícios oferecidos ao céu, desde a origem até hoje. É a vítima mais preciosa. De valor infinito, sem limites e sem restrições. O Sangue de Deus brada ao céu, implorando perdão e oferecendo satisfação total.

A Paixão e Morte foram para Jesus a ação ascética mais perfeita, ponto culminante de toda a sua vida espiri-tual: o abandono total à vontade do Pai. O primeiro Adão quis teimar a fazer sua própria vontade. O segundo Adão vê sua principal tarefa na glória de Deus Pai, em fazer a sua vontade; rejubila quando chegou a hora de lhe dar a mais sublime prova, a suprema. É para Jesus ocasião de júbilo, honra e glória eterna. “Pai, é chegada a hora. Glori-fica teu Filho para que teu Filho te glorifique” (Jo 17,1). Acima de tudo a glória de Deus. E esta é realizada pela submissão total à vontade de Deus. Maior coisa a fazer do que a vontade divina, não há. E nossa “salvação” con-siste na união mais íntima, na identificação com Cristo e com seu holocausto. Na incorporação afetiva e efetiva em seu mistério pascal. Eis a primeira, a mais excelente de todas as normas práticas ascéticas.

A Santa Missa é presença do Calvário. Eis a ascese

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mais perfeita: participar da Santa Missa. O caráter batis-mal põe-nos em contato vital com a cruz. Repetindo-se os contatos, repetem-se seus efeitos em nós, criaturas sujei-tas à historicidade, incapazes de realizar transformações substanciais de uma vez. Por essa razão, repetimos “a obra da nossa redenção” litúrgica todas as manhãs, até se completar nossa redenção, real e efetivamente. Diz Sto. Tomás (III 79,7): “Em cada missa multiplica-se a o-blação, e por isso multiplica-se o efeito”. Ou, como diz Ambrósio de um modo mais drástico: “Eu que peço todos os dias, preciso do remédio todos os dias”.

Presença A teologia esforça-se em investigar o mistério salvífi-

co da Santa Missa, da ceia eucarística em sua relação com o Calvário.

Sacerdote e vítima são idênticos, estão substancial-mente presentes. A ação sacrifical, oblação e morte, re-nova-se e repete-se em cada missa de uma maneira invi-sível, não sangrenta, mas real.

Nas duas “Missas”, na cruz e no altar, a ação sacrifi-cal é substancial e essencialmente idêntica. Não há con-corrência, nem paralelismo, mas repetição. A Santa Missa só é possível porque a antecedeu o Calvário. Verdade que cada repetição tem valor infinito.

Uma opinião recente contribui com uma nova focali-zação do problema: a Santa Missa não repete a morte de Jesus no Calvário, mas torna-a presente para nós. Não há dois ou mais sacrifícios, mas um só: o da morte física de Jesus, que se faz presente a todos os séculos posterio-res, à semelhança de um video-tape. Todavia, com uma diferença substancial: a presença é real. Presença real (e eficiente) da ação sacrifical do Calvário.

Charles Journet (La Messe, 89) comenta: A onipre-

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sença espacial é inteligível. A onipresença de Deus no tempo é um mistério. Para nós há passado, presente e futuro. Perante Deus tudo é presente. A eternidade de Deus exclui toda sucessão: Deus co-existe (Sto. Tomás, I,14,13).

O ato sacrifical de Jesus na cruz é conhecido de Deus desde a eternidade. Transitório no tempo, é sempre presente e existente em Deus. A onipotência divina pode estender o efeito, a força, por contato, a todo o tempo posterior. E assim, a Santa Missa não é um outro sacrifí-cio, mas é uma outra presença.

Presença operativa porque se trata de uma ação, não de uma substância.

Presença mistérica, sacramental: não sangrenta, debaixo de véus simbólicos. Como nas numerosas hós-tias consagradas está presente o único, idêntico Cristo, assim se multiplica em relação a nós o ato da morte de Jesus. Presença real, não metafórica; no entanto, em conceito análogo.

Como na ceia da Quinta-Feira Santa, no Cenáculo de Jerusalém, não há dois Cristos, mas um só, e este presente em duas presenças, uma corporal e outra sa-cramental (natural-sacramental), assim a relação entre cruz e missa.

O sacrifício é numericamente um e idêntico; diferen-te sua presença: histórica e respectivamente mistérica. O conceito presença é análogo; o conceito Cristo é unívoco.

Na cruz Jesus sacrificou sozinho. Mas instituiu a Ceia pascal e, de um modo insigne, o sacerdote. Somos oferentes e oferecidos, sacerdotes e vítimas, parcelas do Sumo Sacerdote, partículas da grande vítima.

Oferecemos - Sacrificamos Na cruz, Jesus agiu como segundo Adão, como re-

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presentante da humanidade. Renovando o sacrifício do Calvário, na Santa Missa, faz participar todos os seus membros místicos, a fim de integrar a todos na economia da salvação. Pela Paixão e Morte, Jesus entrou na glória. Mas o cristão, ainda na terra, deve seguir o mesmo cami-nho para atingir sua perfeição. O sacrifício da cruz deve tornar-se sacrifício de cada cristão, pois somos um único organismo.

O que faz a cabeça, convém a todo o corpo. Esta-mos em comunhão sacrifical com Jesus, não somente de maneira subjetiva e afetiva, mas real e objetivamente.

Como a paixão e morte no Calvário foi sua ação mais meritória, assim para cada cristão a participação na Santa Missa deve ser o ponto culminante de cada dia de sua vida espiritual.

“Mediator Dei” A encíclica de 1947 introduz o fiel na profundeza do

mistério pascal: “A missa é verdadeiro sacrifício. Por uma incruenta

oblação, o Sumo Sacerdote faz o que fez na cruz... O mesmo sacerdote, a mesma vítima... os mesmos fins: gló-ria de Deus, ação de graças, expiação, súplica...”

“O homem, qual filho pródigo, dissipou todos os bens recebidos do Pai Celeste, e assim está reduzido à extre-ma pobreza... Os méritos imensos, simplesmente infinitos deste sacrifício não conhecem limites. Mas requer-se que cada ser humano entre em contato vital com o sacrifício da cruz...”

“Na cruz, Cristo agiu sem a Igreja... mas quando se trata de repartir o tesouro, ele se comunica com sua es-posa e quer sua oblação, sua colaboração... O sacrifício do altar é o meio que distribui os méritos da cruza aos fiéis”...

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“É oferecido todos os dias, recordando-nos que não há salvação senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Deus mesmo quis que esse sacrifício fosse continuado desde a aurora até ao pôr-do-sol, para nunca se interrom-per o hino de louvor e gratidão...”

“A Igreja oferece e é oferta; sacerdote e vítima... A-quela frase do apóstolo, “Senti em vós o mesmo que Cris-to sentiu”, exige de todos os fiéis que tenham em sua mente os mesmos afetos do divino Redentor... de adora-ção e de louvor...”

“Exige, enfim, que todos nós nos submetamos à morte mística na cruz, junto com Cristo, a fim de poder-mos reivindicar a sentença de São Paulo: “Com Cristo estou pregado na cruz” (Gl 2,19).”

“Deve-se dizer que os fiéis também oferecem a divi-na vítima, embora de uma maneira diferente (do sacerdo-te). O ritual e os textos litúrgicos mostram que a oferta da vítima se faz pelo sacerdote junto com o povo”...

“Pelo Batismo, os fiéis tornam-se membros de Cris-to-Sacerdote. E pelo caráter que lhes fica gravado na al-ma, são designados para o culto divino. E assim partici-pam do sacerdócio do próprio Cristo, de acordo com sua situação”...

“Aquela imolação incruenta, em que Cristo, após as palavras da consagração, se torna presente sobre o altar em estado de vítima, é realizada apenas pelo sacerdote, enquanto representa a pessoa de Cristo; mas não en-quanto representa os fiéis Depois, o sacerdote coloca a vítima sobre o altar e oferece a Deus Pai a mesma obla-ção em honra da Santíssima Trindade e em prol de toda a Igreja. É nesta oblação, em sentido restrito, que partici-pam a seu modo os fiéis..”

“O povo oferece o sacrifício, não porque realiza o rito litúrgico visível, tarefa que compete só ao ministro desig-nado por Deus, mas porque une seus votos de louvor, de

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súplica, de expiação e de ação de graças ao sacerdote. Mais ainda: une-os aos do Sumo Sacerdote, a fim de que sejam entregues ao Pai”... “A fim de que a oblação obte-nha pleno êxito, é preciso que os fiéis acrescentem ainda algo: é necessário que eles se ofereçam a si próprios em sacrifício, segundo 1Pd 2,5 e Rm 12,1... Junto com o Su-mo Sacerdote e por meio dele ofereçam-se como vítimas espirituais”...

“Todos os elementos litúrgicos, pois, convergem pa-ra que nossa mente se impregne da imagem do divino Redentor pelo mistério da cruz, conforme a palavra do apóstolo dos gentios: “Com Cristo estou pregado na cruz; já não vivo eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,19).”

“E assim nos tornamos uma vítima junto com Cristo para maior glória do Pai Eterno”.

Sacerdócio dos fiéis No Calvário, na redenção objetiva, Jesus agiu só,

assistido por Maria Santíssima, co-redentora. “O gênero humano não é o autor da própria reden-

ção, mas o beneficiário da obra de Cristo”, (Philips). A Igreja não existia ainda. Nasceu no Calvário, no

Coração de Jesus. Mas na redenção subjetiva, na distribuição e aplica-

ção do mérito da cruz, Jesus quer a colaboração do seu corpo místico. Na Santa Missa, a Igreja e todos os fiéis são oferentes e oferecidos. Segundo a expressão de Sto. Agostinho: a Igreja oferece e é ofertada (Cf. Mediator Dei)

Diz Sto. Tomás (Sent 13): “O que foi ofertado uma vez por Cristo, pode ser ofertado todos os dias por seus membros”.

Escreveu Pio XI (1928): “Também o povo todo dos fiéis, com todo o direito chamado... estirpe régia e sacer-dócio escolhido e real, deve ofertar, seja para si, seja por

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todo o gênero humano”. Confirma-o Pio XII (Myst. Corp. 1943): “Os próprios fiéis oferecem o cordeiro imaculado, pela mão do sacerdote, ao Eterno Pai”.

Portanto, todos os fiéis, marcados pelo caráter ba-tismal, participam do sacerdócio da Igreja, segundo o co-nhecido texto, de Pd 2,5; e Ap 1,6 chama-os “reis e sa-cerdotes”.

Pelo caráter batismal os fiéis estão capacitados para haurir a graça através dos sacramentos da Igreja, e em particular para assistir a Santa Missa com fruto, favor que os não-batizados não gozam, mesmo que sejam pesso-almente mais santos. A Igreja primitiva despedia os cate-cúmenos após o culto da Palavra, por serem incapazes de participar do rito sacrifical.

Os fiéis batizados exercem também uma colabora-ção ativa no culto litúrgico, sendo partes da Igreja e do Corpo Místico (Vatic. II LG 34,62)

Este sacerdócio comum a todos os fiéis não deve ser exagerado, mas também não deve ser minimizado. Os fiéis exercem um real poder no culto litúrgico, embora su-bordinado ao sacerdócio ministerial e por seu intermédio.

O sacerdote está ligado a Cristo não só pelo caráter batismal e crismal, mas também pelo caráter sacerdotal. Por força desse caráter, o sacerdote é o representante oficial do povo de Deus no culto perante o Cristo e peran-te o Pai.

Por força desse caráter sacerdotal, o sacerdote, e ele só, como instrumento de Cristo, pronuncia as palavras da consagração que, efetivam a presença real de Cristo sob o estado de vítima. É o ato essencial do sacrifício. Feito isto, o sacerdote “oferece”, apresenta a vítima divina ao Pai, em louvor, ação de graças e expiação. Jesus se oferece ao mesmo tempo ao Pai como vítima universal. Essa oferta é feita em nome da Igreja e de todo o povo de Deus. E nessa co-oblação, Cristo-sacerdote, todos os as-

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sinalados pelo caráter batismal estão autorizados por Cristo a aderir à sua oferta.

O caráter batismal não dá somente capacidade pas-siva para usufruir do sacrifício, mas implica em certa cola-boração de todos os qualificados como membros de Cris-to. Superabundância da redenção que faz com que os remidos possam cooperar, num segundo ato, à própria redenção, isto é, na distribuição do usufruto.

Nesta participação dos fiéis no culto sacrifical é pre-

ciso distinguir dois níveis (cf. JOURNET, Messe 140). O nível cultual, ritual, sacramental, e o nível do amor divino, da graça santificante.

Nosso entrosamento no Corpo místico efetua-se também em dois níveis. Ficamos enxertados em Cristo:

a) Pelo caráter batismal; e o sacerdote ainda num grau a mais, pelo caráter sacerdotal.

b) Pela graça santificante, ou seja, pelo amor de Deus, que nos faz crescer Cristo adentro.

Na ceia pascal, somente Jesus agiu no nível cultual. No nível da graça, do amor, houve cooperação e até mes-mo fervorosa dos apóstolos, discípulos e piedosas mulhe-res. Na Santa Missa, no nível cultual, oferecem Cristo, sacerdote, fiéis; no nível do amor, sacerdotes e fiéis. No nível cultual, a parte do fiel é subordinada, mediata e aci-dental. No nível do amor, os fiéis entram em franca com-petição com os sacerdotes. Garantida a validez espiritual, será superior a parte que possuir mais amor, maior santi-dade. O clero perde sua posição privilegiada, e pode ser ultrapassado pelo ardor do fiel. E os últimos no culto tor-nam-se primeiros na ordem da graça.

Tauler deixou-nos uma página luminosa, abrindo ho-rizontes vastos como o Reino de Deus, e profundos como o abismo do seu amor infinito: “Deus tem na terra bons amigos... Graças a esses amigos de Deus, graças a es-

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sas almas santas... nenhuma missa da cristandade será jamais privada do amor. Quantos saltérios e noturnos reci-tados, quantas missas rezadas ou cantadas, quantos sa-crifícios e renúncias, cujo benefício não vai de forma al-guma em favor de quem efetua estes atos, mas é dado inteirinho a quem tem maior amor.

Com todos estes bens preenchem seu vaso. Nada no mundo lhes escapa. A medida dos corações transbor-dantes estende-se sobre a Igreja toda, bons e maus.

Eles recolhem tudo quanto se fez de bom por toda a terra. Não deixam nada se perder, seja pequeno ou gran-de. Nem a prece mais pequenina, nem um pensamento piedoso, nem o menor ato de fé. Eles apresentam tudo a Deus e oferecem tudo ao Pai do céu... Ó meus filhos! Se não tivéssemos estes homens estaríamos em bem má situação. Não só os homens, mas as mulheres também podem oferecer este sacrifício”.

As Vítimas Oferecemos no sacrifício pascal Jesus Cristo, cabe-

ça do Corpo Místico, o único que vale algo. Mas oferece-mos também a nós mesmos. Porque nossa inserção em Cristo místico, nossa união com Jesus dá-nos valor tam-bém. Jesus quer nossa cooperação na redenção. Somos salvos pela união e semelhança com Jesus. E agora nós, seus membros, temos a honra de ser vítima com ele, por nós e pelos outros.

A Igreja, o povo de Deus é complemento de Cristo: está portanto associada também à sua obra. Fazemos parte desse sacrifício infinito, oferecido diariamente por nossa cabeça. Nós, a título de membros, oferecemos e somos oferecidos, sacrificadores e vítimas na proporção de nossa união com Jesus. Na cruz, Jesus sacrificou-se sozinho; instituiu a Santa Missa, a fim de que todos dela

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participem, e do modo mais pleno possível. Na quarta pre-ce eucarística do novo Missal, rezamos: “Para que reuni-dos num só corpo nos tornemos em Cristo um sacrifício vivo, para louvor de tua glória”. É a palavra de Rm 12,1: “Rogo-vos... ofereçais vossos corpos em holocausto, vivo, santo e agradável a Deus”.

Recolhemos de São Cipriano este belo texto: “O sa-crifício do Senhor (Missa) não estará santamente celebra-do, se à oblação não corresponde o sacrifício de nós mesmos” (Epist. 63)

Sto. Agostinho comenta: “Cristo não pede nossos donativos, mas nossas pessoas... quis que nós mesmos fôssemos seu sacrifício... Toda a cidade redimida é ofere-cida a Deus como sacrifício universal do Sumo Sacerdote. E, ainda a voz da Escolástica (Sto. Tomás, II II 85,2); “O sacrifício que se oferece externamente significa o sacrifí-cio interno, espiritual, no qual a alma se oferece a Deus”.

Mortos em Cristo Nossa união mística com Cristo realiza-se com Cris-

to vítima; não com o Cristo ressuscitado e glorioso, por enquanto. Rm 6,5: “Fomos enxertados em Cristo pela semelhança com sua morte”.

A aplicação ascética é: tirar o velho homem do pe-cado, e revestir o novo homem, isto é, Cristo (Rm 8,6; Cl 3,9; Gl 3,27).

A ascese cristã é continuação e complementação da morte de Cristo em cada cristão (Stolz). A assimilação ao crucificado é que nos salva, assimilação ao seu estado de vítima. É o grão que deve morrer para florir e dar frutos. O corpo místico é a base real do cristianismo, e este está pregado na cruz. A Santa Missa arrasta-nos ao Calvário.

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Vítimas em Cristo Todo o povo de Deus, todos os cristãos são almas

vítimas por força da ceia pascal. Cada um na intensidade que desejar. Material não nos falta neste vale de lágrimas. Todas estas bagatelas, miúdas ou grandes, da nossa e-xistência cotidiana, anexadas à vítima divina. Bagatelas valorizadas por mercê de Deus, pela união com Jesus, e valorizadas na proporção de nossa união com o Salvador.

“Quantas almas piedosas imaginam erroneamente que suas mortificações, privações e sofrimentos têm valor em si... E até pensam, talvez, que Deus lhe deva ser re-conhecido” (GRIMAND, Missa, Ed. Vozes, 50). “Têm valor somente se incorporados em Cristo, o único com direito de apresentação ante o Pai Celeste. Fique gravado: o grande meio de reparação, desagravo, expiação, não são nossas misérias, nossas virtudes, sacrifícios e penitências tão mesquinhas, mas o sacrifício do Filho de Deus”.

É mister recordar sempre que todo valor de expiação depende unicamente do sacrifício cruento de Cristo, inin-terruptamente renovado sobre nossos altares” (Pio XI, 1928)

Importa, pois, unir-nos com Jesus na Santa Missa. E assistamos à Santa Missa unidos e juntos com Maria San-tíssima, co-redentora e medianeira.

6. SACERDOTE DE CRISTO O sacerdote é um real portador da redenção da cruz,

e ele renova-a cada dia, para e em favor do povo de Deus. É o ato mais redentor, mais salvífico; mais que es-tigmas, dores e crucifixões místicas. Tua missa, ó sacer-dote, salva o mundo!

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Santidade Tão sublime tarefa requer santos. Requer santidade

superior a de qualquer religioso, santidade superior a toda a vida monástica.

Diz o Papa João XXIII (1959): “Pio XII declarou que o clero não está vinculado, por lei divina, aos conselhos evangélicos da pobreza, castidade e obediência... Toda-via está errado dizer que o clérigo seja menos adstrito a tender à perfeição evangélica do que os religiosos... A situação é totalmente diferente, pois para o devido de-sempenho das funções sacerdotais requer-se uma maior santidade interior do que a que se exige para o estado religioso” (Sto. Tomás, III 14,8). Os conselhos evangélicos abrem-lhe caminho mais seguro para a desejada meta da perfeição cristã (Vaticano II, PO 12)

Sal da Terra Jesus mesmo chama seus discípulos e apóstolos,

cujos sucessores são os sacerdotes, “de sal da terra”. Se o sal perde a força, é inútil (Mt 5,13).

Mais enérgico em Lc 14,35: sal insosso não serve nem para estrume, mas é jogado na rua. Frase que rema-ta as exigências do discipulado cristão e evangélico. “Po-dem alguns ter dúvidas sobre o grau de renúncias exigido dos simples fiéis? Mas, palavras tão inequívocas como estas (Lc 14,27-33) não deixam margem alguma a uma escapatória diante da obrigação de sacerdotes e religio-sos no que se refere a uma renúncia sem compromisso ao mundo” (T. MERTON, Chagas, Ed. Vozes, 126).

Vítima Jesus nasceu para ser sacerdote (Hb 10,5). Por ser

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sacerdote é que nos redime, nos santifica, nos merece a graça e a salvação. Cristo é sacerdote substancialmente; sua ação suprema é sacerdotal: o holocausto no Calvário.

Toda graça de Cristo implica numa consagração sa-cerdotal. Não há graça cristã que não seja sacerdotal. Cristo está rezando missa durante o dia todo, oferecendo-se. A vítima imita-o. Almas vítimas e sacerdotes, vivam em missa perene com Jesus, numa oblação sempre reno-vada, doação total, heróica, sem cessar e sem retomar o presente dado. Até ao “aniquilou-se” (Fl 2,7).

O sacerdote não se deve contentar em ser funcioná-rio litúrgico. O Concílio, PO 13, convida-o a um new look de sua missão. “Os presbíteros representam a pessoa de Cristo que se ofereceu com vítima pela santificação dos homens; por isso eles são convidados a “imitar o que fa-zem”; e, como celebram o mistério da morte do Senhor, procurem mortificar seu corpo abstendo-se dos vícios e concupiscências”. Se todo o povo de Deus é co-vítima na Santa Missa, com maior razão o sacerdote, que é “outro Cristo”.

O sacerdote deve assumir e continuar a missão de Cristo em sua totalidade, sacerdote e vítima da Nova Ali-ança. “Os mensageiros de Cristo devem seguir o mesmo caminho de seu Mestre” (Charmot)

Trabalhando na salvação das almas devem usar os mesmos meios que Jesus usou. E entre estes meios, e não em último lugar, encontra-se a cruz.

Jesus ensinou várias vezes que deseja sejam seus apóstolos e discípulos vítimas, holocaustos da redenção. Convida os filhos de Zebedeu a beber o cálice “que eu vou beber” (Mt 20,22).

No domingo de Ramos declara: “O servidor deve a-companhar o amo” (Jo 12,26), quando o Calvário já esta-va à vista. Na oração sacerdotal da Quinta-Feira Santa, Jesus reza por eles, “para que sejam santificados, como

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eu me santifico por eles” (Jo 17,19), alusão a Jo 15,13: “Quem dá a sua vida...”

Santificar, isto é, consagrar ao culto como holocaus-to. O grande teólogo da carta aos Hebreus viu bem o ne-xo entre as grandes e as pequenas vítimas no culto da Nova Aliança. Entrando no mundo, Cristo oferece seu corpo à disposição da vontade divina (Hb 10,5). “E pela mesma vontade somos nós também santificados, consa-grados ao culto pela imolação do Corpo de Jesus Cristo” (Hb 10,10).

Missão sublime. Missão sublime demais para a cria-tura mortal. Mas o pequeno servidor mantenha-se sempre na sombra do chefe, “porque dele sai um poder” (Lc 6,19). Somos vítimas por profissão. Sejamos sacerdotes full-time. Não esqueças, Jesus rezou por ti (Jo 17).

Ele quer que o sacerdote católico ajude a salvar al-mas. Ora, Jesus salva a humanidade, não pelo serviço da Palavra, mas pela morte expiatória na cruz. O sacerdote é vítima de expiação. Deve morrer como o grão de trigo. É consagrado somente ao serviço de Deus. Um objeto con-sagrado a Deus, fica consagrado para sempre. Por toda a eternidade continua doado ao serviço de Deus. É impos-sível tornar-se “leigo”. Abandonando sua carreira, ele a-bandona Cristo.

Recapitulando 1. Jesus exige do discípulo a via da renúncia, isto é,

chegar ao amor de Deus por meio do uso e do usufruto dos bens criados, ou apesar disto.

O discípulo deve caminhar ao céu, pela renúncia às criaturas, por boas que sejam. Os três sinóticos referem as palavras incisivas de Jesus: Mt 10,37; 16,24. Mc 8,34; 9,23. Lc 18,28 (favor HTUler UTH).

O fato é indiscutível, e decerto Jesus quer para seus

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seguidores a vida de sacrifício, de mortificação. Quer que eles caminhem a Via-Sacra. Por que assim? A reflexão teológica procura desvendar o mistério do pensamento divino.

Uma pequena circunstância no texto evangélico re-quer a nossa atenção. Jesus diz sempre: “Se alguém quer vir após mim”. O discípulo deve levar a imitação de Jesus, a seqüela do Mestre até a última conseqüência.

Deve praticar a imitação, a seqüela de maneira inte-gral, participando da vida de Jesus em sua totalidade; as-sumindo todas as fases de sua vida e de sua missão. As-sumindo não só a de Nazaré, que representa nossa vida profissional. Não só imitar a Jesus como pregador-missionário durante os três anos da vida pública. Mas acompanhá-lo até ao amargo fim do Calvário.

A missão de Cristo atinge seu ponto culminante na paixão e morte. O sacrifício da sua vida fez o resgate da humanidade pecadora. Foi a expiação do pecado, exigido pela justiça divina. E o discípulo deve associar-se também a esta suprema tarefa. Ele deve estar onde está seu Mes-tre (Jo 12,26). Deve morrer, porque “o grão de trigo deve morrer para dar fruto” (Jo 12,24). E Jesus diz isto no Do-mingo de Ramos, cinco dias antes de sua subida ao Cal-vário. A alusão é visível.

2. A teologia ensina que toda obra sobrenatural tem

três valores: um valor meritório, baseado no amor a Deus com que foi realizada; um valor impetrativo, de petição, e um valor satisfatório, de expiação da ofensa a Deus.

Sabemos que uma gota de sangue derramada por Jesus seria suficiente para a salvação, porque tem um valor infinito. Sabemos que mesmo uma pequena prece de Jesus: “Pai, perdoai-lhes...”, mesmo um ato de amor seria suficiente para salvar mil mundos, seria manifesta-ção perfeita de valor infinito. Mas, de fato, a Santíssima

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Trindade decidira exigir do Salvador o máximo em sofri-mentos.

E por isso, para o resgate do pecador não bastam atos de amor, nem preces nem rezas, mas é necessária a satisfação; é necessário sofrer. E a bondade divina proje-tou a colaboração da criatura humana na obra da reden-ção; Jesus repete os convites: “Se alguém quer vir após mim”, se alguém quer acompanhar-me, tome a cruz de cada dia sobre o ombro e siga-me.

Salvar almas significa sofrer. Naturalmente, sofrer com o amor de Deus. Dor sofrida por amor. A vida de Je-sus foi um absurdo divino. Morreu na flor da idade. Morreu como criminoso na forca. Sua vida foi um fracasso, seus adversários venceram em toda linha. Eis como o discípulo de Jesus deve realizar-se (Fl 2,2.7-8).

Foi esvaziado... derrotado... feito obediente até a morte.

3. Jesus salvou o mundo em sua qualidade de Sa-

cerdote, oferecendo a Deus um sacrifício, sendo ele mesmo a vítima.

Todos os batizados participam no sacerdócio de Cristo. E a vítima é o mesmo Cristo. Mas como o sacer-dócio é participado, assim há também participação na ví-tima. E assim sendo, todo o corpo místico de Jesus é ví-tima. Rm 12,1 afirma que todos os cristão são vítimas de sacrifício. E são vítimas de resgate pela salvação dos pe-cadores todos os consagrados, e eles mais que os leigos, porque eles querem viver o seu compromisso batismal de um modo radical.

A finalidade na vida consagrada é portanto a salva-ção dos pecadores pelo sacrifício e pela penitência.

A vida monástica e consagrada ao culto de Deus pe-los votos evangélicos cria um ambiente favorável à santi-dade e ao fomento do amor de Deus. Mas ela deve ser

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mais, deve ser uma escola de renúncias, de mortificações e de penitências. Ela quer ser um sacrifício contínuo, a fim de prestar desagravo ao Amor Divino desprezado, quer expiar a culpa: quer sofrer a fim de salvar os pecadores. Lógico que insigne santidade, se elevada ao amor de Deus, deve valorizar o holocausto.

Em confirmação, um texto de Paulo VI (Motu proprio Penitemini, 1968: “A Igreja pede com insistência que to-dos pratiquem a virtude da penitência ao cumprir os deve-res inerentes ao seu estado de vida, ao suportar as triste-zas da vida que a acompanha, o trabalho de cada dia, as situações de insegurança que causam angústias.

A renúncia deve ser cumprida de maneira especial pelos sacerdotes que estão marcados pelo caráter de Cristo, e também por aqueles que professam os conse-lhos evangélicos com o intuito de seguir mais de perto a vida de Nosso Senhor”.

7. MARIA SANTÍSSIMA “CO-REDENTORA” O desvio da humanidade do caminho de Deus ini-

ciou-se com o primeiro homem e com sua companheira, esposa, mãe de todos os filhos de Adão. A obra de res-tauração devia-se, pois, processar pelo mesmo modelo. O Novo Adão quis ter ao seu lado como sócia e auxiliadora a Nova Eva. Como a primeira Eva cooperou para nossa perdição, assim a segunda Eva devia cooperar para a nossa redenção. Como Eva é a mãe de todos os filhos da terra, assim Maria Santíssima é a Mãe de todos os filhos da Deus. Mãe do Primogênito, do Verbo divino feito ho-mem, e depois mãe de todos os seus irmãos menores. Pela encarnação, o Filho de Deus participou da natureza humana de Maria Santíssima na mais íntima união possí-vel.

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Com mais razão ainda do que Adão, Jesus podia re-petir: isso é carne da minha carne. Maria Santíssima não foi só templo e sacrário do Verbo de Deus, mas sua espo-sa, “sponsa Verbi’, destinada a dar vida e existência à nova humanidade do corpo místico de Cristo. Na anuncia-ção o Verbo pediu o sim da livre colaboração.

“Eis aqui a serva de Javé”, ao lado do Servo de Ja-vé, profetizado por Isaías. A serva de Deus acompanhou seu Filho, e esposo, em todos os caminhos da terra santa. Acompanhou-o na Via-Sacra, para celebrar as núpcias de sangue no Calvário. Novamente Maria Santíssima repetiu o sim da anunciação: faça-se em meu Filho a tua vontade. O que Jesus sofreu fisicamente, sofreu Maria Santíssima na alma.

Invisivelmente estigmatizada, participou das dores do Redentor. E dele foi sócia, auxiliadora esposa, mãe, remiu o mundo.

Co-Salvadora Ao morrer, Jesus entregou a humanidade aos cuida-

dos de Maria Santíssima: “Eis o teu filho, senhora”. O dis-cípulos acolheu-a em sua casa. O primeiro passo da re-denção está dado. Falta o segundo passo: levar a graça salvadora a cada indivíduo; transformar o filho da terra em filho de Deus. Tudo isso é encargo da nova Mãe dos ho-mens. A Co-redentora torna-se medianeira de todas as graças. Ajudou adquirir o tesouro da redenção: compete-lhe, portanto, também a distribuição.

Desde Pentecostes a Mãe de Jesus acompanha os apóstolos de seu Filho, auxiliando-os no apostolado, fe-cundando a palavra apostólica com a graça íntima. Rai-nha dos apóstolos. É também rainha, mestra de todos quantos se dedicam à oração pelos pecadores. De quan-tos contribuem, com seu padecer, ao resgate das criatu-

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ras humanas, errantes, longe de Deus. Rainha das almas vítimas. Bendito seja quem a acolhe em sua casa.

Magistério Desde Leão XIII, o magistério ressalta a doutrina da

co-redenção e da mediação mariana. Diz Pio XII, Mystici Corporis, 1943: “Maria Santíssima é santa progenitora de todos os membros de Cristo, como já afirmou Pio X... Nascemos do seio de Maria, como o corpo unido com a cabeça. Num sentido espiritual e místico, somos chama-dos filhos de Maria, e ela é a mãe de todos nós...

Estava ao lado da cruz para tornar-se reparadora do mundo perdido e dispensadora de todas as graças... No Calvário, sacrificando seus direitos maternos e seu amor de mãe, ofereceu, como nova Eva, por todos os filhos de Adão, o seu divino Filho ao Pai Eterno, de modo que, se era corporalmente mãe da cabeça, tornou-se mãe espiri-tual de todos os membros, por um novo título de dor e de glória.

Suportando dores imensas com alma forte, e mais que os simples fiéis vítima, verdadeira rainha dos mártires completou o que faltou à Paixão de Cristo”.

O Vaticano II contemplou com simpatia esta teologia mariana mais aprofundada, e permite-nos considerar Ma-ria Santíssima como Medianeira das graças, e até como Co-redentora, por participação na obra redentora de Je-sus, sendo portanto, “depois de Jesus, esperança e con-solo do povo de Deus peregrinante” (LG 68).

Rainha das almas vítimas Na economia atual da salvação, a Mãe de Jesus o-

cupa um lugar necessário. Ela é a mãe, não somente do Cristo, Filho de Deus encarnado, mas também do Reden-

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tor. Mereceu de congruo, por conveniência, tudo quanto Jesus mereceu no sentido estrito, de condigno. Maria Santíssima é diaconisa da missa na cruz. É mãe de todo o Corpo Místico. É Mãe da Igreja; é parte mais insigne do Corpo místico; sua mediação salvadora é superior a toda a Igreja junta.

Não tinha nada a expiar. É a Imaculada. Preservada do pecado original, de todo pecado pessoal, e mesmo da mínima imperfeição. Por nós associou-se aos terríveis sofrimentos de Jesus. Mais do que qualquer outra criatura está associada à obra da Redenção. Mais do que os mai-ores santos. Mais do que os apóstolos. Mais do que os estigmatizados. Co-redentora, segundo a plenitude da graça e da caridade que recebeu.

Sua vida terrestre é, como a de Jesus, uma contínua expiação redentora. Sua vida celeste é toda dedicada à salvação das criaturas ainda peregrinantes no exílio. A mensagem mariana dos últimos cem anos é a prova. A Virgem de La Salette chora; “ela chorou o tempo todo so-bre nós”, diz Melânia. A Virgem de Lourdes pede orações pelos pecadores. A virgem de Fátima pede a reza do ter-ço pelos pecadores. Acolher a Virgem em nossa casa é penhor da graça e da vida eterna.

8. VÍTIMAS

Povo de Deus Repetimos: pela incorporação no Cristo místico, to-

dos os nossos sofrimentos ganham novo valor. São sofri-mentos de Redentor. Nossos padecimentos, voluntários ou involuntários, têm valor de co-redenção, de expiação, de resgate, porque Cristo e o cristão são uma só coisa, como resulta de Atos 9: “Saulo, por que me persegues?”

Como declarou uma Igreja antiga: “Jesus sofre nos

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mártires (Eusébio, a respeito dos mártires de Lião, em 180). Assim, todos os nossos sofrimentos completam a redenção: eis o máximo que se pode dizer da dor cristã.

A reparação-redenção de Jesus foi superabundante, infinita. Nada a acrescentar. Mas a sua Paixão deve ser “assimilada” por nós (Pioti).

Devemos deixar-nos absorver pelo Salvador. Ele quer renovar nos membros sua paixão. Escreveu Sto. A-gostinho: “Cristo padeceu quanto devia. À medida da Pai-xão nada mais falta. Os sofrimentos estão completos quanto à Cabeça. Faltam os sofrimentos de Cristo em seu corpo (místico).”

Almas vítimas propriamente são todos os batizados, em virtude da união de todo seu corpo místico (Holstein). Nosso fervor e nossa frieza dentro do Corpo místico favo-rece ou desfavorece a cura dos membros doentes ou mortos.

Jesus deixa o grau de colaboração salvífica à livre escolha do fervor e do amor de cada um. Convida, pede voluntários, não manda por lei.

Discípulos Convite insistente dirige-se aos discípulos, como já

vimos. Os discípulos são convidados a uma seqüela radi-cal do Salvador, total, até ao fim. São almas vítimas pro-fissionais, por força de seu estado.

Consagrados E discípulos são todos os religiosos, consagrados,

holocaustos (LG 44). É o sentido pleno da vida monástica. É o sentido profundo das renúncias na vida religiosa.

Enfim, é a via escatológica, a via co-redentora. Du-pla é a via espiritual do povo de Deus, através da história

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humana: a vida escatológica da renúncia, admiravelmente descrita pelo concílio (LG 48), e a via encarnada, atuante no mundo humano, cooperando na construção da cidade terrestre (LG 46). Cristo é a via para a vida eterna. Seu exemplo é normativo para a perfeição. Assim, pois, o cris-tão pode engajar-se de um modo especial na vida de Je-sus, em Nazaré, como trabalhador-operário, filho súdito na família, colaborando na construção da cidade terres-tre...

O cristão pode imitar, de modo especial, os três a-nos da vida pública, dedicando-se ao apostolado no Reino de Deus. Pode, enfim, associar-se ao mais alto múnus que Cristo desempenhou na sua vida terrestre: a reden-ção. “Fez-se expiação por nossos pecados” (1Jo 2,2; 4,10): é a vida escatológica, que associa o povo de Deus à obra redentora e expiatória de Jesus. É esta a via dos consagrados (LG 46).

Por esta razão, a existência do estado monástico-religioso é vital para a santidade da Igreja (LG 44). Alguns textos: “A vida religiosa é uma doação e entrega a Deus para salvar almas” (Lacordaire). “Esposa de um Deus cru-cificado é preciso que sofras” (Gertrudes Maria). “Lembra-te que queres esposar um Deus crucificado. É mister tor-nar-te semelhante a ele, dizendo adeus a todos os praze-res da vida, porque não haverá mais prazeres para ti, que não sejam através da cruz” (Margarida M. Alacoque). “Ne-cessito de almas religiosas que se sacrifiquem para expi-ar” (Catarina Ricci)

Vítima insigne é o sacerdote da Nova Aliança, tão in-timamente associado à missão do Filho de Deus feito Homem-vítima. Jesus espera do seu sacerdote resposta de amigo, não de mercenário.

Efeitos

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Enfim, chegamos às almas vítimas entre o povo de Deus, no sentido próprio da palavra. Almas prediletas, às quais Deus dá sua graça de eleição: o sofrimento. Sofri-mento físico ou moral, como ocorre na existência humana. E muitas vezes, talvez sempre, recebem também partici-pação mística nas fases da paixão, à maneira dos estig-matizados. Estas vítimas aceitam essa graça de Deus com coragem e gratidão. E sua vida tornar-se-á cópia fiel do mártir do Gólgota. São os varejistas do grande sacrifí-cio da redenção.

As almas vítimas, que se dedicam a oferecer as Santas Chagas, a Santa Face, o Sagrado Coração, o Pre-cioso Sangue, a Santa Missa, propriamente estão rezan-do. E o convite para este estágio de almas vítimas é uni-versal. É acessível a todos, grandes e pequenos. E creio: Jesus levaria a mal uma recusa. Graça de escol é, porém, o sofrimento. Jesus pode associar-nos à sua missão de amante do Pai, ao seu múnus de orante, e finalmente à sua missão de vítima padecente, ponto culminante de sua existência terrestre. São as três pérolas do reino: amor, sofrimento, oração. “Almas para rezar, encontram-se. Al-mas para trabalhar (no apostolado), encontram-se em grande número. Almas para trabalhar, para sofrer, encon-tram-se poucas. A vida real tem poucos reis e rainhas...

E é de todas as vocações a mais misteriosa, a mais sublime e a mais rara” (Plus). Todo o mundo prefere ser copa de árvore florida e carregada de frutas doces; mas é a raiz que importa mais (Krebs).

Mas eu tenho de pagar primeiro minhas próprias fal-tas, culpas e dívidas... Amigo, deixa este cuidado por con-ta de Jesus. Vai e salva teus irmãos que ainda são inimi-gos de Jesus, e que estão em perigo de permanecerem inimigos de Deus por toda a eternidade. Eis a tarefa mais urgente. Porque tem prazo marcado.

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Escolha Todos os batizados são chamados; de modo especi-

al os religiosos; de um modo insigne, os sacerdotes. Mas, como ainda há necessidade de operários nesta parte da vinha, Deus mesmo escolhe vítimas em analogia com a vocação sacerdotal. Hb 5,4: “O sacerdote é tirado do meio dos homens para oferecer sacrifícios”. Análoga é a esco-lha para o apostolado. Jesus escolheu os doze pessoal-mente, e sublinhou: “Eu vos escolhi e não vós a mim” (Jo 15,16).

E Jesus determina também, com franca indepen-dência, a carreira de cada um. Pedro vai morrer mártir; João, não. E essa diferença não é da conta de ninguém, responde Jesus à curiosidade de Pedro (Jo 21). São Pau-lo foi também chamado expressamente para ser apóstolo e para ser vítima: “Vou mostrar-lhe, quanto deve sofrer por mim” (Atos 9,16).

A Sta. Lutgarda Jesus mostrou as cinco chagas a-bertas nas mãos, pés e coração: “Olha e escuta, amiga: minhas chagas gritam por ti; meu sangue não seja derra-mado em vão”. A Sta. Margarida Alacoque: “Estou procu-rando uma vítima para meu coração e não quero outra, senão a ti, e quero que aceites”. A Ana Maria Taigi: “Eu te escolhi, a fim de colocar-te no coro dos mártires”. “Avisa ao sacerdote, teu diretor espiritual, que te escolhi hoje para que vás ao mundo converter as almas, confortar pessoas de todas as categorias: sacerdotes, monges, re-ligiosas, prelados, cardeais e até meu vigário na terra; terás de lutar contra uma multidão de criaturas fracas e sujeitas a muitas paixões”.

A Gertrudes Maria (1907): “Entre as esposas da França, escolhi hoje doze, e quero que sejas de seu nú-mero. Estas virgens formam a guarda de honra do meu Coração. Devem fazer-me fiel companhia; devem partilhar

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minhas tristezas. Devem interceder pelos pecadores. A onda da maldade, sobe sempre mais. Por isso escolhi almas que me amem com amor especial... Tenho meus amigos na terra como os tenho no céu. Aqueles são meus amigos verdadeiros, os que sofrem por meu amor.

Candidatos Os candidatos preferidos nesta escolha são os pe-

quenos, os fracos e humildes. Os que o sabem e o reco-nhecem. Diz Jesus a Margarida: “Escolhi a ti porque és um abismo de indignidade e de ignorância... a fim de que tudo seja feito por mim”. Diz Jesus a Droste-Vischering: “Meus olhos caíram sobre ti por causa de tua grande fra-queza e miséria”. Sendo assim, há muitos candidatos nes-te mundo habitado por homens. Infelizmente, muitos des-ses pequenos estão convencidos de sua força e virtude.

E outra qualidade indispensável: o livre, espontâneo consentimento. Como Jesus se fez vítima por livre vonta-de (Jo 10,17), seus colaboradores também devem aceitar a missão de boa mente, de coração.

Sede de sofrer Características de todas estas vítimas é uma sede

insaciável de sofrer. Sede que raia o incrível. Sede ali-mentada evidentemente por um foco de calor extra-terreno. Alguns tópicos:

Os primeiros da fila foram os doze apóstolos de Nosso Senhor, “alegres por terem sido julgados dignos de sofrer pelo nome do Senhor” (Atos 5,41). Segue-se, o ar-rebatado Paulo de Tarso. Abre a fila dos mártires Inácio de Antioquia, anelante de dar o sangue e vida por Cristo.

Sta. Teresa d’Ávila revela o segredo: “Antes de ter recebido o penhor do Senhor, é bem difícil alegrar-se de

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ser objeto de desprezo” (Vida 10). Fogosa, Ângela de Fo-ligno: “Pedi a graça de derramar meu sangue pelo Senhor como ele fez por mim. Desejei para o meu corpo ainda, tortura maior. E procurei quem me quisesse matar. Mas matar pela fé e amor a Jesus... Depois vi a Santíssima Virgem e São João, e pedi que me dessem as dores de Jesus Cristo. Eles me atenderam. E, aquele dia terrível não esqueço mais”. Lutgarda vê o Cristo ensangüentado na cruz: “Veja como eu me ofereço ao Pai pelos pecados dos homens. Faze o mesmo. Oferece-te toda também, por meus pecadores.”

Sta. Margarida Alacoque: “Um amor crucificado quer crucificados de amor”. Marcelina Pauper: “O amor faz se-melhantes. Tu estás sofrendo opróbrios. Suplico-te, ó Je-sus, dá-me este sinal, este penhor precioso e garantia de teu amor”. Verônica Giuliani exclama exuberante: “Viva a cruz, viva o sofrimento”.

Maria de Bourg: “Se vendessem sofrimentos na fei-ra, eu iria já fazer compras”. Matilde de Magdeburg, preo-cupada com o pensamento que com a morte acaba todo sofrer, apostrofou a Jesus: “Meu bem-amado, tenho sede desta bebida salutar, deste licor de sofrer amando. Dese-jaria viver até ao último dia”. Liduvina, doente durante quarenta anos: “Sou feliz. Se bastasse uma Ave-Maria para curar-me, não a rezaria”.

Mas esses são os “grandes” santos. Para nós, arraia miúda, o sofrer é o cumprimento fiel do dever cotidiano, que cada dia traz combustível para o fogo sagrado no al-tar do holocausto. Nossa contribuição é o tostão da viúva. É a gota d’água no cálice: sozinha, fica água eternamen-te; misturada ao sangue de Jesus, torna-se também san-gue salvífico.

E, quanto ao mais, aguarde ordens do alto. Rosa de Lima colheu flores e lança-as ao ar, para

Jesus. Seu irmão Fernando, pensando ser um jogo, corre:

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“Vamos ver quem joga mais alto”. Suas flores recaem so-bre a terra. As de Rosa ficam penduradas no ar e formam uma cruz bonita.

Números O número dos que se salvam fica aos cuidados de

Nosso Senhor. Não é da nossa alçada. Seria vaidade, curiosidade. As vítimas trabalham, isto é, sofrem por a-mor, não em troca de pagamento, nem terrestre nem ce-leste. Mas, uma e outra vez, Jesus dignou-se levantar o véu do mistério e revelou números, a título de estímulo e animação. A conferir o capítulo paralelo, no tratado da Oração.

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9. GALERIA DAS VÍTIMAS Algumas amostras. Uma antologia forçosamente in-

completa. É uma literatura de dos mil anos. Preferi textos de “mensagens”, deixando de lado fatos e gestos hagio-gráficos.

Predomina na antologia o elemento feminino, porque é mais expansivo, mais loquaz. E os comparsas masculi-nos raramente têm ao seu lado um direto espiritual, que os obrigue a escrever memórias espirituais Assim, eles usam das suas intuições espirituais para compor sermões (Tauler, Vianney) ou para redigir livros (Blois, João da Cruz).

A galeria das vítimas é maior que a Ladainha de to-dos os santos. Figuram aqui todos os estigmatizados, a começar com São Francisco de Assis. Seu sucessor ime-diato, o cisterciense Dodo de Haske, +1332, o missionário jesuíta Felipe Jeningen, +1704, até o nosso contemporâ-neo capuchinho, Frei Pio, +1969.

Menção especial merece a estigmatizada de Portu-gal, Alexandrina da Costa, +1955; e, no Brasil, Madre Amália.

Interminável a lista dos e das participantes das dores da Paixão. A consultar os 90 volumes, in folio, dos Bolan-distas. Participação que tem sempre o caráter de expia-ção suplente.

No terceiro grupo, predominante na nossa antologia, figuram as almas vítimas que consolam a Cristo na pai-xão, desagravam a divindade ofendida, sem ter outros estigmas que suas doenças, sofrimentos físicos ou mo-rais, que merecem amando e sofrendo, ou, digamos com mais humildade e mais verdade, suplicam a graça da conversão para os pecadores.

Na antologia, preferimos textos que falam expres-

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samente da expiação. Quando ao gênero literário da revelação particular,

vale a judiciosa orientação da Sta. Teresa d’Ávila: “Chu-pando uvas... chupa-se o caldo, mas põe-se de lado a casca; assim, aproveita-se o conteúdo doutrinal, abstrain-do da sua origem supostamente divina”.

Inácio, Mártir, +107? Bispo de Antioquia, martirizado em Roma, sob Tra-

jano. Escreve à Igreja de Roma: “Só vos peço uma coisa: deixem-me oferecer a Deus a libação do meu sangue... Morrerei de bom grado, se vós não me impedirdes. Supli-co-vos: não me tenham uma compaixão inoportuna. Dei-xem que me torne o pasto das feras, pelas quais irei che-gar até Deus. Sou trigo de Deus, e devo ser moído pelos dentes das feras, a fim de ser oferecido a Deus como pão branco. Acariciai as feras, para que se tornem meu sepul-cro e não deixem restos do meu corpo... Então serei dis-cípulo verdadeiro de Cristo. Suplicai a Cristo para que, por estes meios, logre ser sacrifício a Deus...

Se as feras não quiserem tocar-me, eu mesmo as forçarei. Perdoai-me. Eu sei o que me convêm. Agora es-tou começando a tornar-me discípulo de Jesus Cristo. Deixai-me ver a luz... Permiti-me imitar a paixão de meu Deus... Meu amor foi crucificado... e a fonte de água viva murmura dentro de mim: Vem ao Pai”.

Lutgarda, 1182 - 1246 Seu primeiro encontro com Cristo deu-se na sala de

visitas, quando entretida numa conversa fútil com um ad-mirador de sua beleza de quinze anos. Lutgarda viu, subi-tamente ao seu lado, Cristo envolto em chamas e luz.

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Mostrou-lhe a chaga aberta do seu Coração e disse-lhe: “Eis aqui o que deves amar”.

Anos mais tarde, já religiosa professa, dialoga com Jesus: “Senhor, quero teu coração”. Jesus replica: “Eu também quero o teu”. Lutgarda: “Com todo prazer, Se-nhor; toma-o... que esteja sempre em ti”.

Certa noite, com febre, banhada em suor, ouviu o si-no tocar para as matinas às duas horas da madrugada, e logo ouviu também as voz de Jesus: “Levanta-te depres-sa. Por que ficas aí deitada? A esta hora os pecadores revolvem-se na lama dos seus vícios, e tu deves estar fazendo penitência por eles, em vez de ficar deitada à vontade”. Chegando atrasada à capela, encontra na porta do coro, Jesus crucificado que a abraçou e a fez beber na chaga do seu coração.

Apareceu-lhe a Virgem das Dores: “Vê meu Filho, mais uma vez crucificado pelos hereges e maus cristãos. Mais uma vez escarram-lhe no rosto. Tu, portanto, faze penitência e jejua sete anos para apaziguar a ira de meu Filho”.

Novamente Lutgarda vê Jesus no céu, mostrando ao Pai suas chagas vermelhas de sangue. Voltando-se para Lutgarda, Jesus lhe diz: “Não vês como me ofereço ao Pai por meus pecadores? Quero que tu também te ofereças totalmente a mim por eles”. E Jesus termina, pedindo uma segunda septena de jejum “pelos pecadores”.

Um terceiro jejum de sete anos, imposto por Jesus, visa combater um poderoso inimigo da Igreja, provavel-mente o imperador gibelino Frederico II.

Torturada por desejos ardentes do céu, Jesus apa-rece-lhe, mostra as cinco chagas e diz: “Vê e contempla, ó bem-amada! Minhas chagas bradam por ti, a fim de que meu sangue não tenha sido derramado em vão... Elas te dizem que tuas dores e tuas lágrimas apaziguam a ira do Pai, para que não lance na morte os pecadores, mas os

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faça converterem-se”. Em 1245, seu último ano de vida, Jesus pede-lhe

três coisas: 1. Agradecer por todos os dons recebidos. 2. Que te entregues totalmente em oração ao Pai, por meus pecadores. 3. Desejar o céu. (T. MERTON, Que são estas chagas, Vozes, 1959).

São Francisco Francisco implora a graça de poder suportar todas

as enfermidades. Uma voz responde-lhe: “Francisco, po-de-se pagar caro demais uma pérola, se com ela pode-mos comprar um reino sem preço? Esta pérola é o sofri-mento enviado por Deus. Saiba que ele vale mais que todos os tesouros da terra. E não se deve trocá-lo pelo mundo inteiro, mesmo que todas as suas montanhas se transformem em ouro puro, e todas as suas pedras em diamantes. Alegra-te, é o caminho do paraíso!”

No seu retiro de quarenta dias no monte Alverne, dois anos antes da morte, qual novo Moisés, Cristo apa-receu-lhe e mandou que abrisse o livro dos Evangelhos. Três vezes deparou com a Paixão de Jesus.

Como na sua vida franciscana foi imitador de Cristo, também na morte devia assemelhar-se a ele. Recebeu os estigmas e também a sua parte nos padecimentos do Sal-vador, como o divino Mestre coroando sua vida apostólica como vítima de expiação.

Margarida de Cortona, +1297 Sexta-feira santa de 1287. Margarida participa, das

nove às três da tarde, do drama da Paixão, vendo, pade-cendo e explicando de tempo em tempo a visão, sem per-ceber o povo que a rodeava. De braços estendidos, das doze às quinze horas, reflete no rosto os sofrimentos do

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crucificado. A cena termina com um agradecimento jubilo-so. Depois ela percebe, desapontada, a presença do po-vo. Mas Jesus, intervém: “Fica sossegada, minha filha; quero que sejas o espelho dos pecadores, mesmo para os mais obstinados. Quero que eles se convençam, por teu exemplo, que o seio da minha misericórdia está sem-pre aberto ao arrependimento”.

Quaresma de 1288, Jesus mostra-lhe, ao lado dos pecadores por ela convertidos, a corrupção moral da cris-tandade: “Meus inimigos são mais numerosos hoje do que no dia da Paixão. Se meu corpo fosse tão grande como o mundo, estaria coberto de feridas da cabeça até os pés”.

E a vista do Homem das dores ensangüentado ar-ranca-lhe a generosa oferta de sofrer tudo com ele, pelos pecadores. A vítima é aceita. Uma cruz luminosa desceu do céu. “E onde estão os cravos para me pregar sobre esta cruz?”, pensou consigo. Jesus responde: “Sim, será mártir comigo. Mas não teu corpo, e sim teu coração será crucificado”.

“Minha filha, os meus bem-amados não devem cho-rar sobre seus males, mas sobre o povo. Três espécies de gemidos convêm aos meus amigos. A primeira, por seus pecados. A segunda, por minha dolorosa Paixão. E a terceira, pelos pecadores, que se perdem por ofender-me. Desde a redenção, o mundo nunca necessitou tanto destas lágrimas como hoje... O mundo conspurcou-se em tantos vícios, que não encontras na graça nem mesmo um entre mil.

Por isso, eu te fiz rede para pegar peixes a flutuar no mundo... Eu te fiz espelho dos pecadores e mãe dos pe-cadores. Tu és a mão que os arrasta para fora do abismo dos vícios. Por isto, filha, chegarás a mim pela via da tri-bulação. Teu amor pode dizer-se descomedido, e tu podi-as ser chamada imensa[?]. De ti aprenda o mundo que, por uma pequena penitência, se pode subir rapidamente à

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excelência das graças. Gília, tua amiga e discípula, ficou no purgatório du-

rante um mês, sofrendo leves penas... pelas iras que teve em seu zelo... depois foi posta no coro dos querubins.

Corre pela via da cruz, e seguramente chegarás aos dons sublimes que desejas... Tu és incrédula! Não acredi-tas que eu possa fazer de ti um vaso puríssimo. Agradam-me as obras que estou realizando em ti. Aproxima-te fre-qüentemente da chaga do meu lado, a fim de sugar e sen-tir o sangue que se derramou pela salvação de todo o gê-nero humano”.

“E eu te digo: Tu és aquela filha bem-amada, à qual darei maiores graças do que a qualquer outra mulher des-te século. Ama-me, porque eu te amo. Louva-me, e eu te louvarei e farei louvada por todo o mundo”.

“Eu te digo: não existe atualmente, sob o céu, outra mulher que eu ame mais do que a ti”. “Colocar-te-ei entre os serafins, onde estão as virgens ardendo em amor”. “Filha, ama-me, pois são poucos os que me amam”.

“E profetizo: até à tua morte estarás mergulhada na fornalha da tribulação”. Margarida responde: “Mas como pode um vaso tão frágil suportar tanto tempo a fornalha de fogo? Não há vaso mais frágil sob o céu. Dize-me, pois, por misericórdia, quando será o dia da minha mor-te?” Jesus: “Tu vives segundo minha vontade”.

Julgando-se indigna das graças divinas, Jesus lhe responde: “Dos pés até a cabeça eu te revesti de graças e virtudes”. “Se queres conservar a pureza ilibada, leva con-tigo as cinco pedras das minhas chagas, e com elas feri-rás o inimigo na testa”.

“Filha, por que queres fazer o paraíso na terra, quando nem mesmo ao meu corpo unido à divindade eu o dei? Não esperes por isso”.

“Quando ficaste ao lado da cruz (na igreja), dei-te muitas graças. Volta ao mesmo lugar e darei maiores gra-

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ças ainda. Retorna à cruz: lá me encontrarás”. “Nunca, desde a redenção, caíram tantos no inferno

como agora... por isto, eu te fiz uma fonte para salvar os pecadores... Tu és plantação que faz verdejar as plantas secas, pois de ti sairá a água para irrigar a raiz das árvo-res, porque tu és minha irmã e minha sócia, e não te cha-mo mais de serva”.

Ângela de Foligno, +1309 “Vinde, ó filhos de Deus, ao pé da cruz e transfor-

mai-vos com todo empenho neste Homem-Deus martiri-zado por nosso amor”.

“Glória e louvor sejam dados a Deus, porque quis dar seu Reino, sua companhia, sua felicidade, aos po-bres, aos pequeninos, aos desprezados... Se custasse ouro, prata ou pedras preciosas, a maioria estaria excluí-da. Mas fez a nossa vida curta para não desanimarmos na dor...”

“Sede benditos pela mão de meu Pai, vós que parti-lhastes e chorastes minha Paixão. Vós que lavastes vos-sas vestimentas no meu sangue. Sede benditos, vós que fostes achados dignos de vos compadecer de minhas tor-turas, de minhas ignomínias, de minha pobreza. Sede benditos, porque guardastes no fundo do vosso coração a memória da minha paixão. Minha paixão, o único refúgio dos pecadores. Minha paixão, vida dos mortos! Minha paixão, milagre dos séculos! Ela vos abrirá as portas do reino eterno. Vós, que tivestes piedade de mim, participa-reis também da minha glória!”

“Benditos sois vós! Pendurado na cruz, eu gritei, chorei, pedi perdão por meus algozes: Pai, perdoai-lhes. O que darei a vós, que me fizestes companhia, a vós, meus dedicados amigos?

Testamento: “A caridade não se limite a vós, mas se

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estenda a tudo quanto é criatura humana na terra. Digo-vos, em verdade: minha alma possuía mais Deus quando chorava e lamentava os pecados dos outros do que os seus. O mundo iria rir-se de mim, se dissesse que chorei mais sobre os pecados dos outros do que sobre os meus, porque não crê que isto seja natural. Mas também a cari-dade que tenho não é deste mundo”...

“Deixo-vos todos os meus bens, bens de Jesus Cris-to: pobreza, sofrimento, desprezo e enfim toda a vida de Cristo. Sede benditos por aquela mão que por nosso amor foi pregada na cruz”.

Catarina de Sena, +1380 Aos sete anos de vida, já tomava três disciplinas por

dia: uma para si, outra pelas almas do purgatório, e a ter-ceira pelos pecadores. Ofereceu-se como tampa do infer-no, para ninguém mais cair nele.

Caluniada por uma leprosa, aparece-lhe Jesus e ofe-rece duas coroas a escolher: uma de ouro e diamante, a outra de espinhos. Catarina escolhe a de espinhos, sen-tindo-os depois, continuamente. Estigmatização invisível.

Jesus convida-a ao apostolado: “Abre-me caminho. Abre-me a porta das almas para eu poder entrar... Dois são os mandamentos: amor de Deus e amor do próximo. Quero que tu andes com os dois pés. Quero que voes ao céu com as duas asas”.

Catarina se escusa: “Sou tão miserável, tão frágil! Como posso ser útil às almas? De que modo? Minha fra-queza feminina o impede”. Jesus responde: “Não suporto mais o orgulho dos que se julgam letrados e sábios... Pa-ra sua confusão, mandarei mulheres para a minha vinha”.

Preparando-se para comungar, sente desabar sobre si uma chuva de sangue e fogo: figura de sua missão.

Em 1270, Catarina morre: partira-se seu coração.

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Fica morta durante quatro horas. Faz um passeio através do céu, do purgatório e do inferno. No fim, Jesus pede que retorne à terra: “Viste, quanta glória perdem, quanto castigo sofrem os que me ofendem? Retorna, pois, e mostra-lhes o erro e o perigo”. Catarina põe dificuldades. Jesus insiste: “A salvação de muitos depende de teu re-gresso. Vai, pois; não fiques mais na tua cela. Irás, de cidade em cidade. Irás falar perante bispos e papas...” Catarina ressuscitou. Chorou dois dias e duas noites, sem parar, sentindo saudades do céu. “Ah, como sou infeliz!”

Catarina reza pela sua salvação eterna, pela sua perseverança final, pela sua família, de seu confessor, de seus amigos...

“Prova-me que me ouves e dá-me um sinal”. “Esten-de-me a mão”. E um prego atravessou-lhe a mão direita, e ela sentiu para sempre a ferida; era penhor.

A seus filhos espirituais escreve a santa “Assim co-mo tu, Senhor, carregaste os sofrimentos que nós mere-cíamos, assim quero expiar as faltas de todos os meus filhos espirituais... Começai uma vida nova! Eu tomarei sobre mim os vossos pecados! Farei penitência em vosso lugar... Jesus está mais disposto a nos perdoar do que nós estamos a pecar”.

A estes filhos espirituais Catarina quer dar como ali-mento não leite, mas fogo. Jesus dissera-lhe certa vez: “Eu sou o fogo, vós as centelhas”.

Testamento espiritual: “A fim de dar-se totalmente a Deus é mister libertar o coração e os sentimentos de tudo e de todo amor sensível pelas criaturas, e das coisas cri-adas, e apegar-se unicamente a Deus. O coração não pode dar-se realmente a Deus se não estiver livre”...

“Deus manifestou-me que jamais poderei atingir a perfeição sem ser humilde, fiel e constante na oração. A oração é uma mãe que concebe e alimenta na alma todas as virtudes. Sem ela, todas se debilitam e são de curta

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duração...”

Livro do Diálogo “Muito me agrada o desejo de querer suportar toda

pena e fadiga até a morte pela salvação das almas. Quan-to mais sofrimentos suportas, mais provas me dás de que me amas”.

“A cruz é a ponte que da terra conduz ao céu. Os mundanos deixam-se levar pelas águas abaixo e se afo-gam”.

“Lavai a face da minha esposa com as lágrimas e o suor teu e dos outros servos meus”.

“Peço-te que benignamente, ó Deus eterno, casti-gues em mim (os crimes do mundo)”.

“Não vos canseis de lançar-me o incenso odorífico das orações pela salvação das almas; porque eu quero fazer misericórdia ao mundo, e lavar com vossas lágrimas a face da minha esposa, a Igreja”.

“Tu me fizeste quatro pedidos. Um por ti, que já a-tendi. O segundo, que eu tenha misericórdia para com o mundo. O terceiro, pelo corpo místico da santa Igreja, su-plicando-me que afastasse as trevas e perseguições. Já prometi e prometo-te que, mediante os muitos sofrimentos de meus servos, reformarei a minha esposa. O quarto pedido é um caso particular. Eu, Pai Eterno, convido-te e os outros servos meus ao pranto; e com o pranto e com a humildade e contínua oração, quero usar de misericórdia para com o mundo”.

Como que ébria e fora de si, Catarina desejava que o suor de seu corpo fosse não de água, mas de sangue: “Ó minha alma, quanto tempo perdeste, e então acontece-ram tantos males no mundo e na santa Igreja!... Deus meu, quero que agora os remedeies, com teu suor de sangue!”

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Catarina: “Tu pareces abobado pelas tuas criaturas, como se não pudesses viver sem elas. O nosso bem não aumenta a tua grandeza! O nosso mal não te atinge! Que é que te move a fazer e usar de misericórdia?” -“O amor”.

Deus: “Meu amor vos criou meu amor vos sustenta. Fostes feitos por amor”.

“Não abaixes tua voz a suplicar-me misericórdia pelo mundo... Por estes gemidos e gritos quero dar misericór-dia mundo. E é isto que peço dos meus servos: este será o sinal de que me amam de verdade”.

“Bem sei que a misericórdia te é própria, mas não a podes aplicar senão a quem te pede”.

“O que pedir? O sangue, no qual tens lavado a mal-dade. O sangue é nosso...”

“Põe na balança o preço do sangue de teu Filho. Neste sangue deste banho nos cordeirinhos. Este sangue te pedem sedentos os teus filhos, para que faças miseri-córdia ao mundo e faças florir e reflorir a santa Igreja, com flores odoríficas de bons e santos pastores... Pai, tu me disseste que, pelas orações de teus servos e pela fadiga que eles sustentam, terás compaixão com o mundo e re-formarás tua Igreja. Responde com a voz da tua miseri-córdia”.

“A Maria Santíssima, mãe de meu Filho, dei este pri-vilégio: justo ou pecador, que lhe tenha a devida reverên-cia, não será levado ou devorado pelo demônio infernal”.

Matilde de Magdeburgo, +1283 Jesus aparece-lhe, com as chagas abertas, sangren-

tas... Enquanto se cometem pecados na terra, suas cha-gas ficam sangrando. Jesus mostra-lhe seu coração “que se parece com ouro vermelho na fornalha ardente”. Ele une os dois corações como água e vinho.

Jesus: “Estou unido a ti. Tu me trazes só ferro velho,

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eu tenho ouro”. Deu-lhe duas moedas de ouro: “Faze com elas teu comércio. As duas valem muito e são igualmente boas. Com a boa vontade e o bom desejo tu podes com-prar e pagar tudo quando queres”.

Às monjas da abadia, o recado de Jesus: “Eu vos escolhi. Escolhei-me também”.

Matilde tem três filhos. O primeiro são os pobres pe-cadores. O segundo são as almas do purgatório. E o ter-ceiro são os religiosos e os eclesiásticos imperfeitos. “E estes filhos causam-me mais dores”.

“Jesus, eu te peço a completa conversão, mudança de vida e perseverança das almas santas. Rezo também por todas as almas sofredoras... por todos os meus per-seguidores... pelos moribundos... por todos os que usam o hábito eclesiástico... pelo chefe de Roma... pela Terra Santa... pela paz da cristandade... pelos príncipes deste país... pelos pobres, doentes, aflitos, moribundos, pelos que sofrem no purgatório...”

Visão do purgatório: “Jesus, não posso ir até a estas almas e sofrer com elas?” “Queres entrar? Então irei jun-to”.

“Vê as almas pelas quais rezaste...” (uma vez, mil fo-ram salvas; outra vez, setenta mil).

Jesus oferece dois cálices. Na mão esquerda, o vi-nho tinto, o sofrimento. No outro, o vinho do amor divino. “Bem-aventurados os que bebem este vinho vermelho; pois só eles beberão o segundo.” O sofrimento queixa-se: “Fiz tantos santos e salvei a muitos, e a mim não deixam entrar no céu”... Jesus responde: “Sofrimento, tu não nas-ceste no céu, mas no coração de Lúcifer e ali ficarás eter-namente”.

Deus permite sofrimento e perseguições, porque quer que nos tornemos semelhantes a seu Filho.

Matilde pede para morrer após a santa comunhão: “Tu deves enriquecer-te mais ainda, pelo sofrimento”.

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“Gosto desta poção salutar que é o sofrimento, su-portado por amor de Deus”. “Dai-me vossa bênção!” -“Eu te abençôo com minhas chagas”.

Matilde de Helfta, +1299 Suas três grandes devoções são: os pecadores as

almas do purgatório e o clero. Sofrer é a graça de predile-ção, pela semelhança que se tem com Jesus: “Aceito as lágrimas derramadas por minha paixão como se alguém tivesse padecido por mim”.

Certa vez, Matilde ouve reboar no firmamento do céu o barulho das disciplinas que as monjas fazem pela salvação do mundo.

Jesus aparece sobre o altar, de braços abertos, san-grando abundantemente por todas as chagas: “Eis que todas as minhas chagas estão abertas a fim de desagra-var, por vós, ó Pai”.

Jesus: “Deposita todas as tuas penas em meu cora-ção. Eu lhes darei a perfeição mais absoluta que possa haver: o sofrimento. Confia tuas penas ao Amor... Minha paixão deu frutos infinitos para a terra. Teus sofrimentos, unidos à minha paixão, também darão grande glória aos eleitos, grande mérito aos justos, perdão aos pecadores, alívio às almas do purgatório”.

Jesus: “Eu absorvo em mim os teus sofrimentos e padeço em ti”. “Vamos. Reza pelos míseros pecadores. Eu os resgatei por grande preço, e desejo tanto sua con-versão!”

Na comunhão geral da abadia, na festa de Todos os Santos, Jesus dá de presente a cada religiosa a conver-são de mil pecadores.

Doente, Matilde aborrece-se com o acúmulo de a-tenções e alívio por parte das irmãs. Jesus: “Não te per-turbes. Sou eu quem, em verdade, suporta o que tu so-

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fres. Assim, os cuidados também me aproveitam”.

Gertrudes de Helfta, 1302 Jesus: “Não há na terra remédio mais eficaz contra o

pecado do que a devota recordação da minha paixão, u-nida à verdadeira penitência e a uma reta fé”.

Confessa Gertrudes: “Senti fazer pouco progresso até começar a rezar pelos pecadores, pelas almas do purgatório e por outras almas atribuladas”.

Recebeu cinco marcas do amor, os estigmas invisí-veis. Recebeu a ferida do coração. Recebeu em troca do seu, o coração de Jesus, e em gratidão canta louvor a Deus com a doce lira do coração de Jesus.

Jesus oferece-se a substituí-la no coro, no canto-chão, num dia em que estava rouca. Daí sua prece: “Ofe-reço-te, ó Pai amantíssimo, em expiação, todo o sofrimen-to do teu Filho bem-amado, desde o presépio até o último suspiro na cruz”.

“Será bom lembrar aos homens, diz Jesus, a vanta-gem para eles de recordarem-se sem cessar que eu, o Filho da Virgem, estou perante o Pai. E toda vez que eles cometem pecado em seu coração, por fragilidade, eu ofe-reço meu coração imaculado em desagravo ao Pai. Quando pecam com a língua, ofereço minha boca pura e inocente. Quando pecam por obra de suas mãos, apre-sento minhas mãos chagadas. E assim, em todas as de-mais faltas que cometem, minha inocência aplaca a ira do Pai, na mesma hora, para que se arrependam e alcancem fácil perdão. Por isto, eu queria que meus eleitos, todas as vezes que forem perdoados, me dirigissem ação de graças contínuas por ter-lhes obtido tão fácil perdão”.

Durante os três dias do carnaval, Jesus procura des-canso e consolo no coração de Gertrudes, pedindo-lhe preces, silêncio e penitência pela conversão dos munda-

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nos. Também durante o carnaval em outro ano, Jesus lhe diz: “Se desejas aliviar minha dor, deves suportar uma dor e colocar-te à minha esquerda”... E ela viu o Cristo flage-lado. Comovida, deseja socorrê-lo. Jesus: “Se alguém medita a paixão e se inflama de amor, e neste amor reza pelos pecadores, aplica ao meu coração o mais suave curativo e tira-me todas as dores”.

E no mesmo dia, no início da missa conventual, Ger-trudes ouve as palavras de Jesus: “Sê, ó bem-amada, minha protetora contra os insultos destes dias. Estou fu-gindo dos meus inimigos e tomei refúgio em ti”.

Gertrudes oferece-se a Jesus pela santa Igreja, co-loca-se ao seu total dispor. Jesus: “Então, entrega-me a chave da tua vontade”.

Jesus: “Desejo ser oferecido, cada dia, a Deus Pai por todos os pecadores, com o mesmo amor com que me ofereci na cruz”.

Jesus recomenda: “Após cada falta oferecer ao Pai, em expiação, sua paixão e morte”.

Jesus: “A melhor relíquia da santa cruz é meditar a paixão”.

Numa missa celeste, Jesus manda Gertrudes rezar o Pai-nosso unida ao seu Coração, pela Igreja e pela sal-vação de todos os fiéis

Crônica de Toess - 1300 As monjas dominicanas sabem que seus “Saltérios”

e suas austeridades (da regra e da iniciativa pessoal) ci-catrizam as feridas do Cristo padecente.

Gertrudes de Wintertur vê, na sexta-feira santa, o Homem das dores coberto de chagas durante o ofício re-ligioso, e ouve o murmúrio: “Estas preces curam minhas feridas”.

Adelheid de Frauenberg, gravemente doente, vê a-

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parecer ao seu lado o Cristo pregado na cruz. “Suporta com paciência, lhe diz; eu serei sua recompensa eterna”. Ardendo de desejo do céu, Adelheid pergunta: “Mas quando, Senhor?” - “É preciso que sofras ainda um pou-co”. Ela exclama: “Senhor, rasga minhas mãos, pés, cora-ção, cabeça e todo o meu corpo! E Jesus se ergue de todo curado: “Tu me curaste com tuas lágrimas de amor”.

Margarida de Hunikon, jovem ainda, padece, durante sete anos de cruel doença. Após a morte foi vista ao en-trar na glória, em numerosa e luminosa companhia, a de todas as almas que salvou com seu sofrer.

Matilde de Stans sofre com Jesus as cinco chagas. Sofia de Klingnau sente no coração a espada de dor

da Mãe Dolorosa.

Crônica de Colmar - 1300 Monjas dominicanas, na primavera do seu amor por

Cristo, dão testemunho: Benedita de Egisheim sente, após a santa comu-

nhão, o sangue de Jesus qual um rio caudaloso a invadir todo o seu corpo, purificando seu íntimo de todos os ví-cios.

Matilde de Winzenheim alcança a salvação eterna para dois de seus irmãos que eram piratas, homicidas devassos.

Estefânia Ferrete exilou-se, como vítima, pela con-versão de dois irmãos que assassinaram o próprio pai. Passa uma longa vida de doenças. Durante cinqüenta anos não teve nem um dia de alívio.

Herburg de Herkenheim, numa guerra entre dois ir-mãos, passa a noite em oração e alcançou a mútua re-conciliação.

Ana de Wineg, altamente mística, oferece-se todos os anos, na manhã da Páscoa, como “cordeiro pascal”.

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Oferece todos seus méritos para Deus distribuí-los aos vivos e defuntos, à sua vontade, “holocausto, gratuito e anual”.

Hedwig de Laufenberg vive rezando por Godofredo de Habsburgo, sobrinho e ajudante de ordem do impera-dor. Apareceu-lhe Jesus de braços abertos, com as cinco chagas. E em cada chaga a imagem de Godofredo.

Adelheide de Sigolsheim sempre se oferece como holocausto voluntário a Nosso Senhor. Sentia-se “cheia de Deus”. A fim de suportar o calor do amor divino, mer-gulhou no rio gelado, e depois passou a noite inteira no coro “suando”. Não quis tornar-se monja, nem leiga; ape-nas ajudante da cozinha.

Hedwig de Gebweiler especializa-se em libertar al-mas do purgatório. Entre elas está o seu irmão, condena-do a sofrer até ao fim do mundo.

Osana de Mântua, +1505 Coroada de espinhos e tendo recebido uma ferida no

coração, pede com ardor as outras chagas. Jesus: “Tu queres, pois, receber meus estigmas?”

“Oh, sim; que mais te dizer?” “Mas toma cuidado! As dores que desejas são cruéis

e acima de tuas forças. Talvez te arrependerás ao teu pedido!” “Nada será pesado demais para meus ombros, se tu me vieres em meu socorro”.

Liduvina de Schiedam, +1438 “Um grande exército de doenças invadiu o seu cor-

po”, narra um biógrafo antigo. Nos três primeiro anos so-freu com paciência e com a impaciência do desejo de sa-rar. Seguiu o conselho de confessor: de meditar sobre a paixão de Nosso Senhor, devoção que continuou pelos

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trinta e oito anos seguintes. Dividiu-a em sete partes, chamando-as de suas horas canônicas, diurnas e notur-nas. Só três anos depois sentiu e compreendeu a chama-da de Jesus para ser vítima. Sua comunhão nos primeiros anos era só na Páscoa, depois tornou-se mensal e nos últimos anos foi quase diária. Foi, aliás, a comunhão nos últimos dezenove anos o seu único alimento. Vomitou, com dores, uma hóstia não consagrada. Jejum contínuo. Nos primeiros anos, um pedaço de pão; depois, só líqui-do; um gole de cerveja ou de vinho de vez em quando. No fim, jejum absoluto.

Parece que fez quatro anos de noviciado para acos-tumar-se a sua nova profissão de vítima, até exclamar: “Se soubesse que poderia sarar rezando uma Ave Maria, não rezaria essa Ave Maria”.

Foi estigmatizada numa visão de Maria Santíssima e de Jesus adolescente, que se transformou no homem das dores, e retornou depois ao estado de menino crucificado. Os sinais eram visíveis até a morte.

O caso mais evidente de intercessão: uma flotilha de piratas aproximou-se para saquear a aldeia. Luduvina ofe-receu-se para sofrer mais e a flotilha, apesar do vento favorável, foi afastada por força misteriosa, para o alto mar.

Num êxtase, encontra seu avô na porta do céu que lhe diz: “Querida filha, não te posso permitir a entrada neste lugar. Seria uma calamidade para aqueles que ain-da têm necessidade de teus serviços. Ainda há pecados a expiar. Há almas do purgatório a libertar. Mas consola-te: será por pouco tempo”.

Camila Batista Varano, +1524 Vaidosa princesa da renascença, foi vestir-se do bu-

rel cinzento de Sta. Clara. Ainda menina de oito anos,

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começara a meditar sobre a Paixão todas as sextas-feiras. Pelos quinze anos resolveu fazer esta meditação todos os dias, várias vezes após o baile no palácio. Uma visão do Calvário orienta a clarissa definitivamente para o Crucificado. Resolveu que todos os seus dias seriam “sextas-feiras santas” em perpétua memória da Paixão. Ela põe reflexões e intuições na boca de Jesus e escreve: “Agradeça a Deus e de todo o coração pelos sofrimentos que meu amor te prepara. A púrpura do sofrimento, eis o ornato nupcial. O dom mais precioso que Deus te pode dar é o sofrimento. Tu também podes te negar. Mas sai-bas que recusando, recusas o bem supremo.

É uma grande graça evitar o pecado. É graça maior praticar o bem. A maior de todas é poder e saber sofrer por amor a Deus. Vou agir contigo como meu Pai me tra-tou. Vou carregar-te de todos os sofrimentos de que és capaz de suportar. E quanto mais te julgas abandonada por Deus, tanto mais perto dele estás”. “Os sofrimentos do meu coração (no jardim das Oliveiras), foram inúmeros, infinitos! Precisas lembrar-te que sou cabeça de um corpo do qual todos os cristãos são membros, membros inume-ráveis, dos quais a maior parte me foram, me são e me serão arrancados pelo pecado mortal, talvez repetidas vezes... e quantos, para sempre!... Quanto maior era o meu amor por eles, amor que se devia prolongar pelos séculos dos séculos, tanto mais me senti afligido ao vê-los abandonar-me e apegar-se a objetos indignos deles”...

Teresa d’Ávila Jesus: “Crê, minha filha! A quem meu Pai mais ama,

maiores trabalhos dá, de acordo com a grandeza do amor que tem por ti. Em que te posso melhor mostrar minha ternura do que em escolher para ti o que para mim esco-lhi? Olha estas chagas. Nunca serão iguais às tuas dores.

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É este o caminho da verdade. Seguindo-o, me ajudarás a deplorar a perdição em que andam os do mundo” (Rela-ções, 36).

Em quarenta anos pôde na verdade, dizer que ja-mais passou um dia sem dores e diversos padecimentos (Moradas, 6,1,7).

“Uma pessoa, (Sta. Teresa mesma) rezava muito a-flita diante do crucificado, considerando como nunca tive-ra nada que dar a Deus nem que renunciar por ele. Disse-lhe o mesmo Crucificado, consolando-a, que ele lhe fazia entrega de todos os trabalhos e dores que havia passado na paixão. Portanto, que os tivesse por próprios e os ofe-recesse ao seu Pai. Ficou tão rica e consolada aquela alma!” (Moradas, 6,5,6).

“Ponde os olhos no Crucificado, e tudo vos parecerá pouco. Se sua majestade nos mostrou seu amor com o-bras e tormentos tão estupendos, como quereis vós con-tentá-lo só com palavras? Sabeis como seremos verda-deiramente espirituais? Fazendo-nos escravas de Deus, marcadas com o ferro de sua cruz; dando-lhe toda a nos-sa liberdade, para que todo o mundo nos possa vender como escravos, como ele o foi. Pois, com isto, nos faz nenhum agravo; ao contrário, é não pequena mercê (Mo-radas, 7,4,8).

“Não temos vergonha de querer gostos na oração e de prorromper em queixas por causa das securas? Ja-mais vos aconteça isto, irmãs! Abraçai-vos à cruz que vosso esposo levou às costas, e convencei-vos que esta há de ser a vossa empresa. A que mais puder padecer, padeça mais por ele. Caberá a esta, a melhor parte” (Mo-radas, 2,7).

Desde moça, ainda no mundo, Teresa tinha o cos-tume de meditar a agonia no Horto, antes de dormir. “Te-nho para mim que minha alma ganhou muito” (Vida, 9,4).

Anos mais tarde Jesus se queixa: “Ah, filha, quão

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poucos me amam de verdade! Se me amassem não lhes encobriria eu meus segredos. Sabes o que é amar-me de verdade? É compreender que é mentira tudo quanto não me agrada” (Vida, 40,2).

“Nas minhas preces tinha receio de não ser atendida por causa dos meus pecados. Apareceu-me o Senhor e começou a mostrar-me a chaga da mão esquerda e com a outra mão tirava um grande cravo que nela estava meti-do. Parecia-me que, junto com o cravo, arrancava tam-bém alguma carne e deixava ver sua grande dor... Disse-me: quem tinha passado aquilo por meu amor, sem dúvi-da faria o que eu lhe dissesse e pedisse... não duvidasse eu de suas promessas” (Vida, 39,1).

Nos Carmelos, Jesus encontrou sem dúvida quem o amasse assim. Exclama Ana da Trindade: “No sofrer nun-ca se deve parar e tomar fôlego, mas correr sempre para frente”. Isabel dos Anjos, rica e única herdeira, suprimiu do Saltério, certos versículos. A mestra descobriu a pie-dosa fraude e chamou-lhe a atenção. “Perdão, madre, mas como vou pedir consolação se só mereço castigo?”

A madre fundadora tão pouco é capaz de pedir outra coisa: “Ou morrer ou sofrer” (Vida, 40,20). Mas ela acres-centa para nosso consolo: “Disse-me uma vez Jesus, consolando-me com muito amor, que não me afligisse; pois nesta vida não podemos permanecer sempre no mesmo estado. Umas vezes teria eu fervor e outras não. Ora sofreria desassossego e tentações, ora gozaria de grande paz. Mas pusesse nele minha esperança e não tivesse medo” (Vida, 40,18).

Passando por certos sofrimentos, Jesus aparece-lhe e diz: “Pesa-me, filha, o que padeces; mas isto te convém agora” (Relações, 26).

Após a comunhão, num domingo de Ramos, “pare-ceu-me que minha boca estava toda cheia de sangue, e também o rosto, e toda inteira me achava inundada nele.

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E sentia-o quente: “Filha, quero que meu sangue te seja de proveito. Não receie que te falte minha misericórdia. Eu o derramei com muitas dores e tu gozas dele com tão grande deleite... Bem te peço e pago o banquete que me ofereces neste dia (por ter comungado)” (Relações, 26).

“Pensas, filha, que o merecer consiste no gozo das consolações? Não, mas sim em trabalhar por mim, em padecer e em amar” (Relações, 36).

“De que afliges, pecadorazinha? Não sou eu o teu Deus? Não vês como fui maltratado? Se me amas por que não te compadeces de mim?” (Relações, 27).

“(No auge da união mística, as almas) não desejam morrer, mas querem viver muitíssimos anos, padecendo dores e gravíssimos trabalhos... Unicamente cobiçam po-der ajudar, de algum modo, o Crucificado, vendo-o tão ofendido e tão poucos ocupados em zelar pela honra de Deus” (Moradas, 7,3,5).

“Custe-lhe isto o que custar, pois quer padecer, e seu único desejo é que ainda uma só alma vos louve um pouquinho mais por sua causa... Sacrificaria mil vidas se tantas tivera” (Moradas, 6,6,4).

São João da Cruz São João da Cruz diz que o amor pelo bem do pró-

ximo nasce da vida espiritual e contemplativa: “Declarou Jesus que ele devia permanecer na obra

de seu Pai, que é a redenção do mundo, o bem das al-mas... Disse o Areopagita: das obras divinas, a mais su-blime é cooperar com Deus na salvação das almas. É a suprema perfeição... ser cooperador de Deus na conver-são das almas. Por isso, Cristo Jesus e Senhor, as chama “obras de seu Pai”, “interesses de seu Pai”. É uma verda-de evidente que a comiseração pelo próximo tanto mais cresce quanto mais a alma se une com Deus, em amor...

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Parece-lhes pouco ir sozinhas ao céu. Com ânsia, procuram levar muitos consigo. Desejo que nasce do grande amor que têm por Deus. E é propriamente fruto e efeito da oração perfeita e da contemplação” (Depoimento de Fr. Eliseu).

Madalena de Pazzi, +1609 Penitencia-se, padece e pede a Deus mais sofrimen-

tos pela conversão dos pecadores. Pega de um crucifixo e reza: “Tu, ó Senhor, quiseste morrer na cruz e doar todo o teu sangue pelos pecadores. Eu também quero dar todo o meu sangue e minha vida para que eles se convertam”.

Recebeu a coroa de espinhos. Foi estigmatizada. Recomenda-nos oferecer o sangue de Jesus pelos peca-dores. Ela o fazia cinqüenta vezes por dia. “O Sangue de Jesus adorna as almas como a primavera adorna a terra de flores”.

“Uma das razões pelas quais Deus nos tirou do mundo, é para auxiliarmos a Igreja na conversão dos pe-cadores”.

Aconselhava pedir a conversão de tantos pecadores quantos passos damos pelos corredores dos mosteiros... Quantas palavras pronunciamos no Ofício Litúrgico... quantas agulhadas damos na costura...

Jesus confirma: “Podeis socorrer a todas as minhas criaturas. Ide, ajudai a estas pobres almas que se per-dem. Oferecei-me vossa vida”.

Rosa de Lima, +1617 Jesus: “Quero que me honres com a prática de uma

severa abstinência. No mais, não te preocupes com os resultados. Quem deu sua vida por ti na cruz. quem te

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remiu derramando todo o seu Sangue, quem enche tua alma de graças saberá tomar cuidado de teu corpo e sus-tentá-lo sem o alimento de carne. As leis da natureza fo-ram feitas por mim, mas não para mim”.

Comentando aquele leito de cacos de cerâmica no qual a santa “descansava” por dezesseis anos, diz Jesus: “Lembra-te, filha, que o leito da cruz sobre o qual eu a-dormeci no sono da morte era mais duro, mais estreito, mais horrível que o teu. Eu não dormi sobre pedras, mas pregos de ferro me amarraram e me sangraram. O fel também não me foi poupado... Pensa em tudo isto quan-do estás fraquejando; e teu amor por mim te dará forças e coragem”.

“O sofrimento é sempre a companhia da graça. A graça é proporcional à dor. A media dos meus dons au-menta com a medida das provações”.

“A cruz é a verdadeira, a única escada para subir ao céu”.

Madalena de São José, OCD +1637 Primeira priora carmelita francesa. Em 1622, quinze

anos antes da morte, “foi-me revelado que o grau de gló-ria, que me estava predestinado na glória da eternidade, estava atingido, e que podia, se quisesse, sair da terra. Eu vi que minha vida, daí em diante, seria para os outros não para mim”.

Outra carmelita de Paris ouviu a voz: “É por suas preces que teu filho (morto num duelo) se salvou; pois ela salva as almas aos milhares”.

O sofrimento é algo tão grande que Deus, ao encon-trar uma alma disposta a sofrer, revira céus e terra para arranjar um carregamento dessa mercadoria.

A suprema finalidade da vida no convento é indicada por Hb 10,5 (Cristo-vítima). “Ó amor, visto que és tão po-

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deroso, como consegues operar com tão pouco barulho? Estás sempre tão escondido”.

Maria de Vallés, +1956 Cuidando de um velho sacerdote doente, acamado,

este mandou-a assistir à Missa dominical. Maria respon-de: “Minha missa é cuidar de vós, enquanto estais preci-sando de mim”.

Ficou oito dias sem poder dormir de alegria por ter sido injuriada por um religioso.

Certa vez pediu a Nosso Senhor a partilha de bens e haveres dele e dela. Que cada um leve o que é seu. “Ora essa , respondeu o Filho de Deus, afora de três coisas, tudo é meu. Teu primeiro apanágio é o “nada” do qual foste tirada. O segundo é o pecado. E teus tesouros e riquezas são, em terceiro lugar, a ira de Deus e as penas eternas. Eis o que vós sois e de que os filhos de Adão se podem gloriar”.

Desgraças estão prestes a cair sobre a Igreja, por-que há mais justiça entre os soldados do que entre os prelados. E de todas as classes do mundo, são eles que em maior número povoam o inferno.

Poucos são capazes de usar bem das riquezas. Pre-cisa-se de um bom estômago para digeri-las... A maior parte do povo pobre se salva. Não entre a nobreza, pou-cos homens da justiça (da lei), e poucas entre as belas demoiselles se salvam.

A um austero pregador Maria desaconselhou as pe-nitências e jejuns excessivos, à medida que dificultavam a pregação, pois “a abstinência não é boa quando impede um bem público”.

Em 1645, Jesus deu-lhe um veneno e um remédio para matar seu amor próprio e viver só para Deus. Os ingredientes do remédio: dar, receber e pedir. Dar sua

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vida humana. Receber a vida divina. E pedir ardentemen-te e sempre a salvação do próximo.

“A casa dos perfeitos é o Nada. O caminho da per-feição é renunciar-se. Poucos o alcançam. A maioria mor-re no caminho”.

“Quem és tu? pergunta Jesus, e ele mesmo respon-de: tu és minha casa de veraneio. És meu castelo. És meu leito nupcial, isto é, a cruz sobre a qual sofro. Reves-ti-me de tua carne, e por isto, teus sofrimentos têm valor infinito”. Sendo vítima, ela carrega sobre si todos os pe-cados do mundo. Sem fé, sem esperança, sem amor, sem consolação... vivendo na morte.

Jesus: “Tu és minha cruz viva, minha cruz na qual estou sofrendo. Com uma diferença: a minha primeira cruz era insensível, enquanto que esta segunda cruz é sensível e eu, insensível”.

Jesus: “Tu és bem atrevida em chamar-me de teu esposo”. Maria: “Nada de atrevida; espera um pouco, por favor! Vou mostrar-te como me desposaste. Desposaste-me na cruz. As batidas do martelo eram os violinos das núpcias O fel fazia de vinho no banquete nupcial. As blas-fêmias eram as conversações de regozijo, etc. Então, não é verdade que és meu esposo?”

“Os sofrimentos são meu amor e minha vida”. “Nos-so Senhor tirou meu coração, e deu-me o seu que está cheio de todos os desprezos, dores e sofrimentos de sua paixão”.

Por duas vezes as chagas de Nosso Senhor apre-sentaram-se em forma de cinco estrelas, pedindo hospe-dagem, e Maria ofereceu-lhes seu coração. Jesus: “Se estivesses só, teus sofrimentos não teriam valor nenhum. Mas visto que os sofri em ti, têm um valor inestimável”.

Maria: “Meu paraíso são as almas... cada uma é um espelho no qual contemplo a ti. Embora eu seja a última de todas, terei a alegria de todas”. Jesus: “Mas entre es-

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sas há algumas que são piores que o diabo”. Maria: “Mesmo que cada uma seja mais fechada e mais endure-cida que todos os diabos juntos, eu as converterei a to-das, e cantarei o hino de Sta. Inês: “Quod concupivi”... consegui o que desejei. Podes tomar outra esposa... mas eu não irei mudar de esposo, só por isto”.

Ela vira a beleza da alma no momento da criação, antes de contaminar-se pelo pecado original, e comentou: “Não me admiro mais que Deus tenha descido do céu pa-ra salvar tão belas criaturas”.

Maria: “A paixão é uma Missa, e sofrer é assistir a ela”.

“Há três dilúvios para destruir o pecado. Um dilúvio de água do Pai Eterno. O segundo, do Filho: um dilúvio de sangue. O terceiro, do Espírito Santo, será um dilúvio de fogo”.

Ao rezar “ó Cristo, rei do céu e da terra”, Jesus inter-rompe bruscamente: “Não da terra. Na terra reina o peca-do. Mas logo irei expulsar e destruir este monstro e reina-rei em todo o universo”.

Maria Santíssima pede-lhe orações a fim de abreviar o tempo em que os maus pastores devam reinar na Igreja.

Ela há de cantar uma canção tão suave que Jesus esquecerá sua cólera contra os pecadores. Ela vai curar Jesus de suas “iras”.

Foi-lhe dito que se lhe exige só uma palha em pa-gamento de dez mil sacas de trigo. “Eis como tu aumen-tas minha glória. Tuas maiores obras e sofrimentos são uma gota d’água lançada no mar imenso da minha glória”.

Ana Maria Clement, +1661 Jesus mostrou-lhe seu coração: “Vê o amor que te-

nho por ti e como nele está gravado teu nome e o nome

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de todos os homens”. Na quaresma de 1631, ela acompanha em visões

todas as fases da Paixão. Olhando as cordas que amar-ram Jesus, ele chama sua atenção: “Olha, antes, meu Coração; não é este cordame que me tem acorrentado, mas os laços de amor”.

“Não pretendo fazer-te estas promessas à maneira dos homens, mas à maneira de Deus”.

A cena do Pretório, Jesus cuspido, esbofeteado: “Não é tua alma a imagem da minha face divina? As cria-turas, que são amadas com uma afeição desordenada, são como um escarro que fazem sobre esta imagem de minha santa face. Todas as vezes que cedes a uma afei-ção desregrada, estás cuspindo em meu rosto”.

Vendo Jesus na coluna da flagelação, pergunta por que ele sofria tormento tão grande por criaturas tão ingra-tas. Reiterou a pergunta várias vezes. Por fim, Jesus res-pondeu: “Quem ama, atura”. Ela insistiu para sofrer junto. Então Jesus colocou-a ao pé da coluna, dizendo: “Eu sou a árvore da vida, carregada de frutos, descansa em sua sombra”.

“Quando te afeiçoas a uma criatura, tu me fazes so-frer a mesma violência que senti quando me arrancaram as vestes depois da flagelação”.

“Minhas chagas são portas abertas”. “Despregar Jesus da Cruz significa retirar o próximo

do pecado”, diz-lhe Maria Santíssima.

Francisca da Mãe de Deus, +1671 Jesus: “Já não posso sofrer pelos homens; sofre

pois em meu lugar e por mim. Se soubesses quão grande é o número dos que me ofendem! E quão pequeno é o número de almas que me permitem tratá-las como quero!” “Vê todo esse povo que apostatou da fé. Morri por todos

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eles, e não há um sequer que me ame. Quero que me ameis em lugar deles, e façais todos os dias alguma peni-tência pela sua conversão”.

“Em cada comunidade escolho alguns para tomar conta dos meus negócios, e cuidar dos meus interesses. O mundo, há tempo, já estaria no abismo sem essas al-mas e sem as orações dos meus amigos”.

Maria da Encarnação, ursulina, +1672 Na idade de trinta e quatro a trinta e cinco anos tem

uma visão do Canadá, sem saber nem o nome nem a e-xistência desse país: “Era uma emanação do espírito a-postólico, que não era outro senão o espírito de Jesus Cristo... zelo por sua glória, a fim de que fosse conhecido e adorado por todas as nações... O espírito de Jesus le-vava-me em pensamento às Índias, ao Japão, à América, ao Oriente, ao Ocidente, por toda a terra habitada. Eu via, por uma certeza interior, o demônio triunfar nessas pobres almas... que ele arrancava do poder de Jesus Cristo, que as tem resgatado com seu precioso sangue. A essa vista, entrei em ciúme; abraçava todas essas pobres almas e apresentava-as ao Pai Eterno, dizendo-lhe que já era tempo de fazer justiça em favor de meu esposo. Que ele bem sabia ter-lhe prometido todas as nações em herança. Tanto mais que ele tinha satisfeito com seu sangue por todos os pecados da humanidade.. Em espírito eu deam-bulava naquelas grandes vastidões e acompanhava os operários do evangelho”...

“Ó Pai, por que estás demorando? Há tanto tempo que meu bem-amado derramou seu sangue! Agora, eu solicito, no interesse de meu esposo, que cumpras a tua palavra, ó Pai, pois lhe tens prometido todas as nações”.

“Eu via que o Pai Eterno gostava das minhas de-mandas em causa tão justa; mas que faltava alguma coi-

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sa que ele queria de mim para atender-me”... “Pede pelo coração de meu Jesus, meu tão amável Filho. Por ele eu te atenderei”.

“Ó Jesus, tu sabes de quantas almas me encarre-guei para apresentar todos os dias ao teu Pai sobre o al-tar de teu Coração divino. Trata, pois, dos meus negó-cios”.

Margarida Alacoque, +1690 Jesus apareceu-lhe, segurando em cada mão um

quadro. Num, via a vida mais feliz que uma religiosa pos-sa imaginar e desejar: paz, consolações internas e exter-nas, saúde, estima, amizades. O outro quadro represen-tava uma existência pobre, humilde, desprezada, com cruzes contínuas, humilhações e contradições de toda espécie, com sofrimentos contínuos do corpo e da alma. Jesus mandou escolher a gosto e à vontade.

“Qualquer que for tua escolha, receberás as mes-mas graças”. Margarida recusa-se a escolher: “Só quero a tua vontade, ó Jesus!” Jesus insiste diversas vezes, de-clarando-se indiferente. Por fim, falou: “Está bem. Maria escolheu a melhor parte. Eu mesmo desejo ser tua heran-ça”. E entregou o quadro doloroso. “Eis o que escolhi para ti... para te tornar semelhante a mim; o outro é uma vida de gozo e não de méritos; fica para a eternidade”... Mar-garida abraçou o quadro, apertou-o ao coração, sem dei-xar de sentir um frêmito de temor.

Numa outra vez, contemplando Jesus na Cruz, Je-sus a abraça fortemente: “Recebe esta cruz e planta-a no teu coração. Tem-na sempre perante os olhos, e carrega-a em teus braços... Terás fome e sede sem ser saciada. Terás ardor, sem alívio”.

“Dar-te-ei este Coração, diz-lhe Jesus, mas antes deves entregar-te como vítima”. Margarida sente pavor e

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receia dizer sim. Uma visão mostrou-lhe então, a justiça divina armada para o castigo.

“Eu ter-me-ia contentado, diz Jesus, com um sacrifí-cio secreto. Mas agora, quero um público. Serás humilha-da a ponto de ficar envergonhada para todo o resto de tua vida. Quero mostrar-te o que significa resistir a Deus”.

Vendo Jesus prestes a descarregar o castigo da jus-tiça divina sobre as almas, Margarida intercede. Jesus cede no fim, mas: “Contanto que tu me pagues”. Margari-da: “Sim, de bom grado. Mas eu pago só com teus pró-prios bens, com os tesouros de teu Coração”. Jesus con-cordou.

Certa vez, Jesus lhe diz: “Irei colocar uma cruz dura e pesada sobre teus fracos ombros. Mas sou bastante poderoso para te sustentar. Não temas. Deixa-me agir”.

A trinta e um de dezembro de 1678, Jesus exige uma doação total, mas por testamento e por escrito. Mar-garida gravou com um canivete o nome de Jesus sobre o peito, e assinou com seu sangue derramado o documento exigido. Jesus retribuiu-lhe declarando-a herdeira dos te-souros do seu Coração, com poder de dispor de tudo.

A resposta foi celestial. “Tudo quanto se pode cha-mar gosto e prazer, tornou-se sofrimento para mim”, diz Margarida. É o conhecido estribilho: “Dios solo”.

Seja lembrado que Margarida levava a ferida do a-mor no coração, invisível, mas sempre dolorida.

Certa ocasião, em troca da cura de uma doente, Je-sus exige os seguintes três pontos que Margarida aceita sem recusar: um cargo no convento, ir à sala de visitas, escrever cartas. São penitências apenas para os santos. Para nós outros... nem é preciso mandar.

Apareceu-lhe São Francisco de Sales e disse: “Uma verdadeira filha da Visitação deve ser como Jesus Cristo, uma hóstia viva”. E Sta. Joana de Chantal confirma: “As filhas da Visitação devem alegrar-se apenas na cruz, e

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gloriar-se somente nas humilhações. A sua vitória está unicamente na cruz”.

Margarida vê uma grande cruz coberta de flores. Je-sus: “Eis o leito nupcial das minhas esposas. Pouco a pouco caem as flores e restam só os espinhos encobertos por elas”.

“Estou procurando uma vítima para meu coração, a qual se deixe sacrificar como hóstia de imolação”. Marga-rida escusa-se como indigna de tal escolha. Jesus: “Mas é por isto que te escolhi”.

Uma visão da Santíssima Trindade: Deus Pai apre-senta-lhe uma cruz pesada, toda crivada de espinhos, acompanhada dos demais instrumentos da Paixão. “Vê, minha filha! Asseguro-te: Eu fiz este presente ao meu Fi-lho bem-amado. Faço a ti o mesmo”. Jesus intervém: “Eu mesmo te pregarei nela, da maneira como eu fui pregado, e te farei fiel companhia”. O Espírito Santo acrescentou: “Eu, que sou só amor, te consumirei purificando-te”.

Hora santa: “Todas as quintas-feiras, das onze às doze horas da noite, far-te-ei participar da minha tristeza mortal no Jardim das Oliveiras. Quero que rezes durante essa hora com o rosto no chão, tanto para aplacar a cóle-ra divina, pedindo misericórdia pelos pecadores, como para suavizar um pouco a amargura que senti pelo aban-dono dos apóstolos. Durante essa hora tu farás o que te direi. Foi aí que sofri mais que em todo o resto da minha Paixão, por ver-me num abandono total do céu e da terra. Carregado de todos os pecados de todos os homens, a-pareci perante a santidade de Deus que, sem considera-ção por minha inocência, me castigou em sua ira, fazen-do-me beber o cálice que continha todo o fel e amargura de sua justa indignação. Como se estivesse esquecido de ser meu Pai, para sacrificar-me à sua justa cólera. Criatu-ra alguma é capaz de compreender a grandeza dos tor-mentos que então sofri”.

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Margarida foi sempre perseguida pelo demônio, so-frendo todas as tentações humanas, com exceção da pu-reza, até que um dia a superiora mandou que represen-tasse o rei da França diante do Santíssimo Sacramento. “Estando lá, senti-me tão fortemente atacada pelas tenta-ções mas abomináveis de pureza que me pareceu estar já no inferno. Durou várias horas, até a superiora suspender a ordem, substituindo-me por uma boa religiosa. E logo cessaram minhas penas”.

Ignoramos se Margarida teve a felicidade de ver o i-nício da devoção ao Sagrado Coração. Em 1690 decla-rou: “Neste ano vou morrer, porque não estou mais so-frendo nada”.

Verônica Giuliani, +1727 Jesus mostra-lhe suas chagas: “Estas chagas, eu as

pus em ti para o bem das almas e de todo o mundo. Mas não encontro pessoas que as queiram receber. Não há mais fé em mim. Todos apoiam-se em criaturas tão fracas como elas”.

Jesus, segurando na mão o cálice da paixão: “Vê minha bem-amada. Contempla estas chagas. Elas são outras tantas vozes que te convidam a beber esta amar-gura que te dou. Quero que a experimentes”.

Em 1713, Maria Santíssima avisa: “Os cristãos não têm mais fé. Vivem como ateus. Desprezam os Sacra-mentos. Profanam o sangue de meu Filho... Se os padres querem que Roma escape aos turcos, devem fazer pro-cissões de penitência”.

Pela conversão dos pecadores e pelo resgate de al-mas do Purgatório, Verônica sofre a paixão de Jesus, ou passa pelas torturas do Purgatório. Jesus: “Teu repouso será sofrer pela salvação das almas”.

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Ana Madalena Remuzat, +1730 Ainda interna no pensionato, recebe a visita de Je-

sus: “Minha filha, estou procurando uma vítima”. A menina indica ingenuamente, várias religiosas que lhe pareciam as mais santas. Jesus responde cada vez: “Não é essa que eu quero”. Por fim, lhe diz: “Minha filha, é a ti que es-colhi”.

“Achei-me revestida e penetrada pela glória de Deus, que me introduziu no conhecimento pelo qual ele se conhece; e no amor pelo qual ele me ama”.

“Parecia-me que a cada instante se me metiam grossos pregos nos pés e nas mãos. Que se queimavam o peito e os lados”.

“Nosso Senhor propôs-me escolher: ou que os es-tigmas aparecessem externamente, o que diminuiria mi-nhas dores e levaria os homens a louvar as maravilhas divinas, ou que esses estigmas ficassem sempre invisí-veis, e suas dores mais violentas, o que o glorificaria mais ainda. Ofereci-me àquilo que mais contribuiria à glória do meu Salvador, e pedi a ele que escolhesse. Sua escolha caiu sobre o aumento das dores”.

Maria José Koumi, +1817 “Escolha: ou carregar os castigos que estes povos

(vistos na visão) merecem, ou viver nas consolações da minha intimidade”. Josefa escolheu o sofrimento. “Muito bem. A coroa das tribulações cairá sobre tua cabeça e será tua coroa de glória” (1806).

“Nenhuma esposa me é mais cara que aquela que se sacrifica pela salvação do próximo... Tanto desejas unir-te a mim pelo amor, tanto deves desejar a salvação do próximo”. “Mergulha teu dedo na abertura do meu lado

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para aspergir o mundo com meu Sangue”. Rezando por pecadores que se encontravam na imi-

nência de morrer e cair no inferno, e sofrendo horrores por eles, Jesus apareceu-lhe: “Prometo-te, por cada gota de sangue que foi arrancado do teu coração, prometo-te arrancar uma alma das trevas do pecado”.

Ana Maria Taigi, +1837 Pobre mulher romana, casada com um pobre em-

pregado, mãe de sete filhos, foi escolhida por Deus para proteger a Igreja contra a revolução francesa, contra Na-poleão e contra os carbonários. Jesus lhe diz: “Eu te es-colhi para ser mártir. Tua vida oferecida para o sustento da fé, será um martírio, mais longo e mais meritório do que o martírio, mais longo e mais meritório do que o mar-tírio de sangue. Eu mesmo te conduzirei, levando-te pela mão, ao altar do sacrifício”.

Deus impôs, como quebra-ondas, uma frágil mulher contra a inundação da impiedade. Ana Maria sabia ler, mas não sabia escrever. Sabia porém rezar e sofrer por amor de Deus.

Elisabetta Canori-Mora, +1825 Idêntica a missão desta contemporânea de Ana Ma-

ria Taigi. Como ela, mãe de família e romana. Em 1814, Jesus pede-lhe para ajudá-lo na defesa da Igreja que a-meaçava ruir. Jesus pede-lhe que se ofereça ao Pai como vítima de expiação pelos pecados do mundo. Que reze com fervor pelos interesses da Igreja. Que renuncie aos méritos de todas as suas boas obras. Que esteja disposta a qualquer sofrimento.

Em Sta. Maria Maggiore, nas mãos da Mãe de Deus, faz uma consagração formal e continua sua missão até a

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morte.

João B. Vianey, Cura D’Ars, +1859 A um sacerdote, que se queixava de não poder

transformar o coração dos seus paroquianos, o santo de-senvolve todo um programa de apostolado, full-time, nu-ma linguagem ardente: “Mas fez tudo o que podia? Re-zou? Chorou? Gemeu? Suspirou? Jejuou? Fez vigílias? Dormiu em cama dura? Duplicou as disciplinas? Enquanto não chegou a isto, não pense ter feito tudo” (Espírito do Cura D’Ars).

Na Santa Missa costumava rezar: “Pai Eterno, dai-me a alma daquele pecador e eu te dou em troca a alma de teu Filho”.

“Quase somos mais felizes do que os habitantes do céu, porque eles só podem gozar os juros, enquanto nós ainda podemos aumentar o capital... sofrendo”.

“Se as pessoas soubessem quanto valem as cruzes, elas iriam roubá-las”.

Emília Schneider, +1859 “Eis como me ferem os meus com seu amor come-

dido, frio. Se queres, podes curar-me estas feridas.” “Este amor que viste, quase não é conhecido, e menos ainda é correspondido. Mas tu que o ames e o faças conhecido”.

“Sabes quão grande é meu desejo de manifestar in-timamente este meu amor já nesta vida, e comunicar-lhes este amor em abundância”.

“Nunca teria acreditado, se não o tivesse experimen-tado, quão grande é o sofrimento de não ter sofrimento”... “Continuo a ter grande desejo de sofrer.” Jesus: “Teu de-sejo será saciado. Mas não tremas. Estou ao teu lado”.

Jesus mostra-lhe seu Coração chagado e diz-lhe

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com suave tristeza: “Muitas almas lamentam minhas do-res, mas poucas, muito poucas querem sofrer comigo... Vou dizer-te quais as almas que me causam maior prazer, e com as quais eu me comunico de modo mais íntimo. São as almas mais abnegadas, a rezar silenciosamente aos meus pés. Mas poucos entendem isto”.

Rezando e suplicando pela multidão que vive no er-ro, aparece-lhe Jesus mostrando as santas chagas: “Eis as fontes de todas as graças. Sacia aqui teu desejo. E tira daqui por aqueles que não podem. E conduze as almas a estas fontes da vida”.

“Agora eu tenho receio de ouvir a palavra chaga; fico tão comovida que mal consigo escondê-lo”.

“Vi na Santa Missa como Jesus se oferece por nós ao Pai... vi como as partes que cada alma recebe deste sacrifício são diferentes... de acordo com a disposição”.

“Sofro ao ver que o amor inefável não é correspon-dido ou o é tão pouco! Implorei o aumento deste amor nos corações humanos”. Jesus responde-me: “Eles mesmos não querem; mas não deixes de rezar por todos”. “Olha mais meu amor que tua nulidade. De ti nada mais deve ficar; deves cessar de existir”... “Senti que havia um só Deus em mim’.

“Esta fonte da qual tu provaste uma gota (coração de Jesus) está aberta para todos. Mas eles não se apro-ximam. Tira para ti e para eles”.

Beatriz Schumann, +1887 Jesus aparece-lhe coroado de espinhos, tendo na

mão outra coroa menor, procurando candidatos. Ela vê uma tríplice coroação: logo depois da flagela-

ção, depois da sentença de Pilatos ao revestir a túnica, e no Calvário ao tirar a túnica. Vê com freqüência a Santa Face, a cabeça coroada de espinhos e ensangüentada,

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implorando compaixão e participação no sofrimento. No cárcere, os verdugos furam a língua de Jesus com um prego recurvo, deixando-o até de madrugada.

Maria Brotee, +1888 Jesus pede-lhe penitências corporais: para começar,

duas disciplinas ao dia, reforçadas com alfinetes. Uma veste, guarnecida de alfinetes, para revestir o tronco; o primeiro modelo, tipo escapulário, fora recusado por Je-sus. Maria protesta: “Mas eu não agüento mais isto”. Je-sus: “É verdade; mas apoia-te em mim e não em ti”. Uma coroa de espinhos, feita de alfinetes, “a ser usada cons-tantemente”. Rezar a via-sacra todas as noites, carregan-do no ombro uma cruz pesada de ferro. De nunca se dei-tar na cama, nem de noite.

“Para tudo, busca força em meu coração”. Jesus, em seguida, a faz participar de seus próprios

padecimentos. “Minha filha, venho visitar-te porque te amo. O amor prova-se pelo sofrimento. Eu sofri por ti. É justo que tu sofras por mim. Teus sofrimentos ganham grande valor por sua missão e união com os meus. Eu os distribuo como quero pelas almas”.

“A semana santa é uma semana de dor, mas é dor de amor... Como desejo sofrer os sofrimentos de Jesus!... Jesus procura almas que queiram servi-lo não só na ale-gria, mas nos sofrimentos, nas humilhações, nas ignomí-nias. Almas que queiram segui-lo em tudo. Tais almas é que ele procura, que ele ama.”

“Filha da cruz, sobe na cruz, pois ficarás pregada nela até que eu mande descer. E se eu quero deixar-te até à morte, ficarás. Não me peças mais para descer; é inútil. Quando pedi ao meu Pai que afastasse este cálice de mim, respondeu-me que não. Eu também te digo não. E todavia, eu te amo muito. Mais do que tu pensas. Por-

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que te amo, por isso é que trato desta maneira...” “É a ti que confio as almas de teus irmãos. Tu és a

responsável pelos teus irmãos... As almas atormentam-se, não se apóiam suficientemente em meu amor. Preo-cupam-se demasiadamente consigo mesmas, e não o suficiente com a alma de seus irmãos. Que elas me apre-sentem seus irmãos, e depois coloquem-se ao meu dis-por, irrestritamente. Feliz quem compreende isto e o prati-ca”.

Vendo o sofrimento angustiado de Jesus no mundo de hoje, Maria exclamou: “Quanto tempo vai durar isto?” Jesus: “Para mim vai durar até ao fim do mundo. Para ti terminará e será substituído pela glória”.

Lourdes e Fátima A mensagem mariana destas aparições visa clara-

mente a expiação. Em Lourdes, a Imaculada repete três vezes: penitência, penitência, penitência! Sua confidente, Bernadete, ofereceu sua vida como vítima. “Estou sofren-do, mas estou contente em sofrer”. “Estou moída como um grão de trigo... Terei sempre o suficiente em saúde, mas jamais bastante amor por Jesus... Esqueçam meu pobre corpo: ele vai bem; mas rezem por minha pobre alma... Com Jesus sou mais feliz sobre meu leito do que uma rainha sobre seu trono”.

Doente para morrer, Bernadete recebe a visita de uma superiora. Esta lhe diz, brincando: “O que está fa-zendo aqui, pequena preguiçosa?” “Querida madre, estou, estou exercendo minha função, meu emprego”. “Qual?” “O de estar doente”.

Encarrregada por Maria Santíssima de rezar todos os dias pelos pecadores, é sua última preocupação na agonia: “Quem vai rezar agora pelos pecadores?”

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Nossa Senhora interessou-se em conseguir substitu-tos. Pede aos três pastorinhos de Fátima o terço diário pelos pecadores. Como “estímulo” mostra-lhes uma visão do inferno. Francisco e Jacinta morrem ainda crianças como vítimas.

Nossa Senhora de Fátima ensinou-nos a prece das vítimas: “Meu Deus, eu creio em vós; eu vos adoro; espe-ro em vós, amo-vos. Por todos aqueles que não acredi-tam, que não adoram, não esperam, não vos amam”.

Míriam de Abellin, +1878 Nascida de pais pobres, greco-católicos, numa pe-

quenina, paupérrima aldeia da Galiléia, a quinze quilôme-tros de Nazaré. Órfã de pai e mãe aos três anos. Entre cinco e sete anos ouve o primeiro convite de Jesus: “Se quiseres dar-me teu coração, ficarei sempre contigo”.

Desde os cinco anos jejua todos os sábados, em honra da Virgem, até a hora do jantar. A partir dos sete anos, confessa e comunga todos os sábados.

A família do seu tio-tutor muda-se para Alexandria, no Egito. Com paterna bondade, o tio arranja-lhe um ca-samento aos treze anos. Mas Míriam quer ficar virgem; corta suas tranças e permanece firme, apesar do conse-lho do confessor e de um bispo.

Jantando certo dia numa família amiga, mas muçul-mana, recusa o convite de passar à religião de Maomé. O homem enfurece-se de tal modo, que a maltrata com pon-tapés, e no fim corta-lhe o pescoço, jogando seu corpo numa rua deserta. Uma religiosa de hábito azul (Nossa Senhora) fez-se sua enfermeira, numa gruta abandonada, durante quatro semanas; predisse a viagem à França, o ingresso no Carmelo, e sua morte em Belém da Palestina.

Míriam contou que passou várias horas no céu. Mas por fim, surgiu um anjo a dizer-lhe: “És virgem, sim, mas

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tua agenda não está terminada”. E ela acordou numa gru-ta, tendo a seu lado a religiosa vestida de azul (1856). Prova da realidade, a larga cicatriz de lado a lado no pes-coço.

Passa sete anos como empregada em Alexandria, Jerusalém e Beirute. Vive pobre e dá seu salário aos mais pobres. Em 1853, chega a Marselha como empregada de uma família síria. Dois meses depois, o primeiro êxtase de duas horas, tido por síncope cardíaca. O segundo durou quatro dias, e neste Deus pediu-lhe que fizesse jejum a pão e água durante um ano.

Vocação religiosa. Mas aos vinte anos, parece uma menina de onze anos. Miudinha, não sabia falar francês; sem dote, a não ser alguns pobres vestidos. Postulante, na congregação de São José, surgem de novo os êxta-ses. A superiora proíbe-os, em nome da obediência, e os êxtases dão-se apenas de noite. Estigmatização em 1867, em cada sexta-feira da quaresma.

Míriam pensa que é doença, e das bravas; pensa estar leprosa. Avisa a superiora: “Cuidado, vão pegar mi-nha doença”. A madre responde: “Muito improvável”. A postulante é recusada na votação, mas é aceita no Car-melo, em 1868.

Míriam vê sua alma sob a figura de uma caixa que cheirava mal, velha, suja, gordurosa. “Estranhei de o rei ter pego nesta caixa velha... O rei sorriu: eu gosto desta caixa porque tem um tesouro dentro. Eu, porém, nem a queria tocar, tanto me desgostava!”

Noviciado. Noite do espírito. Jesus conforta-a: “Se soubesses quem te ama!” Possessa durante quarenta dias. Obsessa durante três anos, mas continua estigmati-zada, extática, profética. Ainda noviça, parte para a fun-dação do Carmelo de Mangalore, na Índia. Faz profissão num êxtase contínuo. Remetida à França um ano depois como “iludida”, porque Deus a queria para a fundação do

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Carmelo de Belém, Palestina, onde morreu a vinte e seis de agosto de 1878.

Profética Prediz a morte de Pio IX e assiste a sua entrada na

glória. Vê Leão XIII rezando no conclave para Deus lhe poupar esta cruz... aponta outros mais dignos... Mas Nos-so Senhor põe-lhe as mãos sobre a cabeça e lhe diz: “É tua vez”.

A França será a rainha das nações. "Ela empenhou-se demais em prol das missões".

Extática Provavelmente desde a infância. Nos anos de 1873

a 1878 os êxtases são diários e duram horas. Também durante o trabalho, na cozinha, na lavanderia. Em Belém, levitações. Trabalhadeira incansável, lamentava que o sono vinha nas horas mais inoportunas, atrapalhando a oração e o trabalho. Nossa Senhora, vestida do hábito carmelita, ajuda-a a lavar a enfermaria em dois tempos. Míriam pergunta à auxiliar pelo nome. "Chamo-me Maria- bem-amada, porque Jesus não ama ninguém tanto quan-to a mim, e porque ninguém ama Jesus como eu o amo".

Em 1869, Jesus aparece-lhe diante do sacrário: "Teu coração ainda não está bastante vazio, bastante desape-gado". No mesmo ano ela gorjeia durante um êxtase: "Se ele me prometer preservar-me de todo o pecado, então aceitarei todos os sofrimentos".

Exclama num êxtase: "Ó madre Teresa (d'Ávila), Je-sus feriu-me o coração". A autópsia mostrou ferida no la-do e no coração. Certo dia exclama: "Não agüento mais. O amor me queima, me consome, me "frita".

1873. A Madre, após as matinas, encontra-a em êx-

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tase na cela: "Madre, o mundo todo dorme. E Deus, tão cheio de bondade, tão grande, tão digno de louvor, nin-guém pensa nele. Vê! A natureza louva-o; o céu, as estre-las, as árvores, as plantas, todos o louvam. Só o homem, que tem conhecimento, que devia Iouvá-Io, dorme. Va-mos, vamos acordar o mundo!”

O texto seguinte também é um murmúrio extático: "Quando virdes um rasgo no hábito de outra irmã, não o rasgueis ainda mais, mas cortai um pedaço do vosso há-bito para consertá-Io. Repito: rasgai vosso próprio hábito para cobrir o próximo. Jesus vestir-vos-á com a veste nupcial".

Mortificada Nunca, nem quando no mundo, fazia mortificações

sem autorização do confessor. Jejuou um ano a pão e água, em Alexandria. Outro ano em Marselha; durante seis meses em Mangalore. Três quaresmas a pão e água: em 1867, 1869, 1870. Mais uma quaresma em Belém, em 1875. Usa cilício como toda carmelita, e ainda alguns a mais, a pedido de Jesus. Oferece estes rigorosos jejuns e penitências pela Igreja, pelos pecadores.

Estigmatizada Todos os cristãos devem tornar-se semelhantes ao

Filho de Deus pela graça santificante. Alguns também pela semelhança física, pelos estigmas da Paixão.

Ainda postulante na congregação de São José, apa-rece-lhe Jesus com as chagas sangrando, dizendo a Ma-ria Santíssima, ajoelhada aos seus pés: "Como meu Pai está sendo ofendido”. Míriam corre para a frente e ajoe-lha-se no altar ao lado de Maria Santíssima.

Colocando a mão na chaga do coração de Jesus,

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suplica: "Ó Salvador, dai estes sofrimentos a mim e mise-ricórdia aos pecadores". Saindo do êxtase, Míriam sente forte dor no lado externo, e da ferida aberta sai sangue em abundância. A ferida ficou até a morte e parece que a dor se renovava cada sexta-feira. As demais chagas e a coroa de espinhos apareceram durante quatro períodos. Recebe a graça da crucifixão também por quatro vezes.

Monologando, em alta voz, na embriaguez do êxta-se, Míriam canta: “Aqueles que lhe dizem: faze de mim o que quiser, recebem uma aliança... Quando Deus nos criou, deixou-nos a liberdade. Agora, quem lhe dá sua liberdade recebe um anel... uma aliança de esposa".

Outro aviso extático: "Não é a penitência que é mais agradável a Deus, mas a morte à nossa vontade própria".

Maria Deluil-Martigny, +1884 Morre mártir pelo punhal de um anarquista. Reco-

menda-nos oferecer ao Pai Jesus e todo seu sangue, e convida suas filhas (e a nós) a derramar-nos como a gota d'água todas as manhãs no cálice da Santa Missa, a fim de que nossos humildes e insignificantes sacrifícios se unam ao sacrifício do Redentor, e dele recebam valor re-dentor.

Disse-lhe Jesus: "Eu não sou conhecido. Não sou amado. Sou um tesouro não desejado. Quero formar al-mas que me compreendam. Sou uma torrente a transbor-dar. Quero criar almas que recebam as torrentes de meu amor... Nada me deterá. Nem Satanás, nem a indignidade das almas. Farei vítimas. Tenho sede de almas que me apreciem. Sou ultrajado, profanado. Antes que os tempos se acabem, quero ser indenizado de todos os ultrajes que recebi. Quero derramar as graças, todas as graças que foram recusadas"...

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Sabina de Ségur, +1888 Jesus: "Minha filha, estamos desposados. Tu estás

em teu leito. Sofres e não consegues rezar. E eu estou na Eucaristia; rezo e não posso mais sofrer"...

"Tu sofres por mim. Eu rezo por ti. Assim, a dois, fa-zemos a nossa tarefa".

Clément Roux, +1892 Jesus: "Assinalei-te como homem da dor e da ora-

ção, para que tua caridade se exercite sofrendo e rezando por teus irmãos. Carregas tua cruz comigo. Quanto mais pesada tua cruz, tanto mais eu glorifico meu Pai em ti".

Clara Moes, +1893 É destinada pela Providência a fazer reflorescer na

França a Ordem dominicana através de suas orações e penitências. Embora natural de Luxemburgo, nunca tinha visto, nem em pintura, um dominicano. Por doze anos foi seu confessor um redentorista. Desde a infância convive com os santos Anjos. Primeira confissão aos seis anos, junto com o voto de perpétua virgindade. Jejum quase continuo.

"Quero que tua força seja sobrenatural", Jesus lhe diz. Freqüentes vigílias noturnas. Desde 1850 só uma ho-ra de sono por noite.

Irmã de caridade das almas do Purgatório. Elas lhe pedem o oferecimento do Precioso Sangue, do terço, da santa missa e santa comunhão. Elas acompanham Clara até ao portão da Igreja, mas não podem entrar; só depois de duas semanas de Purgatório. Há numerosas almas na porta da Igreja: por terem descuidado da santa missa fi-cam à espera por cinqüenta, sessenta, setenta anos.

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TAnexo Obsessão diabólica como tempero e mirra mística. Participação da Paixão de Jesus por visões e por so-

frimentos físicos. A partir de 1865, flagelação durante a quaresma. Chaga do coração, em 1860. Chagas das mãos e pés, no mesmo ano. Em 1870, chaga no ombro direito. Em 1875, chaga do ombro esquerdo. Durante vin-te e oito anos padece em todas as sextas-feiras da qua-resma, as dores da Paixão de um modo cruento.

"Julgo ser o sofrimento a maior graça que Deus me deu". “Pudesse escolher entre sofrimento e graça místi-cas, escolheria imediatamente o sofrimento. Passando algum tempo sem sofrer, julguei estar repudiada por Je-sus. Peço sempre a Nosso Senhor não deixar-me ne-nhum dia sem sofrer".

Sta. Rosa de Lima diz-lhe em 1870: "Só a oração penitente e perseverante salva o mundo".

Maria do Sagrado Coração, +1899 (Droste- Vishering)

Jesus: "Salvei a humanidade pela cruz. E pela cruz

santifico agora as almas. Quanto mais eu pregar uma al-ma na cruz, quanto mais tornar-se uma alma semelhante a mim pela cruz, tanto mais estarei unida a ela.Os sofri-mentos dos meus eleitos continuam a minha obra de re-denção. Estou unido a todas, mas escolhi algumas almas de modo especial para uma união mais completa e toda especial".

"Quero que sofras sem alivio, sem consolo natural. Eis o quadro dos sofrimentos, isto é, o quadro do amor. Eu te escolhi como vitima. Como holocausto dou-te no-vamente meu Coração com seus tesouros. Tua divisa de-

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ve ser: amor, sacrifício, reparação. Deixa-te jogar como uma bola",

"Convido-te a sofrer pelo sacrilégio. Chamo-te à ora-ção, ao sacrifício, ao sofrimento. Tuas dores aumentarão. Prepara-te para mais".

"Jesus apresentou-me dores, perseguições, calú-nias, desprezo de todos etc. Aceitei tudo. Não pude resis-tir ao seu pedido".

"Jesus garantiu-me que pelo sofrimento será com-pletado mais rapidamente o número de almas que eu de-vo salvar".

Sta. Teresinha, +1897 "Ah! como é bela a vocação que tem por fim conser-

var o sal destinado às almas. Esta vocação, que tem por único fim nossas orações e sacrifícios, é sermos apósto-las dos apóstolos. Esta vocação é a do Carmelo" (Vida, 159).

"No exame antes da profissão declarei o que vinha fazer no Carmelo. Vim para salvar almas e sobretudo para rezar pelos sacerdotes... É preciso tomar os meios. Jesus me fez compreender que era pela cruz que ele queria dar-me almas" (Vida, 192).

"Vejo que só o sofrimento pode gerar almas segundo as sublimes palavras de Jesus: se o grão de trigo não morrer..." (Vida, 219).

"Não podia crer que houvesse ímpios sem fé. Acha-va que falavam contra seu pensamento, negando a exis-tência do céu... Desde a Páscoa de 1895, Jesus me fez sentir que há verdadeiramente almas que não têm fé e que perderam, pelo abuso da graça, este tesouro" (Vida, 267).

"Vossa filha, ó Senhor, pede perdão pelos seus ir-mãos. Aceita comer o pão da dor enquanto quiserdes. E

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não quer levantar-se desta mesa cheia de amargura em que comem os pobres pecadores, antes do dia que mar-castes" (durou até a morte, em 1897) (Vida, 268).

"Para mim não é um véu, é uma parede que se ele-va até aos céus e cobre o firmamento estrelado" (Vida, 270).

"Não escolhi uma vida austera para expiar as mi-nhas faltas, mas as faltas dos outros" (Carta, 220). Suas próprias faltas Teresinha joga-as no braseiro do amor (Vi-da, 326).

“O medo da morte para expiar meus pecados? Estes temores oferecerei pelos pecadores. Para mim, a única cousa que me purifica, é o fogo do amor divi-no(Conselhos, 190). "Ó Jesus, consumo vosso holocausto no fogo de vosso amor... Este amor penetra-me... purifica minha alma, não deixando nela traço algum de pecado: Não posso temer o purgatório... o fogo do amor é mais santificante que o do purgatório” (Vida, 227).

Quando se falava da fundação de um Carmelo em Hanoi e Teresinha já fora marcada par o projeto: "Tenho certeza que eu não prestaria serviço algum, mas iria so-frer e amar. E é isto que conta a seus olhos" (Nov. Verba, 15V).

Recolhemos ainda alguns textos do epistolário: "Não quero que Jesus sofra desgosto no dia do meu noivado (vestição). Queria converter todos os pecadores e salvar todas as almas do purgatório!... Sei que isto é uma loucu-ra, mas eu bem queria que fosse assim; para que Jesus não tivesse nenhuma lágrima a derramar" (Cartas, 51).

"Tudo me cansa; tudo me aborrece. Encontro só uma alegria, a de sofrer por Jesus. Mas esta alegria não sentida, ultrapassa tudo" (Carta, 61).

"Ó Celina, eu sinto que Jesus nos pede, a nós duas, de matar-Ihe a sede dando-lhe almas... Ele nos mendiga almas... Ele exige tio somente um olhar, um gemido: mas

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um olhar e um suspiro que sejam para ele só" (Carta, 74). "Não guardo nada. Tudo o que tenho, tudo quanto

ganho, é totalmente para a Igreja e para as almas. E se viver ainda oitenta anos, sempre serei pobre" (Nov. Verba, 12/VIII).

"Então queres, ainda, mais méritos?” "Sim, mas não para mim, para os pobres pecadores, pelas necessidades da Igreja, para derramar rosas sobre o mundo todo, justos e pecadores" (Nov. Verba. 18/VIII).

“Viver de amor é enxugar teu rosto e implorar perdão pelas almas dos pecadores” (Poesia).

Um meio insigne de expiação, de singular eficiência, é a privação de consolo espiritual. Mais fácil candidatar-se, concorrência aberta. Mais numerosos os contribuintes. "No noviciado a aridez era meu pão cotidiano" (Vida, 201).

"Passei o retiro de profissão na mais perfeita aridez. Jesus dormia na barquinha. Vejo que raramente as almas o deixam dormir tranqüilamente nelas" (Vida, 216.

"Não penses que eu nade em consolações. Minha consolação é não ter nenhuma na terra" (236).

A santa exclama com vivacidade: "Nós devemos consolar a Jesus, não ele a nós" (Conselhos).

"Se soubesses como é grande minha alegria de não ter nenhuma: para dar gosto a Jesus" (Cartas,54).

"Não me espanta que não tenhas consolação, por-que Jesus é tão pouco consolado que se sente feliz de encontrar uma alma na qual possa repousar sem fazer cerimônias" (Cartas, 82).

Inaudita a sede de sofrer que ardia no coração de Sta. Teresinha desde aos 14 anos de idade. Ela declarou que nunca pediu a Jesus sofrimentos, deixando isto aos cuidados dele. Mas nutria desejo e firme confiança de re-ceber esta "maior" graça do seu bem-amado.

"Sofrer, oh! é o que mais me agrada. Por que? Por-que é a vontade de Deus" (Nov. Verba 15/VI). "Encontrei

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minha felicidade na terra, unicamente porém no sofrimen-to, pois sofri muito aqui embaixo. Digam isto às almas" (Nov. Verba. 31/VII).

"Estou muito satisfeita de não ter pedido (por mim) estes sofrimentos ao Senhor, porque assim, ele está obri-gado a dar-me forças para suportá-Ios" (Nov. Verba 29/VI).

"Em minha infância sofri tristeza. Agora sou realmen-te feliz por sofrer" (Vida, 266).

"Ó Celina, se Nosso Senhor nos desse o universo in-teiro com todos os seus tesouros, isso não seria compa-rável ao mais leve sofrimento" (Carta, 40).

"Que privilégio Jesus nos concedeu ao enviar-nos uma dor, tão grande. A eternidade não será longa demais para lhe agradecer" (a doença do pai) (Carta 58).

O texto mais profundo está na carta nº. 5 a Celina: "Deixemo-nos dourar pelo sol de seu amor. Este sol é ar-dente e... não julguemos poder amar sem sofrer, sem so-frer muito. Está aí a nossa pobre natureza que não nos foi dada em vão. É nossa riqueza. É o nosso ganha-pão. Tão preciosa é que Jesus veio de propósito à terra para a possuir...

Sofremos com amargura, quer dizer, sem coragem. Jesus sofreu com tristeza. A alma sofreria sem tristezas? E nós quereríamos sofrer generosamente, grandemente? Celina, que ilusão!”

E sempre o fundo missionário: "Celina, não perca-mos nosso tempo. Salvemos as almas. Elas se perdem como flocos de neve (dizia Sta. Teresa) e Jesus chora! E nós, nós pensamos na nossa dor sem consolar Jesus, nosso esposo" (Carta, 73).

Madre Inês confessa que acabaria rezando por sua morte para não vê-Ia sofrer. Teresinha respondeu: "Não diga isto, madrinha, pois justamente o que mais me dá gosto nesta vida é sofrer" (Nov. Verba 25/VIII).

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Sta. Gema Galgani, +1903 Estigmatizada e associada a todas as fases dos pa-

decimentos de Jesus, deseja sofrer: "Jesus, faze-me se-melhante a ti. Deixa-me sofrer contigo. Não me poupes nada. Tu sofres, eu devo participar. Tu és o homem das dores. Eu quero ser a filha das dores".

Participando da Paixão, da agonia do Horto até o Calvário, flagelada no corpo todo com feridas profundas, coroada de espinhos, ferida no ombro pela cruz, e final-mente pelas cinco chagas, Gema é insaciável em sofrer. Jesus confirma e conforta: "Coragem, Gema, eu espero por ti no Calvário".

Gema: "Faz tanto bem sofrer contigo". Jesus res-ponde: "Sabe que durante teus sofrimentos, estou sempre junto de ti, comprazendo-me com tua coragem?"

"Jesus me disse que devo pensar só nos pobres pe-cadores".

Esta noite eu disse a Jesus que não podia mais E Jesus me respondeu: "Filha minha, eu também não posso mais suportar os maus tratos que me dão. Justamente agora é uma hora de pecados, tão brutos que não posso mais suportá-los! Tu, com teu sofrimento, procura delon-gar o castigo que meu Pai tem preparado para tantos po-bres pecadores. E não o fazes de bom grado? Respondi que sim, mas tenho medo de não agüentar. E Jesus me disse: "Não tenhas medo. Eu te farei sofrer, mas te darei também a força".

Jesus: "Quero servir-me justamente de ti, porque és a mais pobre, a mais pecadora de todas as minhas criatu-ras. Tu não merecerias outra coisa senão que te mandas-se ao inferno. Mas em vez disto, quero que sejas uma vitima e que sofras continuamente, a fim de aplacar a re-pulsa que meu Pai tem contra os pecadores. Quero que te

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ofereças a ele como vitima por todos os pecadores". "Filha, quanta ingratidão e malícia há no mundo. Os

pecadores continuam a viver pertinazes e obstinados no pecado. E meu Pai não os quer mais tolerar. As almas fracas e covardes, estão cheias de melindres para vencer sua carne. As al'mas aflitas caem no desânimo. As almas fervorosas, pouco a pouco, caem na tibieza. Os ministros do meu santuário, aos quais confiei a continuação da bela obra da redenção... Tenho-os sempre considerado com predileção. Considerei-os como as pupilas dos meus o-lhos... Continuamente, recebo das criaturas só ingratidão e pouco caso. A indiferença vai crescendo dia a dia. Nin-guém cai em si".

"Eu sem cessar mando do céu graças e favores a todas as criaturas, luz e vida à Igreja, virtudes e poder a quem a dirige, sabedoria a quem deve instruir as almas que estão nas trevas; constância e força às almas que me devem seguir. Graças de toda espécie para todos os jus-tos, e também para os pecadores escondidos em suas espeluncas tenebrosas. Mesmo lá dentro mando-lhes luz, mando-lhes amor, faço de tudo para convencê-los e con-vertê-Ios,... E o que ganho com isto?.

Ninguém se interessa por meu amor. Meu coração está sempre triste. Nas Igrejas estou quase sempre só. E quando muitos ai se reúnem, é por motivos bem diferen-tes, e devo suportar e ver minha Igreja reduzida a um tea-tro de divertimentos".

"Filha, preciso de vitimas e de vitimas fortes. Para aplacar a ira justa e divina de meu Pai Celeste são neces-sárias almas que, com seus padecimentos, tribulações e sofrimentos intercedam pelos pecadores e ingratos. Oh! se pudesse fazer compreender a todos quanto meu Pai Celeste castiga a todo gênero humano.

Está preparando um grande castigo a todo o gênero humano! Para apaziguá-Io apresentei-lhe estas almas.

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Mas elas não satisfazem a tanto; são poucas”. (Ouvindo blasfemar, Gema sua sangue no corpo in-

teiro). "Toda gota de sangue lhe dou, de boa mente, e faço tudo para contentá-Io, para impedir que os pecado-res pobres e maus o ofendam. Sofre-se tanto, tanto, sa-bes, ao se ver Jesus em meio a tantas dores!... Não pos-so deixar de oferecer-me a cada momento como vitima. Sou tua vitima. Jesus, podes desafogar-te em mim!..." "Sinto-me miserável; mas com Jesus, posso tudo". "Sa-bes, Jesus, hoje (uma sexta-feira santa) farei as três ho-ras por ti, para que salves todos os pecadores. São todos filhos teus. Salva-os".

"Ofereço-me como vitima por todos. Prometo não te recusar nada. Qualquer espécie de sofrimentos, aceito tudo".

"Não quero saber de justiça, quero misericórdia. Je-sus, não é mais tempo de sofreres assim. Agora sou eu, é minha vez".

"Minha Mãe Maria Santíssima, mostra que és Mãe de todos os pecadores".

Isabel da Trindade, +1906 "Experimento alegrias inauditas... as alegrias de so-

frer na dor... Meu Esposo divino quer que eu lhe seja uma humanidade de acréscimo, na qual ele possa ainda sofrer para a glória de seu Pai e pela Igreja... Ele marcou-a com o selo de sua cruz, e sofre nela como uma extensão de sua Paixão. Não mais desejo chegar ao céu apenas como um anjo, mas sim, transformada em Jesus Crucificado".

Lúcia Cristina, +1908

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Jesus: "As almas que consentem em sofrer tudo por meu amor nem sempre são destinadas a sofrer mais que outras. Mas o amor faz seus sofrimentos serem mais me-ritórios, mais leves, mais gloriosos para Deus, e mais a-dequados à sua salvação e à salvação de seus irmãos.”

"Compreendi que no sofrimento Nosso Senhor quer atrair-me ao seu Coração amável".

"Ao oferecer minha alma... vi interiormente que a ter-ra toda avançava e se oferecia comigo. Fiquei surpresa. Jesus fez-me compreender que, quando uma alma se entrega plenamente ao amor e se oferece a ele pela sal-vação universal das almas, ele se digna dar às suas pre-ces e obras um caráter universal, unindo-as à causa uni-versal das almas".

"Lastimo não poder visitar os pobres"... Jesus res-pondeu-lhe: "Sou eu o primeiro pobre do mundo, o primei-ro e desamparado, o grande abandonado. Elas não pen-sam em mim".

"Vi o olhar de Jesus pousar sobre os pecadores. Seus olhos estavam cheios de lágrimas e de chamas de fogo de amor".

"Paz no fundo da alma. Mas, no mais, uma angústia indizível. Muitas vezes é assim, quando ofereço a comu-nhão em desagravo ou pela salvação das almas".

"Devo ser vitima escondida, desconhecida do mun-do, como Jesus-hóstia".

"Minha alma parecia-se a um vaso repleto, até a bor-da, da suavidade divina. E o vaso tinha fendas pelas quais algumas gotas de suavidade vazaram sobre aque-les que tinham ofendido a Deus, causando-me mal. E Je-sus me diz: Meu Coração foi traspassado para derramar meu amor e suavidade sobre vós todos; não é justo que o teu esteja partido a fim de dar minha suavidade aos ou-tros?"

"Uma coisa notável: quando rezo por uma pessoa,

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imediatamente tenho de sofrer por ela ou por causa dela. Isto me dá um grande prazer".

"Vejo um edifício que vai do fundo da terra até ao céu. Todo revestido de mármore... Chama-se glória de Deus e bem das almas... Era a obra que devia terminar. Eu juntava pedras pequenas que feriam e ensangüenta-vam minhas mãos. Os anjos construíam com blocos e-normes. Mas Jesus olhava com muito carinho as peque-nas pedrinhas tingidas de sangue".

"Quando o sacerdote nada mais tem a fazer para a paróquia, ainda lhe cabe uma coisa: tornar-se santo. Foi-me mostrada esta verdade".

"Jesus fez-me fazer um ato de fé na presença divina, em nome de toda a terra. Por aqueles que perderam a fé... por todos... o ato de fé que ele me pedira era um ato de amor".

“Durante a noite, Jesus chamou-me e levou-me a uma loja maçônica".

“Na alma dos pecadores, Jesus sofre ainda". (Perseguições religiosas) Jesus: "Aguardo que o

número dos meus fiéis que sofrem... esteja completo". (Expulsão dos religiosos da França): “O sofrimento

daqueles meus filhos perseguidos e banidos, e o sofri-mento daqueles que lamentam o exílio deles, dá infinita-mente mais glória a meu Pai que o bem que eles teriam feito na pátria".

Jesus: "Deus tem planos totalmente desconhecidos dos homens".

Gertrudes Maria, +1908 Jesus: "Uma alma que me ama de verdade nunca

julga sofrer demais por mim". "O que mais me glorifica é não deixar nem que desconfiem que sofres".

"Ó Jesus, converte os pobres pecadores"... Jesus:

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"Eles não querem. Não posso forçá-Ios a amar-me". Jesus: "Queres tudo o que eu quero para ti?’ Apesar

do medo (pois sei quais os presentes que Jesus faz aos seus amigos) respondi: ‘Se tu me prometes teu amor, en-tão, sim". Jesus: "Posso escrever?" "Sim, Jesus, escreve". E abrindo seu Coração escreveu na primeira página deste livro sagrado: "Minha esposa compromete-se a viver na mortificação, no sofrimento, na humilhação, na pobreza, no desprezo, no abandono. Na segunda página, o divino Mestre escreveu: Em troca eu me comprometo a susten-tar minha esposa com minha graça, graça nem sempre sensível, mas forte; e comprometo me a dar-lhe meu a-mor".

Rezando pelas almas e sua conversão, Gertrudes ouve... "São ingratas como tu".

Jesus: "É tua tarefa reparar todos os pecados come-tidos no ano de 1904. Aceitas?.. Constituo-te, vítima repa-radora. Tu és a vítima da minha escolha".

"Sinto-me inútil... Mas posso sofrer e amar. Para es-tas duas cousas não se requer nem talento nem saúde. Mesmo não tendo nada posso glorificar a Deus e salvar almas. Para ser vítima requer-se o grande e o único talen-to do amor. E este, Jesus mo dará".

Jesus: "Quero associar-te à minha paixão (quinta-feira santa). Durante o dia todo (da sexta-feira santa) esti-ve mergulhada numa aridez e desolação tais como nunca tinha experimentado. Meu coração era mais frio que o dos algozes. Quisera compadecer-me das dores do meu Sal-vador, mas fui incapaz. Quis rezar, mas uma força irresis-tível mantinha-me afastada do crucificado. Um desgosto que me fez largar tudo. Estava numa insensibilidade que não tem nome".

Jesus: "Não te quero santa pela metade. Quero-te uma santa perfeita".

Jesus traz nas mãos uma coroa de espinhos e outra

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de ouro. "Se morreres hoje, como pede teu desejo, não me tiras a coroa de espinhos. Se ainda ficas na terra para sofrer, então tu me dás a coroa de ouro. Estabeleces-me rei das almas. Assim, tu me dás súditos dos quais sereis rei".

"É para valer que tu te ofereces? Queres mesmo so-frer?" "Não deves dizer que sofres e nem mostrar. Nem deixar suspeitar. Deves sofrer tão alegremente, que nem sequer se lembrem de perguntar pela tua saúde. Esque-cer-te e fazer todo o possível para ficar esquecida" .

"Minha filha, queres dar-me hospedagem? Sou ex-pulso de toda parte".

"Rodeia teu coração de uma sebe de espinhos" (pe-queninos espinhos que são os sacrifícios e renúncias).

"Que valor teriam tuas reparações se estivessem sós?"

"Meu coração transborda de todos os lados. Não consegue mais conter todas as graças que as almas re-cusam continuamente. Toma-o, minha filha, toma-o".

"Tu és instrumento em minhas mãos, não compre-endes? Deixa-me agir. Há tantos que resistem".

"Tudo isto são graças que foram recusadas; que fo-ram devolvidas".

"Deves ser como cera mole em minhas mãos. Tam-bém não quero mais que procures consolações. Nem as desejes. Eu tas darei quando achar bom".

"Minha filha, tu tens todo o meu Sangue. Podes re-parti-lo quando bem te parece".

"Esta tristeza é a minha. Faço-te dela partilhar. Guarda-te de diminuí-Ia".

"Jesus, ofereço-me a ti, para ser imolada?" Jesus: "Sim, se achas bom".

"Achei-me revestida de todos os méritos da Paixão. Jesus, ensina-me a usar estes tesouros... pelas almas"...

Jesus: "Mal tocaste a margem, pois é o infinito! Fon-

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te, rio, mar são um nada, em comparação com a realida-de... Quero fazer de ti uma vítima do Amor divino".

"Vi um grande número de pecadores convertidos". Jesus: "Eis o que espero de ti".

"Não estranhes este desgosto, esta aridez"... Ao rezar pelo alivio de pessoas aflitas, Jesus res-

ponde resmungando: "É assim mesmo. Só querem amar pela metade (fugindo do sacrifício)".

"Todos os méritos da minha Paixão são teus. É só tomá-Ios. São para quem quiseres. Toma-os..."

Jesus Menino aparece segurando uma multidão de cruzes de todos os tamanhos e pergunta: "Queres a mim e ao meu cortejo?" (cruzes, sofrimento). "Sim".

No tempo das confissões de Páscoa: Gertrudes: "Não tenho nada preparado para meus pecadores...” Je-sus: "Tira, minha filha, tira da caixa do bom Deus, da cai-xa de teu Pai. Teu irmão mais velho colocou aí tudo o que ganhou. Tira. Toma".

Jesus: "As almas custam caro". "Entre minhas esposas da França escolhi hoje doze.

E quero que tu sejas do seu número. Essas virgens for-marão a guarda de honra de meu Coração. Elas devem fazer-lhe fiel companhia. Devem partilhar suas tristezas. Devem interceder em favor dos pecadores. A onda da maldade está subindo, subindo sempre. Por isso escolhi almas que me amem com amor de escol".

"Nas tuas orações pensas bastante nas almas; mas no sofrimento, não".

"Como esposa de um Deus crucificado, é preciso que sofras".

Jesus e a alma são dois viajantes: "Eu carrego mui-tas vezes o fardo sozinho, mas nestes dias passei-o para ti". "Precisas engordar tua alma com mortificações". "To-ma, minha filha, meus tesouros e dá-me almas... Nossa missão não está terminada. Nossa tarefa não está cum-

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prida. Temos ainda almas a salvar". "Não te conduzirei ao Tabor"... "Meu Coração está saturado de desaforos. Não a-

güento mais!" "Somos dois. Não estás sozinha a rezar e a sofrer. Sou eu que dou valor a tudo o que fazes por mim".

Gertrudes: "Pelo dia todo tive a felicidade de sofrer" . Jesus: "Vem comigo! Vou percorrer o mundo inteiro.

Bato à porta de todos os corações. A maioria não me dá entrada. Vem, acompanha-me por toda a parte. Quando eu bato, tu rezas. Quando sou rejeitado, tu me consolas... Durante o dia todo visitamos o mundo. Com Jesus, vai-se depressa" .

Gertrudes: "Devo ser uma alma de oração". “E de sacrifício", completou Jesus depressa.

Jesus: "Tenho meus amigos no céu e na terra. São meus verdadeiros amigos os que sofrem muito por meu amor. Queres consolar-me? Podes fazê-lo: toma as dores da minha Paixão. E eu te consolarei no céu".

Deus: "Diversas vezes já estive a ponto de castigar meu povo, mas vendo meus santos não posso mais punir" .

"Minha Paixão fica e ficará sempre um mistério. Os homens jamais compreenderão tudo o que sofri por eles"

"Dizes que queres sofrer comigo. Dize que queres consolar-me". "Recusando sofrer, recusas graças de es-col".

"Se meditasses todos os dias a minha Paixão, terias menos pavor dos sofrimentos".

"Ofereço-te o cálice (da Paixão), porque te amo com amor especial. Se recusas, dá-Io-ei a outra alma menos querida para que o aceite".

"Senti gotas de sangue borbulhar da hóstia na boca". Jesus: "Aí tens com que satisfazer a justiça divina por a-quela alma; com que impedir o pecado mortal... Toma meu Sangue".

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"Vem, apresenta-te comigo perante o Pai. Vamos pedir misericórdia pelos pecadores... Gertrudes sugere: Jesus, seríamos três se a Virgem Santíssima viesse junto. Concordas?",

"Meu amor transborda. As almas abandonam-me. Então, indenizo-me junto das almas fiéis. Oh! não se co-nhece, não se compreende meu amor pelos pequenos e fracos! Oh! quanto amo estas almas simples que só pen-sam em agradar-me".

"Sempre sorrir ao sofrimento". "Filha, vamos beber no mesmo cálice... de tristeza,

angústia, dor. Bebamos e embriaguemo-nos". "É preciso rezar, sofrer, amar. Rezar para consolar-

me do esquecimento, da indiferença e da ingratidão dos homens. Sofrer para reparar, para remediar a esta des-moralização do povo. Amar para consolar meu Coração do ódio de seus filhos".

"É preciso que do altar de teu coração suba sem cessar a chama do holocausto". "Tu que convives com as pessoas divinas, não deves mais calcular; não deves mais hesitar entre o que custa e o que não custa. Deve ser tu-do igual para ti".

"Minha bem-amada, vivamos de silêncio e de amor". (LEGUEU, Une mystique de nos jours, 1912)

Maria Âmbela, Lisieux, +1909 Um sonho: coroas de flores caindo do céu e juncan-

do o chão... E surge novo quadro: homens, destinatários dessas coroas celestes, passeiam pelo prado, alguns não praticantes. Ângela reconhece-os e, olhando o céu estre-lado, vê o "T" de Sta. Teresinha. Está feito o programa e até assinado: "T", vítima da Legião.

Presa e surpreendida pela Santíssima Trindade, ou-ve distintamente as palavras: "Nós precisamos de ti".

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“Que convite gentil, delicado, humilde, partindo do Sumo Deus! Confunde a gente”... O confessor interpretou: "Pre-cisamos de uma vítima expiatória. Mas Deus primeiro sente necessidade de almas nas quais possa derramar seu amor-vítima".

"Considerando o Carmelo no seio da Igreja, nós so-mos o amor, como disse Teresinha. Se nós não estivés-semos aí, o amor se extinguiria na Igreja, os mártires re-cusariam derramar o seu sangue; os apóstolos reacusari-am anunciar o evangelho".

"Nossa Madre, Sta. Teresa d’Ávila garante-me: Nos-so Senhor está hoje tão disposto a dar estas grandes gra-ças como outrora. Mais até, porque o número de pessoas que vivem só para a sua glória hoje é menor. Mais do que nunca tem ele necessidade de almas que queiram rece-ber seus favores. Infelizmente, nós nos amamos demais. Há em nós um excesso de prudência para não perdermos nossos direitos".

Benigna Consolata Ferrero +1915 Benigna: "Ó Jesus, sois onipotente. Fazei os ho-

mens reconhecer-vos, amar-vos e servir-vos". Jesus res-pondeu: "Eu uso das criaturas para este fim, fazendo-as instrumentos da minha graça. Eu mesmo escolho essas almas destinadas a reavivar o espírito cristão. Eu mesmo as preparo. Eu as sobrecarrego, assim para sua missão. Tais almas havia no passado e há delas no presente; e vou suscitar outras no futuro. Tu és uma dessas almas".

"O desejo ardente que tenho de salvar o maior nú-mero possível de almas leva-me a procurar almas que eu possa associar à minha obra de amor".

"A tua alma há de amadurecer no sofrimento, no si-lêncio, na abnegação".

"Reza muito pelos pecadores. Estabeleço-te, media-

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neira entre os pobres pecadores e teu celeste Esposo". "Em troca do meu infinito amor por ti, quero pedir-te

um penhor de tua afeição: quero que te ofereças de um modo especial ao meu Coração para salvar os pecadores. Trata-se de fazer-me o sacrifício dos teus merecimentos. De quanto fizeres ou sofreres, nada seja teu: entrega-me tudo, pela conversão das almas".

"A confiança é a chave que abre o tesouro da minha misericórdia". "Não me canso. Peço sempre amor. E nin-guém mo quer dar. Ao contrário, me odeiam".

"Entre os meus dons, o mais precioso é a cruz". "So-fre unicamente por mim. Sem contar a ninguém" .

"A mortificação é o canal por onde passam minhas graças de escol. Se esse canal é estreito, passam pou-cas; se é largo, passam muitas".

"Quem pára no caminho do sacrifício, vacila também no amor".

"Benigna, dá-me almas! Quero que estejas em esta-do contínuo de vítima... Não se salvam as almas sem fa-zer nada. Eu morri na cruz para salvá-Ias”...

“Não te peço coisas extraordinárias. Apenas uma pa-lavra que se cala, um olhar refreado, um pensamento a-gradável a que se renuncia. Coisas pequenas, unidas aos meus méritos infinitos, adquirem imenso valor. Quanto me agradam as almas que assim se imolam no silêncio" .

"A alma nunca deve ter medo de Deus, porque ele está sempre disposto a usar de misericórdia. O maior pra-zer do meu Coração é levar o maior número possível de pecadores ao meu Pai. São eles a minha glória, são mi-nhas jóias. Amo-os tanto"..

"O maior prazer que se me possa dar é acreditar no meu amor. Quanto mais se crê no meu amor, tanto maior o prazer que se me dá. E quem quiser dar-me um prazer imenso, não deve pôr limites a esta confiança no meu amor" .

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"Benigna, entrega ao amor tudo o que ele te pedir e nunca lhe digas: basta! Muito poucas almas tenho assim. Algumas começam bem, mas voltam atrás por medo do sacrifício. Não querem colher rosas com receio de ferir os dedos".

"Uma alma é sempre bem acolhida, quando quer começar generosamente. Podes recuperar o tempo, va-lendo-te dos tesouros de meu Coração".

"Serás a vitima. Sim, aceito teu sacrifício. Imolar-te-ei, mas com a espada do amor. Prender-te-ei, mas com os laços do amor. Consumir-te-ei, mas no fogo do meu amor. Se para todos sou bom, sou boníssimo para aque-les que em mim confiam".

"Não fazem os homens idéia da ofensa que se faz a Deus duvidando da sua bondade. Podem os pecados ser enormes e inúmeros’...

“Faço as minhas melhores e mais belas obras-primas com os elementos mais miseráveis, contanto que me deixem trabalhar".

"É certo que cem pecados me ofendem mais que um. Mas se este um é de desconfiança em mim, magoa-me mais que os cem outros. Tenho tanto amor aos ho-mens!"

"É acanhada demais a idéia que os homens têm da bondade de Deus, da sua misericórdia. A sua bondade não conhece limites".

"Não podes avaliar o prazer que sinto em cumprir minha missão de Salvador. É meu maior consolo. Executo as melhores obras-primas com as almas que arranquei do mais profundo abismo, que arranquei do lodaçal”...

“Tudo contribui para o progresso de uma alma, tudo! Até as imperfeições são pedras preciosas; pois eu as transformo em atos de humildade. Se os homens, ao construir casas, pudessem transformar as ruínas e o entu-lho em material de construção, haveriam de dar-se por

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felizes. Pois bem, a alma fiel pode fazê-lo com o auxilio da minha graça. E suas faltas, ainda as mais graves e vergo-nhosas, transformam-se em pedras fundamentais do edi-fício da sua perfeição".

"Benigna, dize bem alto, que o mundo inteiro de ou-ça! Dize que tenho fome, que tenho sede, que morro de desejo de ser recebido no santo sacramento. Estou no Sacramento por amor das criaturas e elas fazem tão pou-co caso disto. Tu pelo menos faze tantas comunhões es-pirituais quantas puderes para suprimir as comunhões sacramentais que não se fazem".

"O que mais me magoa é a indiferença com que me tratam os homens. Odeiam-me. Fogem de mim como de um malfeitor. Tenho sede do amor das minhas criaturas" .

Carnaval de 1916: Benigna vê o Coração de Jesus dilacerado e arrastado pela rua uma matilha de cães rai-vosos.

"Quando uma alma chegou ao ponto de se compra-zer no desprezo de si por amor de Deus, alcançou o cume da perfeição".

"Uma religiosa tem a obrigação de tornar-se santa, não tanto para si, mas para a maior glória de Deus. A san-tidade consiste em tornar-te quanto possível a imagem viva de teu Esposo".

"Há poucos santos, porque há poucas almas mortifi-cadas. Os homens deveriam viver de mortificação, como vivem de pão".

"Tens olhos. Lê o que está escrito no meu Coração? Dá-me teu amor. Amando-me, fazes reparação. Reparan-do, me consolas. Consolando-me, és esposa fiel. Amor-reparação, consolo-fidelidade".

"Não me amas com toda a força do teu coração, como quero ser amado por ti. E não te odeias com todas as veras do teu coração. Sacrifica teus interesses e satis-fações pela maior glória de Deus. Nunca chegarás a ser

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reparadora verdadeira se te contentas em contemplar su-perficialmente as chagas que os pecadores rasgam no meu Coração. Deves examiná-Ias de perto... Os pecado-res me odeiam: tu deves amar-me com todas as forças. Os pecadores blasfemam meu santo nome; tu deves lou-vá-Io. Os pecadores afastam o pensamento de Deus: tu me deves ter sempre presente na memória".

"Em todas as tuas relações e ações, deve estar gra-vado o sinal de reparação".

"Quero viver neste mosteiro, dentro de ti. Quero o-lhar com teus olhos; falar com tua boca; ouvir com teu ouvido; andar com teus pés; trabalhar com tuas mãos".

Benigna: "A fim de alcançar tudo do Coração de Je-sus basta não lhe recusar nada... Deus deixa-se ajeitar".

Carlos de Foucauld, +1916 Pensa que deve morrer mártir, espoliado de tudo,

prostrado por terra, nu, irreconhecível, coberto de sangue e feridas... e deseja que isto seja hoje. "Para merecer es-sa graça infinita, sê fiel em rezar e em carregar a cruz. Considera que para esta morte deve convergir toda a tua vida. Vê por esta razão a pouca importância de muitas coisas. Pensa muitas vezes nessa morte.” Assassinado em 1916.

"Não foi por suas palavras divinas, nem por seus mi-lagres, nem por seus benefícios que Jesus salvou o mun-do: foi por sua cruz".

"Na hora do seu maior aniquilamento, na hora de sua morte é que Jesus fez o maior bem ao mundo. Pede pois a Jesus que eu ame realmente a cruz, porque ela é indispensável para fazer bem às almas".

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Antonieta de Geuser "Consummata", +1918

"Eu vi o Coração divino, esse Coração cheio de a-

mor, de méritos e de graças, mas esses méritos e graças não podiam expandir-se. E eu compreendi, eu vi que es-tava faltando alguma coisa, um nadinha, um nada, mas faltava, e assim a reparação é impedida e as almas não se salvam. E esse nadinha é o canal pelo qual Deus pode derramar os tesouros infinitos das graças do seu Coração.

"Tu queres ser um desses pequenos nadas? Esses pequenos canais são as almas doadas e consagradas, que só vivem e só rezam para a maior glória de Deus. Almas que deixam de lado todas as intenções pessoais, e trabalham para as intenções do Coração de Jesus. Não precisam ser almas grandes; basta que sejam doadas sem reserva alguma, abandonadas a Jesus.”

"Toda entregue à vontade de Deus, que ele faça de mim tudo quanto quiser; senti um imenso desejo de sofrer por ele o mais possível..."

"Eu vi o cálice, o seu, e me disse: Minha pequena criaturinha, queres minha riqueza? Conhecendo minha fraqueza à vista dessa imensa dor, e sentindo-me tão in-digna de uma graça tão grande, eu hesitava. Então ele me falou: É minha vontade que bebas de meu cálice. Di-ante dessa evidência da vontade divina, eu aceitei com alegria e gratidão, convencida que ele me dará seu auxí-lio.”

“Ele me prometeu dar o máximo de sofrimento, e consumir-me toda para a sua glória. Falou: Dar-te-ei gra-ças grandes: elas te são necessárias para fortalecer-te para o sofrimento".

"Após a santa comunhão, Nosso Senhor prometeu dar-me o que há de mais expiatório para a glória do Pai, e eu vi que isto, era o sofrimento. E ele se me revelou na

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sua agonia, morrendo sem consolação alguma. Eu tive medo. Não aceitei logo. Eu me sentia peque-

na demais: eu não podia. Mas depois entendi, visto que ele me convidava e chamava, que ele também estaria aí para ser minha força.”

“Quando eu tinha sete ou oito anos, pedira a Nosso Senhor deixar-me participar de sua agonia. E durante lon-go tempo sentia-me infeliz; julgava-me condenada ao in-ferno. Desde então nunca mais rezei por sofrimentos, embora os desejasse muitas vezes. Mas agora é ele mesmo que pede, e assim posso aceitar como confiança e gratidão".

“Jesus disse-me: Eu sofri tanto por sentir em mim todas as imundícies da terra... e neste sofrimento nin-guém quer acompanhar-me. E tu? As almas pedem-me certas virtudes atraentes e bonitas; pedem até mesmo o sofrimento. Mas ninguém se oferece para a humilhação nas humilhações; entrega-te inteiramente à minha vonta-de... Pede só a minha vontade. Tu não compreendes o que é a glória do Pai".

“Jesus fez-me ver um pouco da ofensa feita a Deus por meus pecados. Eu me vi como um horror. Durante o dia inteiro tentei amar-me por amor a ele. Mas não conse-gui. Acho fácil amar um pobre repugnante, as pessoas antipáticas... mas amar uma coisa tão suja é difícil... E Jesus me ama...”

“Jesus mostrou-me e: a separação das criaturas... Não me preocupar mais de dar Deus às almas para ele,

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sem olhar para trás. TP

5PT E essa união irá atrair as graças pa-

ra as almas bem melhor que meus esforços exteriores.” "Eu vi que ele somente quer sacrificar-me, e que de-

vo deixar Deus fazer, e aceitar tudo.” “Outro dia Jesus mostrou-me seus sofrimentos e

disse-me: Eu te dou todos... Pareceu-me que Cristo se encarnava em mim, a fim de ser sacrificado de novo para a glória da Santíssima Trindade. Enfim, compreendi: "Eu não vivo mais, mas é Cristo que vive em mim" (GI 2,20).

"Não devo ocupar-me em semear apostolado, nem pela palavra, nem pela ação, nem mesmo pelo exemplo. Devo pensar somente de me "enterrar" sempre mais ne-le".

"Fui desapropriada para utilidade pública".

Maria Angélica, OCD, +1919 "Como são divinos estes braços de Jesus... Mas a

alma prefere o pão do sofrimento. Tem sede de renún-cias. Fica mais saciada pela dor. A cruz é-lhe mais doce que todas as consolações. Aí ela repousa à vontade. Aí ela diz: mais, mais..

Sente que aí está o pão de sua vida. O sofrimento torna-se o alimento de seu amor. Tem dele uma sede in-saciável. Por que? A fim de dar amor por amor e, de certo modo, por sangue. Pelo sofrimento é que ela ama. Aí en-contra tesouros que a fazem preferir esse sofrimento não a coisas vis e desprezíveis, mas aos próprios favores de

5 Sic. Não consegui recuperar a frase.

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Jesus". "Isto não me impede de sentir o sofrimento, até bem

vivamente. Mas em meio de tudo isto, sou feliz. O bom Deus faz-me encontrar a felicidade por toda a parte. É verdade que esta alegria vem dele só, somente dele. Creio mesmo poder dizer que é ele".

"Não gosto de pessoas que falam continuamente de sofrimento, crucifixão, esquecimento das criaturas, pois me parece que o amor suporta tudo isto com alegria. Mais ainda: estima como tesouro precioso. Saboreia-se um tesouro a sós, sem divulgar muito por fora" .

"Tantas almas agitam-se nas trevas, atoladas num caos horrível. Eu queria transformá-Ias todas em almas de luz. Queria não recusar nada a Deus, ainda que para salvar uma só alma. Padeço por vê-Ias nas trevas. Vejo só algumas que estão em plena luz. E este número é tão pequeno, que eu bem gostaria de estar enganada. Espe-táculo cruel! O bom Deus fez-me carmelita, salvadora de almas. Felizmente todos os seus méritos são meus. E minha vocação é oferecê-Ios a seu Pai. E de lá, eles re-caem sobre as pobres almas em forma de graças.

E quanto mais Jesus penetra este pequeno e mes-quinho instrumento, mais maravilhas realizam-se. E não há limites ao seu poder a não ser o poder de Deus...

Tudo consegue uma carmelita santa. Seu poder não tem limites. Um suspiro, uma palavra de sua parte são suficientes para fazer descer do céu, torrentes de graças sobre as almas. Ó que bem-aventuradas são estas elei-tas!...

Uma carmelita deve ter o coração de Deus, infinita-mente sensível ao mal das almas. Muitas vezes pede-me para sofrer, e sempre respondi que sim. Já faz treze anos. Mas agora posso dizer que todo sofrimento é doce para mim. Esse sofrimento é o ouro com o qual compro al-mas... Jesus não me quer recusar nada. Ele não é exigen-

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te. Muitas vezes contenta-se com minha boa vontade". “Jesus diz que um desejo meu basta para tocar seu

coração. Ele não me recusa nenhuma alma. Nunca me recusou nada.

Ele fala muitas vezes à minha alma. Ele quer que eu deixe de lado todas as criaturas, a fim de ocupar-me so-mente com ele; quer que eu deixe de lado a mim mesma, a fim de amá-Io. E ele chega a repreender-me quando penso só um pouquinho no cuidado por minha alma.

Então ele me diz: deixa os teus interesses, minha fi-lha, e ocupa-te somente dos meus interesses. Minhas pequenas esposas devem pensar mais em amar-me do que em santificar-se.

E ele me mostrou seus interesses: ser para ele uma esposa amorosa, delicada, atenciosa; falar-lhe de seus negócios e interesses: as almas.

Vejo só a sua glória e depois as almas. Nada mais que as almas. Agora começou para mim outra vida. Aqui embaixo, as aparências enganam. Na terra, tudo é menti-ra. E a verdade é velada. É preciso obtê-Ia por orações. Só Jesus nô-la mostra. Como o mal das almas é grande! Quão poucos amam o Amor".

"Ele me dará almas, pois um bem pequenino ato de amor puro é de valor infinito aos olhos de Deus e do Es-poso. Um sofrimento pequenino, unido aos seus, aplica o preço infinito de seu sangue às almas".

"Ofereço-me pela Igreja, e uno esta tão pobre oferta ao sangue adorável do meu Senhor. No momento da mi-nha oferta, vi como Jesus e eu estávamos unidos de um modo inefável, e que sua bondade fazia com que ele e eu formássemos uma única oferta".

"Escolhendo um sacerdote, Jesus escolhe um san-to... Quanto mais a oração une o sacerdote a Deus, tanto maior sucesso ele terá junto às almas. Os sacerdotes só devem viver para a glória de Deus, a salvação e a santifi-

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cação das almas". "A Igreja, esposa de Cristo, está coberta por um

manto real: o sangue de Jesus. Segue-se dai a necessi-dade de os cristãos ornarem-se também dos sofrimentos de Cristo".

"Em relação às cruzes e sofrimentos: quanto mais tenho, tanto mais feliz me sinto".

Maria Fidelis Weiss, franciscana, +1923 Natal de 1917. Jesus diz: "Tenho sede de almas que

saibam amar-me como quero ser amado. Queres dar-me o consolo de aceitar sofrimentos pelas almas? Queres deixar-te consumir como holocausto do meu amor até morrer? De tua parte só quero o abandono, a entrega; tudo o mais eu mesmo o farei".

22.3.18: "Não foi visão. Mas se eu pudesse mostrar o que é o pecado, como eu o vi em espírito!"

Festa do Sagrado Coração, 1918: Jesus deixou-a escolher entre ir, no mesmo dia, diretamente para o céu ou continuar vivendo e sofrer pela salvação eterna das almas.

Natal de 1918: Jesus repete a proposta, mas é recu-sada. Maria Fidelis prefere sofrer pelos pecadores. E Je-sus sugeriu se oferecesse como vitima por voto formal, aceitando todos os sofrimentos, concordando com a pri-vação de todas as consolações. "Só com a ajuda de Je-sus, explicou ela mais tarde, porque é difícil, muito difícil" .

Fevereiro de 1920: Jesus quer uma hora por dia de desagravo pelas almas consagradas que entregam o seu coração à tirania do egoísmo... "Para suprir as falhas de fervor de tantas almas medíocres”. Depois Jesus pede uma segunda hora de oração e desagravo pelos sacerdo-tes, a fim de que sejam homens interiores e de oração. "Jesus mostrou-me quanto bem resultaria para as almas,

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e até para as de um povo todo, se eles fossem também homens espirituais".

"Vejo tudo na cruz, cheio de amor, e vejo nos cora-ções humanos tanta maldade, tanta perdição e tantos pe-cados! Vejo com clareza: Jesus está precisando de viti-mas. Então ele poderá derramar toda a sua misericórdia. Mas há tão poucas almas que o amam deveras! Quando lhes põe a cruz sobre os ombros, elas se retraem".

Jesus em 6.7.20: "Tenho sede de almas sacrifica-das. Quero derramar o excesso de meu amor sobre o mundo para salvá-Io; mas as almas vitimas mo devem pagar. Eu amo as almas e amo também os maiores peca-dores. Nenhum pecador é grande demais, nenhuma alma miserável demais para deixar de atrai-los a mim dando-lhes o perdão e as maiores graças".

Jesus em 2.12.20: "Tenho sede de almas. Uni teu sofrimento ao meu sacrifício na cruz, do qual recebe seu valor. Mas deixa sempre à minha escolha a aplicação do fruto do teu sofrimento. Eu sou o Senhor! E eu sei distri-buir tudo melhor. Eu acompanho os pecadores com paci-ência, até a hora da morte, quando mais necessitam da minha misericórdia, pois eu os amo".

Zelo apostólico “Oh! se pudesse doar minha vida pela salvação das

almas imortais. Agora que Jesus me mostrou uma alma no estado de pecado mortal, e outra no estado de pecado venial, sofro um martírio por saber que tantos não o a-mam, que tantos se perdem".

Carnaval de 1920: "Não posso tolerar que o inferno obtenha maior lucro do que meu Jesus. Não! A maldade não pode ser mais abundante que o amor, o meu amor por Jesus!"

Novembro de 1921: "Nunca senti tanto ímpeto de a-

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tividade como agora; mas não externa, e sim, interna, pe-las almas".

A dor pelos pecados A dor pelos pecados a faz verter lágrimas. De um

modo especial, de um modo místico foi torturada por pen-samentos e fantasias impuras, durante horas contínuas: "Mais fácil seria, dizia ela certa vez, deixar-me crucificar do que suportar as tentações impuras. Todo o meu intimo aborrece tanto estas tentações, porque sempre vejo a santidade de Deus. Sinto que as tentações impuras não são para minha purificação, mas para a expiação de ou-tras almas... Já aos dezesseis anos, Jesus fez-me saber que nunca mais ficaria livre dessas tentações" (expiató-rias).

Como Sta. Teresinha, tem de sentar à mesa dos ím-pios, submetida às violentas tentações contra a fé, sentin-do ódio contra Deus, desespero da salvação. Começa a recitar o Credo e torna-se incapaz de terminá-Io.

Em 11.8.18 Jesus pede um "Credo" e cinqüenta ve-zes "Ó Maria, concebida sem pecado...” diariamente até ao dia 15 do mês, pela salvação de três pecadores.

Mas além das orações, o Mefisto se encarregou de maltratar a suplicante a valer.

Pelos moribundos 29.10.17: Maria Fidelis passa das sete às onze ho-

ras, portanto quatro horas de agonia mortal, com horríveis tentações de blasfêmias.

13.6.18: Sente-se impelida a confessar-se por um moribundo impenitente.

9.7.19: "Desde as onze horas vivo em angústias e tentada pelo desespero. Sinto como uma agonia de mor-

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te. Tenho a impressão que isso vai durar o dia todo". Às oito da noite recorre de novo ao sacerdote, balbuciando com desespero: "Será que Jesus me perdoa? Será que ainda há misericórdia para mim? Cometi tantos pecados. Será que Deus perdoou tudo? Os pecados grandes tam-bém? Sinto-me impelida a recitar o Credo, sem o conse-guir". Às nove horas, novo combate. Às dez, tudo termi-nou. O tempo da luta era desigual. Horas, dias, às vezes vários dias. Ela ignorava nomes. Nunca lhe foram comu-nicados por Deus.

O peso do pecado Maria Fidelis sente-se cheia de pecados mortais e

não sabe o que acusar na confissão. A "carga" expiada é substituída por outra coleção. Na quarta-feira de cinzas de 1920, sente-se leve e pura como uma criança recém bati-zada. Mas só por quinze minutos. E logo recebe nova quota de pecados. Assim continuou nos últimos seis anos, sem interrupção.

Fevereiro de 1921: "Sei que estes pecados não são meus; sinto porém a impressão de merecer o inferno. Mas quero continuar: quero conduzir almas pecadoras a Je-sus".

Por vezes intrometeu-se também o espírito do mal, torturando fisicamente e moralmente a vítima. Apesar de tudo, ela se confessa sempre "perdida em Deus", o dia todo, tanto no trabalho como na conversação e na oração. Admirável divisão entre alma e espírito (Hb 4,12).

Maria Salésia Schulten, ursulina, +1920 Jesus: "Por minha graça, agora progrediste tanto

que enxergas tua miséria com nitidez, e nada mais de bom atribuis a ti. Conheces agora, com clareza, que sou

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eu quem age em ti, de modo que agora posso começar a usar-te como meu instrumento como necessito... ser um instrumento dócil, sem vontade própria na mão do Mestre: eis a tua tarefa".

Josefa Menendez, +1923 "Já que estás disposta a sofrer, soframos juntos". E

Jesus dá-lhe sua cruz, a sua coroa, a chaga do lado e as chagas (invisíveis) nas mãos e pés".

"Quero que todo o teu ser sofra para ganhar almas. Josefa, por que me amas?" "Porque és bom". "E eu te amo porque és miserável e pequena. Eu te revesti dos meus méritos; eu te cobri com meu sangue, para apresen-tar-te aos eleitos. Tua pequenez deixou lugar à minha grandeza; tua miséria e até teus pecados, à minha miseri-córdia; tua confiança, ao meu amor. Sim, tu dizes bem: sou bom. Para compreender-me falta às almas só uma coisa: união e vida interior. Se minhas almas escolhidas vivessem mais unidas a mim, elas me conheceriam me-lhor".

"Senhor, é difícil, pois às vezes há tantos serviços a fazer por ti". "Sim, sei disso. Quando se afastam, vou à procura delas para aproximá-Ias de mim... Mas se vives-sem mais unidas a mim, quanto bem poderiam fazer a tantas pobres almas que vivem longe de mim".

Itinerário "Sacrifico-me como vitima de amor. Quero que tu

também sejas vítima. O amor não recusa nada". "Este grande cravo (que atravessa meu coração) é a

frieza das minhas esposas... Abrasa-me de amor e conso-la meu coração".

"Sinto loucuras de amor por ti, Jesus". "Eu também

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tenho loucura de amor por ti, Josefa" . "Eu tinha seis espinhos. Tu me tiraste cinco. Ficou

um só; aquele que mais dói... Não venho para consolar-te, mas para unir-te ao meu sofrimento. Arranca-me este es-pinho. Esta alma está no ponto de provocar a justiça".

Maria Santíssima: "Filha, tu deves sofrer para dar almas ao meu Filho".

"Perdôo-te tudo. És o preço do meu Sangue... Quero servir-me de ti para salvar muitas almas que tão caro me custaram. Não me recuses nada. Veja quanto te amo".

"Se aceitas, faço-te minha encarregada das almas... com teus sacrifícios e teu amor".

"Estou tão só". "Não, Jesus, eu estou aqui contigo, bem pequenina, mas da cabeça aos pés sou toda tua" .

"Tantas me abandonam e tantas se perdem. Partilha minha dor".

"Dava dó. Jesus olhou-me e compreendi que meu sofrimento é uma sombra, perto do dele. Atrás dele vi uma fila interminável de almas: "Todas estas esperam-te". "Quando te deixo fria, é que tomo teu fervor para aquecer outras almas".

"Quero que sejas vítima da divina justiça e o alívio de meu amor. Sacrificar-te-ei, mas com flechas de amor. Serás minha prisioneira, amarrada por laços de amor". "Quero que me dês almas. E não te peço outra coisa, se-não o amor em todas as tuas ações. Faze tudo por amor. Sofre por amor. Trabalha por amor. E sobretudo abando-na-te ao amor. Quero servir-me de ti como bengala sobre a qual se apóia uma pessoa cansada".

"Deixo-te por um momento minha coroa, e verás o que é o meu sofrimento (Josefa fica coroada de espinhos invisíveis por horas, dias e noites), até que aquela alma retorne a mim. Peço-te o amor que ela me recusa".

Após uma falta de generosidade (real ou suposta) Josefa pede uma prova de amor: "E subitamente senti em

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torno da cabeça a coroa de espinhos". "Sirvo-me de tua miséria para salvar almas. Vê o va-

lor de teus sofrimentos". E Jesus mostrou-lhe três almas salvas.

“Preparando a roupa para a lavanderia, pedi que salvasse tantas almas quantos lenços houvesse para con-tar. À noite, vi na capela uma fila de almas prostradas em adoração: aquelas que eu pedi de manhã".

Jesus aparece como Ecce-Homo, as mãos cobertas por uma infinidade de espinhos, finos como agulhas: "Vamos trabalhar. Irei contigo". "Subi ao terceiro andar para varrer, oferecendo meus movimentos como atos de amor. Os espinhos caíram de suas mãos".

"Perguntei como poderia salvar-lhe muitas almas: Une todas as tuas ações às minhas, quer trabalhes, quer descanses".

"Une todos os teus movimentos aos meus, a fim de que não sejas mais tu, mas eu aja em ti". “Repete-me que me amas pelas almas que me ofendem"

Maria Santíssima: "Não receias sofrer! É um tesouro para ti e para as almas". “Ofereci meu alimento e Jesus disse: Dá-me de comer, pois tenho fome. Dá-me de be-ber, pois tenho sede. Sabes de que tenho sede e fome: de almas. Oferece tudo ao meu Pai em união aos meus sofrimentos". "Olha minhas chagas. Não foram as almas que me fizeram isto. Foi o amor".

Jesus retornou, carregando uma cruz enorme: "Trouxe-te minha cruz e quero descarregá-Ia sobre ti. Pa-ra essa empresa escolhi nove almas. Agora é tua vez" .

"Repete comigo: Pai eterno, olha estas almas tingi-das pelo sangue de teu Filho". "Uma só alma compra o perdão para muitas outras, ingratas e frias. Pensa só em mim".

Desorientada pelo demônio, Josefa pergunta como deve reparar: "Sabes o que deves fazer? Amar, e ainda,

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amar". "Eu sou a grande vítima. Tu, a pequena, bem pe-

quena. Mas unida a mim, o Pai te atende". Numa visão infernal, uma voz grita: "Não deveis a-

marrar seus pés, mas o coração.” O demônio responde: “Aquele não é meu".

Jesus: "Não preciso de tuas forças, mas do teu a-bandono. A força está em meu Coação". "Sentindo-te fra-ca e medrosa, vem aqui buscar força".

Jesus aparece, segurando na mão seu coração: "O meu amor e minha misericórdia para com as almas caídas não têm limites. Desejo perdoar. Repouso perdoando. Estou sempre esperando almas. Sou seu pai".

Maria Santíssima: "Para salvar almas é preciso so-frer. Bem-aventuradas as almas que Jesus encarrega de-las".

Jesus: "Dize-me outra vez que me amas. E vou con-fiar-te um segredo. É loucura de amor que tenho pelas almas".

"Que seria do mundo sem reparação... Faltam víti-mas. Faltam vítimas".

"Toma, miséria do meu coração, esposa que amo. Toma minha coroa".

"A alma, que faz de sua vida uma união constante com a minha, me glorifica e trabalha em proveito das al-mas. Seu trabalho tem pouco valor. Mas, banhando-o em meu sangue, que fruto obterá para as almas! Maior talvez do que se estivesse pregando no mundo inteiro. Quer es-tudes, fales, escrevas, quer costures, varras, descanses, não é a ação em si que tem valor; é a intenção. Quando eu varria ou trabalhava na oficina de Nazaré, dava a meu Pai tanta glória quanto com minhas pregações na vida pública. Do nada as almas podem tirar grandes tesouros, fazendo com amor seu dever, hora por hora, momento por momento. Que tesouros não acumulam em um só dia".

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"Não me recuses nada. Não esqueças que eu preciso de almas que continuem minha Paixão" .

"Desde que uma alma se lance aos meus pés e im-plore minha misericórdia, esqueço todos os seus peca-dos".

Josefa: "Haverá sempre, até ao fim do mundo, almas que te ofendam?” "Infelizmente, sim. Mas até ao fim do mundo, terei também almas que me consolem".

"Toma minha cruz; vamos juntos reparar tantos pe-cados que se cometem durante esta hora (23 horas). Se soubesses como as almas se precipitam em massa para o mal. Toma meus méritos para reparar tantos pecados".

Josefa: "Tenho desejo de amar, de consolá-Io, de dar-lhe almas. Tudo o mais me parece tão pequeno".

"Toma minha cruz, meus cravos, minha coroa. Irei procurar almas. São meus tesouros. Sei que mos guarda-rás".

Jesus mostra-lhe a colheita de uma noite de sofri-mentos: "Olha os que voltaram para junto de mim. Ter-se-iam perdido".

Última mensagem de Jesus, 6.12.23: "Chamo a to-dos, meus sacerdotes, meus religiosos, minhas religiosas, a viver em íntima união comigo. A eles cabe conhecer meus desejos e participar das minhas alegrias e das mi-nhas tristezas. A eles compete reparar com sua oração e suas penitências as ofensas de tantas almas. A eles com-pete, sobretudo, redobrar sua união comigo e não me dei-xar só. Muitos não compreendem e esquecem que a eles compete fazer-me companhia.

Esforcem-se por viver unidos a mim; por falar-me; por me consultar. Suas ações sejam revestidas dos meus méritos e cobertas do meu sangue. Dilatem seu coração, vendo-se revestidos do poder de meu sangue e dos meus méritos. Trabalhando sozinhos não vão fazer grande coi-sa. Mas trabalhando comigo, em meu nome e para minha

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glória, serão poderosos. Proclamem ao mundo inteiro minha bondade, meu

amor, minha misericórdia. Revistam-se de oração, de pe-nitência e sobretudo de confiança; confiança não nos pró-prios esforços, mas no poder e na bondade de meu Cora-ção.

Peço três coisas às minhas almas consagradas: re-paração, isto é, vida de união com o Reparador divino, que trabalhem por ele, com ele e nele; amor... não me deixem só; confiança naquele que é a Bondade e a Mise-ricórdia.

Eduardo Poppe, +1924 Seminarista ainda, aprendeu de Sta. Teresinha o

segredo da oração e do sofrimento pela salvação das al-mas. De volta ao seminário, após o serviço militar, arran-jou "rezadores" pela santificação do clero.

A noite mística da fé, purifica sua alma. Anima-se: "Ousa o pulo cego no amor invisível".

Em 1916, o sacerdócio. "Eis a tua vítima... Faze de mim um crucificado, por teu amor, ó Crucificado!” De 1919 a 1924, prostrado pela doença, oferece-se e sofre pela santificação do clero e pela Cruzada Eucarística, da qual é o fundador.

“Trabalhar no apostolado é bom; rezar é melhor; mas o melhor de tudo é sofrer".

O segredo do seu amor por Jesus é o amor a Maria Santíssima. Medianeira das graças, no espírito de São Grignon de Montfort. "Como sacerdotes devemos tornar-nos outros cristos. Quem mais indicado para nos ajudar do que a Mãe de Deus?".

"Ao morrer, não posso consolar-me de ter trabalhado muito no apostolado; pois todos somos servos inúteis. Mas o que me consola, é ter amado e ter feito amar Maria

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Santíssima". Diante do grande Crucifixo, no corredor do seminá-

rio, duas velas acesas e dois silenciosos rezadores: Pop-pe e seu amigo José. De repente, Poppe se levanta, pega uma vela e ilumina as chagas abertas e sangrentas do Salvador crucificado. Parando na chaga do coração, ex-clama: "Olha, José! Quão fundas são as chagas! Não tens medo? É o que nos espera. Mas coragem! É o Mestre".

Escreve no diário: "Jesus, faze de mim um crucifica-do". E foi atendido, caindo doente, desde o segundo ano do sacerdócio.

Para a ordenação sacerdotal reza: "Longe de mim oferecer-te, ó Jesus, na Santa Missa, sem oferecer-me a mim mesmo no mesmo altar".

Pensamentos de 1916: "Senhor, quero ficar santo; por isso quero sofrer. Senhor, quero santificar outros, e por isso devo sofrer. Senhor, quero santificar os sacerdo-tes, por isso devo sofrer. Senhor, quero converter os pe-cadores da paróquia, por isso devo sofrer". Seu desejo na última doença: "Ser escravo na cruz junto com Jesus".

Crucificados atraem. Seu sofrimento fecunda seu apostolado pela santificação do clero. "Costuma-se dizer: não há suficientes sacerdotes. Não é bem assim. Não há bastantes sacerdotes santos".

De uma carta aos seus colegas no sacerdócio cita-mos: "Cristo é o caminho. Portanto: pobreza, humildade, sofrimento. Não nos deixemos iludir por palavras ou por bonitos propósitos do nosso retiro. Christus passus est. Cristo padeceu, sofreu, irmãos. Se queremos tornar-nos sacerdotes santos e fecundos, é preciso sofrer, sofrer muito, com a mesma vontade com que dizemos ‘quero tornar-me um bom sacerdote, um santo’, pois é a mesma coisa.

Neste propósito de sofrer temos de manter-nos sem-pre, agarrar-nos como a uma tábua de salvação. Por ve-

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zes, por tantas vezes, arrepia-se nossa alma até o intimo ao compreender o que é querer sofrer. Mas deixem tre-mer e temer o coraçãozinho, e continuem dizendo com humildade: sim, aceito sofrer. Logo são superadas as difi-culdades e começamos a apreciar o sofrimento, talvez até a amá-Io.

Trabalhar é bom, rezar é melhor; o melhor de tudo é sofrer".

Como remate final, Poppe apresenta a chave de ou-ro que descerra todo o mistério: devoção e amor à Mãe de Deus, à Co-redentora e Medianeira. "Um penhor vos foi dado: devoção e amor à Mãe de Deus. A fim de não trabalhardes em vão, sede servos de Maria.

Somos propriedade sua, domínio mariano. Nossa sorte e destino estão nas mãos de Maria. Talvez milhares e milhares caem ao nosso lado, e a nós nada atinge, sob as asas da poderosa rainha do céu.

Ela irá guiar-nos e proteger-nos em nosso caminho. Não nos poupará o sofrimento; antes, dar-nos-á fome de sofrer, como de alimento necessário. Com a Ave-Maria em nossos lábios, somos invencíveis. Ave, Maria, mãe dos pequenos, socorro dos fracos, estrela na tempesta-de...

Irmãos, não vos digo mais nada. Estais sabendo tu-do. Amém, Maria!

Já conheceis o segredo. Conheceis o caminho curto, seguro e cômodo: ser pequenos servos, filhos corajosos da Virgem Maria".

Maria de Santa Cecília, +1929 "Queres sorver o cálice da minha Paixão?" "Sim, Je-

sus, respondi. No começo, mo ofereceu só na quinta e sexta-feira; depois, de segunda até sábado".

"Poucas almas, mesmo consagradas, sabem com-

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padecer-se da agonia de meu coração, porque não têm bastante delicadeza. Várias pessoas não sabem, porque têm medo de saber. Têm medo de dever renunciar a cer-tas fantasias".

"Jesus mostrou-me, em espírito, os milhões de al-mas que correm para sua perdição eterna... E ele, o Sal-vador, rodeado de um punhado de almas fiéis, sofrendo em vão por esses milhões de pecadores. Meu Jesus, o que é que falta?"

"As almas piedosas não se associam bastante aos meus sofrimentos. Consentes, tu, em padecer no físico e no moral?" “Podendo contar contigo, ó Jesus, com tua força, sim; com todo o amor".

“Jesus continua mostrando-me os milhões de almas que ele, durante sua agonia, viu correr para a perdição. E lá está ele, rezando e sofrendo... Meus apóstolos, Pedro, Tiago e João eram almas consagradas e ficavam dormin-do durante minha agonia. Quantas almas consagradas dormem também enquanto a Igreja está sendo persegui-da e sofrendo.

"Que queres meu Jesus?" "Amor e sacrifício. Com palavras, muitos dizem: tudo por ti, meu Deus. Mas na prática, agem muitas vezes: tudo por si. Faço grandes confidências às almas que têm compaixão de mim, e que-rem consolar-me na agonia" .

"Na minha agonia, meu coração sofreu mais pela in-delicadeza das almas consagradas do que pelos crimes mundanos, porque prodigo-lhes tanto amor".

"Meus sacerdotes deveriam ser outros eu. Amo-os! E são tantos deles que me amam pouco! Não vivem bas-tante a vida de união íntima comigo. Queres tu amar-me, renunciar-te pelos sacerdotes, cada sábado?"

"Jesus mostrou-me milhares de almas consagradas que estavam em sua presença. Um grande número esta-va distraído. Somente algumas, fáceis de contar, estavam

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ininterruptamente atentas a ele.” Jesus: "Olha! No dia da profissão fazem doação sem

reserva, mas depois, retomam-se... Nos pontos importan-tes da regra, cumprem minha vontade, mas nos pormeno-res, não ligam às minhas preferências. Vê estas outras, todas ouvido para saber novidades... e eu fico de lado. Conheço a fraqueza humana. Perdôo e esqueço. Mas meu coração sente a ferida. E eu as amo com amor infini-to! Eu queria dar minhas graças sem restrições. Mas a falta de renúncia, a falta de amor impede-me... Dizem: as grandes graças são para algumas privilegiadas. Que en-gano! Todas as almas consagradas são privilegiadas. Re-za, sofre, ama e ocupa-te apenas de mim somente".

"Uma alma totalmente abandonada a mim irradia longe. Com ela faço o bem até o fim do mundo".

"Chamo todas as almas consagradas para se doar totalmente a mim. Para deixar-se absorver por mim. Para deixar-me nelas agir com liberdade. Para através delas irradiar como quero. Chamo todas; mas tu vês como são poucas as que nada recusam. Em toda essa multidão, em cada alma, não se devia ver nada mais de humano, mas só a mim. Olhando para as almas consagradas, meu Pai celeste devia ver em cada alma, só a mim. Infelizmente, estão longe disto".

"Escuta bem: se todas as almas consagradas nada me recusassem, se me deixassem agir nelas livremente, então todas as almas se salvariam. Sim, todas as outras se salvariam. Pela voz das almas consagradas, eu iria pedir e suplicar a meu Pai celeste salvar e santificar todo o mundo. Ele não poderia recusar"...

"Vejo tantas almas caírem no inferno, sem dúvida, porque elas querem. Mas também por causa do abuso de minhas graças pelas almas consagradas. Reza e suplica ao Pai celeste para salvar todas as almas, e santificar to-das as almas consagradas. Meu coração ama cada alma

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infinitamente. Na minha vida terrestre, não pude fazer mais do que fiz. Agora quero continuar a redenção por meio da minha vida nas almas. Reza e suplica ao Pai".

“Jesus mostrou-me a influência das almas consa-gradas... Teu poder é infinito. A tua parte é grande na sal-vação e santificação de todas as almas, no presente e no futuro".

“Deixa-me estar em ti. no estado de oblação e imo-lação perpétua... A maioria não quer saber de mim, de meu amor" .

"Silêncio e renúncia; não me recuses nada, nada!" "Tenho necessidade de desagravo. Oferece-me, ofe-

rece meus méritos e meu sangue ao Pai. O domingo seja de reparação pelos pecadores. Segunda-feira, pela con-gregação. Quarta-feira, pelas vocações. Quinta-feira, pe-las almas consagradas. Sexta-feira, por todas as almas. Sábado, pelos sacerdotes".

"Estou atado em muitas almas consagradas. Corta esses liames". "Como?" "Pelo amor e pelo sofrimento do meu coração. Não posso agir livremente nelas. Ama-me por elas".

"Sorrir, sorrir sempre, mesmo quando te esmaga... Ainda queres sofrer?" "Sim, como tu, até o fim. Dá-me esta graça".

"Empenha-te em sorrir a tudo. Reprime, em silêncio, teus desgostos, tuas fadigas, tuas dores. Ocupa-te so-mente em agradar-me, sorrindo. Esquece teus sofrimen-tos; teu sofrimento não deve impedir de pensares mim. Tu nem existes mais. Não tens direito de pensar em teu so-frimento, pois na realidade sou eu que sofro em teu lugar".

"A glória que meu Pai recebe depois da Redenção é muito maior do que se o homem nunca tivesse pecado, pois a reparação que eu ofereço é infinita, e compensa infinitamente todas as ofensas humanas. Cada vez que uma alma se une a mim para glorificar o Pai, ela lhe pres-

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ta por mim uma glória infinita". "Jesus, o que queres para ser consolado?" "Oferece-

me a meu Pai. Tenho sede de almas. Grande número se perde porque muitos dos meus sacerdotes não me amam bastante. Eles não tocam os corações porque não estão bastante unidos a mim. Contam demais com os meios humanos, com a própria ação e não o suficiente com a minha ação divina".

"Quero que ames as almas com o mesmo amor que lhes dedico. E por conseguinte, que tu me deixes sofrer em teu lugar para salvá-Ias e santificá-Ias".

"O sofrimento que te dou é de um preço infinito para as almas".

Madre Francisca de Jesus, +1932 Fundadora da Companhia da Virgem (Petrópolis).

Pintando miniaturas, o pincel caiu-lhe das mãos, e por três vezes ouviu as palavras: "Amas-me?"

Vitima em 1922: "Nosso Senhor aparece-lhe carre-gando a cruz, seguido por uma multidão agitada. E Jesus lhe diz: "Quem sofreu tanto como eu?"

"Segue-me, preciso de ti. Recusas?" No mesmo ins-tante, imprimiu-se a Santa Face na parede da cela, e per-maneceu impressa..

"Seja eu fiel a minha amiga, a dor; terei muitas visi-tas dela".

Jesus: "Escolhe: Queres a alegria de uma fé sem sombras, ou preferes a obscuridade e o sofrimento que te farão cooperar na salvação das almas?”

Francisca fez voto de vitima. "Quero-te oculta, crucificada até a morte". "Escreve: entre todas as armas pelas quais os fiéis

podem ajudar a Igreja a cumprir sua missão divina, a ora-ção, unida à renúncia total de si mesmo, é sem dúvida a

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mais poderosa". Dizia no fim da vida: "Minha oração é como eu, cheia

de rugas e desdentada" (mas eficaz pela confiança). (GARRIGOU-LAGRANGE, Madre Francisca de Jesus,

trad. port., Petrópolis,1939).

Reine Colin, +1935 Jesus lhe diz na segunda estação da Via-Sacra:

"Quando tomei sobre mim este peso, vi todas as almas que futuramente me consolariam, me ajudariam a carre-gá-Io. Por isto, não sucumbi".

Jesus se substitui à alma vitima e reza ao Pai: "Pai, veja-a em mim; e nela veja a mim".

“Tarefa da vitima: imolação total de si à vontade de Deus, aceitando todos os sofrimentos físicos ou morais, em união com o cálice da agonia no horto... sentir-se feito pecado... sentir-se feito ódio de Deus... sentir-se conde-nado" .

"Não há degraus. Toda a alma que realmente quer responder ao meu desejo, a meu pedido de desagravo, deve renunciar-se em tudo, deve imolar-me todos os seus gostos, seus sentimentos. seu intelecto, sua vontade"...

"Toda a alma pode oferecer-se; preciso de uma legi-ão de almas vitimas".

"Eu amo, eu expio em ti. E conduzir-te-ei até a cruz. Minha paixão será a tua. Não se pode amar sem sofrer. Tenho sede de amor. Estou mendigando amor. Escreve isso. O amor é a reparação suprema".

Reine: "Terei a eternidade para gozar o amor. Tenho só o tempo, para gozar o sofrimento".

(Charles Maurras deve a ela sua conversão).

Consolata Betrone, +1946

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"A alma que mais me ama é a minha mais querida. Trata de amar-me; e no mais eu cuidarei de ti".

Obras fecundas de apostolado, apenas se o sarmen-to fica unido à videira e à medida da afluência da seiva" (Jo 15,1).

"Enquanto descansas em meu coração e me amas, eu queimo tuas faltas. Queimo tudo". "O amor conduzirá ao ápice do sofrimento".

"Vai repetindo sem parar: Jesus, Maria, eu vos amo; salvai almas. É a única coisa que exijo de ti".

"O que podes dar-me de maior senão o amor!"... "Por que não te permito muitas orações vocais? Porque o ato de amor é mais fecundo. Um único ‘Jesus Maria, eu vos amo, salvai ai mas’ expia mil blasfêmias" .

"Um ato de amor pode significar a salvação eterna de uma alma. Não omitas nenhum". "A cruz do amor é a mais fecunda de todas; para mim e para as almas".

Na profissão perpétua, 1934: "Hoje, eu te consagro vítima do amor. (E Jesus o exigiu sob voto). Sou onipoten-te e te amo sem medida. Tu também me amarás, sem medida. Garanto-te. Prometo-te".

"Consolata, eu já expiei todas as tuas culpas. Para purificar tuas mãos, eu permiti que furassem as minhas. Já fiz expiação por ti, por teus irmãos e irmãs (religiosos ou sacerdotes que abandonaram a vocação). Em grati-dão, só quero ser amado. Mas muito!"

"Todos sabem que sou santo, mas nem todos sa-bem que sou bom".

"O que fez teu Jesus na terra? A vontade do Pai. O que fez Maria Santíssima? A vontade do Pai. E o que fa-rás em meu coração? A vontade do Pai".

"Eu te amo ao excesso, e quero... que também me ames em excesso. Teu programa: hóstia por hóstia; víti-ma por vítima; excesso por excesso".

"Uma mortificação heróica é capaz de desanimar-te.

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Tu és uma alma pequena. Contenta-te com coisas pe-quenas, que nada significam. Mas dê-mas com grande amor. Então fico satisfeito!” "Nada de beber fora da refei-ção".

"Hoje vamos começar uma vida de penitência ver-dadeira, a fim de que triunfe em todos a minha misericór-dia. (Jesus explica-se: nenhuma satisfação, por mínima que seja, "nem nos dias de festas").

"Pobre Consolata, tu pensas que minha vida no sa-crário é inútil, porque não trabalho como tu. É mais útil que a tua, cheia de trabalhos... Ama!"

"Procura tuas mortificações na fidelidade aos teus deveres" .

"Consolata, preciso de uma vítima. Hoje cedo, o sa-cerdote te ofereceu (profissão perpétua) mas eu quero que tu mesma te ofereças como vítima. Preciso disso pa-ra os irmãos".

"Daí em diante todas as tuas comunhões serão ex-piatórias. Entende: sem consolo".

"Consolata, Consolata, ama, ama sem parar”, reco-menda-lhe um bem-aventurado no céu.

Teresio Giordano, sem purgatório ao céu. Consolata estranha e Jesus diz: "Abre a Bíblia (Jo 14,21): Quem tem os meus mandamentos e os guarda, esse é quem me ama”.

"É mister unir a rosa do amor à rosa da Paixão. Esta deve florir e arder dentro daquela" (Vitis mystica).

"Só na eternidade compreenderás com quanto amor especial eu te amei ao escolher-te como vítima".

"Consolata, como te amou Jesus? Sussurrando ao teu ouvido: eu te amo? Não, foi sacrificando-se".

"Consolata, eu te ofereci plenamente. Pois os maio-res presentes que posso dar são os sofrimentos. O sofri-mento é o mais desejável na terra. Pois assim pode-se mostrar, comprovar a Deus o Amor. O sofrimento é o res-

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gate das almas". "Sou eu... Se hoje tu amas, sacrifica-te; é de todo

mérito meu. Não tenhas receio. Apagarei a tua sede na torrente do sofrimento, e prometo saciar-te abundante-mente a sede de sofrer.”

Consolata passou os últimos onze anos sem consolo algum. "Até ao fim, será advento para ti". E a voz divina se apagou até a morte.

Padre João B. Reus, SJ, +1947 Jesus: "Eu preciso do teu coração. Quero que ele

me indenize e me faça companhia. Meu coração já não sabe mais onde repousar. Escolhi uma vítima em cujo coração desejo repousar. Quero que me ames e entre-gues tudo a mim" (104).

"Sinto-me encerrado no Sagrado Coração de Je-sus... Meu coração tem por assim dizer, o mesmo pulsar do coração de Jesus" (102).

Jesus trocou seu coração com ele: "Vi o coração de Jesus com todo o fulgor em mim, no lugar do meu"

Já um ano antes, em 1912, recebera as cinco cha-gas, a fim de sofrer junto com Jesus. Ficaram os estigmas sempre invisíveis, mas acompanharam-no até ao fim. De tempo em tempo, sentia-se pregado na cruz, participando das dores do Calvário.

"Peço muitas almas ao Senhor. Sacrifico-lhe tudo. Sempre lhe peço mil almas; porque ele disse a uma santa que um justo pode alcançar perdão para mil almas. Fre-qüentemente, de dia e de noite, vejo caírem milhares de almas no inferno. Seus anjos de guarda voltam para o céu de mãos vazias" (115).

(KOHLER, João Batista Reus, Porto Alegre, 1952).

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Século XX As contemplativas deste século querem dar também

sua contribuição (BRO, OP): Uma contemplativa, anciã de setenta e um anos, diz:

“Nossa tarefa própria é rezar, rezar, rezar com nossas lágrimas, com nossos sacrifícios, com a prece de Cristo: rezar com seu Sangue".

Uma beneditina, de quarenta e um anos: "Minha fé amorosa quer participar, tanto quanto ele deseja, do mis-tério da redenção. O discípulo não deve passar melhor que o Mestre".

Um trapista, de vinte e oito anos: "Não se pode amar a Jesus sem partilhar com ele aquela sede pela salvação dos homens".

Uma carmelita, de sessenta anos de vida e trinta e dois de convento: "Como reparação eu ofereço ao Pai o sacrifício de seu Filho e a mim, junto com ele, pela salva-ção do mundo. De que maneira nossa vida pode reparar o pecado do mundo? Segredo de Deus. Todavia, continuo rezando por aqueles que não rezam. Amo por aqueles que não amam".

Maria Filippetto, +1927: "Mamãe, hoje sou missioná-ria". "Por que?" "Sabe, hoje sinto dores muito grandes; tudo pelas missões".

Frei Pio de Pietralcina, +1969 "O desejo de amar já é amor". "Acredita-me: quanto mais uma alma ama a Deus, menos o sente". "Amar amargamente o Amor". "Mais vale fazer a vontade de Deus na terra do que

gozar no céu". Escreveu a um moço: "Comprei-te ao preço do meu

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sangue" . A uma filha espiritual: "Não posso esquecer-te. A ti

que tantos sacrifícios me custaste; que te criei para Deus no meio de dores extremas".

Poucas semanas depois, após a estigmatização vi-sível, a 20 de setembro de 1918, escreve: "A violência das dores não me deixa falar. Paralisam-se os membros... Reza para que minha alma não se perca nesta terrível provação".

Dos últimos anos: um fotógrafo bateu um flash às escondidas. Ao revelar a chapa, aparece Frei Pio com uma coroa de espinhos na foto. Julgando ser castigo, o fotógrafo correu a Frei Pio pedindo desculpas. Este con-tentou-se em dizer: "Poderia ser de outro modo, do jeito como hoje estão as coisas?"

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10. CÉU “Receberemos uma casa edificada por Deus, não

por mãos humanas, um edifício eterno no céu” ( 2Cor 5,1) “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14,2) “Alegrai-vos e exultai: grande será a vossa recom-

pensa no céu” (Mt 5,12) “Derramar-vos-ão no seio uma medida cheia, recal-

cada, coagulada” (Lc 6,29)

IDÉIAS Nós, seres terrestres, somos tentados demais a re-

duzir o céu ao tamanho da nossa terrinha... é de nas-cença. Sem sermos tão cínicos como Renan (um dos mui-tos anti do céu). Moribundo, rabiscou num papel: "Meu emprego no além, arquivista de mim mesmo; durante a eternidade irei rever e remexer meus papéis e meus li-vros". Quiçá já esteja fazendo isto? Quem sabe, Lúcifer lhe cobrou a palavra, como outrora a Sísifo na lenda gre-ga.

É curioso: ninguém tem pressa de ir para o céu, afo-ra os santos. Conta a anedota clerical que um moribundo declara com franqueza: "Não tenho pressa de sair da ter-ra; pois terei durante toda a eternidade, bastante tempo para amar a Deus e regozijar-me com ele".

O outro modo: o sacerdote-mártir, Pe. Jacques, OCD, vítima do antisemitismo, exclama perante a morte tão próxima, alegre, jubiloso: "Mas pensem!... Ver Deus!... Ver Deus!..." Perguntam a Sta. Teresinha se está resig-nada a morrer. Responde: "Acho que é necessário resig-nação para viver. O pensamento da morte enche-me de alegria".

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Pregador fiel foi Sto. Agostinho num sermão domi-nical. Soube descrever tão bem a beleza do céu que o auditório se levantou exclamando: "Pereant universa” (Desapareça todo o universo). Simples, singelo, convicto, o testemunho de um cristão do povo: Gauss, o matemáti-co, escreve em 1802 a um amigo: "Adeus, amigo! Que o sonho, que chamamos vida, te continue bonito, antegosto da verdadeira vida que nos espera em nossa pátria ver-dadeira. Carreguemos esse fardo corajosamente, até o fim. Quando então bater nossa última hora, quando caí-rem do espírito livre as correntes do peso corporal, então será indizível nossa alegria de ver aquele que só podía-mos adivinhar durante a vida terrestre".

ONDE? Conta um antigo escritor que certo homem quis ven-

der seu belo e luxuoso palácio. Arrancou uma pedra dos muros, exibindo-a aos companheiros como amostra de propaganda. Risadas e caçoadas. Em situação semelhan-te encontra-se quem tenta descrever o céu. São Paulo sente-se na mesma situação e diz: "Quando eu era crian-ça, falava como criança; pensava como criança; julgava como criança" (1Cor 13,11).

Perante a eternidade somos como crianças. Porque o céu, nossa morada celeste, tem as dimensões de Deus, que ultrapassam de longe as miniaturas terrestres. Onde está o céu? A primeira pergunta da criança. Todos os dias rezamos: "Pai Nosso que estais no céu". Como? Jesus também pensava de um modo tão anticientífico, supondo Deus residir em algum lugar entre as estrelas? E aconte-ce que o céu acima de nossa cabeça é um de dia e é ou-tro de noite, já que a terra gira ao redor de si.

Já o salmista do A.T. sabe a resposta (SI 138,7): "A-onde irei para fugir do teu espírito? Se subo ao céu, tu lá

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estás. Se desço para o abismo: lá te encontro. Se tomo vôo ao raiar da aurora e pouso no último limite do mar... até lá se estende teu braço". O céu é Deus, e Deus está em toda parte. E diz Jesus mais uma palavra de consolo e alegria: "Quem me ama, guarda minhas palavras e meu Pai o amará. E viremos a ele e faremos nele nossa habi-tação" (Jo 14,23). O céu está dentro de nós.

Mesmo sabendo isto, Jesus gostava de rezar debai-xo do céu estrelado. E por que razão insistir: "Deus Pai do céu?"... Para nos inculcar esta verdade tão simples e tão esquecida, que o mundo ao nosso redor, por grande, por forte, por bonito que seja, não é Deus. Deus está acima de tudo isto... Mais alto... Foi também a fim de nos lem-brar sempre que a nossa pátria é o céu. No além, onde mora o Pai. Lá está nosso lugar. Jesus mesmo nos man-da rezar todos os dias ao Pai do céu. Manda juntarmos tesouros no céu. Garante que nosso nome está escrito no céu e que ninguém nos roubará a felicidade. "Vinde, ben-ditos de meu Pai, e possui o reino que vos está preparado desde o principio do mundo" (Mt 25,34).

Mas onde está este céu? Resposta: está onde está Deus. Céu é vida de união com Deus. Céu é também vida de comunidade de todos os anjos e bem-aventurados. E, ao menos após o juízo final, após a ressurreição dos cor-pos, esta comunidade – parece – estará em lugar corpo-ral. Penso que a terra será pequena demais para caberem todos. Diz a Escritura que haverá um novo céu e uma no-va terra (2Pd 3,10; Ap 21,1). Mais, não sabemos.

E como será o céu? Outra pergunta infantil dos se-res humanos. E mais infantil ainda se imaginarmos algo como paisagem romântica, parques de fantasia... Tudo fantasia. A realidade será outra. E por sinal bem melhor. "Olho humano jamais viu, nem ouvido humano jamais ou-viu, nem coração humano jamais sentiu o que Deus tem preparado para aqueles que o amam" (1Cor 2,9).

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Nosso corpo (após a ressurreição universal) será glorioso. Será o mesmo que conosco sofreu para con-quistar o céu. Mas será transformado. Será, em certo sen-tido, espiritualizado, à semelhança do corpo glorioso de Cristo ressuscitado. Não se transformará num ser espiri-tual. Continuará sendo matéria e corpo humano. Mas par-ticipará da glória divina, que transborda da alma beata. "Semeia-se um corpo material e ressuscita um corpo espi-ritual. Se há um corpo material, há também corpo espiri-tual" (1Cor 15,43.44).

QUANDO Sabemos que o céu é um paraíso verdadeiro. E, no

entanto, ninguém tem pressa de sair da terra. Por que alegramo-nos tão pouco pela esperança do céu? Falta de fé? A doutrina da Igreja é clara e está fora de discussão. Sentimos que podemos contar com o céu. Mas por que então um futuro tão risonho não "puxa?" Esta inefável feli-cidade que nos é prometida pela fé, pela palavra de Deus, devia preocupar-nos dia e noite. Devíamos arder em im-pacientes sobressaltos, ansiosos como um escolar que conta dias e horas até o início das férias. E todavia, ne-nhum dos cristãos vive afobado pela vinda do céu.

Será, talvez, por medo da morte? O portão, que con-duz ao céu, é a morte com suas sombras, seus imprevis-tos e suas incógnitas. Talvez já tenhamos visto alguma pessoa nas últimas horas. Quadro desolador! Parece sen-tir dores, apesar das injeções. Talvez este pensamento esfria o entusiasmo. É possível. Mas pensando bem, após algumas horas (não anos) no hospital, estaremos definiti-vamente arranjados e para melhor.

Ou será o medo do inferno? Não pode ser! Quem tem boa vontade tem o céu garantido. Boa vontade de amar a Deus. E bondade para amar cá na terra seu pró-

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ximo. Não disse Jesus que os misericordiosos serão tra-tados com misericórdia? Os bondosos, com bondade. Tu-do na mesma medida. Portanto, não há problema.

Ou prende-nos o amor à vida terrena? Na mocidade, sim. Mas depois – pensando bem – devíamos nos con-vencer que só haveria vantagem na troca.

Mas qual é então o empecilho? A fé nos afirma e ga-rante o céu e sua desmedida felicidade. Mas são todas elas coisas invisíveis E tão abstratas como fazer contas de matemática ou geometria. E assim, não impressionam. E nosso coração só se entusiasma se vê algo. É a grande cegueira da humanidade perante o mundo do além. Por lá tudo é escuro! Ou seja: tão azul celeste e nada mais. O que Jesus contou, muito ou pouco; analisando suas pala-vras, levantam-se novos problemas que restam no obscu-ro. Jesus descreveu o céu com palavras singelas e com várias parábolas, de um modo tão sugestivo que toda cri-ança é capaz de entender algo.

O céu, na teologia dogmática, é um dos tratados que ocupam menos páginas. Mas também é impossível des-pejar o mar num buraco da areia. O jeito é esperar. So-mos como um cego que viaja através de uma paisagem belíssima: não vê nada. Se o companheiro tenta descre-ver-lhe o que vê, alegra-se um pouco, talvez mais por ver seu amigo tão entusiasmado. Mas, por hora, acontece que todos os passageiros são cegos.

Daí, desta fraqueza da fé, da opacidade, da imper-meabilidade da mente humana é que provém o nosso pouco entusiasmo pelo céu. É como se víssemos um país só no mapa, não na realidade. O único remédio é meditar, refletir mais, rezar. Talvez nos pegue algum dia a sauda-de que sentiam os santos.

Francisco de Assis, na última doença, recebe a visita de um anjo que toca um violino. Sumiram todas as dores do moribundo. E disse o santo: tivesse tocado mais uma

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vez, teria morrido de felicidade. Diz Sto. Agostinho tão bem: "O prêmio que Deus dá é ele mesmo. Pode-se ser exigente e insaciável; Deus basta".

CIDADE CELESTE O penúltimo capítulo da Bíblia tenta descrever, pin-

tar-nos o céu. Mas tudo em figuras simbólicas, arte abs-trata. São Paulo foi arrebatado até ao terceiro céu, mas viu-se depois incapaz de dizer algo inefável. São João viu abrir-se o céu ante os seus olhos: "Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, ornada como uma noiva" (Ap 21,1). E o apóstolo tenta transmitir a mensagem do alto: uma cidade maravilhosa feita de ouro, cristal, pérolas e pedras precio-sas; símbolos e reflexos, revérberos da glória de Deus. Não há nem sol nem lua, porque "a glória de Deus" a ilu-mina. Enorme seu tamanho. Seus habitantes: a grande multidão de todas as tribos e de todas as nações da terra.

Cidade santa: porque é o "habitáculo de Deus entre os homens. Deus mesmo habitará no meio deles" (Ap 21,3). Não há templo, nem Igreja nesta cidade, "porque Deus e o Cordeiro são seu templo" (Ap 21,22). Santos são seus moradores. "Nada de impuro ali entrará, nem idólatra, nem herejes; mas somente os inscritos no livro da vida" (Ap 21,26). Felizes seus habitantes. Daí, jorram águas da vida eterna (Jo 7,39). "Uma torrente de água viva resplendente como cristal" (Ap 22,1).

Ali está a árvore da vida, carregada de frutos que dão a imortalidade, a vida eterna (22,1). "Deus enxugará as lágrimas dos seus olhos; já não haverá nem luto, nem lamento, nem dor". "Porque passaram as coisas de ou-trora" (21,4). Brilha para eles o sol da vida eterna: Deus. E seus raios se refletem em revérberos na fronte dos elei-tos. "Porque a sua luz é o Cordeiro. Brilharão pelos sécu-los dos séculos" (22,5). Eis a cidadela celeste do vidente.

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Figuras e símbolos da "glória eterna". Diz Jesus que os santos do céu "brilharão como o

sol" (Mt 13,43). Repete o apóstolo: "Deus nos chamou ao seu Reino e à sua glória" (1Ts 2,12). "Deus vos chamou para tomardes parte na glória de Cristo" (2Tes 2,14). "Quando aparecer o Cristo, nossa vida, aparecereis tam-bém vós com ele na glória" (Cl 3,4). E São Pedro prome-te-nos uma "coroa imortal de glória" (1Pd 5,4).

Daí a conclusão: "Os sofrimentos do tempo presente não se comparam com a glória futura que se há de revelar em nós" (Rm 8,18). “A ligeira tribulação que de presente sofremos nos merece um tesouro eterno de glória sem igual. Contanto que cravemos o olhar, não nas coisas vi-síveis, porém, nas invisíveis; pois o visível dura pouco tempo, ao passo que o invisível é eterno" (2Cor 4,17).

Roger Wrenno, mártir inglês, foi condenado à forca

(1616, Lancaster). Mas a corda rebentou. O povo aplau-diu, convidando-o a desistir da fé romana: "Vais ficar li-vre". Mas Rogério correu depressa pelos degraus do pa-lanque acima. E o algoz caçoando: "Por que tanta pres-sa?" Rogério: "Ó rapaz, se tivesses visto o que eu vi, tu correrias também". Instantes depois estava para sempre na glória de Deus.

PORTA ABERTA Quando aparecermos na porta do céu, com que di-

reito pediremos entrada? Nosso anjo da guarda apresen-ta-nos humilhados pelo pouco que podemos oferecer à Santíssima Trindade. "Deus é um abismo de condescen-dência. Ele precisa como que humilhar-se para receber as adorações fulgurantes dos serafins. Mesmo para receber o amor do Coração Imaculado de Maria Santíssima ele está obrigado a se abaixar" (F. W. Faber). Mas seu amor

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apaixonado pelas criaturas fá-Io passar por cima de todas as conveniências requeridas por sua majestade infinita. "Que contraste incrível entre o que o homem faz por Deus na terra e o que Deus faz pelo homem no céu" (F. W. Fa-ber). Mesmo se alguém chega na última hora... Se fosse possível ficar envergonhado no céu, seria o nosso caso. Pelo muito que recebemos e pelo pouco que fizemos. Por nosso amor tão parcimonioso, comedido, limitado que demos a Deus na terra, em nosso coração egoísta.

Nossa entrada na glória, ei-Ia descrita na Bíblia (Es-ter, 15): No terceiro dia, ela se revestiu com seus vestidos mais preciosos. E, invocando o Mestre e Salvador su-premo, segue o caminho. As portas do palácio abrem-se diante dela, uma após outra. Finalmente está perante o rei, sentado no trono, rodeado de toda corte e pompa. Levantou os olhos sobre ela. A rainha sente-se desfale-cer, empalidece, vacila. E o rei, com toda pressa, desce do trono, sustenta-a em seus braços, dirige-lhe a palavra carinhosa. Não temas Ester, eu sou teu irmão. A lei de morte não foi feita para ti. E tocou-a com o cetro de ouro. Por que não falas? Responde: "Eu te vi, ó rei, como um anjo de Deus, e meu coração tremia perante a majestade. Pois tu, senhor, és adorável e tua face está cheia de gra-ças". "Vem comigo e descansas em meu braço", respon-de o rei.

Reconheçam o amor do criador à sua criatura. "Eis a história mais verídica que jamais houve; melhor: do único amor que jamais houve... E ele nunca acabará" (F. W. Faber).

DESCANSO ETERNO Sto. Agostinho descreveu o céu com uma frase lapi-

dar, numa linguagem elegante e num latim clássico que desafia tradução: "Ibi vacabimus et videbimus. Videbimus

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et amabimus. Amabimus et laudabimus, ecce quod erit in fine sine fine".

Primeiro, o descanso das fadigas e canseiras da vi-da terrestre. "Bem-aventurados os mortos, diz o Senhor... descansarão dos seus trabalhos e suas obras os acom-panham" (Ap 14,13). Chegamos em casa, onde nos rece-be de braços abertos o carinho dos nossos. Como des-creve Isaías 66,12: "Farei correr a paz e a felicidade sobre eles como um rio, e como uma corrente transbordante. Apertar-vos-ei ao meu coração, diz o Senhor, e vos carre-garei sobre os joelhos como crianças de colo. Como uma mãe acaricia seus filhos, assim consolarei Jerusalém. Vossos ossos irão florir como flores... E a mão do Senhor se manifestará".

O que rezamos tantas vezes sobre os túmulos aber-tos, realiza-se agora: "Requiem aeternam". Dai-Ihes o descanso eterno na luz eterna, perpétua. É o termo final da viagem. Envolve-nos a paz, paz suave e forte como o mundo não pode dar. A vida terrena está longe, distante na bruma, como um sonho agitado. Passou o pesadelo. Sobre os ossos, que apodreceram no cemitério, cresce a erva. Os ciprestes agitam no vento suas copas. As som-bras da tarde encobrem as ruínas dos túmulos. Ao sol da manhã sucede a noite. As estrelas seguem o seu curso... e os anos se vão e retomam. O esquecimento envolve tudo, apaga todos os vestígios da criatura morta. Mas sua alma descansa na paz de Deus, paz eterna. Descanso enfim, para sempre. Passou todo o mal, todo o sofrer, to-do o medo. Vivemos agora na plenitude de Deus. Temos tudo. Nada nos falta, nem irá faltar.

Todas as sete preces do Pai-nosso realizaram-se. Cá estamos no céu junto do Pai do céu. Onde seu nome é santificado plenamente. Onde seu reino já chegou, já se cumpriu, já se realizou e seu reinado é inconteste. Onde se faz a sua vontade com absoluta perfeição. Não preci-

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samos pedir mais pelo pão de cada dia, porque Jesus vive em nós e ele é a vida eterna. Não precisamos mais pedir perdão pelos pecados: os passados não existem mais; foram apagados e para o futuro, pecar é impossível. Não mais precisamos temer a tentação. Na terra vivemos de coração dividido, à mercê de dois rivais que se degla-diam em nosso peito. "Infeliz de mim”, dizia o apóstolo (Rm 7,24). No céu estaremos em absoluta segurança. Tenho Deus e Ele tem a mim.

Meu coração viu a Deus, e tende espontaneamente e com força irresistível ao bem supremo. Tornou-se im-possível a alma afastar-se de Deus e Deus da alma. En-fim, posso ficar despreocupado. Nada mais me separa de Deus (Rm 8,38). O tempo da prova passou. E do passado não fica mais nada? Sim e não. Nada que perturbe ou aflija. E fica tudo o que dá alegria e felicidade. Dos bens terrestres, guardamos a satisfação de os ter usado para a maior glória de Deus ou rejeitado por seu amor.

Meus gostos humanos. Se foram desordenados, te-rei a satisfação de os ter vencido. Se foram retos e bons, eu os encontrarei de novo na convivência com as pessoas amadas. Ou serão absorvidos pelo superpotente amor de Deus que abraça, envolve, assimila tudo e que dilui, des-faz tudo quanto lhe obsta.

E meus pecados passados? Os santos lembrar-se-ão com prazer de suas penitências. E nós, viveremos mergulhados num mar de misericórdia e de bondade. Eis tudo quanto sobrou das nossas fraquezas. E se eu per-guntar aos habitantes celestes por seus trabalhos, por suas canseiras, por seus sofrimentos na terra? Todos me responderiam a uma só voz que não têm proporção com sua glória. Os labores apostólicos tão sobre-humanos de São Paulo, de São Vicente Ferrer, de São Francisco Xa-vier, as penitências e mortificações de tantos fiéis, as tor-turas de tantos mártires nas arenas romanas ou nos cam-

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pos de concentração – tudo passou. Foi um breve instan-te, do qual nada mais resta senão a glória e a felicidade.

Oito vezes Jesus prometeu às almas de boa vontade a felicidade eterna. Bem-aventurados os pobres. Bem-aventurados os sofredores. Bem-aventurados os castos. Bem-aventurados os perseguidos e oprimidos. Agora, no céu, o trabalho cessou. Fica só a felicidade, cheia, trans-bordante, eterna. E se os santos comparam-na com o preço que Ihes custou na terra, só podem exclamar: foi por um nada, foi presente, foi uma graça" (Long Haye).

"Vacabimus". Pudéssemos avaliar, saborear desde já o valor desta palavra! Tentemos, ao menos pela fé e esperança, representar-nos ao vivo essa promessa de Deus, fazendo-nos antegozar um pouco daquela paz e felicidade que será a nossa, quando Cristo nos chamar: "Vinde benditos de meu Pai". Sofrimento e temor pas-saram. Não haverá mais dor ou sofrimento para vós. Só paz, calma, segurança, alegria sem fim.

"VIDEBIMUS" Misteriosa a palavra com que São Pedro qualifica o

cristão: "Somos feitos participantes da natureza de Deus" (11, 1,4). O apóstolo interpreta assim as palavras de Je-sus: "Dei-Ihes a glória que tu me deste... antes da criação do mundo" (Jo 17,2). A teologia usa o termo graça santifi-cante, pela qual "somos filhos de Deus, embora ainda não seja manifesto o que viremos a ser" (1Jo 3,2). Quando transparecer essa graça interna, "seremos semelhantes a ele, porque o veremos como ele é" (1Jo 3,2).

"Quando contemplarmos, de face descoberta, a gló-ria do Senhor, seremos transformados na mesma ima-gem, brilhando em claridade cada vez maior" (2Cor 3,18). Quando caírem os véus, a luz da fé será substituída pela luz da glória e veremos a Deus diretamente, sem interme-

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diário. "Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus" (Mt 5,8). Deus mesmo, o Cordeiro, será a nossa luz (Ap 22,5). "Agora, vemos Deus como que num espelho, mas depois, face a face; agora, só conheço em parte, mas depois, conhecerei de todo: assim como eu sou conhecido" (por Deus) (1Cor 13,12).

Eis os dados da revelação. A teologia tentou, duran-te quase dois mil anos, explicar "melhor", mas sem muito resultado. Ainda vale a palavra de Sto. Agostinho: "Mais fácil dizer o que não há no céu do que dizer o que nos será dado". E, a propósito, uma palavra de São Paulo: "Ele é poderoso para fazer incomparavelmente mais do que possamos imaginar" (Ef 3,20). Nosso conhecimento de Deus na terra é tão precário, limitado, às vezes confu-so; penosamente, juntamos peça por peça, como um mo-saico, um conhecimento fragmentário. Mas na glória ve-remos a Deus em si, porque ele nos empresta seus pró-prios olhos. Como se expressou Sto. Agostinho: "Os bem-aventurados vêem a Deus com os olhos de Deus". Ainda hoje há cristãos que neste ponto perguntam: E o que mais? É só isto?

Ora, vermes da terra! Veremos a Deus como ele se vê a si próprio, face a face. Um milagre que só tem pare-lha no milagre da Encarnação (Scheeben). Milagre inaudi-to. Criatura alguma é capaz de ver a Deus diretamente. Para isto Deus tem de criar-nos novos olhos. Mais exata-mente: Deus dá seus próprios olhos. Nenhuma coisa cria-da é capaz de representar Deus como ele é, em sua infini-ta natureza divina. Por isto Deus une e funde a alma hu-mana em sua natureza divina e fá-Ia ver com a luz divina. Mistério inefável.

Visão perene, inesgotável, por Deus ser infinito. Há tempo, há assunto para toda uma eternidade. Escreve Gregório de Nissa: "Nosso coração nunca se farta, porque o bem infinito não tem limites". "Deus ilumina a alma con-

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tinuamente e ela aprende continuamente, porque suas riquezas não têm limites. Sua sabedoria não tem medida. É um progresso contínuo de eternidade em eternida-de"(Irineu).

A essência divina penetra a minha alma. Fácil dizê--lo. Mas que conseqüência! Se Deus me envolve, se a luz eterna me envolve, eu também brilharei. Se Deus, a ciên-cia eterna me envolve, então eu também saberei tudo a-quilo que me permaneceu misterioso na terra. Se Deus, a bondade infinita, me envolve, então se cumprirão todos meus nobres desejos. Se Deus, a felicidade eterna, me envolve, então terei todas as alegrias que a terra me ne-gou, ou que eu me neguei na terra" (T. Toth).

Jesus mostrou a Sta. Teresa d'Ávila a glória dos elei-tos, rematando: "Veja o que perdem os que são contra mim; não deixes de Ihes contar isto" (Vida, 38). Sta. Ma-dalena dei Pazzi faz a comparação engraçada: "É como quem bebe um copo de água fresca e outro que se banha no mar". A Gertrudes Maria diz Jesus: "Deixo-te mais tempo na terra a fim de tornar-te mais feliz no céu. Tu procuras dar-me prazer, glorificar-me. Eu te glorificarei algum dia". Gília, a amiga de Sta. Margarida de Cortona, dedicada enfermeira num hospital, recebeu um lugar entre os querubins.

Visão desigual: mas total e completa para cada um. Algo assim como os ouvintes de música numa sala de orquestra. Todos ouvem tudo igual, mas não o saboreiam igualmente. Aliás, ninguém é capaz de exaurir a plenitude infinita do ser divino, nem a Santíssima Virgem.

O corpo humano, com seus cinco sentidos, após a ressurreição final, participa também desta visão a seu modo. O corpo e seus sentidos, serão divinizados. Por-tanto, um pouco mais aptos do que agora na vida ter-restre. Mas o como, é mistério. Aqui na terra, recebendo a alma uma visão celeste, ela cai freqüentemente em êxta-

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se, isto é, perde os sentidos, por serem obtusos demais para as coisas celestes. Como Deus fará isto no céu? Mais um mistério a ser descoberto quando lá chegarmos.

"AMABIMUS" Para um ser espiritual a felicidade não é completa

sem amor perfeito. Amar é tarefa de meu coração, é sua alegria, seu alimento, sua vida. E como nosso coração quer viver sempre mais, por isso quer também amar sem-pre mais Amar sempre, sem temer engano, desilusão, inconstância. Nosso coração sonha com uma amizade firme, duradoura, intensa. Esse ideal não existe sobre a terra. Nenhuma criatura pode ser amada com tal amor prepotente.

O coração é mobile, o nosso e o dos outros. E, por outro lado, são inevitáveis as desilusões. No céu, encon-traremos entes queridos e seres dignos de amor. É que são todos santos e santificados pela glória de Deus. Es-creveu Lucie Christine: "Como estão equivocados aqueles que crêem que, na outra vida, seus amores e simpatias desaparecerão. Na verdade, ali só recebem seu pleno desenvolvimento. As almas perdidas em Deus adquirem ali sua plena expansão, a madureza de todas as faculda-des, pensando, contemplando e amando em Deus e por Deus. Em Deus, compenetram-se as almas de um modo maravilhoso, mistério e felicidade totalmente ignorados na terra" (Journel, 314).

Entre todos a mais formosa, a Virgem Perpétua e Mãe de Jesus atrairá amor e afeição total do nosso cora-ção. “Quero, ó Mãe, em teus braços queridos des-cansar”... E todas as poesias e canções à Santíssima Vir-gem serão ultrapassadas pela realidade.

Mas o sol no céu estrelado de Deus: Deus Pai, Deus Filho, Deus Amor. Os demais amores no céu, comparam-

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se às estrelas, pequeninos pontinhos luminosos. Meu amor pelo Filho de Deus na terra era só um começo. A-demais, assombrado pelo medo de perdê-Lo. Não havia lugar de temer desilusão, mas a minha inconstância, ob-cecada talvez por ilusões terrestres, fatamorganas incon-sistentes. Enfim, no céu encontro o ideal absoluto, cheio, pleno, total. Encontro a realidade. Agora, enfim, irei amá-Io sem limites e restrições. No ardor de um êxtase ininter-rupto, irei gozar enfim a segurança, a paz no amor de Deus.

Deus, visto face a face, não me parecerá menos amável do que eu imaginei na terra. Ao contrário, sua vi-são ultrapassa toda a expectativa. Realmente: "coração humano jamais sentiu o que Deus preparou para aqueles que o amam" (1Cor 2,9). E igualmente seguro estou que ele corresponde ao meu amor. Deus me ama com amor infinito. Desde eternidades, seu amor me preveniu. Procu-rou-me em longas caminhadas na terra. Agora que ele me possui para sempre, nunca me abandonará. E eu mesmo estou na feliz situação de não mais poder abandoná-Io. Minha vontade está confirmada no amor de Deus por toda a eternidade. Não preciso mais temer separação ou mor-te. Deus se me deu de presente eterno. Eu mesmo sou agora imortal. Uma necessidade feliz, imperiosa, cons-trange-me a amar a plenitude do amor e a plenitude do ser. Minha alma mergulha neste oceano de felicidade, oceano sem margem, sem fundo. Jesus disse a São Pau-lo da Cruz: "Filho, no céu a alma bem aventurada não es-tará unida a mim como amigo com seu amigo, mas será como o ferro penetrado pelo fogo". Sta. Teresinha: "O que me atrai no céu? Nada de felicidades. O que então? Só o amor. Amar e ser amada". Lúcia Cristina: "O que serei na eternidade? Um ato de amor".

Nossa ocupação principal no céu será amar a Deus. Amá-Io-emos, não com nosso coração humano, estreito e

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mesquinho. Amá-Io-emos com o seu amor. Deus nos em-prestará seu próprio coração para amá-Io. Amaremos a Deus com a Terceira Pessoa da Trindade Santa, com a pessoa-amor, o Espírito Santo. Pois ouça as alvíssaras de São Paulo: "O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5,5). Jesus já dera o primeiro aviso na vigília de sua morte: "O amor com que me tens amado, ó Pai, esteja neles e tam-bém eu esteja neles" (Jo 17,26). Por isso também nosso amor ao Deus Uno e Trino será "forte como a morte e su-as labaredas de fogo são inestingüíveis", jubila a esposa dos Cânticos (Ct 8,6).

Não sabemos como orar: "O Espírito Santo de Deus é que agora ora por nós em súplica inefável" (Rm 8,26). Menos ainda sabemos amar a Deus como deve ser. O Espírito vem pois em nosso socorro. Deus envolve a cria-tura humana com sua essência infinita. Deus é amor(1Jo 4,8). E assim, a nossa alma torna-se amor. O furacão ce-leste de Pentecostes figura esse amor divino, impetuoso como um vendaval. Sta. Madalena dei Pazzi corria pelos corredores silenciosos do mosteiro, embriagada de amor divino e fora de si, clamando: "Ó Amor, ó Amor, ó Amor... ó Deus meu, é demais! Não para tua majestade, mas para mim, pobre criatura! Ó Deus, como tu amas a nós, vossas criaturas!"

"LAUDABIMUS" Meu destino: ser louvor de Deus por toda a eterni-

dade. Da visão eterna, do amor eterno, de um coração transbordante de felicidade irá brotar com ímpeto louvor eterno de Deus. Um louvor espontâneo e forçado ao mesmo tempo. Louvor sem cessar. Mil vezes variado. Canção sempre nova e inesgotável em suas variações, em sua plenitude. Louvaremos Deus; louvor a Cristo, nos-

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so Salvador. Louvor à Santíssima Virgem Co-redentora. Louvor aos anjos, aos santos. Agora é minha vez de can-tar meu Magnificat. Porque o Todo-Poderoso fez grandes coisas em mim. Pois posso vê-Io face a face; posso amá-Io de todo meu coração, com todas as forças, sem fim.

Um júbilo eterno dos milhões e milhões de eleitos vai levantar-se, um jubiloso "Glória a Deus nas alturas", jubi-loso como o som dos clarins e incontido, impetuoso como o bramido dos mares do mundo. Vai reboar nas abóbadas celestes. Seu eco vai se perder distante nos confins do espaço e do tempo. A Escritura descreve algumas vezes o canto e o culto da humanidade redimida no santuário celeste, de modo especial no Apocalipse 4-7.

Esquemas, sombras da realidade. O trono de Deus está rodeado de sete espíritos e de vinte e quatro anci-ãos, que cantam dia e noite: "Santo, três vezes santo é o Deus onipotente, que era, que é, e que vem"... Digno és tu, Senhor Deus nosso, de receber glória, honra e poder.” E ao Cordeiro entoam o hino: "Digno és tu, de receber poder, riqueza, sabedoria, fortaleza, honra, glória, louvor... pelos séculos dos séculos. Amém". "Depois, vi uma multi-dão que ninguém poderia contar, de todas as nações, tri-bos e povos, trajando vestes alvas e com palmas na mão. Bradavam em altas vozes: Salve ao Deus nosso no trono e ao Cordeiro" (7,9).

"Depois, tive uma visão: o Cordeiro estava no alto do monte de Sião e com ele cento e quarenta e quatro mil, que traziam gravado na fronte o nome dele e o nome do seu Pai. E ouvi uma voz do céu como o bramir de muitas águas e o ribombar de um grande trovão. E a voz era co-mo de trovadores tangendo as citaras. Cantavam um cân-tico novo. Ninguém podia aprender aquele cântico, senão aqueles cento e quarenta e quatro mil resgatados da ter-ra. São virgens e seguem o Cordeiro aonde quer que ele vá. Foram resgatados como primícias para Deus e o Cor-

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deiro" (14,1). Alguns flashes na pobre linguagem dos mortais De

bom grado entoamos com o salmista o jubiloso "Aleluia". "Louvai ao Senhor nos céus. Louvai-o todos os anjos e santos, sol, lua e estrelas de luz" (SI 148ss). E, em meio deste mar de sons e júbilos, está o Cordeiro, o Redentor a dizer ao Pai: "Cumpri a obra que me deste" (Jo 17,4). Por isso "tudo lhe está sujeito". E agora, o Filho "se submete-rá... para que Deus seja tudo em todas as coisas" (1Cor 15,26-28). E nós nos recordamos: "Por ele e com ele e nele é a ti, Pai onipotente, em união com o Espírito Santo, toda honra e glória'"

Isabel de Turíngia, três dias antes de morrer de uma morte santa, sua empregada escutou-a cantar. "Como cantou bonito". "Sabe, respondeu Isabel, sabe, o doce Amor me obrigou. Veio um passarinho e cantou tão boni-to, que por fim tive de cantar junto". Música da primavera do céu.

"IN FINE SINE FINE" Um devoto de Sto. Agostinho está rezando junto ao

túmulo do santo. Recebe uma visão. Vê o santo parado na porta do céu, olhando, olhando céu adentro. O devoto interpela: "Mas, Sto. Agostinho, porque ficas parado na porta? Por que não entras?" Agostinho vira para trás: "Por que estás tão apressado? Cheguei neste momento". "Neste momento? Faz trezentos anos que morreste". A-gostinho repete: "Como? Já faz trezentos anos desde a minha morte? Passou depressa. Então vou entrando".

O céu é eterno. É vida sem fim. É fim sem fim. Ga-rante-o a palavra de Deus. Livro da Sabedoria 5,16: "Os justos vivem eternamente". As palavras jubilosas do profe-ta Isaías 65,16: "Vou criar um novo céu e uma nova terra. Não se lembrarão mais do mal passado... Exultem de júbi-

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lo e gozem de alegria pelos séculos dos séculos. Porque vou criar uma nova Jerusalém de júbilo e um povo de ale-gria".

Jesus confirma e reforça: "Quem guardar minha pa-lavra não provará a morte eternamente" (Jo 8,52). "Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eter-na... viverá eternamente" (Jo 6,54.59). "Eu sou a ressur-reição e a vida. Quem crê em mim... viverá" (Jo 11, 25). "Quem neste mundo odeia sua vida, salva-Ia-á para a vi-da eterna" (Jo 12,25).

Os apóstolos repetem: "Quem semear em sua car-ne, da carne colherá perdição. Quem semear no espírito, do espírito colherá a vida eterna" (Gl 6,8). "A ligeira tribu-lação que no presente sofremos, nos merece um tesouro eterno de glória" (2Cor 4,17). "Ao que vencer, fá-Io-ei co-luna no templo de meu Deus e daí não sairá mais" (Ap 3,12). "O Senhor é a luz. Reinarão pelos séculos dos sé-culos" (Ap 22,5).

A eternidade é uma manhã de aurora sem nuvens; é um dia que nunca se põe; uma tarde sem ocaso; uma vi-da que a morte não pode lesar. Viverão "por perpétuas eternidades" (Dn 12, 3). Essa eternidade é o próprio Deus. A sua eternidade derrama-se na alma criada e a alma está ciente desse dom. Ela está segura do amor e-terno, de Deus. Eis a herança dos filhos de Deus: a vida eterna. "Deus mesmo quer ser tua vida eterna", escreveu Sto. Agostinho. E ao morrer exclama: "Deixa-me morrer, ó Deus, a fim de viver". São Martinho de Tour ao ouvir falar de "outra vida" corrigiu: "não há outra vida; há só uma ver-dadeira".

A alma está acima do tempo. Para Deus, mil anos são como um dia e um dia como mil anos (2Pd 3,8). A criatura participa agora também desse privilégio divino. Mil anos correrão como um dia e um dia será longo como mil anos. Como Sto. Agostinho, na porta do céu... esque-

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cido de tudo. Esta é a resposta de Deus a todas as dúvidas e an-

gústias dos mortais "ó abismo de riqueza, sabedoria e ciência de Deus. Quão insondáveis teus planos e incom-preensíveis teus caminhos. Quem conhece o pensamento de Deus? Ou quem lhe dá primeiro para receber em tro-ca? Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele seja da-da a glória, pelos séculos, Amém" (Rm 11,33). "Esta é a sabedoria de Deus. Não sabedoria dos filhos deste mun-do, mas sabedoria de Deus, misteriosa, oculta, que Deus trazia reservada para nossa glória antes que o mundo existisse. Sabedoria que os grandes deste mundo não compreendem... Pois olho não viu, nem ouvido ouviu, nem coração sentiu o que Deus tem preparado para a-queles que o amam" (1Cor 2,6-9). "A nós revelou Deus pelo seu Espírito... Porque não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que é Deus, a fim de que conhe-çamos toda a grandeza que Deus nos tem dado" (1Cor 2,10-12).

"Eu te bendigo, ó Pai do céu e da terra, que tens es-condido isto aos sábios e prudentes, mas o revelaste aos pequenos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado" (Mt 11,25). "Porque o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens. E o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens... Por ele é que estais em Cristo Jesus, que por Deus tem vindo trazer nossa sabedoria, justiça, san-tificação e redenção. Quem se gloria, gloria-se em Deus" (1Cor 1,25ss).

Ouçamos de novo o cântico dos cânticos da Boa Nova: Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino do céu. Bem-aventurados os tristes, porque serão conso-lados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra da Promissão. Bem-aventurados os famintos e se-dentos de santidade, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque serão tratados

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com misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os pacíficos, por-que serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino do céu. Bem-aventurados vós, mil vezes bem-aventurados!

Assim tem falado o mais santo e o mais sábio. Aque-le em cujos olhos brilham os revérberos da eternidade. "Eu sou a ressurreição e a vida... Quem crê em mim, não morrerá eternamente" (Jo 11,25).

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11. O DOM TOTAL

O REINO A voz do deserto clama: Preparai o caminho de

Deus. Chegou o reino do céu. Jesus inicia sua mensagem à humanidade: Chegou o reino de Deus.

Mil e novecentos anos depois, seu lugar-tenente na terra, São Pio X, em 1903 constata: “O mundo está mal.” Doença grave? "Apostatou de Deus". "Os que de ti se a-fastam, perecerão" (SI 72,27). Pio X denuncia: "Os reis da terra sublevaram-se e os príncipes coligaram-se contra Javé e contra o Messias" (SI 2,2). "Disseram a Deus: reti-ra-te de nós. Não queremos saber de teus caminhos" (Jo 21,14). "Os progressos da humanidade são exaltados me-recidamente e os homens degladiam-se ferozmente. É luta de todos contra todos"(Pio X). O Papa indica o remé-dio, receita antiga: "Fazer agora, na plenitude dos tempos, fazer convergir tudo em Cristo" (Ef 1,10), "A fim de que seja Cristo em tudo e em todos" (Cl 3,11). É mister subju-gar o gênero humano ao reino de Cristo "até que Cristo se forme em nós" (Gl 4,19).

Pio XI denuncia os mesmos males: a humanidade afasta-se de Deus. Indica o remédio: o reinado de Cristo Rei.

Hoje, no fim do século, a situação piorou. Sinais dos tempos. O sinal foi dado "ontem e hoje e para todo o sempre, Jesus Cristo" (Hb 13,8). "É sinal de contradição... para ruína e ressurreição" (Lc 2,34). O século XIX ignorou a presença de Deus. Nietzsche deu o aviso da morte de Deus. Hoje, na véspera da guerra atômica, somos convi-dados de todos os lados a assistir ao funeral... de Deus ou da humanidade?

Está escrito: "Confiai em mim; Eu venci o mundo"

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(Jo 16,33). "Estarei convosco até ao fim" (Mt 28,20). Im-possível viver sem Jesus. "Cristo é minha vida" (Fl 1,21).

O homem moderno difere muito do homem antigo. O homem antigo acendia velas de cera; o homem moderno inventou a luz elétrica, acende velas de Watt. O homem antigo atrelava cavalos ao carro; o homem moderno en-che o tanque de gasolina. O homem antigo navegava com remo e velas; o moderno faz navios de ferro e motores a óleo diesel. E há mais: o homem antigo sentia-se feliz com Cristo; o homem moderno tenta viver sem Cristo e não se sente feliz. É o único ponto em que o homem mo-derno fracassou. Fatal. "Sem Cristo não é possível mar-char até ao fim da vida" (T. Toth).

Citamos o lema da Juventude Católica Italiana, tal-vez modificando-lhe o sentido: "Ou Cristo ou a morte". E ouçamos o sermão de um homem antigo, Sto. Agostinho: "Por que faço pregação hoje? Por que estou sentado na cátedra de mestre? Por que vivo? Unicamente para que eu e vós, todos nós vivamos por Cristo". "Esta a glória que estou cobiçando. É a fama que procuro. A alegria que desejo. E se não quereis ouvir minhas palavras, nem por isso me calarei: quero viver com Cristo". Diz São Paulo aos cristãos: "O presente e o futuro, tudo é vosso. Vós porém sois de Cristo" (1Cor 3,22). E nós aproveitamos a primeira parte do programa. Recusamos a segunda. É novamente São Paulo a nos recordar: "Ele deve reinar e reduzir todos os inimigos debaixo de seus pés".. (1Cor 15.25).

Para os primeiros cristãos a nossa elevação a Cristo era algo tão natural, tão espontâneo, que fazia parte da prece cotidiana. “Venha o teu reino". “Maranathá: Vem, Senhor Jesus, vem!" (1Cor 16, 22; Ap 22, 20).

Entre os modernos deparamos com alguns nomes famosos que reencontraram Cristo. Papini dedica-lhe a melhor de suas obras. De François Mauriac, romancista

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francês deste século, disseram que na segunda metade de sua vida não conhecia outro assunto senão Jesus Cris-to. Perdeu a fé, mas "salvou uma pérola de grande valor, um pouco dura (para mastigar) mas ardente": o Novo Tes-tamento, e no N.T. a figura de Cristo. "A despeito de tudo quanto se escreve, tentando converter o Evangelho em mito e lenda, eu sei que ele existiu. Posso dizer que sou testemunha que suas palavras nos foram transmitidas com autenticidade, pois eu vivi por elas, alimentei-me com elas e elas salvaram-me do desespero".

Famosa a frase do Peregrino do Absoluto: "Só há uma tristeza, a tristeza de não ser santo". Que contraste com o mórbido “Bonjour, tristesse" da Sagan.

Ainda outro som: "Não fui feito para essas coisas. Sinto-me bem sadio e entendo-me bem com a vida... Meu Deus, afasta de mim a tentação da santidade, que não foi feita para mim. Não me tentes com o impossível" (Jac-ques Riviere). Jacques, releia devagar o Novo Testamen-to!

Vítor Hugo escreveu de Maomé: "Vencia nele ora o super-homem, ora o baixo-homem". Eis o drama da exis-tência humana. Drama e programa: levar o super-homem à vitória sobre o infra-homem, vitória total e incondicional. Que o super-homem em nós necessite lutar todos os dias por sua sobrevivência, eis a nossa secreta tragédia. Que ele possa enfrentar seus adversários, eis o nosso secreto júbilo. Que ele vença, eis o triunfo de Cristo.

"Quem está com Cristo, é uma nova criatura" (2Cor 5,17). De modo que "meu juiz não se distingue de mim" pois eu sou, somos parte dele, desde já. Vida de Jesus em segunda edição, em segunda via, deve ser a sua vida.

"Novo estilo de santidade: os santos de amanhã não serão penitentes (abstêmios), mas os reis da criação, fa-zendo fremir de horror, em seus túmulos, milhares de san-tos dos tempos passados. A tal luta contra si mesmo, a

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procura de mortificações encontra hoje poucos adeptos, antes, causam escândalo". A citação é de Daniel Rops, como sinais dos tempos (Revue des deux mondes, 1956). É o esquisito coquetel da vida moderna, como Voltaire que construiu uma igreja na sua fazenda, fez a páscoa dos colonos, confessou e comungou na hora da doença para ter um enterro eclesiástico. Dupla contabilidade.

Como Lammenais escreveu a Vitor Hugo sobre seu romance O Corcunda de Notre Dame: "Há de tudo no teu templo, exceto um pouco de religião".

É dos nossos tempos: "Nunca escreverei no cabe-çalho da minha vida: “Deus só” (como a espanhola de Ávila). Em absoluto, nunca direi: “Deus só, mas Deus e tudo, Deus ao redor de mim" (Charasson). Sinais dos tempos, adverte Montcheuil, SJ: "Deus não pode ser su-bordinado nem coordenado". Senão o resultado será: Bonjour tristesse. Está escrito: "Foi posto para ruína e ressurreição".. (Lc 2,34).

Madame Acarie converteu-se à santidade aos vinte e dois anos pela palavra de Sto. Agostinho: "É avaro de-mais a quem Deus não basta".

Medíocres Eternamente medíocres, ocupadas, absorvidas por

bagatelas, eis a sina das criaturas terrenas. Carregando nos dois ombros. "Ninguém pode servira dois senhores" (Mt 6,24). Cristo disse-o, nem é necessário prová-lo. Um conde inglês, do século XVI, católico por convicção, mas protestante na vida pública por oportunismo, para maior segurança da sua salvação eterna, deu às escondidas abrigo a dois sacerdotes em seus dois castelos vizinhos, esperando assim ter à cabeceira, na hora da morte, um sacerdote católico. Morreu porém no caminho, entre os dois castelos. Nostradamus, figura ambígua para os con-

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temporâneos: profeta de Deus ou do inferno? Foi enterra-do, por via das dúvidas, debaixo do muro da Igreja: meta-de fora, metade dentro...

"Se vivemos mais ou menos tranqüilos no meio do mundo, é talvez porque somos tíbios" (De Lubac). Mini-malismo ou maximalismo. "Declaro-vos: se a vossa justiça não for melhor que a dos escribas e fariseus, não entra-reis no reino" (Mt 5,20). Ambos são minimalistas. Os fari-seus, vazios de Deus e cheios de si. Os saduceus, (Anás, Caifás, Herodes...) são os homens do mundo mundano.

A Sinagoga contava 613 leis: 248 mandamentos e 365 proibições. O Novo Testamento tem um só: amar a Deus ao máximo e, através de Deus, amar o próximo. E Cristo vencerá o mundo. Suas armas: fogo e espada. Fo-go de amor e espada da verdade. O apóstolo aos fiéis de Cristo: “não vos igualeis com o mundo mau” (Rm 2,2). "Não vos prendais ao mesmo jugo como os infiéis" (2Cor 6,14).

O mundo é um grande livro. Cada criatura é uma frase deste livro. Autora e editora: a Santíssima Trindade. Ó homem, lê a mensagem desse livro. Pensamento bási-co, tema, Ieitmotive é Jesus Cristo, alfa e ômega da cria-ção e da história humana. Para compreensão cabal do livro, só lendo o último capitulo. Que não foi escrito ainda: O juízo final. Mas releia o primeiro capitulo: Ele era a luz e a vida. "Mas as trevas o suprimiram" (Jo 1,6). "Tudo foi feito por ele" (Jo 1,3). "Tudo converge nele" (Ef 1,10). Não há outro nome de salvação (Atos 4,12). "Ao seu nome dobrem-se todos os joelhos no céu, na terra e debaixo da terra" (Fl 2,10).

Belém Belém é um protesto contra toda a civilização mo-

derna. Inventário: estábulo alugado, uma cachoeira para

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animais, alguns panos de algodão. Se essa criança tem razão, então toda a nossa cultura do bem-estar é sem sentido, uma aberração. Belém protesta contra a mega-lomania. Protesta contra o luxo e a sociedade de consu-mo e do prazer. Protesta contra o poder e a prepotência.

Seu programa de governo, publicado no dia do nas-cimento: "Glória a Deus!" O plano trienal elaborado: ser-mão da montanha. Conseqüência: O nome de Jesus é cuidadosamente evitado nos livros de mass-communication, é tabu, pois onde ele entra, quer ocupar todo o lugar, não só um canto da sala; é totalitário.

As trevas Sua verdade não quer apenas seu lugar no mundo:

quer tudo também; quer impor-se a todos quantos são criaturas de Deus, seu Pai. E ai estão todos, sem exceção de ninguém, nem do inferno. Seu amor também é sem limites, maximalista. Dá tudo e pede tudo. Por isso acon-tece bater às portas das famílias: não há mais lugar; tudo ocupado. Bate na redação do jornal, bate no teatro, na televisão: não há vagas. Bate no portão da fábrica: “Você está no sindicato?” “Não.” “Ora, então, para que bater?” E decidiram pendurá-Io no ar, na cruz.

Bem-aventurados Cristianismo autêntico é o sermão da montanha (Mt

5,1; Lc 6,20). Ali Jesus desenvolveu todo o seu programa revolucionário e radical. Felizes os pobres de coração! Felizes os mansos e bondosos! Felizes os tristes, os fa-mintos, os puros! Eis a carta magna. É tudo às avessas... É tudo ao contrário... É preciso que a cristandade tome a sério este sermão. Proibido amolecer a mensagem (Sch-nackenburg). Quem o fizer será rebaixado ao último lugar

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(Mt 5,19). Resta ainda o resumo final: Entrai pela porta estreita

(Mt 7, 13). O cristianismo não é a estrada larga das gran-des massas, das grandes maiorias, mas a vereda estreita, íngreme, da montanha, da minoria; é a via sacra. O mun-do engana com a maçã do paraíso. Cristo desengana, autorizado como ninguém a dizer: "Dou atestado que suas obras são más" (Jo 7,7). "Andai cautelosos", avisa São Paulo (Ef 5,15).

Dura Dura é essa mensagem (Jo 6,60). Mas só Cristo

"tem palavras da vida eterna" (Jo 6,68). A média cristã de hoje é de tamanho pequeno, quase Iiliput: Como resolver tarefas tão agigantadas? Onde buscar a coragem de car-regar a cruz, a força de subir a montanha do Calvário?

Confiança. Os Doze necessitavam também de sub-venção do alto. Foi preciso o furação de Pentecostes para arrebatá-los e transformar. Os dons do Espírito Santo são fogo, labaredas chamejantes. Os dons são um vendaval que varre o mundo e arrasta consigo para o alto. Sete motores a jato. "Pedi e recebereis".

Renovar tudo em Cristo. "É preciso esquecer o que ficou para trás... despojar-se de tudo... ter tudo em conta de lixo a fim de ganhar o Cristo" (Fl 3,8.13). "Agradece-mos jubilosos ao Pai que nos fez participar da herança de seus santos na luz". "Arrancou-nos do poder das trevas e fez-nos passar para o reino de seu Filho... Ele é o primo-gênito. Tudo foi criado por ele e para ele. Ele está acima de todos e nele tudo subsiste" (Cl 12, 17). "Ninguém che-ga ao Pai a não ser por mim" (Jo 14,6). Por ele "serão vivificados todos... para que Deus seja tudo" (1Cor 15,22). Porque o Pai decidiu "recapitular tudo em Cristo", resumir toda a criatura em Cristo, o Deus feito homem" (Ef 1,10).

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O fim natural da criação é a glória de Deus. O fim sobrenatural é a divinização da criatura. Absolutamente abstraindo da questão discutida se a encarnação foi de-cretada antes da previsão do pecado de Adão ou depois, de fato ambos os fins realizam-se de modo perfeitíssimo em Jesus Cristo e por Jesus Cristo, o Deus encarnado. Assim, Cristo é o supremo auge da criação, o ápice, a cabeça.

Plano misteriosamente pressagiado pelos sábios do A.T. quando descrevem a Sabedoria divina: "Saí da boca do Deus Altíssimo, a primogênita antes de todas as criatu-ras... Fui criada desde o principio antes dos tempos, e existirei sempre. Sou a mãe do belo amor, do temor, da ciência, da esperança santa. Em mim está toda a graça do caminho, da verdade. Em mim toda a esperança da vida e da virtude. Vinde a mim todos" (Eclo 24,5-26).

Os filhos da sabedoria não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2Cor 5,15). "Porque vós sois o Cristo; e Cristo é de Deus" (1Cor 3,23). Na catedral medieval de Luebeck, no solene portal de entrada, debaixo da estátua de Cristo Rei, estão escritos estes dizeres:

Vós me chamais de Mestre, e não me interrogais. Vós me chamais de luz, e não me vedes. Vós me chamais de verdade e não me acreditais. Vós me chamais de caminho e não me seguis. Vós me chamais de vida e não me desejais. Dizeis que sou sábio e não me obedeceis. Dizeis que sou belo e não me amais. Dizeis que sou rico e não me pedis. Dizeis que sou eterno e não me buscais. Dizeis que sou misericordioso e não confiais. Dizeis que sou nobre e não me servis. Dizeis que sou todo-poderoso e não me adorais. Dizeis que sou justo e não me temeis.

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É o programa de Hb 13,8: "Cristo ontem, hoje e

sempre". "Elevado da terra atrairei tudo a mim" (Jo 12,32). "Levamos o nome de cristãos em vão, se não somos imi-tadores de Cristo" (S. Leão Magno). A fileira interminável de santos no antigo calendário litúrgico não ofusca a gló-ria de Jesus. Não! Pois, "da sua plenitude" receberam eles e nós, "graça sobre graça" (Jo 1,16). "Na plenitude dos tempos, tudo quanto existe no céu e na terra deve convergir em Cristo" (Ef 1,10). Deve convergir também em nossa vida.

2. O MUNDO Cristo veio do outro mundo. E só fala do outro mun-

do. Nunca se interessou por literatura, poesia ou arte. Veio a este mundo para fazer a vontade de Deus Pai (Jo 6,38). Veio ao mundo para dar testemunho da verdade (Jo 18,37). Eis sua mensagem: Bem-aventurados os po-bres, os tristes, os perseguidos.

E essa música ressoa através dos quatro Evange-lhos. Seu reino não é deste mundo. Humanos, buscai em primeiro lugar o reino de Deus; e o resto vos será dado de acréscimo" (Mt, 6,25). "Não trouxe a paz, mas a espada" (Mt 10,34). "E se teu olho é causa de escândalo, arranca-o" (Mt 5,29). "Se fordes perseguidos, alegrai-vos" (Mt5,11). "Que adianta ganhar o mundo inteiro com preju-ízo da alma?" (Mt 16,26). "No mundo tereis tristezas, mas confiai em mim; eu venci o mundo" (Jo 16,2).

A mente de Jesus é toda orientada para o mundo do além, para o além. Ele vê no além, o único objetivo de sua vinda ao mundo. Exige igual atitude dos discípulos. O a-lém é destino eterno do homem" (Staudenmaier). Eis a doutrina pela qual viveu, operou milagres; pela qual mor-reu. Ele que é caminho, verdade e vida (Jo 14,6).

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O Mundo é passageiro Nossa existência humana é uma bolha de sabão, bri-

lhando no arco-íris, mas frágil. "Somos de ontem e não sabemos muito. Nossos dias são sombras sobre o chão" (Jó 8,9). E o profeta Isaias 40,6: "Clama!... Que hei de clamar? Toda carne e feno. Toda sua glória é como flor do campo, seca, murcha, cai, mas a palavra de Javé per-manece eternamente".

O Mundo é desterro "Em verdade somos viajores e peregrinos. Como

sombras passam nossos dias e não há esperança de fi-car" (1Cr 29,15). Os patriarcas, "peregrinos e estrangeiros na terra... deram a entender que estavam à procura de uma pátria... uma pátria melhor: a celeste" (Hb 11,13). Pois a pátria terrestre está em dores de parto da pátria futura (Rm 8,22) até que o Espírito diga: Vem! (Ap 22,17). "Cantai para nós os cânticos de Sião! - Mas como cantar os cânticos de Javé em terra estranha?" (SI 136,3). Jesus foi preparar as moradas eternas (Jo 14,2).

O Mundo é plantio e colheita "Deus colocou diante de ti água e fogo. Estende tua

mão ao que quiseres... vida ou morte, bem ou mal. O que te agradar te será dado" (Ecl 15,17). Deus não perde na-da, nem um mínimo grau de glória ou de felicidade. Deus é grande demais e o homem pequeno demais. O interes-se é todo nosso. "Chega a noite quando não se pode mais trabalhar" (Jo 9,4).

"Estai alerta porque não sabeis nem o dia nem a ho-

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ra" (Mt 25,13). "Insensato, ainda esta noite tirar-te-ão a vida" (Lc 12,20). "Venho como ladrão. Feliz de quem está de vigia" (Ap 16,15). "Após a morte o julgamento de uma vez para sempre" (Hb 9,27). "Onde a árvore cai, aí fica" (Ecl 11,3). "Paz, paz e não há paz. Dizei-o ao ímpio" (Jer6,14). "Para os ímpios não há paz" (Is 48,22). "Vim ao mundo a fim de que os cegos vejam. E os que vêem se tornem cegos" (Jo 9,39). "Colherá cada um o que seme-ou" (Gl 6,8).

3. DOM TOTAL Nota: Utilizamos pensamentos do belo livrinho anô-

nimo: "Dom Total", Madrid, Ed. Coculsa, 1960. Uma jóia literária e espiritual.

“Que bagatela, que miséria me fizestes aqui”, ex-

clama Isabel de Castela ao visitar uma de suas Igrejas votivas em construção. Ora, que São Pedro não exclame também assim ao ver-nos chegar à sua portaria: “És tu?”

"Entendemos a voz do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E estuantes de vida e ferventes de calor oferece-mos-Ihes um dia o nossa vida. Sonhávamos ser, no cora-ção da sua Igreja, uma célula vital a oxigenar o corpo mís-tico com seu sangue rubro. Fermento na massa que a faz levantar-se e dar bom pão". Muitos porém paramos a meio caminho. Enroscamos na mediocridade. Por falta de impulso, por falta de generosidade resoluta e ilimitada, por um amor comedido. Perdemos o fôlego "de tanto correr" como diz São Paulo (Gl 5,7).

Pede-se a entrega total e incondicional. Como disse o Pe. Lombardi: “transformação do selvagem em ser hu-mano e do humano em divino".

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Dom Eterno "No princípio era o Dom". A Santíssima Trindade é o

Dom total. Deus Pai dá sua vida ao Filho e ambos se dão ao Dom personificado, ao Espírito Santo. Deus Pai dá sua vida ao Filho, e vive a dar-se ao seu Filho predileto, e este por sua vez, tanto no céu como na vida terrestre, só vive pelo Pai. O Filho, expansão, desdobramento do Pai, é da mesma natureza que o Pai, vive da mesma vida, tem os mesmos anseios, vive para dar-se totalmente ao Pai. E este desejo condensa-se na Terceira Pessoa da Santís-sima Trindade, Amor-Dom.

A Santíssima Trindade é o dogma do dom total a ser imitado pelas criaturas. Templos que somos da Santíssi-ma Trindade, sabemos – e lástima se não o sentirmos também – sabemos que dentro de nosso coração conti-nua a realizar-se sem cessar a mútua doação das pesso-as divinas. Com o relógio na mão podemos dizer: neste momento Deus está se dando. É o primeiro ciclo da série ininterrupta de doações no mundo criado, do Deus Cria-dor a suas criaturas.

Concebidos pelo Pai Uma freirinha, ágil e hábil, Maria de Ágreda, viu o

tempo, quando não era tempo ainda, antes da criação do mundo. Deus só, e fora dele nada existia. Então, a San-tíssima Trindade decidiu continuar as doações. E na auro-ra cor-de-rosa do primeiro mundo surge o Filho de Deus feito homem; após ele, sua santa Mãe. E Deus continuou pensando e pensou em nós como continuação do Filho Encarnado.

Como o Verbo feito homem, todas as coisas e seres criados teriam parte na vida divina. Seriam também ge-rados pelo Pai do céu, segundo o modelo de seu Filho

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primogênito e predileto. Deus pensou em seu Filho En-carnado; depois em sua Mãe; depois em nós. Só então começou a pensar na criação deste mundo material em que vivemos. Antes de existir o universo (Ef 1,4), nós já estávamos com Deus, aninhados no Filho, inseridos no mistério trinitário.

Ó maravilha do amor! Deus fez-se mãe. Deus con-cebeu-nos desde toda a eternidade. Predestinou-nos a tornar-nos semelhantes ao Filho, cópias fiéis, embora em "edição minúscula, pobre e resumidinha". Eis a nossa li-nhagem fidalga. E é realidade histórica, não mito, nem símbolo, mas real. Nesta vida de graça, e futuramente de glória, as Três Pessoas convivem conosco, confundem-se, misturam-se por assim dizer conosco. Deus tirou-nos do nada para elevar-se à plenitude. Permaneçamos na plenitude. Tantas coisas desta terra, ocas e vazias, atra-em-nos e distraem. Coisas que passam como neblina ao sol matinal. O único que permanece e perdura sempre é a Plenitude divina.

Deixemos nossa alma encher-se de sua presença. E desde já exclamemos com Sto. Antônio Maria Claret: "Porque Deus é para mim suficientíssimo".

Chamada Deus começa seu diálogo com cada alma. Comuni-

ca-lhe sua mensagem pessoal, sua vocação. Paira sobre nossa vida uma voz que chama. No seio da Trindade, ca-da um de nós já tem seu nome. Cada alma tem sua melo-dia própria, para ser eco da Palavra eterna.

É a palavra que nos cabe pronunciar. É a língua de fogo que deve arder em nosso coração. É a missão que nos foi confiada. É a marca de Deus que nos sela e lacra para Deus. Deus aguarda nossa resposta. Feliz de nós se observamos o traçado da Vontade de Deus. Pois, melhor

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não podemos fazer. Tantas vezes seguimos nossa ca-beça e batemos na parede. Deixemos que a ação divina se intrometa continuamente em nossa vida. Talvez não seja o que nós sonhamos, mas será muito mais formoso.

Um sacerdote, noviço do Pe. Ginhac, ajoelha-se aos seus pés. Acusa-se das faltas da vida passada. E, ator-mentado, conclui: “Veja, Padre, que vida foi a minha. Es-traguei todos os planos de Deus". "Não se preocupe, res-pondeu seu santo mestre. Deus fará outro plano muito mais bonito".

A reconstrução é sempre possível! A maravilhosa, a mirabolante catedral de Sevilha é a terceira edição. Co-meçou como uma harmoniosa catedral visigoda. Seguiu-se uma mesquita deslumbrante. Na terceira edição disse-ram: "Vamos fazer um templo de Deus, e que a posteri-dade nos chame de loucos". Assim, sempre resta em nossa vida uma terceira reconstrução, uma santidade mais madura e, quiçá, das três a mais formosa. Deus é tão sábio e tão grande que se pode dar ao luxo de variar os tipos de santidade ao infinito. Nada de seriado, de standard. Sempre inédito.

O absoluto Deus é o Absoluto. Saber isto, implica em não nos

deixar açambarcar pelo relativo, pelo provisório, pelo pas-sageiro. Deus é toda a verdade. Não é verdade em peda-ços; nem por metros e nem por quilos. Diziam de São Jo-ão da Cruz: "Esse frade anda sempre metido na Trinda-de". Fez bem, pois é a plenitude, o absoluto. Seja o nosso dom também absoluto, total, pleno, embora reste sempre minúsculo perante o Pleroma.

Deus é Amor. Amor-plenitude. Amor-Absoluto. Quando ele toca no nosso ser, há um tal reboliço neste pequeno coraçãozinho que ele se perde. Chegará o dia

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final, a vigésima hora em que conheceremos como somos conhecidos. E amaremos como somos amados, de olhos iluminados, de coração inflamado. "Mara atá. Vem, Se-nhor Jesus!"

ESCADA BRANCA A crônica franciscana (Wadding) conta: Fra Leone

teve uma visão. Viu duas escadas subindo da terra ao céu. Uma vermelha, em cujo topo estava Jesus, e outra branca, em cujo topo estava Maria Santíssima. E todos os frades, animados por São Francisco e devotíssemos co-mo ele da paixão de Cristo, sobem pela escada vermelha. Tentam subir, pois após alguns passos nos degraus caem para baixo. Tentam de novo. Sem resultado. Alguns che-gam bastante alto. Mas que fatalidade! Escorregam até a terra. São Francisco, desesperado pelo visível insucesso, olha para o alto à procura de socorro, quando percebe Nossa Senhora acenando com as mãos, convidando a subirem pela escada branca. E todos apressam-se e ex-perimentam subir ao céu pela escada branca. Sobem, sobem até ao alto. Que alivio! Que alegria! E Nossa Se-nhora recebe os vencedores lá em cima e condu-Ios a Jesus. Deram uma pequena volta no caminho ao céu. Mas chegaram bem. . .

É um símbolo. Não há caminho mais seguro, mais rápido ao céu do que Maria Santíssima. Digo melhor: o caminho para chegar a Jesus é Maria Santíssima; o úni-co.

O Medianeiro O caminho para Deus é Jesus Cristo homem. "Não

há senão um só Deus e um só medianeiro entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus" (1Tm 2,5). "Ele é o

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medianeiro entre Deus e os homens, o medianeiro da No-va Aliança, para que depois de padecer até a morte em expiação dos pecados cometidos sob o primeiro testa-mento, os eleitos recebam o chamado à herança eterna prometida" (Hb 9,15; cf. 8,6; 12,24).

Jesus Cristo remiu-nos do pecado e reconciliou-nos com o Pai por sua vida, morte e ressurreição. Estabele-ceu-nos como filhos de Deus e herdeiros da glória. Mas, por livre disposição divina, Maria Santíssima também é medianeira universal entre Deus e os homens. Não de um modo principal e necessário, mas de maneira secundária, subalterna, subordinada à mediação de Cristo.

Maria Santíssima é o caminho mais curto e mais grato a Deus para chegar a Jesus. Lógico. É mãe. Mas ela é também o caminho mais curto e mais grato para se chegar a Deus. Deus quis associá-Ia à obra da salvação. Como Eva cooperou com Adão para nossa perdição, as-sim Maria Santíssima, qual nova Eva, no plano de Deus foi destinada a colaborar com Cristo, o novo Adão, na o-bra da salvação. E em continuação dessa cooperação de Maria Santíssima como co-redentora, ela participa tam-bém, por livre vontade divina, no trabalho de distribuição das graças da redenção, como medianeira universal de todas as graças. De tal maneira que nenhuma graça des-ce do céu sem intervenção de Maria Santíssima. Não im-plica que tenhamos de pedir cada vez, além de a Deus, também a Maria por seu consentimento. Pois ela se ante-cipa aos nossos pedidos, pedindo para nós graças que precisamos e que desejamos. Mas parece lógico que pe-dindo explicitamente, mais abundante, mais eficiente é o socorro que ela nos pode prestar.

Deus mesmo quis tê-Ia como sócia na redenção e santificação da humanidade. É, portanto, do seu gosto e desejo que sigamos nós também o mesmo plano. Como a Mãe de Jesus foi escolhida para co-redentora, terá de

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completar a redenção distribuindo seus frutos. Assim, desde Leão XIII, todos os papas deram a Maria Santíssi-ma esse titulo de Medianeira de todas as graças. Sua in-tercessão é de infalível eficácia. Justo o titulo que a tradi-ção cristã lhe dá: onipotência suplicante. Graça pedida, graça obtida. As falhas vão por nossa conta: ou pedimos algo que nos prejudica, ou pedimos sem fervor, sem con-fiança. Façamos de Maria Santíssima comissária de todos os nossos recados a Jesus, como diz Sta. Teresinha.

Mãe espiritual Em sua dupla função de co-redentora e de media-

neira, distribuidora das graças de Cristo, Maria exerce a nosso respeito o papel de Mãe; Mãe de nossa existência sobrenatural. O Concilio Vaticano II chama Maria de "nos-sa mãe na ordem da graça" (LG 61).

Na anunciação, ela cooperou para a encarnação do Filho de Deus; foi o inicio de sua colaboração materna em criar e formar os filhos de Deus menores. "Eis ai teu filho" (Jo 19,26). No Calvário, é a proclamação externa do que fora começado na anunciação. As dores da Paixão de Jesus são suas dores de parto. Por vontade divina, por decreto divino, Maria Santíssima faz parte do plano da salvação. Com sua santidade, com seu amor, com sua prece, com seus sofrimentos contribuiu para nossa reden-ção. Ajudou a gerar-nos para a vida eterna.

Com sua prece ininterrupta no céu contribui para nossa santificação. E há numerosos teólogos que pensam que essa intervenção se faça também por contato físico [por causalidade física e não apenas moral?]. De maneira que Maria colabora com Jesus também na transmissão da graça às criaturas humanas. De modo especial na trans-missão e infusão da graça santificante, pela qual renas-cemos espiritualmente e tornamos-nos filhos de Deus.

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O fim de toda devoção mariana é Jesus, o amor a Jesus. E a Mãe de Jesus é a mais interessada em ajudar-nos neste empenho. Mas também é válido: não presuma obter de Deus misericórdia, aquele que ofende sua mãe santíssima" (Grignion de Montfort). Há quem considere a piedade mariana como uma dispersão de forças, um en-fraquecimento do fervor e do amor por Cristo, Filho de Deus, que não admite partilha; um desvio do apostolado por Cristo e seu reino. "Astúcia diabólica. Amar o Cristo, dar o Cristo ao próximo... quem melhor no-lo mostra? Quem mais nisto se interessa? Quem tem mais recursos para realizá-Io do que a Mãe de Deus, a Mãe de Jesus?" (Charmot).

E a teologia adverte: se Maria, por decreto divino, é medianeira de todas as graças, onde achar graças para nós e nosso apostolado senão com a Mãe de Deus? A quem melhor pedir a graça de Deus, a união com Jesus Cristo, a perseverança final no caminho de Deus, senão à Mãe de Jesus? Ela, no céu, dispõe de poder, tem amor e misericórdia para seus afilhados da terra. E tem amor i-menso para com Jesus, amor que a impele a desejar e promover a salvação e santificação de todos, por amor dos quais Jesus quis morrer na cruz.

Conclusão que devemos tirar: Nada pedir na oração sem invocar também a Mãe de Jesus. Anexar ou prefixar a todos os nossos pedidos, de graça, uma expressa peti-ção a Maria Santíssima. Nosso Senhor reservou-se, por assim dizer, a onipotência, e entregou as funções da mi-sericórdia à Mãe de Jesus" (Gerson). “Por ela está aberto e ela abre a quem quer, quando quer, como quer o abis-mo da misericórdia divina" (Sto. Afonso de Ligório).

Ex-votos da gratidão Sta. Teresinha: "A Virgem jamais deixou de prote-

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ger-me como a mais terna mãe. Ela encarrega-se sempre dos meus interesses" (Vida, 306). "Não faço nada sem invocá-Ia, pedindo-lhe inspirar-me".

Consummata (Gèuser): "Maria, oculta em Deus com o Cristo, é tão deliciosamente Mãe! Cada vez mais ce-gamente entrego os meus afazeres em suas mãos e vivo sob sua obediência. Ela arranja tudo admiravelmente. Jamais poderei dizer tudo o que devo a esta incomparável Mãe"(Carta, 72).

Boaventura Fink: "Não existo mais Estou transfor-mado em Maria; Maria em Jesus, e Jesus no Pai".

Sta. Verônica Giuliani: "A Virgem Santíssima ador-nou-me de todas as suas virtudes e méritos, qual um manto branco de pureza".

Consagração Firmemos esta devoção por uma formal consagra-

ção ao Coração Imaculado de Maria. Consagrar-se, sig-nifica colocar-se sob proteção especial. Significa, porém, em sentido pleno, uma doação, doação como servo, es-cravo. É neste sentido que nos consagramos a Maria, mãe de Deus e mãe nossa. Entendemos fazer uma doa-ção de servos e escravos. Somos filhos da Mãe de Deus, mas filhos pródigos: nem merecemos o último lugar entre os servos na casa do Pai (Lc 15,13).

Desejamos entregar como propriedade, a seu dispor, nossa pessoa e todos os nossos haveres. É pouca coisa. De pouco valor. De nenhum valor. Nossa pessoa: vil pe-cador. Nossos haveres: mais dividas que méritos. Mas, enfim, do que servir para alguma coisa, que ela disponha a favor do reino de Jesus. Doamos tudo sem temer um longo e merecido purgatório. Mais vale aplicar os raros valores para salvar almas pecadoras da morte eterna, do que guardar este capital na burra, sem render juros. O

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valor meritório das boas obras é inalienável: pois é amor de Deus. Mas podemos dispor do valor de satisfação e do valor de súplica.

Mas, principalmente entendemos consagrar-nos a Maria Santíssima para ela poder dispor de nossa pessoa como de coisa própria, à vontade. Entendemos dar-lhe mão livre, carta branca sobre nosso coração, a fim de que, livre de todo e qualquer embaraço, possa transfor-mar-nos em filhos de Deus. É uma renovação dos votos do batismo, uma plenificação da graça batismal, a fim de crescermos sempre mais, em Cristo Jesus (Ef 4, 15).

Ouçamos o grande apóstolo da Imaculada, o Herói de Auschwitz, beato Maximiliano KolbeTP

6PT, OFM: "Consa-

gremo-nos a ela totalmente, sem limite algum, para ser-mos seus servos, seus filhos, sua propriedade absoluta, a fim de que de certo modo esteja ela mesma vivendo em nós, falando, agindo. Tornemo-nos como que assimilados por ela; transformados nela... Sejamos dela como ela é de Deus... Quanto mais perfeitamente deixarmo-nos dirigir por ela, interna e externamente, tanto mais perfeitamente chegaremos a participar de sua santidade".

Mara Santíssima gerou e formou a cabeça do Corpo místico. Deve ela também plasmar os seus membros. Ma-ria não impede a união com Jesus, com Deus. Pois Maria leva-nos a Jesus. Como São Paulo, e mais ainda, ela ex-clama: "Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). Identificados com Maria somos pois identi-ficados com Cristo. Para agir em nós, ela quer entrega

6 Canonizado em 1982.

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total e franca da nossa alma ao pleno dispor de Jesus. Antes ela não começa. Exige abandono total em suas mãos, escravidão de amor. A consagração a Maria é o caminho mais curto para unir-nos com Deus, porque ela dispõe de graças em abundância. Ir diretamente a Jesus não é mais perfeito porque nossas obras são sem valor, sem graça perante o céu.

Nossa salvação é a misericórdia divina. E esta foi entregue nas mãos de Maria Santíssima. A Mãe de Deus é um caminho perfeito, porque foi escolhido pelo próprio Deus. Por Maria desceu à terra; o mesmo caminho é re-torno. É caminho seguro, porque Maria protege-nos efi-cazmente contra nosso grande inimigo infernal e suas ilusões. Já no paraíso foi-nos mostrada a vencedora da serpente (Gn 3,15).

Maria Santíssima ama os que a ela se consagram, sustenta-os, intercede por eles. A Virgem de Fátima pediu a consagração do mundo ao seu Imaculado Coração. Pio XII, de santa memória, consagrou-nos em oito de dezem-bro de 1942. Renovemos esta consagração diariamente.

Conclusão “Conclusão: nada fazer, em assuntos espirituais,

sem antes consultar a Virgem Maria. Sem pedir-lhe ex-pressamente conselho e auxilio. Nada fazer na nossa vi-vência humana, civil, sem consultar previamente, sem recomendar-nos a sua assistência. Assim, estaremos em boas mãos. Certos, seguros de acertar a vontade de Deus. Certos de caminharmos ao lado de Deus. Todas as nossas ações façam-se com Maria, por Maria, em Maria, para Maria. Amamos a Deus, rezamos, sofremos em con-tinua união com a Mãe de Deus.

Unamo-nos a Jesus, imitando-o no seu amor pela Virgem, Mãe de Deus, por ser a Imaculada, co-redentora

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com Cristo, medianeira das graças e nossa Mãe espiritu-al. Não temais amar demais a Maria Santíssima. Nunca chegareis a amá-Ia tanto quanto Jesus a ama" (Beato Maximiliano Kolbe).

"A alma de Maria esteja em cada um para exultar em Deus" (Sto. Ambrósio). Subamos ao céu pela escada branca.

EPÍLOGO "Eu sou o alfa e o ômega, o primeiro e o último, o

princípio e o fim" (Ap 22, 13) "Dele, por Ele, para Ele são todas as coisas"(Rm 11,

36) Juliana de Norwich assim termina seu livro Revela-

ções do amor divino: "Queres saber o que teu Senhor te quis revelar? Saibas bem: É o amor que ele tinha em vista. Quem te revelou tudo Isto? O Amor. O que ele te mostrou? O Amor. Por que tem feito isto? Por Amor. E não descobrirás nunca jamais outra coisa senão o

Amor".

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APÊNDICES

1. APOSTOLADO Tomamos a palavra apostolado no seu atual signifi-

cado (e usado no Vaticano II) de tarefa apostólica, imi-tação da tarefa dos apóstolos de Cristo, isto é, da trans-missão da Palavra, Ação Católica, Ação Missionária e termos equivalentes. Apostolado no sentido de imitação da vida ascética dos apóstolos, de pobreza, de castidade e oração (EUSÉBIO, História Eclesiástica) era termo usado até a chegada dos mendicantes. Estes professaram viver a vida pública de Jesus. Este sentido prevaleceu; aposto-lado é pregação e ação pastoral pela difusão do reino de Deus.

Distingue-se: apostolado externo e apostolado in-terno. O apostolado interno pode ser apostolado do amor (ou santidade), apostolado da oração e apostolado do sofrimento.

O apostolado interno tem atuação indireta. Por isto, apostolado propriamente dito, costuma chamar-se ao a-postolado externo, ou ao apostolado de ação. O apostola-do externo, ou de ação, atua de um modo direto na transmissão da mensagem. Praticamente tudo se reduz ao apostolado da palavra: vivido (bom exemplo, testemu-nho), falado ou escrito. È graça externa (Truhlar), no con-junto da providência divina, seja natural, seja sobrenatu-ral.

Vida apostólica é missão divina. É carisma que atin-ge seu máximo quando o apóstolo oferece também a gra-ça interna que move o coração humano. Principalmente se sua mão, que oferece a graça de Deus, está marcada pela chaga de Cristo, como no caso do Padre Felipe Je-

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ningen, jesuíta setecentista, ou de Frei Pio, o capuchinho de S. Giovanni Rotondo.

Eficácia do apostolado da palavra: Três opi-niões:

a) Eficácia ocasional. O apostolado externo é a oca-

sião propicia (kairós) para a graça interna entrar em con-tato com a alma. Somente a graça interna é salvífica. A palavra apostólica é externa, oferecendo o terreno para a ação salutar. É a opinião tradicional de São Boaventura e de Sto. Tomás; entre os modernos: Congar, OP. "O Espí-rito Santo usa da língua do homem (pregador) como de um instrumento; mas Ele é que perfaz a ação interna-mente" (Tomás, II II 177,1).

b) Eficácia sacramental. O anúncio, a homilia, o ser-mão, são "sacramentos" (Rahner, Semmelroth, Schurr). Esta teoria aprofunda o conceito de instrumentalidade. Compete à Palavra apostólica uma real casualidade salví-fica que se podia chamar quase, sacramental.

O anúncio salvífico, em sermão ou homilia, tende à plena realização no sacramento. É um sacramento de salvação sob uma forma inicial (incoativa). Portanto, dis-põe de eficiência salutar inicial. A completa e total, com-pete de um modo perfeito ao sacramento.

c) Eficácia mística. Mes, CMF, recusa a causalidade ocasional e a causalidade moral (psicológica) como insufi-cientes. Mas o autor não se explica sobre o termo místico. Talvez possamos recordar que toda palavra apostólica do cristão é prolongamento do Cristo místico, na proporção em que o cristão atua como membro deste organismo salvífico. Ou, pode-se considerar todo o apostolado como atuação da Igreja, o grande sacramento salvífico. É a pa-lavra-testemunho a agir como um sacramental.

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Vocação apostólica O apostolado externo, tanto sacerdotal como laical,

é a via normal e ordinária da graça da fé, da salvação. Prova: os três anos da vida pública de Jesus, a convoca-ção dos apóstolos e discípulos como portadores da men-sagem. Jesus até fez um pequeno ensaio com eles. Pro-va-o o texto de São Paulo: "Como crerão naquele que não ouviram? Como ouvirão d'ele se não forem evangeliza-dos? A fé vem da pregação" (Rm 10,14.17). Prova-o o zelo incansável de São Paulo: "Despendo-me e desgasto-me por vossas almas" (2Cor 12,15). "Faço-me tudo para todos, a fim de salvar todos" (1Cor 9,22). Prova: um Sto. Inácio de Loiola, São Francisco Xavier, Sto. Afonso de Ligório.

Temos o exemplo de São João Bosco sobre o leito da morte: “Recomendo dizer a todos os salesianos que trabalhem no apostolado com zelo e ardor. Trabalho. Es-forçai-vos sempre, incansavelmente, pela salvação das almas".

Existe na Igreja de Deus uma real vocação divina para a vida de apostolado, sem prejuízo da vida espiritual e contemplativa. A Igreja é co-redentora. O apostolado externo é previsto e querido por Jesus, pois ele nos avisa que a messe é grande; e manda rezar para Deus Pai mandar mais operários. A angústia diante da crescente perda da fé, da moral, da perdição de tantas almas deve estimular a generosidade da alma amante de Deus e do próximo.

Jesus "sente-se tomado de compaixão pelo povo, porque andavam entregues à miséria e ao abandono, co-mo ovelhas sem pastor". Dizia aos discípulos: "A messe é grande e poucos os operários. Rogai pois... (Mt 9,36-38). Jesus mesmo é o primeiro apóstolo, enviado pelo Senhor da seara: "Chegada a plenitude dos tempos, Deus enviou

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seu Filho... a fim de resgatar... pára que fôssemos adota-dos como filhos" (Gl 4,5).

"O nome de apóstolo não designa em Cristo uma qualidade acidental... Ao contrário, exprime a nota carac-terística de sua personalidade divina e o fim ao qual se dirige toda a sua atividade humana. Até mesmo explica sua própria existência como homem. Cristo é o apóstolo do Pai, e não do Espírito Santo. E ele é membro da hu-manidade unicamente para ser apóstolo do Pai... Sua vontade humana está continuamente voltada à realização desta sua missão: único mediador entre Deus e os ho-mens" (Tm 1,5) (Flick).

Revelar o Pai e resgatar a humanidade do decreto de maldição (Gl 2,14), eis sua missão. E, nesta tarefa, ele nos quer como colaboradores, a continuar sua missão através dos séculos, através da Igreja, pelos sacramentos e pela palavra. O apostolado cristão "não é somente uma imitação do apostolado de Cristo, mas é seu prolonga-mento, ou melhor, é um instrumento que ele quer servir-se em sua misericórdia para chegar às almas" (Flick).

Recapitulamos A origem do apostolado é evangélica. "Ide, ensinai a

todos" (Mt 28,18). "Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio" (Jo 20,21).

É vocação sobrenatural. "Não fostes vós que me es-colhestes, mas fui eu que vos escolhi... para produzirdes fruto e fruto maduro..." (Jo 15,16).

Sua finalidade primordial: "comunicar a vida eterna" (Jo 17,1; 10,10). Como disse com singeleza Sto. Tomás: "Devemos amar nossos irmãos a fim de que estejam em Deus". "Ut sint in Deo" (II II 25,1). Sua finalidade é edificar o Corpo de Cristo (Ef 4,12) através da mútua colaboração no plano sobrenatural dos membros do Corpo Místico.

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Todos os fiéis, unidos ao Cristo místico, participam das graças do Salvador e comunicam-nas entre si. O velho Pacômio, ainda anacoreta solitário, implora ansioso a von-tade de Deus. Uma voz lhe responde: "A vontade de Deus é colocar-se a serviço dos homens para convidá-Ios a unir-se a Deus. Trabalhar com os homens, a fim de fazer deles santos apresentáveis a Deus".

Assim Pacômio, após sete anos de vida eremítica, introduz o cenobitismo, um primeiro modo pleno de vida apostólica: vida de pobreza, de penitência, de oração e vida em comunidade. Pacômio pratica o apostolado entre seus iguais, com os monges. Introduz certa moderação, a fim de adaptar-se à classe média, e introduz a obediência sob uma direção central. Não fazem votos públicos, mas praticam os três. É apostolado mútuo, interno só, por en-quanto; primícias do futuro.

Na culminância da Idade Média a mesma voz: "O apostolado prevalece sobre o lazer da contemplação" (Catarina de Sena). Isabel da Trindade quer ser um outro Cristo, que trabalha pela glória do Pai. Animado é o tes-temunho de Sta. Teresa d'Ávila: "Desejaria a alma meter-se pelo mundo adentro, a ver se poderia contribuir para que ao menos uma alma louvasse mais a Deus. Se é mu-lher, sofre por não o poder fazer, em conseqüência de se ver detida pelo seu sexo, e tem grande inveja dos que são livres para, em altos brados, publicar quem é este grande rei dos exércitos" (Morada, 6,6,3).

"Sinto desejos imensos de que Deus tenha almas que o sirvam com desapego total, e que em nada da terra se detenham, especialmente letrados. Pois vejo que tudo é bagatela. Sabendo das grandes necessidades da Igreja, aflijo-me em extremo e considero puerilidade afligir-se por outro motivo. Não cesso de recomendar a Deus seus ser-vos, porque vejo que maior bem faria uma pessoa total-mente perfeita, animada de verdadeiro fervor do amor de

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Deus, do que muitas tíbias" (Relações, 3,7).

SANTIDADE O apostolado requer a santidade do apóstolo. Con-

dição fundamental do apostolado fecundo é a vida de uni-ão com Cristo. Jesus insistiu: "ficai unidos a mim como o sarmento à videira". Se cortado, é inútil, torna-se seco. Unido, recebe seiva abundante e produz. Pois o apóstolo é instrumento de Cristo.

"Esta natureza de caráter instrumental do nosso a-postolado, deve-se ter sempre presente, porque condi-ciona sua eficiência e determina o modo de praticá-Io. Nos sacramentos basta uma união mínima: fazer o que a Igreja faz. Assim, até o pecador transmite graças. E a Es-critura narra como certo dia Deus quis admoestar um pro-feta através de um jumento (Nm 22,38). Mas apóstolo, colaborador da redenção em sentido próprio, é somente aquele que não se contenta em ser simples instrumento" (Flick).

Escreve Pio XI sobre o sacerdócio, em 1930: "Dis-forme demais seria para um distribuidor da graça de Deus, se ele mesmo fosse desprovido da graça ou pouco a estimasse. Ele deve deixar-se absorver totalmente por Jesus. Deve deixá-Io agir através de nós em favor das almas. Ele é instrumento de Cristo, mas tão somente se é animado por uma profunda vida interior que mantenha nele o senso sobrenatural". Em 1929: "Santificai-vos a fim de santificar os outros. Eis a lei".

Pio XII: "O apostolado deve jorrar do espírito interior que o impregna, que o alimenta continuamente e renova esse mesmo espírito" (1948). "Podem fundir-se laboriosa atividade externa e rica vida interior. Duas estrelas o de-monstram: São Francisco Xavier e Teresa d'Ávila" (1951).

A piedade mesma é o primeiro, é o grande aposto-

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lado da Igreja. E quem, em homenagem à ação externa, pretendesse reduzir o culto ou tê-Io em menor conside-ração mostraria escassa ou nenhuma compreensão da essência do cristianismo, do seu núcleo substancial que é a união da alma com Deus num amor ativo e obediente" (1952). As palavras do Vaticano II são conhecidas e seus textos estão em todas as mãos.

Ouçamos ainda o pensamento de alguns hodiernos batalhadores do apostolado na primeira linha: "Mandem-nos um São Francisco de Assis e teremos cristãos aos milhões" (Feltin, 1947). "Em definitivo, é somente a graça que atinge as almas através dos indispensáveis esforços humanos" (Liénart, 1948). "Nosso primeiro dever (de a-postolado) é a santidade" (Suhard, 1947). "Apostolado é eminentemente o negócio dos santos" (Card. Schuster). "São necessários sacerdotes santos para suscitar leigos santos. São necessários leigos santos para sacudir o mundo" (Cardijn, 1948). "Serei julgado por minha realiza-ção (no apostolado)? Não, serei julgado sobre meu grau de amor" (Godin). "Farei o bem através do apostolado? Não, farei o bem através da minha santidade. O que se pede aos sacerdotes da Igreja é que sejam santos. É se-cundário que estejam "em dia" (Daniélou, 1947).

Para terminar, o testemunho do apóstolo de Marro-cos, Carlos de Foucauld. Escreve ele a um amigo trapista, em 1898: “A tua única ocupação agora é viver só com Deus. É estar mesmo, apesar de teu sacerdócio, como se estivesses só com Deus no mundo. É preciso passar pelo deserto durante algum tempo para receber a graça de Deus. É no deserto que nós expulsamos de nós tudo o que não é Deus... Faz falta à alma esse silêncio, esse recolhimento, esse esquecimento de toda a criação, no meio do qual Deus estabelece seu reino... no colóquio da alma com Deus pela fé, esperança e caridade... Mais tar-de, a alma produzirá frutos perfeitamente correspon-

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dentes à sua formação de "homem interior. E se esta vida interior é nula, por maior que seja o zelo, as boas inten-ções, os trabalhos feitos, os frutos são nulos. É uma fonte que quereria santificar os outros, mas não o pode fazer porque lhe falta a santidade.

Só se pode dar o que se tem. É na solidão, na vida a sós com Deus, nesse profundo recolhimento da alma que ignora toda a criação, que Deus se entrega por inteiro à-quele que inteiramente se lhe entrega" (Textos espirituais, pág. 192.)

"Uma alma faz o bem não na medida dos seus co-nhecimentos ou da sua inteligência, mas na medida da sua santidade" (226). "Nosso Senhor lhe diz: "A tua voca-ção: pregar o evangelho em silêncio, como eu na minha vida oculta, como Maria e José" (181). A razão profunda desta exigência é que o apóstolo é instrumento de Deus. Mais uma vez vale: sem Mim nada podeis fazer.

Um instrumento será tanto mais eficiente, quanto mais dócil, mais maleável na mão do Mestre. Apostolado de ação é graça externa. Para aceitar a mensagem so-brenatural, a criatura necessita da graça interna de Deus. O apóstolo ofereça, pois, junto com a mensagem, a graça que move a vontade. E é o santo, pleno de amor de Deus, o melhor canal da graça divina.

Escreve Sta. Teresa d'Ávila: "Por que se convertem dos vícios públicos tão poucos pelas pregações que escu-tam? Sabem o que penso? Porque os pregadores têm prudência humana demais. Porque eles não ardem da-quele fogo do amor de Deus de que ardiam os apóstolos. Por isso, a sua chama esquenta pouco" (Vida, 16,7).

Escreve, séculos depois, Sto. Antônio Maria Claret aos seus missionários: "Vocês devem possuir todas as virtudes, sem as quais todo o vosso engenho será inútil, a voz infecunda e todo trabalho em vão".

Jesus queixa-se: Um grande número de almas per-

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de-se porque muitos dos meus sacerdotes não me amam bastante. Eles não tocam os corações porque não estão muito unidos a Mim. Eles contam demais com meios hu-manos e sua própria atividade, e não o bastante na ação divina.

Apostolado santificante O apostolado conduz à santidade? Depende. Apos-

tolado é carisma, é graça gratis data, segundo a ter-minologia teológica. É graça externa, dada por Deus e recebida em favor do próximo. Portanto, não reverte au-tomaticamente em santificação do apóstolo.

Há uma ligeira exceção no apostolado sacerdotal. Administrando sacramentos, o sacerdote recebe o au-mento da graça santificante ex opere operato. Por exem-plo: confessando semanalmente mil pessoas, confere mil sacramentos e faz jus a um proporcional aumento de gra-ça santificante. Naturalmente se supõe crescimento pro-porcional do amor de Deus e da cooperação. Senão, para ficar santo bastaria rezar cada dia três missas, quod patet esse falsum, o que evidentemente não é verdade.

Há um elemento psicológico favorável: observar no apostolado o trabalho da graça de Deus nas almas é co-movente; desperta nossa gratidão; inflama também nosso amor a Deus. Ver o fervor espiritual, por exemplo, nas confissões, nas missões, nos cursilhos, estimula o apósto-lo a não ficar para trás.

Mas a razão formal é o amor de Deus, com que o apóstolo trabalha na vinha do Pai. Apostolado é um ato de amor de Deus. Por amor a Deus procuramos conduzir o próximo à união com ele. Nota Suhard: "O apostolado não nasce das necessidades das almas, mas do amor a Deus". O "X” é o apóstolo agir sempre por amor a Deus. O apostolado é vontade de Deus, portanto, também um

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meio de santificar-se (creio ser mais exatamente uma o-casião) se praticado nas devidas condições.

Espiritualidade apostólica A Espiritualidade apostólica tem acentos diferentes

da espiritualidade contemplativa, apesar da identidade substancial. O apostolado de ação missionária requer formação intelectual, moral, social; requer toda uma suma de virtudes, diz Sto. Antônio Maria Claret. Segundo a an-tiga exortação de São Paulo: "Fazer-se tudo para todos".

Mas a base comum é o amor de Deus, de cuja su-per-abundância deve jorrar a ação. "O apóstolo mais fe-cundo é o santo; porém, não nos passe sequer pela ca-beça que se deva ser santo antes de começar o apos-tolado. Se assim fosse, raros demais seriam os apóstolos. É, portanto, necessário unir a ascese espiritual ao exercí-cio do apostolado. E isto não é fácil" (P. Gabriel, OCD).

No processo da conversão e santificação, o apóstolo é instrumento de Cristo. Inútil agir sem ser movido pela causa principal, se estar sob seu influxo. No apostolado trata-se de comunicar a vida sobrenatural, o que requer necessariamente a intervenção do próprio Deus. Nosso apostolado é colaboração dependente, subordinada à a-ção divina. "Senão, diz São João da Cruz, tudo se reduz a um martelar inútil e a fazer pouco mais do que nada; tan-tas vezes nada mesmo, e às vezes até dano" (Ct 29,3).

Jorge La Pira, famoso apóstolo leigo dá-nos uma li-ção: "Nestes tempos tristes, nada é mais eficiente do que uma alma capaz de amar a Deus perdidamente. O amor não se acende, e aceso não irradia sem uma vida interior de recolhimento e de meditação. É preciso ter a coragem de se deixar ficar aos pés adoráveis do Salvador, sem pressa".

Sto. Inácio de Loiola é ardoroso defensor da vida ati-

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va de apostolado. Quis que sua Companhia fosse dedica-da à ação apostólica, e fechou conventos que haviam re-duzido o apostolado a um mínimo, vivendo como cartu-xos. "Já existem mosteiros contemplativos", comentou. "Cada qual tem sua vocação: a nossa é o apostolado". Contudo, é lógico, insiste ele na necessidade de vida inte-rior: "Todos que pertencem à Companhia dediquem-se à conquista de sólidas virtudes e às coisas espirituais, e estejam convencidos que estas são de maior importância que a doutrina e outros dons naturais e humanos para alcançar o nosso fim" (Regra: 10,2). "Entre as qualidades (do missionário) a primeira de todas é que ele esteja uni-do e em familiaridade com Deus e Nosso Senhor, tanto na oração como em todas as ações" (Regra 9).

Charmot, SJ., define a espiritualidade apostólica com peculiar acerto. Significa "revestir-se de Cristo, isto é: ver Cristo em tudo; viver em sua familiaridade; agir sempre como instrumento de Cristo; ser dócil ao Espírito Santo como Jesus".

Espiritualidade básica do apostolado é buscar os in-teresses de Jesus e só a eles. Assim o apóstolo obriga-se a uma contínua renúncia do egoísmo, imitando a Cristo em sua obediência ao Pai sob a inspiração do Espírito Santo (Mt 4,1 etc.). É a velha fórmula de São Paulo: re-vestir-se de Cristo, isto é, renunciar a si próprio; morrer na sua morte, ressuscitar em sua ressurreição e viver vida nova. Ação e contemplação exigem portanto as mesmas virtudes. O termo da viagem é idêntico. Os dois caminhos partem de Cristo, continuam nele e terminam nele. Tudo se resume em viver unido a Cristo, união que é necessi-dade metafísica para um instrumento.

OS PERIGOS Os perigos que ameaçam o apóstolo na sua tarefa

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são todos aqueles fatores que afrouxam sua união com Jesus; que o tornam instrumento menos maleável, nas mãos do Salvador. Perigo é menos o mundo mau, o ini-migo externo, do que os inimigos internos: dissipação es-piritual e egoísmo.

O egoísmo ou o amor próprio é defeito comum a to-do o mundo. Mas é particularmente danoso na ação apos-tólica. A vaidade é "às vezes, ou sempre, ridícula" (Mesa). Mil pequenas satisfações humanas. Tudo isto trava a a-ção do Salvador.

O naturalismo. Técnicas humanas, psicológicas, dão resultados aparentes. Mas o insucesso a longo prazo é fatal, porque é "Deus quem faz crescer" (1Cor 3,7).

A dissipação espiritual, seguida pelo descuido da o-ração. Há sempre o perigo de esvaziamento. A heresia da ação é inata. É o dinamismo horizontal, sem contato verti-cal, sem contato com o alto. John Wu disse certa vez: "Is-to não é ação católica, é somente agitação". "Quanto a-postolado cristão não passa de um movimento puramente humano com muito barulho e muita poeira. Falta o cimen-to que liga as pedras. Falta o contato com a única fonte de vida cristã, o amor divino” (Gabriel Maria, OCD). "Con-dição indispensável e medida de eficiência de nosso a-postolado é o grau de nossa vida interior" (Antonelli).

A vida interior é também o único esteio para não su-cumbir à tentação do desânimo: alinhando-nos com Jesus também no fracasso externo do seu apostolado. Portanto, haja no apóstolo muito amor a Deus e nenhum amor pró-prio. Por isso:

– Repitamos com Sto. Inácio de Loiola: "in omnibus quaerant Deum. Procurem em tudo a Deus". "Na ordem sobrenatural, escreve ele aos estudantes de teologia em Coimbra, é como na ordem natural. O ser age segundo sua natureza". Sendo instrumentos da vida sobrenatural devemos ser movidos em tudo pelo Espírito de Deus (Rm

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8,14; 1Cor 3,15). E o meio de manter a bússola ininterrup-tamente no rumo do coração de Deus é a oração.

– Axioma: Agir sempre movidos por amor a Deus, por um grande amor a Deus. Sendo encarregados de le-var aos homens o amor de Deus, é bom levar uma boa provisão (Rm 5,5). E mais uma vez: o meio de fazer pro-visão deste amor é a oração.

"As ações apostólicas são um modo de amar a Deus, e certamente não o último" (Mesa). Todas as nos-sas ações do dia, de sol a sol, devem ser atos de amor a Deus, tanto o trabalho mental como o manual. Um lugar de destaque se dê ao trabalho apostólico. Mas como so-mos seres humanos, tão humanos, estamos sujeitos a numerosas deformações, todas oriundas do amor-próprio. As obras externas atraem mais que a hora da meditação; atraem, distraem, dissipam. Escreve Charmot: "Não está no pensamento de Sto. Inácio que um discípulo possa santificar-se pelo apostolado a não ser agindo por e com Cristo".

Escreve PIá (Vie Spirituelle, 1948): "A ação (do ati-vista) faz muito volume e mostra magra fecundidade so-brenatural. Ele organiza mais do que transmite a vida. O Espírito Santo aí não joga à vontade, porque o homem ocupa lugar demais".

A atividade apostólica visa a santificação do pró-ximo, não do apóstolo. Supõe o apóstolo formado na es-cola de Jesus, com diploma de madureza. Creio que está fora de dúvida que é mais fácil transformar a audição de um sermão em atos de fé e de amor do que declamá-Io. Novamente PIá: "Falar do apostolado como de um meio de santificação é uma expressão infeliz. Não se é apósto-lo para se santificar a si mesmo, mas para santificar aque-les aos quais é enviado. Mas há uma realidade certa: o apóstolo pode se santificar no exercício de seu apostola-do... O apóstolo é dispensador do mistério. A sua mensa-

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gem será aceita somente por aqueles que Deus chama interiormente, segundo João 6,44".

A ação apostólica deve ser prenhe do amor de Deus e a Deus. O dilema não é ação versus contemplação, mas ação externa versus número de horas de apostolado, Mas em cada lado valem o grau e o número dos atos de amor a Deus. Todos os atos apostólicos devem ser atos de amor divino. Para este fim não basta uma boa intenção geral feita de manhã ao levantar-se. É útil repetir durante as horas do dia jaculatórias, atos de amor; mas nada disto resolve. É necessário transformar, de fato, todas as nos-sas ações em atos informados pelo amor de Deus; explici-ta ou implicitamente. Devem ser atos comandados pelo amor de Deus, e não secretamente pelo amor próprio.

Como diz Sto. Tomás: "Toda a atividade virtuosa de-ve ser regida, ou atual ou virtualmente, pelo império da caridade divina", As virtudes valem perante Deus por seu grau de amor. E para isto não basta uma intenção habitu-al, feita uma vez, não revogada, mas esquecida (Cf. TRU-

HLAR, Antinomias). Alguns têm facilidades, isto é, têm a graça de Deus

e sentem-se estimulados pelos encontros apostólicos. Para outros, talvez para a maioria de nós que estamos navegando em tempestades, há o perigo do apostolado dissipado. Para chegar à renúncia de todo o egoísmo, imprescindível no apostolado de Deus, "o acúmulo máxi-mo de obras externas de apostolado não é remédio al-gum" (Plé). O único remédio contra a dissipação, e solu-ção banal, é a meditação. O único remédio contra o esva-ziamento é a oração freqüente que nos enche de amor de Deus.

"A oração não é um dever imposto. Não é um exer-cício preparatório para o apostolado. A oração é a pri-meira necessidade do homem e a alegria de sua vida", (LOCHET, Christus, 19,55). E acrescentamos prosaica-

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mente: oração é o modo mais simples, mais fácil e mais barato de amar a Deus. Amando a Deus com fervor, a sua graça não encontra em nós, seus ministros, obstáculos para passar e chegar até a alma do pecador. Em tempos antigos, já escreveu São Gregório Magno: "quando os santos retornam da oração e falam aos outros, eles ferem e incendeiam com suas palavras o coração dos seus ou-vintes".

Julgue o leitor mesmo a frase ambígua: "A oração do apóstolo em geral não é muito longa; ele precisa destas longas horas para dedicar-se a obras de zelo". Melhor inspirado pelos apóstolos de Cristo (Atos 6,4) escreve Perrin: "A oração é tão essencial ao coração do apóstolo como seu amor a Deus".

Verdade é que as necessidades individuais, por as-sim dizer, variam. Sto. Inácio deixou o tempo da oração à inspiração individual. Pessoalmente desfrutava de uma excepcional facilidade de recolhimento na presença de Deus. São João Maria Vianney, atendendo confissões ininterruptamente, de madrugada até meia-noite, foi dis-pensado do Breviário por força da obediência, Mas ele podia contemplata tradere, podia haurir de sua provisão, pois nos primeiros anos desocupados do paroquiato pas-sara dias em oração.

Retomemos a Perrin (Vie Spirituelle, 1948): "A ora-ção é apostólica porque é uma ação eficaz sobre as al-mas. Toda a ação que se restringe às forças humanas, contando somente com indústria própria, é curta demais para atingir uma alma na ordem da santificação. As reali-dades com as quais lidamos aqui só são acessíveis à fé. Razão e sentidos, disto nada compreendem".

OS MEIOS Os meios do apostolado na ordem inversa de sua e-

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ficiência, são três: ação, oração, sofrimento. E a acres-centar um quarto, ou melhor, o primeiro meio de um apos-tolado eficaz, seu fundamento indispensável: a santidade do apóstolo-missionário. Apraz-nos repetir e repisar: o apóstolo de Cristo deve romper caminho com sua santi-dade, com sua união com Cristo, com seu amor por Cris-to.

Santidade apostólica O cristão pode merecer para si o aumento da graça

santificante. Mas nenhuma graça de auxilio pode ser a rigor merecida, e menos ainda a grande graça da perse-verança final. É dom da bondade divina e fruto da oração: "supliciter emereri potest".

Quanto ao próximo, só Jesus mereceu graças no ri-gor do termo. Dai, salvar almas remir o mundo dos peca-dores, na boca da criatura, é algo bem diferente da obra redentora de Jesus. Nossa força dentro do Corpo Místico atua não à base de direitos e méritos, mas na proporção da amizade, "da nossa amizade com Deus", "secundum proportionem caritatis" (Sto. Tomás, I II 118,6).

Talvez seja bom recordar: "Sois meus amigos... já não vos chamo servos" (João 15,14). Nossa eficiência apostólica é proporcional ao calor do amor de Deus que arde em nosso intimo. Por isso, afirma São João da Cruz, (Cântico 29,1): "É mais precioso para Deus e para a alma um pouquinho deste amor puro, e de mais proveito para a Igreja, embora pareça que não faz nada, do que todas estas outras obras juntas. Por isso, Maria Madalena es-condeu-se no deserto por trinta anos, a fim de entregar-se a esta amor... pelo muito que aproveite e importe à Igreja um pouquinho deste amor... E, enfim, para este fim de amor fomos criados".

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Sofrimento apostólico Escreve São João d'Ávila: "Os filhos que devemos

gerar por meio da palavra não devem ser filhos da voz, mas filhos das lágrimas".

Sto. Inácio está peculiarmente alegre e P. Ribade-neira insiste em saber o motivo. "Pois bem, Pedro, du-rante a oração, Deus Nosso Senhor garantiu-me que en-quanto a Companhia existir, nunca deixará de gozar da preciosa herança de sua paixão, vivendo em meio de con-tradição e perseguições".

Em nossos dias, Carlos de Foucauld: "Podendo a-mar e sofrer, a gente faz o máximo que se possa fazer na terra". É o eco longínquo de São Paulo: "Quando estou sofrendo. então sou forte" (2Cor 2,10). E este tempero de mirra nunca faltará ao apóstolo em seus labores. Que a-proveita em prol de sua ação: "Apóstolos não lutam com outras armas que os sofrimentos, e triunfam morrendo" (Francisco de Sales). "Com quinze minutos de sofrimento pode-se salvar mais almas do que com a pregação mais brilhante" (Sta. Teresinha).

Uma anedota espiritual. Um casal de velhos, bem unidos, no Transvaal, África do Sul. Casamento misto. A esposa é luterana fervorosa. Ele, calvinista: quer dizer, chegou a converter-se à fé católica. E agora, gostaria de dar à sua cara esposa, sinceramente, a mesma graça. Toda a sua eloqüência é inútil. E ele refletiu: "Assim, não vai. O caso reclama sacrifício. Qual é para mim, o maior sacrifício? Renunciar ao cachimbo. Pois seja". Dois dias da semana sem o cachimbo querido. A velha repara, mas não se converte. E mais um dia da semana sem fumaça. Sem efeito. Então os sete dias de uma vez. Agora, fez efeito: "A religião do velho deve ser melhor ainda que a minha".

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Oração apostólica O segundo meio da ação apostólica é a oração. E de

um modo especial a oração litúrgica, superior em dignida-de, valor e eficiência, por ser a prece do Cristo místico. Por isso, São Paulo pede as orações dos fiéis (Ef 6,19): "Sede vigilantes com toda perseverança, na oração, por todos os santos, também por mim, a fim de que me seja dada palavra desassombrada e corajosa, para anunciar com liberdade o mistério do evangelho". "Orai também por nós para que Deus abra a porta à nossa pregação" (Cl 4,3). "Irmãos, orai por nós para que o evangelho prossiga o seu curso e seja honrado" (2Tes 3,1).

Pio XI, 1924: "Aqueles que, com zelo assíduo, se dedicam à oração e à penitência, contribuem mais para o progresso da Igreja e para a salvação do gênero humano, bem mais do que os operários aplicados ao cultivo do campo de Nosso Senhor. Pois, se eles não fizessem des-cer do céu a abundância das graças divinas para irrigar este campo, os operários evangélicos tirariam do seu tra-balho somente frutos bem magros". Assim, fala o Papa das missões e da Ação Católica. E foi ele que nomeou uma contemplativa enclausurada como padroeira das missões, Sta. Teresinha.

Lefebvre, bispo recém-sagrado de Saigon-Vietnam, resolve a fundação de um mosteiro carmelita como pri-meira obra em sua diocese. O governador da então colô-nia francesa observa-lhe: "Não se deve pensar em mobília de luxo antes de se estar alojado". O bispo responde: "O que o senhor chama de luxo é, ao meu ver, a primeira necessidade do apostolado cristão. Dez religiosas a rezar são maior auxilio do que vinte missionários a pregar".

Por volta de 1920, perguntaram a um bispo da Chi-na: "Qual a melhor maneira de converter aquele imenso pais para Cristo?” Respondeu: "Precisamos de mais al-

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guns conventos de carmelitas e trapistas". A receita é dos Evangelhos. Certo dia, diz Jesus aos seus discípulos: "es-ta espécie de demônios só sai expulsa, pela oração e pelo jejum" (Mt 17,20). Jesus aponta aos seus discípulos a grande messe e o escasso número de trabalhadores na seara; e conclui: "mexam-se, trabalhem, arranjem mais apóstolos"? "Não!" Jesus diz: "rezem!" (Mt 9,36). A lição valeu, pois em Atos: 6,4 declaram os doze que era tarefa deles o serviço da palavra e a oração.

Antigamente o bispo vivia rodeado de doze cônegos encarregados de rezar pela diocese. E o sacerdote que assumia uma paróquia distante da catedral, recebia como primeiro encargo a recitação diária do breviário por seu rebanho. Oração chamada com acerto "seu oficio". Tudo: imitação dos apóstolos (Atos 6,4).

São Vicente de Paulo escreverá aos seus mis-sionários: "Sem o socorro da oração, eles farão pouco ou nada de proveito". Afirma Luís de Blois: "Aqueles que es-tão unidos a Deus, e que lhe dão sobre eles pleno poder de fazer o que lhe apraz,... em uma hora trazem mais proveito para a Igreja e para a salvação dos homens que os outros em vários anos". Ainda Gratry: "O mundo vai mal. Ele irá melhor quando nós quisermos. Quando qui-sermos rezar mais”.

VIDA CONTEMPLATIVA APOSTÓLICA O Corpo Místico, Igreja de Deus, necessita da ação

apostólica, mas necessita também da contemplação a-postólica. Num organismo, cada parte tem sua função e tarefa especifica. O sacerdote recebe poderes extraordi-nários, não para uso pessoal, mas para o povo de Deus. E o monge contemplativo recebe o "dom" da oração e da penitência em beneficio de todo corpo místico. Vida con-

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templativa é ministério público. Os doze apóstolos reuni-ram em si as duas funções. Depois se fez divisão do tra-balho...

O ativismo de hoje, de ontem e de outrora chama os contemplativos de inúteis. Quando uma alma generosa se encerra na solidão, sua conduta facilmente é considerada como anacronismo, fuga, evasão. Julga-se que essa vida contemplativa, exteriormente inativa, é super-afetação admirável, um luxo que a fé se podia permitir nos tempos bons de outrora. Mas, hoje em dia, precisamos de comba-tentes. E não os há demais. Como aprovar os que aban-donam o campo de batalha?

Assim andam os dizeres. Mas não sabem o que di-zem... Acusam-se as almas generosas de desertar da luta, quando elas se lançam no mais forte do combate. É preciso lutar por Deus, pela Igreja, pela fé, pelas almas. Lutar sem cessar. Mas lutar no lugar certo. Lutar com as boas armas. Lutar com tática acertada...

Entre a dedicação à salvação das almas e o isola-mento pela salvação própria, a escolha é feita sem titu-bear pelas almas generosas. Elas julgam fazer mais pela causa de Deus lançando-se no combate do que retirando-se ao deserto a fim de garantir sua própria salvação. Ra-ciocínio e conclusão certos e legítimos, mas baseados em idéias unilaterais e erradas sobre a vida contemplativa.

O contemplativo vive fisicamente longe do mundo, mas nele está presente pela arma da oração. Esta ala-vanca eleva o mundo. Sua oração ajuda seus irmãos no mundo a libertar-se da escravidão do pecado e a ir ao encontro de Deus. Sua oração toca o coração de Deus em favor de seus irmãos. "Não nos refugiamos, escreveu um cartuxo, não nos refugiamos na oração para ter sos-sego, para cruzar os braços, sem cuidar da seara. Para tratar docemente da nossa salvação, abrigados do sol e da chuva. Não; de forma alguma! Entendemos que a pre-

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ce é uma obra de zelo apostólico, por sinal a primeira. Pois é ela que manda operários à messe. Há necessidade dos dois: da oração e dos operários. A oração precede e os operários seguem. Se a oração não precede, os operá-rios nunca chegam. E se a oração não faz chegar operá-rios, ela perde sua finalidade. Se os contemplativos não rezam pelos homens da ação, correm o risco de serem sonhadores irreais Se a ação apostólica não é vivificada pela oração contemplativa, degenera em agitação vã e vazia".

O Magistério da Igreja guia-nos Pio XII, em 1951: "Saibam as monjas que sua voca-

ção é um apostolado total, sem limites no tempo e no es-paço... Os meios: o exemplo de santidade; a prece públi-ca ofertada sete vezes ao dia, em nome da Igreja, e pere-ne oração particular; o sofrimento "da vida cotidiana, da obediência regular, das mortificações prescritas ou volun-tárias, para completar a paixão de Cristo em prol da Igre-ja".

João XXIII, em 1962: "O apostolado verdadeiro pro-priamente consiste na participação da obra da salvação de Cristo, uma coisa que não se consegue realizar sem intenso espírito de oração e sacrifício. O Salvador remiu o mundo, feito escravo do pecado, principalmente erguendo sua oração ao Pai e sacrificando-se. Por isso, quem pro-cura reviver este aspecto íntimo da missão do Cristo sem dedicar-se a nenhuma atividade externa, exerce de fato o apostolado de uma maneira excelentíssima".

Paulo VI, em 1966, diz às contemplativas camaldu-lenses: "Vós fizestes deste ligame entre o céu e a terra o único programa de vossa vida. A Igreja vê em vós a ex-pressão mais alta de si mesma. Vós estais de certo modo no ponto culminante".

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O Concilio Vaticano II: O primeiro texto proposto so-bre a vida religiosa foi criticado por apresentar um concei-to unilateral de apostolado, identificando-o exclusivamente com a atividade externa. O texto definitivo sublinha o valor apostólico da oração e da vida contemplativa (PC 1.5.8).

O parecer dos Santos Liberman: "O povo africano não se converte pelo es-

forço dos missionários hábeis e capazes, mas pela santi-dade e pelos sacrifícios de seus sacerdotes. Sede santos: disto depende a salvação das almas". Liberman condena com veemência a idéia: “sou antes de tudo missionário, não dando bastante importância à vida religiosa".

Sto. Inácio, testemunha insuspeita, também dá a pri-mazia da eficiência apostólica à oração e à vida interior. Certo dia, Inácio explodiu: "A um homem realmente morti-ficado bastam quinze minutos de meditação para unir-se a Deus" (Nadal). Mas bota de gigante não calça bem o a-não. E Sto. Inácio esqueceu-se talvez que nós, durante a atividade cotidiana, não vivemos envoltos num halo de presença mística de Deus como ele. A necessidade de oração, a fim de manter a viva união com Deus, varia in-dividualmente, como comida e sonho. Perdão pela com-paração banal.

Escreve Sto. Inácio (Regra 10,2): "Para conseguir o fim sobrenatural que a Companhia se propõe, o socorro às almas, aqueles meios que unem o instrumento com Deus são mais eficientes do que aqueles que o dispõem em relação aos homens; porque daqueles meios interio-res deve emanar a eficácia dos meios externos".

Em geral supervalorizamos a ação externa no apos-tolado. Por esta razão, Lallement, SJ (Vida e doutrina, Vozes, 1940) insiste tanto na primazia da vida interior a-postólica.

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Deus mesmo é modelo: cria e governa o mundo sem

sair de sua vida íntima com o Verbo e o Espírito. Da exu-berância de sua plenitude jorra a ação externa.

A ação exterior deve depender, em todos os mo-mentos, de Deus. O motivo que me faz agir deve ser o amor de Deus, do começo até ao fim.

É de Deus que depende o bom êxito. Portanto, trate de estar unido a Deus pela graça san-

tificante, pela prece, pelo amor. Sto. Inácio quer que todo o tempo livre dos deveres

da obediência seja dedicado à oração. "Um homem interior fará mais impressão sobre os

corações, com uma palavra animada pelo Espírito de Deus, do que um outro com um discurso inteiro, que lhe custou muito trabalho e no qual gastou todo seu enge-nho".

"Com a contemplação, num mês faremos mais por nós e pelos outros do que sem ela em dez anos".

Um outro filho de Sto. Inácio, Paulo Ginhac, +1895,

diz aos seus noviços do terceiro noviciado: (Note bem: a Companhia de Jesus não ativa, faz três anos de novicia-do, isto é, de vida contemplativa!) "Meus padres, um reli-gioso contemplativo realiza, num ano de apostolado, mais do que aqueles de meditação diária de uma hora em toda a sua vida".

Uma anedota: Um velho sacerdote missionário do sertão goiano, no inicio do século, resmungava na medi-tação (pensava em voz alta): “Por que, em 1925, uma jo-vem carmelita, Sta. Teresinha, era canonizada com tanto brilho e entusiasmo, enquanto o velho e surdo missionário estava relegado a um canto?” – Bom amigo: perante Deus santidade, oração, sofrimento são armas prepotentes, mais poderosas que tua voz tonitruante e tua oratória in-

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conteste. Mas, bom Padre Vicente, Deus não se terá es-quecido das tuas labutas no sertão bruto e das duras ho-ras, dias, semanas passadas no lombo do burro sob sol e chuva. Vê lá na tua Bíblia! (Rm 8,28).

AÇÃO APOSTÓLICA Praticamente toda a ação apostólica se reduz à

transmissão da palavra revelada. Mesmo criando orga-nização e organizações, visa-se a formação de um am-biente, de uma plataforma para a palavra. É nosso meio de ação social, de comunicação. Somente ao apostolado sacerdotal coube uma atuação em profundidade no sis-tema sacramental. E na Santa Missa representa ou reitera o mistério total da salvação, a morte de Cristo.

Ora, apraz-nos repetir: a obra apostólica é essen-cialmente sobrenatural. Pois significa providenciar graça de Deus para seres humanos. A fim de obter graça é mis-ter merecê-Ia pela oração e pela virtude. Feito isto, está atingindo o fim. Pela solidariedade sobrenatural, pela co-munhão dos santos no Corpo místico, a graça adquirida vai parar no tesouro comum, e de lá é derramada sobre outrem. Deus se encarrega bem da distribuição.

Três espécies de apostolado: palavra, oração e so-frimento, na escala ascendente de valor e eficiência, sem esquecer a pessoa do apóstolo santo e inflamado de a-mor. Jesus praticou os três modelos.

A palavra pode ser falada, ou impressa em papel, ou vivida pelo bom exemplo (mais convincente do que a fala-da). No apostolado da palavra entram todos os recursos de persuasão humana, seja coletiva, pela oratória, seja individual, no diálogo e em equipes pequenas. Se o após-tolo se contenta só com a palavra falada, arrisca-se a ser apenas fantoche, um apóstolo de faz-de-conta, porque sua palavra é graça externa, e não atua sem a graça in-

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terna. A persuasão humana tem seu papel no campo hu-mano, social, político, mas é incompleta no campo religio-so, porque a aceitação de verdades ou deveres sobrena-turais pressupõe um ato interno por parte da vontade. Po-de acontecer ao melhor orador, ou ao melhor dialético, falar a ouvidos moucos ou, com franqueza, a corações duros que recusam o amor de Deus.

É do Cura d'Ars a comparação engenhosa: é inútil atirar balas de fuzil contra um muro de granito. Pode-se depois juntar do chão todas as balas. E tantas vezes o apostolado cristão encontra um paredão de cimento ar-mado. Será, então, necessário recorrer a armas mais po-derosas, a fim de impetrar graças mais fortes: oração so-frimento. Como numa guerra moderna, por necessárias que sejam a infantaria e as brigadas de tanques, a deci-são final está com a superioridade aérea. Está tudo con-dicionado às reservas de material na retaguarda.

A tentação mais perniciosa do apóstolo é pensar ter feito algo de grande. Como pincel de Michelangelo na Capela Sistina, e a velha história e experiência de Sto. Agostinho: Deus se abaixa sobre os humildes e se afasta dos grandes. E o apóstolo perde seu colaborador mais indispensável. Escreveu Sta. Teresinha: "Desde que Je-sus nos vê bem convencidos do nosso nada, ele nos es-tende a mão. Porém, se queremos tentar fazer alguma coisa de grande, mesmo sob o pretexto de zelo, então ele nos deixa sós" (Carta, 215).

Deus faz questão de atitudes autênticas, e aborrece

a mentira. Mentira é atribuir a si o sucesso obtido por Deus. Jesus contou-nos a bela parábola da videira e do sarmento. Nosso apostolado só é fecundo se o sarmento fica bem unido à videira que é Jesus Cristo. O volume de seiva que passa, condiciona a colheita dos frutos.

Não se trata de reduzir nossa atividade, nem de di-

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minuir nossos esforços. Ao contrário, trata-se do cêntuplo prometido... “Quem permanece em mim, traz muitos fru-tos. Nisto é glorificado meu Pai, em que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos” (Jo 15,1). A grande ilusão dos ativos é gastar todas as suas forças para produzir frutos, enquanto fazem pouco empenho em permanecer unidos a Cristo. Dai vem que o resultado não corresponde à esperança" (Charmot).

É o amor que nos une ao Cristo. A teologia, confir-mada pelo magistério, explicitou este condicionamento da ação apostólica. O II Concílio de Orange, 529, inculca e repisa que a nossa santidade é dom de Deus. A conver-são e a santidade do próximo, com que lidamos no apos-tolado, estão nas mesmas condições.

Quando praticamos o mal, é obra nossa. "Quando praticamos o bem, é obra de Deus em nós. Se temos bons pensamentos é dom de Deus. Se praticamos ó bem, é dom de Deus. Se amamos a Deus, é dom de Deus". Lemos, no novo prefácio dos santos, a profunda palavra de Sto. Agostinho: "Coroando os méritos dos santos, ó Deus, coroas teus próprios dons". O mesmo Concilio de Orange avisa ao pregador que "o fiel é incapaz de aceitar a pregação evangélica sem iluminação e inspiração do Espírito Santo... de acordo com Jo 15,6, "Sem mim nada podeis fazer", e 2Cor 3,5, “nossa capacidade vem de Deus".

Importa, pois ao apóstolo, conhecer os mecanismos de sua profissão. Importa-lhe não esquecer que sua ação é unicamente externa. Que traga junto também a graça in-terna num serviço completo.

Não se trata de resolver um dilema entre vida con-templativa e vida ativa. Ambas são apostólicas. Escreve Sta. Gertrudes com muita graça (3,69) fazendo Jesus di-zer: "Não tenho necessidade de vossos serviços. Pra mim tanto faz se vos ocupais em exercícios espirituais ou em

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trabalhos externos... Um grande rei não tem somente ao seu serviço damas de honra, lindamente ornamentadas, mas também valentes capitães de guerra"... Divisão de trabalho! Mas importa que tanto a oração das damas co-mo a ação dos guerreiros sejam serviço de Deus, isto é, atos de amor de Deus.

Divisão de trabalho, mas não como a de Maria e Marta. Senão o apóstolo fica logrado, ficando só com a casca externa, em prejuízo do apostolado: "Para que de-pois de ter pregado aos outros não venha ele mesmo a ser reprovado" (1Cor 9,27). Em prejuízo ao apostolado, pois se a vida espiritual do apóstolo fica abaixo de um nível mínimo, ele se torna opaco à transmissão da graça; o instrumento vira impedimento.

O apóstolo faça questão de trabalhar full-time. Faça questão de trazer junto com a graça externa de Deus, sempre também a graça interna. O apostolado é a maior e melhor vocação cristã, a mais alta na escala dos valores. Mas sob a condição de ser tomado em seu sentido pleno e total. O apostolado total, isto é, a conversão a Cristo, é um processo de graças externas e internas. Graças ex-ternas: o serviço da Palavra em suas variantes formas. As graças internas condicionam-se à santidade pessoal (a-mor de Deus), à oração e ao sofrimento. O apóstolo, leigo ou sacerdote, não se deve contentar em ser só porta-voz de Deus, mas também porta-graça.

O apóstolo ofereça, junto com a palavra de Deus, também a graça de Deus. Com sua mão marcada pela chaga do Redentor, como Frei Pio. Ou com sua fronte estigmatizada pela oitava bem-aventurança, como o pro-digioso missionário popular que foi São João Eudes. Seja seu amor de Deus iluminado, ilimitado, sua oração assí-dua, seu sofrer salvífico, de preferência não na cama, mas no exercício de sua missão.

Para ser sempre porta-graça, o apóstolo deve man-

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ter-se sempre bem unido a Cristo, a videira mística. E o modo mais à mão de manter essa união espiritual é a o-ração-meditação, que é um misto de reflexão, súplica e amor. Quanto tempo de oração? Depende das neces-sidades individuais (estou falando num antropomorfismo terrestre, pois a graça de Deus não está presa a quadros humanos). Nos tempos de serviço apertado, supra o e-xercício da presença de Deus.

Se a meditação pode ser dispensada nos casos de urgência, a presença de Deus é indispensável, diz São Francisco de Sales. Mas este recurso suplente, por sua vez, é problemático nos múltiplos afazeres do apostolado externo. E sua maior ou menor facilidade depende e é originada, a meu ver, não do temperamento, ou do caráter ou do treino, mas da graça de Deus. Retorna o velho es-tribilho: "pedi e recebereis".

Sta. Joana de Chantal perguntou um dia a São Francisco de Sales se, apurado em tantos negócios, con-seguia fazer sua meditação. "Não, respondeu; mas faço o equivalente". Fazemos coisas agradáveis a Deus se o abandonamos por necessidade a fim de levar auxílio a nossos irmãos.

Anedota moderna: Em vez da visita ao Santíssimo Sacramento visito uma família pobre? Responde Jesus: "Deve-se fazer isto e não omitir aquilo" (Mt 23,23).

Minha visita ao pobre tenciona confirmá-Io na pa-ciência, fé, amor de Deus. Para este fim disponho de dois meios: ir lá e falar, ou ficar a rezar. O segundo meio não perde em eficiência para o primeiro.

Famoso, desde séculos, o aforismo: "é mister re-nunciar à doçura da contemplação para atender às ne-cessidades do próximo" (Cf. II II 182,1). É preciso distin-guir: se para atender a necessidades físicas urgentes (tra-tar de doentes, por exemplo), apoiado. Para as necessi-dades espirituais do próximo, posso ficar na solidão de

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Deus rezando e amando, talvez sofrendo; uma ajuda pro-vavelmente mais eficaz.

Leio: "Os homens apostólicos não devem ser afas-tados de sua vocação e missão transformando-os em místicos"... Oxalá que o sejam, e no mais alto grau. O a-postolado só pode lucrar com a mística. Aliás, siga cada um sua vocação, para a qual o Mestre da seara o desig-nou.

Para preservar-nos de toda a vanglória, estejamos nós, apóstolos e missionários, lembrados que Deus pode também fazer apostolado sem nós; que ele é capaz de converter o pecador sem intermediário humano, só em troca de oração e de preces. "Deus não tem necessidade de ninguém para fazer bem na terra", escreve Sta. Tere-sinha (Vida, C 264). Exemplos recentes: a conversão de Cohen, dos irmãos Ratisbonne, no século passado, e, em nosso século, de Max Jacob, de Paul Claudel, de Mada-lena Sémer e de André Froissard (1935), e de mais dois comunistas militantes de alto coturno: Maurício Clavel e Didier Decoin (1970).

Nota: A primeira conquista de Jesus neste aposto-

lado é São Paulo.

PADROEIRA DAS MISSÕES Ouçamos por fim a maior missionária do século XX,

Sta. Teresinha. Oito irmãozinhos a precederam no lar, e cada vez foi

pedido, implorado um missionário. O nono parto traz, que decepção, mais uma menina. Mas é a futura padroeira das missões. Deus atendeu as preces... a seu modo.

Sta. Teresinha tem, portanto, uma vocação apostó-lica, não contemplativa. Desde os catorze anos, desde que viu o sangue de Jesus gotejar do braço da cruz, dedi-

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cou-se ao apostolado de salvação dos pecadores (Vida, 131). Quis entrar no Carmelo a fim de tornar-se apóstola dos apóstolos, pela oração e pelo sacrifício. Recusou en-trar numa congregação missionária, convencida que sua atuação no Carmelo seria mais eficiente para seu aposto-lado. "Pelo sofrimento pode-se salvar almas" (Carta, 23). "Uma carmelita, que não fosse apóstola, afastar-se-ia do fim de sua vocação, e cessaria de ser filha da seráfica Sta. Teresa, que desejava dar mil vidas pela salvação de uma só alma" (Carta, 177). Sta. Teresinha acentua e põe em destaque que a melhor arma do apóstolo é seu amor por Jesus. "Sabes que as almas fiéis me consolam, dia por dia, das blasfêmias dos ímpios, por um simples olhar de amor?" (Poesias).

É apóstola da palavra. Preciosa a experiência e a doutrina sobre o apostolado da palavra que exerceu du-rante os cinco anos que foi mestra do noviciado como "pincel de Jesus" (Vida, 295). "De longe, parece cor-de-rosa fazer bem às almas, fazê-las amar mais a Deus... De perto, é bem o contrário. A cor-de-rosa desaparece. Sen-te-se que fazer o bem é cousa tão impossível, sem o so-corro de Deus, quanto fazer brilhar o sol durante a noite" (Vida, 299).

Eis a intuição sobrenatural da palavra de Jesus: "Sem mim nada podeis fazer". E: "ninguém pode chegar a mim se o Pai não o atrair" (Jo 6,44). E é todo o mistério da eficiência da graça eficaz ou suficiente. Palavras ex-ternas e manobras psicológicas não movem a vontade humana no terreno sobrenatural. Deus tem de intervir.

"Maravilha de lucidez e de franqueza, Teresinha arti-cula as palavras sem rebuço... Confessa que antes de ter de ocupar-se com o assunto, nutria as ilusões mais lison-jeiras sobre suas aptidões em pedagogia espiritual. Podia julgar-se capaz de lidar eficazmente com as almas. Mas apenas teve de entrar em ação, tudo escureceu. O rosado

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das ilusões tão verossímeis desapareceu... Tal veredicto sobre a ação (apostólica), lançado por uma tal santa, de-veria transformar todos aqueles que estão engajados em alguma forma de apostolado: sacerdotes, religiosos, cate-quistas, leigos da AC, ou da Legião de Maria. Ou jamais ouviram esta sentença? É um fato: Teresinha não teme declarar, e com que força: Atenção! O que vocês têm de fazer não é propriamente difícil, mas impossível" (Com-bes).

O problema que sempre retoma é a nossa palavra apostólica, isto é, a graça externa seja acompanhada pela graça interna.

"Quando me foi dado penetrar no santuário das al-mas, vi imediatamente que a tarefa estava acima de mi-nhas forças. Pus-me então como uma criancinha nos bra-ços de Nosso Senhor, e escondendo o rosto entre seus cabelos disse-lhe: "Senhor, sou pequena demais para alimentar vossas filhas. Se quiserdes dar-Ihes por mim o que convém a cada uma, enchei minha mãozinha, e sem deixar vossos braços, sem virar a cabeça, darei vossos tesouros à alma que vier pedir-me sua nutrição"...

E o grandioso remate: "Minha madre, desde que compreendi que me era impossível fazer algo por mim mesma, a tarefa que me impusestes não me pareceu mais difícil. Senti que a única cousa necessária era unir-me cada vez mais a Jesus e o resto me seria dado por acréscimo" (Vida, 299).

Solução surpreendente do problema. Mas solução bíblica. "Confesso... tivesse me apoiado em minhas pró-prias forças teria logo entregue as armas".

CONCLUSÃO Nem o poderio do mundo, nem o progresso da téc-

nica enfraquecem a Igreja. Sua renovação é jogar lastro

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para subir. Sua renovação é levar a sério o papel e o po-der da graça que nos fez filhos de Deus. Sua renovação é a fé. Adverte a palavra da Revelação: (Hb 11,33): "Pela fé conquistaram reinos,estabeleceram a justiça, alcançaram as promessas".

Desembaracemo-nos de todo e qualquer empe-cilho... Corramos ao certame... com os olhos em Jesus, autor e consumador de nossa fé... o qual abraçou a cruz,.. e está sentado à direita do trono de Deus. Fé pequena, força pequena. Fé grande, vôo alto. Assim narra a história dos povos cristãos. "Tudo é possível para quem crê" (Mc 9,23). "Esta é a vitória que vence o mundo: nossa fé" (1Jo 5,4).

E essa fé também é graça. "'Por isto dobro o joelho diante do Pai... Queira ele conceder-nos a caridade que Cristo habite em nossos corações pela fé" (Ef 3,14-17).

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2. VIDA CONSAGRADA

HISTÓRICO DOS VOTOS As descobertas de Qumran, em 1949, surpreende-

ram, provam existência de vida monástica no judaísmo. Qumran, edifício e escritos descobertos (entre eles, a Re-gra), revela-se como um convento masculino de cenobi-tas, confirmando enfim textos discutidos de Filo e de Plí-nio Jr.

No N.T. a formação de conventos monásticos levou três séculos. Devido ao estado de perseguição, latente ou aberta, vivia a vida monástica, por assim dizer, no "under-ground". As palavras de Jesus, sobre pobreza e virginda-de, e as do apóstolo (1Cor 7) continuavam fermentando no íntimo da Igreja. Sempre houve cristãos consagrados, como o atesta a literatura cristã dos três primeiros sécu-los.

A Igreja primitiva de Jerusalém entendeu viver a mensagem de Jesus numa comunidade quase monástica, conforme nos contam Atos 2-5. Foi uma tentativa de ver-dadeiro cenobitismo, no primeiro fervor, primícias do espí-rito, caracterizado por renúncia espontânea dos bens e haveres próprios, oração e talvez refeição comunitária. A boa vontade era geral. A alegria circulava de coração em coração. Ciúmes e rivalidades, tão humanas toldaram o horizonte (At 6), mas foram superadas pela instituição de diáconos (helenistas).

A perseguição de Herodes Agripa (42-44), pôs fim a tudo, dispersou os apóstolos, fez mártir a São Tiago e reduziu toda a comunidade à pobreza evangélica real, pelo confisco dos bens (todos reunidos na caixa co-mum?). Ignoramos se conseguiu retomar aos mesmos moldes no intervalo de paz até a guerra final, em 66.

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As quatro filhas do diácono Felipe de Cesaréia, mencionadas nos Atos 21,8, abrem o cortejo das virgens consagradas. Mudaram-se depois com o pai para Hierá-polis, na Ásia Menor (diz Eusébio, História Eclesiástica, 3,29,9). Também as filhas do diácono Nicolau (Atos 6,5) consagraram sua virgindade, narra Clemente Alexandrino (Stromata, 2,18). Há exegetas que pensam que o texto de 1Tm 5,9 já seria uma sagração litúrgica do estado virginal.

São Clemente de Roma menciona, na Igreja de Co-rinto, um grupo de continentes (I 38,3) aos quais previne do orgulho. Sto. Inácio mártir presta homenagem ao fervor das virgens de Smirna, (13,1). Na carta a Policarpo (5,2), menciona ascetas, e manda que estejam sujeitos ao bis-po. Há virgens que se julgam superioras ao bispo hierár-quico, provavelmente virgens de sexo masculino.

As listas litúrgicas enumeram as diversas categorias do clero, depois as virgens; no fim, as viúvas. Talvez, não erramos ao supor que os virgens, do sexo masculino, nunca se organizaram em grupo, mas se intercalaram nos vários estágios do clero. De modo que, virgem provavel-mente sempre se refere ao sexo feminino. Na terminolo-gia que deparamos a partir do século lI, os homens são chamados ascetas, eunucos ou continentes. A partir do século IV, chamam-se ascetas ou monacoi (em latim, con-fessores). As moças, virgens ou virgens consagradas (sa-cras). Na sexta-feira santa rezamos ainda: "pro episco-pis... ostiariis, confessoribus, virginibus, viduis et pro omni populo Dei". Confessor, no sentido de sobrevivente ao martírio; viúvas não são todas as idosas, mas aquelas que, após breve casamento, não contraíram novas núp-cias.

A Didaqué (fim do século I) menciona apóstolos e profetas itinerantes, vivendo pobres e sem família. Eu-sébio faz menção honrosa destes anônimos da primeira geração, na sua História Eclesiástica (3,37). Um deles,

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pertencendo aliás, à terceira leva, dos meados do século segundo, chama-se Melito de Sardes, o conhecido escri-tor e apologista, que Polícrates de Sardes orna com o nome evangélico de Melito o eunuco (5,24).

O Pastor de Hermas (150 pC) recomenda a vida dos e das continentes. Justino fala de cristãos crianças de 60 e 70 anos, como também da prática voluntária da pobreza entre eles (I 29; 14,2; 15,6). Atenágoras diz que muitos cristãos vivem continentes a fim de unir-se melhor a Deus, aludindo a 1Cor 7 (Apologia 23). Minucius Félix salienta a virgindade entre cristãos no c. 31, e a pobreza voluntária, no c. 36.

Temos ainda o testemunho pagão. Galieno, do tem-po do imperador Septímio Severo, atesta, com admiração, a continência de homens e mulheres entre os cristãos.

Não pode faltar o fundo escuro, a heresia: o materia-lismo grosseiro do maniqueísmo, no século terceiro, pre-parado e como que inculcado, incubado pelo gnosticismo. Já no século segundo, o excesso de Marcion, proibindo como imoral o matrimônio, o uso de vinho e de carne. O mesmo vemos no encratismo, o qual provavelmente não estava organizado como seita, mas era um movimento ideológico de moral puritana, proibindo matrimônio, vinho e carne, a famosa trilogia má. E a nota pitoresca: o bispo Pýnitos de Cnossos, do tempo de Marco Aurélio, enten-deu de exigir o celibato de todos os seus diocesanos. Mas o cristianismo autêntico sempre entendeu a renúncia co-mo um ato não obrigatório, mas espontâneo, de generosi-dade espiritual.

As virgens viviam na casa paterna. Talvez também reuniam-se três ou quatro, morando juntas na mesma ca-sa. Sto. Antão, antes de embrenhar-se no deserto, coloca sua irmã num parthenion; mas já estamos no ano 300. Espera-se delas uma vida cristã mais fervorosa, um ves-tuário modesto. São muito estimadas, têm na Igreja um

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lugar próprio, logo após o clero: isto é certo após o século IV; não consta, se nos séculos anteriores fora assim.

Para entrar a fazer parte desse grupo teria havido alguma cerimônia religiosa, ou ao menos uma declaração perante o bispo? Não sabemos, por falta de documenta-ção do século II. A partir do século III, a virgindade é "es-tado" de vida. A partir de Tertuliano dispomos de textos que nos informam. "Não se pode mais duvidar a respeito, declara Metz (Consecration des vierges, 1954, p. 60).

As expressões usadas não deixam dúvida sobre a natureza do compromisso assumido pelas virgens. É mais que uma simples resolução de renunciar ao matrimônio. As expressões correspondem bem à definição de voto: promessa feita a Deus. A promessa era feita in facie ec-clesiae, isto é, em cerimônia ritual, litúrgica; é possível e provável. Para o século III faltam as provas. Certo para o século IV. Mas o voto feito a Deus em particular teria sido comunicado ao bispo, o qual informaria à comunidade cristã, pois já era estado de vida.

Na Tradição Apostólica de Hipólito, espécie de ritual litúrgico, as virgens figuram entre o clero. A escala hierár-quica é a seguinte: bispo, presbíteros, diáconos, confes-sores, viúvas, diaconisas, leitores, virgens, subdiáconos, leigos, catecúmenos. "Uma virgem não recebe a imposi-ção das mãos, mas sua própria escolha a faz virgem". Entendemos: não é eleita por votação, pelo levantar das mãos, como nos cargos eclesiásticos, mas ela decide es-pontaneamente. A menção das virgens, nesse ritual litúr-gico, faz pensar numa cerimônia litúrgica de consagração das virgens. Elas estão encaixadas entre leitores e subdi-áconos. Estamos em 220 pC. Hipólito morreu mártir em 235.

Tertuliano confirma que ascetas e virgens são nu-merosos na cristandade. Vivem na família. Não têm voto de pobreza, como deduzimos de suas críticas veementes

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contra as ricas que, embora consagradas a Deus, pre-tendem conservar ainda algum luxo, alguns cocktails da dolce vita, como teatro, balneário, banquetes suntuosos e todo o luxo da moda. Aliás, Tertuliano, partindo de 1Cor 11, exige que todas as moças solteiras usem, em público, o véu das senhoras casadas. E para firmar a castidade pré-matrimonial, recorre a expressões fortes e bonitas, di-zendo que as moças cristãs são esposas de Cristo (ar-gumento na linha de 1Cor 6,15), por sua inserção no cor-po místico, pelo batismo.

Mas encontramos as virgens que se consagraram a Deus "se Deo vovit" (PL 1,1294). "Se alguma é virgem, e se propôs (proposuit) santificar o seu corpo"... (PL 2,951). Propositum é o termo técnico usado na Idade Média a-dentro (Metz). O termo voto, generaliza-se com a escolás-tica. Sto. Ambrósio usa os termos "profiteri virginitatem, Christo se dedicare, Cristo se spondere, Cristo profiteri" .

Ainda um texto significativo de Tertuliano (PL 2,953), fala de moças que retardavam o casamento, ou por po-breza, ou por meticulosidade dos pais, ou per continentiae votum. Se esse voto era feito em público, na igreja, não consta. Tem lugar próprio na igreja, no culto? PL 2,968 refere-se, provavelmente, à ostentação de certas moças casadoiras, na hora do culto.

Cipriano deu-nos a comovente declaração que "as virgens consagradas são a porção mais bela da Igreja", e exclama entusiasmado: "floret ecclesia", a Igreja está em flor, coroada por tantas virgens (PL 4,455). "A flor do ver-gel eclesiástico é a parte mais ilustre da grei de Cristo" (PL 4,391.455).

A consagração é in aeternum, por toda a eternidade. As virgens decretavam seu estado de forma definitiva (PL 4,371.375). São esposas de Cristo. Faltas contra a casti-dade tornam-nas "adúlteras, não do marido, mas de Cris-to" (PL 4,473). E tais faltas devem ser reparadas, como o

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adultério, pela penitência pública e pela ex-comunhão (privação da comunhão eucarística). Cipriano menciona a possibilidade de um matrimônio legal, para prevenir novas quedas; quer dizer que ele atribui ao bispo o poder de dispensar o voto. "Se não querem ou não podem perseve-rar, é melhor que casem" (4, 378). As outras, arrependi-das, têm de fazer penitência (4, 381).

Não professam a pobreza evangélica, embora Ci-priano o desejasse. Inculca o dever da esmola. Não há indícios de um vestuário especial. Cipriano critica nelas o uso da seda e da púrpura, do baton, do pó preto ou ver-melho e das pinturas. Ele junta esmolas para resgatá-Ias do cativeiro dos númidas (4,371).

Elvira O concílio de Elvira, (300 ou 303?), cânon 13: "As

virgens consagradas que quebraram o voto e se entre-garam à luxúria... e as impenitentes: foi aprovado negar-Ihes a comunhão, mesmo na hora da morte (podendo re-ceber a absolvição na confissão, in foro interno). Mas ar-rependendo-se, abstenham-se da vida sexual e recebam a comunhão na hora da morte (como os relapsos). Conti-nuam, pois, sendo proibido para elas o matrimônio e a comunhão (exceto o viático). Para comparar: as faltas sexuais pré-matrimoniais são castigadas, mesmo no con-cílio, com penitências e com a excomunhão por cinco a-nos. Existe, pois, um vínculo especial na virgem consa-grada. Em análise teológica: o propósito de conservar a virgindade, por amor a Jesus, foi considerado como tendo conseqüências em consciência: é o que hoje chamamos de voto. Cipriano e o concílio consideram as virgens liga-das ao seu estado de um modo semelhante ao estado matrimonial. E a Igreja julga-se no direito e dever de impor sanções pelas falhas.

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Entretanto, o Oriente desenvolveu uma teologia da vida consagrada muito mais profunda, já no século III. Clemente de Alexandria insiste que continentes e virgens pratiquem, além da virgindade, a áscesis. Foi Clemente quem deu à palavra ascese o sentido e conteúdo evangé-lico-cristão.

Mas o grande campeão da vida consagrada é Orí-genes. Eunuco, no sentido espiritual e no sentido físico, elaborou a teologia espiritual da vida monástica, um sécu-lo antes de ela florir de um modo maravilhoso em todo o Oriente. Certas frases dele caberiam bem na boca de São João da Cruz, o doutor da renúncia total, do dom total. Em Orígenes, os textos não fazem tanta impressão, porque se perdem em meio dos comentários bíblicos. Mas é o mesmo espírito.

Orígenes insiste, com vigor, na imitação de Cristo, na seqüela de Cristo, no caminho da cruz. Ele viveu, pes-soalmente, como monge. Vendeu todo o seu patrimônio. Dormia no chão e só procurava o mínimo necessário. Abstinha-se de vinho. Andava descalço. E usava uma roupa só. Segundo Orígenes, os ascetas e as virgens vi-vem a vida apostólica. São, portanto, os sucessores dos doze discípulos do Mestre. Exclama jubiloso: "A Igreja está florida de virgens" (In Exodum, PG 12, 181).

A consagração a Deus, pela virgindade, é um voto feito a Deus. O comentário da legislação mosaica sobre votos, em Números 30, revela a posição dos ascetas-virgens no N.T. "Se oferecemos a Deus a nossa castidade corporal, receberemos dele a castidade espiritual... A Es-critura menciona vários votos: de Ana, de Jefté... Mas a-quele que é chamado narizeu consagra a Deus sua pró-pria pessoa... Oferecer-se a si próprio, agradar a Deus não pelo trabalho do outro, mas pelo seu próprio ser, é o mais perfeito e o mais eminente de todos os votos. Quem faz assim, é imitador de Cristo... se tomas a tua cruz e

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segues após Cristo; se dizes: vivo, mas não sou mais eu, vive em mim Cristo; se a nossa alma arde em desejo por voltar e estar com Cristo... e não mais se compraz nos gozos deste mundo; se cumpre toda a lei dada para os nazireus de um modo espiritual. Assim se faz a oblação da alma a Deus. E quem vive em castidade, dedica o seu corpo a Deus segundo 1Cor 7.

Santos são chamados os que se deram a Deus. O carneiro, o vitelo é santo, consagrado a Deus. Ilícito fazer deles uso profano: concluamos daí o que significa o ho-mem consagrar-se a Deus. Voltando-te a Deus, deves imitar o vitelo (de sacrifício), o qual não pode mais servir a obras humanas. Mas tudo quanto diz respeito à alma, à obediência e à observância do culto divino, isto tem de ser a tua agenda e o teu pensamento" (PG 12,760).

Aprofundando mais essa doação total a Deus, Orí-genes compara os ascetas-virgens com os holocaustos do A.T. em Números 24: "Como Jesus foi vitima de expia-ção, cordeiro de Deus pela humanidade, assim também os santos profetas e apóstolos foram vitimas de expiação, conforme o dizer explicito de São Paulo: “Desejo ser aná-tema” (Rm 9,3); “sou vitima e o tempo da minha des-truição se aproxima” (2Tim 4,2)... “assim, enquanto há pecado é necessário que haja vitimas pelo pecado" (12,757).

Orígenes Sobre essa base teológica da doação, Orígenes

constrói toda a espiritualidade própria dos ascetas-virgens:

– Intrépido em apregoar a pobreza evangélica, não só para os consagrados mas para o clero todo, comen-tando o livro de Josué, lembra que os sacerdotes e levitas da antiga lei não receberam parte na distribuição da terra santa, porque, Deus era sua herança. Assim há, na Igreja

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do N.T., "alguns que pela força da alma e pela graça dos méritos precedem a todos. Deles se diz que o Senhor é a sua herança... São poucos e raros... A parte maior, mais numerosa, segue a via comum das virtudes, em boas o-bras, e são do agrado do Senhor".

Mas Orígenes insinua em seguida que sacerdotes e levitas do A.T. prefiguram as palavras do evangelho: "Vai, vende tudo e terás um tesouro no céu" (Mt 19,21); "Se alguém não renunciar a tudo o que possui" (Lc 14,33); "Quem não odeia pai e mãe, etc." (Lc 14,26; 12,9-11).

No comentário de Mateus, desenvolve mais uma i-déia: fala do jovem rico; da vida pobre da comunidade de Jerusalém... "Quem quer ser perfeito, deve obedecer à palavra de Jesus: vende tudo e dá aos pobres. Agora, seria tarefa dos generosos e dos que têm qualidades que ornam um bispo, seria tarefa destes convidar e exortar os que podem a colocar tudo em comum, para as necessi-dades da vida... Um exemplo da concórdia dos fiéis no tempo dos apóstolos". Aponta aqui um ideal monástico, sonhado e realizado um século mais tarde.

– Com particular carinho, trata Orígenes da oração. Os contemplativos estão na casa de Deus. Os ativos fi-cam no vestíbulo da entrada. "Dediquemo-nos à palavra de Deus, e meditemos a sua lei, dia e noite. Deixemos tudo de lado e ocupemo-nos de Deus. Treinemo-nos nos testemunhos de Deus, isto é, estejamos convertidos ao Senhor" (12,316).

– O apego às criaturas priva-nos da liberdade da gnosis, a "contemplação". "Como podemos encontrar a liberdade, estando assalariados ao século, servindo ao dinheiro? Servindo aos desejos do corpo? Eu mesmo me acuso.. (dinheiro e prazer não me prendem mais) mas sou ávido de louvor e ando à procura da glória humana... E enquanto procuro tais coisas, sou escravo delas" (In Exo-dum 12,386).

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– Comentando Nm 5, amplia o mesmo tema de uma maneira sumamente espiritual. Os madianitas venceram os seicentos mil israelitas. Depois da oração de Moisés (Nm 31), doze mil israelitas venceram os madianitas, para nos ensinar que "israel não vence pelo número de solda-dos, mas por sua santidade e piedade; essa é que ven-ce... Daí, também: Um deles persegue mil e dois deles põem em fuga dez mil, se eles observam a lei do Senhor" (12,764).

"Portanto, vê-se que mais vale um santo rezando do que numerosos pecadores trabalhando... Procura pois, em primeiro lugar a justiça de Deus e conserva-a. Obser-vando, obtendo, conservando essa, ela te sujeitará todos os teus inimigos... Deveras, há tanta vaidade e tanto vazio no mundo, que o soldado de Deus deve superar e vencer! Vence a vaidade do mundo quem não faz nada de supér-fluo, nada em vão...”

(Parece-me estar ouvindo São João da Cruz). Ouça: "Vã é toda ação e toda palavra dentro da qual não há algo para Deus" (12,766). "Separar-nos do mundo, entendo. não do lugar ou do país, mas na vivência" (12,630).

– Em Levítico 11, faz alusão ao voto dos nazireus, "que se consagravam a Deus por três, quatro anos, ou por quantos quisessem". Infere-se daí que o voto da vir-gindade podia ser limitado a um prazo temporal e não era necessariamente perpétuo, vitalício e irrevogável? Não. Comentando Rm 9,37, Orígenes se explica: quanto ao jejum e à abstinência (do vinho e da carne), cada asceta decide como quer, por tempo limitado. Mas, no tocante à virgindade, não se conhecem limites, porque é doação, doação de toda a pessoa, sagrada para o culto de Deus. Usar objetos ou pessoas sagradas para uso profano é roubo no sacrário (12,530-531).

Orígenes mostra-se, na sua doutrina ascética, equi-librado, compreensivo, relegando os entusiasmos para

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sua vida pessoal. Todavia, ele não esconde que seu ideal é a virgindade, a qual segundo ele, implica uma consa-gração total a Deus, abrangendo portanto, todo o campo da ascese cristã. O compromisso através de voto formal, aparece com nitidez.

Mas não ficamos sabendo se existe já uma homolo-gação oficial por parte da Igreja. Seria então, voto público, não apenas particular. Favorável é um texto em Números 2,1: Orígenes recorda o bom exemplo do clero e sua im-portância: "Eis tal o bispo, tal o presbítero, tal o diácono. E o que então dizer das virgens, dos continentes ou de to-dos que se destinam à profissão da piedade?" (12,591). Ascetas e virgens professam piedade, devoção, religio-sidade; e aparecem misturados aos quadros da hierar-quia. Já são, portanto, categoria eclesiástica.

Metódio de Olimpo Elaborou, no seu Banquete das Virgens, a primeira

monografia monástica. Ele considera o estado de virgin-dade como instituição dos apóstolos (10,11). Parece fazer alusão a um ritual litúrgico da recepção, ou é só uma me-táfora poética?

Como Orígenes, refere-se aos votos do A.T. e decla-ra o voto da virgindade como sendo o voto mais perfeito e mais sublime; porque nos faz esposa de Cristo. É oblação definitiva; mas parece, segundo 3,14, que em caso de conflito moral pode-se casar, segundo 1Cor 7.

Ainda alguns textos característicos: "A virgindade é o grande voto. O homem pode dar ao culto de Deus, ouro, prata, animais e até todos os seus haveres. Mas nenhum destes pode dizer ter ofertado o grande voto; somente aquele que doou a Deus a si mesmo, totalmente. O ho-mem perfeito consagra a Deus tudo, alma e corpo, como oblação integral" (5,1).

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"Que o grande voto, entre todos, é a castidade (ag-néia) afirmo e provo”. Partindo de Nm 6,4 (nazireato) fala da castidade dos olhos, dos ouvidos, da boca, das mãos, dos pés, do coração e conclui: "isto é santificar a castida-de (agnizein agneian), isto é fazer o grande voto" (5,4).

Convém abster-se do vinho (5,5). As virgens são prefiguradas no A.T. pelo altar do incenso no templo (5,6).

Cartas às Virgens Resta-nos ainda outra monografia monástica deste

século III, as duas epístolas sobre a virgindade, de autor grego desconhecido. Por longo tempo foram atribuídas ao papa Clemente, +90. Por outro lado, devem ser anteriores ao ano 300, porque ascetas e virgens ainda vivem isola-dos, não em cenóbios, como a partir dos anos 300. Tam-bém porque consiste o apostolado dos ascetas em via-gens periódicas pelas cidades vizinhas, para propagar a fé cristã, tal como aparece na Didaqué e depois desapa-rece por completo na era constantina.

Aos ascetas e às virgens cabe a tarefa não só de guardar o celibato-virgindade (restrição que estava talvez bastante em voga na Igreja africana, a julgar pelas críticas de Tertuliano e Cipriano), mas cabe-lhes também a práti-ca de toda a perfeição cristã, "imitar o Cristo em tudo". Há o apostolado da oração, da expulsão do demônio, da visi-ta aos doentes. Mas a principal tarefa é o apostolado da palavra de Deus, formando, de cidade em cidade, círculos de leitura da Bíblia. Nas viagens hospedam-se com um asceta-colega, não com qualquer leigo. Evitem familiari-dade com as virgens.

Têm votos? Parece que sim: "Quem, perante Deus, professou a castidade, deve cingir-se da santa força de Deus" (13). Já possui toda a espiritualidade monástica: castidade, pobreza, separação dos perigos do mundo,

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oração, mortificação. Falta só a vida em comum. Respigamos algumas sentenças espirituais: "Pensando em abraçar a vida de virgindade, irmão,

será que refletiste bastante quanto de labor e moléstia isto implica?" (1,5). A tua lei: "Seguir todas as pegadas de Cristo" (1,6). "A tudo devem implicar a imagem-modelo, Cristo" (1,7). "Homem e mulher que professaram a virgin-dade, mas não querem imitar a Cristo em tudo, não se podem salvar" (1,7).

"Deve a virgem ser santa, de corpo e espírito, perse-verando no obséquio ao seu Senhor, não voltando para trás" (1,7). "Realmente, eles são cidade de Deus, morada e templo no qual Deus se hospeda e mora" (1,9). "Cada qual de nós confirme os irmãos na fé de um só Deus" (1,13). "Devem pedir operários que, como os apóstolos, imitam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, na solicitude pela salvação dos homens" (1,13).

II,4 parece indicar o convívio de várias moças na mesma casa. II,15 reprova familiaridades com mulheres, pois essa vida exige a fidelidade, a eqüidade e a justiça".

Resumindo o resultado para o século III, constata-mos:

– Há um voto de virgindade, um compromisso que liga em consciência. Clemente de Alexandria (Stromata 3,1): "A continência é desprezo do corpo, em razão de uma promessa (homologia) feita a Deus".

– O voto deve ser livre, refletido e perpétuo. Con-forme o ditado evangélico: "Quem põe a mão no arado"...

– Voto irrevogável. Cipriano e talvez Metódio são os únicos a admitir dispensa. Clemente Alexandrino (Stroma-ta, 3,15): "Quem prometeu (homologesas) não se casar, segundo o propósito da eunuquia, deve ficar celibatário" (agametos diamenéto), ou, em 3,12; o paralelismo com o matrimônio indissolúvel pode ter influído.

– Fica aberta a questão da homologação do voto por

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um cerimonial litúrgico, como foi depois a velatio virginum (imposição do véu) no século IV.

- Um afresco, nas catacumbas do século III, é inter-pretado por Rossi-Wilpert como cerimônia da velatio. Mas a interpretação é muito contestada.

- A Tradição apostólica de Hipólito parece-me decidir a questão pela afirmativa, em razão da menção das vir-gens num ritual litúrgico.

- As promessas do batismo foram pronunciadas nas mãos do bispo. O mesmo rito existe ainda no Pontifical Romano: "Prometes conservar sempre a virgindade?" "Prometo". "Deo gratias".

Novaciano exigiu dos adeptos de seu cisma o jura-mento de fidelidade à liturgia. Deu-lhes a comunhão e logo em seguida, segurando entre as suas as mãos pos-tas do fiel, fê-Io jurar: "Juro, pelo Corpo e Sangue de Cris-to, nunca abandonar a tua causa" (Eusébio, História Ecle-siástica 6,43). Algo análogo precederia a admissão ao grêmio dos e das virgens. A recordar, o texto de Orígenes (LV 3,4): "Quando fazemos votos de servi-lo na castidade, pronunciamos os votos com nossos lábios e juramos cas-tigar a nossa carne". Era, portanto, o voto pronunciado em voz alta, e não prometido apenas em pensamento.

- Hábito, vestuário monacal é a simplicidade e a mo-déstia. Aliás, ainda estamos no período das perseguições. Tertuliano quer que usem em público o véu das senhoras casadas e lamenta não haver distintivo para os ascetas (De Virginibus velandis, 10). Eusébio fala de uma virgem martirizada sob Diocleciano, cuja testa cingia a ínfula da virgindade, uma faixa purpúrea. Ignoramos se era costu-me geral.

O clero, isto é, o presidente da assembléia, bispo ou presbítero, usava a ínfula, provavelmente branca, à se-melhança do Sumo Pontífice do A.T.

- A partir de 313, monges e monjas usam hábito, mi-

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nuciosamente descrito por Cassiano. Uma nota do século seguinte: Sto. Atanásio diz que

a virgem deve usar roupa escura, sem aplicações e sem franjas, mangas compridas, cabelos cortados e presos por uma fita de lã, podendo conversar com os homens so-mente com o rosto velado. Reza breviário, isto é, salmos à meia-noite, na aurora, na terça, na sexta, na noa. A pri-meira colação é feita após a noa.

Concluindo: até o século III, a virgindade é o núcleo central, em redor do qual se cristalizou toda a espiritua-lidade. É o conjunto total das práticas que quer expressar a doação a Deus, entendida como supremo ato de amor a Deus.

Século IV: Pacômio De Pacômio, fundador dos conventos (seus con-

ventos chegaram a contar cinco mil monges) e do seu famoso discípulo, Schnudi, foi-nos conservada a primeira fórmula de profissão, exigida sob juramento, na incorpo-ração ao cenóbio. Schnudi gostava do método forte. Su-cedeu ao seu tio. Reorganizou tudo. Exigiu, por escrito, observância da regra aos trinta monges que havia, núme-ro que chegou a 2.200 monges e 1.800 monjas num ce-nóbio vizinho.

Eis o texto da profissão chamada aliança: "Juro (homologo) perante Deus, no seu santo lugar, que a pala-vra que sai da minha boca é testemunha, Não quero, de modo algum, manchar meu corpo. Não quero roubar. Não quero fazer juramentos falsos. Não quero mentir. Não quero fazer secretamente o mal. Se eu transgredir o que jurei, não quero entrar no reino dos céus. Pois, eu o vejo, Deus, diante do qual eu pronunciei o texto desta aliança (diathéke), destruiria minha alma e meu corpo no fogo do inferno, por ter transgredido a palavra da aliança que pro-

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nunciei". O texto não indica limite de prazos; vale, pois, para

sempre. O teor espiritual é de principiantes. Mas foram admiráveis no rigor da penitência (trabalho manual) e na recitação assídua dos Salmos.

São Basílio São Basílio exigiu profissão oral da virgindade (ho-

mologia parthenias), e isso perante testemunhas, de pre-ferência perante o bispo diocesano. Não indica o cerimo-nial em uso. O voto é perpétuo: "Quem se consagrou a Deus e depois passou a outro estado de vida, é sacrílego, pois qual ladrão roubou um donativo consagrado a Deus". Considera as virgens infiéis como adúlteras. Mas também fixou idade mínima para a profissão, de dezesseis a de-sessete anos.

Também para São João Crisóstomo é um pacto feito com Deus; é irrevogável. Efrém, sírio: "Irmãos, somos obrigados a perseverar na via em que entramos".

Calcedonia O Concilio de Calcedonia, 451, cânon 16, ratifica a

legislação usual e estabeleceu: não podem contrair ma-trimônio. Se o fazem, estão excomungados. "Mas auto-rizamos o bispo a usar de misericórdia". Retornemos ao Ocidente.

Consagração das Virgens A consagração das virgens receberá grande desta-

que no rito latino, a partir da paz constantiniana. É até hoje reservada ao bispo. Era precedida do propósito prati-cado por vários anos; era por assim dizer o voto simples,

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sendo a consagração ritual, o voto solene. Quanto à idade: inicialmente "segundo o parecer do

Bispo"; depois a Espanha fixou-a em quarenta anos; Car-tago, em vinte e cinco anos, o que prevaleceu. Um texto do Pontifical Romano fala de sessenta anos. Assim seria, em vez do início de uma vida nova, prêmio de boa condu-ta. Mas o texto provavelmente faz confusão com a admis-são das diaconisas. Mas também houve casos de meni-nas consagradas aos doze anos, idade legal para casa-mento no direito civil romano.

Uma Preciosa, falecida nessa idade no ano 401, tem sua inscrição no cemitério de Calisto. Jerônimo fala de uma Ansela, consagrada na mesma idade.

O nome oficial é imposição do véu, indicando que o ritual foi copiado da cerimônia matrimonial. Em razão do simbolismo, esposa de Cristo, nunca foi aplicado aos monges. Para maior realce, a cerimônia era reservada ao Bispo. Sto. Ambrósio, que deu o véu à sua jovem irmã-zinha, foi muito procurado, até por moças da África, Car-tago.

A infração do voto por casamento posterior, é as-sunto de três cartas pontifícias, de Sirício, Inocêncio I e Leão Magno. Se a virgem recebera o véu, cometeu adul-tério; devem separar-se. E Inocêncio I exige que o homem se faça monge. Se a virgem fez somente propósito, sem ter recebido a consagração litúrgica, parece que o ma-trimônio era tido por válido; mas deve fazer penitência, segundo Sirício, e não pequena. Está visto que o propo-situm era considerado como voto, obrigando em cons-ciência.

São Bento Pouco a pouco o cenobitismo prevaleceu também no

Ocidente, e recebeu seu grande legislador espiritual em

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São Bento. A grande novidade é que São Bento exigiu uma vestição do hábito monástico, um noviciado regular, e no fim, uma profissão religiosa, consistindo numa pro-messa oral e numa petitio escrita (pedido escrito).

É a figura jurídica de promessa jurada do direito ro-mano. Mas aqui, a promessa é feita a Deus e o docu-mento assinado, é depositado sobre o altar. O conteúdo da promessa é tríplice: obediência (na maioria dos códi-gos medievais mencionado em primeiro lugar); conversão moral; estabilidade local no mosteiro. São Bento exigiu esta estabilidade local para cortar o uso e abuso dos monges andarilhos que, sob pretexto de peregrinações piedosas, rodavam pelo continente todo, passando anos fora do convento, dando bons e maus exemplos, confor-me o caso. Para a pobreza está previsto e prescrito a re-núncia formal de todos os bens e fazendas, desde o novi-ciado.

Mas São Bento esqueceu o voto de castidade, de virgindade? Oh, não! Pois ele exige quase o voto do mais perfeito. Exige, sob voto, uma conversão radical e total. Aliás, o termo não é conversão, mas vivência virtuosa.

Conversatio é tradução literal de um conceito mo-nástico grego: praktiké ethike. Cassiano nela distingue três graus:

– A renúncia ou primeira conversão, conversão cor-poral e local, consistindo na renúncia a um lar, à riqueza e ao convívio humano. Portanto, celibato, pobreza e clausu-ra.

– A segunda renúncia, ou renúncia do coração, cujo fim é a pureza da alma é chamada em grego praktiké e-thike, a prática moral. Abrange tudo o que hoje é chama-do ascese, prática das virtudes, perfeição espiritual, santi-dade.

– O terceiro grau de Cassiano, a terceira renúncia, é a contemplação (theoretiké, teoria), a qual, sendo infusa,

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fica na alçada de Deus. O voto de São Bento é portanto, muito exigente. To-

da a ascese, toda a prática das virtudes cai sob a sua lei. A situação monástica continuou assim até o início da

teologia escolástica, no século XII. Partindo do conceito de doação a Deus, os teólogos analisaram os haveres do ser humano, e concluíram que os três votos, de pobreza, castidade e obediência, abrangem a totalidade da pessoa humana a ser entregue ao poder e aos cuidados de Deus.

Sto. Tomás recolhe depois os frutos maduros da pesquisa teológica, mas acentua com mais vigor que o núcleo central é o amor de Deus. Vida religiosa monástica é, segundo ele, um modo de praticar o amor de Deus. Não o único, mas provavelmente, o mais direto e o mais eficiente.

TEOLOGIA A teologia da vida religiosa-monástica evoluiu não

somente na sua organização, mas também na sua ideo-logia teológica. Foi uma lenta elaboração dos dados e-vangélicos no conjunto da evolução dos dogmas. Diz o Concílio que foi crescendo como uma árvore a partir de pequena semente (LG 43). Através da floração variada e colorida da vida monástica iremos investigar sua natureza específica: sua razão formal de ser e de existir.

O primeiro monge-teólogo é Orígenes. Quase todos os elementos já se encontram, dispersos aqui, acolá, em seus comentários homiléticos da Bíblia. O grande surto monacal do século quarto elaborou uma completa espiri-tualidade, teologia mais intuitiva que reflexiva; um leque que se abre em cinco palhetas (CODINA, Teologia de Ia vida religiosa, 1968.)

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Teologia do deserto Assim como o mistério pascal começou com a pe-

regrinação de Israel no deserto, e Cristo iniciou a vida a-postólica passando quarenta dias na oração e na peni-tência do deserto, assim os discípulos da nova aliança recolham-se na solidão do deserto, a fim de encontrar o mistério de Deus mais facilmente do que no reboliço do mundo humano. O deserto do Egito e Arábia, mais tarde as matas extensas da Europa medieval forneceram um habitat natural, difícil de reconstruir-se no século XX.

Teologia do martírio O cristão perfeito, o santo, é o mártir. Derramando

vida e sangue por Cristo, realiza a mais aproximada iden-tificação com o Redentor. Realiza a expressão mais pal-pável do Amor, segundo João 15,13.

Teologia da Imitação dos apóstolos Os monges, incluindo-se os anacoretas, consideram-

se como herdeiros autênticos da vida que levavam os a-póstolos e a primeira comunidade de Jerusalém. A confe-rir, Paládio, Evrágio Pôntico.

Teologia da luta contra os demônios Cristo e seus discípulos expulsaram os demônios. E

o povo cristão dos séculos IV-V faz romarias aos monges penitentes do deserto, pedindo-Ihes oração e bênção para livrá-Io de todo o mal. Expulsar maus espíritos tornou-se uma espécie de apostolado monacal.

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Teologia da vida angélica O monge vive já a vida dos anjos. Não pelo voto da

virgindade, mas pela oração ininterrupta, pelo culto Ii-túrgico perante o trono de Deus, dia e noite. Eis a espiri-tualidade monacal primordial. Admirável em sua genero-sidade, realmente um sinal luminoso dos valores do além, mas é preciso ver tudo com realismo.

Realismo Todas as exigências morais devem ter a sua raiz nos

Evangelhos e na vida de Jesus. O Batista foi anacoreta e Jesus, não.

Teologia do deserto e da vida angélica são simbo-lismos, são estruturas ou ideologias sobrepostas. A luta anti-demoniaca não é específica do monge; foi de fato uma devoção do monacato egípcio. É só uma parcela da vida espiritual, uma devoção. Teologia do martírio dos cristãos: não consta, ou melhor, consta que a maioria dos cristãos não irá morrer mártir. Após dois mil anos, sabe-mos, por experiência, que sempre haverá alguns ornados com esta graça excepcional, mas são poucos. Na menta-lidade dos monges, era expressão do desejo tão notório, na antigüidade cristã, de participar do privilégio dos márti-res: subir à visão divina logo, sem demora. Era expressão do amor de Cristo. Se Jesus manifestou seu grande amor por nós, ao morrer na cruz (Jo 15,15), querem os monges revidar o gesto com um martírio incruento pela áspera penitência.

Real é a teologia da imitação dos apóstolos e da comunidade de Jerusalém. Sto. Antão resolveu ficar mon-ge ao ouvir o evangelho dominical: "Vai, vende tudo e te-rás um tesouro no céu". Ele e os outros refugiaram-se no deserto só para ter sossego, silêncio para rezar. Celibato

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e pobreza, podiam praticá-Ios também em Alexandria. Mas na noite estrelada do deserto é mais fácil entoar Salmos. Cassiano, (Collationes 18,5) explica a origem do cenobitismo como retorno ao primeiro fervor apostólico em comunidades menores, porque a comunidade grande do povo cristão era um tanto relaxada.

Século XX A teologia hodierna, pré e pós-conciliar, oferece um

quadro variado de teorias, em parte recusadas, em parte apoiadas pelo Vaticano II, em parte ainda abertas à in-vestigação teológica. Desejamos investigar qual o es-sencial da espiritualidade monástica, da vida religiosa consagrada; qual a diferença específica da espiritualidade cristã geral, ou da espiritualidade do laicato; qual o carac-terístico da vida consagrada, quais seus componentes essenciais, válidos em todos os tempos. Passamos em revista as principais opiniões, que vão da identificação formal da espiritualidade monástica com a santidade cris-tã, até um outro extremo de um "tanto faz".

Vida consagrada é o núcleo fervoroso dentro da Massen-kirche (do povo de Deus) ou é só sinal, bandei-rinha (às vezes de "faz-de-conta")? Por que votos? Por que três?

Um grupo de teólogos considera pobreza, virgin-dade, obediência como elementos formais da perfeição cristã, portanto, obrigatórios para todo batizado. No outro extremo [...] está o grupo do tanto faz. Com ou sem votos pode-se ficar sumamente santo. Os três votos não ajudam grande coisa no progresso espiritual, às vezes até atrapa-lham: Gerkin, Rahner, Ranwez. O Vaticano II recusou os dois extremos e apresentou, pela primeira vez, num do-cumento oficial do magistério, a teologia da vida consa-grada. Passemos em revista as diversas teorias.

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Dublanchy A perfeição cristã, segundo Sto. Tomás, consiste

formalmente na caridade, na perfeição do amor de Deus. É possível alcançar essa perfeição do amor sem observar os três conselhos evangélicos. Mas eles são auxílios efi-cazes, removendo obstáculos. Por via de regra não se consegue subir sem praticar obras que vão além dos pre-ceitos, das exigências da lei.

Royo Marin A perfeição consiste no cumprimento dos preceitos.

Os conselhos evangélicos são instrumentos, meios úteis O cristão leigo deve possuir o espírito dos conselhos.

Guerrero Considera os três conselhos evangélicos como es-

sência formal da perfeição cristã. Mas aplicando uma dis-tinção escolástica: os conselhos evangélicos impõem-se a todos apenas como vontade divina de beneplácito; e so-mente para alguns impõem-se como vontade divina con-seqüente, isto é, para os religiosos por vocação. Segundo Guerrero, parece pois ser impossível a suma perfeição sem observar os conselhos evangélicos de fato.

Aguilar A perfeição, a santidade cristã consiste na caridade

de Deus e do próximo. Mas a perfeição dessa caridade requer observância dos conselhos evangélicos. Façamos logo as objeções:

– Se os conselhos evangélicos são necessários para

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a perfeição, por que são só conselhos? Aguilar responde: - Porque obrigatório é só um mínimo grau de cari-

dade (caritas sufficiens), que garante o acesso à perfeição celeste. A caridade perfeita, que constitui o modo perfeito de cumprir o primeiro mandamento, não é exigida nem obrigatória para todos... E os Evangelhos?

- Porque (razão teológica) assim o amor divino fica livre, não imposto por lei... Ora, eu acho que amor de Deus é lei para toda criatura.

– Os conselhos são necessários para o amor per-feito, caem portanto também debaixo do preceito da cari-dade, portanto sob lei.

Aguilar responde: - É perfeito quem tem caridade de Deus, mesmo que

seja só no ínfimo grau (sic). - A caridade perfeita não obriga como uma reali-

zação atual, mas como meta a ser atingida. - A caridade perfeita consiste em "tender perfei-

tamente, segundo todas as faculdades da alma, para al-cançar a caridade celeste, ou aproximar-se dela o mais possível". "Esta perfeição não é imposta por nenhum pre-ceito, nem pelo preceito da caridade (sic), nem pelos de-mais mandamentos. É aconselhada a todos os cristãos como o melhor. Obriga só a quem fez votos religiosos.

"Os seculares não são obrigados ao amor perfeito. São convidados, chamados; pois os conselhos evangé-licos dirigem-se a todos". Para quem está impedido pelo seu estado (matrimônio) "está sempre aberta a possibili-dade de desprender-se inteiramente de todas as coisas... não há dupla moral, nem duas ascéticas, nem duas per-feições".

Sanchis critica com razão: estado religioso, mono-pólio da perfeição, tal seria ao justo título do livro de Agui-lar.

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Nicolas M. J. Religiosos por excelência, religiosos no sentido e-

vangélico, os primeiros religiosos são os apóstolos: segui-ram, acompanharam Jesus até o fim. As renúncias impos-tas ou propostas por Jesus, continência, obediência, po-breza, são o programa da vida perfeita. E é em germe a vida religiosa-monástica.

Principio básico: privar-se de todos os bens transi-tórios que é possível dispensar na vida terrestre, a fim de salvaguardar o coração só para Deus, livre para amá-Io e ocupar-se só com ele. A santidade consiste no amor de Deus, Os conselhos evangélicos são meios para chegar até lá; por sinal, são meios necessários. Removem alguns obstáculos, empecilhos possíveis em que possa enroscar-se nosso afeto, O vazio criado pelas renúncias esteja re-cheado de amor de Deus.

Martelet O mistério do amor esponsal de Cristo para com a

Igreja tem no matrimônio cristão seu sinal, e na virgindade sua realização. A virgindade, o amor preferencial de Cris-to, dá o sentido à vida religiosa. Sua origem não é hierár-quica, mas carismática. Não pertence à estrutura institu-cional da Igreja, mas à estrutura pneumática, carismática. A hierarquia deve controlar o carisma, mas não extingui-Io.

Tillard No âmago da Igreja, o religioso é o sacramento-sinal

e testemunha da presença de Deus. A vida religiosa con-

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centra-se na essencial e mais profunda experiência evan-gélica, na linha vertical (Os religiosos hoje, Ed. Loyola, 1970).

Lavaud "Os três votos não são a perfeição, mas instrumen-

tos de escol para alcançá-Ia... A fim de chegar à santi-dade não é necessário observar os três conselhos evan-gélicos, com ou sem votos. O que é necessário é ter o espírito deles, estar disposto interiormente a observá-Ios, se Deus o quiser ou mandar. A prática efetiva de um ou outro, ou dos três, preparam excelentemente para a per-feição. Eles não são a perfeição.

Thils Os conselhos evangélicos, os três votos são meros

instrumentos da perfeição, "instrumentos excelentes, mas não os únicos, nem necessariamente os melhores". Pro-va: o bispo está em estado de perfeição, segundo a esco-la, sem estar preso a nenhum conselho evangélico, afora o celibato. O sacerdote está acima do religioso, do mon-ge, pois participa do estado de perfeição do bispo. É co-redentor, "Esta vida de co-redentor não está orientada à santificação pessoal, mas comporta atividades que em si são altamente santificadoras, e por outro lado implicam uma exigência maior de perfeição que a de um simples religioso".

Hausherr "Não é a profissão monástica como tal, é o próprio

cristianismo que impõe a tendência à perfeição. A espiri-tualidade monástica identifica-se com a espiritualidade

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cristã, no fim e nos meios principais. As diferenças não atingem nada de essencial, mas só alguns meios exter-nos. "Instrumento da virtude" diz Cassiano (Collationes 11,7), palavra que Sto. Tomás acolheu; há outros cami-nhos de perfeição. Mas este caminho monástico realiza mais perfeitamente, mais segura e mais plenamente nos-sa assimilação com Cristo, na caridade",

Hertling "Para aqueles que não pertencem ao estado reli-

gioso, a vida religiosa pode e deve ser norma e modelo de perfeição cristã".

Truhlar "A vida religiosa não é o estado normal da vida cris-

tã. Há uma vocação ao matrimônio, da parte de Deus, e essa vocação não implica por si só um grau menor de santidade.

Os três conselhos evangélicos e a vida comum mo-nástica são santificantes. E, como formas elevadas de abnegação, são fundamento de toda santidade. Mas não haveria também outras formas de abnegação? Desapego dos bens materiais, do prazer sensível e da independên-cia entram, de algum modo, em toda santidade. Mas para o cristão leigo, há muitas outras focalizações destas re-núncias".

Périnelle “Mt 19 abrange de fato todos os três conselhos e-

vangélicos. Esses conselhos de Cristo foram um fermen-to, e levaram as almas fervorosas a dar-se e consagrar-se. A organização (monástica) fez-se pouco a pouco e

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continua a desenvolver-se até hoje". Galot A vida religiosa é uma consagração especial; não

somente uma plenificação da consagração batismal, em-bora esteja na mesma linha. Os três conselhos constituem uma imitação e seqüela de Cristo, que nos é proposta no Evangelho; estabelecem uma consagração particular ao serviço de Deus e do Corpo místico.

Vida religiosa é sinal, por seus valores espirituais. Sinal e convite a uma entrega mais ampla ao serviço, ao amor de Deus. É posto de vanguarda. Sinal escatológico, sinal de transcendência e das exigências do reino.

Ciappi A vida religiosa é o estado mais excelente, não só de

maneira relativa, subjetiva, mas de um modo objetivo, vá-lido para todos, pois se o matrimônio simboliza a união mística de Cristo com a Igreja, a consagração religiosa já é realização, em grau eminente ou ao menos em suas primícias. O Vaticano II, em LG 44, considera o celibato como superior ao matrimônio. Segundo LG 42 ele é um estímulo de fecundidade espiritual. LG 42, recomenda aos leigos (1Cor 7,31) "Que usem deste mundo como se não o fruíssem; porque é transitória a figura deste mundo".

Carpentier De vários escritos de Carpentier (Ed. Vozes) releva-

mos as suas três teses: 1. O elemento essencial da vida religiosa é a filiação

divina. Daí também a importância do voto de obediência, porque o Filho de Deus desceu à terra para obedecer à

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vontade do Pai. Objeção: Filho de Deus é também o cristão leigo. Ele

também é sinal visível da filiação divina. 2. O núcleo central da vida consagrada é o batismo

na morte de Cristo. Objeção: Certo, mas os leigos foram batizados na

morte de Cristo. Não se vê porque o monge tem de fazer algo a mais

3. Dentro da Igreja das massas (Massenkirche) os religiosos constituem o núcleo fervoroso. Ou, digamos com mais humildade, são militantes e ativistas do reino, em destaque da grande multidão.

Boaventura Kloppenburg Frei Boaventura submeteu os textos conciliares a

uma análise luminosa, convincente. Destacamos os prin-cípios básicos que o Concílio põe em destaque (Cf. Revis-ta Eclesiástica Brasileira, 1970, 68s., ou Eclesiologia do Vaticano lI, 1971).

1. O aspecto teocêntrico da vida religiosa: consa-gração a Deus, entrega a Deus, como pleno desenvolvi-mento do Batismo.

2. O aspecto eclesial: a vida religiosa pertence à vida da Igreja, inabalável, inconcussamente, não à estrutura hierárquica, mas à carismática.

3. Aspecto escatológico: seu valor de sinal. A na-tureza do estado religioso não é sinal; mas valores teo-lógicos da vida consagrada é que são sinais

O estado religioso quer levar a consagração batismal à perfeição dos conselhos evangélicos. A profissão dos conselhos evangélicos ajuda a libertar-nos dos im-pedimentos que poderiam dificultar o fervor da caridade e da perfeição no culto divino. Paulo VI (1964): "A profissão dos conselhos evangélicos é um acréscimo à consagra-

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ção própria do batismo, acréscimo este que a completa por um serviço total".

"Em outro contexto ensina o Concílio que o batismo por si, é só o início e o exórdio que tende à plenitude da vida em Cristo” (OR 22b). E que o batismo dá-nos o sinal e o dom que nos torna possível e necessário lutar pela perfeição (PO 12). Isso quer dizer que o batismo é apenas um grandioso começo, que deve desabrochar e tender à perfeição. A vida religiosa quer favorecer ou facilitar a mais completa realização das múltiplas virtualidades que o batismo colocou dentro de nós. A vida religiosa é a ex-pressão mais perfeita da graça batismal (cf. PO 52).

Mascarenhas Roxo "A condição do reino impõe luta e ascese. A genero-

sidade da vida religiosa caracteriza-se pela lógica do e-vangelho... é uma abertura à Palavra sem medida...” E o estado mais conforme à natureza da caridade" (p. 14). "Não se trata de um estado à margem da vida cristã co-mum... Por seu caráter teológico e teologal é um estado intensamente radicado no interior do mistério cristão... Longe de ser um estado que se acrescenta à Igreja, é o estado-profundidade da vida teologal da Igreja" (29).

Mascarenhas Roxo escreveu um estudo simpático e profundo, cuja leitura se impõe: Os Religiosos, Ed. Her-der, 1969. "A consagração pelos votos, vida de plenifica-ção da graça batismal”, segundo LG 44. O batismo é a graça-base, a ser desenvolvida em todas as suas modali-dades, algumas das quais pedem ulteriores consagrações sacramentais (crisma, penitência, eucaristia, ordem, ma-trimônio, unção). Outras pedem carismas e graças, susci-tando consagrações pessoais. Consagração ao serviço de Deus: alguém se escraviza, mancipatur, por e para amar a Deus" (72).

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"O estado religioso, após o martírio, é o caminho mais eficaz da perfeição" (LG 42.73). "O hábito religioso é parte da estrutura de vida. Segundo o Concílio é sinal de consagração... Quem se gloria de uma consagração pú-blica, vai publicá-Ia também, e a consagração terá o seu sinal diante dos homens. Quem dela se envergonha, en-contrará todos os pretextos para escondê-Ia. Para todos permanece a palavra do Senhor: "quem me confessar diante dos homens" (Mt 10,33). (168)

Rahner Os religiosos são sinais da missão escatológica da

Igreja, enquanto o leigo é o sinal externo da missão cós-mica da Igreja. As ordens religiosas são necessárias, por-que a Igreja tem de manifestar também a faceta escatoló-gica de sua natureza. "Os conselhos evangélicos são um elemento indispensável e essencial da Igreja, porquanto eles revelam e manifestam palpavelmente o que a Igreja vive internamente: o amor divino que transcende o mundo escatologicamente" (Escritos III 70, 1949).

Como a Igreja toda é um sacramento, assim a vida religiosa é também um sinal simbólico. Não é sinal sa-cramental, pois não é sinal visível de uma graça invisível; não produz graça; é o que se chama símbolo. "A maneira aburguesada e acolchoada como é vivida mui discreta-mente a vida religiosa, nas ordens religiosas de hoje, ob-nubila seu sentido de sinal... Professar que a Igreja não é deste mundo, que ela vive uma vida que medida pelas perspectivas cósmicas, é escândalo e estultície" (III 69).

A vida religiosa, em concreto os três votos, não são meios de maior perfeição espiritual... Tanto mais que a virgindade expõe a sérios perigos de ofender gravemente a Deus; só a renúncia não é um meio para maior amor a Deus; em todo caso, não para a maioria da humanidade".

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Rahner desenvolve suas idéias novamente na re-vista Geist & Leben, 1964, 17ss. Rejeita a idéia tradicional que a vida monástica, consagrada através dos votos, seja um meio favorável para alcançar a perfeição. Sua solu-ção: vida religiosa e seus votos são um ato de fé (e con-seqüentemente, um ato de amor). Quem crê no mundo do além e renuncia, por causa disto, a valores reais da terra, realiza uma expressão visível e real desta sua fé no além e na veracidade da revelação. Não é o único modo de expressar sua fé, mas é um modo. Este ato terá tanto mais valor quanto mais os bens renunciados (matrimônio, riqueza, poder) foram anteriormente apreciados e reco-nhecidos em seu valor real.

Mas, por que renunciar? "Porque, via de regra, o homem normalmente não escolhe o matrimônio, riqueza, poder porque ama a Deus, mas porque já está metido neles e já os assumiu antes de confrontar-se expressa-mente com o amor de Deus... principalmente em nossa situação infralapsária" (1964, 232). O princípio que os conselhos evangélicos são o melhor meio para o perfeito amor de Deus é relativo. Vale apenas para quem foi cha-mado; para os outros, não (1964,27).

Crítica: o Concilio não aceitou as idéias de Rahner. A vida religiosa não é só sinal, bandeirinha, mas está re-pleta de valores teológicos (Cf. também Kloppenburg, I.c.)

Concílio 1. Origem bíblica da vida monástica: "Os conselhos

evangélicos, da castidade consagrada a Deus, da pobre-za, da obediência, baseiam-se nas palavras e nos exem-plos do Divino Mestre, e são sinal luminoso do reino ce-leste" (PC 1; castidade, PC 12; pobreza, PC 13; obediên-cia, PC 14).

2. A vida religiosa é doação a Deus, e consagração

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ao culto de Deus. Consagração é um ato religioso pelo qual, pessoa ou objeto é subtraído ao uso profano e re-servado ao serviço e culto a Deus. A bela expressão de LG 44: o religioso "entrega-se de um modo total a Deus, sumamente amado, de tal modo, que por um novo e pe-culiar titulo é ordenado ao serviço de Deus".

O Concilio usa um vocábulo expressivo, o vocábulo emancipação. Os religiosos fazem o contrário; não se li-bertam de Deus, mas se prendem, se amarram, se escra-vizam a Deus. É propriedade, escravo de Deus, do Se-nhor supremo. É "vida doada a Deus" (PC 1). É doação vitalícia (LG 47). O Concilio repete-o três vezes. "A doa-ção que abrange a vida toda" (PC 1). "Vivam unicamente para Deus; pois consagraram toda a sua vida ao serviço de Deus... Fiéis à sua profissão, abandonando tudo por Cristo, sigam-no como o Único necessário. Procurando, antes de tudo e tão somente a Deus, devem unir à con-templação o amor apostólico" (PC 5).

3. Essa consagração ao culto de Deus enxerta-se na consagração batismal. Visa a radicalização dessa obla-ção. Visa a plenificação da graça batismal (Roxo; LG 44). "Consagração especial que está radicada na consagração do batismo e a exprime mais plenamente" (PC 5).

4. É imitação e seqüela de Cristo Salvador, visando intensificar nossa incorporação no corpo místico. Os con-selhos evangélicos "possibilitam ao cristão conformar-se melhor ao gênero de vida virginal e pobre que Cristo Se-nhor escolheu para si e que a Virgem Mãe também abra-çou" (LG 46).

O Documento PC insiste ainda mais nessa seqüela do Redentor. "Seguem a Cristo que, sendo virgem e po-bre, pela obediência até à morte de cruz redimiu e santifi-cou os homens. (...) Quanto mais fervorosamente se u-nem a Cristo (...) tanto mais rica se torna a vida da Igreja e mais fecundo seu apostolado" (PC 1). A vida religiosa

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antes de tudo se orienta no sentido de os membros segui-rem a Cristo (PC 2). "O estado religioso imita e representa na Igreja aquela forma de vida que o Filho de Deus assu-miu ao entrar no mundo e que propôs aos discípulos que o seguiam" (LG 44).

5. Os três votos visam afastar obstáculos à plena expansão da graça batismal. "Pela profissão dos conse-lhos evangélicos, o cristão visa livrar-se dos impedimen-tos que o possam afastar do fervor da caridade" (LG 44). "Os conselhos evangélicos contribuem, não pouco, para a purificação do coração e a liberdade espiritual. Estimulam continuamente o fervor da caridade" (LG 46).

O religioso renuncia a valores humanos, mas só por um bem maior (cf. LG 46). "O estado religioso manifesta já neste mundo, a todos os fiéis, a presença dos bens ce-lestes; dá testemunho da nova e eterna vida; prenuncia a ressurreição futura" (LG 44).

6. É sinal, testemunho. "Daí, segue-se que a profis-são dos conselhos evangélicos é um sinal que pode e deve atrair eficazmente todos os membros da Igreja a cumprir com prontidão os deveres de sua vocação cristã". E, destarte, pertence indiscutivelmente à vida e à santida-de da Igreja (LG 44).

Portanto, o que Rahner arvora em essência do es-tado religioso é, segundo o Concílio, somente conse-qüência, um atributo secundário, derivado. "É sinal que Deus existe e sinal que há uma outra vida no além" (Gar-rone). É sinal-bandeira para ser imitado porque "todo o povo de Deus está no exílio. E como ignoramos dia e ho-ra, é mister estarmos sempre vigilantes" (LG 48). "Os reli-giosos, por seu estado, dão brilhante e exímio testemunho de que não é possível transfigurar o mundo e oferecê-Io a Deus sem o espírito das "Bem-aventuranças" (LG 31).

A Igreja considera-se honrada com a prática da vir-gindade, do celibato, da pobreza, da obediência. E todos

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os fiéis devem "controlar seus afetos e conservar o espíri-to de pobreza, para não serem tolhidos na prática da cari-dade perfeita, advertindo-nos o apóstolo (1Cor 7,31): Os que usam deste mundo não se apeguem, porque a figura deste mundo passa" (LG 42). O estado religioso contribui para a cidade terrestre; em nível superior, coopera "de um modo mais profundo" (LG 46). O Concílio não quis dar uma definição formal, técnica, mas indicou todos os ele-mentos que o compõem.

O elemento comum e básico de toda espiritualidade cristã é o amor de Deus. Santidade é perfeição da cari-dade. O elemento específico é a prática dos conselhos evangélicos, os quais removem obstáculos do exercício da caridade (LG 44) e purificam a alma (LG 46).

O Concílio recomenda sua prática também ao laica-to, em espírito e afeto (LG 42). E resume: "A santidade é uma só para todas as classes e estados... seguir Cristo pobre, humilde, carregando sua cruz" (LG 41).

E a admoestação final do Concílio: "Quem foi cha-mado por Deus, permaneça na sua vocação para maior glória de Deus e maior fruto da Igreja" (LG 47).

Paulo VI O magistério de Paulo VI ocupou-se repetidas vezes

com a vida monástica consagrada. Alguns textos: "A vida religiosa é uma consagração peculiar que

encontra suas raízes na consagração batismal e a ex-prime com maior plenitude" (Evangelica testificatio (29-6-71) nº. 4). "É doação total e irreversível" (nº. 7). "Tudo isto para dizer a que grau de renúncia compromete a prática da vida religiosa. Deveis experimentar em alguma medida o peso que atraiu Cristo para a cruz. Experimentar algo daquela loucura que São Paulo deseja a todos nós. Que a cruz seja para vós a prova do maior amor, como o foi para

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Cristo" (nº. 29). Numa alocução, em 29-10-1970, o papa destaca o

ideal monástico: "Vós tendes na Igreja um papel sem igual e insubstituível. A Igreja faz questão de destacar, em to-da ocasião, a excelência do estado religioso. Hoje em dia, ela sente necessidade mais viva da presença da vida mo-nástico-religiosa, porque ela cultiva certos valores superi-ores, que hoje estão desvalorizados: a oração, a virginda-de, o espírito de sacrifício, a procura da santidade...; pelo trabalho de caridade e de apostolado; pelo exemplo que dais à Igreja e ao mundo inteiro. A Igreja não seria o que é, e deve ser, sem vossa presença e sem vosso testemu-nho... Deveis guardar exigente fidelidade a vossa voca-ção. Essa vocação é o papel insubstituível que têm para vós a oração, a prece, a participação na liturgia.

Muitos leigos sabem impor-se, por Deus ou pelos seus, pesados sacrifícios. Como compreender que sejam dispensados disto aqueles que querem ser, a título espe-cial, as testemunhas daquele que nos chamou a seguir o caminho das bem-aventuranças? Sim, dedicai-vos, em primeiro lugar, a seguir o Cristo casto, pobre, obediente; em viver para ele e para sua Igreja, na contemplação e no amor apostólico".

E, uma palavra do Papa, em defesa da vida contem-plativa, em 2-1-1973: "Em nossa época, a intimidade com Deus permanece um objetivo capital, mas difícil. Foi lan-çada a suspeita contra Deus, foi qualificada de alienação toda procura de Deus por Ele mesmo. Um mundo larga-mente secularizado, tende a cortar da sua fonte e da sua finalidade divina a existência e a atividade dos homens".

"No entanto, a necessidade da prece contemplativa, desinteressada, gratuita, se faz sentir cada vez mais. Mesmo o apostolado, em todos os seus níveis, deve ar-raigar-se na oração, deve apegar-se ao coração de Jesus, e não se dissolver numa atividade que de evangélica só

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conservaria o nome..." “No exemplo de Sta. Teresinha, pela sua interces-

são, queiram os leigos haurir o gosto pela vida interior, o dinamismo de uma caridade sem falhas, sem jamais se-parar sua obra terrestre da realidade do céu. No exemplo de Sta. Teresinha, os religiosos e religiosas sintam-se reafirmados na sua doação total ao Senhor. Os sacerdo-tes, peIos quais ela rezou tanto, compreendam a beleza do seu ministério a serviço do amor do Senhor.

E os jovens, cuja generosidade ou cuja fé hesita hoje em dia diante de uma consagração absoluta e definitiva, descubram a possibilidade e o preço sem igual de uma tal vocação... Ela não se arrependeu de ter-se entregue ao Amor... A Igreja necessita, antes de tudo o mais, de santi-dade". (Mensagem pelo centenário de Sta. Teresinha).

Sto. Tomás A título de ilustração, alguns apontamentos de Sto.

Tomás na sua teologia do estado religioso. Constatamos perfeita concordância entre sua doutrina e a do Vaticano II. O Concílio parte da base mais profunda e ontológica da vida religiosa, isto é, do batismo e de nossa incorporação no Cristo místico. Sto. Tomás parte do conceito dinâmico da caridade.

“O estado religioso é um exercício pelo qual alguém se esforça por chegar à perfeição da caridade. Ora, são várias as obras de caridade a que o homem pode dedicar-se e há vários modos de exercê-Ias" (II II 188,1 ). "O es-tado religioso é instituído principalmente para se alcançar a perfeição, por meio de certos exercícios que eliminam impedimentos da caridade perfeita" (II II 186,1).

E II II 186,7 enumera três elementos constituintes da vida monástica:

– É um exercício tendente à perfeição da caridade.

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– É um exercício que dá tranqüilidade à alma, a res-peito das preocupações externas.

– É, de certo modo, um holocausto pelo qual nos o-ferecemos totalmente a Deus, nós mesmos e tudo o que temos".

Em Ad Gentiles (3,130) escreve o comentário: "Por ser impossível que o homem se ocupe intensivamente de assuntos diversos (a psicologia moderna concorda), a fim de que a mente humana possa lançar-se com mais liber-dade ao encontro de Deus, a lei divina estabeleceu con-selhos pelos quais os homens são afastados das ocupa-ções da vida presente, enquanto é possível, para não le-var uma vida terrena".

Contemplação Entre as várias modalidades do estado religioso, Sto.

Tomás dá o primado espiritual à vida contemplativa. O termo sugere influência do platonismo grego. Mas só na aparência. Basta tomar a contemplação no sentido (dinâ-mico) de oração mística, oração infusa e tudo calha bem.

Em II II 186,2, diz explicitamente que a própria per-feição da caridade é o fim do estado religioso... “O estado religioso é uma disciplina, um exercício conducente à per-feição, à qual certos se esforçam por chegar, por meio de exercícios diversos: como o médico pode empregar re-médios diversos para curar". A contemplação tomista é um ato de amor (II II 180,1).

Na terra é o amor que leva o primado, não a intuição da verdade; não a visão intelectual, como no platonismo e no neoplatonismo. A contemplação é, portanto, bem cris-tã. Ainda em II II 24,9, ele diz sobre os graus da caridade: "O terceiro grau consiste em dedicar-se principalmente a aderir a Deus e deleitar-se em Deus. Isto pertence aos perfeitos que desejam desprender-se e estar com Cristo".

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Amor central O amor de Deus é central na vida religiosa. "Os de-

mais mandamentos são dirigidos pelo preceito da carida-de a remover todas as coisas que são contrárias à carida-de, com as quais a caridade não pode coexistir" (II II 184,3). "Todas as virtudes morais, como também as teolo-gais são dirigidas ao amor de Deus e do próximo" (Quod 1. 4,24). "Essa é a suprema perfeição, que a verdade di-vina não é somente completada, mas também amada" (II II 180,7). "Se alguém recusasse amar mais a Deus, não cumpriria o que exige a caridade" (In Hb 6,1).

"O estado religioso visa alcançar a perfeição da cari-dade, à qual pertence em primeiro lugar o amor de Deus, e em segundo lugar o amor ao próximo. Por esta razão os religiosos devem empenhar-se de um modo precípuo, por dever de estado, a viver para Deus. Se alguma necessi-dade agravar o próximo, então devem, por caridade, tratar dos negócios dele" (II II 187,2).

"Os conselhos evangélicos visam os mandamentos. Não que os mandamentos não possam ser observados sem os conselhos evangélicos, seja em relação aos atos internos, seja em relação aos atos externos... Mas por-que, pelos conselhos, se chega à observância perfeita dos mandamentos de um modo mais fácil e mais expe-dito" (Quod. 1. 4,24).

Amor ao próximo "O motivo de amar o próximo é Deus; isto é, deve-

mos amar no próximo que ele esteja em Deus" (II II 25,1). "O próximo é amado pela caridade, porque está em Deus, ou a fim de que esteja em Deus" (Caritate, 4). O amor de Deus é causa e razão do amor do próximo" (III Sent.

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30,1,4). Na teologia tomista, a vida religiosa é um modo de

praticar o amor de Deus, já que a perfeição cristã consiste na perfeição do amor. Os três votos dão a nota especifica: fazem com que o progresso espiritual "seja mais fácil, mais expedito, mais seguro, mais firme" (Quod. 1. 4,24). Os votos removem obstáculos. Limpam o terreno sobre o qual se deva erguer o edifício espiritual, todo feito de a-mor; outro material não é aceito pelo arquiteto. E no ali-cerce, para começar, três grandes atos de amor, os três conselhos evangélicos.

Os três votos monásticos não são essência da san-tidade. Sua tarefa é desembaraçar o terreno, criar espaço para livre expansão do amor divino. São a estrutura ex-terna, mas com atos de amor de Deus. Só assim é que o Pai aceita a entrega do edifício.

Holocausto A doutrina conciliar sobre o estado religioso pode ser

resumida em três pontos, segundo LG 44: 1)é uma doa-ção a Deus; 2) vinculada pelos votos; 3) é sinal escatoló-gico.

O estado religioso monástico é uma consagração. "Todo cristão é consagrado a Deus pelo batismo". Mas a profissão dos três votos aprofunda e amplia esta sagra-ção, dando-lhe maior plenitude. "É uma entrega total ao serviço de Deus" (LG 44). Característica da vida religiosa é essa totalidade da entrega a Deus, sem delongas, sem adiamentos provisórios.

E qual é esse serviço de Deus? Sem dúvida é o rei-no de Deus. Não é o apostolado da Palavra; pois excluiria as ordens contemplativas. O religioso, o monge, contribui para o reino de Deus com seus três votos. Ou, desçamos a uma camada mais profunda: ele contribui para o reino

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com todo o seu amor a Deus; e seus votos, suas três re-núncias, são estímulos a afervorá-Io cada vez mais. O monge dá ao Corpo místico, dá e deve dar, maior amor, maior prece, maior penitência (LG 44; PC 7). Mais desim-pedido, mais desembaraçado das preocupações terres-tres, cabe ao monge cultivar o "fervor da caridade" (LG 44) com a totalidade de sua entrega a Deus. Pois, ele se fez propriedade "do Deus sumamente amável" (LG 44).

A todo o povo de Deus, Nosso Senhor oferece essa via. Mas, de um modo peculiar, propõe aos discípulos, no evangelho, a observância dos múltiplos conselhos evan-gélicos (LG 42). Aos seus discípulos, Jesus recomenda a via escatológica, descrita pelo Concílio em LG 48, a via das renúncias para mais de perto seguir-lhe as pegadas. Todo o povo de Deus, como Igreja peregrinante, tem par-ticipação na via escatológica segundo LG 48. Mas ao es-tado religioso incumbe a espiritualidade escatológica de uma maneira formal e total.

Sto. Tomás denomina essa entrega total a Deus com o nome bíblico de holocausto. Em II II 186,7, resume o estado religioso num esquema de três pontos: 1) É uma via do amor de Deus. 2) Para seu livre exercício a ele se liga pelos votos. 3) "É, de certo modo, um holocausto pelo qual alguém se oferece a si próprio e todos os seus have-res, a Deus".

Sto. Tomás completa aqui um texto de Sto. Agosti-nho na De Civitate Dei (10,6): "O homem consagrado a Deus e ligado a Deus por voto é um sacrifício”. Em segui-da, Sto. Agostinho expõe que todo cristão batizado é víti-ma e sacrifício. Pelo voto batismal ele é oferecido como vítima no sacrifício de Cristo. Mas o religioso, o monge é vítima em maior plenitude. Sto. Tomás acrescenta: "Os que vivem no mundo reservam algo para si e algo doam a Deus. Mas os que vivem no estado religioso entregam-se totalmente a Deus e entregam-lhe tudo quanto possuem"

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(II II 186,5). "Eles subjugam-se ao serviço de Deus ofere-cendo lhe como que um holocausto (II II 186,1).

Desses holocaustos, vítimas que Jesus encaminha à via das renúncias escatológicas (Mt 7,13), desses Jesus espera maior contribuição para o Corpo místico, contribui-ção de maior fervor, maior amor, mais oração, mais peni-tência, esses elementos que fecundam seu reino na terra (LG 46).

Nosso Senhor disse a Sta. Gertrudes: "Tudo quanto se faz na Igreja é meu" (Leg. 5,1). Todos os bens espiri-tuais, no corpo místico, são intercomunicáveis Se a con-tribuição dos fiéis é larga e generosa, o reino estará em flor, em primavera perene; e o contrário, se o sal da terra se tornar insosso.

Como o Salvador foi vítima de expiação (Mt 20,28) pela vida do mundo (Jo 6,51), assim seus discípulos tam-bém sejam "entregues" (Lc 22,19) e o sangue (de seu coração) "seja derramado em união com o Mestre por muitos".

Para Mateus, o sofrer sob diversas formas, como fi-car separado das pessoas mais caras, ser perseguido, carregar sua cruz, ser entregue à morte, pertence ao des-tino do discípulo. Não será melhor do que a de seu Mes-tre. "Mas não temais”... (SCHMID, Bíblia de Ratisbona, Barcelona, 1967).

As renúncias dos conselhos, da via escatológica, têm pois um sentido redentor, expiatório. Não são apenas instrumentos ascéticos de liberação espiritual e de de-sembaraço para o serviço de Deus. São participações na obra salvadora de Cristo, complementos de sua paixão como diz em Cl 1,24.

Doa para doar: é o preço do resgate de muitos. A via escatológica é cooperação na obra escatológica da sal-vação. É nossa oferta pela conversão dos pecadores. Quanto maior a generosidade do povo de Deus, tanto

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maior o número de resgatados. "Somos cooperadores de Deus" (1Cor 3,9).

Escreveu Lacordaire: "A vida religiosa é uma doação para salvar almas". E São João Eudes: "A graça do ba-tismo é uma graça de martírio". A vida religiosa é, pois, uma associação de almas vítimas, fundada pelo próprio Jesus Cristo, que ele quer ter como colaboradoras na sua obra de salvação do mundo. São co-redentoras. E seu lugar está na galeria das vítimas.

Paulo VI diz aos religiosos: "A vida religiosa tem um aspecto austero, um aspecto ascético". Eis que abando-namos tudo, afirmou São Pedro. E Rm 12,1 admoesta-nos: "Não vos conformeis com o mundo"... Os fundadores das ordens trouxeram sangue novo, novo vigor, novo rigor e constrangimento aceito livremente e até desejado... hoje há a tendência de introduzir as facilidades do mundo, isto é um erro (AAS 1973, 661). "Cristo vos chamou para a perfeição,e portanto, para carregar a sua cruz" (AAS 1973, 333).

Devem ecoar em nossas mentes as palavras de Pio XII em sua encíclica Mystici Corporis, 1934: "Temos de aceitar como um fato, embora nos pareça estranho que Cristo precisa de nós... o Redentor quer ser auxiliado na execução da obra da salvação pelos membros de seu Corpo místico... É um mistério pavoroso que jamais medi-tamos bastante, que a salvação de muitos depende das orações e das mortificações voluntárias, ofertas pelos membros do corpo místico".

E conclui o Papa: "Se hoje em dia, ainda muitos se desviam da verdade católica e não atendem ao convite da graça, isto acontece não só porque eles não rezam o bas-tante, mas também porque os fiéis cristãos não oferecem preces mais fervorosas a Deus por esta causa". Por isto o mesmo Papa convocou o mundo cristão para um cruzada mundial de expiação (1.6.1944). Todos que pertencemos

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ao corpo místico, somos responsáveis pela salvação dos demais membros do corpo místico.

A mesma advertência já foi feita por Nossa Senhora de Fátima, na sua aparição de 15 de agosto de 1917: "Rezai, rezai muito e fazei sacrifícios, que vão muitas al-mas para o inferno por não haver quem reze e se sacrifi-que e peça por elas".

Por que se perdem tantas almas? Se a redenção de Cristo na cruz foi de um valor infinito? Jesus responde: "Porque as almas piedosas não me ajudam, não se asso-ciam ao meu sofrimento na cruz; não rezam bastante com fervor pela conversão dos pecadores, e não fazem sacrifí-cios.”

Ainda uma palavra triste de Jesus, uma queixa a-marga do Salvador que sofreu um excesso de dores, de torturas o máximo, sofrimento que uma criatura jamais padeceu: “Se eu vejo tantas almas caírem no inferno, é sem dúvida que elas querem, mas é também por causa do abuso das minhas graças que as almas consagradas cometem... Reza e suplica ao meu Pai celeste que santifi-que todas as almas consagradas... Meu coração ama a cada alma ao infinito.

Minha esposa, escuta, escuta: se as almas consa-gradas não me recusassem nada, se elas me deixassem agir e dispor livremente sobre elas, todas as outras almas se salvariam; sim, as almas seriam salvas" (MARIE STE. CÉCILE, Cantique d'amour, p. 244).

BASE BIBLICA Esta estrutura espiritual de vida religiosa-monástica

é da origem da fé. É de Jesus Cristo. O Concílio Vaticano II repete esta afirmação com certa insistência. Apresenta Jesus como primeiro religioso (LG 41). Jesus deu aos seus discípulos este modo de viver, como norma de vida.

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Exigiu deles viver como ele, em pobreza, na castidade e na obediência.

A conferir LG 41 e 44: "Uma forma de vida que o Fi-lho de Deus assumiu para si e... que propôs também para os discípulos que o acompanhavam.” De modo que Jesus fundou, com seus apóstolos e discípulos, um convento; convento itinerante, pobre, sem ter nada como próprio, nem mesmo uma pedra onde descansar a cabeça de noi-te. E os discípulos praticaram os três conselhos evangéli-cos de tal modo que, até o século nono, vida apostólica significava vida monástica e religiosa.

A Antiga Aliança preparava o futuro. Teve seus ho-mens carismáticos. Além dos profetas havia os nazireus, com seu voto de abstinência de tudo quanto se origina da videira, fermentado ou não, e voto de abster-se do uso da navalha. Voto limitado a alguns anos, ou voto perpétuo (Nm 6,1-6). As histórias de Noé, de Lot e a experiência cotidiana marcaram vinho e bebida alcoólica como maté-ria de voto. Os recabitas (Jr 35,6) prometeram o retorno à vida no deserto: vida nômade, sem casa de pedra e sem vinho; retorno às fontes. O cabelo deve ficar intacto e ín-tegro como em Gn 49,26 e em Dt 33,16. Nasir foi Samuel, Sansão, o Batista. Temporariamente também, São Paulo (Atos 18,18).

Os Essênios fundam conventos de vida comunitária. Assim, o famoso Qumran, mosteiro descoberto em 1949. O Batista fez talvez com eles um estágio de aprendiza-gem.

Quanto ao N.T., é preciso distinguir no grupo dos apóstolos o duplo aspecto institucional e existencial. "Pelo aspecto institucional, os apóstolos são hierarcas do povo de Deus, com a função de ensinar, santificar e pastorear o Povo de Israel. É o seu múnus sacramental e querigmáti-co. Quanto à sua vocação existencial, eles são chamados a viver como Jesus, estar com Ele, dando testemunho da

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plenitude da revelação... do reino... da opção total e radi-cal por Jesus" (CODINA, 49).

A comunidade de Jerusalém é modelo e fundamento da vida monástica, desde os primórdios da literatura teo-lógica e espiritual.

A título de ilustração, uma anedota monástica: Velho amigo, amigo íntimo, príncipe da corte imperial de Cons-tantinopla, depara-se com o abade Bessarion na sua soli-dão, revestido de andrajos, macilento, esquelético. "És tu, Bessarion? Mas quem te fez isto? Quem te desmantelou assim?" O venerando abade retira do hábito um pequeno rolo de papiro, os santos Evangelhos: "Foi isto que me despojou de tudo".

Pobreza A palavra de Jesus é nosso estilo de vida. Siga-me.

Jesus vivia pobre. Felicitou os pobres do reino. Falou: "Ai dos ricos". Recordando, ele recomendou a todos que o quisessem seguir, vender tudo e transformar a riqueza em esmolas (Lc 12,33; Mt 6,19).

Exigiu dos discípulos a renúncia de todos os bens materiais: "Nenhum de vós pode ser meu discípulo se não renunciar a tudo quanto possui" (Lc 14,33). Recomendou ao jovem rico o mesmo caminho de perfeição. Esta perí-cope, presente nos três sinóticos (Mt 19; Mc 10; Lc. 18) e que deu e despertou vocação a Sto. Antão e a São Fran-cisco, está sendo contestada em seu valor paradigmático. Seria um caso pessoal, que não pode servir de norma geral (Schnackenburg, Menessier, Segasse).

Schnackenburg argumenta que para o jovem rico, em concreto, a pobreza era condição de salvação eterna por sua situação pessoal, por uma inclinação inata à ava-reza, pois a palavra de Jesus “se queres ser perfeito...” não pode ser expressão de um conselho livre a ser se-

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guido ou recusado. Pouco antes, ocorre a mesma ex-pressão: "Se queres entrar na vida eterna...". Ora, entrar na vida eterna não está à nossa livre escolha; é dever, é preceito. Portanto, a perfeita pobreza do moço rico era de preceito.

Respondemos que o silogismo não conclui, porque a vida eterna no céu fica de fato à livre escolha da liberdade humana. Quem não quiser, esteja a gosto. Deus não força dissidentes...

Segasse recusa a idéia que a pobreza faça parte necessária da perfeição e seja dever de todos, segundo Mt 5,48.

Respondemos primeiramente: Não adianta citar Mt 5,48 neste sentido, pois o texto paralelo de Lc 6,36 traduz o sentido: "Sede misericordiosos como o Pai celeste... Sede perfeitos na misericórdia". A base do preceito da perfeição e da santidade é o grande mandamento da cari-dade, em Mt 22 e paralelos.

E repitamos: perfeição não é dever; ser perfeito, santo, não é mandamento, senão, toda a cristandade, como bem poucas exceções, estaria em pecado mortal. É dever tender à perfeição, à santidade; manter-se sempre atento ao maior progresso no amor de Deus, aberto a um ulterior grau de santidade. Não há prazo marcado. Pode-se até adiar esta tarefa para o estágio final no purgatório: antes tarde do que nunca. Daí: se queres... começa já..

E há nessas objeções contra a pobreza (ou contra a virgindade) um equívoco. Os conselhos evangélicos não querem ser a perfeição, a santidade cristã. Eles são um modo (entre outros) de praticar o amor de Deus. São mei-os de o praticar; meios radicais e eficientes, como diz o Vaticano II.

Se os haveres materiais são valores terrestres, Je-sus achou-os muito bons como matéria-prima de esmolas e para nada mais; Jesus viva pobremente. Seu nascimen-

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to, num curral de animais, e o mais, só temos atitudes contra a sociedade de consumo, de luxo.

Jesus não exigiu de todos a pobreza. Exemplos: Za-queu, Lázaro, Maria, Marta, Arimateu, Nicodemos. De seus discípulos, Jesus exigiu a pobreza (Lc 14,33). E o caso do jovem rico é tão pouco restrito, que o próprio Je-sus tira daí a tese geral que o camelo não passa pelo fun-do da agulha (Mt19,24). É o caso: impossível servir a dois senhores (Mt 6,24; Lc 16, 13). E onde está nosso tesouro, aí está nosso coração (Lc 6,21).

Que contraste com o Talmud, que afirma: "Não há no mundo, coisa mais pesada que a pobreza. É o maior dos sofrimentos do mundo e no mundo". E rabi Johanan sentencia: "Todos os profetas eram ricos".

O discípulo do rabi Jesus deve ser pobre, para evitar o perigo do apego à matéria. Deve enriquecer-se de bens celestes (Lc 12,21; 16,1. Mc 8,36).

Rahner escreve certa vez a seguinte tirada: "Deus ama o mundo e este amor deve ser praticado pelo cristão por meio do matrimônio, da liberdade e da propriedade. Respondemos: o leigo se encarrega disto, enquanto o monge religioso figura o futuro escatológico; "last not le-ast": onde está o vosso tesouro... e os dois senhores (Mt 6,24); Deus ama o mundo para salvá-Io e elevá-Io para fora dos tentáculos da riqueza material que facilmente conduz a injustiças (Lc 16,19).

Uma coisa é certa: a espiritualidade de Jesus co-nhece a possibilidade de completar o estrito preceito com obras e virtudes inspiradas pelo fervor da caridade divina. Obras e práticas morais que Jesus supõe, não, digamos com franqueza, exige do grupo dos discípulos e apóstolos como carregar a cruz (Lc 14,25) e paralelos; renunciar aos bens materiais (Lc 14,33; Mt 19,27); renunciar ao ma-trimônio (Mt 19,12).

A razão de ser dessas renúncias é a remoção de

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possíveis obstáculos; é a expansão sempre maior e mais desembaraçada da caridade de Deus (segundo o Vatica-no II). Tudo por causa do reino celeste. A razão de ser dessas renúncias é uma conformidade mais total com Cristo, vítima pelo mundo. É uma participação mais cabal na tarefa expiatória do Salvador.

Virgindade Mateus 19,10-12. O Iogion é seguramente autêntico,

declara Bultmann. A rudeza da linguagem e o inaudito da mensagem não poderiam ser inventados; garantem a au-toria de Jesus. Blinzler sugere que os fariseus teriam ape-lidado Jesus de eunuco por estar ainda solteiro, aos trinta anos de vida. Sugestão válida, considerando que o Tal-mud é casamenteiro e condena o celibato com acrimônia. Mas no tempo de Cristo havia os essênios e seu convento em Qumran, perto de Jericó, estava florescente. Jesus podia apontar esses colegas (aliás, bastante afins aos fariseus).

O Talmud só conhece duas classes de eunucos, não três, como Mt 19: ser eunuco de nascença era castigo de Deus; ambas eram ridicularizadas. O Talmud reflete a teologia judaica dos séculos posteriores, e sua atitude é às vezes, reação contra o cristianismo, como aqui na questão do celibato.

Dupont recusa-se ver em Mt 19 a recomendação do celibato. Não se fala de solteiros. Jesus diria que o marido separado ou abandonado pela esposa não se pode casar novamente; deve ficar eunuco, por causa da nova lei que não permite o divórcio. Mas Dupont esquece-se da ex-clamação de São Pedro (19,10): “Nesse caso é melhor ficar solteiro; convém não casar.” É a esta palavra de Pe-dro, que é de uma franqueza ímpar, que Jesus responde.

E assim mais uma profecia da antiga lei se cumpre:

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Isaías 56,4. Os eunucos, excluídos pela lei de Moisés de toda participação do culto, terão parte no templo messiâ-nico. E terão nome melhor que os filhos e filhas da casa. "Dar-Ihes-ei um nome eterno". A virgindade é um sinal dos tempos novos que o Messias trouxe. "Serão como crianças" (Mt 19,13). "Serão como anjos" (Mt 22,30).

Naturalmente, entenda-se, eunuco em sentido figu-rado. Como o Iógion, de cortar mão ou pé (Mt 5,39).

O apóstolo repete o convite de Cristo em 1Cor 7. Convite, e não preceito. Deus quer deixar lugar ao he-roísmo.

Por que virgindade? Um fim secundário: livrar de preocupações (1Cor 7,32), aliás justas e necessárias, como as de Marta atarefada. Fim simbólico: o amor do reino é sobrenatural. O novo reino de Deus transcende a criatura. Fim primordial: amar a Deus, (1Cor7,33); virgin-dade: por ter Deus ciúme do nosso amor indiviso. Muitos respondem hoje que isso não tem cabimento. Mas con-vém recordar que o amor humano é o único concorrente sério, deixando de lado o amor próprio, que é sem dúvida chefe e dominante do coração humano. Avareza por amor ao dinheiro, pela mania de colecionar é rara. Restam os prazeres da mesa, manjares e vinhos. Mas o amor supera a todos.

A palavra final está com o Concílio (LG 42): "Entre (os conselhos evangélicos) sobressai o precioso dom da graça divina, que é dado a alguns pelo Pai, para que na virgindade e no celibato se consagrem mais facilmente, com o coração indiviso, a Deus somente. Esta perfeita continência, por amor do reino dos céus, sempre foi tida pela Igreja em singular estima, como sinal e estímulo da caridade e fonte peculiar de fecundidade espiritual".

Obediência

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O terceiro voto encontra sua base evangélica na pa-lavra que Jesus dirige a apóstolos e discípulos: "Vem, se-gue-me". Jesus vivia sob a obediência ao Pai de uma ma-neira, por assim dizer, ostensiva. Já no batismo declara ao precursor: "Estou debaixo de ordens" (Mt 3,15). De-pois, o quarto evangelista mostra como Jesus considera esta obediência ao Pai como tarefa, como sentido de sua missão (Jo 4, 24; 6, 38; 1O, 18; 12, 15). São Paulo remata com o texto sublime, inigualável de FI 2,8: "Cristo obedi-ente até à morte, e morte de cruz”. A humanidade afasta-ra-se de Deus por um ato de desobediência; ser retorno será fazer em tudo a vontade do Pai (Hb 5,8; 10,5).

Seguir a Cristo, também em sua obediência total ao Pai, foi sonho e ideal já dos anacoretas, que se colocaram sob as ordens de um diretor espiritual. Quando da fun-dação dos conventos cenobitas, a obediência encontrou naturalmente seu objeto: obedecer a regra e ao abade, como representantes da vontade de Deus,

Cassiano já indica esta ligação da obediência com a vontade de Deus. A hagiografia tem exemplos autênticos do apreço em que Deus tem a obediência evangélica. A ascética teórica frisa com razão que a obediência é a maior renúncia, por atingir o ponto mais vital e mais sen-sível da psiqué humana, a vontade própria, expoente má-ximo do ego fechado em si mesmo.

Voto Por que estes três votos? Porque abrangem a exis-

tência humana em todas as suas dimensões. Assim, é realmente doação total, holocausto. O quarto voto, acres-cido em várias ordens aos três votos essenciais, ou ex-pressa o carisma peculiar da ordem e de seu apostolado (obediência ao Papa, na Companhia de Jesus; redenção dos cativos, nos mercedários; ensino, enfermagem, no

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Bom Pastor...), ou visa manter o fervor espiritual: voto de humildade, voto de pobreza, voto de viver vida de qua-resma; voto de perseverança, voto de clausura perpétua...

Por que a profissão religiosa não é sacramento? Porque essa consagração monástica é só a continuação, radicalização, plenificação da consagração batismal e dos seus compromissos.

Por que se obrigar por voto? Assumimos graves, gravíssimos compromissos sem voto, contratos jurídicos, matrimônio. Há o juramento para firmar compromissos. Mas pelo juramento não dou nada a Deus. Chamo-o co-mo testemunha da minha vontade de dar, de fazer isto ou aquilo. Pelo voto dou a Deus um presente; voto é doação e, por sinal, doação para o culto divino. Os objetos vota-dos, passam a ser propriedade de Deus. Voto transfere domínio. O voto solene exprime-o ainda melhor por entre-gar a Deus até o direito de possuir bens, o direito de ca-sar-se, o direito de fazer a vontade própria.

Os objetos votados tornam-se propriedade de Deus. São sacros como o culto de Deus. Pelo voto de castidade, a pessoa toda fica consagrada ao culto de Deus. O voto da obediência atinge o ápice, porque se compromete a fazer sempre a vontade de Deus, expressão máxima do amor de Deus. "O homem não pode dar a Deus presente maior que a sua própria vontade" (Sto. Tomás, II II 186,5).

Oportuno o texto conciliar (LG 44): "Esta consagra-ção (ao serviço de Deus) será tanto mais perfeita quanto mais for firmada por vínculos mais sólidos e mais está-veis; e assim, melhor, representar Cristo unido à Igreja, sua esposa, por laço indissolúvel". "Feliz necessidade que te obriga ao melhor" (Sto. Agostinho).

[Aqui]Um voto, uma promessa, feitos a Deus devem estar ao alcance humano. Se não, de auxílio torna-se em-pecilho à vida espiritual. Por esta razão, as regras monás-ticas não querem obrigar sob pecado. O amor de Deus

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não pode ficar sob voto. Pois, ele já é suprema lei. E pro-meter e amar a Deus de todo o coração, com todas as forças, dá vertigem. Não sabemos quando podemos parar um pouco e tomar fôlego... Mas não é para parar mesmo. Ainda no fim da carreira (ou vôo) temos de acusar-nos, como faz de vez em quando na confissão uma criança, com aquela singela delicadeza: "quanto ao primeiro man-damento, não amei a Deus de todo o coração." Sorrindo, respondemos que isto é pecado de todos nós, seres hu-manos, com poucas exceções.

Os três votos monásticos não são a essência da vi-da espiritual, da santidade cristã. São meios para alcançá-Ia pelo caminho mais curto. Sua tarefa é desembaraçar o terreno, criar espaço para a livre expansão do amor divi-no. São estruturas externas da vida monástica. Mas o en-chimento das paredes deve ser feito, não com atos de virtude, mas com atos de amor de Deus. Só assim é que o Pai aceita a entrega do edifício.

FORMAS VARIANTES Há várias formas e maneiras de viver a vida consa-

grada. Elas mudam no decorrer dos tempos adaptando-se ao ambiente. Não há modelo único. Atualmente, associa-mos vida religiosa com convento, mosteiro. Mas não foi sempre assim.

Nos primeiros três séculos, o monge ou a monja fi-cavam morando em sua casa, com a família. Depois, os desertos do Egito e as montanhas da Síria povoaram-se, com anacoretas. Não para fugir do mundo (pobreza e cas-tidade podiam-se praticar muito bem nas cidades), mas a solidão favorecia a vida de oração. Depois, surgiram os mosteiros. Os anacoretas saíram do seu isolamento, que tem vantagens espirituais, mas também seus perigos. A convivência em comunidades monásticas, cenobíticas,

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invenção de São Pacômio, contribui com grandes vanta-gens para se atingir o ideal monástico: melhor formação, apoio moral. Foi um modelo bastante feliz e eficiente, co-mo atesta a história eclesiástica. Os Institutos seculares, de uma ou outra maneira, retornam ao modelo primitivo, ao anonimato, como nos primeiros séculos. Cada qual procure o lugar que Deus lhe predestinou. Na vida con-ventual ou cenobítica, cristalizaram-se três tipos de vida: ativa, contemplativa, apostólica.

Vida ativa Há um primeiro binômio: vida ativa − vida contempla-

tiva, (isto é, mística). Assim, Clemente Alexandrino, Orí-genes, Cassiano. Significa vida ativa a prática das virtu-des. Vida contemplativa consiste na leitura da Sagrada Escritura e na oração pura (contemplação infusa). É evi-dente que o cristão perfeito deve viver estas duas vidas, com intensidade (cf. II II 180,2).

Outra é a focalização de Sto. Tomás, neste binômio: teoria − ação, ou vida contemplativa − vida ativa. Nos ter-mos teoria − ação, emprestados da filosofia grega-pagã, podia restar um ressaibo intelectualista, embora já Cle-mente e Orígenes usassem os dois vocábulos legitima-mente, insuflando-Ihes conceitos cristãos. Sto. Tomás divide a vida monástica nestes dois tipos: mas a base não é nenhuma teoria − visão contemplação, mas a virtude central de nossa fé: o amor.

"O estado religioso visa a perfeição da caridade de Deus e do próximo. Ao amor de Deus pertence diretamen-te a vida contemplativa, a qual deseja dedicar-se só a Deus. Ao amor do próximo diretamente pertence a vida ativa, que cuida das necessidades do próximo" (II II 182,2). Ao campo da vida ativa, dedicada ao próximo, per-tencem todas as obras de caridade: enfermagem, educa-

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ção e ensino, orfanatos, asilos de velhos. Obras estas que tomaram um surto brilhante no século XIX pelas novas congregações. Na idade média estas tarefas estavam aos cuidados dos e das terceiras. Desta categoria são tam-bém as ordens militares e a ordem dos mercedários, o-bras características do ambiente medieval.

Adverte Sto. Tomás que essas obras externas se fa-zem e se façam "com vista em Deus, de modo que a ação derive da contemplação" (188,2). "A vida ativa seja dirigi-da pela vida contemplativa" (182,4). "O princípio da vida ativa é o amor por Deus só" (De Caritate, 4,8). Não ha-vendo essa preocupação centrada em Deus, não há esta-do religioso de vida ativa. Há só um clube de beneficên-cia, de caridade corporal ou intelectual (ensino).

Pode ser um agrupamento católico de beneficência ou mesmo de ação católica apostólica, mas não é estado religioso, não é vida consagrada. A vida religiosa ativa visa necessariamente, em primeiro lugar, o fomento da vida contemplativa, isto é, da vida interior e as tarefas da vida ativa ficam-lhe subordinadas. "Todos os religiosos têm isto em comum, que se devem dar inteiramente ao serviço de Deus" (188,1).

Vida mista Não há esse tipo de vida monástica-religiosa. En-

tender vida religiosa mista como uma mistura de ele-mentos da vida ativa com elementos da vida contempla-tiva, é um calembur (parece que FERRARI, Biblioteca Sancta, apresentou pela primeira vez, esta definição), pois atividade totalmente dedicada ao serviço do próximo, sem nenhum exercício de piedade, oração, meditação, missa, comunhão cotidiana, não é vida religiosa.

Mista neste sentido é a vida contemplativa. Nos mosteiros de clausura há as horas de trabalho, por ne-

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cessidade e por razão de higiene psíquica, há as horas de estudo teológico, dogma ou espiritualidade (Cf. Cartuxos).

Escreveu Lottin: "Na prática, a tal vida mista se faz pouco a pouco uma péssima mistura de elementos óti-mos, frutuosos para nenhuma das partes, nocivas para ambas."

"A superioridade da vida mista, por vezes, é mal compreendida. Certas congregações dos nossos tempos pretendem praticar a vida mista e achar-se portanto na categoria mais perfeita de institutos religiosos. Em concre-to, restringem-se àqueles exercícios de piedade rigoro-samente prescritos pelo cânon 595. E no mais, passam quase toda a jornada em ocupações de natureza bem profana, como ensinar escrita, matemática, costurar, pas-sar roupa, fazer tricô, tratar de doentes, dos idosos, cuidar da cozinha, varrer a casa... É dedicação louvável, mas não é nenhuma vida contemplativa mista" (Jombaert).

Vivam-se, sem descontos, todas as práticas da vida contemplativa. E o tempo restante, aproveite-se para de-dicar-se ao próximo. Sto. Tomás nunca usou o termo vida mista. E quando ele supõe uma mistura, entende obras de apostolado direto. E não obras de caridade, de benefi-cência, por mais necessárias que sejam elas na vida hu-mana. Chama-se isto, vida ativa. Nas congregações mo-dernas, há facilmente um excesso de atividade externa; às vezes, nem o mínimo prescrito pelo Código se pratica. Sem meditação é impossível progredir na vida interior. Somos humanos, instáveis

Vida contemplativa Todas as formas e maneiras de realizar a vida con-

sagrada, também as congregações mais ativistas, têm como primeira finalidade, segundo o Vaticano II, "re-nunciar ao mundo e viver só para Deus" (PC 5).

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As diversas modalidades são moldes de praticar o amor de Deus (vida ativa, vida contemplativa, vida apos-tólica), sociedades de vida comum, institutos seculares. E de todos esses moldes, o mais apto para atingir essa fina-lidade parece ser a vida contemplativa.

Entenda-se a contemplação sempre como amor a Deus. A intuição da verdade visa terminar no amor da Verdade Eterna. Vamos repetir: Esta é a suprema perfei-ção, que a verdade divina não seja só contemplação e contemplada, mas também amada" (II II 180,7). Por isto também Sto. Tomás repete sempre de novo: "A vida dos religiosos visa precipuamente a contemplação". "Os religi-osos são destinados precipuamente para dedicar-se à contemplação (Contra impedientes c. 11. c. 2).

A finalidade da nossa existência terrestre é amar a Deus. É o grande mandamento. É a finalidade da Igreja, do Corpo Místico: conduzir toda a criatura ao Pai, unir to-dos com a Santíssima Trindade; união é amor. Propria-mente, só os contemplativos são perfeitamente lógicos em sua fé.

O mundo taxa-os de egoístas, de inúteis Mas a perspectiva profunda, não a míope, dá a eles toda razão. Lemos, no sermão da montanha, a palavra de ordem de Cristo: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus" (Mt 6,33). Palavras de Cristo são lei.

O Concílio manifesta sua preocupação, lembrando aos apóstolos-missionários, leigos ou religiosos, que todo o valor de sua atividade depende da sua união com Cris-to, isto é, do seu amor a Deus. "Sua ação apostólica pro-cede da sua união íntima com Ele" (PC 8). É evidente que a fecundidade do apostolado leigo depende da sua união vital com Cristo" (AA 4).

PC 7 dedica todo um parágrafo à vida contemplativa: "A vida contemplativa conserva seu lugar de destaque e de preferência, apesar das urgências do apostolado ex-

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terno. Pois eles oferecem a Deus um exímio sacrifício de louvor: honram o povo de Deus com os mais ricos frutos de santidade, movem-no pelo exemplo; fazem-no crescer por uma fecundidade apostólica secreta" .

O Concílio quer mosteiros de vida contemplativa nas missões "pois a vida contemplativa pertence à plenitude da presença da Igreja" (AG 18). Sua tarefa, (PC 7): "Na solidão e no silêncio, em prece assídua, e em penitência alegre, vivam só para Deus".

Solidão Não é fuga do mundo, desprezo do mundo, mas a

procura de um ambiente mais favorável à prece. Todos os três votos evangélicos, pobreza, castidade, obediência, podia o monge do Egito praticá-Ios na metrópole de Ale-xandria. Mas o silêncio das noites estreladas do deserto dispunha mais ao canto dos Salmos.

Escreve o escolástico: "Solidão e pobreza não são essência da perfeição, mas meios da perfeição, como o jejum o é, etc. (II II 188,8). Beneditinos e cistercienses transformaram inúmeros quilômetros quadrados de brejo ou de areia em lavoura fértil. Só os mendicantes, por cau-sa do apostolado da pregação, fixaram-se nas cidades.

Prece A vida contemplativa é "uma oferta exímia de lou-

vor". Jesus Cristo encarnou-se a fim de cantar o hino per-pétuo de louvor. A Igreja está encarregada de continuar este múnus sacerdotal (SC 83).

Penitência Sem penitência, sem mortificação do homem inte-

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rior, ficamos opacos à luz divina e ao calor do amor. A penitência torna-nos transparentes. "Por isso encontram-se tão poucos contemplativos, porque tão poucos sabem desapegar-se das criaturas mortais" (Imitação 3,31).

E penitência para remir o mundo. É por isso que eles dormem no duro, levantam-se à meia-noite, jejuam o ano todo − holocaustos vivos perante Deus − benditos sejam por terem assumido esse papel, para o qual nós seríamos covardes demais

Valor apostólico O Concílio não se cansa de apontar essa misteriosa

fecundidade no reino das almas que a vida puramente contemplativa produz (PC 7; AA 4). "Institutos de vida contemplativa são de máxima importância na conversão das almas" (AG 40). São pára-raios, são canais da graça. "As mãos levantadas derrotam mais batalhões que aque-las que se batem" (Bossuet).

O coração da Igreja Paulo VI: "Ilhas de escondimento, de penitência, de

meditação, as comunidades contemplativas constituem o coração da Igreja" (2-2-1966). O que é que a Igreja ne-cessita? Necessita de quem pregue. Necessita de quem esteja suspenso sobre o monte. Necessita também, hoje, de vida contemplativa, de almas que se deixem absorver pela intimidade com Deus (27-2-1966). "O que pretende a Igreja fazer no mundo senão unir as almas com Deus, senão criar em cada alma a atitude de escutar a Palavra de Deus? (28-10-1966). "O contemplativo não vai à ora-ção tão tranqüilamente como se fosse a uma ligeira prosa com amigos. Ele deve carregar no coração a paixão pelo mundo" (28.10.1966).

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Sta. Margarida de Cortona dedicava-se aos doentes. Fundou um hospital e fundou a primeira congregação de religiosas de vida ativa, que durou até o tempo de Napo-leão. Mas, por ordem de Deus, passou os últimos nove anos como reclusa, em oração e penitência, numa cela ao lado de uma Igreja. É a alavanca de Arquimedes no reino espiritual. É esta alavanca da oração que escreve a histó-ria real da humanidade. O resto é só teatro de bonecos.

Vida apostólica A messe é grande e surge a angustiosa pergunta:

será que o bem comum da Igreja hoje em dia não exige que se dê preferência à atividade apostólica sobre a vida contemplativa? O Concilio diz que não. "Os institutos, in-tegralmente ordenados à contemplação... por mais urgen-tes que seja o apostolado ativo sempre conservam sua posição de destaque no Corpo Místico" (PC 7).

Vida monástica e atividade apostólica são se-paráveis. E estiveram separadas de fato, desde a era dos eremitas do Egito até o tempo dos mendicantes. Aliás, forçosamente, porque a maioria dos monges não eram sacerdotes.

Foi o clero secular que primeiro se fez monge. Agos-tinho e Eusébio de Vercelli fundam o primeiro mosteiro de clérigos. Crodegang de Metz escreve a primeira regra ca-nônica-monástica, prescrita depois pelo Concilio de A-quisgrana, 817, para todo o império carolíngio. Temos a repetida reforma de Gregório VII: vida em comunidade e comunhão de bens. Surgem, no século XII, os premons-tratenses e os cônegos agostinianos. E ainda no século XII, os teatinos. No século XIII, as primeiras ordens religi-osas dedicadas ao apostolado (sacerdotal): os mendican-tes.

Não fique esquecido o apostolado missionário dos

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monges de São Crisóstomo, de Cirilo e Metódio, dos monges nestorianos (China). E dos monges-missionários irlandeses e ingleses.

A Igreja é essencialmente apostólica; sua missão é anunciar o Reino de Deus (LG 5). Apostolado é dever de todos os batizados (AA 2, LG 33). "É preciso abater defini-tivamente essa mentalidade, ainda sobrevivente e tenaz, que enclausura religioso e freira no convento como se não houvesse outra coisa a fazer". O Vaticano II não dá apoio a esse iconoclasta de vida contemplativa. A solução do dilema contemplação − apostolado já foi dada por Sto. Tomás.

A solução teórica. A solução prática é sempre um problema aberto. "Como é mais perfeito iIuminar do que somente luzir, assim é mais perfeito transmitir aos outros o fruto da contemplação, do que somente, ou apenas con-templar; razão porque ocupam o sumo grau as religiões ordenadas ao ensino (da teologia) e à pregação. No se-gundo grau estão as religiões ordenadas à contemplação. E no terceiro, as que se ocupam de obras externas" (II II 188,6). "Se os religiosos dedicam-se a obras da vida ati-va com o pensamento em Deus, segue que neles a ação deriva da contemplação divina" (II II 188,2).

Vida apostólica, como forma de vida monástica mais elevada, exige duas condições:

− "Quem é chamado da vida contemplativa para a vida ativa, não faça isso por subtração, mas por adição" (II II 182,1). Sto. Tomás recorda que não podemos fazer tudo. Podemos e devemos rezar por todos em geral. Quanto a obras de caridade, não damos conta de atender a todas as necessidades em razão dos limites humanos" (II II 31,2).

− "Que sejam obras de apostolado espiritual: anún-cio da Palavra. As obras de caridade corporal (cuidar de doentes, órfãos, velhos) ou de caridade intelectual (esco-

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las-orfanatos) não gozam desse privilégio. A vida contem-plativa é simplesmente superior. Só o apostolado da Pa-lavra pode realizar o contemplata tradere. Só a esse cabe a superioridade da vida monástico-apostólica.

Adição, não subtração. A ação apostólica não deve interromper a vida contemplativa. Mas esta deve continuar durante a ação. Mais uma vez: identificamos con-templação com amor de Deus. Adição e não subtração. Estamos cientes, pregadores e teólogos, que gastamos longas horas e dias em estudos intelectuais que absor-vem toda a atenção e que suspendem os atos de amor divino.

Por isso a solução de Sto. Inácio de Loiola: "in actio-ne contemplativus" (Nadal). Durante a ação externa e a-postólica, continue a contemplação, a união afetiva com Deus. Atividade e vida religiosa não se devem justapor, mas compenetrar (Gambari). E ai está o x. Como fazer? "À renovação espiritual se deve dar sempre a primazia, mesmo que se trate de promover obras externas" (PC 2). "Toda a ação apostólica deve ser informada de Espírito religioso" (PC 8).

A fim de garantir esse processo, é mister manter fir-me a parte contemplativa da se vida. Porcentagem difícil de especificar, e variável de indivíduo para indivíduo. É em geral reduzida a um mínimo necessário, por exemplo, a meia hora de meditação; totalmente insuficiente se não houver paralelamente um ambiente favorável e um esfor-ço por andar na presença de Deus.

Portanto, nunca se dispensem atos de oração para sobrar mais tempo para o apostolado. Tanto mais que convém não esquecer que nossa ação apostólica, na conversão do pecador, é só de serventes... Talvez não dê muito entusiasmo desempenhar papel tão secundário. Mas é a realidade no Corpo místico.

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Conclusão − Vida ativa e vida apostólica dispersam a concen-

tração em Deus. E, por conseguinte, arriscamos não agir por amor de Deus. Mesmo as atividades apostólicas são ambíguas; pois podem ser bem feitas, mas não por amor de Deus. Devem ser praticadas com o intuito de viver em Deus (II II 188,2).

− Observe-se a ordo caritatis. "É da ordem natural que alguém primeiro se santifique e depois comunique a alguém sua perfeição" (II Sententiarum 32,1,1).

− "O zelo pelas almas é um sacrifício agradabilíssi-mo a Deus, contanto que se faça de maneira correta: cui-dar primeiro da própria salvação e depois da dos outros. Está escrito: "Que adianta o homem ganhar o mundo in-teiro..." (Quodl. 3,17).

− Acrescente-se que a vida ativa e a vida apostólica são tantas vezes preferidas por razões errôneas. Já Sto. Tomás adverte sobre essas ilusões psicológicas, "quando é mais o tédio da vida contemplativa que conduz à ação externa" (Perfectio c.23).

− "E próprio da caridade perfeita renunciar, por amor a Deus, à doçura da vida contemplativa sempre preferida, para atender a atividade pela salvação do próximo" (Quo-dI. 1,14).

− "A ação de Cristo é nossa instrução" (I II 40,1). Cristo rezava noites inteiras sem ter necessidade disso, pois tinha a visão beatifica (PC 6).

− As angústias das necessidades materiais e espiri-tuais, tão prementes, não nos deve afogar na dissipação da atividade externa. Somos limitados no espaço e no tempo. Se percebemos que o trabalho apostólico nos es-vazia, afrouxa nossa união solicita com Deus, então, sem dó nem piedade, devemos por de lado a solicitude de to-das as Igrejas" (2Cor 11,28), e recolher-nos com o Mes-

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tre: "Venite seorsum", "vinde a um lugar solitário e des-cansai" (Mt 10,23). Quanto menos rezarmos, para traba-lhar mais, tanto mais seremos insuficientes para vencer o trabalho.

− Finalmente, convençam-se todos os apóstolos da seara, prezados irmãos, que a prece humilde e amorosa produz mais conversões do que nossa ação. Estejamos convencidos que o sofrer dos filhos de Deus fecunda me-lhor a seara do que a ação. As melhores armas do apos-tolado são a prece amorosa e o sofrimento. Foi o método do Filho de Deus na terra.

Leclercq conta de um monge eremita, que colocara sobre o altar um pequeno globo do mundo que ele girava cada dia um pouco... "In actione contemplativus". "Con-templativo na ação".

ÍNDICE 1. DESTINO Prólogo Paraíso Terrestre Destino do Mundo Destino do Homem Cântico do Sol Louvai a Deus Destino: felicidade Deus, Primeiro e Último 2. DEUS Parábola Quem é Deus Deus Espírito Deus Plenitude Deus Amor Os Videntes Ângela de Foligno

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Lucie Christine 3. GRAÇA A luz do Cruzado Graça Vida Divina Filhos de Deus Imagem Ver Deus Morada de Deus Invadida pelos Três Jesus Cristo Místico Destino (bis) Transformação em Deus Marie des Vallées A Via de Deus 1. Santidade Cristã 2. Infância Espiritual 3. Humildade 4. Espírito Santo . 4. AMOR DE DEUS Prefácios O Mistério O grande Mandamento O amor de Deus dentro de nós Vítimas do Amor Amor ao Próximo Antologia Epílogo 1. Grandes Desejos 2. Confiança 3. Presença de Deus 5. ORAÇAO

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Oração A Súplica Oração Apostólica Oração do Reino A devoção pelos pecadores Maria Brotel Oração – Problema 6. A DOR A Cruz Mortificação Renúncia total Sofrimento e Fé Os Amigos da Cruz Através dos Séculos 7. EXPIAÇÃO Na Escritura Expiação na Tradição Eclesial Expiação e Magistério Expiação na Reflexão Teológica 8. AS FONTES DA SALVAÇÃO 1. Cinco chagas 2. A Santa Face Sagrado Coração Sangue Precioso A Ceia do Cordeiro Sacerdote de Cristo Maria Santíssima Co-Redentora Vítimas 9. GALERIA DAS VÍTIMAS 10. CÉU

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1. Idéias 2. Onde 3. Quando 4. Cidade Celeste 5. Porta Aberta 6. Descanso Eterno 7. "Videbimus 8. "Amabimus 9. "Laudabimus 10. "In Fine Sine Fine 11. DOM TOTAL 1. O Reino 2. O Mundo 3. Dom Total Escada Branca Epílogo APÊNDICES 1. Apostolado Santidade Os perigos Os meios Vida Contemplativa Apostólica Ação Apostólica Padroeira das Missões 2. Vida Consagrada 1. Histórico dos Votos 2. Teologia 3. Base Bíblica 4. Formas Variantes

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