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Tempos de mudança na formação das educadoras de infância Teresa Sarmento 1 A formação de educadoras de infância foi desenvolvida, ao longo dos tempos, numa centralidade muito forte na criança, nas concepções construídas sobre e com as mesmas, nos seus processos de aprendizagem e desenvolvimento, numa perspectiva de integração de saberes que são apropriados globalmente. Os contextos de formação inicial das educadoras de infância passaram de escolas normais ou magistérios para as instituições de ensino superior, tendo- se conseguido avançar, ao longo das últimas décadas, na perspectiva de um saber específico para trabalhar com as crianças pequenas. Ao mesmo tempo, à acção pedagógica das educadoras de infância, juntaram-se outras funções, sobretudo de âmbito organizacional, que obrigam a repensar a formação. Em termos globais, poderemos então dizer que à medida que se foram alargando as áreas de intervenção das educadoras de infância, assim se foi consolidando a importância da sua formação aprofundada, o que tenderá a facilitar o reconhecimento do seu estatuto profissional. No presente artigo tentaremos abordar a articulação da formação com as identidades profissionais dos professores de crianças pequenas, ou seja, das educadoras de infância (designação utilizada em Portugal) ou professoras de infantil (designação utilizada no Brasil), a partir de um olhar situado em Portugal. Palavras-chave: Formação, educação de infância, saberes profissionais, identidades profissionais Trabalhar com crianças foi entendido, durante muito tempo, como uma actividade não qualificada, não sendo necessário, por isso, qualquer formação específica para o seu desenvolvimento. No entanto, ao longo dos tempos, as alterações a nível da visão sobre a Criança, o reconhecimento do valor sócio-educativo da acção desenvolvida com as mesmas, e as estratégias dos professores no sentido do reconhecimento social desta actividade, têm conseguido alterar essas imagens iniciais e afirmado a sua identidade profissional. Partindo de uma reflexão teórica sobre as bases para a atribuição aos professores da designação de profissionais, no sentido sociológico do termo, sabemos que esta é controversa como se pode inferir dos estudos de Nóvoa (1987 e 1991), de Bourdoncle (1991 e 1993), de Holly e Walley (1989) e de Larson (1977), entre outros. 1 Teresa Sarmento [email protected]; Instituto de Educação-Universidade do Minho. Bolseira FCT (FSE-MEC)

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Tempos de mudança na formação das educadoras de infância

Teresa Sarmento1

A formação de educadoras de infância foi desenvolvida, ao longo dos tempos,

numa centralidade muito forte na criança, nas concepções construídas sobre e

com as mesmas, nos seus processos de aprendizagem e desenvolvimento,

numa perspectiva de integração de saberes que são apropriados globalmente.

Os contextos de formação inicial das educadoras de infância passaram de

escolas normais ou magistérios para as instituições de ensino superior, tendo-

se conseguido avançar, ao longo das últimas décadas, na perspectiva de um

saber específico para trabalhar com as crianças pequenas. Ao mesmo tempo, à

acção pedagógica das educadoras de infância, juntaram-se outras funções,

sobretudo de âmbito organizacional, que obrigam a repensar a formação. Em

termos globais, poderemos então dizer que à medida que se foram alargando

as áreas de intervenção das educadoras de infância, assim se foi consolidando

a importância da sua formação aprofundada, o que tenderá a facilitar o

reconhecimento do seu estatuto profissional.

No presente artigo tentaremos abordar a articulação da formação com as

identidades profissionais dos professores de crianças pequenas, ou seja, das

educadoras de infância (designação utilizada em Portugal) ou professoras de

infantil (designação utilizada no Brasil), a partir de um olhar situado em

Portugal.

Palavras-chave: Formação, educação de infância, saberes profissionais, identidades

profissionais

Trabalhar com crianças foi entendido, durante muito tempo, como uma actividade não

qualificada, não sendo necessário, por isso, qualquer formação específica para o seu

desenvolvimento. No entanto, ao longo dos tempos, as alterações a nível da visão sobre

a Criança, o reconhecimento do valor sócio-educativo da acção desenvolvida com as

mesmas, e as estratégias dos professores no sentido do reconhecimento social desta

actividade, têm conseguido alterar essas imagens iniciais e afirmado a sua identidade

profissional.

Partindo de uma reflexão teórica sobre as bases para a atribuição aos professores da

designação de profissionais, no sentido sociológico do termo, sabemos que esta é

controversa como se pode inferir dos estudos de Nóvoa (1987 e 1991), de Bourdoncle

(1991 e 1993), de Holly e Walley (1989) e de Larson (1977), entre outros.

1 Teresa Sarmento – [email protected]; Instituto de Educação-Universidade do Minho. Bolseira

FCT (FSE-MEC)

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Bourdoncle (1993) apresenta uma análise em que explicita duas correntes distintas

sobre este assunto: uma, baseada em Etzionni (1969), defensora de que os professores

constituem uma semi-profissão, uma vez que tradicionalmente se têm apresentado como

seres submissos, que as suas associações só se interessam pelas condições de trabalho e

de salário e que possuem uma sub-cultura profissional. Etzionni justifica ainda a sua

posição com a formação mais reduzida dos professores em relação aos outros

profissionais, com um status menos legitimado, com um menor direito à comunicação e

com uma menor autonomia em relação à supervisão do seu trabalho ou do controlo

social do que as verdadeiras profissões. Uma segunda corrente apoia-se no quadro

teórico defensor de que os professores, ao precisarem de diagnosticar as situações de

ensino-aprendizagem, ao desenharem e avaliarem os processos de desenvolvimento

dessas situações, usufruem de uma responsabilidade e autonomia relativamente

equiparável a profissionais como os médicos, os engenheiros ou outros. Huberman

(1988), por exemplo, diz que a literatura popular e a científica desenharam um perfil de

professor que o aproxima sensivelmente dos praticantes de outras profissões liberais,

julgadas mais científicas, mais próximas dos meios universitários e melhor pagas.

António Nóvoa (1989 e 1991), na investigação que realizou sobre os professores

primários (e que, na nossa opinião, é extensível ao caso das educadoras de infância),

concluiu que estes possuem as condições básicas a partir das quais podem ser

reconhecidos como profissionais, ou seja:

- exercem uma prática a tempo inteiro

- detêm um suporte legal para o exercício da actividade docente

- estão criados procedimentos de formação específica especializada e prolongada

- possuem associações profissionais.

Além destas quatro condições, construíram-se profissionalmente em relação a duas

dimensões fundamentais: a criação de um corpo de saberes e a construção de valores

próprios.

Entendendo-se como profissional aquele que desempenha “uma actividade humana,

apoiada num saber e em valores próprios, possuidora de atributos específicos e como tal

reconhecida pelo todo social e confirmada pelo Estado" (Sarmento, 1994: 38), tenta-se

perscrutar como se têm construído esses saberes a partir da ultrapassagem, mas sem o

ignorar, do entendimento da educação da criança como ‘gostar e tomar conta de

crianças’, para uma asserção de saberes profissionais que entendam o acto educativo

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como uma ‘acção moral’. Seguindo a linha de Formosinho, “A docência é, ao mesmo

tempo, uma actividade intelectual e uma actividade técnica; uma actividade moral e

uma actividade relacional.” (2001: 62), ou seja, uma acção feita “de respeito e com-

paixão pelas crianças” (Vasconcelos, 1997:24), respeito esse pelos conhecimentos

produzidos pelas diferentes ciências da educação, respeito esse pela reconstrução e

contextualização feita por cada professor, isto é, pelo direito dado a si próprio de se

tornar interventor nesses saberes, respeito esse pelo seu auto-conhecimento e auto-

aceitação; respeito esse, por fim, que entende a aprendizagem significativa como uma

aprendizagem interpessoal, aprendizagem essa que não se limita a um aumento de

conhecimentos mas que abrange profundamente todas as parcelas da existência das

pessoas envolvidas (Rogers, 1974). Será nessa interacção com as crianças, as famílias,

os outros profissionais e as comunidades que os valores profissionais se poderão

(re)construir, facilitando a percepção de cada professor como um elemento significativo

de um grupo profissional.

No presente artigo tentaremos abordar a articulação da formação com as identidades

profissionais dos professores de crianças pequenas, ou seja, das educadoras2 de infância

(designação utilizada em Portugal) ou professoras de infantil (designação utilizada no

Brasil), a partir de um olhar situado em Portugal.

A construção da acção docente das educadoras de infância

As educadoras de infância são, no século XXI, consideradas sociologicamente como

profissionais da docência, no entanto, este nem sempre foi o entendimento quer da

sociedade em geral quer de professores de outros níveis educativos. A afirmação desta

profissão, como em outros casos, está intimamente associada à representação social que

existe sobre o âmbito de acção profissional em que se desenvolve, que, no caso, se

dirige especialmente às crianças, mas também com os pais e com outros elementos da

comunidade.

A história do desenvolvimento desta profissão tem ajudado a justificar as reservas

postas ao reconhecimento profissional desta área docente. O atendimento à infância, em

Portugal, iniciou-se já no século XVII, nas Casas da Roda, em Misericórdias e em Casas

de Órfãos, com um cariz assistencialista e protector, não se podendo falar, dessa altura,

em profissionais de educação de infância uma vez que não se exigiam requisitos de

2 A utilização do género feminino nesta designação retrata a realidade sociológica, na medida em que este

grupo profissional, quer em Portugal como no Brasil, é composto maioritariamente por mulheres.

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formação especializada às pessoas que fizessem o acompanhamento das crianças. Nos

inícios do século XX, fruto de uma conjugação de factores como a industrialização, os

surtos migratórios e, posteriormente, a guerra colonial, levaram à maior mobilidade das

famílias para os centros urbanos e ao início da entrada maciça de mulheres no mercado

de trabalho, criando-se assim a necessidade de encontrar outros contextos para o

acompanhamento das crianças. A par das razões de ordem social, razões vindas do

desenvolvimento do conhecimento de ciências como a Psicologia, a Pedagogia, a

Sociologia e outras, sustentadas no Movimento da Escola Nova, e apoiadas numa visão

de criança como ser competente e aprendente, vêm mostrar a importância da educação

de infância como promotora do desenvolvimento e de aprendizagem das crianças,

perspectivando-se a necessidade da criação de um grupo de pessoas especialmente

habilitadas para promoverem essa educação. Não se trata de procurar substitutos para os

pais junto das crianças, trata-se de promover profissionais que “saibam fazer as coisas

próprias da sua profissão: profissão vinculada a potencializar, reforçar e multiplicar o

desenvolvimento equilibrado de cada criança” (Zabalza, 1996:32).

A centralidade da acção das educadoras de infância junto das crianças e sem grandes

atribuições a nível da gestão das instituições educativas, terá sido, também, um factor a

dificultar o seu reconhecimento social; ou seja, as formas de presença em contextos

organizativos (áreas de acção, possibilidades de participação nas decisões, intervenção

directa nos domínios meso institucionais) são essenciais para a definição de um

profissional da educação. Ora, as primeiras instituições de acompanhamento das

crianças, já no início do século XX, eram privadas e a maior parte estava sob a tutela da

Igreja; só nos anos setenta o Estado começa a ver com ‘outro olhar’ as crianças,

abrindo-se os primeiros jardins-de-infância da rede pública, com enquadramento legal

regulamentado pelos Estatutos dos Jardins-de-infância3, mantendo-se, contudo, uma

predominância da intervenção de uma rede privada nesta área. Nesta últimas

instituições, a organização e gestão era realizada pela direcção das mesmas, sem

obrigatoriedade de conhecimento específico na área de administração educacional ou

mesmo da educação de infância: a coordenação pedagógica só se vem a tornar

obrigatória em 1997, pelo que a acção das educadoras de infância se cingia, até essa

altura, efectivamente à sala de aula. Os jardins-de-infância da rede pública eram de

reduzida dimensão (raramente com mais do que um lugar), isolados e distantes de

3 Decreto-Lei nº 542, de 31 de Dezembro

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escolas de ensino elementar, cabendo às educadoras a direcção e gestão pedagógica dos

mesmos.

Entretanto, a Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar4, vem regulamentar todo o sistema

de educação pré-escolar, inserindo as duas redes numa só, definindo as condições de

funcionamento das mesmas e credibilizando (pelas regras impostas) o funcionamento

pedagógico de um e de outro sistema. A partir desta altura, algumas educadoras de

infância são então chamadas a assumir a coordenação pedagógica nos jardins-de-

infância da rede privada e, na rede pública, vão-se introduzindo novas regras de

articulação e junção de ciclos, aumentando o espaço para o desempenho de papéis na

área da gestão e organização educativa por educadoras de infância. Em 1991, com os

ensaios da implementação de um novo Regime de Gestão e Administração das Escolas5,

confirmada depois em 19986, criam-se condições para que se quebre o ciclo de

isolamento, em que cada educadora vivia numa ilha, na linguagem metafórica de

Formosinho, descrevendo assim “quer a dispersão geográfica da rede, quer a

fragmentação organizacional (cada ilha tem governo próprio), quer a

compartimentação institucional (as ilhas representam sempre uma descontinuidade em

relação ao continente)” (id, 1998: 27). Numa primeira fase houve a possibilidade de

integração num dos dois modelos existentes: ou agrupamento horizontal, em conjunto

com outros jardins-de-infância e escolas do 1º ciclo da área territorial (possibilitando

maior contacto com outras educadoras de infância e com professores do 1º ciclo), ou

agrupamento vertical, em conjunto com os 1º, 2º e 3º ciclos da escola básica da zona

(possibilitando maior contacto com professores de todo o ensino básico).

A partir de 2003, com a regulamentação definida no Despacho n.º 13 313/2003, impõe-

se como norma a verticalização de todos os agrupamentos. A partir de então, apesar de

na maioria dos casos, cada ciclo (logo, cada educadora ou professor) se conservar na

mesma escola ou jardim-de-infância, passa a, obrigatoriamente, conviver entre si, em

termos de encontro directo nas reuniões gerais de agrupamento, ou, em representação,

nos órgãos de gestão do agrupamento – no Conselho Executivo (CE), no Conselho

Pedagógico (CP) e na Assembleia. Entretanto, com a Lei 75/20087, a presença de

representantes educadoras de infância é obrigatória no Conselho Geral e no Conselho

4 Decreto-Lei nº7, de 10 de Fevereiro

5 Decreto-Lei nº172, de 10 de Maio

6 Decreto-Lei n.º 115-A, de 4 de Maio

7 Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril - Regime de Autonomia, Administração e Gestão dos

Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário.

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Pedagógico, havendo ainda a possibilidade de assumirem o cargo de direcção do

Agrupamento.

Em termos globais, poderemos então dizer que à medida que se foram alargando as

áreas de intervenção das educadoras de infância, assim se foi consolidando a

importância da sua formação aprofundada, agora também nas áreas da organização e

gestão educativa, o que tenderá a facilitar o reconhecimento do seu estatuto profissional.

A profissionalidade específica das educadoras de infância

Partindo do princípio que as educadoras de infância têm um grande impacto na

sociedade, alguns investigadores que se têm dedicado particularmente à educação de

infância e às suas profissionais (Saracho e Spodek, 1988, 1992; Katz, 1979, 1985, 1992,

1993; Schweinhart et al, 1993; Zabalza, 1996, 1996ª; Vasconcelos, 1993, 1995, 1997;

Oliveira-Formosinho, 1994, 1997, 1998), realçam o papel da certificação - entendida

como a admissão legal na profissão - para a afirmação de uma profissão que colide em

espaços e acções com outros actores fundamentais na educação das crianças: por um

lado, as auxiliares da acção educativa e os directores dos centros de atendimento à

infância, e noutro grupo os pediatras, os pedo-psicólogos ou pedo-psiquiatras e os

professores das escolas superiores de educadores de infância.

Estes autores centram a sua análise nas dimensões da profissionalidade8 das educadoras

de infância, apresentando uma série de características que ajudam a clarificar a

especificidade das mesmas.

Lilian Katz (1985), adopta os critérios utilizados por Freidson (1985) e Goode (1983)

para definir a profissão de educadoras de infância, realçando:

- a essencialidade do trabalho realizado com crianças até aos 5/6 anos para que a

sociedade se desenvolva da melhor maneira;

- o valor altruísta da profissão, defendendo a importância do voluntarismo

desligado de compensações financeiras;

- a autonomia do profissional, rejeitando que os profissionais, em grandes

organizações, estejam dependentes dos empregadores para a definição da

natureza das suas práticas. Cabe aos empregadores assalariar os profissionais

para que estes desenvolvam juízos baseados em conhecimentos especializados,

princípios e técnicas;

8 A profissionalidade, segundo Bourdoncle (1991, 1993), diz respeito à racionalidade,

especificidade e eficácia dos saberes ligados à actividade profissional.

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- a relevância das associações profissionais para a construção de códigos éticos;

- a necessidade de estabelecer distâncias emocionais adequadas, de forma a

permitir “ao profissional ser responsável, cuidadoso e compassivo, permitindo-

lhe ainda fazer juízos profissionais e colocar as crianças em situações de

aprendizagem significativas” (Katz, 1985:50);

- as competências de selecção de tipos de práticas sustentadas e articuladas com

teorias;

- a formação prolongada e especializada.

A abordagem de Lilian Katz centra-se nas dimensões pedagógicas, não evidenciando a

relação existente entre condições organizacionais e acção pedagógica.

Por sua vez, Júlia Oliveira-Formosinho (1998), com base numa conceptualização

ecológica que analisa a interacção entre a criança e a educadora de infância nos

diferentes sistemas9, aponta cinco dimensões para a análise da singularidade da

profissionalidade das educadoras de infância, integrando já a dimensão dos contextos e

suas bases organizativas:

- as características da criança pequena;

- as características da educação pré-escolar;

- as características do processo e das tarefas desempenhadas pelas educadoras de

infância;

- as características da educadora de infância ;

- as características dos contextos de trabalho e da condição docente.

A capacidade de relação é comummente apontada como o recurso principal para se

trabalhar adequadamente com as crianças, implicando esta algumas características

principais tais como a cordialidade, a empatia, a originalidade e a capacidade de ruptura

com o formalismo (Zabalza, 1996). A auto-segurança manifesta na capacidade de

estabelecer limites e de manter a estabilidade de contactos com as crianças, os pares

profissionais, a comunidade alargada, os membros internos às instituições

independentemente das posições que ocupam, é entendida como mais uma das

características essenciais.

9 Nesta conceptualização entendem-se os seguintes sistemas: macrossistema - características

gerais da educação pré-escolar; mesossistema - características dos contextos organizacionais enquanto articuladores dos microssistemas; microssistema – características das salas de aula e de outros espaços em que as interacções são directas.

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Formação e saberes profissionais

Diferentes abordagens podem ser feitas ao conceito de formação: ou como uma função

social de transmissão de saberes, do saber-fazer e o de saber-ser; ou como um processo

de desenvolvimento e de estruturação da pessoa levada a cabo pelo duplo efeito de

maturação interna e de possibilidades de aprendizagem através das experiências dos

sujeitos; ou como a acção da instituição de formação, referindo-se à estrutura

organizativa que planifica e desenvolve as actividades formativas. Nos últimos anos,

como lembra Roldão, assistiu-se a um maior investimento na qualidade científica da

formação e na dimensão profissionalizante, “corporizada em competências

profissionais como eixo estruturador da formação” (2001, 6). Roldão reforça esta

perspectiva ao chamar a atenção para a relevância de os saberes profissionais se

consubstanciarem em saberes científicos sólidos nos seus diferentes planos: do objecto

de aprendizagem, dos sujeitos e da relação entre ambos com os seus contextos.

Nessa base, o enfoque que aqui se pretende valorizar será o que se centra na formação

como desenvolvimento pessoal/profissional, para o que se torna necessário articular a

sua abordagem com a abordagem das outras vertentes assinaladas.

Seguindo Alonso (1998), a formação dos professores integra uma componente pessoal,

que se conecta com um discurso axiológico referente a finalidades, objectivos e valores

tanto ou mais que às componentes técnicas e instrumentais. Assim, esta formação

implica a construção de diferentes tipos de saberes: o saber, o saber-ser e o saber-fazer,

sustentados quer nas perspectivas sócio-educativas, psicopedagógicas e curriculares,

quer nas perspectivas de desenvolvimento humano e de relação social. Na linha de

Alarcão “pretende-se que os professores de hoje não sejam meros executores de

currículos previamente definidos, mas um decisor, um gestor em situação real e um

intérprete critico de orientações globais” (2001, 21), o que implica atitudes de pesquisa,

de análise critica e substantiva, que faça da sala de aula e/ou do contexto educativo,

como diria Stenhouse (1995) “um laboratório, e cada professor um membro da

comunidade científica” (cit. in Alarcão, 2001, 23). Pretende-se ainda afirmar a formação

de professores na sua dimensão histórica, ou seja, na sua contextualização espaço-

temporal, em que cada profissional actua racionalmente, ou, como tão bem diz Paulo

Freire

“Os homens, ao terem consciência da sua actividade e do mundo em que estão, ao actuarem em

função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e

em suas relações com o mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo da sua presença criadora

através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-

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se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua

existência é histórica” (Freire, in Willms e Carvalho (2008).

Isto é, interessa-nos uma abordagem da formação de professores que tenha em atenção

a realidade sócio-histórica actual, as crianças situadas em contextos específicos, as

pessoas concretas que exercem esta acção profissional e que sobre a mesma realizam

uma reflexão critica. Ora, como nos diz Willms e Carvalho,”Para se realizar esse acto

de desvelamento da realidade com vistas à acção, à transformação, é preciso mudar a

dinâmica do trabalho educativo, uma vez que ele começa pela pesquisa da realidade em

busca do conteúdo, ou seja, a maneira como as pessoas pensam a sua realidade” (2008:

29). Como tal, a perspectiva de formação que aqui se pretende abordar pode ser

entendida como um processo dinâmico, mais ou menos partilhado entre os actores

sociais que a constroem, promovendo o desenvolvimento profissional integrado no

âmbito do desenvolvimento pessoal.

Perspectivas sobre formação de professores

Nóvoa entende que “a formação dos professores é o momento-chave da socialização e

da configuração profissional” (1992:18), na medida em que estabelece a ponte entre o

papel de simples estudante e o papel de quem estuda com uma finalidade muito

direccionada, que neste caso será a de ser professor de um nível etário específico, num

campo de acção que constitui na actualidade o centro de múltiplas investigações. A

socialização e a formação são realidades que caminham a par, pelo que a formação para

a mudança se torna inseparável da mudança dos contextos de socialização (Sarmento,

1994:65). Neste sentido, a criação de instituições de formação para professores constitui

uma etapa de destaque no processo de profissionalização dos mesmos; ao mesmo

tempo, a possibilidade de os estudantes contactarem, ao longo da formação inicial, com

contextos de acção, no caso, com jardins-de-infância ou escolas, facilita a compreensão

de como o desenvolvimento da acção pedagógica está intrinsecamente associado às

condições de realização profissional dos docentes e às condições organizativas das

instituições.

As concepções sobre a formação dos professores têm vindo a ser amplamente

questionadas em debates que se constroem à volta de dois modelos: por um lado, a

relevância de uma formação orientada para a aceitação do controlo e da dependência,

com carácter académico, sujeita apenas a saberes produzidos por agentes externos ao

grupo profissional e, por outro, uma formação orientada para a autonomização, a partir

da reflexão dos saberes construídos nas práticas, com participação activa dos actores

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sociais implicados, considerando a importância da reflexão em acção e a construção de

saberes integrados.

Para Carlos Marcelo, a formação de professores consiste num processo reflectido e

contínuo, com carácter sistemático e organizado. Assim, a formação “deve referir-se

tanto aos sujeitos que estão a realizar estudos para se converterem em professores,

como àqueles docentes que já estão há alguns anos na docência” (1989:31). O autor

assinala a dupla perspectiva da formação de professores, individual e colectiva, tendo

esta linha formativa como finalidade a aquisição, o aperfeiçoamento e o enriquecimento

da competência profissional dos docentes.

A formação dos professores ocorre, assim, como um fenómeno social dilemático, na

medida em que envolve situações que oferecem escolhas múltiplas, cada uma delas

problemática, o que implica que a escolha exclusiva de um dos caminhos faça perder as

vantagens que os outros poderiam oferecer.

Cada escola ou projecto de formação tem necessariamente uma conceptualização sobre

a educação, a acção profissional, a formação, idealização essa que traduzirá a orientação

conceptual dos formadores e, na quota-parte que esta formação tem no desenvolvimento

profissional, influenciará as práticas e as perspectivas dos futuros professores.

Alguns autores têm-se debruçado sobre as estratégias de formação com vista ao

desenvolvimento crítico da acção docente conducente ao desenvolvimento profissional,

realçando as virtualidades da formação em contexto (Amiguinho, 1998; Roldão,

2001;Canário, 2000, 2001; Oliveira-Formosinho e Formosinho, 2001). Roldão (2001)

aponta os princípios norteadores das estratégias de formação, propondo que os futuros

professores se apetrechem com saberes de referência sólidos no plano científico-

profissional, estruturantes e mapeadores do campo do conhecimento profissional; com

competências para ensinar, emergentes e integradoras do saber profissional,

contextualizadas na acção profissional; com competências de produção articulada com

conhecimento profissional gerado na acção e na reflexão sobre a acção e na reflexão

sobre a acção, teorizado, questionante e questionável, comunicável e apropriável pela

comunidade de profissionais (2001, 13). Este conjunto de estratégias obriga à promoção

de competências metodológicas, atitudinais, de comunicação, capazes de,

progressivamente, irem entrosando o estudante-próximo professor e ao longo de todo o

percurso profissional, a manter-se numa acção reflexiva e critica sobre a sua

profissionalidade.

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Canário (2001), dentro da mesma linha de pensamento, chama a atenção para o valor

epistemológico da experiência na formação de professores, defendendo que “o mais

importante na formação inicial consiste em aprender a aprender com a experiência”

(ibid, 32), o que implica uma relação estratégica entre a formação e o trabalho (iniciada

na relação entre as diferentes unidades curriculares teóricas e as práticas pedagógicas,

ainda na formação inicial), de forma a possibilitar o saber mobilizar os conhecimentos

para as situações específicas que vão ocorrendo.

Zeichner, ainda na década de 90, identificou alguns obstáculos que se têm colocado ao

desenvolvimento crítico da formação de professores:

- a crença de que para se obter bons resultados basta colocar os alunos-

estagiários junto de bons professores, de uma forma não mediada e não

estruturada;

- a ausência de um currículo explícito e de uma ligação estreita entre as

universidades e as escolas;

- a qualidade irregular da supervisão, a falta de formação específica tanto dos

orientadores universitários como dos orientadores das escolas;

- a exiguidade de recursos do practicum e o acréscimo de trabalho para docentes

universitários;

- a pouca importância concedida ao practicum nas escolas primárias e

secundárias;

- a discrepância entre o professor-reflexivo de quem se espera que emita

julgamentos, que tome decisões sobre currículo e ensino e o professor como

técnico que se limita a executar as instruções governamentais e as políticas

educativas elaboradas sem a sua participação (id., 1992:119).

Estes obstáculos ainda hoje são bem visíveis e as alterações impostas para os novos

cursos de formação de professores por determinações ministeriais, segundo defendem,

para cumprir os princípios de Bolonha10

, correm até o risco de se empolarem: o

10 Vários países europeus, com vista, sobretudo, a favorecerem a mobilidade estudantil e docente e a

criarem um espaço europeu de conhecimento, em Junho de 1999 assinaram a Declaração de Bolonha,

através da qual assumiram a adopção de um sistema com graus académicos de fácil equivalência, para

promover a empregabilidade dos cidadãos europeus e a competitividade do Sistema Europeu do Ensino

Superior. O processo de reconversão dos cursos de formação de educadores de infância obrigou à criação

de dois ciclos de estudo (Licenciatura, com três anos de formação), em que o Mestrado se torna a

formação exigida para o acesso à docência. As exigências de formatação dos cursos levou à diminuição

da carga horária presencial e ao aumento de tempo para trabalho autónomo. Em termos de plano de

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adiamento da abordagem da formação no âmbito organizativo e pedagógico para os

segundos ciclos de estudos, com um tempo muito limitado de realização, não consegue

permitir uma análise qualificada e profunda das diferentes áreas de acção docente.

Limitar o estágio à acção dentro da sala de aula poderá impedir os futuros professores

de terem uma participação activa mais alargada, ausentando-os da preparação para

tomar parte nas tomadas de decisão ao nível das escolas/agrupamentos. Realce-se,

contudo, as virtualidades dos cursos organizados segundo a Declaração de Bolonha, nos

quais se preconiza a ligação entre inserção de pesquisa científica durante o processo de

formação inicial e a construção da identidade profissional, ainda que a mesma encontre

dificuldades com a dicotomização entre os três primeiros anos mais teóricos, e os anos

seguintes, mais práticos. Entretanto, a assumpção do construtivismo na formação de

professores, com a adopção de metodologias como trabalho projecto são favoráveis à

pesquisa e não à atitude e prática do professor como reprodutor de conhecimentos, o

que pode ajudar a superar as dificuldades enunciadas.

Finalidades da formação inicial

A primeira finalidade da formação inicial é a de construir conhecimentos e

competências sobre as actividades educativas a desenvolver. A aplicação de

metodologias propiciadoras de reflexões indagadoras, a criação de um clima de aula

inovador e a gestão de uma cultura escolar que impulsione o conhecimento prático

(Rivilla, 1993:30), são condições que se pretendem presentes em modelos que se

baseiam na reflexão crítica sobre as práticas, servindo como pontos de partida para o

confronto com outras formas e fontes de conhecimento.

Se formar professores é colaborar no desenvolvimento de pessoas (Marcelo, 1994;

Alonso, 1998; Oliveira-Formosinho, 1998, Teresa Sarmento, 2002), então uma das

principais finalidades da formação inicial será viabilizar que os futuros professores se

responsabilizem pelo desenvolvimento da escola, adquiram atitudes reflexivas face à

educação e se assumam como cidadãos.

Joyce e Clift (1984, in Marcelo, 1994) equacionam uma série de finalidades que se

entende deverem estar presentes na formação inicial: a) o estudo do mundo, de si

mesmo e do conhecimento académico; b) o estudo dos processos de ensino-

estudos, a componente prática dos cursos fica remetida sobretudo para o 2ºciclo de estudos (Mestrado),

reduzindo-se significativamente a formação na área das ciências da educação.

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aprendizagem; c) a participação nos esforços de renovação da escola incluindo a criação

e implementação de inovações; d) a resolução de problemas genéricos do seu local de

trabalho; e) a atitude de aprender e o desejo de exercer esse conhecimento.

Para Saracho e Spodek (1992:47), há que desenvolver técnicas que preparem a pessoa

para uma profissão particular como a de educadora de infância, seguindo dois métodos:

por um lado, pela análise de trabalho com observação e reflexão contínuas da acção, e,

por outro, com uma análise conceptual sobre os diferentes papéis do professor. Cada

sociedade tem atribuído valorizações diferentes ao conjunto de atitudes, conhecimentos,

competências, habilidades e destrezas que se esperam dos professores, procurando as

formas tidas como mais adequadas para a sua promoção nos futuros profissionais.

Para lá da formação inicial, a educação permanente vem recebendo a maior atenção dos

especialistas, dos políticos e das entidades formadoras, perspectivando diferentes

formas de tornar a formação ao longo da vida como uma componente central nos

processos de desenvolvimento profissional.

Os saberes e os processos de construção dos saberes para a profissão docente

A noção do saber dos professores, dos seus processos de construção e da sua validade,

tem vindo a ser amplamente questionada pelas ciências da educação e pelos próprios

docentes, o que parece particularmente importante quando as exigências das instituições

empregadoras e a diversidade de funções aumentam.

Os cursos de formação de professores estão geralmente organizados por duas áreas

centrais de saberes – os saberes das Ciências da Especialidade e os saberes das Ciências

da Educação. A articulação entre estas duas áreas tem sido questionada em diferentes

instituições de formação, aumentando os dilemas quando as instituições habituadas a

formar professores para “áreas disciplinares” passam a formar “professores de

crianças” (Formosinho, 2002). Ou seja, os professores do ensino pós-primário

leccionam uma disciplina específica a um número elevado de alunos, organizados por

turmas, podendo cada turma ter um grupo diferenciado de professores e fazendo cada

professor parte de conjuntos docentes diferentes. Por sua vez, as educadoras de infância

- o mesmo acontecendo com os professores do ensino primário - trabalham, em

princípio, pelo menos um ano completo com um grupo restrito de crianças, cabendo-

lhes promover, para além da componente instrutiva, as componentes socializadora e

personalizadora. A aprendizagem de conteúdos – de uma forma mais explícita e

programada no ensino primário do que na educação de infância - não é de desmerecer e

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tem vindo a ganhar cada vez mais adeptos (Zabalza, 1996; Silva, 1997; Oliveira-

Formosinho, 1998), ainda que a socialização e o desenvolvimento das crianças

continuem a ser entendidas como prioritárias. Além disso, o bom exercício de trabalho

com crianças exige um bom trabalho com os pares profissionais, os pais e outros

elementos das comunidades.

Para lá dessa discussão, vai-se tornando progressivamente mais clara a definição de

quais os saberes essenciais de cada grupo de professores. Os conhecimentos básicos dos

professores são entendidos como aqueles de que os docentes necessitam para

desenvolverem um bom ensino, sendo estes compostos por três tipos de saberes: o saber

pedagógico, constituído pelos conhecimentos teóricos e conceptuais, integrando-se aqui

o saber da especialidade; o saber fazer, baseado nos esquemas práticos do ensino; e o

saber porquê, sustentado na justificação da prática (Marcelo, 1994; Oliveira-

Formosinho, 1998).

A aquisição dos conhecimentos profissionais básicos poderá resultar de diferentes

modalidades de aprendizagem, tais como: o contacto com resultados da investigação; a

análise das experiências de trabalho; trabalhos realizados pelos alunos-profissionais; a

observação de professores especialistas; reflexões sobre a prática; conversas com

professores. A aquisição/construção dos conhecimentos profissionais básicos

corresponderão assim a um processo de aprendizagem.

Um saber prático quotidianamente construído

Os professores foram-se desenvolvendo com base num saber essencialmente prático, de

que os modelos de formação empíricos utilizados nos primeiros cursos de formação

inicial serão os responsáveis. Esta concepção formativa parte do pressuposto que os

conhecimentos (‘saber’), as competências (‘saber fazer’) e as atitudes (‘saber ser’)

provêm da experiência docente, podendo esta ser adquirida num processo de auto-

formação (Formosinho, 1987). O saber das educadoras de infância constrói-se no

quotidiano, a partir da reflexão sobre as actividades intensivamente práticas, esperando-

se respostas criativas às questões que são levantadas nesse dia-a-dia (Vasconcelos,

1993:127). No processo de aquisição e construção de saberes das educadoras de

infância, o conhecimento que cada uma vai elaborando sobre o grupo em quem recai a

sua acção, ou seja, as crianças, é mediado pela ideia de criança, conhecimento esse que

tenderá a ter uma sustentação pluridisciplinar. A individualização da acção educativa, a

capacidade de atender a cada aluno com a sua história única, os seus conhecimentos, as

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suas dificuldades e as suas reacções, será assim uma das bases de construção do saber

profissional das educadoras de infância. Em termos de processo, decorre daqui a

importância da inclusão da investigação no processo de estágio, de forma a conseguir

um maior compromisso da universidade com a formação social e política dos futuros

professores e a importância das parcerias, tal como preconiza Rocha (2008: 38).

Se a aprendizagem da profissionalidade pedagógica das educadoras está já bem

conceptualizada e incrementada, a aprendizagem a nível da acção organizativa começou

a ter alguma visibilidade mais recentemente através da produção de saberes produzidos

no âmbito de Mestrados em Administração e Organização Escolar, em que se nota, da

parte de educadoras que integram órgãos de gestão, uma preocupação grande em

sistematizar conhecimentos que lhes permitam estar a par dos docentes de outros ciclos,

eventualmente com maior experiência e saber nestas áreas.

A acepção de saber prático quotidianamente construído aqui referido dirige-se, para

além da maior ou menor fundamentação de que as práticas pedagógicas se vão

sustentando nos cursos de formação, à reflexividade produzida sobre a experiência

diária, podendo assim traduzir-se por novas aprendizagens. Sendo a docência “uma

actividade prática, racionalmente sustentada e orientada para a consecução de fins

morais” (Alonso, 1998:144), caberá aos currículos de formação – quer inicial como

contínua – reduzir a distância entre a teoria e a prática, promovendo a conscientização e

a reflexividade dos professores sobre essas práticas.

No dia-a-dia as educadoras de infância experienciam diversas situações quer com as

suas crianças quer com os pais das mesmas e/ou outros elementos das comunidades,

quer ainda com outros membros do seu contexto de trabalho, situações essas que podem

ser potenciadoras de aprendizagem profissional se forem sujeitas a uma reflexão crítica

partilhada quer com os pares, quer com as Ciências da Educação e com as Ciências da

Especialidade. Passar da repetição mecânica dessas situações ao questionamento das

mesmas e à sua reinvenção, traduzir-se-á pela passagem do irreflectido ao racional, do

hábito ao conhecimento prático, possibilitador quer da mudança e da inovação (Alonso,

1998), quer da identificação do acto educativo com o acto profissional.

Um saber integrado

Quando os professores falam sobre o que fazem, estão a pensar na própria acção (Holly

e Walley, 1989:294), o que pode introduzir novas condições na construção do saber

profissional. A forma crítica como essas reflexões se realizam, a flexibilidade e

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imaginação aí utilizadas, serão um passo para a aceitação da articulação das práticas

com a teoria. Shulman (1991:394) defende que para se ser educador é preciso não só ter

algumas skills, mas também fazer constantes reflexões sobre o seu trabalho, entendendo

que o saber profissional passa por um processo de auto-construção, a que se acrescenta,

partilhado.

Katz (1985) realça a necessidade de construção de um saber de especialista nas

educadoras de infância, de forma que esse conjunto de princípios generalizáveis seja

considerado no decurso das práticas profissionais. Estes conhecimentos e princípios são

planeados no sentido de racionalizar as técnicas da profissão e, como tal, são orientados

para determinados fins práticos e sociais úteis. O cerne para a utilização adequada

desses saberes é o diagnóstico sobre as situações, entendido este como um processo

cognitivo de análise de acontecimentos e de identificação de vias alternativas de acção,

com antecipação das consequências, a longo prazo, das acções e decisões tomadas no

momento. Será esse um tipo de saber que parte também da reflexão e da experiência

construída nos processos de socialização profissional. É assim que, para Sarmento:

“O saber profissional dos professores participa do conhecimento articulado e

sistemático fornecido pela aquisição, num processo escolar cada vez mais

prolongado e especializado, de saberes teórico-práticos no domínio das ciências da

educação. Mas, simultaneamente, também participa do conjunto de dispositivos

tácitos e inarticulados obtidos de um longo processo de socialização profissional.”

(1994:3).

Este tipo de saber será entendido numa perspectiva interpretativa como uma das

condições para a afirmação da profissão como um todo e que, ao mesmo tempo, garante

a diferenciação dos professores consoante o nível de ensino em que trabalham.

Se a longa socialização nos contextos profissionais é uma das componentes formativas

mais valorizada, os professores, tendo passado a maior parte do seu tempo de vida na

escola – primeiro como alunos e, de imediato, como docentes, serão, à partida, os

profissionais mais socializados na sua acção. No entanto, ao longo dos anos, a sua

posição pessoal dentro dessa estrutura vai-se alterando, passando de aluno a formando e

depois a formador, com o que isso significa de complexificação nas interacções e na

reformulação de perspectivas sobre essa estrutura formal, o que irá repercutir-se na

realização do seu trabalho.

O conhecimento integrado é, assim, uma das condições para criar novas perspectivas e

tornar-se mais relevante para os professores (Saracho e Spodek, 1992:51), na medida

em que os prepara para os seus múltiplos papéis a activar na sociedade.

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Em termos de síntese, podemos dizer que a acção das educadoras é integradora e

direccionada para práticas globais, sujeita a esquemas não padronizados e com uma

organização nem sempre muito visível, em que o pensamento pessoal de cada

profissional surge como uma marca distintiva. A formação das educadoras de infância,

nas perspectivas apontadas ao longo do texto, tem que atender aos tipos de saber

específicos da profissão, incorporando o conhecimento que atempadamente se vai

produzindo; a acção docente se desenvolve-se em contextos culturais, com uma

localização espacio-temporal, pelo que a participação de cada profissional no seu

processo formativo tem que se concretizar como um princípio e uma prática efectiva.

Na relação quotidiana que se estabelece entre as estruturas de atendimento à infância e

as comunidades, poderá granjear-se outra visibilidade sobre os profissionais. A

manifestação de que cada criança é entendida como cidadã de pleno direito, de que a

acção educativa tem em vista cada indivíduo, e de que a acção educativa pode constituir

um projecto comunitário, poderão ser contributos para uma nova visibilidade

profissional.

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