tembé tenetehara de santa maria do pará: … amazonicos/rosani_fernandes.pdffrancisca, a capitoa...

36
Revista Estudos Amazônicos • vol. XIII, nº 1 (2015), pp. 214-249 Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará: Retomando os fios da história 1 Rosani de F. Fernandes 2 Resumo: O artigo problematiza a ação dos Freis Capuchinhos Lombardos e do Estado brasileiro junto aos Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará via políticas de aldeamento, catequese e civilização no período que compreende o final do século XIX e início do século XX, o que não ocorreu sem a resistência indígena frente às estratégias de silenciamento no Núcleo Colonial Santo Antônio do Prata, em Igarapé-Açú, no Pará. Discute-se o processo de reafirmação e fortalecimento étnico-identitário e os esforços empreendidos pelas comunidades Jeju e Areal, que se intensificaram a partir de 2003 com a criação da Associação Indígena Tembé de Santa Maria do Pará (AITESAMPA), importante articuladora social, política e cultural nos empreendimentos de retomada do território tradicional, invadido pelos não indígenas. Considera-se as narrativas das lideranças Tembé equivalentes aos documentos escritos do/no período e a referência bibliográfica sobre o tema, quando denunciam novas formas de violação de direitos, como a não demarcação da terra, o não acesso às políticas específicas de saúde e educação e o preconceito institucional que configuram novas formas de silenciamento étnico. Palavras-chave: Tembé Tenetehara; Resistências; Catequese; Civilização. Abstract: The article discusses the action of the Capuchins Lombards Friars and the Brazilian State alongside the Tembé Tenetehara of Santa

Upload: dodien

Post on 16-Nov-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Revista Estudos Amazocircnicos bull vol XIII nordm 1 (2015) pp 214-249

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute Retomando os fios da histoacuteria1

Rosani de F Fernandes2

Resumo O artigo problematiza a accedilatildeo dos Freis Capuchinhos Lombardos e

do Estado brasileiro junto aos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do

Paraacute via poliacuteticas de aldeamento catequese e civilizaccedilatildeo no periacuteodo

que compreende o final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX o

que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena frente agraves estrateacutegias de

silenciamento no Nuacutecleo Colonial Santo Antocircnio do Prata em

Igarapeacute-Accediluacute no Paraacute Discute-se o processo de reafirmaccedilatildeo e

fortalecimento eacutetnico-identitaacuterio e os esforccedilos empreendidos pelas

comunidades Jeju e Areal que se intensificaram a partir de 2003

com a criaccedilatildeo da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do

Paraacute (AITESAMPA) importante articuladora social poliacutetica e

cultural nos empreendimentos de retomada do territoacuterio

tradicional invadido pelos natildeo indiacutegenas Considera-se as

narrativas das lideranccedilas Tembeacute equivalentes aos documentos

escritos dono periacuteodo e a referecircncia bibliograacutefica sobre o tema

quando denunciam novas formas de violaccedilatildeo de direitos como a

natildeo demarcaccedilatildeo da terra o natildeo acesso agraves poliacuteticas especiacuteficas de

sauacutede e educaccedilatildeo e o preconceito institucional que configuram

novas formas de silenciamento eacutetnico

Palavras-chave Tembeacute Tenetehara Resistecircncias Catequese Civilizaccedilatildeo

Abstract The article discusses the action of the Capuchins Lombards Friars

and the Brazilian State alongside the Tembeacute Tenetehara of Santa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 215

Maria do Paraacute via settlement policies catechesis and civilization in

the period from the late XIX century and early XX century which

did not occurred without the indigenous resistance against the

silencing strategies in the Colonial Center Santo Antonio do Prata

in Igarapeacute-Accedilu State of Paraacute It discusses the process of

reaffirmation ethnic identity strengthening and the efforts made

by the Jeju and Areal communities which intensified since 2003

with the creation of the Tembeacute Indigenous Association of Santa

Maria do Paraacute (AITESAMPA) important social political and

cultural articulation development in the resumption of the

traditional territory invaded by non-indigenous It is considered the

Tembeacute leaders narratives equivalent to the written documents of

the time and the bibliographic reference on the subject when

denouncing new forms of rights violations such as non-

demarcation of the land lack of access to specific health and

education policies and the institutional prejudice that sets new

forms of ethnic silencing

Keywords Tembeacute Tenetehara Resistance Evangelization Civilization

Para iniacutecio de conversa

Os Tembeacute Tenetehara que se autodeterminam ldquode Santa Maria do Paraacuterdquo

estatildeo localizados nas aldeias Jeju e Areal situadas nos limites do municiacutepio

de Santa Maria do Paraacute3 Conforme narram os proacuteprios Tembeacute o municiacutepio

avanccedilou sobre o territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional expulsando-os ou seja

a cidade chegou ateacute eles Distante cerca de 100 quilocircmetros de Beleacutem

capital do Estado o municiacutepio estaacute situado na regiatildeo do chamado

Nordeste paraense e eacute cortado pela rodovia BR 316 que concentra grande

fluxo de veiacuteculos e impacta diretamente a populaccedilatildeo do municiacutepio em

216 bull Revista Estudos Amazocircnicos

especial os indiacutegenas que viram a cidade avanccedilar sobre os lugares de

obtenccedilatildeo de alimento de plantio e sobre os locais considerados sagrados

como os cemiteacuterios que estatildeo hoje em aacutereas natildeo acessiacuteveis aos

protagonistas

Submetidos agraves poliacuteticas coloniais financiadas pelo Estado brasileiro e

pelos missionaacuterios catoacutelicos capuchinhos os Tembeacute passaram a conviver

desde a segunda metade do seacuteculo XIX com regionais religiosos e agentes

do Estado com os quais passaram a se relacionar e estabelecer formas de

negociaccedilatildeo quase sempre marcadas por tensotildees e conflitos que satildeo

caracteriacutesticos das relaccedilotildees de contato frente agraves dinacircmicas coloniais

empreendidas

No entanto as accedilotildees etnocidas do Estado natildeo significaram o

esquecimento e apagamento da identidade eacutetnica pois sempre que a

memoacuteria Tembeacute eacute acionada nas narrativas da histoacuteria pelos mais velhos

narradores por excelecircncia na tarefa de repassar os conhecimentos para as

novas geraccedilotildees pela oralidade vem agrave lume a reafirmaccedilatildeo do pertencimento

eacutetnico Tembeacute Tenetehara Em 1999 decididos a retomar parte do territoacuterio

tradicional onde vivem hoje bem como promover o fortalecimento da

identidade eacutetnica passaram a realizar reuniotildees com o objetivo de

concretizar parcerias poliacuteticas para reivindicar direitos Em janeiro de

2003 fundaram4 a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

(AITESAMPA)5

Com relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo escolar natildeo haacute escola especiacutefica nas aldeias

Jeju e Areal os indiacutegenas estudantes frequentam as mesmas escolas dos

natildeo indiacutegenas sendo sujeitos agraves diversas formas de preconceito e conflitos

em funccedilatildeo das tensotildees histoacutericas advindas sobretudo da reivindicaccedilatildeo da

terra

As narrativas de estudantes de pessoas da comunidade que trabalham

na escola de lideranccedilas e pais de estudantes informam as muitas situaccedilotildees

Revista Estudos Amazocircnicos bull 217

de preconceito e racismo a que os estudantes satildeo submetidos Os relatos

indicam que alguns professores comparam as pinturas corporais Tembeacute

Tenetehara agrave ldquocoisa da besta ferardquo conforme tambeacutem denuncia Dona Maria

Francisca a Capitoa da aldeia Jeju ldquo nessa aula agora satildeo discriminados

antes iam ateacute descalccedilo pra aula e natildeo tinha defeito a pintura tambeacutem

eles discriminam que eacute o sinal da besta fera que eles dizem porque os

meninos vatildeo pintadordquo6

A educaccedilatildeo escolar eacute uma das prioridades das comunidades No

periacuteodo de 14 a 16 de marccedilo de 2014 foi realizada no Centro Cultural da

aldeia Areal a ldquoVI Assembleia Geral da AITESAMPArdquo com o propoacutesito

de eleger a nova diretoria e debater o tema escolhido para a reuniatildeo

ldquoTerra Educaccedilatildeo e Sauacutederdquo Na ocasiatildeo o cacique Miguel Carvalho da

Silva falou sobre a importacircncia da retomada da terra para o posterior

acesso aos demais direitos como sauacutede e educaccedilatildeo As reuniotildees da

comunidade tambeacutem satildeo espaccedilos de retomada das narrativas histoacutericas

Tenetehara eacute quando Seu Miguel narrador por excelecircncia relembra e

repete as histoacuterias que ldquoaprendeu com sua matildeerdquo e assim contando as

histoacuterias coletivamente ldquopara natildeo esquecer quem satildeordquo fortalecem a

identidade eacutetnica e reivindicam direitos indiacutegenas As reuniotildees satildeo nesse

sentido momentos poliacuteticos importantes de avaliaccedilatildeo e planejamento e

foram intensificadas especialmente a partir de 1999 quando decididos

pela retomada de parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute passaram a

realizar encontros coletivos com o objetivo de concretizar parcerias

poliacuteticas para reivindicar o reconhecimento eacutetnico

Apesar das duas aldeias serem separadas geograficamente pelos limites

da sede do municiacutepio de Santa Maria do Paraacute os Tembeacute elaboram novas

formas de territorialidade a partir do pertencimento eacutetnico que os unifica

em torno de objetivos em comum mediados pela AITESAMPA

organizaccedilatildeo7 por meio da qual discutem e executam estrateacutegias coletivas

de enfrentamento diante da histoacuterica negaccedilatildeo de direitos pelo Estado

218 bull Revista Estudos Amazocircnicos

brasileiro conforme discute Edimar Antonio Fernandes (2013)8 na

dissertaccedilatildeo de mestrado elaborada junto aos Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

e que problematiza a importacircncia da associaccedilatildeo no fortalecimento da

identidade eacutetnica e no processo de retomada da terra A AITESAMPA

tem portanto importacircncia simboacutelica e ritual porque atua internamente

em torno de objetivos comuns ao mesmo tempo em que os representa

externamente

Estado amp Igreja produzindo ldquosilenciamentosrdquo eacutetnicos no

seacuteculo XIX

Os locais de ajuntamento de indiacutegenas denominados Nuacutecleos Coloniais

eram parte da poliacutetica de expansatildeo colonizadora que compreendia as

dimensotildees administrativas educacionais meacutedicas-sanitaacuterias religiosas e

territoriais No Paraacute a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial Indiacutegena Santo Antonio do

Maracanatilde posteriormente denominado Colocircnia Indiacutegena Santo Antonio do

Prata pelo entatildeo governador Paes de Carvalho era retratada como fruto

da altivez e visatildeo ampliada do poliacutetico conforme menciona Muniz9

Construiacutedo em solo Tembeacute Tenetehara sobre uma das aldeias onde estavam

localizados no entatildeo municiacutepio de ldquoIgarapeacute-Assuacuterdquo no ano de 1898 o

Nuacutecleo tinha como escopo colocar em praacutetica o vasto ldquoPrograma de

Colonizaccedilatildeordquo e levar ldquocivilizaccedilatildeordquo por meio da catequizaccedilatildeo aos Tembeacute

Tenetehara que ali se encontravam conforme indica a narrativa de Dona

Maria a Capitoa da Aldeia Jeju e de Seu Miguel cacique da aldeia Areal

quando referem que o local eacute parte do territoacuterio Tembeacute

Entregue agrave Ordem dos Freis Capuchinhos Lombardos da Missatildeo do Norte10

por um periacuteodo de 15 anos constando em contrato assinado pelo entatildeo

governador Paes de Carvalho os freis iniciaram o trabalho de catequizaccedilatildeo

de meninos e meninas indiacutegenas ldquosequestradosrdquo das famiacutelias para fins

educacionais e de cristianizaccedilatildeo tudo realizado com financiamento do

Revista Estudos Amazocircnicos bull 219

Estado para fins de execuccedilatildeo do projeto civilizatoacuterio de expansatildeo

territorial e utilizaccedilatildeo da matildeo de obra indiacutegena

O Estado brasileiro empreendeu o chamado processo civilizatoacuterio para

indiacutegenas tendo como pano de fundo as poliacuteticas de branqueamento

cultural no intuito de promover a mesticcedilagem entendida como caminho

ldquoidealrdquo para a conformaccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira Indiacutegenas e negros eram

nesse contexto considerados raccedilas ldquoprimitivasrdquo portanto ldquoinferioresrdquo

precisavam ser ldquocivilizadosrdquo na maioria dos casos via catequizaccedilatildeo para

entrar no grande curso da histoacuteria e contribuir com o que tinham de

melhor para o ideaacuterio de naccedilatildeo que se pretendia conformar Para tal as

diferenccedilas culturais e linguiacutesticas seriam suprimidas negros iacutendios e

brancos viveriam a eterna ldquodemocracia racialrdquo afinal pensava-se o Brasil

estava dando certo

Os nuacutecleos coloniais eram verdadeiros laboratoacuterios de execuccedilatildeo das

poliacuteticas de mesticcedilagem por meio do incentivo aos casamentos

intereacutetnicos entre indiacutegenas negros e brancos descendentes de europeus

que foram enviados agraves partes ldquomais remotas do paiacutesrdquo para desbravar

domesticar e civilizar as terras e as gentes11

A contribuiccedilatildeo dos imigrantes europeus baseava-se na formaccedilatildeo de um

povo ldquoforte e trabalhadorrdquo com vistas para o progresso do paiacutes natildeo havia

lugar para a suposta indolecircncia do indiacutegena nem para a maliacutecia atribuiacuteda

ao negro o que deveria prevalecer era a suposta predisposiccedilatildeo europeia

para o trabalho e o desenvolvimento Nasce o ldquomito fundadorrdquo do Brasil

com a participaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo das trecircs raccedilas que colocaria os iacutendios no

grande curso da historiografia oficial eis que eram considerados

ldquoprimitivosrdquo povos sem histoacuteria a infacircncia da humanidade

O ideal de mesticcedilagem marcou o projeto de naccedilatildeo brasileira em

construccedilatildeo e a educaccedilatildeo escolar para povos indiacutegenas era estrategicamente

importante para ldquocivilizarrdquo o ldquoselvagemrdquo

220 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Para tanto os curriacuteculos previam atividades diferenciadas para

meninos e meninas contando com aulas sobre noccedilotildees de higiene

atividades agriacutecolas corte e costura tendo os rituais ciacutevicos como base

didaacutetico-pedagoacutegica nas aldeias com o objetivo de formar ldquobons cidadatildeosrdquo

e preparar para o trabalho Por meio da ldquopedagogia da brandurardquo que tinha

como princiacutepio o natildeo uso da violecircncia fiacutesica o Programa de Civilizaccedilatildeo

tinha o intuito de limpar etnicamente as aacutereas ldquoinfestadasrdquo pelos

ldquoselvagensrdquo aglutinando-os em determinados locais onde teriam os

ensinamentos da feacute cristatilde e a aprendizagem das letras e ofiacutecios liberando

os territoacuterios tradicionais para ocupaccedilatildeo de natildeo indiacutegenas uma vez que a

accedilatildeo indigenista estava voltada para a posse e ocupaccedilatildeo das terras no

ldquoalargamento dos espaccedilos transitaacuteveis e apropriaacuteveisrdquo conforme explica

Carneiro da Cunha

a tocircnica foi no seacuteculo XIX a conquista do

espaccedilo Em aacutereas de iacutendios ditos entatildeo lsquobraviosrsquo

tentava-se controlaacute-los concentrando-os em

aldeamentos lsquodesinfetavam-sersquo assim os sertotildees

Nas aacutereas de ocupaccedilatildeo colonial antiga tentava-se ao

contraacuterio extinguir os aldeamentos liberando as

terras para os moradores Essas diferenccedilas regionais

nada mais eram portanto que duas etapas de um

mesmo processo de expropriaccedilatildeo12

O mito fundador que seria a base para a elaboraccedilatildeo da historiografia

oficial brasileira negou (e nega) o genociacutedio que exterminou centenas de

povos e o etnociacutedio que eacute o apagamento linguiacutestico e cultural via assimilaccedilatildeo

e integraccedilatildeo Submetidos agraves poliacuteticas colonizadoras13 de imposiccedilatildeo

religiosa cultural e linguiacutestica financiadas pelo Estado brasileiro e

colocadas em praacutetica pelos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos da

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 215

Maria do Paraacute via settlement policies catechesis and civilization in

the period from the late XIX century and early XX century which

did not occurred without the indigenous resistance against the

silencing strategies in the Colonial Center Santo Antonio do Prata

in Igarapeacute-Accedilu State of Paraacute It discusses the process of

reaffirmation ethnic identity strengthening and the efforts made

by the Jeju and Areal communities which intensified since 2003

with the creation of the Tembeacute Indigenous Association of Santa

Maria do Paraacute (AITESAMPA) important social political and

cultural articulation development in the resumption of the

traditional territory invaded by non-indigenous It is considered the

Tembeacute leaders narratives equivalent to the written documents of

the time and the bibliographic reference on the subject when

denouncing new forms of rights violations such as non-

demarcation of the land lack of access to specific health and

education policies and the institutional prejudice that sets new

forms of ethnic silencing

Keywords Tembeacute Tenetehara Resistance Evangelization Civilization

Para iniacutecio de conversa

Os Tembeacute Tenetehara que se autodeterminam ldquode Santa Maria do Paraacuterdquo

estatildeo localizados nas aldeias Jeju e Areal situadas nos limites do municiacutepio

de Santa Maria do Paraacute3 Conforme narram os proacuteprios Tembeacute o municiacutepio

avanccedilou sobre o territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional expulsando-os ou seja

a cidade chegou ateacute eles Distante cerca de 100 quilocircmetros de Beleacutem

capital do Estado o municiacutepio estaacute situado na regiatildeo do chamado

Nordeste paraense e eacute cortado pela rodovia BR 316 que concentra grande

fluxo de veiacuteculos e impacta diretamente a populaccedilatildeo do municiacutepio em

216 bull Revista Estudos Amazocircnicos

especial os indiacutegenas que viram a cidade avanccedilar sobre os lugares de

obtenccedilatildeo de alimento de plantio e sobre os locais considerados sagrados

como os cemiteacuterios que estatildeo hoje em aacutereas natildeo acessiacuteveis aos

protagonistas

Submetidos agraves poliacuteticas coloniais financiadas pelo Estado brasileiro e

pelos missionaacuterios catoacutelicos capuchinhos os Tembeacute passaram a conviver

desde a segunda metade do seacuteculo XIX com regionais religiosos e agentes

do Estado com os quais passaram a se relacionar e estabelecer formas de

negociaccedilatildeo quase sempre marcadas por tensotildees e conflitos que satildeo

caracteriacutesticos das relaccedilotildees de contato frente agraves dinacircmicas coloniais

empreendidas

No entanto as accedilotildees etnocidas do Estado natildeo significaram o

esquecimento e apagamento da identidade eacutetnica pois sempre que a

memoacuteria Tembeacute eacute acionada nas narrativas da histoacuteria pelos mais velhos

narradores por excelecircncia na tarefa de repassar os conhecimentos para as

novas geraccedilotildees pela oralidade vem agrave lume a reafirmaccedilatildeo do pertencimento

eacutetnico Tembeacute Tenetehara Em 1999 decididos a retomar parte do territoacuterio

tradicional onde vivem hoje bem como promover o fortalecimento da

identidade eacutetnica passaram a realizar reuniotildees com o objetivo de

concretizar parcerias poliacuteticas para reivindicar direitos Em janeiro de

2003 fundaram4 a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

(AITESAMPA)5

Com relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo escolar natildeo haacute escola especiacutefica nas aldeias

Jeju e Areal os indiacutegenas estudantes frequentam as mesmas escolas dos

natildeo indiacutegenas sendo sujeitos agraves diversas formas de preconceito e conflitos

em funccedilatildeo das tensotildees histoacutericas advindas sobretudo da reivindicaccedilatildeo da

terra

As narrativas de estudantes de pessoas da comunidade que trabalham

na escola de lideranccedilas e pais de estudantes informam as muitas situaccedilotildees

Revista Estudos Amazocircnicos bull 217

de preconceito e racismo a que os estudantes satildeo submetidos Os relatos

indicam que alguns professores comparam as pinturas corporais Tembeacute

Tenetehara agrave ldquocoisa da besta ferardquo conforme tambeacutem denuncia Dona Maria

Francisca a Capitoa da aldeia Jeju ldquo nessa aula agora satildeo discriminados

antes iam ateacute descalccedilo pra aula e natildeo tinha defeito a pintura tambeacutem

eles discriminam que eacute o sinal da besta fera que eles dizem porque os

meninos vatildeo pintadordquo6

A educaccedilatildeo escolar eacute uma das prioridades das comunidades No

periacuteodo de 14 a 16 de marccedilo de 2014 foi realizada no Centro Cultural da

aldeia Areal a ldquoVI Assembleia Geral da AITESAMPArdquo com o propoacutesito

de eleger a nova diretoria e debater o tema escolhido para a reuniatildeo

ldquoTerra Educaccedilatildeo e Sauacutederdquo Na ocasiatildeo o cacique Miguel Carvalho da

Silva falou sobre a importacircncia da retomada da terra para o posterior

acesso aos demais direitos como sauacutede e educaccedilatildeo As reuniotildees da

comunidade tambeacutem satildeo espaccedilos de retomada das narrativas histoacutericas

Tenetehara eacute quando Seu Miguel narrador por excelecircncia relembra e

repete as histoacuterias que ldquoaprendeu com sua matildeerdquo e assim contando as

histoacuterias coletivamente ldquopara natildeo esquecer quem satildeordquo fortalecem a

identidade eacutetnica e reivindicam direitos indiacutegenas As reuniotildees satildeo nesse

sentido momentos poliacuteticos importantes de avaliaccedilatildeo e planejamento e

foram intensificadas especialmente a partir de 1999 quando decididos

pela retomada de parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute passaram a

realizar encontros coletivos com o objetivo de concretizar parcerias

poliacuteticas para reivindicar o reconhecimento eacutetnico

Apesar das duas aldeias serem separadas geograficamente pelos limites

da sede do municiacutepio de Santa Maria do Paraacute os Tembeacute elaboram novas

formas de territorialidade a partir do pertencimento eacutetnico que os unifica

em torno de objetivos em comum mediados pela AITESAMPA

organizaccedilatildeo7 por meio da qual discutem e executam estrateacutegias coletivas

de enfrentamento diante da histoacuterica negaccedilatildeo de direitos pelo Estado

218 bull Revista Estudos Amazocircnicos

brasileiro conforme discute Edimar Antonio Fernandes (2013)8 na

dissertaccedilatildeo de mestrado elaborada junto aos Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

e que problematiza a importacircncia da associaccedilatildeo no fortalecimento da

identidade eacutetnica e no processo de retomada da terra A AITESAMPA

tem portanto importacircncia simboacutelica e ritual porque atua internamente

em torno de objetivos comuns ao mesmo tempo em que os representa

externamente

Estado amp Igreja produzindo ldquosilenciamentosrdquo eacutetnicos no

seacuteculo XIX

Os locais de ajuntamento de indiacutegenas denominados Nuacutecleos Coloniais

eram parte da poliacutetica de expansatildeo colonizadora que compreendia as

dimensotildees administrativas educacionais meacutedicas-sanitaacuterias religiosas e

territoriais No Paraacute a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial Indiacutegena Santo Antonio do

Maracanatilde posteriormente denominado Colocircnia Indiacutegena Santo Antonio do

Prata pelo entatildeo governador Paes de Carvalho era retratada como fruto

da altivez e visatildeo ampliada do poliacutetico conforme menciona Muniz9

Construiacutedo em solo Tembeacute Tenetehara sobre uma das aldeias onde estavam

localizados no entatildeo municiacutepio de ldquoIgarapeacute-Assuacuterdquo no ano de 1898 o

Nuacutecleo tinha como escopo colocar em praacutetica o vasto ldquoPrograma de

Colonizaccedilatildeordquo e levar ldquocivilizaccedilatildeordquo por meio da catequizaccedilatildeo aos Tembeacute

Tenetehara que ali se encontravam conforme indica a narrativa de Dona

Maria a Capitoa da Aldeia Jeju e de Seu Miguel cacique da aldeia Areal

quando referem que o local eacute parte do territoacuterio Tembeacute

Entregue agrave Ordem dos Freis Capuchinhos Lombardos da Missatildeo do Norte10

por um periacuteodo de 15 anos constando em contrato assinado pelo entatildeo

governador Paes de Carvalho os freis iniciaram o trabalho de catequizaccedilatildeo

de meninos e meninas indiacutegenas ldquosequestradosrdquo das famiacutelias para fins

educacionais e de cristianizaccedilatildeo tudo realizado com financiamento do

Revista Estudos Amazocircnicos bull 219

Estado para fins de execuccedilatildeo do projeto civilizatoacuterio de expansatildeo

territorial e utilizaccedilatildeo da matildeo de obra indiacutegena

O Estado brasileiro empreendeu o chamado processo civilizatoacuterio para

indiacutegenas tendo como pano de fundo as poliacuteticas de branqueamento

cultural no intuito de promover a mesticcedilagem entendida como caminho

ldquoidealrdquo para a conformaccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira Indiacutegenas e negros eram

nesse contexto considerados raccedilas ldquoprimitivasrdquo portanto ldquoinferioresrdquo

precisavam ser ldquocivilizadosrdquo na maioria dos casos via catequizaccedilatildeo para

entrar no grande curso da histoacuteria e contribuir com o que tinham de

melhor para o ideaacuterio de naccedilatildeo que se pretendia conformar Para tal as

diferenccedilas culturais e linguiacutesticas seriam suprimidas negros iacutendios e

brancos viveriam a eterna ldquodemocracia racialrdquo afinal pensava-se o Brasil

estava dando certo

Os nuacutecleos coloniais eram verdadeiros laboratoacuterios de execuccedilatildeo das

poliacuteticas de mesticcedilagem por meio do incentivo aos casamentos

intereacutetnicos entre indiacutegenas negros e brancos descendentes de europeus

que foram enviados agraves partes ldquomais remotas do paiacutesrdquo para desbravar

domesticar e civilizar as terras e as gentes11

A contribuiccedilatildeo dos imigrantes europeus baseava-se na formaccedilatildeo de um

povo ldquoforte e trabalhadorrdquo com vistas para o progresso do paiacutes natildeo havia

lugar para a suposta indolecircncia do indiacutegena nem para a maliacutecia atribuiacuteda

ao negro o que deveria prevalecer era a suposta predisposiccedilatildeo europeia

para o trabalho e o desenvolvimento Nasce o ldquomito fundadorrdquo do Brasil

com a participaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo das trecircs raccedilas que colocaria os iacutendios no

grande curso da historiografia oficial eis que eram considerados

ldquoprimitivosrdquo povos sem histoacuteria a infacircncia da humanidade

O ideal de mesticcedilagem marcou o projeto de naccedilatildeo brasileira em

construccedilatildeo e a educaccedilatildeo escolar para povos indiacutegenas era estrategicamente

importante para ldquocivilizarrdquo o ldquoselvagemrdquo

220 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Para tanto os curriacuteculos previam atividades diferenciadas para

meninos e meninas contando com aulas sobre noccedilotildees de higiene

atividades agriacutecolas corte e costura tendo os rituais ciacutevicos como base

didaacutetico-pedagoacutegica nas aldeias com o objetivo de formar ldquobons cidadatildeosrdquo

e preparar para o trabalho Por meio da ldquopedagogia da brandurardquo que tinha

como princiacutepio o natildeo uso da violecircncia fiacutesica o Programa de Civilizaccedilatildeo

tinha o intuito de limpar etnicamente as aacutereas ldquoinfestadasrdquo pelos

ldquoselvagensrdquo aglutinando-os em determinados locais onde teriam os

ensinamentos da feacute cristatilde e a aprendizagem das letras e ofiacutecios liberando

os territoacuterios tradicionais para ocupaccedilatildeo de natildeo indiacutegenas uma vez que a

accedilatildeo indigenista estava voltada para a posse e ocupaccedilatildeo das terras no

ldquoalargamento dos espaccedilos transitaacuteveis e apropriaacuteveisrdquo conforme explica

Carneiro da Cunha

a tocircnica foi no seacuteculo XIX a conquista do

espaccedilo Em aacutereas de iacutendios ditos entatildeo lsquobraviosrsquo

tentava-se controlaacute-los concentrando-os em

aldeamentos lsquodesinfetavam-sersquo assim os sertotildees

Nas aacutereas de ocupaccedilatildeo colonial antiga tentava-se ao

contraacuterio extinguir os aldeamentos liberando as

terras para os moradores Essas diferenccedilas regionais

nada mais eram portanto que duas etapas de um

mesmo processo de expropriaccedilatildeo12

O mito fundador que seria a base para a elaboraccedilatildeo da historiografia

oficial brasileira negou (e nega) o genociacutedio que exterminou centenas de

povos e o etnociacutedio que eacute o apagamento linguiacutestico e cultural via assimilaccedilatildeo

e integraccedilatildeo Submetidos agraves poliacuteticas colonizadoras13 de imposiccedilatildeo

religiosa cultural e linguiacutestica financiadas pelo Estado brasileiro e

colocadas em praacutetica pelos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos da

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

216 bull Revista Estudos Amazocircnicos

especial os indiacutegenas que viram a cidade avanccedilar sobre os lugares de

obtenccedilatildeo de alimento de plantio e sobre os locais considerados sagrados

como os cemiteacuterios que estatildeo hoje em aacutereas natildeo acessiacuteveis aos

protagonistas

Submetidos agraves poliacuteticas coloniais financiadas pelo Estado brasileiro e

pelos missionaacuterios catoacutelicos capuchinhos os Tembeacute passaram a conviver

desde a segunda metade do seacuteculo XIX com regionais religiosos e agentes

do Estado com os quais passaram a se relacionar e estabelecer formas de

negociaccedilatildeo quase sempre marcadas por tensotildees e conflitos que satildeo

caracteriacutesticos das relaccedilotildees de contato frente agraves dinacircmicas coloniais

empreendidas

No entanto as accedilotildees etnocidas do Estado natildeo significaram o

esquecimento e apagamento da identidade eacutetnica pois sempre que a

memoacuteria Tembeacute eacute acionada nas narrativas da histoacuteria pelos mais velhos

narradores por excelecircncia na tarefa de repassar os conhecimentos para as

novas geraccedilotildees pela oralidade vem agrave lume a reafirmaccedilatildeo do pertencimento

eacutetnico Tembeacute Tenetehara Em 1999 decididos a retomar parte do territoacuterio

tradicional onde vivem hoje bem como promover o fortalecimento da

identidade eacutetnica passaram a realizar reuniotildees com o objetivo de

concretizar parcerias poliacuteticas para reivindicar direitos Em janeiro de

2003 fundaram4 a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

(AITESAMPA)5

Com relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo escolar natildeo haacute escola especiacutefica nas aldeias

Jeju e Areal os indiacutegenas estudantes frequentam as mesmas escolas dos

natildeo indiacutegenas sendo sujeitos agraves diversas formas de preconceito e conflitos

em funccedilatildeo das tensotildees histoacutericas advindas sobretudo da reivindicaccedilatildeo da

terra

As narrativas de estudantes de pessoas da comunidade que trabalham

na escola de lideranccedilas e pais de estudantes informam as muitas situaccedilotildees

Revista Estudos Amazocircnicos bull 217

de preconceito e racismo a que os estudantes satildeo submetidos Os relatos

indicam que alguns professores comparam as pinturas corporais Tembeacute

Tenetehara agrave ldquocoisa da besta ferardquo conforme tambeacutem denuncia Dona Maria

Francisca a Capitoa da aldeia Jeju ldquo nessa aula agora satildeo discriminados

antes iam ateacute descalccedilo pra aula e natildeo tinha defeito a pintura tambeacutem

eles discriminam que eacute o sinal da besta fera que eles dizem porque os

meninos vatildeo pintadordquo6

A educaccedilatildeo escolar eacute uma das prioridades das comunidades No

periacuteodo de 14 a 16 de marccedilo de 2014 foi realizada no Centro Cultural da

aldeia Areal a ldquoVI Assembleia Geral da AITESAMPArdquo com o propoacutesito

de eleger a nova diretoria e debater o tema escolhido para a reuniatildeo

ldquoTerra Educaccedilatildeo e Sauacutederdquo Na ocasiatildeo o cacique Miguel Carvalho da

Silva falou sobre a importacircncia da retomada da terra para o posterior

acesso aos demais direitos como sauacutede e educaccedilatildeo As reuniotildees da

comunidade tambeacutem satildeo espaccedilos de retomada das narrativas histoacutericas

Tenetehara eacute quando Seu Miguel narrador por excelecircncia relembra e

repete as histoacuterias que ldquoaprendeu com sua matildeerdquo e assim contando as

histoacuterias coletivamente ldquopara natildeo esquecer quem satildeordquo fortalecem a

identidade eacutetnica e reivindicam direitos indiacutegenas As reuniotildees satildeo nesse

sentido momentos poliacuteticos importantes de avaliaccedilatildeo e planejamento e

foram intensificadas especialmente a partir de 1999 quando decididos

pela retomada de parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute passaram a

realizar encontros coletivos com o objetivo de concretizar parcerias

poliacuteticas para reivindicar o reconhecimento eacutetnico

Apesar das duas aldeias serem separadas geograficamente pelos limites

da sede do municiacutepio de Santa Maria do Paraacute os Tembeacute elaboram novas

formas de territorialidade a partir do pertencimento eacutetnico que os unifica

em torno de objetivos em comum mediados pela AITESAMPA

organizaccedilatildeo7 por meio da qual discutem e executam estrateacutegias coletivas

de enfrentamento diante da histoacuterica negaccedilatildeo de direitos pelo Estado

218 bull Revista Estudos Amazocircnicos

brasileiro conforme discute Edimar Antonio Fernandes (2013)8 na

dissertaccedilatildeo de mestrado elaborada junto aos Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

e que problematiza a importacircncia da associaccedilatildeo no fortalecimento da

identidade eacutetnica e no processo de retomada da terra A AITESAMPA

tem portanto importacircncia simboacutelica e ritual porque atua internamente

em torno de objetivos comuns ao mesmo tempo em que os representa

externamente

Estado amp Igreja produzindo ldquosilenciamentosrdquo eacutetnicos no

seacuteculo XIX

Os locais de ajuntamento de indiacutegenas denominados Nuacutecleos Coloniais

eram parte da poliacutetica de expansatildeo colonizadora que compreendia as

dimensotildees administrativas educacionais meacutedicas-sanitaacuterias religiosas e

territoriais No Paraacute a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial Indiacutegena Santo Antonio do

Maracanatilde posteriormente denominado Colocircnia Indiacutegena Santo Antonio do

Prata pelo entatildeo governador Paes de Carvalho era retratada como fruto

da altivez e visatildeo ampliada do poliacutetico conforme menciona Muniz9

Construiacutedo em solo Tembeacute Tenetehara sobre uma das aldeias onde estavam

localizados no entatildeo municiacutepio de ldquoIgarapeacute-Assuacuterdquo no ano de 1898 o

Nuacutecleo tinha como escopo colocar em praacutetica o vasto ldquoPrograma de

Colonizaccedilatildeordquo e levar ldquocivilizaccedilatildeordquo por meio da catequizaccedilatildeo aos Tembeacute

Tenetehara que ali se encontravam conforme indica a narrativa de Dona

Maria a Capitoa da Aldeia Jeju e de Seu Miguel cacique da aldeia Areal

quando referem que o local eacute parte do territoacuterio Tembeacute

Entregue agrave Ordem dos Freis Capuchinhos Lombardos da Missatildeo do Norte10

por um periacuteodo de 15 anos constando em contrato assinado pelo entatildeo

governador Paes de Carvalho os freis iniciaram o trabalho de catequizaccedilatildeo

de meninos e meninas indiacutegenas ldquosequestradosrdquo das famiacutelias para fins

educacionais e de cristianizaccedilatildeo tudo realizado com financiamento do

Revista Estudos Amazocircnicos bull 219

Estado para fins de execuccedilatildeo do projeto civilizatoacuterio de expansatildeo

territorial e utilizaccedilatildeo da matildeo de obra indiacutegena

O Estado brasileiro empreendeu o chamado processo civilizatoacuterio para

indiacutegenas tendo como pano de fundo as poliacuteticas de branqueamento

cultural no intuito de promover a mesticcedilagem entendida como caminho

ldquoidealrdquo para a conformaccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira Indiacutegenas e negros eram

nesse contexto considerados raccedilas ldquoprimitivasrdquo portanto ldquoinferioresrdquo

precisavam ser ldquocivilizadosrdquo na maioria dos casos via catequizaccedilatildeo para

entrar no grande curso da histoacuteria e contribuir com o que tinham de

melhor para o ideaacuterio de naccedilatildeo que se pretendia conformar Para tal as

diferenccedilas culturais e linguiacutesticas seriam suprimidas negros iacutendios e

brancos viveriam a eterna ldquodemocracia racialrdquo afinal pensava-se o Brasil

estava dando certo

Os nuacutecleos coloniais eram verdadeiros laboratoacuterios de execuccedilatildeo das

poliacuteticas de mesticcedilagem por meio do incentivo aos casamentos

intereacutetnicos entre indiacutegenas negros e brancos descendentes de europeus

que foram enviados agraves partes ldquomais remotas do paiacutesrdquo para desbravar

domesticar e civilizar as terras e as gentes11

A contribuiccedilatildeo dos imigrantes europeus baseava-se na formaccedilatildeo de um

povo ldquoforte e trabalhadorrdquo com vistas para o progresso do paiacutes natildeo havia

lugar para a suposta indolecircncia do indiacutegena nem para a maliacutecia atribuiacuteda

ao negro o que deveria prevalecer era a suposta predisposiccedilatildeo europeia

para o trabalho e o desenvolvimento Nasce o ldquomito fundadorrdquo do Brasil

com a participaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo das trecircs raccedilas que colocaria os iacutendios no

grande curso da historiografia oficial eis que eram considerados

ldquoprimitivosrdquo povos sem histoacuteria a infacircncia da humanidade

O ideal de mesticcedilagem marcou o projeto de naccedilatildeo brasileira em

construccedilatildeo e a educaccedilatildeo escolar para povos indiacutegenas era estrategicamente

importante para ldquocivilizarrdquo o ldquoselvagemrdquo

220 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Para tanto os curriacuteculos previam atividades diferenciadas para

meninos e meninas contando com aulas sobre noccedilotildees de higiene

atividades agriacutecolas corte e costura tendo os rituais ciacutevicos como base

didaacutetico-pedagoacutegica nas aldeias com o objetivo de formar ldquobons cidadatildeosrdquo

e preparar para o trabalho Por meio da ldquopedagogia da brandurardquo que tinha

como princiacutepio o natildeo uso da violecircncia fiacutesica o Programa de Civilizaccedilatildeo

tinha o intuito de limpar etnicamente as aacutereas ldquoinfestadasrdquo pelos

ldquoselvagensrdquo aglutinando-os em determinados locais onde teriam os

ensinamentos da feacute cristatilde e a aprendizagem das letras e ofiacutecios liberando

os territoacuterios tradicionais para ocupaccedilatildeo de natildeo indiacutegenas uma vez que a

accedilatildeo indigenista estava voltada para a posse e ocupaccedilatildeo das terras no

ldquoalargamento dos espaccedilos transitaacuteveis e apropriaacuteveisrdquo conforme explica

Carneiro da Cunha

a tocircnica foi no seacuteculo XIX a conquista do

espaccedilo Em aacutereas de iacutendios ditos entatildeo lsquobraviosrsquo

tentava-se controlaacute-los concentrando-os em

aldeamentos lsquodesinfetavam-sersquo assim os sertotildees

Nas aacutereas de ocupaccedilatildeo colonial antiga tentava-se ao

contraacuterio extinguir os aldeamentos liberando as

terras para os moradores Essas diferenccedilas regionais

nada mais eram portanto que duas etapas de um

mesmo processo de expropriaccedilatildeo12

O mito fundador que seria a base para a elaboraccedilatildeo da historiografia

oficial brasileira negou (e nega) o genociacutedio que exterminou centenas de

povos e o etnociacutedio que eacute o apagamento linguiacutestico e cultural via assimilaccedilatildeo

e integraccedilatildeo Submetidos agraves poliacuteticas colonizadoras13 de imposiccedilatildeo

religiosa cultural e linguiacutestica financiadas pelo Estado brasileiro e

colocadas em praacutetica pelos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos da

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 217

de preconceito e racismo a que os estudantes satildeo submetidos Os relatos

indicam que alguns professores comparam as pinturas corporais Tembeacute

Tenetehara agrave ldquocoisa da besta ferardquo conforme tambeacutem denuncia Dona Maria

Francisca a Capitoa da aldeia Jeju ldquo nessa aula agora satildeo discriminados

antes iam ateacute descalccedilo pra aula e natildeo tinha defeito a pintura tambeacutem

eles discriminam que eacute o sinal da besta fera que eles dizem porque os

meninos vatildeo pintadordquo6

A educaccedilatildeo escolar eacute uma das prioridades das comunidades No

periacuteodo de 14 a 16 de marccedilo de 2014 foi realizada no Centro Cultural da

aldeia Areal a ldquoVI Assembleia Geral da AITESAMPArdquo com o propoacutesito

de eleger a nova diretoria e debater o tema escolhido para a reuniatildeo

ldquoTerra Educaccedilatildeo e Sauacutederdquo Na ocasiatildeo o cacique Miguel Carvalho da

Silva falou sobre a importacircncia da retomada da terra para o posterior

acesso aos demais direitos como sauacutede e educaccedilatildeo As reuniotildees da

comunidade tambeacutem satildeo espaccedilos de retomada das narrativas histoacutericas

Tenetehara eacute quando Seu Miguel narrador por excelecircncia relembra e

repete as histoacuterias que ldquoaprendeu com sua matildeerdquo e assim contando as

histoacuterias coletivamente ldquopara natildeo esquecer quem satildeordquo fortalecem a

identidade eacutetnica e reivindicam direitos indiacutegenas As reuniotildees satildeo nesse

sentido momentos poliacuteticos importantes de avaliaccedilatildeo e planejamento e

foram intensificadas especialmente a partir de 1999 quando decididos

pela retomada de parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute passaram a

realizar encontros coletivos com o objetivo de concretizar parcerias

poliacuteticas para reivindicar o reconhecimento eacutetnico

Apesar das duas aldeias serem separadas geograficamente pelos limites

da sede do municiacutepio de Santa Maria do Paraacute os Tembeacute elaboram novas

formas de territorialidade a partir do pertencimento eacutetnico que os unifica

em torno de objetivos em comum mediados pela AITESAMPA

organizaccedilatildeo7 por meio da qual discutem e executam estrateacutegias coletivas

de enfrentamento diante da histoacuterica negaccedilatildeo de direitos pelo Estado

218 bull Revista Estudos Amazocircnicos

brasileiro conforme discute Edimar Antonio Fernandes (2013)8 na

dissertaccedilatildeo de mestrado elaborada junto aos Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

e que problematiza a importacircncia da associaccedilatildeo no fortalecimento da

identidade eacutetnica e no processo de retomada da terra A AITESAMPA

tem portanto importacircncia simboacutelica e ritual porque atua internamente

em torno de objetivos comuns ao mesmo tempo em que os representa

externamente

Estado amp Igreja produzindo ldquosilenciamentosrdquo eacutetnicos no

seacuteculo XIX

Os locais de ajuntamento de indiacutegenas denominados Nuacutecleos Coloniais

eram parte da poliacutetica de expansatildeo colonizadora que compreendia as

dimensotildees administrativas educacionais meacutedicas-sanitaacuterias religiosas e

territoriais No Paraacute a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial Indiacutegena Santo Antonio do

Maracanatilde posteriormente denominado Colocircnia Indiacutegena Santo Antonio do

Prata pelo entatildeo governador Paes de Carvalho era retratada como fruto

da altivez e visatildeo ampliada do poliacutetico conforme menciona Muniz9

Construiacutedo em solo Tembeacute Tenetehara sobre uma das aldeias onde estavam

localizados no entatildeo municiacutepio de ldquoIgarapeacute-Assuacuterdquo no ano de 1898 o

Nuacutecleo tinha como escopo colocar em praacutetica o vasto ldquoPrograma de

Colonizaccedilatildeordquo e levar ldquocivilizaccedilatildeordquo por meio da catequizaccedilatildeo aos Tembeacute

Tenetehara que ali se encontravam conforme indica a narrativa de Dona

Maria a Capitoa da Aldeia Jeju e de Seu Miguel cacique da aldeia Areal

quando referem que o local eacute parte do territoacuterio Tembeacute

Entregue agrave Ordem dos Freis Capuchinhos Lombardos da Missatildeo do Norte10

por um periacuteodo de 15 anos constando em contrato assinado pelo entatildeo

governador Paes de Carvalho os freis iniciaram o trabalho de catequizaccedilatildeo

de meninos e meninas indiacutegenas ldquosequestradosrdquo das famiacutelias para fins

educacionais e de cristianizaccedilatildeo tudo realizado com financiamento do

Revista Estudos Amazocircnicos bull 219

Estado para fins de execuccedilatildeo do projeto civilizatoacuterio de expansatildeo

territorial e utilizaccedilatildeo da matildeo de obra indiacutegena

O Estado brasileiro empreendeu o chamado processo civilizatoacuterio para

indiacutegenas tendo como pano de fundo as poliacuteticas de branqueamento

cultural no intuito de promover a mesticcedilagem entendida como caminho

ldquoidealrdquo para a conformaccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira Indiacutegenas e negros eram

nesse contexto considerados raccedilas ldquoprimitivasrdquo portanto ldquoinferioresrdquo

precisavam ser ldquocivilizadosrdquo na maioria dos casos via catequizaccedilatildeo para

entrar no grande curso da histoacuteria e contribuir com o que tinham de

melhor para o ideaacuterio de naccedilatildeo que se pretendia conformar Para tal as

diferenccedilas culturais e linguiacutesticas seriam suprimidas negros iacutendios e

brancos viveriam a eterna ldquodemocracia racialrdquo afinal pensava-se o Brasil

estava dando certo

Os nuacutecleos coloniais eram verdadeiros laboratoacuterios de execuccedilatildeo das

poliacuteticas de mesticcedilagem por meio do incentivo aos casamentos

intereacutetnicos entre indiacutegenas negros e brancos descendentes de europeus

que foram enviados agraves partes ldquomais remotas do paiacutesrdquo para desbravar

domesticar e civilizar as terras e as gentes11

A contribuiccedilatildeo dos imigrantes europeus baseava-se na formaccedilatildeo de um

povo ldquoforte e trabalhadorrdquo com vistas para o progresso do paiacutes natildeo havia

lugar para a suposta indolecircncia do indiacutegena nem para a maliacutecia atribuiacuteda

ao negro o que deveria prevalecer era a suposta predisposiccedilatildeo europeia

para o trabalho e o desenvolvimento Nasce o ldquomito fundadorrdquo do Brasil

com a participaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo das trecircs raccedilas que colocaria os iacutendios no

grande curso da historiografia oficial eis que eram considerados

ldquoprimitivosrdquo povos sem histoacuteria a infacircncia da humanidade

O ideal de mesticcedilagem marcou o projeto de naccedilatildeo brasileira em

construccedilatildeo e a educaccedilatildeo escolar para povos indiacutegenas era estrategicamente

importante para ldquocivilizarrdquo o ldquoselvagemrdquo

220 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Para tanto os curriacuteculos previam atividades diferenciadas para

meninos e meninas contando com aulas sobre noccedilotildees de higiene

atividades agriacutecolas corte e costura tendo os rituais ciacutevicos como base

didaacutetico-pedagoacutegica nas aldeias com o objetivo de formar ldquobons cidadatildeosrdquo

e preparar para o trabalho Por meio da ldquopedagogia da brandurardquo que tinha

como princiacutepio o natildeo uso da violecircncia fiacutesica o Programa de Civilizaccedilatildeo

tinha o intuito de limpar etnicamente as aacutereas ldquoinfestadasrdquo pelos

ldquoselvagensrdquo aglutinando-os em determinados locais onde teriam os

ensinamentos da feacute cristatilde e a aprendizagem das letras e ofiacutecios liberando

os territoacuterios tradicionais para ocupaccedilatildeo de natildeo indiacutegenas uma vez que a

accedilatildeo indigenista estava voltada para a posse e ocupaccedilatildeo das terras no

ldquoalargamento dos espaccedilos transitaacuteveis e apropriaacuteveisrdquo conforme explica

Carneiro da Cunha

a tocircnica foi no seacuteculo XIX a conquista do

espaccedilo Em aacutereas de iacutendios ditos entatildeo lsquobraviosrsquo

tentava-se controlaacute-los concentrando-os em

aldeamentos lsquodesinfetavam-sersquo assim os sertotildees

Nas aacutereas de ocupaccedilatildeo colonial antiga tentava-se ao

contraacuterio extinguir os aldeamentos liberando as

terras para os moradores Essas diferenccedilas regionais

nada mais eram portanto que duas etapas de um

mesmo processo de expropriaccedilatildeo12

O mito fundador que seria a base para a elaboraccedilatildeo da historiografia

oficial brasileira negou (e nega) o genociacutedio que exterminou centenas de

povos e o etnociacutedio que eacute o apagamento linguiacutestico e cultural via assimilaccedilatildeo

e integraccedilatildeo Submetidos agraves poliacuteticas colonizadoras13 de imposiccedilatildeo

religiosa cultural e linguiacutestica financiadas pelo Estado brasileiro e

colocadas em praacutetica pelos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos da

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

218 bull Revista Estudos Amazocircnicos

brasileiro conforme discute Edimar Antonio Fernandes (2013)8 na

dissertaccedilatildeo de mestrado elaborada junto aos Tembeacute de Santa Maria do Paraacute

e que problematiza a importacircncia da associaccedilatildeo no fortalecimento da

identidade eacutetnica e no processo de retomada da terra A AITESAMPA

tem portanto importacircncia simboacutelica e ritual porque atua internamente

em torno de objetivos comuns ao mesmo tempo em que os representa

externamente

Estado amp Igreja produzindo ldquosilenciamentosrdquo eacutetnicos no

seacuteculo XIX

Os locais de ajuntamento de indiacutegenas denominados Nuacutecleos Coloniais

eram parte da poliacutetica de expansatildeo colonizadora que compreendia as

dimensotildees administrativas educacionais meacutedicas-sanitaacuterias religiosas e

territoriais No Paraacute a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial Indiacutegena Santo Antonio do

Maracanatilde posteriormente denominado Colocircnia Indiacutegena Santo Antonio do

Prata pelo entatildeo governador Paes de Carvalho era retratada como fruto

da altivez e visatildeo ampliada do poliacutetico conforme menciona Muniz9

Construiacutedo em solo Tembeacute Tenetehara sobre uma das aldeias onde estavam

localizados no entatildeo municiacutepio de ldquoIgarapeacute-Assuacuterdquo no ano de 1898 o

Nuacutecleo tinha como escopo colocar em praacutetica o vasto ldquoPrograma de

Colonizaccedilatildeordquo e levar ldquocivilizaccedilatildeordquo por meio da catequizaccedilatildeo aos Tembeacute

Tenetehara que ali se encontravam conforme indica a narrativa de Dona

Maria a Capitoa da Aldeia Jeju e de Seu Miguel cacique da aldeia Areal

quando referem que o local eacute parte do territoacuterio Tembeacute

Entregue agrave Ordem dos Freis Capuchinhos Lombardos da Missatildeo do Norte10

por um periacuteodo de 15 anos constando em contrato assinado pelo entatildeo

governador Paes de Carvalho os freis iniciaram o trabalho de catequizaccedilatildeo

de meninos e meninas indiacutegenas ldquosequestradosrdquo das famiacutelias para fins

educacionais e de cristianizaccedilatildeo tudo realizado com financiamento do

Revista Estudos Amazocircnicos bull 219

Estado para fins de execuccedilatildeo do projeto civilizatoacuterio de expansatildeo

territorial e utilizaccedilatildeo da matildeo de obra indiacutegena

O Estado brasileiro empreendeu o chamado processo civilizatoacuterio para

indiacutegenas tendo como pano de fundo as poliacuteticas de branqueamento

cultural no intuito de promover a mesticcedilagem entendida como caminho

ldquoidealrdquo para a conformaccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira Indiacutegenas e negros eram

nesse contexto considerados raccedilas ldquoprimitivasrdquo portanto ldquoinferioresrdquo

precisavam ser ldquocivilizadosrdquo na maioria dos casos via catequizaccedilatildeo para

entrar no grande curso da histoacuteria e contribuir com o que tinham de

melhor para o ideaacuterio de naccedilatildeo que se pretendia conformar Para tal as

diferenccedilas culturais e linguiacutesticas seriam suprimidas negros iacutendios e

brancos viveriam a eterna ldquodemocracia racialrdquo afinal pensava-se o Brasil

estava dando certo

Os nuacutecleos coloniais eram verdadeiros laboratoacuterios de execuccedilatildeo das

poliacuteticas de mesticcedilagem por meio do incentivo aos casamentos

intereacutetnicos entre indiacutegenas negros e brancos descendentes de europeus

que foram enviados agraves partes ldquomais remotas do paiacutesrdquo para desbravar

domesticar e civilizar as terras e as gentes11

A contribuiccedilatildeo dos imigrantes europeus baseava-se na formaccedilatildeo de um

povo ldquoforte e trabalhadorrdquo com vistas para o progresso do paiacutes natildeo havia

lugar para a suposta indolecircncia do indiacutegena nem para a maliacutecia atribuiacuteda

ao negro o que deveria prevalecer era a suposta predisposiccedilatildeo europeia

para o trabalho e o desenvolvimento Nasce o ldquomito fundadorrdquo do Brasil

com a participaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo das trecircs raccedilas que colocaria os iacutendios no

grande curso da historiografia oficial eis que eram considerados

ldquoprimitivosrdquo povos sem histoacuteria a infacircncia da humanidade

O ideal de mesticcedilagem marcou o projeto de naccedilatildeo brasileira em

construccedilatildeo e a educaccedilatildeo escolar para povos indiacutegenas era estrategicamente

importante para ldquocivilizarrdquo o ldquoselvagemrdquo

220 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Para tanto os curriacuteculos previam atividades diferenciadas para

meninos e meninas contando com aulas sobre noccedilotildees de higiene

atividades agriacutecolas corte e costura tendo os rituais ciacutevicos como base

didaacutetico-pedagoacutegica nas aldeias com o objetivo de formar ldquobons cidadatildeosrdquo

e preparar para o trabalho Por meio da ldquopedagogia da brandurardquo que tinha

como princiacutepio o natildeo uso da violecircncia fiacutesica o Programa de Civilizaccedilatildeo

tinha o intuito de limpar etnicamente as aacutereas ldquoinfestadasrdquo pelos

ldquoselvagensrdquo aglutinando-os em determinados locais onde teriam os

ensinamentos da feacute cristatilde e a aprendizagem das letras e ofiacutecios liberando

os territoacuterios tradicionais para ocupaccedilatildeo de natildeo indiacutegenas uma vez que a

accedilatildeo indigenista estava voltada para a posse e ocupaccedilatildeo das terras no

ldquoalargamento dos espaccedilos transitaacuteveis e apropriaacuteveisrdquo conforme explica

Carneiro da Cunha

a tocircnica foi no seacuteculo XIX a conquista do

espaccedilo Em aacutereas de iacutendios ditos entatildeo lsquobraviosrsquo

tentava-se controlaacute-los concentrando-os em

aldeamentos lsquodesinfetavam-sersquo assim os sertotildees

Nas aacutereas de ocupaccedilatildeo colonial antiga tentava-se ao

contraacuterio extinguir os aldeamentos liberando as

terras para os moradores Essas diferenccedilas regionais

nada mais eram portanto que duas etapas de um

mesmo processo de expropriaccedilatildeo12

O mito fundador que seria a base para a elaboraccedilatildeo da historiografia

oficial brasileira negou (e nega) o genociacutedio que exterminou centenas de

povos e o etnociacutedio que eacute o apagamento linguiacutestico e cultural via assimilaccedilatildeo

e integraccedilatildeo Submetidos agraves poliacuteticas colonizadoras13 de imposiccedilatildeo

religiosa cultural e linguiacutestica financiadas pelo Estado brasileiro e

colocadas em praacutetica pelos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos da

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 219

Estado para fins de execuccedilatildeo do projeto civilizatoacuterio de expansatildeo

territorial e utilizaccedilatildeo da matildeo de obra indiacutegena

O Estado brasileiro empreendeu o chamado processo civilizatoacuterio para

indiacutegenas tendo como pano de fundo as poliacuteticas de branqueamento

cultural no intuito de promover a mesticcedilagem entendida como caminho

ldquoidealrdquo para a conformaccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira Indiacutegenas e negros eram

nesse contexto considerados raccedilas ldquoprimitivasrdquo portanto ldquoinferioresrdquo

precisavam ser ldquocivilizadosrdquo na maioria dos casos via catequizaccedilatildeo para

entrar no grande curso da histoacuteria e contribuir com o que tinham de

melhor para o ideaacuterio de naccedilatildeo que se pretendia conformar Para tal as

diferenccedilas culturais e linguiacutesticas seriam suprimidas negros iacutendios e

brancos viveriam a eterna ldquodemocracia racialrdquo afinal pensava-se o Brasil

estava dando certo

Os nuacutecleos coloniais eram verdadeiros laboratoacuterios de execuccedilatildeo das

poliacuteticas de mesticcedilagem por meio do incentivo aos casamentos

intereacutetnicos entre indiacutegenas negros e brancos descendentes de europeus

que foram enviados agraves partes ldquomais remotas do paiacutesrdquo para desbravar

domesticar e civilizar as terras e as gentes11

A contribuiccedilatildeo dos imigrantes europeus baseava-se na formaccedilatildeo de um

povo ldquoforte e trabalhadorrdquo com vistas para o progresso do paiacutes natildeo havia

lugar para a suposta indolecircncia do indiacutegena nem para a maliacutecia atribuiacuteda

ao negro o que deveria prevalecer era a suposta predisposiccedilatildeo europeia

para o trabalho e o desenvolvimento Nasce o ldquomito fundadorrdquo do Brasil

com a participaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo das trecircs raccedilas que colocaria os iacutendios no

grande curso da historiografia oficial eis que eram considerados

ldquoprimitivosrdquo povos sem histoacuteria a infacircncia da humanidade

O ideal de mesticcedilagem marcou o projeto de naccedilatildeo brasileira em

construccedilatildeo e a educaccedilatildeo escolar para povos indiacutegenas era estrategicamente

importante para ldquocivilizarrdquo o ldquoselvagemrdquo

220 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Para tanto os curriacuteculos previam atividades diferenciadas para

meninos e meninas contando com aulas sobre noccedilotildees de higiene

atividades agriacutecolas corte e costura tendo os rituais ciacutevicos como base

didaacutetico-pedagoacutegica nas aldeias com o objetivo de formar ldquobons cidadatildeosrdquo

e preparar para o trabalho Por meio da ldquopedagogia da brandurardquo que tinha

como princiacutepio o natildeo uso da violecircncia fiacutesica o Programa de Civilizaccedilatildeo

tinha o intuito de limpar etnicamente as aacutereas ldquoinfestadasrdquo pelos

ldquoselvagensrdquo aglutinando-os em determinados locais onde teriam os

ensinamentos da feacute cristatilde e a aprendizagem das letras e ofiacutecios liberando

os territoacuterios tradicionais para ocupaccedilatildeo de natildeo indiacutegenas uma vez que a

accedilatildeo indigenista estava voltada para a posse e ocupaccedilatildeo das terras no

ldquoalargamento dos espaccedilos transitaacuteveis e apropriaacuteveisrdquo conforme explica

Carneiro da Cunha

a tocircnica foi no seacuteculo XIX a conquista do

espaccedilo Em aacutereas de iacutendios ditos entatildeo lsquobraviosrsquo

tentava-se controlaacute-los concentrando-os em

aldeamentos lsquodesinfetavam-sersquo assim os sertotildees

Nas aacutereas de ocupaccedilatildeo colonial antiga tentava-se ao

contraacuterio extinguir os aldeamentos liberando as

terras para os moradores Essas diferenccedilas regionais

nada mais eram portanto que duas etapas de um

mesmo processo de expropriaccedilatildeo12

O mito fundador que seria a base para a elaboraccedilatildeo da historiografia

oficial brasileira negou (e nega) o genociacutedio que exterminou centenas de

povos e o etnociacutedio que eacute o apagamento linguiacutestico e cultural via assimilaccedilatildeo

e integraccedilatildeo Submetidos agraves poliacuteticas colonizadoras13 de imposiccedilatildeo

religiosa cultural e linguiacutestica financiadas pelo Estado brasileiro e

colocadas em praacutetica pelos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos da

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

220 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Para tanto os curriacuteculos previam atividades diferenciadas para

meninos e meninas contando com aulas sobre noccedilotildees de higiene

atividades agriacutecolas corte e costura tendo os rituais ciacutevicos como base

didaacutetico-pedagoacutegica nas aldeias com o objetivo de formar ldquobons cidadatildeosrdquo

e preparar para o trabalho Por meio da ldquopedagogia da brandurardquo que tinha

como princiacutepio o natildeo uso da violecircncia fiacutesica o Programa de Civilizaccedilatildeo

tinha o intuito de limpar etnicamente as aacutereas ldquoinfestadasrdquo pelos

ldquoselvagensrdquo aglutinando-os em determinados locais onde teriam os

ensinamentos da feacute cristatilde e a aprendizagem das letras e ofiacutecios liberando

os territoacuterios tradicionais para ocupaccedilatildeo de natildeo indiacutegenas uma vez que a

accedilatildeo indigenista estava voltada para a posse e ocupaccedilatildeo das terras no

ldquoalargamento dos espaccedilos transitaacuteveis e apropriaacuteveisrdquo conforme explica

Carneiro da Cunha

a tocircnica foi no seacuteculo XIX a conquista do

espaccedilo Em aacutereas de iacutendios ditos entatildeo lsquobraviosrsquo

tentava-se controlaacute-los concentrando-os em

aldeamentos lsquodesinfetavam-sersquo assim os sertotildees

Nas aacutereas de ocupaccedilatildeo colonial antiga tentava-se ao

contraacuterio extinguir os aldeamentos liberando as

terras para os moradores Essas diferenccedilas regionais

nada mais eram portanto que duas etapas de um

mesmo processo de expropriaccedilatildeo12

O mito fundador que seria a base para a elaboraccedilatildeo da historiografia

oficial brasileira negou (e nega) o genociacutedio que exterminou centenas de

povos e o etnociacutedio que eacute o apagamento linguiacutestico e cultural via assimilaccedilatildeo

e integraccedilatildeo Submetidos agraves poliacuteticas colonizadoras13 de imposiccedilatildeo

religiosa cultural e linguiacutestica financiadas pelo Estado brasileiro e

colocadas em praacutetica pelos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos da

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 221

Missatildeo do Norte os Tembeacute tiveram seus filhos ldquosequestradosrdquo pelos

religiosos para serem catequizados e ldquocivilizadosrdquo O lugar que serviu

como nuacutecleo colonial ateacute meados da deacutecada de 20 do seacuteculo passado

serviu tambeacutem como colocircnia correcional e depois em meados de 1924

abrigou a primeira colocircnia de leprosos no paiacutes reafirmando seu papel de

espaccedilo planejado para exercer a vigilacircncia e o controle dos corpos14

Nesse sentido a discussatildeo em tela estaacute centrada na anaacutelise da

documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo na revisatildeo bibliograacutefica

acerca do modelo de escola indiacutegena implantado na Colocircnia Indiacutegena Santo

Antonio do Prata no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX nas

narrativas Tembeacute que satildeo consideradas equivalentes aos demais

referenciais e possibilitam (1) problematizar a escola das missotildees para

indiacutegenas como espaccedilos de confinamento disciplina submissatildeo violecircncia

e devastaccedilatildeo da etnicidade destes povos (2) analisar a pedagogia

capuchinha e seus desdobramentos na histoacuteria do povo Tembeacute

considerando o protagonismo e a agecircncia dos Tembeacute Tenetehara

Conforme alude Seu Miguel os Tenetehara sempre foram ldquoum povo

modernordquo os contatos estabelecidos eram tambeacutem ensejados por estes pois

ldquo a catequese representava a possibilidade de produccedilatildeo econocircmica de

participaccedilatildeo na economia de mercado de comunicaccedilatildeo com outros povos

sem que isso significasse o abandono dos costumes e praacuteticas

tradicionaisrdquo conforme discute Marta Amoroso15

Mas ao constatar que as expectativas e accedilotildees dos religiosos eram

outras os indiacutegenas evadiam-se dos nuacutecleos coloniais retornando para as

antigas aldeias Para Amoroso16 o projeto de catequese faliu pelas

sucessivas evasotildees indiacutegenas Maacutercio Couto Henrique17 discute como os

povos indiacutegenas natildeo abriram matildeo dos espaccedilos de autonomia e como estes

atribuiacuteam significados diversos aos aldeamentos contrariando em muitos

casos o objetivo das missotildees e os missionaacuterios na Amazocircnia no seacuteculo

XIX mostrando que vaacuterios grupos mantinham posiccedilatildeo contraacuteria aos

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

222 bull Revista Estudos Amazocircnicos

religiosos como as resistecircncias incluiacuteam a rejeiccedilatildeo dos brindes e em

alguns casos resultava em ataques aos missionaacuterios Paula Montero18

mostra como as interaccedilotildees e mediaccedilotildees entre missionaacuterios e indiacutegenas satildeo

possiacuteveis e como ambos se apropriam das diferentes formas de

representaccedilatildeo em jogo na cena colonial

A historiografia produzida ateacute meados da deacutecada de noventa do seacuteculo

XX negou a possibilidade de protagonismo indiacutegena nos contatos

estabelecidos com os natildeo indiacutegenas os agentes de Estado e com os

religiosos desconsiderando-os como sujeitos da histoacuteria e de luta por

direitos Mas eacute preciso ressaltar que muitos dos contatos realizados foram

por decisatildeo dos povos que buscavam entre outras possibilidades de

proteccedilatildeo dos territoacuterios acesso agrave escolarizaccedilatildeo e condiccedilotildees de

sobrevivecircncia frente agraves novas condiccedilotildees territoriais e poliacuteticas

Nos mais de cem anos que se seguiram poacutes instalaccedilatildeo dos institutos de

educaccedilatildeo para meninos e meninas no Prata as histoacuterias Tembeacute

continuaram a ser contadas pelos mais velhos repassadas de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo informando o protagonismo Tenetehara que conforme afirma Seu

Miguel foram sempre ldquomodernosrdquo19

A identidade Tembeacute Tenetehara apesar de supostamente apagada

assimilada e silenciada foi mantida viva nas narrativas dos mais velhos

avoacutes bisavoacutes tios que informavam as lutas e os enfrentamentos da saga

eacute resignificada e se configura na atualidade como importante instrumento

de fortalecimento da identidade Tembeacute Foi assim que Dona Maria Seu

Miguel e tantos outros ouviram contar e hoje prosseguem narrando a luta

e a resistecircncia Tembeacute

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 223

Memoacuterias e narrativas Tembeacute Tenetehara como forma de

resistecircncia saindo da invisibilidade

Dona Maria Francisca da Silva Capitoa da Aldeia Jeju rememorando

as histoacuterias que ouviu de sua matildee tias e tios narra que quando os

leprosos20 foram levados ao Prata pelo governo do Estado alegava-se que

natildeo havia mais ningueacutem - leia-se indiacutegenas ndash no lugar A instalaccedilatildeo do

ldquoServiccedilo de Prophylaxia da Leprardquo no Paraacute ocorreu no ano de 1921 e

demandava pela instalaccedilatildeo de um leprosaacuterio oficial As buscas por local

ldquoadequadordquo findaram quando o meacutedico Souza Arauacutejo teve o primeiro

contato com as instalaccedilotildees do Prata21

Assim como os Capuchinhos no final do seacuteculo XIX Souza Arauacutejo

levou em consideraccedilatildeo a proximidade e a faacutecil comunicaccedilatildeo com a capital

aleacutem da existecircncia de grande aacuterea para cultivos o que favoreceria a

instalaccedilatildeo do que viria a ser a primeira ldquocolocircnia agriacutecola de leprososrdquo do

Brasil Sobre a presenccedila Tembeacute Tenetehara no lugar Souza Arauacutejo (1924) se

limita a dizer que o Prata havia sido destinado ldquoagrave catequese dos selvagensrdquo

Apoacutes a instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis o silenciamento sobre a presenccedila

Tembeacute Tenetehara se estendeu por mais de um seacuteculo nos documentos

oficiais A anaacutelise dos registros do periacuteodo do Lazaroacutepolis que constam

nos arquivos da Unidade de Sauacutede que estaacute sob a administraccedilatildeo da

Secretaria de Estado de Sauacutede Puacuteblica (SESPA) na hoje Vila Santo

Antonio do Prata22 confirma a invisibilizaccedilatildeo natildeo haacute referecircncia a

indiacutegenas no local Segundo informa Dona Maria nenhum Tembeacute foi

contaminado pela doenccedila ldquograccedilas a Deus natildeo pintou em ningueacutemrdquo o que

pode ser considerada uma das hipoacuteteses para explicar a ausecircncia dos

mesmos nos registros

O mais provaacutevel eacute a invisibilizaccedilatildeo dos indiacutegenas na identificaccedilatildeo

ldquoracialrdquo constante nas fichas de internaccedilatildeo haacute registros de ldquomesticcedilosrdquo ou

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

224 bull Revista Estudos Amazocircnicos

ldquopardosrdquo reafirmando a vocaccedilatildeo de integraccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo que eram

parte dos objetivos da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial satildeo categorias

empregadas com o propoacutesito de absorvecirc-los entre os regionais e de

ldquoapagarrdquo a identidade eacutetnica A tese se justifica pelo cruzamento do dado

ldquoracialrdquo com os lugares de origem dos internos23

Somente por volta da deacutecada de 70 do seacuteculo XX eacute que lentamente

houve a retomada do crescimento demograacutefico Depois de quase meio

seacuteculo de gradativa recuperaccedilatildeo demograacutefica os Tenetehara Tembeacute e

Guajajara estatildeo hoje entre os povos indiacutegenas com maior populaccedilatildeo no

Brasil Conforme informaccedilotildees do Censo Demograacutefico de 2010 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) somam 24428

pessoas das quais 4473 vivem fora das terras indiacutegenas No Paraacute satildeo

cinco as terras indiacutegenas Tembeacute Tenetehara24

ldquoAli era aldeiardquo25 catequese e civilizaccedilatildeo no Prata

Os Tembeacute Tenetehara26 pertencem ao tronco linguiacutestico Tupi-Guarani e

conforme o linguista Boudin (1966) a autodenominaccedilatildeo Tenetehara

significa ldquogenterdquo ldquoiacutendio verdadeirordquo enquanto Timbeacute que eacute sua variante

provavelmente foi uma designaccedilatildeo dada pelos regionais e significa ldquonariz

chatordquo A obra de Boudin apresenta o estudo das liacutenguas indiacutegenas faladas

naquela regiatildeo Urubu Tembeacute- Teacutenecircteacutehar [grafia do autor] e Timbira sendo

os dois primeiros do tronco Tupi e o uacuteltimo do Tronco Jecirc Sobre a

localizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Boudin27 escreveu

[o]s iacutendios tembeacute-teacutenecircteacutehar vivem nas margens

do alto e meacutedio rio Gurupi desde o lugar

denominado Cururu ateacute o Marajupema logo

abaixo do Posto Indiacutegena Pedro Dantas mantido

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 225

pelo Serviccedilo de Proteccedilatildeo aos Iacutendios agrave fronteira dos

Estados do Paraacute e do Maranhatildeo Ouros grupos da

mesma tribo acham-se localizados no rio Pindareacute

(Maranhatildeo) e alguns remanescentes no rio Mearim

e na regiatildeo de Oureacutem (Paraacute)28

Os Tenetehara migraram da regiatildeo do Pindareacute em direccedilatildeo aos rios Guamaacute

Gurupi e Capim Por volta de 1850 as aldeias Tenetehara se estendiam de

Barra do Corda no rio Mearim no hoje Estado do Maranhatildeo ateacute os rios

Gurupi Capim e Guamaacute na regiatildeo nordeste do Estado do Paraacute Por volta

da deacutecada de 60 do seacuteculo XX a populaccedilatildeo Tenetehara do Guamaacute e Capim

estava estimada entre 350 e 450 pessoas 29

A poliacutetica civilizatoacuteria no seacuteculo XIX tinha como objetivo promover a

agremiaccedilatildeo dos indiacutegenas espalhados pelo paiacutes No Paraacute os registros

oficiais mencionam a preocupaccedilatildeo com os grupos indiacutegenas localizados

na regiatildeo do rio Mearim dentre estes os ldquoTembecircsrdquo que somavam cerca de

duas mil pessoas agrave eacutepoca A recomendaccedilatildeo era que fossem ldquoacolhidos e

aldeadosrdquo por representarem ameaccedila aos fazendeiros que comeccedilavam a se

instalar naquele territoacuterio o que viria a ser concretizado nas deacutecadas

posteriores No mesmo periacuteodo os relatoacuterios do Impeacuterio indicam que

cerca de 60 iacutendios da ldquotribu ndash Tembeacute ndash do Gurupyrdquo manifestaram o desejo

de serem aldeados30

Portanto os Tembeacute satildeo protagonistas do contato e qualquer forma de

vitimizaccedilatildeo natildeo eacute adequada nem aceitaacutevel pois os mesmos se posicionam

definindo os rumos da proacutepria histoacuteria como sujeitos que satildeo

No entanto os objetivos do governo do Estado (agrave eacutepoca chamado de

Proviacutencia do Paraacute) estatildeo expliacutecitos nos relatoacuterios do periacuteodo garantir a

proteccedilatildeo da populaccedilatildeo circunvizinha que ocupava as aacutereas ldquoinfestadas por

selvagensrdquo A catequese era o meio de garantir que a ocupaccedilatildeo dos natildeo

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

226 bull Revista Estudos Amazocircnicos

indiacutegenas soacute seria possiacutevel ldquolivrandordquo os territoacuterios daqueles que eram

considerados obstaacuteculos inimigos traiccediloeiros

[a] seu turno poreacutem o homem civilizado que pelas

circunstacircncias da vida foi abeirar-se agraves

circunvizinhanccedilas das florestas vive em constante

sobressalto receoso do traiccediloeiro inimigo e natildeo

cessa de persegui-lo frustrando destrsquoarte a

possibilidade e esforccedilos empregados para atrair a

civilizaccedilatildeo as tribos nocircmades que vagam esparsas

pelo interior do paiacutes31

No Paraacute em meados de 1881 o serviccedilo de catequese indiacutegena estava

organizado em onze Diretorias sob a superintendecircncia de uma Diretoria

Geral que tinha como Diretor responsaacutevel o Baratildeo de Marajoacute Em 1884

havia dez aldeamentos indiacutegenas organizados no Estado sendo Mirity

Pitanga Xinguacute Pacajaacute Santa Cruz Cury Mixituba Bacabal Gurupy

Acaraacute Miry e Maracanan cuja populaccedilatildeo somava cerca de 4260 pessoas32

O aldeamento do ldquoMaracananrdquo conforme o Relatoacuterio de Governo de

1884 era dividido em duas aldeias e contava com aproximadamente 102

Tembeacute em processo de escolarizaccedilatildeo

[a] primeira fica nas cabeceiras do rio Maracanan agrave

margem esquerda e a segunda mais para o centro

agrave margem direita Dedicam-se agrave lavoura plantam

feijatildeo tabaco milho e mandioca A escola eacute apenas

frequentada por 12 alunos jaacute havendo quatro que

sabem ler e escrever As terras satildeo fertiliacutessimas natildeo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 227

obstante por falta de vias de comunicaccedilatildeo nenhum

progresso tem tido o aldeamento33

No ano de 1885 o serviccedilo de catequese no Paraacute estava completamente

desorganizado e em fase de decadecircncia por falta de missionaacuterios A

urgecircncia pela organizaccedilatildeo dos trabalhos era em parte pelo temor das

represaacutelias dos indiacutegenas considerados vingativos e violentos pelos natildeo

indiacutegenas ldquo vendo em cada homem civilizado um inimigo encarniccedilado

de quem soacute espera ocasiatildeo para tirar vinganccedilardquo34

A desorganizaccedilatildeo era atribuiacuteda agrave saiacuteda do missionaacuterio capuchinho

Seraphim Trieste do aldeamento do Bacabal o que teve como

consequecircncia a ldquodispersatildeo dos indiacutegenasrdquo que se deslocaram para o local

chamado de ldquoIgapoacute-Assuacuterdquo35 Primeacuterio (1940)36 explica que em marccedilo de

1865 o Pe Fr Ludovico de Mazzarino movido pelo interesse de trabalhar

com indiacutegenas chegou a Beleacutem do Paraacute depois de ter trabalhado trecircs anos

no Rio de Janeiro Versado em ciecircncias eclesiaacutesticas conhecedor de

muacutesica do Latim e do Francecircs foi incumbido pelo governo no ano de

1866 a visitar os iacutendios ldquoTembecircsrdquo do rio Capim localizados nas aldeias

Santa Leopoldina Jurupariquara e Maracanatilde

Em 1870 o Pe Fr Cacircndido de Heremence que era suiacuteccedilo foi enviado

para as margens do rio Capim para catequizar os Tembeacute Tenetehara visitados

pelo Pe Fr Luduvico Em 24 de abril de 1872 Pe Fr Cacircndido de

Heremence fundou a missatildeo de Satildeo Fidelis e ldquoarrebanhou 400 pessoasrdquo37

Em virtude das acusaccedilotildees acerca dos conflitos dos missionaacuterios

capuchinhos com os condutores dos regatotildees que realizavam negoacutecios

com os indiacutegenas os trabalhos foram suspensos mas natildeo haacute indicaccedilatildeo do

ano em que isso ocorreu Segundo Primeacuterio (1940) os trabalhos com os

Tembeacute do rio Capim foram retomados somente em 1898

Sobre a catequizaccedilatildeo dos Tembeacute Tenetehara Primeacuterio destaca

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

228 bull Revista Estudos Amazocircnicos

[t]inham resolvido em 1898 catequizar os iacutendios dos

rios Capim e Guanaacute [Guamaacute] no Paraacute mas

encontrando Tembeacutes jaacute constituiacutedos em famiacutelias

nas nascentes do rio Maracanatilde resolveram

colonizar aquele siacutetio pertencente a Santareacutem Novo

Foi lavrado contrato com o governo e assumiu a

direccedilatildeo do Nuacutecleo Colonial o P Fr Carlos de S

Martinho tendo como auxiliares o irmatildeo Fr Paulo

de Trescorre e o Terceiro Pedro de Paulo Ergueu-

se a Cruz nessas matas a 14 de setembro de 1898

iniacutecio da colonizaccedilatildeo38

Sobre as dificuldades e o ecircxito dos missionaacuterios capuchinhos entre os

Tembeacute Tenetehara Primeacuterio aludindo ao caraacuteter ldquoheroacuteicordquo dos religiosos

fazem referecircncia agraves doenccedilas contraiacutedas a escassez de recursos para o

desenvolvimento dos trabalhos e questotildees entre os ldquocolonizadoresrdquo E

acrescenta ldquo eles em tudo souberam enfrentar confiados em Nosso

Senhor e assim puderam com seus esforccedilos ingentes fazer sair daquelas

brenhas o atual Instituto Santo Antocircnio do Prata obra altamente e vaacuterias

vezes elogiada pelo governordquo39

O ldquoRelatoacuterio de Terras e Colonizaccedilatildeordquo do Estado do Paraacute datado de

1899 apresentado ao entatildeo governador Joseacute Paes de Carvalho trata

especificamente da ldquoColocircnia Santo Antocircnio do Maracanatilderdquo

[a] colocircnia de Santo Antocircnio de Maracanatilde acha-se a

cargo dos missionaacuterios Capuchinhos Lombardos

por contrato assignado por Frei Reinaldo de Paula

Superior da Missatildeo em 9 de Setembro de 1898 e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 229

instalada em 29 do mesmo mecircs e ano ficando como

Diretor Frei Carlos de Satildeo Martinho40

Com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo do Nuacutecleo o mesmo documento refere o

expressivo nuacutemero de Tembeacute que estavam localizados em trecircs aldeias

denominadas ldquomalocasrdquo das quais a de Santo Antocircnio do Maracanatilde era

a principal

[a] populaccedilatildeo deste nuacutecleo consta de quinhentas

pessoas mais ou menos divididas em trecircs aldeias e

trecircs malocas sendo a principal a de Santo Antocircnio

do Maracanatilde a 31 quilocircmetros da linha da Estrada

de Ferro de Braganccedila Sendo 22 quilocircmetros de

mata virgem41

O documento segue com a descriccedilatildeo da estrutura do Nuacutecleo

[e]sta colocircnia jaacute tem prontas cinquenta casas unidas

duas a duas tendo as suas ruas e travessas doze

metros de largura Tem mais uma casa para a

Diretoria outra para escolas oficinas de carapinas e

ferreiro uma maacutequina de pilar arroz enfermaria

armazeacutens currais dois prados aleacutem de grande

extensatildeo de terra cultivada42

A estrutura do nuacutecleo contava com uma parte central onde estavam

localizadas as moradias e o centro administrativo do aldeamento baseado

no tripeacute escola ndash igreja ndash oficinas que constituiacuteam a base da accedilatildeo capuchinha

ou seja a instruccedilatildeo elementar a catequese e as atividades manuais e

agriacutecolas para meninos e meninas em espaccedilos marcadamente separados e

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

230 bull Revista Estudos Amazocircnicos

organizados como parte do rigoroso controle dos religiosos sobre a

populaccedilatildeo local especialmente no que refere aos indiacutegenas

A populaccedilatildeo Tembeacute no Nuacutecleo em 1899 era de 107 pessoas sendo

descrita da seguinte maneira ldquo[s]ua populaccedilatildeo eacute de 25 famiacutelias indiacutegenas

assim discriminadas sessenta e oito adultos e trinta e nove menoresrdquo43 O

documento tambeacutem indica os fins da constituiccedilatildeo do Nuacutecleo Indiacutegena

Santo Antocircnio do Maracanatilde era ldquo destinado especialmente acatequese e

aldeamento de iacutendiosrdquo44

O fato dos Tembeacute serem a maioria da populaccedilatildeo do Nuacutecleo era razatildeo

do temor dos frades que natildeo mediam esforccedilos para divulgar as ldquoboas

obrasrdquo realizadas para atrair pessoas natildeo indiacutegenas para habitar o lugar As

aldeias onde atualmente estatildeo os Tembeacute Tenetehara satildeo mencionadas nos

Relatoacuterios de Governo ldquo satildeo a do Jejuacute e do Arraial ambas agrave margem da

estrada do fio telegraacutefico e a duas leacuteguas do Prata mais ou menosrdquo45

O que o documento refere como ldquoArraialrdquo eacute provavelmente a atual

aldeia do Areal onde se concentravam os Leopoldino famiacutelia do cacique

Miguel que ateacute os dias atuais reside no lugar Seu Miguel indica parte da

aacuterea de ocupaccedilatildeo Tembeacute Tenetehara no periacuteodo anterior agrave vinda dos

capuchinhos e a criaccedilatildeo do Nuacutecleo Segundo ele seus antepassados se

deslocavam ateacute o hoje municiacutepio de Satildeo Miguel do Guamaacute com seus

paneiros para buscar o material para fazer ceracircmica Dona Maria Francisca

tambeacutem faz referecircncia a presenccedila indiacutegena no lugar quando afirma que

ldquosoacute tinha iacutendiordquo vivendo ali e ldquoo Prata era aldeiardquo46

O expressivo nuacutemero de indiacutegenas e as demais aldeias Tembeacute tambeacutem

satildeo referenciados nos documentos

[o] Jejuacute pode contar com cento e cinquenta

moradores iacutendios e o Arraial com cem tambeacutem

iacutendios e haacute ainda em Santa Maria Anselmo e

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 231

Jambuacute formando ao todo umas seiscentas pessoas

as quais estatildeo sempre em comunicaccedilatildeo com Santo

Antocircnio do Maracanatilde47

Conforme consta da documentaccedilatildeo histoacuterica referente ao periacuteodo a

presenccedila Tembeacute era significativa somavam cerca de 600 pessoas

localizadas em seis aldeias que datildeo a dimensatildeo aproximada da aacuterea

ocupada pelos mesmos na ocasiatildeo da implantaccedilatildeo do Nuacutecleo pelo

governo do Estado O documento destaca a presenccedila indiacutegena em Santa

Maria e ainda nas aldeias Anselmo e Jambu ou seja numa vasta aacuterea que

compreende tambeacutem a sede do municiacutepio que eacute reivindicada hoje como

territoacuterio tradicional Tembeacute

O incentivo do governo agrave ocupaccedilatildeo natildeo indiacutegena no lugar eacute registrado

na documentaccedilatildeo histoacuterica e bibliograacutefica e principalmente nas narrativas

Tembeacute O aldeamento de Santo Antocircnio do Maracanatilde reunia imigrantes

vindos de diversos Estados do Brasil ldquo[d]e entatildeo para caacute tem aumentado

a populaccedilatildeo do nuacutecleo natildeo somente de indiacutegenas que vatildeo se chegando

aos aldeamentos e habituando-se aos trabalhos como tambeacutem de

imigrantes de outros Estados por ter sido autorizada a localizaccedilatildeo de

alguns drsquoestesrdquo48

A chegada dos natildeo indiacutegenas eacute narrada pelas lideranccedilas Tembeacute Dona

Maria e Seu Miguel tratam como marco na mudanccedila dos tempos para os

Tembeacute o que significou a invasatildeo e ocupaccedilatildeo das terras e o

enfraquecimento da liacutengua e da cultura pela imposiccedilatildeo de costumes

estranhos o que natildeo ocorreu sem a resistecircncia indiacutegena conforme explica

Seu Miguel

com o passar do tempo eles [os antepassados

Tembeacute] foram sendo apressionado pela sociedade

branca pelo governo da eacutepoca eu sei que

comeccedilou a abrir colocircnia os colonos trabalhavam

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

232 bull Revista Estudos Amazocircnicos

aqui nordestinos e aqui os nossos parentes foram

se afastando porque a minha matildee dizia que a voacute

dela e o pai tinha muito medo de caraiacuteba [branco]

na liacutengua Tembeacute noacutes chamamos de caraiacuteba ateacute que

quando chegava a pessoa que ela dizia quem eacute Eacute

caraiacuteba Ela amarrava todo quanto era de porta que

era feito de vara pensando ela que o caraiacuteba natildeo ia

cortar a vara o cipoacute pra porta abrir

Se por um lado a presenccedila natildeo indiacutegena era de certa forma temida

pelos Tembeacute como explica Seu Miguel por outro era enaltecida pelo

Estado que destacava o ldquocuidadordquo dos religiosos com os nativos O

trabalho ldquozelosordquo de Frei Carlos de Satildeo Martinho eacute ressaltado nos

documentos do governo bem como seus esforccedilos para alcanccedilar a ldquo

civilizaccedilatildeo de indiviacuteduos que ateacute pouco tempo estavam na vida selvagemrdquo

49

O trabalho dos missionaacuterios na escolarizaccedilatildeo das crianccedilas do Nuacutecleo

tambeacutem eacute citado nos relatoacuterios de governo que registram a matriacutecula de

47 meninos no ano de 1899 A sanidade do lugar eacute elogiada pelas

autoridades que referem o clima agradaacutevel e benigno do Nuacutecleo do

Maracanatilde que contava com caminhos planejados controlados e vigiados

Tal forma de organizaccedilatildeo era parte das relaccedilotildees de poder instituiacutedas

com a populaccedilatildeo local especialmente pela necessidade dos religiosos

manterem a disciplina sobre os indiacutegenas que habitavam a Colocircnia A

escolha da sede do aldeamento natildeo era aleatoacuteria baseava-se nas condiccedilotildees

geograacuteficas de salubridade e centralidade a disposiccedilatildeo de aacutegua e recursos

naturais como madeira para as edificaccedilotildees tambeacutem era importante aleacutem

da observacircncia de disponibilidade de espaccedilos que poderiam servir para

cultivos de roccedilas e criaccedilatildeo de animais

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 233

Outro fator preponderante na definiccedilatildeo do local dos aldeamentos eram

as razotildees poliacuteticas ou seja a possibilidade de aglutinar o maior nuacutemero de

indiacutegenas que poderiam se tornar dependentes da assistecircncia religiosa e

servir como matildeo de obra aos colonos

[s]elecionando com cuidado os locais para

assentamentos proacuteximos a algum curso fluvial

buscando pontos altos de clima benigno de faacutecil

acesso e defesa abastecidos de aacutegua e madeira os

missionaacuterios iam pouco a pouco cativando os

indiacutegenas e trabalhando pelo sistema de esforccedilo

proacuteprio e ajuda muacutetua50

A funcionalidade do lugar contribuiacutea para o controle do saber que era

exercido por ldquomeacutetodos racionaisrdquo onde as relaccedilotildees de poder instituiacutedas

estatildeo inscritas nas formas de organizaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo dos espaccedilos dos

siacutembolos dos rituais que tambeacutem se inscrevem na arquitetura neste caso

a cristatilde ldquo os indiacutegenas engajados e seduzidos pelo dogma religioso eram

atores dessa sociedade hierarquizadardquo51

A disciplina repressora era parte da realizaccedilatildeo dos rituais catoacutelicos para

apagamento cultural A organizaccedilatildeo dos institutos masculino e feminino

pretendia o controle total dos meninos e meninas internos da mesma

forma os eventos ciacutevicos e religiosos obedeciam ao rigor da disciplina

uniformes diferenciados para meninos e meninas uso de sapatos cabelos

cortados igualmente e filas indianas planejados para garantir a mudanccedila

de haacutebito e costumes de crianccedilas e jovens que deveriam se adaptar a

ordem disciplinadora que marcava as atividades escolares no periacuteodo

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

234 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Vou contar uma histoacuteria que minha matildee contava

Sempre que Seu Miguel comeccedila a narrar uma histoacuteria explica que

aprendeu com sua matildee Ao reproduzi-las para crianccedilas e jovens e para a

comunidade de forma mais geral o cacique mostra que a repeticcedilatildeo eacute a base

da memorizaccedilatildeo e a memoacuteria aciona os elementos constitutivos da

identidade eacutetnica Diferente do contexto repressivo vivenciado com os

capuchinhos em que a repeticcedilatildeo era parte da repressatildeo o recontar sempre

as mesmas narrativas garante a construccedilatildeo da identidade para que possam

continuar se identificando como Tembeacute Tenetehara Apesar de silenciados

na produccedilatildeo histoacuterica e antropoloacutegica por mais de um seacuteculo os Tembeacute de

Santa Maria natildeo foram silenciados em suas memoacuterias prosseguiram

contando as mesmas histoacuterias para continuar sendo Tenetehara em

contraponto agrave negaccedilatildeo identitaacuteria imposta

Em 1924 quando da instalaccedilatildeo do Lazaroacutepolis do Prata o meacutedico

Souza Arauacutejo que representava os interesses do Estado agrave eacutepoca ignorou

completamente a existecircncia de indiacutegenas no local As palavras da Capitoa

Dona Maria denunciam a invisibilidade dos Tembeacute Tenetehara diante dos

projetos do governo do Estado na deacutecada de 20 do seacuteculo passado

ldquo[d]epois disso foi que surgiu que natildeo tinha ningueacutem laacute na Colocircnia do

Prata foi que trouxeram os leproso pra laacute aiacute foi que se mudocirc todo mundo

mentiram que natildeo tinha ningueacutem e trouxeram os leprosos praiacuterdquo52 De

volta para as aldeias de origem ou ocupando novos locais de moradia os

Tembeacute Tenetehara permaneceram em ldquosuspensordquo mas como na histoacuteria

narrada por Seu Miguel da ldquomulher que morreu e logo viveurdquo os Tembeacute

ressurgiram reviveram

Contar e recontar as histoacuterias de certa forma eacute produzir o ldquoresgate

culturalrdquo termo utilizado pelos Tembeacute do Alto Rio Guamaacute para se referir

ao fortalecimento eacutetnico O ldquoresgaterdquo eacute nesse sentido definido como

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 235

forma de objetivaccedilatildeo da cultura e da tradiccedilatildeo onde reside a possibilidade

de trazer agrave tona as lembranccedilas dos antepassados guardadas na memoacuteria e

que definem a unidade social Tembeacute Tenetehara que compreende a liacutengua

os costumes as tradiccedilotildees53

As narrativas satildeo nesse sentido consideradas equivalentes agraves fontes

documentais e bibliograacuteficas porque como parte da tradiccedilatildeo dos povos

indiacutegenas cumprem a funccedilatildeo de manter viva a memoacuteria satildeo tomadas

entatildeo como ldquoverdadesrdquo conforme assinalam Beltratildeo e Lopes

[a]s narrativas Tembeacute satildeo tomadas como verdades

pelo poder que a palavra e a performance do

narrador tem de mobilizar autoridade enquanto

falante que sabe conhece dentro da comunidade

pois as histoacuterias satildeo ditadas pela memoacuteria e

ldquorecitadasrdquo a partir do emaranhado cultural que

cultivou a resistecircncia ao processo de

homogeneizaccedilatildeo ao qual estiveram expostos54

Por compreender as narrativas histoacutericas como parte do processo de

construccedilatildeo da identidade coletiva os Tembeacute Tenetehara das Aldeias Jeju e

Areal empreendem esforccedilos no registro escrito das histoacuterias contadas de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Quando iniciaram o processo de fortalecimento

identitaacuterio em 2003 os Tembeacute Tenetehara que hoje se autodenominam de

Santa Maria do Paraacute percebem que foram tambeacutem invisibilisados na

literatura histoacuterica e antropoloacutegica silenciados enquanto povo

etnicamente diferenciado

Depois de se retirar do Prata os Tembeacute se situaram em dois locais na

Aldeia Jeju e na Aldeia Areal que eram parte do territoacuterio tradicional

ocupado pelos mesmos muito antes da chegada dos capuchinhos Entre

os regionais que foram chegando e se apropriando das terras em meio aos

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

236 bull Revista Estudos Amazocircnicos

natildeo indiacutegenas depois de serem submetidos ao sistema de civilizaccedilatildeo do

Estado e sem grande parte do territoacuterio tradicional os Tembeacute

permaneceram contando suas histoacuterias

Quando Seu Miguel que eacute narrador especialista em contar as histoacuterias

do seu povo comeccedila a falar sempre explica ldquoeu vou contar uma histoacuteria

que minha matildee contavardquo reafirmando a importacircncia da tradiccedilatildeo oral para

seu povo Na ldquoHistoacuteria da mulher que morreu e logo viveurdquo estatildeo

presentes alguns elementos constituintes da identidade da cultura e da

saga Tembeacute a caccedila o ldquomuquiadordquo o canto do pajeacute e o espaccedilo do territoacuterio

como lugar da cultura e da vida Tembeacute A narrativa que comeccedila assim

[o] iacutendio saiu pra caccedilar com suas duas mulheres e

chegando laacute nos seu barraco onde ele ia se acampar

pra fazer a caccedilada fazer seu moqueado enfim fazer

todo o seu trabalho indiacutegena Ele ficou laacute com suas

duas mulheres e aconteceu que uma morreu e

quando morreu era distante pra ele voltar e era

noite Entatildeo o iacutendio disse ldquobom mulher agora eacute o

seguinte pra um ficar e o outro ir natildeo tem condiccedilatildeo

Entatildeo o que vai acontecer vamos deixar ela aqui e

noacutes vamos pra casa Amanhatilde a gente traz mais gente

pra noacutes levar ela pra fazer o enterro

O iacutendio de que fala a histoacuteria tinha duas mulheres praacutetica reprimida

pelos religiosos capuchinhos Eacute possiacutevel deduzir que a histoacuteria deixou de

ser contada pelo menos na presenccedila dos missionaacuterios que condenavam e

reprimiam as praacuteticas que natildeo se parecessem com as que eram pregadas

por eles a cristatilde Mas as histoacuterias assim como a identidade Tembeacute

resistiram e assim como a mulher que morreu e logo ldquoenviveceurdquo o povo

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 237

que por mais de um seacuteculo foi ldquosilenciadordquo retorna a vida pelo canto do

pajeacute e vai ldquoenvivecendordquo ouvindo as histoacuterias dos antepassados

Seu Miguel prossegue

[a]iacute a mulher ficou laacute no chatildeo a noite foi seu leito

Quando anoiteceu de 09 pra as 10 horas da noite a

mulher escuta uma voz cantando distante dela E a

voz que cantava era a voz de um pajeacute fazendo um

trabalho uma cura e aquela cura ela foi despertando

sentindo aquela voz e comeccedilou a se despertaacute

daquele sono que ela tava praticamente poderia ser

um sono que desmaiou ela

E aquela voz que o pajeacute cantava era nesse ritmo

assim uakiwawiraimopipiu eh eh eh eheheh

Entatildeo nesse som dessa voz a mulher levantou

sentou no chatildeo naquela escuridatildeo e soacute escutava

aquela voz cantandoldquo uakiwawiraimopipiu eh eh

eh eh eh eh Uakiwawiraimopipiurdquo

Entatildeo quando eacute de manhatilde ela acordou Amanheceu

o dia e laacute vem o marido dela com a outra mulher e

a mulher vinha chorando no caminho porque a

outra tinha morrido neacute aiacute ela correu pra porta da

oca onde ela tava e viu a mulher que vinha

chorando e disse Mulher o que que estaacute

acontecendo

- Eu tocirc chorando mulher eu estou chorando Tu

natildeo morreu

- Natildeo eu tocirc viva

- Natildeo mas tu morreu

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

238 bull Revista Estudos Amazocircnicos

- Bom sim eu morri mas eu enviveci porque eu

escutei a voz de um pajeacute que tava fazendo um

trabalho e aquela voz que eu tava ouvindo fez eu

me despertar daquele sono eu tocirc viva Olha era

assim era o espiacuterito do pajeacute que tava curando e

aconteceu de ser naquela mesma noite que ele tava

fazendo o trabalho porque ela morreu e enviveceu

novamente

Da mesma forma a histoacuteria da guariba que perdeu o pai e saiu em

busca do canto que ouvia o pai entoar quando vivo retrata a busca pelos

referenciais culturais e linguiacutesticos em tempos de muitas mudanccedilas

a guariba perdeu todos seus pais seus ldquoavocircresrdquo

ficou sozinha no mundo Era ainda pequenininha

aiacute foi crescendo chegou ficou rapazinho Soacute que ela

natildeo sabia como era que seu pai cantava como era

que seu pai fazia Aiacute saiu procurando pros outros

animais O macaco saiuim Entatildeo encontrou o

macaco sauim e perguntou

- Parente cecirc sabe com eacute que meu pai cantava

- Ah eu sei

- Como eacute

- Era assim fi ndash fi ndashfi

A guaribinha disse

- Natildeo natildeo eacute assim meu pai natildeo cantava assim Natildeo

era assim

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 239

Natildeo identificando o canto de seu pai a guariba prossegue em sua

busca ateacute que encontra a preguiccedila que com a calma que lhe eacute peculiar

termina de pentear os cabelos e canta para a guaribinha que reconhece o

canto de seu pai

- Muito bem O meu pai cantava dessa forma

- Aiacute se abraccedilou chorou se despediu da preguiccedila e

disse

- Agora eu vou-me embora

- Natildeo vocecirc natildeo vai eu tenho uma filha e vocecirc vai

casar com ela porquecirc eacute pra se transformar numa

nova geraccedilatildeo

Aiacute a preguiccedila casou com a guariba e se transformou

numa nova geraccedilatildeo justamente como acontece com

nossa histoacuteria

Eu como outros iacutendios que somos sozinhos e

estamos buscando as nossas culturas nossos

resgates nossos modos de viver com os outros

nossos parentes que satildeo mais antigos E essa eacute

a histoacuteria (Grifos meus)

Para Seu Miguel conhecer a histoacuteria do povo eacute condiccedilatildeo indissociaacutevel

da construccedilatildeo da identidade Tenetehara Segundo o cacique cabe agraves pessoas

mais velhas a tarefa de ensinar os mais jovens que devem guardar na

memoacuteria os ensinamentos aprendidos A importacircncia do ensino da saga

Tembeacute Tenetehara por meio da tradiccedilatildeo oral eacute reforccedilada principalmente nos

espaccedilos de discussatildeo coletiva como nas reuniotildees da comunidade e da

associaccedilatildeo quando as lideranccedilas reforccedilam a necessidade de conhecimento

da histoacuteria para continuar sendo Tenetehara

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

240 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Os ensinamentos dos mais velhos obedecem agrave formalidade aprendida

pela tradiccedilatildeo que depende da continuidade das narrativas para continuar

a existir Como lideranccedila e exiacutemio narrador seu Miguel chama atenccedilatildeo

para o fato dos mais velhos natildeo repassarem o conhecimento da histoacuteria

aos mais jovens ldquo [h]oje ningueacutem tem conhecimento da nossa histoacuteria

alguns deles natildeo sabem o conhecimento da nossa histoacuteria porque satildeo

novo Os mais velho tambeacutem natildeo repassa pra nossa juventuderdquo55

A preocupaccedilatildeo de Seu Miguel eacute justificada pela necessidade de

fortalecer a etnicidade Tembeacute Segundo o liacuteder eacute contando as muitas

histoacuterias aprendidas com os antepassados que a identidade eacute acionada e

reafirmada Da mesma forma satildeo repassadas as estrateacutegias de

enfrentamento que em muitos casos consistem em permanecer em

silecircncio ou sair agrave procura de quem ensine a histoacuteria como a guariba oacuterfatilde

Acionadas em diferentes espaccedilos domeacutesticos as narrativas constituem

parte da formalidade do sistema educativo Tembeacute sendo a repeticcedilatildeo parte

da metodologia de memorizaccedilatildeo e garantia de continuidade Para Ester

Jean Langdon56 ldquo[a] narrativa expressa momentos dramaacuteticos na vida

humana momentos de importacircncia que fazem parte da memoacuteria cultural

e individualrdquo

As narrativas Tembeacute tambeacutem informam a continuidade da violecircncia

fiacutesica e simboacutelica na busca por escolarizaccedilatildeo processo que teve

continuidade nas escolas natildeo indiacutegenas que os mesmos passaram a

frequentar depois que saiacuteram do Prata Dona Filomena Silva comeccedilou a

estudar depois dos dez anos de idade contrariando as ordens do pai que

dizia que mulher natildeo deveria estudar nem andar de bicicleta mas

insistente resolveu que queria aprender a carta de ABC contrariando as

expectativas que recaem sobre uma ldquomenina da zona ruralrdquo a de se casar

cuidar do esposo e filhos e cumprir com as tarefas domeacutesticas que cabem

a uma ldquoboardquo dona de casa

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 241

quando foi pra mim estudar eu jaacute tinha uns onze

dozes anos de idade sem estudar porque laacute tinha

um rio muito grande natildeo tinha professores

ningueacutem que subesse neacute tinha uma senhora laacute onde

noacuteis morava que a gente natildeo sabia o grau de estudo

dela mas os pais botava ela assim pra ensinaacute neacute

carta de ABC e como meus pais achava que que

principalmente a mulher natildeo era pra estudar neacute

mulher na eacutepoca era pra se soacute dona de casa natildeo

tinha que ter emprego natildeo tinha que andar de

bicicleta era uma seacuterie de coisa era muito assim

racismo eu acho assim muito machismo neacute57

Dona Filomena relata que muitas vezes foi molestada e humilhada por

pessoas nas casas onde morou para poder estudar feita ldquoescravardquo

obrigada a trabalhar para pagar a comida e estudar Narra o dia em que

teve que pular uma janela para se desvencilhar do asseacutedio do sobrinho de

sua madrinha onde passou a morar para estudar em Beleacutem distante dos

pais e dos parentes

daiacute minha matildee me botou pra casa de uma

madrinha minha laacute eu fui servir de burro de carga

carregava de 20 lata de aacutegua pra vesti um vestido de

mecircs em mecircs natildeo estudava soacute trabalhava laacute

tambeacutem tinha um cara que era sobrinho dela e

gostava de agarra a pessoa na marra e um dia eu fui

limpa um quarto laacute e esse homem fazia patildeo me

levantava quatro hora da manhatilde pra fazecirc a limpeza

em tudo comeccedilava trabalha ateacute oito da noite esse

cara quis me agarraacute e eu me fiz de viacutetima disse que

eu precisava ir laacute vecirc se tinha algueacutem olhando se

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

242 bull Revista Estudos Amazocircnicos

vinha chegando algueacutem mas eu fiz foi pular por

uma janela e caiacute fora mais um livramento que Deus

me deu

Dona Carolina Santos tambeacutem fala das dificuldades que enfrentou para

buscar escolarizaccedilatildeo sem poder comprar caderno escrevia em papel de

embrulho Discriminada pelos colegas arranjava estrateacutegias para poder

continuar estudando mesmo com tantas dificuldades O desejo de estudar

era tanto que chegou a negociar com a professora da escola da

comunidade a troca de serviccedilos domeacutesticos por aulas na escola

se a senhora me ensinaacute a lecirc e lhe ajudo fazecirc suas

coisas eu venho mais cedo eu piso o arroiz pra

senhora eu faccedilo tudo mas soacute que eu nem imaginei

que eu tambeacutem tinha que ajuda a minha matildee neacute

taacute Aiacute eu fui estudaacute soacute que quando ela falou pra

mamatildee a mamatildee deu um tempo tinha que comprar

um caderno tinha que comprar um laacutepis e eu jaacute

tinha preparado folha de papel neacute eu jaacute tinha

ajeitado papel de embrulho porque naquele tempo

tinha papel de embrulho pra embrulha as coisa

quando natildeo era folha de guarimatilde neacute aiacute eu jaacute ia

reservando aqueles papelzinho aiacute eu disse pra ela

mamatildee eu vou com esse borratildeo e depois quando a

senhora compra o papel eu passo a limpo mas a

situaccedilatildeo era muito carente pra uma pessoa compra

uma folha de papel

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 243

Contrariando as negativas do pai e depois de casada do esposo Dona

Carolina conta que acordava trecircs horas da manhatilde para preparar a comida

e deixar tudo pronto Trabalhando o dia todo e estudando agrave noite natildeo

havia outra forma de estudar Aleacutem disso cuidava sozinha dos filhos e da

matildee adoentada deixando limpas as duas casas a sua e a de sua matildee antes

de iniciar os trabalhos na limpeza e preparo da merenda na escola onde

trabalhava

Mas os relatos de violecircncia e constrangimento na busca por escola natildeo

satildeo parte do passado dos Tembeacute Tenetehara Dona Maacutercia Cardoso conta

que seu filho foi constrangido pelos professores de uma das escolas natildeo

indiacutegenas da Aldeia Jeju quando foi impedido de entrar no retorno das

feacuterias de julho de 2014 por natildeo estar vestindo o uniforme A matildee explica

que natildeo teve condiccedilotildees financeiras de comprar a camiseta que a escola

exige para substituir a que ficou pequena

Ao mesmo tempo em que denunciam as violecircncias sofridas as

histoacuterias mostram de certa forma a naturalizaccedilatildeo das mesmas por serem

mulheres da zona rural indiacutegenas informam tambeacutem a continuidade das

relaccedilotildees assimeacutetricas que marcaram a escolarizaccedilatildeo dos pais dos avoacutes e

no presente dos filhos e netos Mas por outro lado quando os Tembeacute

expotildeem a violecircncia que atravessa sucessivas geraccedilotildees o fazem como

desabafo como pedido de ajuda ao seu modo

Para finalizar

A histoacuteria dos Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute mostra as

vicissitudes as resistecircncias e as possibilidades de retomada da identidade

da liacutengua dos costumes e da terra O silenciamento provisoacuterio natildeo

significou o esquecimento da identidade eacutetnica Agora organizados os

Tembeacute datildeo iniacutecio a uma verdadeira peregrinaccedilatildeo em ldquoromaria poliacuteticardquo

buscando reconhecimento eacutetnico por parte dos parentes tanto Tenetehara

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

244 bull Revista Estudos Amazocircnicos

do Alto Rio Guamaacute como das demais aldeias e das instituiccedilotildees

governamentais58

Nesse sentido mesmo morigerados via educaccedilatildeo missionaacuteria Os

Tembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute assim como outros povos

indiacutegenas nas diferentes regiotildees do Brasil retomam pertencimentos e se

reorganizam na luta por direitos reescrevendo histoacuterias buscando

memoacuterias fortalecendo o que ficou latente por determinado periacuteodo e

hoje agem politicamente atualizando formas de territorializaccedilatildeo fluxos

culturais e redefinindo fronteiras eacutetnicas e identitaacuterias59

Os povos indiacutegenas que sofreram a repressatildeo colonial e silenciaram

por algum tempo as identidades eacutetnicas passam a reivindicar o

reconhecimento das territorialidades e etnicidades principalmente a partir

da deacutecada de 70 do seacuteculo passado quando as organizaccedilotildees indiacutegenas

formais intensificaram as lutas por marcos legais que garantam o direito

de continuidade das memoacuterias histoacutericas e identitaacuterias60

Apesar das conquistas legais via protagonismo indiacutegena ainda satildeo

muitas as formas de negaccedilatildeo identitaacuteria que continuam operando seja nas

escolas pela invisibilidade indiacutegena nos curriacuteculos seja na forma de

tratamento dos funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI)

que invocam a categoria de iacutendios ldquoverdadeirosrdquo e ldquopurosrdquo sempre que

satildeo inquiridos pelos Tembeacute na reivindicaccedilatildeo de direitos tentando

enfraquecer as reclamaccedilotildees pela demarcaccedilatildeo da terra conforme relatam

os proacuteprios Tembeacute de Santa Maria

Assim sendo o debate sobre a escola permanece em aberto

especialmente pelas inuacutemeras formas de violecircncia e violaccedilatildeo sofridas ao

longo da histoacuteria Os Tembeacute continuam enfrentando o preconceito e a

discriminaccedilatildeo fatos que requerem o fortalecimento da uniatildeo para

continuar buscando reconhecimento em um Estado que haacute mais de cinco

seacuteculos teima em invisibilizaacute-los

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 245

Artigo recebido em agosto de 2015

Aprovado em setembro de 2015

NOTAS

1 O texto integra o primeiro capiacutetulo de minha tese de doutorado intitulada ldquoTembeacute Tenetehara de Santa Maria do Paraacute retomando os fios da histoacuteria rompendo o silenciamento eacutetnicordquo em andamento no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Paraacute (UFPA) sob a orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Jane Felipe Beltratildeo 2 Da etnia Kaingang do Estado de Santa Catarina Pedagoga Mestre em Direito pelo Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Direito (PPGD) da Federal do Paraacute (UFPA) doutoranda em Antropologia Social no Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Antropologia (PPGA∕UFPA) Integrante do GP-HINDIA ndash Grupo de Pesquisa de Histoacuteria Indiacutegena e Indigenismo na Amazocircnia Assessora da Associaccedilatildeo Indiacutegena Akrotikatecircjecirc e Akratildetikatecircjecirc Bolsista CAPES Contato rosanifernandes2hotmailcom Endereccedilo Rua Augusto Correcirca 364 Bairro Guamaacute Beleacutem PA Brasil CEP 66075-110 3 Conforme dados do Censo 2010 do IBGE o municiacutepio de Santa Maria do Paraacute possui populaccedilatildeo de 23026 pessoas com aacuterea de 457725 quilocircmetros quadrados A emancipaccedilatildeo poliacutetica ocorreu em 1961 tem como limites os municiacutepios de Igarapeacute-Accedilu Bonito Nova Timboteua e Satildeo Domingos do Capim Fonte httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150660ampsearch=para|santa-maria-do-para|infograficos-informacoes-completas Acesso em 24 set 2014 4O exerciacutecio do protagonismo Tembeacute pode ser percebido por exemplo no relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos que descreve os resultados do projeto de revitalizaccedilatildeo eacutetnica que foi submetido e aprovado Conforme TEMBEacute Relatoacuterio apresentado agrave Fundaccedilatildeo Brasil de Direitos Humanos 2011 Santa Maria do Paraacute (Documento ineacutedito) 5 FERNANDES Edimar Antonio SILVA Almir Vital da BELTRAtildeO Jane Felipe

Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) em luta por direitos eacutetnicos In Amazocircnica Revista de Antropologia v 2 2011 pp 392-406 6 Em conversa realizada no dia 17 de setembro de 2014 em sua residecircncia na Aldeia Jeju 7 Organizaccedilatildeo indiacutegena eacute a forma pela qual uma comunidade ou um povo indiacutegena por meio das quais satildeo orientadas as lutas os trabalhos a vida coletiva

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

246 bull Revista Estudos Amazocircnicos

elas podem ser tradicionais ou formais Todos os povos tecircm formas de organizaccedilatildeo proacuteprias que respondem agraves demandas internas As organizaccedilotildees indiacutegenas formais vecircm sendo adotadas largamente pelos povos indiacutegenas nas uacuteltimas trecircs deacutecadas e constituem novas formas de articulaccedilatildeo diante de novos enfrentamentos que se apresentam principalmente no encaminhamento de demandas referentes ao acesso e proteccedilatildeo das terras indiacutegenas agraves poliacuteticas especiacuteficas de sauacutede e educaccedilatildeo e a direitos diferenciados Em geral pode-se afirmar que as associaccedilotildees indiacutegenas representam as coletividades indiacutegenas frente ao Estado nacional na defesa e promoccedilatildeo de direitos historicamente negligenciados Atualmente satildeo mais de 700 organizaccedilotildees indiacutegenas em todo o paiacutes coordenadas por lideranccedilas poliacuteticas que na maioria buscam formaccedilatildeo escolar como forma de qualificar as lutas A ampliaccedilatildeo dos nuacutemeros de acessos ao Ensino Superior tem merecido destaque nos uacuteltimos cinco anos LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hojev1 MECSECADLACEDMuseu Nacional Brasiacutelia 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas 8 FERNANDES Edimar Antonio Luta por direitos estudo sobre a Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) 175 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraacute (Programa de poacutes Graduaccedilatildeo em Direito) Beleacutem 2013 (Ineacutedito) 9 MUNIZ Palma O Instituto de Santo Antonio do Prata (Municiacutepio de Igarapeacute-Assuacute) Beleacutem Typ da Livraria Escolar1913 10 Os capuchinhos tecircm Satildeo Francisco de Assis como ldquopai fundadorrdquo e compotildee um dos trecircs ramos maiores da Primeira Ordem juntamente com a dos Frades Menores e os Frades Menores Conventuais Fundada em 1528 os capuchinhos satildeo o ramo mais recente e se identificam pelos votos de ldquooraccedilatildeo e pobrezardquo O nome ldquocapuchinhosrdquo eacute atribuiacutedo como referecircncia a vestimenta dos Freis ldquoum longo capuzrdquo Conforme informaccedilotildees da Providencia dos Frades Menores Capuchinhos do Maranhatildeo Paraacute e Amapaacute (PROMAPA) a ordem estaacute atualmente em 99 paiacuteses em todo o mundo e conta com cerca de 11000 frades que vivem em mais de 1800 comunidades denominadas ldquoFraternidadesrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 nov 2014 Os Freis Capuchinhos vieram ao Brasil no iniacutecio da primeira Repuacuteblica para desenvolver as atividades de catequese dos iacutendios permanecendo entre 1893 a 1937 denominado ldquoPeriacuteodo da Missatildeordquo Os primeiros missionaacuterios apostoacutelicos lombardos chegaram a Recife em 1892 mas natildeo foram os primeiros capuchinhos a pisar em solo brasileiro No periacuteodo de 1612 a 1615 os Capuchinhos Franceses trazidos pela expediccedilatildeo militar chefiada por Daniel de La Touche vieram ao Brasil com o mesmo propoacutesito catequizar os indiacutegenas Em 1895 Frei Carlos que era o ldquosuperior da missatildeordquo assume a Paroacutequia de Barra do Corda no Maranhatildeo com o intuito de evangelizar os iacutendios Guajajara e Canela Em 1898 muda-se para a Colocircnia do Prata no Estado do Paraacute unicamente para a evangelizaccedilatildeo dos iacutendios ldquo[e]m ambas as casas satildeo inaugurados Educandaacuterios em regime interno para poder oferecer uma mais aprimorada formaccedilatildeo civil e religiosa aos filhos dos iacutendiosrdquo Informaccedilotildees disponiacuteveis em httpwwwpromapaorgbr Acesso em 15 de nov de 2014

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 247

11 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Histoacuteria dos iacutendios no Brasil Satildeo Paulo Cia das Letras 1992b 12 CARNEIRO DA CUNHA (Org) Legislaccedilatildeo indigenista do seacuteculo XIX uma compilaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo Comissatildeo Proacute-iacutendio 1992a p 4 13 Conforme Schwarcz (1993) os conceitos de naccedilatildeo cidadania raccedila povo entre outros satildeo elaborados a partir da perspectiva de cientistas que acreditavam estar definindo os rumos do paiacutes naquele momento em que a miscigenaccedilatildeo eacute tomada por espetaacuteculo calcada nos pressupostos teoacutericos evolucionistas que vatildeo delinear as concepccedilotildees eacutetnicas e culturais a partir do etnocentrismo SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 14 FOUCAULT Michel Vigiar e punir 36 ed Petroacutepolis Vozes 2009 15 AMOROSO Marta Rosa Catequese e Evasatildeo Etnografia do Aldeamento Indiacutegena Satildeo Pedro de Alcacircntara Paranaacute (1855-1895) Tese de Doutorado 156p Programa de Antropologia Social Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998 p 147 16 Idem 17 HENRIQUE Maacutercio Couto Sem Vieira nem Pombal memoacuteria jesuiacutetica e as missotildees religiosas na Amazocircnia do seacuteculo XIX In Asas da Palavra ndash revista de Letras Beleacutem UNAMA v 10 nordm 23 juldez 2007 18 MONTERO Paula (org) Deus na Aldeia missionaacuterios iacutendios e mediaccedilatildeo cultural Satildeo Paulo Globo 2006 19 Registro realizado por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo da Assembleia Geral da Associaccedilatildeo Indiacutegena Tembeacute de Santa Maria do Paraacute (AITESAMPA) realizada em marccedilo de 2014 20 A Lei Nordm 9010 de 29 de marccedilo de 1995 trata da mudanccedila nos termos da doenccedila que passa a ser tratada como ldquohanseniacuteaserdquo ao inveacutes de ldquoleprardquo No texto optei por manter a grafia utilizada no seacuteculo XIX ldquoleprardquo e ldquoleprosordquo A Lei estaacute disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9010htm Acesso em 24 jun 2014 21 SOUZA ARAUacuteJO Heraacuteclides Ceacutesar de Lazaroacutepolis do Prata A primeira Colocircnia Agriacutecola de leprosos fundada no Brasil Beleacutem Depto Nacional de Sauacutede PuacuteblicaEmpresa Graphica Amazocircnia 1924 22 Dentre estes livro de oacutebitos registros fichas individuais dos internos entre outros 23 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos dos Santos Instituiccedilotildees totais demografia amp genociacutedio na Amazocircnia segundo a trajetoacuteria dos TembeacuteTenetehara no Paraacute In Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Aacuteguas de Satildeo Pedro - SP Anais do XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais Populaccedilatildeo Governanccedila e Bem-Estar Satildeo Paulo- SP ABEP v 1 2014 24 Sendo (1) Terra Indiacutegena do Alto Rio Guamaacute (TIARG) com aacuterea oficial de 279897 hectares e uma populaccedilatildeo de 1425 pessoas (2) Terra Indiacutegena Tembeacute localizada no municiacutepio de Tomeacute-accedilu e que possui aacuterea de 1075 hectares populaccedilatildeo de 60 pessoas e encontra-se ldquoRegularizada (3) Terra Indiacutegena Tureacute-Mariquita e (4) Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II ambas localizadas no municiacutepio de Tomeacute-Accedilu a primeira com aacuterea de 14697 hectares juridicamente regularizada como ldquoterra tradicionalmente ocupadardquo e que conta com populaccedilatildeo de 40 pessoas A Reserva Indiacutegena Tureacute-Mariquita II possui aacuterea de 59355 hectares enquadra-se na modalidade de Reserva Indiacutegena com situaccedilatildeo juriacutedica constando como ldquoEncaminhadardquo nos registros da Fundaccedilatildeo

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

248 bull Revista Estudos Amazocircnicos

Nacional do Iacutendio e (5) a Terra Indiacutegena Maracaxi situada no municiacutepio de Aurora do Paraacute com aacuterea de 720 hectares cuja fase atual do procedimento consta como ldquoDeclaradardquo onde residem cerca de 50 pessoas Fonte httptisocioambientalorgpt-brpt-brterras-indigenas3573 Acesso em 23 de set de 2014 25Afirmaccedilatildeo de Dona Maria a Capitoa referindo-se ao Prata 26 De acordo com o linguista Max Boudin os Tembeacute constituem o ramo ocidental dos Tenetehara Os Guajajara satildeo o grupo oriental Fonte httppibsocioambientalorgptpovotembe1021 Acesso em 28 de set de 2014 Para mais informaccedilotildees sobre os Tenetehara consultar GOMES Meacutercio Pereira O iacutendio na Histoacuteria o povo Tenetehara em busca da liberdade Rio de Janeiro Vozes 2002 27 BOUDIN Max H Dicionaacuterio de Tupi Moderno Dialeto tembeacute-teacutenecircteacutehar do alto rio Gurupi Satildeo PauloFaculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Presidente Prudente 1966 28 Idem grifos do autor 29 WAGLEY Charles GALVAtildeO Eduardo Os iacutendios Tenetehara uma cultura em transiccedilatildeo Rio de Janeiro MECServiccedilo de Documentaccedilatildeo 1961 30 Brasil 1853 Relatoacuterios do Impeacuterio Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1725 Acesso em 20 de abr de 2015 p 46 31 BRASIL 27ordm Relatoacuterio da Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras 1884 Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1966contentshtml Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 32 BRASIL 1884 p 348 33 BRASIL 1884 p 350 34 BRASIL Agricultura Disponiacutevel em httpbrazilcrledubsdbsdu1971contentshtml 1885 Acesso em 22 de abr de 2015 p 37 35 BRASIL 1885 p 38 36 PRIMEacuteRIO P Fr Capuchinhos em terras de Santa Cruz nos seacuteculos XVII XVIII e XIX Satildeo Paulo Livraria Martins 1940 37 PRIMEacuteRIO 1940 p 355 38 PRIMEacuteRIO 1940 p 353 39 Idem 40 PARAacute Relatoacuterio de Governo da Inspectoria de Terras e Colonisaccedilatildeo Arquivo Puacuteblico do Paraacute Beleacutem 1899 p 06 41 Idem 42 PARAacute 1899 p 7 43 Idem 44 PARAacute 1899 p 23 45 PARAacute 1899 p 7

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas

Revista Estudos Amazocircnicos bull 249

46 Em conversa com Fernandes no dia 14 de setembro de 2014 em sua residecircncia O diaacutelogo contou com a participaccedilatildeo de Dona Judite Vital da Silva 47 PARAacute 1899 p 07 48 PARAacute 1899 p 23 49 Enquanto os Tembeacute do ldquoGurupyrdquo eram em maior nuacutemero e considerados os mais ldquocivilizadosrdquo BRASIL 1884 p 349 50 BARROS Clara Emiacutelia Monteiro de Aldeamento de Satildeo Fideacutelis o sentido do espaccedilo na iconografia Rio de Janeiro IPHAN 1995 51 Idem p 91 52 Dona Maria Francisca da Silva em 14 de setembro de 2014 53 ALONSO Sara Os Tembeacute de Guamaacute processo de construccedilatildeo da cultura e identidade Tembeacute Dissertaccedilatildeo de Mestrado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996 54 BELTRAtildeO Jane Felipe LOPES Rhuan Carlos Santos Diaacutesporas homogeneidades e pertenccedilas entre os Tembeacute Tenetehara de Santa Maria In Aceno v 1 nordm1 2014 pp 123-143 p 126 55 Seu Miguel Carvalho da Silva em entrevista concedida no dia 14 de marccedilo de 2014 durante os preparativos para a Assembleia Geral da AITESAMPA 56 LANGDON Ester Jean A fixaccedilatildeo da narrativa do mito para a poeacutetica de literatura oral In Horizontes Antropoloacutegicos Porto Alegre ano 5 nordm 12 1999 pp 13-36 dez Disponiacutevel em httpwwwufrgsbrppgashapdfn12HA-v5n12a02pdf Acesso em 01 de abr de 2015 p 20 57 Entrevista concedida em 13 de agosto de 2014 Por se tratar de relatos de experiecircncias de violecircncia as identidades das interlocutoras satildeo preservadas Os nomes das mulheres neste caso satildeo fictiacutecios diferente das autoridades Tembeacute que satildeo citadas como Dona Maria Francisca da Silva por exemplo Capitoa do Jeju 58 PACHECO DE OLIVEIRA Joatildeo (org) A viagem da volta etnicidade poliacutetica e reelaboraccedilatildeo cultural no Nordeste indiacutegena Rio de Janeiro Contra Capa Livraria 1999 59 Conforme sugere BARTH Frederik O Guru o Iniciador e Outras Variaccedilotildees Antropoloacutegicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 60 LUCIANO Gersem dos Santos O iacutendio brasileiro o que vocecirc precisa saber sobre os povos indiacutegenas no Brasil hoje v1 Brasiacutelia MECSECADLACEDMuseu Nacional 2006 Disponiacutevel em httpwwwlacedmnufrjbrtrilhas