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Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 1 (2014), pp. 86-117 Aspectos Religiosos do Brasil Contemporâneo Douglas Rodrigues da Conceição Resumo: O presente texto, intitulado “Aspectos religiosos do Brasil contemporâneo”, procurou caminhos para problematizar o campo evangélico-pentecostal brasileiro que vertiginosamente é, segundo os dados revelados pelo Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o segmento religioso que mais cresce hoje no Brasil. Diante da tentativa de cumprimento desta tarefa – que certamente não poderá ser aqui encerrada – questões acerca da história, da constituição e do estado atual do pentecostalismo evangélico brasileiro foram retomadas. Palavras-chave: Brasil; Religião; Pentecostalismo. Abstract: This text, entitled "Religious aspects of contemporary Brazil", has looked for specific ways to problematize the Pentecostal- protestant field that has rapidly, according to some data collected by the Institute of Brazilian Geography and Statistic (IBGE), grown nowadays in Brazil. Facing, therefore, the challenge to accomplish such a task, which is not by the way to be in this present paper finished, questions concerning the history, the formation and the current state of the Brazilian Pentecostal-protestant are to be resumed. Keywords: Brazil; Religion; Pentecostalism.

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Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 1 (2014), pp. 86-117

Aspectos Religiosos do Brasil Contemporâneo

Douglas Rodrigues da Conceição

Resumo: O presente texto, intitulado “Aspectos religiosos do Brasil

contemporâneo”, procurou caminhos para problematizar o campo

evangélico-pentecostal brasileiro que vertiginosamente é, segundo

os dados revelados pelo Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), o segmento religioso que mais

cresce hoje no Brasil. Diante da tentativa de cumprimento desta

tarefa – que certamente não poderá ser aqui encerrada – questões

acerca da história, da constituição e do estado atual do

pentecostalismo evangélico brasileiro foram retomadas.

Palavras-chave: Brasil; Religião; Pentecostalismo.

Abstract: This text, entitled "Religious aspects of contemporary Brazil", has

looked for specific ways to problematize the Pentecostal-

protestant field that has rapidly, according to some data collected

by the Institute of Brazilian Geography and Statistic (IBGE),

grown nowadays in Brazil. Facing, therefore, the challenge to

accomplish such a task, which is not by the way to be in this present

paper finished, questions concerning the history, the formation

and the current state of the Brazilian Pentecostal-protestant are to

be resumed.

Keywords: Brazil; Religion; Pentecostalism.

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Introdução

Após a aparição pública dos resultados do último censo do IBGE, em

2012, a busca por explicações acerca da complexidade do campo religioso

brasileiro parece ter tomado de assalto as consciências que pesquisam o

fenômeno religioso no Brasil. Para muitos pesquisadores, mais do nunca,

a multiplicidade de expressões religiosas catalogadas na sempre

insuficiente taxonomia do IBGE dissipou de vez as nuvens da incerteza

acerca da efervescência religiosa do solo brasileiro.

Embora fosse uma empreitada inglória e talvez impossível do ponto

de vista da pesquisa acadêmica, face à inabordável pluralidade religiosa

apontada pelo IBGE, a preocupação abscôndita que me consumia era a

de procurar uma possibilidade de abordar os aspectos religiosos do Brasil

contemporâneo. Ou seja: queria procurar um rosto para a religião no Brasil

de hoje. Apresento, a seguir, as inquietações que sustentavam tais

preocupações.

A primeira delas tem a ver com a formação multicultural do que passo

a chamar de campo religioso brasileiro. O Brasil, do ponto de vista de sua

formação cultural, ou mesmo como chamaria Darcy Ribeiro, o povo

brasileiro, isto é, a sua “formação” e “seu sentido”, como sabemos, é

formado pelo encontro de três “matrizes étnicas”. Fazendo ressoar a

perspectiva do antropólogo brasileiro, a gestação do Brasil ou do povo

brasileiro surge “da confluência, do entrechoque e do caldeamento do

invasor português com silvícolas e campineiros e com negros africanos,

uns e outros aliciados como escravos”.1 Portanto, a história da formação

cultural brasileira é desde o seu início marcada por encontros das

particulares dimensões intraculturais (arte, religião, modelo de organização

social, etc.) de cada uma dessas matrizes. Creio, portanto, que impossível

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seria reconstruir uma história da vida cultural brasileira somente a partir

de um ponto de vista diacrônico. A história da vida cultural brasileira é

notadamente marcada por dinâmicas sincrônicas e simultaneidades de

inter-relações culturais. Logo, aquilo que nos interessa aqui não escapa a

esta perspectiva: o campo religioso brasileiro contemporâneo revela

profundas raízes ancoradas neste amálgama que constitui a formação da

cultura brasileira no que se refere aos seus aspectos religiosos. São,

portanto, cinco séculos de cortes e colagens, fusões e apagamentos,

assimilações e rejeições, enfim. São cinco séculos de experiências

sincréticas impactando a formação da vida religiosa no Brasil. Talvez não

seja possível entender as religiões do Brasil contemporâneo sem levar em

consideração esse a priori cultural. Para que fique mais evidente a

pertinência desta preocupação inicial, o antropólogo Darcy Ribeiro, ao fim

de sua trajetória intelectual, preferia falar de “Brasis” (no plural) e não mais

Brasil no singular.

A segunda preocupação mantém íntima relação com a primeira. Apesar

de ter sido fortemente influenciado pela cultura política das principais

Repúblicas do século XIX, por se entender desde lá enquanto nação laica,

o Brasil é, do Norte ao Sul, um país de religioso. Diria mais: é um país de

efervescência religiosa. A sua religião não é obviamente coisa do Estado,

já que o princípio da laicidade preconizou uma separação entre Igreja e

Estado, mas ela (a religião) se transparece com toda plenitude como “coisa

pública” e no espaço público. A religião acontece/está em toda parte.

Contrariando as “proféticas” teses acerca da secularização do mundo e da

autonomia das esferas culturais em relação à religião (política, arte,

economia, direito, moral, ciências, etc.), que foram tecidas por vários

ramos do pensamento ocidental moderno, o Brasil assistiu, durante o

século XX, a uma inigualável expansão demográfica que foi ao mesmo

tempo acompanhada de uma expansão e diversificação de sua vida

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religiosa.2 Ou seja: apesar de presenciar até os dias hoje um espesso

processo do que chamarei de descatolicização, fenômeno mais

correlacionável aos supostos efeitos da ideia de secularização nos trópicos,

a autodeclaração de filiação religiosa da população brasileira é maciça.

Embora não seja o meu desejo problematizar essa questão aqui, o que

quero é apenas chamar atenção para o fato de o Brasil ter assumido todos

os pressupostos de uma nação segundo os valores da civilização moderna

ocidental (consolidação da democracia, industrialização, ênfase na técnica

e na ciência, etc.) e mesmo assim ter se transformado como nunca num

país diversificadamente religioso. Seja na região Norte seja na região Sul,

a fórmula da secularização, enquanto modelo de oposição ou mesmo

supressão do religioso, não funcionou. O abandono de convicções e

práticas religiosas e até mesmo a descrença em um Deus único não podem

servir de sensores para medir o fenômeno secularização no Brasil. O que

temos, em suma, é o oposto de tudo isso. Se a segurança da democracia

em alguns países depende de certa assepsia da religião nos espaços

públicos, no Brasil o oposto se configura: a democracia tem a participação

de vozes que vêm dos mais variados setores religiosos, o que causa visíveis

incômodos a determinados segmentos.

Desejaria, portanto, demonstrar alguns dados mais objetivos que

podem ajudar a sustentar o que acabo de dizer. Não obstante ao

crescimento da população dita sem religião, que em 2000 era de

aproximadamente 12 milhões de pessoas e que hoje soma mais de 15

milhões, o último censo demográfico, elaborado em 2010 pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, afirma que quase 176 milhões

de brasileiros se autodeclaram religiosos. Ou seja: declaram “possuir”

alguma filiação religiosa. Esse contingente representa nada menos do que

92% da população brasileira, hoje estimada em 191 milhões de pessoas. O

mapa religioso produzido pelo último censo demográfico do IBGE se

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expressa da seguinte maneira quando comparado ao censo demográfico

de 2000:

Ano População

brasileira

População sem religião no Brasil População religiosa no

Brasil

Total Total % do total Total % do

total

2000 169.872.856 12.492.403 7,35% 157.380.453 92,65%

2010 190.755.799 15.335.510 8,03% 175.420.289 91,97%

Fonte: Censo do IBGE, anos 2000 e 2010. Tabela elaborada pelo autor do texto.

Reconheço que seria quase impossível demarcar neste texto todos os

aspectos religiosos do Brasil contemporâneo, pois teria de abordar não só

aspectos das religiões que aqui aportaram e se desenvolveram, tais como

o Catolicismo, o Protestantismo, o Espiritismo Kardecista e as de

expressão cultural asiática, como o Budismo, mas também aquelas das

populações autóctones, como os Cultos Indígenas e as Pajelanças [até

hoje, em muitos casos, desconhecidas completamente] e também as que

germinaram em solo brasileiro como a Umbanda e o Candomblé, nascidas

do Culto aos Orixás dos africanos que lá estiveram em situação de servidão

humana. O título que dou a ele é apenas provocativo.

Acrescente-se a estes fatores outro já mencionado: a capacidade que

estas religiões tiveram não só de se repelirem, mas também a de se

influenciar mutuamente. A vida religiosa no Brasil é híbrida e sincrética do

começo ao fim. Conferir às múltiplas expressões religiosas do panorama

brasileiro o justo reconhecimento é antes tudo dotá-las da capacidade que

tiveram de se desenvolver neste solo, de se estruturar sob o signo de uma

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íntima interconexão, estabelecida mutuamente entre si, e não apenas

reconhecê-las sob o prisma de uma formação pivotante e estanque.

O que tento afirmar nestas linhas iniciais talvez esteja em consonância

com muitas assertivas tecidas por Clifford Geertz em seu ensaio “O futuro

da religião”. Não obstante aos solavancos recebidos em sua estrutura e

ambientes de origem, a religião transformou-se e transforma-se

incessantemente em um objeto flutuante. Ao migrar de seus ambientes de

origem para outros onde seu poder de fertilização se demonstrou mais

evidente (este é o caso do Brasil), sem contar também com sua capacidade

de autogerminação, a religião enquanto fenômeno da cultura revela-se em

sua máxima plasticidade e coloração no ambiente brasileiro.3

Os partidários da secularização, tida enquanto efeito do mundo

moderno ainda em movimento, já que não se convenceram de que a

religião não desapareceu e não desaparecerá, interpretaram com algum

entusiasmo o aumento da população dos chamados “sem religião”

apontado pelo Censo de 2010. Com o mesmo entusiasmo também

interpretaram o processo o qual chamei desde cedo de descatolicização do

Brasil, já que gradativamente o Brasil transforma-se cada vez mais num

país menos católico. Todavia, esse mesmo entusiasmo não pode ser

notado quando o assunto é a população evangélica. Esse grande

contingente religioso, que hoje dá forma a grande parte do campo religioso

brasileiro, cresce vertiginosamente desde seus primeiros momentos de

nascimento. O mesmo Censo realizado em 2010 afirma que a população

de evangélicos no Brasil passou de 26,1 milhões, em 2000, para

aproximadamente 42,2 milhões em 2010. Ou seja: a população de

evangélicos cresceu 61,93% e hoje representa 22,16% de toda população

brasileira.

Ano Evangélicos Taxa de crescimento %

2000-2010

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1991

13.189.282

-

2000

26.184.941

-

2010

42.275.440

61,93%

Fonte: Fonte: Censo do IBGE, anos 2000 e 2010. Tabela elaborada pelo autor do

texto.

Quando os olhares são direcionados ao campo religioso evangélico um

novo fator nasce imperativamente: as diferentes denominações religiosas

pertencentes a este campo. O campo religioso dito evangélico é

notadamente plural. Mesmo não concordando com a classificação

utilizada pelo IBGE em 2010, por considerá-la incompleta, eu a retomo

aqui a título de exemplificação. Os evangélicos foram divididos em grupos

(Igrejas): 1) Evangélicas de missão; 2) Evangélicas de origem pentecostal;

3) Evangélica não determinada.

As cores e a desplasticidade do campo religioso brasileiro evangélico

ficam mais intensas quando olhamos ainda um pouco mais para o seu

interior. Vejamos: os grupos chamados de evangélicos de missão são 7,7

milhões; os grupos evangélicos não determinados somam 9,2 milhões; no

entanto, os grupos evangélicos de origem pentecostal somam 25,3 milhões

de pessoas. Portanto, os dados demonstram claramente: o vertiginoso

processo de crescimento do campo religioso evangélico, já anunciado,

deve-se em grande parte aos grupos pentecostais. Deve-se, portanto, ao

pentecostalismo, movimento religioso que tem em Belém do Pará um

ponto de inflexão em relação a sua origem em solo brasileiro.

Chego então ao ponto central do que pretendo aludir. Diante da

imensa diversidade na qual se traduz o campo religioso brasileiro e,

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portanto, da impossibilidade de retratá-lo fielmente neste momento, fiz

uma difícil escolha. Verdadeiramente, não sei se uma escolha justa ou

correta, mas vou me deter naquilo que considero ser o mais expressivo

fenômeno religioso do Brasil de hoje, pelo menos para este momento: o

movimento evangélico-pentecostal, cuja certidão de nascimento conta

com as mãos de dois suecos, na cidade de Belém do Pará, no primeiro

decênio do século passado.

O Pentecostalismo

“Minoria cognitiva”, religião da “ignorância”, “religiosidade primitiva”:

eis algumas categorias atribuídas ao pentecostalismo por uma parte da

intelectualidade brasileira interessada no estudo do referido fenômeno

religioso. Uma parte do campo evangélico pentecostal tem sido alvo de

muitas pesquisas acadêmicas e sua notoriedade no cenário acadêmico

brasileiro talvez revele sua importância dentro do campo religioso do

Brasil contemporâneo. Tal produção intelectual não é possível de ser

abarcada em razão de sua extensão.

Poderíamos começar com duas perguntas de fundo: 1) o que quer dizer

o termo evangélico? 2) o que quer dizer o termo pentecostal? Há pouco

consenso e muita imprecisão entre os pesquisadores brasileiros acerca do

termo evangélico. Adoto aqui primeiramente o caminho mais curto e

majoritariamente seguido pelos sociólogos da religião no Brasil. No

contexto latino-americano, o termo evangélico cobre o campo religioso

formado pelas denominações cristãs nascidas ou que descendem, de

alguma maneira, da Reforma Protestante europeia do século XVI.

Portanto, este termo designa tanto as igrejas ditas protestantes históricas

(Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista),

mas também designa as igrejas justificadamente chamadas de pentecostais

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(Congregação Cristã do Brasil, Assembleia de Deus, Igreja do Evangelho

Quadrangular, Igreja Brasil Para Cristo, Igreja Deus é Amor, Casa da

Benção, Igreja Universal do Reino de Deus e outras).4 Pode parecer

estranho, porém realmente o termo evangélico é facilmente utilizado no

Brasil para designar tanto os grupos religiosos legitimados protestantes,

herdeiros mais diretos do trono da Reforma Protestante, mas também

aqueles que levam toda forma de “confusão”5 e “complicação” ao campo

religioso brasileiro. Essa é a imagem projetada sobre os grupos

pentecostais. Para alguns, o desenvolvimento do pentecostalismo trouxe

ao campo religioso brasileiro alguma nebulosidade. Portanto, temos um

grande guarda-chuva que abriga tanto os protestantes de sangue real

quanto os protestantes de sangue plebeu. O termo evangélico, em linhas

gerais, designa o cristianismo não católico no Brasil. Todavia, o

preconceito lançado sobre os pentecostais é tão evidente que certa ala da

sociologia da religião no Brasil tem dificuldades em reconhecê-los

enquanto grupo cristão. Essa é a perspectiva assumida por Antonio

Gouvêa Mendonça ao fazer referência à cura divina, um dos elementos

centrais do culto pentecostal, quando afirma que “o pentecostalismo de

cura divina [...] mal resiste a uma análise mais rigorosa à sua identidade

cristã”.6 Concordo que a teologia pentecostal não está centrada numa

ênfase cristológica. Talvez a marca do preconceito traga consigo não

apenas o próprio preconceito, mas também uma perspectiva importante

sobre os pentecostais. Não seria mesmo o pentecostalismo uma expressão

religiosa para além dos muros do cristianismo? Deixo aqui a pergunta

apenas para futuras indagações.

Parece-me que o ser ou não cristão, questão shakespeariana que no

fundo deseja afirmar uma identidade protestante – aquela que se perfaz

em oposição à identidade católica – traz também consigo a luta pelo uso

exclusivo do termo evangélico, que foi desde a chegada das imigrações e

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das missões protestantes no Brasil do XIX o termo que os próprios

protestantes escolheram para si.

Quanto ao termo pentecostal há também pouco consenso e muita

imprecisão. Procuro apresentar aqui duas definições: 1) a que é dada pelo

Dicionário do movimento pentecostal, que foi publicado pela CPAD, editora da

maior igreja pentecostal do Brasil, a Assembleia de Deus; 2) e a que

provém de um interessante relato etnográfico de Marion Aubrée. Segundo

a definição do referido dicionário, a palavra pentecostal é “usada a partir

de 1907, na Grã-Bretanha, pelas igrejas históricas tradicionais (anglicanas,

episcopais, metodistas, evangélicas), para se referir aos crentes que criam

e recebiam o batismo no Espírito Santo, por causa da analogia entre esse

movimento e o dia de Pentecostes (At 2.1-13), isto é, por causa da efusão

do Espírito e das manifestações de poder, que eram observadas por toda

parte nas ilhas britânicas. Por sua vez, “pentecostal” é o crente que crê

(adepto) na possibilidade de receber a mesma experiência do Espírito

Santo que os apóstolos receberam, no dia de Pentecostes”.7

Reproduzo uma parte do relato de Marion Aubrée:

Para pertencer plena e inteiramente ao

pentecostalismo, podemos determinar três

momentos necessários, cujo primeiro é um ato

individual que consiste numa declaração em voz

alta, feita no seio da comunidade do bairro, de que

se ‘aceita’ Jesus (como salvador). Não existe ordem

cronológica para os dois outros já que um é o

‘batismo da água’ [por imersão], cerimônia coletiva

que acontece uma ou duas vezes por ano, segundo

o número de adesões novas; ele corresponde ao

reconhecimento oficial do adepto pela seita. O

outro é o ‘batismo do fogo’, isto é, a irrupção da

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glossolalia [espécie de transe verbal que se

caracteriza pela emissão espontânea de uma

sequência mais ou menos longa de sons que não

fazem sentido fora do campo místico], ela é o sinal

do reconhecimento do fiel pela divindade. Ela pode

intervir, segundo as disposições de cada um, quase

imediatamente ou muito tempo depois da ‘aceitação

a Jesus’. Todavia, é preciso assinalar que a glossolalia

é a condição sine qua non de acesso a uma outra das

hierarquias que se entrecruzam e se entrecortam no

interior das seitas. A primeira, que poderíamos

qualificar de ‘espiritual’, corresponde a uma

acumulação de dons do Santo-Espírito sobre o fiel.

[Os dons são ao todo oito; em ordem crescente de

importância, os dons de línguas (glossolalia), de

interpretação (das ditas línguas), de evangelização,

de cura, de profecia, de sabedoria, de discernir os

espíritos (ler os pensamentos), de fazer milagres.]

Ela é considerada pelos pentecostais como

recompensa divina pelo respeito às proibições e do

bom uso dos preceitos na obra; ela é,

consequentemente, prova de “santidade” e aqueles

que obtêm vários dons gozam a consideração dos

correligionários.8

A fundamentação teológica do pentecostalismo é construída a partir

de alguns versículos bíblicos. O batismo com o Espírito Santo e o falar

em línguas estranhas [glossolalia] são, tal como já mencionados no relato

de Marion Aubrée, marcas distintivas da teologia pentecostal. Mt 3,11,

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Atos 1,8, Atos 2,4, Atos 11,15 são sempre interpretados à luz dos

propósitos da teologia dos pentecostais.

Mt 3,11

E eu, em verdade, vos batizo com água, para o

arrependimento; mas aquele que vem após mim é

mais poderoso do que eu; não sou digno de levar as

suas sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo

e com fogo.9

Atos 1,8

Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há

de vir sobre vós [...]10

Atos 2,4

E todos foram cheios do Espírito Santo e

começaram a falar em outras línguas, conforme o

Espírito Santo lhes concedia que falassem11

Atos 11,5

E, quando comecei a falar, caiu sobre eles o Espírito

Santo [...].12

O Dicionário do Movimento Pentecostal editado pela CPAD admite

que:

o batismo no Espírito Santo outorgará ao crente

ousadia e poder celestial para este realizar grandes

obras em nome de cristo e ter eficácia no seu

testemunho e pregação. Esse poder não se trata de

uma força impessoal, mas de uma manifestação do

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Espírito Santo, na qual a presença, a glória e a

operação de Jesus estão presentes com seu povo.13

Questões Históricas do Pentecostalismo

O pentecostalismo também possui, enquanto movimento religioso,

seu mito de origem. De acordo com Leonildo Campos e também toda

plêiade de pesquisadores, o pentecostalismo é visto como um movimento

religioso eclodido no EUA, no início do século XX, após dois séculos de

avivamentos espirituais e de movimentos de santidade com ênfases nas

emoções e na busca da santidade. As manifestações “oficialmente”

consideradas pentecostais aconteceram na Escola Bíblica Betel, na cidade

de Topeka, no Estado do Kansas, em 1901. O diretor da escola, Charles

Parham, realizou uma série de reuniões de orações com seus alunos e

alguns deles passaram a expressar seus sentimentos em glossolalia, isto é,

em línguas estranhas. Para Charles Parham, o falar em línguas era a

primeira evidência de que a pessoa havia recebido o “batismo com o

Espírito Santo”. Willian Joseph Seymour, um jovem negro de fé batista,

em 1906, levou essa expressão da fé cristã para Los Angeles, onde se

estabeleceu num antigo templo metodista com o nome de Igreja

Apostólica da Fé. A 312 Azusa Street, Los Angeles (Califórnia), se tornou,

segundo Leonildo Campos, a Meca do pentecostalismo, de onde se

expandiu para todo o país e mundo.14

O Pentecostalismo Brasileiro

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Revista Estudos Amazônicos • 99

No início do século XIX e depois de mais três séculos de hegemonia

católica, o Brasil passa a perceber a emergência de novos grupos religiosos

em seu território. A este fenômeno Antonio Mendonça chamou de

protestantismo de imigração. Ele é marcado pela formação de

comunidades notadamente alemãs (luteranas) em vários pontos do país.

Outro tipo de protestantismo também encontrou lugar no Brasil do século

XIX. Impulsionadas pela transplantação do ideário dos benefícios do

“sonho americano” para a America Latina, em face de um modelo católico

colonizador deformado e fracassado, várias expedições missionárias

aportaram no Brasil oitocentista. De 1814 a 1821, chegaram batistas e

metodistas, por exemplo.15

Não obstante a esta movimentação propriamente religiosa, a abertura

dos portos à Inglaterra por parte do Império do Brasil propiciou a

instalação de serviços religiosos da Igreja Anglicana nas áreas portuárias

brasileiras. O Tratado do Comércio e Navegação, que data de 19 de

fevereiro de 1810, em seu artigo XII conferia liberdade de culto aos

ingleses e a tolerância religiosa a outros não-católicos residentes no

Brasil.16

Sublinho aqui dois fragmentos do referido Tratado de Navegação e

Comércio e é importante notar que o texto traz consigo aspirações de

convivência pacífica entre os diferentes grupos religiosos presentes no

Brasil do século XIX, mas traz também, é claro, apontamentos prescritivos

caso o disposto não viesse a ser cumprido. Diversidade e tensões religiosas

à vista!

Sua alteza Real, o Príncipe Regente de Portugal,

declara, e se obriga no seu próprio nome, e no de

seus herdeiros e sucessores, que os vassalos de sua

majestade Britânica, residentes nos seus territórios e

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domínios, não serão perturbados, inquietados,

perseguidos, ou molestados por causa da sua

religião, mas antes terão perfeita liberdade de

consciência e licença para assistirem e celebrarem o

serviço divino em honra do Todo-Poderoso Deus,

que sua alteza Real agora, e para sempre

graciosamente lhes concede a permissão de

edificarem e manterem dentro dos seus domínios.

[...]

Ademais, estipulou-se que nem os vassalos da Grâ-

Betânha, nem quaisquer outros estrangeiros de

comunhão diferente da religião dominante nos

domínios de Portugal serão perseguidos, ou

inquietados por matérias de consciência, tanto no

que concerne as suas pessoas como suas

propriedades, enquanto se conduzirem com ordem,

decência e moralidade e de modo adequado aos

usos do País, e ao seu estabelecimento religioso e

político.

A chegada do pentecostalismo ao Brasil é um pouco mais tardia e está

intimamente ligada à fundação da maior e mais popular igreja pentecostal

brasileira, a Igreja Assembleia de Deus, em 1911 e à fundação da Igreja

Congregação Cristã do Brasil, 1910.17 Ficarei restrito à Igreja Assembleia

de Deus. Suas questões históricas são ainda muito controversas, no

entanto é possível reconstituir mais exemplarmente o movimento

pentecostal brasileiro a partir da chegada de dois suecos a Belém do Pará,

Estado da região Norte do Brasil, em 1910: a) Gunnar Vingren, que havia

sido frequentador da Missão da Avenida Norte em Chicago cujo pastor,

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Willian Durham, era frequentador dos cultos promovidos por Seymour e

b) Daniel Berg.

Inicialmente vinculados à primeira Igreja Batista de Belém do Pará e

posteriormente expulsos em razão das inclinações ao culto pentecostal, os

dois missionários suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg, em 1911,

começam um trabalho pentecostal com o nome de Missão Apostólica da Fé.

O nome Assembleia de Deus foi adotado oficialmente somente em 1918.

Nascia, portanto, uma igreja pentecostal, liderada por missionários suecos

e cujos membros eram notadamente pobres, negros, nordestinos e

mamelucos, sua grande maioria trabalhadores da extração de látex no

Norte brasileiro, auge da exportação da borracha para o mundo. A

Assembleia de Deus, de 1911 a 1923, apresenta vertiginosa expansão, pois

já marcava presença em 10 Estados brasileiros (Pará, Paraíba, Rio Grande

do Norte, Ceará, Amazonas, Alagoas, Bahia, Rio de Janeiro, Espírito Santo

e São Paulo).18

Versão da Igreja Batista de Belém sobre a expulsão de Daniel Berg e

Gunnar Vingren:

Em abril de 1911, aportavam a Belém dois senhores

suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg dizendo-se

batistas e chegaram mandar buscar suas cartas.

Logo procuraram o pastor Eurico Nelson seu

compatriota para pedirem abrigo algures. O porão

do templo lhes foi oferecido e lá se ficaram

aprendendo a língua para então ajudarem Nelson na

evangelização. Este bom missionário fez uma de

suas viagens ao Piauí, deixando esses homens na

igreja na doce esperança de que, mesmo sem

saberem falar, ajudariam o trabalho. Eis que pouco

depois, por ocasião das reuniões, começavam esses

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102 • Revista Estudos Amazônicos

batistas a tremer e a gritar sendo já, a esta altura,

imitados por alguns brasileiros. Que seria aquilo,

que espécie de nova religião seria essa? eram as

perguntas. Eles deram para responder que era

Batismo do Espírito Santo. Línguas e balelas tornaram

os cultos um horror. Nelson estava fora e à frente

dos trabalhos estava o jovem inexperiente,

Raimundo Nobre. Toda Igreja estava sendo

contaminada, pois muitos falavam as tais línguas,

menos os diáconos que não chegaram a fazer este

‘progresso’. Que fazer? O evangelismo ajudado por

Felí de Barros Rocha, organista da igreja, convocou

uma sessão extraordinária, declarou fora de ordem

os pentecostais que já constituíam a maioria, e com

a minoria excluiu os que se tinham desviado das

doutrinas. Eles procuravam fazer valer os seus

direitos de maioria, mas ficaram excluídos mesmo.

Ficou dizimada a igreja. Sem diáconos, uma

desolação, este fim de 1911. Foi o começo do

pentecostalismo no Brasil.19

Evolução do campo evangélico brasileiro: a questão

pentecostal

O multidenominacionalismo de igrejas é uma das principais

características do campo religioso brasileiro até hoje. Quando pensamos a

proliferação do pentecostalismo brasileiro temos de reconhecer o esforço

de Paul Freston, apesar de insuficiente, em mapear institucionalmente o

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Revista Estudos Amazônicos • 103

processo do desenvolvimento desse movimento religioso ao longo do

século XX. Freston dividiu o pentecostalismo brasileiro em três ondas.20

A primeira onda pentecostal, que vai de 1910 a 1950, seria marcada pela

constituição das Igrejas Congregação Cristã e Assembleia de Deus, cuja

ênfase teológica segue os pilares do movimento pentecostal. A segunda

onda pentecostal, segundo Freston, teve início nos anos 50, e é marcada

pela fragmentação do próprio campo pentecostal, processo que se dá em

razão da emergência de outras igrejas com grande representatividade:

Igreja do Evangelho Quadrangular (1951),21 Igreja Evangélica Pentecostal

O Brasil para Cristo (1955)22 e Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962).23

Destaque da segunda onda é dado para a Igreja do Evangelho

Quadrangular, porque a partir de seu ramal de evangelismo, a chamada

Cruzada Nacional de Evangelização (1953), inicia-se nova modalidade de

evangelização por utilizar o rádio, portas para o evangelismo de massa e

por centrar seu discurso teológico no dom espiritual da cura divina e por

utilizar tendas por toda extensão do Brasil para a realização de cultos dessa

natureza, o que daria a ela o título de igreja itinerante em seus momentos

iniciais. A terceira onda traz consigo a emergência de outras igrejas a partir

da segunda metade da década de 60. Nesta fase do pentecostalismo

brasileiro destacam-se a Igreja de Nova Vida,24 a Igreja Internacional da

Graça de Deus25 e a popular Igreja Universal do Reino de Deus, fundada

em 1977 pelo pastor e depois bispo consagrado, Edir Macedo.

As igrejas da terceira onda mantêm as bases fundamentais da teologia

pentecostal das igrejas da primeira e da segunda ondas (batismo no

Espírito Santo, glossolalia, cura divina, etc.), no entanto vão mais além,

porque incorporam outros elementos ao seu universo teológico. São eles:

1) papel da igreja centrado na batalha espiritual contra o Diabo e seus

demônios (espécie de Demonologia); 2) difusão de uma ação Deus voltada

à prosperidade material dos fieis (também chamada por sociólogos da

religião de teologia da prosperidade); 3) relativização (maior flexibilidade)

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104 • Revista Estudos Amazônicos

no cumprimento de aspectos morais voltados à santidade do crente

(liberação do uso de certos tipos de vestuário e embelezamento feminino,

etc.); 4) espetacularização de suas estruturas de culto e de rituais (abertura

à mídia televisiva).

Cabe dizer, no entanto, que aceito a noção de terceira onda muito mais

em razão do recorte histórico que ela promove do que propriamente em

razão de uma unidade entre a teologia das igrejas fundadas neste período

e, portanto, aproximo-me neste ponto da ótica do sociólogo Ricardo

Mariano. Só para ficar em exemplos, a Igreja Nacional do Senhor Jesus

Cristo26 (1994) é sabatista tal como a Igreja Adventista do Sétimo Dia. A

Igreja Evangélica Cristo Vive (1985)27 defende a teoria da predestinação

calvinista, opõe-se ao batismo nas águas e à guerra espiritual. A Igreja

Universal do Reino de Deus (1977), apesar de criticar e demonizar a

experiência extática provocada pelo Espírito Santo, também chamada de

“cair no espírito” – experiência muito comum em igrejas pentecostais de

periferia – ela introduziu em seus cultos a invocação de entidades dos

cultos afro-brasileiros e também a prática de exorcismo de demônios que

possuem os corpos dos seus fieis.28 Nota-se que nas igrejas da terceira

onda, portanto, existem elementos que apontam para uma falta de unidade

teológica entre elas, mesmo mantendo-se essencialmente pentecostais.29

A chave para uma possível identidade teológica entre as igrejas

pentecostais da terceira onda, além daquelas consagradas pelo movimento

pentecostal (batismo pelo Espírito Santo, etc.), mas que paradoxalmente

as distancia das duas outras ondas é a evidente “antiescatologia” produzida

em suas teologias. Isto é: o desprezo nutrido pelo mundo por parte das

igrejas da primeira onda é transformado em apego a este mundo e ao aqui

e agora. Se para determinadas igrejas da primeira e segunda ondas é

importante compreender que o mundo está perto do fim e que acabará de

modo iminente – daí a ênfase na santificação de seus fiéis –, para algumas

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Revista Estudos Amazônicos • 105

igrejas da terceira onda o fim do mundo pode esperar um pouco mais,

porque “Jesus vai trazer a vitória hoje, irmão[...]”.30 Portanto, a volta de

Cristo tão esperada pelos pentecostais da primeira onda é superada por

um Cristo que entende todos os problemas da vida cotidiana (desemprego,

separação, divórcio, doenças, compra de um bem etc.) trazendo para eles

a solução adequada e que por isso pode tardar em seu retorno, porque

talvez o mundo não seja tão ruim.

É importante ressaltar que o pentecostalismo das ondas veio

acompanhado não só de uma vertiginosa expansão quantitativa das igrejas

desse segmento religioso, mas também de uma expressiva pulverização

dessas igrejas. Eu ousaria dizer, na esteira de Freston, que assistimos hoje

no Brasil a uma quarta onda evangélico-pentecostal cuja característica

principal é não possuir uma instituição religiosa modelar. Não há na quarta

onda evangélico-pentecostal uma igreja referencial. Pulverização e

dissidência são os termos que melhor qualificam o momento atual vivido

pelo campo evangélico-pentecostal brasileiro, é o que defendo. As igrejas

pertencentes majoritariamente ao que chamo de quarta onda não possuem

uma preocupação em expandir-se institucionalmente, pois quase sempre

se constituem em denominações religiosas de um único templo. Minhas

intuições nascem não somente do que é observável em todo Brasil, mas

também da clara dificuldade que o IBGE teve em classificar o campo

religioso evangélico. Ao observar os dados do censo 2010, vemos

nitidamente que a maior igreja pentecostal é a Assembleia de Deus, igreja

da primeira onda segundo Freston. Mas há outro dado muito interessante

e que precisa ser mais bem questionado. Aquilo que o Censo 2010 chama

de Outras igrejas evangélicas de origem pentecostal somam 5,2 milhões de fiéis.

Ou seja: este número por pouco não representa a soma dos fiéis das três

maiores igrejas pentecostais do Brasil que estão abaixo da Igreja

Assembleia de Deus (são elas: Congregação Cristã, Quadrangular e

Universal do Reino de Deus). Se adicionarmos a este contingente de

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crentes o que o Censo 2010 nomeou de igreja Evangélica não determinada,

que são 9,2 milhões, teríamos algo em torno de 14,4 milhões de crentes.

A indeterminação institucional relacionada a estas igrejas, segundo o

Censo 2010, em minha visão, é promovida pelo crescente processo de

pulverização das igrejas nascidas dentro das ondas de Freston. A quarta

onda, o que proponho, é fluída, é rizomática, é hiper-heterogênea, não

possui uma denominação religiosa central, é desplástica e configura para

mim o futuro das igrejas no Brasil.

Quadro das Igrejas Evangélicas

Igreja População de

crentes

Igreja Assembleia de Deus 12.314.410

Evangélica não determinada 9.218.129

Outras igrejas Evangélicas de origem

pentecostal

5.267.029

Igreja Congregação Cristã do Brasil 2.289.634

Igreja Universal do Reino de Deus 1.873.243

Igreja Evangelho Quadrangular 1.808.389

Igreja Deus é Amor 845.383

Igreja Maranata 356.021

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Revista Estudos Amazônicos • 107

Igreja o Brasil para Cristo 196.665

Comunidade Evangélica 180.130

Igreja Casa da Benção 125.550

Igreja Nova Vida 90.568

Evangélica renovada não determinada 23.461

Fonte: Censo do IBGE, ano 2010. Tabela elaborada pelo autor do texto.

As quatro maiores populações pentecostais do Brasil

Igreja População de

crentes

Igreja Congregação Cristã do Brasil

2.289.634

Igreja Universal do Reino de Deus

1.873.243

Igreja Evangelho Quadrangular

1.808.389

Igreja Deus é Amor

845.383

Excluí, aqui, a Igreja Assembleia de Deus.

Fonte: Censo do IBGE, ano 2010. Tabela elaborada pelo autor do texto.

Considerações Finais

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108 • Revista Estudos Amazônicos

Gostaria de expressar minhas palavras finais de modo não sistemático.

No Brasil, o campo religioso pentecostal há tempos desperta certo fascínio

em pesquisadores provenientes de muitas áreas do conhecimento, tanto

que uma “indústria” de investigação científica em torno de certas igrejas

pentecostais é facilmente percebida nos ambientes acadêmicos. Mais do

que a compreensão desse fenômeno religioso em suas dimensões internas,

muitos estudos mantêm-se na linha da desmistificação e tentativa de

falseamento de suas estruturas, de seus discursos teológicos e de seus

pressupostos doutrinários. Em minha visão, alvo central desse conjunto

de desconfianças é a Igreja Universal do Reino de Deus, embora ocupe

apenas o terceiro lugar em termos de população de crentes. Em particular,

esta igreja incomoda sobremaneira parte da intelectualidade brasileira e

aqui arrisco dizer alguns aspectos que podem ser considerados a causa

desse incômodo para a com a IURD. São eles:

1) A dimensão espetacular e midiático-televisiva de seus cultos. A

crítica corrente no campo da sociologia da religião no Brasil se resume ao

uso manipulador da TV com a finalidade de propagação de espetáculos

religiosos e de televangelismo, cujo objetivo é dar maior notoriedade a

IURD, todavia criticam também o uso comercial da Rede Record por

parte da IURD.

2) Seu anticatolicismo, que foi radicalmente demonstrado durante o

incidente do chute na santa, episódio de repercussão nacional ocorrido em

12 de outubro de 1995, dia de Nossa Senhora de Aparecida, Padroeira do

Brasil, mas, sobretudo, o seu visceral ataque público às religiões de matriz

cultural africana (umbanda e candomblé), o que configura um cenário

também público de intolerância religiosa. Essa ênfase de sua teologia

combativa e de certo modo intolerante remonta ao ano de 1980, terceiro

ano de fundação da IURD, com a publicação do livro “Orixás, caboclos e

Guias: Deuses ou demônios?”, que foi dedicado “A todos os pais-de-santo

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Revista Estudos Amazônicos • 109

e mães-de-santo de nossa pátria”.31 Os aspectos significativos do projeto

artístico da capa do livro revelam uma “guerra” teológica com as religiões

de matriz africana, sobretudo. A capa traz uma fotografia de um possível

rito de iniciação, talvez ambientado o candomblé, onde a filha de santo, a

iniciada, parece beber sangue da cabeça de um animal, que lhe é oferecido

durante o suposto rito. Esse livro foi proibido pela justiça brasileira e

depois de liberado ganhou sucessivas reimpressões e edições e a partir da

décima quarta edição a capa do livro ganha outros elementos religiosos

provenientes do catolicismo e da umbanda. Esta deficiente leitura

semiótica que apresento parece sugerir uma abertura mais explícita de sua

“guerra” teológica para com as tradições africanas e sua evidente militância

anticatólica. Entre outras afirmações Edir Macedo expressa da seguinte

maneira a visão da IURD acerca das entidades das religiões afro-brasileiras

e também mediúnicas:

Na realidade, orixás, caboclos e guias, sejam lá quem

forem, tenham lá o nome mais bonito, não são

deuses.

Os exus, os preto-velhos, os espíritos de crianças,

os caboclos ou os ‘santos’ são espíritos malignos

sem corpo, ansiando por achar um meio para se

expressarem neste mundo, não podendo fazê-lo

antes de possuírem um corpo. Por isso, procuram o

corpo humano, dada a perfeição de funcionamento

dos seus sentidos.32

Mas por outro lado a IURD demonstra um aspecto pouco notado em

outras igrejas pentecostais brasileiras. Sua explícita dimensão sincrética

vista através da capacidade de assimilação de aspectos religiosos das

tradições religiosas de matriz cultural africana e católica, revela não apenas

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uma particularidade em sua articulação teológica, mas também sua

capacidade de dialogar com outras religiões. Ou seja: a IURD, num ciclo

dialético, repele e assimila ao mesmo tempo elementos valiosos de outras

religiões. A este fenômeno o antropólogo Ari Pedro Oro chamou

religiofagia (ato de comer a religião dos outros), pois a IURD se alimentaria

de elementos de outras crenças existentes no campo religioso brasileiro.

Para tanto, basta observamos alguns de seus aspectos ritualísticos como a

realização das “sessões de descarrego”, o que é análogo aos ritos de

banhos no candomblé e umbanda, seus rituais de “fechamento de corpo”

e a “corrente da mesa branca”. A IURD, de todas as igrejas pentecostais

no Brasil, pode ser considerada a que mais assimila determinados

elementos provenientes das tradições religiosas afro-brasileiras.

3) Sua vinculação com a política brasileira, o que suscita um debate

sobre religião na República brasileira; 4) o evidente êxito econômico de

seus líderes; 5) ser dona de um grande canal de televisão, a TV Record; 6)

Possuir um discurso teológico que dá centralidade a uma próspera vida na

terra e não no céu. Prova recente do fronte ofensivo em direção à IURD

se deu por ocasião do recém inaugurado Templo de Salomão, em São

Paulo. Os detratores da IURD não se dão conta do quão requentadas são

suas armas. No lugar de pôr em pauta o sentindo histórico-religioso da

construção do referido templo, seu resquício mítico e sua vinculação à

tradição judaico-cristã, assistimos tão somente à reprise da crítica ao uso

do dinheiro dos fiéis, dos problemas jurídicos junto aos órgãos públicos e

é claro a mais clássica de todas as críticas: reafirmar que a IURD não é

outra coisa senão uma máquina de fabricação de ilusões. Mas a

irracionalidade não ocupa, é claro, todas as mentes. Elio Gaspari, em artigo

escrito à Folha de São Paulo, em 03/08/2014, classificou o Templo de

Salomão como um “monumento da fé”, que há de se tornar não só um

símbolo da cidade de São Paulo, mas também da fé dos brasileiros.33

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Enfim, há muitos outros aspectos dessa igreja que despertam atenções

sobre ela, creio.

Gostaria também de uma permissão para arriscar algumas teses sobre

a atual situação do campo religioso brasileiro: a primeira procura relativizar

o mito da secularização tão defendido por uma ala das ciências humanas

positivas quando este assunto é o campo religioso brasileiro. Se a medida

do esfacelamento da religião no Brasil é sua contínua “descatolicização”,

o que dizer do seus mais 170 milhões de pessoas que professam alguma

fé? A segunda tem a ver com o crescimento do segmento evangélico-

pentecostal. A hegemonia político-religiosa da Igreja Católica ao longo de

séculos arrefeceu seu ideário de evangelização. Ou seja: a igreja católica,

descansada em seu “berço esplêndido” porque exercia boa parte do

controle político, religioso, moral e cultural no Brasil há séculos, não teve

força para reagir à “avalanche” missionária evangélica que data do século

XIX. A própria Teologia da Libertação, TdL, querendo ou não trouxe

certo aclaramento sobre o falido projeto evangelístico-civilizatório do

catolicismo ao propor o pobre, o empobrecimento e a situação de penúria

dos povos latino-americanos como eixos centrais de sua interpretação

teológica.

Portanto, o protestantismo pentecostal sacudiu o campo religioso

brasileiro e os resultados mais recentes desse fenômeno podem ser lidos

no último Censo do IBGE. A ênfase evangelizadora e conversionista do

cristianismo católico ganharam efeitos surpreendentes dentro do

cristianismo evangélico. Este assumiu com toda força aquilo que Cândido

Procópio Ferreira de Camargo classificou de religiões de caráter universal,

porque a conversão oferecida é para todas as pessoas. Esta classificação

difere o cristianismo evangélico das religiões que buscavam preservar

certo patrimônio étnico-cultural, o que favorece em maior grau a

vinculação de sujeitos que somente se autoidentificam socialmente ou

etnicamente com estas religiões. Os evangélicos pentecostais são

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112 • Revista Estudos Amazônicos

inveterados evangelistas. Esta pode ser uma afirmação categórica.

Vejamos, por exemplo, o que fez a Igreja Assembleia de Deus em 101

anos de existência mesmo não possuindo rede de televisão. Aliás, por

questões doutrinárias, durante muito tempo os crentes da igreja

Assembleia de Deus não podiam assistir à TV. Retomando, o “ide por

todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura”, presente no livro

Marcos 16,15, foi como nunca levado a sério pelo campo evangélico

brasileiro. Destaque, é claro, deve ser dado para os pentecostais. Devo

dizer também que a Igreja Congregação Cristã do Brasil, igreja que

pertence à primeira onda segundo Freston, poucos falam nisso, e segundo

o Censo de 2010, possui uma população de crentes maior que a da Igreja

Universal do Reino de Deus, embora muitos estejam enganosamente

convencidos do contrário. Pergunto-me porque não há lugar para

pesquisas sobre a segunda maior igreja pentecostal do Brasil? Em suma: o

naufrágio do catolicismo no Brasil é assistido ou medido em contraponto

à vertiginosa decolagem do campo evangélico-pentecostal.

Com licença e reconhecimento a Freston, trouxe à baila a ideia de uma

quarta onda enquanto possível futuro das igrejas no Brasil. Creio que

dados mais concretos talvez sustentem melhor o que tento afirmar.

Procurei para este momento alguns exemplos de denominações religiosas

isoladas para melhor dar forma ao que chamei de quarta onda. Tais

exemplos restringem-se à região metropolitana da cidade de Belém.

Fac-símile da quarta onda Belém

Casa Apostólica – Centro Cristão da Família

Catedral Marca da Promessa

Igreja do Avivamento Pleno

Igreja Assembleia de Deus Missionária

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Igreja da Paz

Igreja de Cristo – Ministério Apostólico Nova Terra

Igreja Evangélica Jesus Cristo é a Rocha

Igreja Jesus Cristo é o Maior

Igreja Pentecostal Jesus é Amor

Igreja Missionária Monte das Oliveiras

Ministério da Salvação

Templo Pentecostal Manancial do Avivamento

Obs.: O mapeamento dessas igrejas foi realizado pelo autor em janeiro de 2013.

Tabela elaborada pelo autor do texto.

Longe dos tipos ideais e conceitos rígidos imobilizadores,

normalmente vindos de uma ala da sociologia da religião, que fossilizam a

própria religião, o campo religioso brasileiro apresenta-se hoje em sua

máxima heterogeneidade. Fluxos, dissidências (onde a máxima “dividir é

multiplicar” é válida) e descaracterizações estão presentes em todas as

expressões religiosas no Brasil.

Por tudo isso, certo cristianismo um tanto ainda medieval,

ultrapassado, caquético e mesmo o dito cristianismo meio moderno e meio

medieval, aquele nascido de Lutero e que seguiu modernidade à dentro

criando dinastias de crentes de sangue azul sob o nome de protestantismo,

sem falar, é claro, do chamado cristianismo reformado, hoje, é uma

hipótese, que sobrevive porque ainda se ancora e/ou é facilmente

compreendido como fóssil ou ancestrais diretos dessa expressão mais

elevada, mais rica e mais plural da história dos movimentos religiosos

cristãos chamada pentecostalismo. Se não fosse por este último, e assim

eu o entrevejo, esses outros cristianismos seriam sem dúvida uma página

virada em nossa história.

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Artigo recebido em setembro de 2014.

Aprovado em dezembro de 2014.

NOTAS

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PPGCR) da Universidade do Estado do Pará (UEPA). 1 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2 Cândido Procópio Ferreira de Camargo, na clássica obra intitulada Católicos, protestantes, espíritas, por ele organizada no ambiente do CEBRAP, parecia um pouco perdido porque não dava como conciliáveis a rota assumida pelo Brasil em termos de atendimentos às exigências das transformações culturais da Europa e o mapa religioso brasileiro por ele encontrado por ocasião da publicação de sua pesquisa, em 1973. Esse é meu ponto de vista. Cf. CAMARGO, Cândido Procópio de Ferreira. (Org.). Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Editora Vozes, 1973. 3 Há um número incontável de expressões: as missas católicas, os cultos protestantes e evangélicos, os cultos pentecostais, as romarias de expressão Mariana, os cultos de êxtase das tradições afro-brasileiras, as pajelanças caboclas do Norte brasileiro, os cultos de cura dos pajés, os cultos aos santos, etc. 4 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2012, p. 10. 5 Antonio Gouvêa Mendonça se expressa da seguinte maneira: “O que hoje denominamos movimento pentecostal, ou simplesmente pentecostalismo, é uma intensa atividade no interior do campo religioso que, a partir da década de 1950, tornou-se difusa e confusa”. O adjetivo “confusa” refere-se à heterogeneidade do campo religioso brasileiro. Tal heterogeneidade é atribuída ao desenvolvimento dos movimentos pentecostais. Grifo meu. 6 MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Sindicato de mágicos: pentecostalismo e cura divina (desafio histórico para as Igrejas). In: Protestantes, pentecostais & ecumênicos. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2008, p. 143. 7 ARAUJO, Isael de. Dicionário do movimento pentecostal. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007, p. 553. 8 AUBRÉE, Marion. Les Orixás et le Sant-Esprit au secours de l’emploi, Cahier de Sciences Humaines, 23 (2), 1987, pp. 261-272. Grifo meu.

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9 BÍBLIA SAGRADA, Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. 10 BÍBLIA SAGRADA, Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. 11 BÍBLIA SAGRADA, Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. 12 BÍBLIA SAGRADA, Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. 13 ARAUJO, Isael de. Dicionário do movimento pentecostal. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007, pp. 118-119. Grifo meu. 14 CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio Editora e Universidade Metodista de São Paulo, 1997, p. 36. Uma observação deve ser feita: o pentecostalismo no século XX é majoritariamente um movimento de raízes culturais negras. ALENCAR, Gedeon Freire de. Assembleias brasileiras de Deus: teorização, história e tipologia (1911–2011). 2012. 285f. Tese de Doutorado defendida no Programa de Ciências da Religião da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Um pesquisador canadense, André Corten, afirma que tradicionalmente o pentecostalismo é considerado proveniente dos movimentos de avivamento metodista que ocorreram a partir da segunda metade do século XVIII, na Inglaterra e América do Norte, mas que este aspecto do movimento pentecostal não permite explicar totalmente sua topografia. Recorrendo a Iain MacRobert, autor do livro As raízes negras e o racismo branco do primeiro pentecostalismo nos EUA, Corten admite que a africanização do metodismo nos EUA é uma das consequências do encontro dos movimentos de avivamento desse grupo religioso com as igrejas negras. Essa nova onda metodista conhecera nos EUA um vivo impulso nas igrejas negras ao mesmo tempo em que potencializava a expressão de elementos das religiões africanas nestas igrejas. “Os clamores, respostas na forma de antífonas, cantos repetitivos, glossolalia, aplausos, batidas de pés, tripúdios, saltinhos, balanço do corpo, fazendo cair alternadamente o peso do corpo sobre um pé e sobre o outro e a dança” são os elementos que para Iain MacRobert reforçam antropologicamente a tese das influências das religiões da África ocidental e da cristandade escrava no pentecostalismo nascente. CORTEN, André. Os pobres e o Espírito Santo: o pentecostalismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 49. 15 MENDONÇA, Antonio Gouvea; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990. 16 REILY, Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1993, p. 40. Artigo XII do Tratado de Comércio e Navegação: Sua Alteza Real, o Príncipe Regente de Portugal, declara, e se obriga no seu próprio nome, e no de seus herdeiros e sucessores, que os vassalos de sua majestade Britânica, residentes nos seus territórios e domínios, não serão perturbados, inquietados, perseguidos, ou molestados por causa da sua religião, mas antes terão perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra do Todo-Poderoso Deus, que sua Alteza Real agora, e para sempre

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graciosamente lhes concede a permissão de edificarem e manterem dentro dos seus domínios. Contando, porém, que as sobreditas Igrejas e capelas sejam construídas de tal modo que externamente se assemelhem as casas de habitação; e também que o uso dos sinos não lhes sejam permitidos para o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço divino. Ademais, estipulou-se que nem os vassalos da Grã-Bretanha, nem quaisquer outros estrangeiros de comunhão diferente da religião dominante nos domínios de Portugal serão perseguidos, ou inquietados por matérias de consciência, tanto no que concerne as suas pessoas como suas propriedades, enquanto se conduzirem com ordem, decência e moralidade e de modo adequado aos usos do País, e ao seu estabelecimento religioso e político. Porém, se se provar que eles pregam ou declaram publicamente contra a religião Católica, ou que eles procuram fazer prosélitos (sic), ou conversões, as pessoas que assim delinqüirem poderão, manifestando-se o seu delito, ser mandada sair do País, em que a ofensa tiver sido cometida. E aqueles que em público se portarem sem respeito, ou com impropriedade para com os ritos e cerimônias da religião Católica dominante serão chamados perante a polícia civil e poderão ser castigados, ou com prisão em suas próprias casas. E se a ofensa for tão grave e tão enorme que perturbe a tranqüilidade pública e ponha em perigo a segurança das instituições da Igreja e do Estado estabelecidas pelas leis, as pessoas que tal ofensa fizerem, havendo a devida prova do fato, poderão ser mandadas sair dos domínios de Portugal. Permitir-se-á também enterrar em lugares para isso designados os vassalos de sua Majestade Britânica que morrerem nos territórios de sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, nem se perturbarão de modo algum, nem por qualquer motivo, os funerais, ou as sepulturas, dos mortos. Do mesmo modo, os vassalos de Portugal gozarão nos domínios de sua Majestade Britânica de uma perfeita e ilimitada liberdade de consciência em todas as matérias de religião, conforme o sistema de tolerância que se acha neles estabelecidos. Eles poderão livremente praticar os exercícios da sua religião pública, ou particularmente nas suas casas de habitação, ou nas capelas, e lugares de culto designados para este objetivo, sem que se lhes ponha o menor obstáculo, embaraço, ou dificuldade alguma, tanto agora como no futuro. 17 O fundador da Igreja Congregação Cristã do Brasil é o italiano Luis Francescon. Tal como os missionários suecos, Luis Francescon emigrou para Chicago, EUA, onde também teve contato com Durham. Depois de passar por Buenos Aires em 1909, chega em São Paulo, em 1910, onde inicia sua obra pentecostal. 18 ALENCAR, Gedeon. Assembleias de Deus: origem, implantação e militância. São Paulo: Arte Editorial, 2010, p. 66. 19 MESQUITA, Antônio. História dos Batistas do Brasil de 1907 a 1935. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1940, pp. 136-137. Vol. II. 20 FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao Impeachement. 1993. 303f. Tese de doutorado defendida no Programa de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. 21 Fundada em 1951, em São Paulo, pelo missionário Harold Edwin Willians.

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22 Fundada em 1955, em São Paulo, por Manoel de Mello e Silva. 23 Fundada em 1962, em São Paulo, pelo missionário David Miranda. 24 Fundada em 1960, no Rio de Janeiro, pelo missionário canadense Walter Robert McAlister. 25 Fundada em 1980, no Rio de Janeiro, por Romildo Ribeiro Soares. 26 Fundada pela pastora e agora apóstola Valnice Milhomens. 27 Fundada pelo apóstolo Miguel Ângelo. 28 MARIANO. Op, cit, p. 36. 29 Na análise de Beatriz Muniz de Souza, ao focalizar o seu trabalho de pesquisa nas igrejas pentecostais da primeira e segunda ondas, o núcleo doutrinário permaneceu inalterado em qualquer das ramificações pentecostais. 30 Expressão frequentemente pronunciada pelos crentes pentecostais em suas pregações. 31 Texto da dedicatória escrita para a primeira edição do livro em 1980. 32 MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro: Universal Produções, 1980, p. 17. 33 GASPARI, Elio. O Templo de Salomão é um monumento da fé. In: Folha de São Paulo, 03 de agosto de 2014.