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ARTE DA SEDUÇÃO MULTICULTURAL NO GOVERNO DO CURRÍCULO Lisete Bampi (UFRGS) O governo é uma forma insidiosa de arte da sedução. Como arte, o governo inventa, molda, esculpe e fabrica seus objetos a seu modo. Como arte da sedução, o governo faz com que seus sujeitos acreditem que são e continuarão sendo sujeitos de suas próprias ações. Como sedução, o governo não consente, nem coage, não liberta, nem domina. Mas, fica nos interstícios do consenso e da coerção, da liberdade e da dominação. Como arte, o fascínio do governo está em não poder pensá-lo de outra maneira senão como jogo de sedução. Como sedução, o governo não é um fim, mas um conjunto estratégico e aberto que indica as formas por meio das quais se pode direcionar e moldar a conduta de si e dos outros. O governo é, portanto, um jogo que não cessa de continuar. Neste jogo, não há vencidos, nem vencedores. Não há guerras, lutas, ou batalhas. Há exercícios estratégicos, técnicas, táticas, manobras e funcionamentos. Neste jogo, é preciso seduzir para governar. Neste trabalho, a partir da perspectiva foucaultiana do governo, problematizo o jogo da sedução multicultural. Mostro como a Etnomatemática produz subjetividades e currículos multiculturais através do governo dos etnosaberes. Para operacionalizar a pesquisa, cujos resultados apresento neste artigo, concebi a Etnomatemática como um dispositivo de governo multicultural. Por operar com as ferramentas

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Page 1: ARTE DA SEDUÇÃO MULTICULTURAL NO GOVERNO DO

ARTE DA SEDUÇÃO MULTICULTURAL NO GOVERNO DO CURRÍCULO

Lisete Bampi (UFRGS)

O governo é uma forma insidiosa de arte da sedução. Como arte, o governo

inventa, molda, esculpe e fabrica seus objetos a seu modo. Como arte da sedução, o

governo faz com que seus sujeitos acreditem que são e continuarão sendo sujeitos de

suas próprias ações. Como sedução, o governo não consente, nem coage, não liberta,

nem domina. Mas, fica nos interstícios do consenso e da coerção, da liberdade e da

dominação. Como arte, o fascínio do governo está em não poder pensá-lo de outra

maneira senão como jogo de sedução.

Como sedução, o governo não é um fim, mas um conjunto estratégico e aberto

que indica as formas por meio das quais se pode direcionar e moldar a conduta de si e

dos outros. O governo é, portanto, um jogo que não cessa de continuar. Neste jogo, não

há vencidos, nem vencedores. Não há guerras, lutas, ou batalhas. Há exercícios

estratégicos, técnicas, táticas, manobras e funcionamentos. Neste jogo, é preciso seduzir

para governar.

Neste trabalho, a partir da perspectiva foucaultiana do governo, problematizo o

jogo da sedução multicultural. Mostro como a Etnomatemática produz subjetividades e

currículos multiculturais através do governo dos etnosaberes. Para operacionalizar a

pesquisa, cujos resultados apresento neste artigo, concebi a Etnomatemática como um

dispositivo de governo multicultural. Por operar com as ferramentas foucaultianas de

tecnologias de governo e racionalidades políticas, atento para as formas de saber

orientadas para conduzir e moldar as condutas dos indivíduos, para as que capacitam os

indivíduos a aplicar poder sobre si, aquelas que se destinam às suas próprias condutas

(cf. Foucault 1995a, 1995c, 1997).

Nesse jogo da sedução multicultural, mostro como o governo dos saberes locais

é central para que o dispositivo etnomatemático acione tecnologias na constituição de

ações e capacidades multiculturais. Mostro como a imbricação de uma multiplicidade de

tecnologias de governo dos saberes auto-estima, inclusão, respeito, aprendizagem,

consciência, passado cultural, dentre outras , articuladas a uma racionalidade

etnomatemática, molda currículos multiculturais.

Um componente chave do governo etnomatemático, como arte da sedução, é a

invenção de um conjunto de tecnologias que identificam suas metas com as

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necessidades, desejos e anseios de seus sujeitos. Pode-se dizer que a Etnomatemática é

uma arte no sentido que inventa e identifica a existência de uma multiplicidade de

caminhos que possibilitam fins governamentais. É uma arte de governo não porque

reconheça que há limites nas intervenções estatais, mas porque reconhece que o que é

tido como não pertencente ao domínio do Estado é condição indispensável para a

operacionalização de suas tecnologias multiculturais. Arte porque envolve a invenção

de técnicas que possibilitam governar de modo multicultural. Ao delinear nossas

relações com os outros e com nós mesmos, inventa-nos à sua maneira.

1 Discurso multicultural

Atualmente, questões relacionadas à diversidade cultural vêm ocupando um

considerável espaço em debates educacionais, cursos de formação docente, congressos,

encontros científicos e fóruns sociais. Os discursos multiculturais em educação

objetivam a valorização de práticas que possibilitem dar voz aos grupos oprimidos e

igualar oportunidades para aqueles que são culturalmente diferentes. Afirmam

identidades plurais, em nome de justiça social, de uma sociedade emancipada,

democrática e cidadã. A idéia de que estamos imersos em sociedades plurais, nas quais

vem sendo enfatizada a diversidade cultural, étnica, racial e de gênero, tem suscitado a

emergência de propostas educacionais que preparem os sujeitos para atuar em tais

sociedades. Começam a surgir em democracias liberais, documentos curriculares

oficiais, como os PCNs que trazem, como uma de suas metas, a valorização da

diversidade cultural, expressa em um de seus Temas Transversais, a Pluralidade

Cultural.

Essas preocupações com a diversidade cultural têm suscitado, também, o

interesse de especialistas em recursos humanos no momento de recrutar e selecionar

funcionários para atuarem em empresas: “O futuro das empresas está na diversidade.

Incluir grupos sociais, com suas múltiplas culturas, visões de mundo e atitudes, implica

em vencer preconceitos no ambiente de trabalho e no âmbito das relações empresariais”.

Assim inicia a matéria do encarte Empregos & Carreiras, do jornal Zero Hora (2000,

p.1-2), que tem como título Espaço para a diversidade. Além disso, “esta nova visão de

qualidade profissional” apresentada pelo Instituto Ethos de Empresas e

Responsabilidade Social, em seu manual Como as empresas podem (e devem) valorizar

a diversidade está se “constituindo, aos poucos, como uma nova tendência na área de

recursos humanos” (ib., p.1).

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No campo da Educação Matemática, a relevância de problematizar questões

relacionadas com a diferença cultural e com a afirmação de identidades plurais vem

sendo expressa pelo discurso da Etnomatemática. Dentre as suas preocupações, a

Etnomatemática destaca a importância de garantir a representação das identidades

culturais na escola, no currículo e em práticas de movimentos sociais. O discurso da

Etnomatemática propõe-se a desenvolver práticas educacionais que contribuam para a

constituição de um currículo crítico, democrático, popular, alternativo e multicultural.

Tudo isso será viabilizado por práticas pedagógico-culturais que resgatem e valorizem

as culturas locais, favoreçam a cidadania, “fortaleçam o poder” dos grupos excluídos,

dentre outros propósitos. Estas metas são expressas por um grande número de

professores e professoras, nas mais diversas circunstâncias e situações, desde em

congressos nacionais e internacionais, reuniões científicas, salas de aula das

universidades, cursos, artigos de revistas especializadas, quanto no cotidiano escolar.

Nesta arte da inclusão, esta pedagogia multicultural busca contribuir para uma

educação vinculada aos interesses de movimentos sociais, às lutas políticas pela

afirmação das identidades destes grupos, aos sonhos de uma sociedade em que

injustiças, discriminações e desigualdades não se façam presentes. Mas o que é construir

um trabalho pedagógico que tenha em seu centro os saberes e as práticas culturais dos

índios do alto Xingu, dos trabalhadores sem-terra, dos africanos, dos palestinos, dos

moradores da Vila da Vila Nogueira, em São Paulo, por exemplo, se não moldar,

regular, incluir as etnoculturas em uma arte de governar?

Para mostrar como o dispositivo etnomatemático molda os saberes curriculares

foi necessário empreender uma analítica em termos de tecnologias. As questões a seguir

nortearam a pesquisa da qual resultou o presente trabalho: que tecnologias de governo

são objetivadas pelo que a Etnomatemática diz acerca do modo como os indivíduos

devem se comportar, sentir, desejar, ser e agir, nas salas de aula, na escola e na

sociedade? Como tais tecnologias operacionalizam uma racionalidade para governar os

saberes curriculares? Como essa racionalidade articula-se a tecnologias de governo dos

outros e de si, promovendo formas específicas de subjetividades?

Tendo em vista a produtividade do discurso da Etnomatemática, no cenário

educacional, nacional e internacional, analisei as publicações do ISGEm

International Study Group on Ethnomathematics (1985-1999), cuja Newsletter divulga,

semestralmente, artigos, teses, dissertações, livros e pesquisas produzidas na área de

Etnomatemática. Assim, essas produções, referidas em tais publicações, também

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constituiram-se em material de análise. As publicações do ISGEm mostram a forte

penetração desse discurso não somente no Brasil , como em outros países: Estados

Unidos, África, Austrália, Palestina, entre outros.

2 Dispositivo multicultural

As práticas etnomatemáticas estão inscritas em jogos de poder-saber-verdade.

Na conjunção de vários tipos de formas e relações de saberes, condições e regras

estabelecem-se, sustentando relações de poder e sancionando verdades. Em meio a essa

conjunção, entre o dito e o não dito, entrelaçam-se elementos heterogêneos produzindo

tecnologias multiculturais que constituem um campo de racionalidade que possibilita

governar etnomatematicamente. É nesta conjunção que tecnologias multiculturais são

acionadas na produção de capacidades etnomatemáticas.

O dispositivo etnomatemático faz funcionar um conjunto variado de técnicas em

que elementos discursivos ou não operam na constituição de campos de

racionalidades etnomatemáticas. Dentre os elementos que constituem o dispositivo

etnomatemático, estabelece-se um determinado tipo de jogo, no qual ocorrem diferentes

e peculiares mudanças de posição mudanças que modificam seus objetivos

multiculturais (cf. Foucault, 1995c; Deleuze, 1990).

Antes de mais nada, analisar a Etnomatemática como dispositivo requer

empreender uma analítica em termos de tecnologias. Uma analítica em que o cotidiano,

as histórias de vida, a memória cultural, os sentimentos e os anseios humanos podem ser

vistos como elementos que fazem funcionar o dispositivo etnomatemático. Por

conseguinte, o trabalho de análise enfatiza práticas e técnicas que o governo

etnomatemático aciona através do que denomino de tecnologias de multiculturalismo:

técnicas que constituem, moldam, regulam as condutas, instituindo modos de saber,

formas de agir, efeitos de verdade acerca de práticas pedagógicas, educacionais e

curriculares. Formas pelas quais os humanos são conduzidos e capacitados a agir de um

certo modo. Trata-se de racionalidades que, articuladas ao governo etnomatemático,

põem em funcionamento técnicas multiculturais pelas quais as condutas dos indivíduos

e dos grupos são moldadas, esculpidas e direcionadas.

Uma analítica em termos de tecnologias, implica uma análise do que Foucault

chama de racionalidades políticas, ou seja: práticas para formular e justificar esquemas

idealizados que representam a realidade, analisando-a e retificando-a, de tal forma que

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ela se torne pensável e ajustada a um programa político. Essas racionalidades possuem

uma forma moral, por afetarem questões como a distribuição de tarefas entre

autoridades distintas e ideais a que o governo deve dedicar-se. As racionalidades

políticas têm também um caráter epistemológico, visto que incorporam noções

específicas dos objetos e dos sujeitos a serem governados (cf. Rose, 1996a).

Além disso, racionalidades políticas consistem em uma espécie de

racionalidade de governo vinculada ao pensamento sobre a direção das condutas de si e

dos outros. Trata-se de caminhos relativamente sistemáticos de governo, que podem

incluir formas de representação dos campos a serem governados e dos fins a serem

alcançados. Racionalidades políticas de governo podem ser conhecimentos teóricos,

programas particulares, formas de práticas de know-how, ou estratégias (cf. Dean,

1999).

O termo racional diz respeito a qualquer forma calculada de racionalidade sobre

como governar. A partir de Foucault, aprendemos que há racionalidades investidas em

modos distintos de definir propósitos e empregar conhecimentos. A noção de governo

está implicada no modo como o indivíduo questiona sua própria conduta com o

propósito de governar-se melhor. Por isso, a governamentalidade compreende não

somente práticas de governo dos outros, mas também práticas de si (cf. Foucault, 1988,

1993, 1995b).

Por outro lado, o que Foucault descreve como processo de governamentalização

está diretamente vinculado ao papel dos experts na produção e administração de uma

variedade de tecnologias de governo da subjetividade. Para operacionalizar, então, este

trabalho, também aproveitei produções de autores/as, tais como: Burchell (1996),

Cruikshank (1999, 1993), Dean (1998, 1999), Gordon (1991), Hunter (1994), Miller &

Rose (1993), Rose (1991, 1996a, 1996b, 1996c, 1997, 1998).

3 Produção de currículos multiculturais

A racionalidade política etnomatemática, em seus propósitos de

“multiculturalizar o currículo”, propõe que essa meta seja alcançada de forma natural, já

que “grupos culturais diferentes têm uma maneira diferente de proceder em seus

esquemas lógicos. Fatores de natureza lingüística, religiosa, moral e, quem sabe, mesmo

genética têm a ver com isso”. Em virtude disso, enfatiza-se a necessidade de não

“ignorar” e de “respeitar essas particularidades quando do ingresso da criança na

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escola”. Para tanto, tal racionalidade deverá ser ajustada a técnicas que viabilizem o

respeito de “todo o passado cultural da criança” (D’Ambrósio, 1993d, p.17).

Na medida em que promove atitudes de respeito, o governo etnomatemático

capacita os indivíduos a terem “confiança em seu próprio conhecimento” e proporciona-

lhes “uma certa dignidade cultural”. Esses sentimentos de “confiança” e “dignidade”

são constituídos a partir do momento que os indivíduos vêm que “suas origens

culturais” são “aceitas por seu mestre”. Passam, então, a “saber que esse respeito se

estende também à sua família e à sua cultura”. Mas muito mais do que isso, “a

utilização de conhecimentos” que as crianças “e seus familiares manejam” proporciona-

lhes, também, um sentimento de “segurança”. Por esse sentimento, a criança reconhece

“que tem valor por si mesma e por suas decisões. É o processo de liberação do

indivíduo que está em jogo” (ib., p.17).

O governo etnomatemático capitaliza-se duplamente ao fazer do currículo um

campo de intervenção multicultural. No processo de regulação curricular, o que

interessa à Etnomatemática é um saber que possibilite conhecer e identificar aqueles que

serão governados. Ao mesmo tempo que a multiculturalização do currículo propicia

respeito, dignidade e confiança às etnias excluídas por meio do resgate dos saberes

subordinados, a capitalização destes saberes assegura a regulação deste currículo

multicultural. O governo multicultural depende de formas de saber que definem e

determinam as condutas a serem governadas. Ainda mais, delimitam o que pode ser

pensado sobre essas condutas prescrevendo, as maneiras mais eficientes de moldá-las e

conduzi-las.

Para sua operacionalização, o governo etnomatemático, acionado pelas

tecnologias multiculturais etnomatemáticas, necessita de um saber positivo, que forneça

dados concretos acerca de quem e do que deve ser governado. É preciso conhecer

formas de raciocínio dos indivíduos, dos grupos e comunidades, identificar seus

problemas, para que, então, seja possível projetar soluções. Daí a importância das

“técnicas etnográficas”, tais como: diários de campo, observação participante,

entrevistas e histórias de vidas (Knijnik, 1998, p.272). Essas técnicas permitem “revelar

a percepção que os indivíduos têm de si e do grupo” (Monteiro, 1998, p.12).

3.1 Com respeito, confiança e dignidade

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Tendo como meta produzir currículos multiculturais, o governo etnomatemático

aponta que os descendentes de “grupos étnicos que viveram por mais tempo nas

Américas” “e que estão sendo mais oprimidos” tais como “as pessoas nativas e os

africanos que foram trazidos ao novo mundo para servir de escravos nas plantações de

europeus, estão determinados a valorizar a cultura herdada”. Por meio da tecnologia da

extensão e de estratégias que conduzem ao respeito da própria cultura, o governo

etnomatemático sugere que não somente “as crianças dos grupos minoritários”, mas

todos de uma forma geral, “se beneficiam com a inclusão de tópicos relacionados com

sua herança. Os estudantes têm que aprender a respeitar e a apreciar as contribuições

das pessoas em todas as partes do mundo”. Daí, a importância dos educadores estarem

“começando a reconhecer o valor de incutir na Matemática as realizações de todas as

culturas do mundo para muticulturalizar o currículo” (Zaslavsky, 1990, p.2).

Para atingir a meta de multiculturalização do currículo, o governo

etnomatemático vale-se de técnicas de conscientização articuladas a sentimentos

humanos. Destaca que a “introdução de perspectivas multiculturais no currículo de

Matemática” tem “muitos pontos a seu favor”, tais como: “os estudantes tornam-se

conscientes do papel da Matemática”; “eles realizam práticas matemáticas surgidas das

necessidades e interesses das pessoas”; “aprendem a apreciar as contribuições de

culturas diferentes das suas e aceitam com orgulho sua própria herança” (ib., p.3).

Nesta arte de governar o currículo por de meio estratégias pedagógicas que

viabilizem a inclusão dos saberes locais, o governo etnomatemático transfere problemas

da pedagogia para questões internas aos indivíduos através de técnicas que visem

aumentar “sua auto-estima” e estimular “seu interesse na Matemática”. Ao articular

essas técnicas com atividades pedagógicas, o dispositivo etnomatemático possibilita a

“uma criança de onze anos de idade” escrever em “sua avaliação de atividades de sala

de aula, baseada na cultura africana”, o seguinte: “como você provavelmente não sabe,

eu tenho um sentimento muito grande com minha gente negra e a Matemática têm

tornado meus sentimentos mais apropriados” (ib., p.3).

A aprendizagem matemática é administrada ao imbricar-se com técnicas de

regulação dos sentimentos de “orgulho” cultural dos indivíduos e grupos. Quando o

governo etnomatemático enfatiza a necessidade de incluir no currículo a cultura

africana, é produzido um campo de inteligibilidade a partir do qual práticas

educacionais são pensadas e operacionalizadas. Na medida em que os indivíduos

expressam seus “sentimentos do coração” e sua crença de que a aprendizagem

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matemática aciona tais sentimentos, condutas desejáveis são constituídas e

subjetividades as quais se pode aspirar são produzidas. As condições para a produção de

sujeitos desejáveis a criança que expressa seus sentimentos, que possui auto-estima e

orgulho culturais são sempre conduzidas por meio de técnicas que simultaneamente

identificam e distinguem.

Em seus propósitos de preservar as etnoculturas, o governo etnomatemático

constitui tecnologias que, articuladas a uma racionalidade multicultural, produzem um

conjunto de saberes e metas de si. As tecnologias de “conhecer a sua própria cultura” e

de “respeitar todas as culturas do mundo”, envolvem uma produção de práticas pelas

quais professores e alunos são simultaneamente regulados. Através da constituição da

sua auto-estima e do orgulho cultural dos indivíduos é fabricada uma relação de si para

consigo. Essa relação, acima de tudo, torna-se objeto de intervenção do governo

etnomatemático.

A multiculturalização do currículo é apresentada pelo governo etnomatemático

como uma solução para “o fracasso educacional de crianças de minorias étnicas em

países industrializados”. Tal argumentação “tem persuadido alguns educadores da

necessidade de incorporar perspectivas multiculturais no programa de Matemática”. Os

educadores matemáticos de “países africanos e em desenvolvimento”, passaram,

portanto, a reconhecer “a necessidade de multiculturalizar o currículo”. Acreditam eles

que “todas as crianças” serão “beneficiadas por tal expansão do currículo”, aprendendo

que as “práticas matemáticas surgiram das verdadeiras necessidades e desejos de todas

as sociedades”. Os alunos terão, pois, “a oportunidade de aprender sobre as

contribuições matemáticas feitas por mulheres e por sociedades do Terceiro Mundo,

uma área esquecida da Matemática” (Zaslavsky, 1989, p.5).

Ao declarar que é preciso resgatar as culturas subordinadas para, dentre outras

aspirações multiculturais, garantir o respeito e a confiança dessas minorias, o governo

etnomatemático aciona seus sentimentos e intervém neles. Faz com que seus sujeitos

sintam-se “orgulhosos de sua própria herança cultural”, e, ao mesmo tempo

familiarizem-se com as culturas de outras sociedades, aprendendo a respeitá-las. Para

que esse governo da conduta multicultural se operacionalize, faz-se necessário incluir as

minorias por meio do resgate e do respeito aos seus saberes, garantindo-lhes visibilidade

e participação social (ib., 1989, p.5).

Nesse processo de produção de currículos multiculturais, tornar visível as

diferentes etnias, por meio do governo dos saberes curriculares, é estratégia central para

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que tecnologias multiculturais sejam acionadas. O governo etnomatemático ressalta que,

nos Estados Unidos, por exemplo, “após os anos 60, tem crescido a visibilidade e a

participação de muitos membros de grupos minoritários na vida diária”. Ao mesmo

tempo, acrescenta que um novo conhecimento tem se desenvolvido: “no lugar de uma

‘panela para fundir’, os Estados Unidos passou a ser um ‘bandeja de salada’ de enorme

diversidade”. Ressalta ele que o “currículo matemático oferece aos educadores uma

excelente oportunidade de ganhar êxito ao ensinar aos grupos de diversas etnias” (Orey,

1989, p.5).

Na constituição do currículo como um campo de intervenção multicultural, o

dispositivo etnomatemático põe em funcionamento técnicas de governo da dignidade

humana, de respeito pela diversidade, dos sentimentos, dentre outras que possibilitam

controlar e moldar as diferenças culturais. Ao mesmo tempo que o governo

etnomatemático insere tais diferenças no currículo, as produz e por elas é produzido. Ao

operacionalizar uma racionalidade política de governo, o dispositivo etnomatemático

fabrica técnicas que objetivam formas de representação do campo curricular a ser

governado.

3.2 Favorecimento da aprendizagem

Maximizando a própria cultura, mediante a constituição de “uma necessidade

de multiculturalizar o currículo”, o governo etnomatemático confere aos indivíduos e

grupos certas capacidades como resultados de escolhas pessoais. Essa racionalidade

supõe um “eu-multicultural” que precisa compreender sua cultura, respeitá-la e

valorizá-la. Esse “eu” deve procurar “realizar-se a si mesmo” em uma variedade de

contextos: na sociedade, nas escolas, comunidades, famílias. Educar os estudantes em

termos de atividades multiculturais propicia que novas relações de poder se

estabeleçam, já que novas capacidades são moldadas. Os “eus-multiculturais” são

conduzidos por técnicas que os incitam a valorizar seus etnosaberes e que os capacitam

a aprender matemática de uma forma criativa e multicultural.

As práticas pedagógicas etnomatemáticas não são impostas. São selecionadas

porque os indivíduos e os grupos “consideram-nas como fundamentais para o exercício

de suas lides laborais” e “relevantes em seu cotidiano da luta pela sobrevivência”. O

governo etnomatemático não é arbitrário. Ele leva em consideração que “todo o grupo

social, mesmo dominado, tende a organizar suas experiências como um universo

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coerente”, o que consiste, “em termos de atividades pedagógicas”, na necessidade de

valorizar “o saber popular”. Daí, a “importância de seu resgate, decodificação e

análise”. Ao resgatar os saberes populares, o governo etnomatemático não constrange,

nem coage. Transforma tais saberes em instrumentos que “viabilizem ao grupo social”

que os detém “a possibilidade de, em cada contexto específico, optar por sua utilização,

quando lhe parecer conveniente” (Knijnik, 1996, p.106-110).

Nessa arte de governo dos saberes locais, o dispositivo etnomatemático aciona

tecnologias que controlam os indivíduos por meio da condução de suas escolhas

reguladas. As atividades pedagógicas multiculturais constituem-se em técnicas centrais

para que a racionalidade etnomatemática possa intervir nas escolhas individuais e

coletivas. Essas atividades constituem-se e são constituídas com base nos “depoimentos

das/os alunos” sobre o trabalho que desenvolvem “a partir de necessidades específicas

de suas comunidades”, tais como a de “atividades governamentais” que contribuam para

“qualificação do processo produtivo” no qual estão envolvidos. Assim, tal racionalidade

extende seu domínio ao obter um saber por meio de estratégias pedagógicas que

possibilitam “um duplo movimento: o da comunidade para a escola (na medida em que

o conhecimento escolar foi produzido tendo como base a realidade do assentamento)”, e

“um movimento inverso (na medida em que o trabalho realizado na escola repercutiu na

vida do assentamento)” (id., 1998a, p.281-282).

O governo das “necessidades” e das “escolhas” não se restringe somente aos

indivíduos. Esse governo incita e adapta tais “escolhas” e “necessidades” que passam a

ser vistas como pertencentes a um grupo e a uma comunidade. O dispositivo

etnomatemático constitui práticas que possibilitem “a participação efetiva da

comunidade” nos processos pedagógicos. O centro dessas práticas é “a atividade

produtiva principal da comunidade”. As atividades, que se constituem “no ponto de

partida para o delineamento” de propostas pedagógicas, têm como metas envolver os

indivíduos, as escolas e comunidades na “construção de um trabalho etnomatemático”

que não se restrinja somente “ao âmbito escolar”. Consequentemente, tais atividades,

não reforçam “unicamente os modos hegemônicos de aprender e ensinar Matemática”,

mas estão vinculadas “aos interesses dos grupos sociais” excluídos (ib., p.282).

Uma perspectiva multicultural sobre a instrução matemática, tal como a indicada

pelo governo etnomatemático, “não deve chegar a ser um tema isolado que se junta ao

presente currículo”. Deve ser uma “perspectiva filosófica” que funciona como um

“filtro” que “deve assegurar que todos os estudantes, sejam de contextos majoritário ou

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minoritário, recebam as melhores bases matemáticas possíveis”. Essa perspectiva

justifica-se pela crença de que “o conhecimento requerido para o controle do

desenvolvimento econômico e científico” em uma sociedade “não é consistente nem

com os valores de um sistema democrático justo nem com suas necessidades

econômicas”. Para que os estudantes possam se envolver “em todas as mudanças e

desafios da sociedade”, é importante que eles tornem-se “hábeis” no uso da Matemática.

Essa habilidade será efetivada por meio da multiculturalização do currículo (Orey,1989,

p.7).

Nesse governo multicultural do currículo, o sucesso e o fracasso escolar vêm

sendo traduzidos em congruência com “um amplo reconhecimento da necessidade de

reavaliar a experiência escolar à luz do fracasso educacional de muitas crianças das

comunidades étnicas minoritárias”. O governo etnomatemático aponta que “tem havido

pressões em muitos países para que as escolas reflitam em seus currículos a natureza

multicultural de suas sociedades”, tal como “a Etnomatemática vê a Matemática escolar

como o processo de introduzir as pessoas jovens dentro dos aspectos matemáticos de

sua própria cultura”. Além disso, “evidências recentes, em investigações e estudos

antropológicos e culturais, têm mostrado de forma convincente que a Matemática que

nós conhecemos é uma cultura limitada e que outras culturas têm criado idéias que

refletem ‘outras matemáticas’ ”, o que leva a existência de “uma necessidade de

multiculturalizar o currículo” (Gilmer, 1991, p.3).

As práticas etnomatemáticas sustentam-se por metas que prometem superar o

fracasso escolar daqueles que se “sentem derrotados”. Para tanto, são inventadas

técnicas multiculturais que mantêm a visão de que o fracasso educacional pode ser

superado se novas formas de conduzir o currículo forem criadas. Formas curriculares

multiculturais possibilitariam reavaliar a experiência escolar incluindo os etnosaberes

de “comunidades minoritárias”.

Desse modo, são produzidas práticas de aprendizagem que incluam a tradição

dos desenhos africanos, “que ameaçaram extinguir-se durante o período colonial”.

Incorporar “essa tradição no currículo, tanto na África como em outras partes do

mundo, contribuirá para reviver e valorizar a velha prática dos especialistas e reforçará a

compreensão do valor da herança científica e artística da África”. Tais práticas podem,

também, “contribuir para o desenvolvimento de uma Educação Matemática mais

produtiva, mais criativa e multicultural” (ib., p.3).

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Este processo de multiculturalização do currículo por meio de técnicas que

promovam uma aprendizagem matemática multicultural pode ser constatado em artigos

sobre os grupos de trabalho do congresso ICME-7 International Congress on

Mathematical Education, a partir dos seguinte tema: Matemática multicultural. No

sentido de promover práticas culturais que viabilizem um ensino multicultural da

matemática, outros temas são propostos: Aulas Multiculturais e Currículo,

investigações e Materiais para salas de aula multiculturais. Assim, para desenvolver

uma aula multicultural, foram operacionalizadas práticas pelas quais os estudantes

deveriam “escrever um ensaio sobre seus antecedentes culturais utilizando temas da

história da matemática acerca das pessoas de sua própria cultura, ou utilizando a

biblioteca, ou fontes familiares” (ISGEm, 1992, p.1-3).

Para a arte de moldar currículos multiculturais, a ênfase nas “diferenças

relacionadas culturalmente nos estilos de aprendizagem pode representar desafios”. Para

tanto, o governo etnomatemático destaca que “os professores precisam sensibilizar-se

aos estilos de aprendizagem de todos os estudantes em suas salas de aula”. Para o

governo etnomatemático, os problemas relacionados à diferença cultural advêm da

“resistência por parte dos alunos e professores para ressaltar” tais diferenças. Por

exemplo, “os estudantes asiáticos, algumas vezes, são relutantes para fazer perguntas na

sala de aula, e alguns estudantes indo-americanos não se acostumaram a olhar nos olhos

de seus professores porque é considerado falta de educação” (ISGEm,1992, p. 1-3).

O governo etnomatemático aponta que existe uma má interpretação de “que as

matemáticas africanas são somente para estudantes negros e as matemáticas sul-

americanas para estudantes latinos”. Em uma “sociedade plural”, os estudantes

necessitam “ver os aspectos multiculturais das matemáticas, que fazem parte de sua

interação com estudantes de uma variedade de culturas”. Esses aspectos “devem estar

mesclados em todo o currículo”. Para restituir uma harmonia curricular que leve em

conta as diferenças culturais, constitui-se a necessidade de “levar a cabo trocas nos

programas de formação de professores. O multiculturalismo deve ser inserido no

currículo de formação de professores”, não sendo “tomado como um tema isolado”. Só

assim “o multiculturalismo não será visto de forma trivial” (ib., p.1-3).

No intuito de integrar, nas salas de aula, idéias e exemplos de Etnomatemática, o

governo etnomatemático aponta a necessidade de incluir “aplicações matemáticas de

várias culturas e grupos étnicos ao redor do mundo”, assim como ocorre em “muitos

programas de educação multicultural que agora se apresentam”. Tal inclusão “pode

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Page 13: ARTE DA SEDUÇÃO MULTICULTURAL NO GOVERNO DO

ajudar a construir a auto-estima dos estudantes, visto que eles vêem que a cultura de seu

lugar ou de seus ancestrais têm usado matemáticas e contribuído para o

desenvolvimento das mesmas”. Currículos multiculturais, podem “animar os estudante,

de grupos de baixa representatividade na população, a continuar e a superar-se em

matemática, por demonstração histórica”, mostrando que “as pessoas pertencentes a seu

grupo podem ter êxito em matemática” (Shirley, 1992, p.2).

Ao que tudo indica, o problema das diferenças culturais é constituído pela

ausência de atividades que “favoreçam uma aprendizagem” multicultural, pela

“resistência por parte dos alunos”, pela falta de respeito aos diferentes saberes e de

“sensibilidade dos professores em ressaltá-las”. Para amenizar tais diferenças, o governo

etnomatemático propõe considerar o contexto cultural dos estudantes, enfatiza a

importância de práticas que possibilitem aos professores “valorizar a aprendizagem

quando esta já ocorreu”. Assinala, ainda, que a ênfase em um currículo que inclua

conteúdos que os alunos dominem faz com que se necessite “conhecer os alunos ao

quais ensinamos” (ISGEm, 1994, p.3).

A partir de práticas que favoreçam uma aprendizagem multicultural, o governo

etnomatemático circunscreve seu campo de ação por meio de um saber do que deve ser

governado. No sentido de que os professores possam “valorizar a aprendizagem” já

ocorrida dos estudantes, é necessário conhecê-los e respeitar o contexto cultural no qual

estes estão inseridos. Para maximizar a aprendizagem dos indivíduos fazendo com que

estes superem-se em matemática e construam sua auto-estima, o governo

etnomatemático, articulado a racionalidade multicultural, produz um conhecimento

inteligível sobre aqueles com quem está comprometido em promover a auto-estima.

Assim, as diferenças são suprimidas por meio do respeito e da valorização dos saberes

subordinados .

O discurso da necessidade de introduzir atividades matemáticas baseadas nas

etnoculturas dos estudantes, no intuito de garantir respeito as diferenças culturais, está

articulado à produção de técnicas que possibilitem às escolas e aos professores modos

de amenizar tais diferenças. Para que isso se concretize, o governo etnomatemático

aciona tecnologias que fazem com que os indivíduos indiquem, em suas avaliações, que

experiências de aprendizagem multiculturais ampliaram “a compreensão de outras

culturas e comprometeram seu interesse matematicamente” (Zaslavsky, 1992, p.5).

Os caminhos apontados pelo governo etnomatemático para multiculturalizar o

currículo não são impostos, já que tal meta provem da constituição da necessidade de

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Page 14: ARTE DA SEDUÇÃO MULTICULTURAL NO GOVERNO DO

valorizar os saberes culturais subordinados. Afinal, valorizar os saberes culturais,

buscando superar preconceitos, favorece uma melhor aprendizagem matemática e

contribui para a superação das diferenças culturais por meio do respeito aos saberes

locais.

3.3 Reafirmação cultural

O governo etnomatemático depende de uma racionalidade que forneça os

instrumentos para que os indivíduos se reconheçam como sujeitos de um determinado

tipo. Sujeitos respeitosos, confiantes, dignos e orgulhosos de sua própria cultura. Ao

justificar a inclusão da Etnomatemática no currículo, esse governo tem como meta

encorajar “os professores a examinarem junto com seus estudantes seus métodos e

modos de conceptualizar o conhecimento matemático”. Essas práticas pedagógicas

etnomatemáticas capacitam os indivíduos a “se dar conta de que sabem mais

matemática do que as tradicionais avaliações mostram”. Além disso, “frente à

diversidade cultural e racial dos estudantes”, possibilitam-lhes uma “afirmação cultural”

(Frankenstein & Powell, 1989, p.110).

O governo etnomatemático destaca a importância da reafirmação cultural dos

povos colonizados buscando “encorajar a compreensão de que os povos africanos foram

capazes de desenvolver matemática no passado”’. A compreensão habilitará esses povos

a tornarem-se “capazes de assimilar e desenvolver a matemática de que necessitam”, o

que proporciona um sentimento de “confiança cultural” (Gerdes, 1991, p.6).

Para operacionalizar a tecnologia da “reafirmação cultural”, o dispositivo

etnomatemático articula suas técnicas multiculturais de governo do currículo escolar

com as de conscientização, pois, enfocar aspectos multiculturais do currículo permite

que os “estudantes se conscientizem do papel da Matemática em todas as sociedades”.

Assim, “tomam consciência de que as práticas matemáticas nascem das reais

necessidades e interesses dos povos; os estudantes aprendem a apreciar as contribuições

de culturas diferentes das suas e a valorizar sua própria herança cultural” (Zaslavsky,

1990, p.6).

Por meio de suas técnicas de reafirmação cultural, o governo etnomatemático,

articulado a uma racionalidade multicultural, define seus propósitos e emprega seus

conhecimentos, fornecendo instrumentos para que os indivíduos se reconheçam como

sujeitos conscientizados. Tal reconhecimento depende da operacionalização de práticas

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Page 15: ARTE DA SEDUÇÃO MULTICULTURAL NO GOVERNO DO

que possibilitem um entendimento sobre o que somos, o que não somos e o que

podemos nos tornar. Ainda mais, um entendimento dos meios que proporcionariam

superar tal desarmonia. A administração da subjetividade multicultural conscientizada

requer o funcionamento de múltiplas e heterogêneas técnicas de governo da conduta.

São técnicas de reafirmação cultural, produzidas pela constituição da necessidade de

valorizar a própria cultura, da ativação de sentimentos de coragem dos indivíduos e de

seu passado cultural.

A racionalidade etnomatemática, ao fornecer instrumentos pelos quais a

“reafirmação cultural” dos grupos subordinados será “conquistada”, regula suas ações

através de um dispositivo que utiliza uma gama de tecnologias multiculturais.

Apontando caminhos que possibilitem reafirmar as culturas excluídas do currículo

escolar, o governo etnomatemático constitui, por meio de técnicas de governo, uma

racionalidade multicultural que não tem sua origem no Estado. No entanto, governar de

um modo multicultural tem proporcionado a constituição de tecnologias que

possibilitam, de forma eficaz e econômica, introduzir objetivos das autoridades políticas

no interior das escolhas, necessidades e interesses pessoais dos indivíduos.

O dispositivo etnomatemático faz com que seus sujeitos acreditem que neste

processo de multiculturalização curricular está sua autonomia e liberdade. As

autoridades etnomatemáticas programam técnicas vinculando as ações dos grupos

através da instrumentalização de sua autonomia regulada (cf. Rose 1997b). A

racionalidade etnomatemática, ao definir seus sujeitos, os define de uma nova forma:

sujeitos orgulhosos de sua própria cultura; sujeitos confiantes e conscientizados, cujas

condutas são esculpidas por uma arte que inventa técnicas através das quais suas ações

multiculturais são instrumentalizadas. A ironia disso tudo talvez esteja em acreditarmos

que, ao nos transformarmos em sujeitos conscientes, respeitosos, participativos,

multiculturais, estaríamos escolhendo livremente nossa liberdade e capacidade de agir.

Talvez, mesmo que não possamos “desinventar” a nós mesmos, possamos

reforçar e contestar formas de ser que vêm sendo inventadas começando a inventar a

nós mesmos de forma diferente. As múltiplas práticas e técnicas de governo podem

produzir “efeitos de resistência” sem a necessidade de “invocar uma concepção

unificante de ‘agência humana’ ”. Assim as capacidades para ação podem emergir de

regimes e tecnologias específicas que “maquinam os humanos de várias formas” (id.,

1996c, p.187).

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