concepção multicultural de dh.boaventura sousa santos

Upload: aline-carmo

Post on 07-Apr-2018

225 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    1/21

    UMA CONCEPC;AOMULTICULTURAL DEDIRETOS HUMANOS

    BOA VENTURA DE SOUZA SANTOS

    E com alguma perplexidade que nos ultimos tempos tenhoobservado a forma como os direitos humanos se transformaram na lin-guagem da polftica progressista. De facto, durante muitos anos, ap6s aSegunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante dapolftica da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda.Duplos criterios na avaliacao das violacoes dos direitos humanos, com-placencia para com ditadores amigos, defesa do sacriffcio dos direitos hu-manos em nome dos objetivos do desenvolvimento - tudo isto tornou osdireitos humanos suspeitos enquanto guiao emancipatorio, Quer nospafses centrais, quer em todo 0 mundo em desenvolvimento, as forcasprogressistas preferiram a linguagem da revolucao e do socialismo paraformular uma polftica emancipatoria. Todavia, com a crise aparentementeirreversfvel destes projetos de emancipacao, essas mesmas forcas pro-gressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a lingua-gem da emancipacao, E como se os direitos humanos fossem evocadospara preencher 0 vazio deixado pelo socialismo. Poderao realmente os di-reitos human os preencher tal vazio? A minha resposta e urn sim muitocondicional. 0 meu objectivo neste trabalho e identificar as condicoesem que os direitos human os podem ser colocados ao service de umapolftica progressista e emancipatoria, Tal tarefa exige que sejam clara-mente entendidas as tens6es dialecticas que informam a modernidade oci-

    I Noutro trabaIho, analiso com mais detalhe as tensoes dialecticas da modemidade ocidental(Santos, (995).

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    2/21

    106 LUA NOVA N 39 - 97

    dental'. A crise que hoje afecta estas tensoes assinala, melhor que qual-quer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actual mentedefronta. Em minha opiniao, a polftica de direitos humanos deste final deseculo e urn factor-chave para compreender tal crise.

    Identifico tres tensoes dialecticas. A primeira ocorre entre regu-lacao social e emancipacao social. Tenho vindo a afirmar que 0paradigma damodemidade se baseia numa tensao dialectica entre regulacao social e eman-cipacao social, a qual esta presente, mesmo que de modo dilufdo, na divisapositivista "ordem e progresso". Neste final de seculo, esta tensao deixou deser uma tensao criativa. A emancipacao deixou de ser 0outro da regulacaopara se tomar no duplo da regulacao, Enquanto ate finais dos anos sessenta ascrises de regulacao social suscitavam 0fortalecimento das polfticas emanci-patorias, hoje a crise da regulacao social- simbolizada pel a crise do Estadoregulador e do Estado-Providencia - e a crise da emancipacao social -simbolizada pel a crise da revolucao social e do socialismo enquanto paradig-rna da transformacao social radical - sao simultaneas e alimentam-se umada outra. A polftica dos direitos humanos, que foi simuItaneamente umapolftica reguladora e uma polftica emancipadora, esta armadilhada nesta du-pIa crise, ao mesmo tempo que e sinal do desejo de a uItrapassar.

    A segunda tensao dialectica ocorre entre 0 Estado e a sociedadecivil. 0 Estado modemo, nao obstante apresentar-se como urn Estado mi-nimalista, e potencialmente urn Estado maximalista, pois a sociedade civil,enquanto 0 outro do Estado, auto-reproduz-se atraves de leis e regulacoesque dimanam do Estado e para as quais nao parecem existir limites, desdeque as regras democratic as da producao de leis sejam respeitadas. Os direi-tos humanos estao no ceme desta tensao: enquanto a primeira geracao dedireitos humanos (os direitos cfvicos e polfticos) foi concebida como umaIura da sociedade civil contra 0 Estado, considerado como 0 principal vio-lador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira geracoes (direi-tos econornicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc)pressupoem que 0 Estado seja 0 principal garante dos direitos humanos.

    Por fim, a terceira tensao ocorre entre 0Estado-nacao e 0 que de-signamos por globalizacao. 0 modelo politico da modernidade ocidental eurn modelo de Estados-nacao soberanos, coexistindo num sistema interna-cional de Estados igualmente soberanos - 0sistema interestatal. A unidadee a escala privilegiadas, quer da regulacao social quer da emancipacao so-cial, e 0 Estado-nacao. 0 sistema interestataI foi sempre concebido comouma sociedade mais ou menos anarquica, regida por uma legalidade muitotenue, e mesmo 0 internacionalismo da cIasse operaria sempre foi mais umaaspiracao do que uma realidade. Hoje, a erosao selectiva do Estado-nacao,imputavel a intensificacao da globalizacao, coloca a questao de saber se,

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    3/21

    UMA CONCEPC;:AO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 107quer a regulacao social quer a emancipacao social, deverao ser deslocadaspara 0nfvel global. E neste sentido que ja se comecou a falar em sociedadecivil global, governo global e equidade global. Na primeira linha desteprocesso esta 0 reconhecimento mundial da polftica dos direitos humanos.A tensao, porem, repousa, por urn lado, no facto de, tanto as violacoes dosdireitos humanos, como as lutas em defesa deles continuarem ater uma de-cisiva dimensao nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cru-ciais, as atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostosculturais especfficos. A polftica dos direitos humanos e basicamente umapolftica cultural. Tanto assim e que poderemos mesmo pensar os direitoshumanos como sinal do regresso do cultural, e ate mesmo do religioso, emfinais de seculo. Ora, falar de cultura e de religiao e falar de diferenca, defronteiras, de particularismos. Como poderao os direitos humanos ser umapolftica simultaneamente cultural e global?

    Nesta ordem de ideias, 0meu objectivo e desenvolver urn qua-dro analftico capaz de reforcar 0 potencial emancipat6rio da polftica dosdireitos humanos no duplo contexto da globalizacao, por urn lado, e dafragmentacao cultural e da polftica de identidades, por outro. A minha in-tencao e justificar uma polftica progressista de direitos humanos comambito global e com legitimidade local.

    ACERCA DAS GLOBALIZA~6ESComecarei por especificar 0 que entendo por globalizacao. A

    globalizacao e muito diffcil de definir. Muitas definicoes centram-se naeconomia, ou seja, na nova economia mundial que emergiu nas ultimasduas decadas como consequencia da intensificacao dramatica da transna-cionalizacao da producao de bens e services e dos mercados financeiros- urn processo atraves do qual as empresas multinacionais ascenderam auma preeminencia sem precedentes como actores internacionais. Para osmeus objectivos analfticos privilegio, no entanto, uma definicao de globa-lizacao mais sensfvel as dimensoes sociais, polfticas e culturais. Aquiloque habitual mente designamos por globalizacao sao, de facto, conjuntosdiferenciados de relacoes sociais; diferentes conjuntos de relacoes sociaisdao origem a diferentes fen6menos de globalizacao. Nestes termos, naoexiste estritamente uma entidade iinica chamada globalizacao; existem, emvez disso, globalizacoes; em rigor, este termo s6 deveria ser usado no plu-ral. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e naosubstantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relacoes sociais, as globali-zacoes envol vern conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequente-

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    4/21

    108 LVA NOVA N" 39 - 97

    mente, 0 discurso sobre globalizacao e a historia dos vencedores contadapelos proprios, Na verdade, a vit6ria e aparentemente tao absoluta que osderrotados acabam por desaparecer totalmente de cena.

    Proponho, pois, a seguinte definicao: a globalizacao e 0proces-so pelo qual determinada condicao ou entidade local consegue estender asua influencia a todo 0globo e, ao faze-lo, desenvolve a capacidade de de-signar como local outra condicao social ou entidade rival.

    As implicacoes mais importantes desta definicao sao as se-guintes. Em primeiro lugar, perante as condicoes do sistema-mundo ociden-tal nao existe globalizacao genufna; aquilo a que chamamos globalizacao esempre a globalizacao bern sucedida de determinado localismo. Por outraspalavras, nao existe condicao global para a qual nao consigamos encontraruma raiz local, uma irnersao cultural especffica. Na realidade, nao consigopensar uma entidade sem tal enraizamento local; 0 tinico candidatopossfvel, mas improvavel, seria a arquitectura interior dos aeroportos. A se-gunda implicacao e que a globalizacao pressupoe a localizacao, De facto,vivemos tanto num mundo de localizacao como num mundo de globali-zacao. Portanto, em termos analfticos, seria igualmente correcto se de-finfssemos a presente situacao e os nossos t6picos de investigacao em ter-mos de Iocalizacao, em vez de globalizacao, 0 motivo porque preferimos 0ultimo termo e basicamente porque 0 discurso cientffico hegemonico tendea privilegiar a hist6ria do mundo na versao dos vencedores.

    Existem muitos exemplos de como a globalizacao pressupoe alocalizacao. A Ifngua inglesa enquanto Ifngua franca e urn desses exem-plos. A sua propagacao enquanto Ifngua global implicou a localizacao deoutras Ifnguas potencial mente globais, nomeadamente a Ifngua francesa.Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globa-lizacao, 0 seu sentido e explicacao integrais nao podem ser obtidos sem seter em conta os processos adjacentes de relocalizacao com ele ocorrendoem simultaneo ou sequencialmente. A globalizacao do sistema de estrelatode Hollywood contribuiu para a etnicizacao do sistema de estrelato do ci-nema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60- de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroiani a Sofia Loren- que simbolizavam entao 0 modo universal de representar, parecemhoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se naomesmo curiosamente etnicos. A diferenca do olhar reside em que de entaopara ca 0 modo de representar holliwoodesco conseguiu globalizar-se.Para dar urn exemplo de uma area totalmente diferente, a medida que seglobaliza 0 hambtirguer ou a pizza, localiza-se 0 bolo de bacalhau portu-gues ou a feijoada brasileira no sentido de que serao cada vez mais vistoscomo particularismos tfpicos da sociedade portuguesa ou brasileira.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    5/21

    UMA CONCEPyAO MULTICULTURAL DE D1REITOS HUMANOS 109

    Uma das transformacoes mais frequentemente associadas aglobalizacao e a cornpressao tempo-espaco, ou seja, 0processo social peloqual os fenomenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que apa-rentemente monolftico, este processo combina situacoes e condicoes alta-mente diferenciadas e, por esse motivo, nao pode ser analisado indepen-dentemente das relacoes de poder que respondem pel as diferentes formasde mobilidade temporal e espacial. Por urn lado, existe a classe capitalistatransnacional, aquela que realmente control a a cornpressao tempo-espacoe que e capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, asclasses e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os refu-giados, que nas duas tiltimas decadas tern efectuado bastante movimen-tacao transfronteirica, mas que nao control am, de modo algum, a com-pressao tempo-espaco. Entre os executivos das empresas multinacionais eos emigrantes e refugiados, os turistas representam urn terceiro modo deproducao da compressao tempo-espaco.

    Existem ainda os que contribuem fortemente para a globali-zacao mas que, nao obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo-espaco local. Os camponeses da BoIfvia, do Peru e da Colombia, ao culti-varem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da dro-ga, mas eles pr6prios permanecem "localizados" nas suas aldeias e mon-tanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelasdo Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquantoas suas cancoes e as suas dancas, sobretudo 0 samba, constituem hojeparte de uma cultura musical globalizada.

    Finalmente, e ainda noutra perspectiva, a competencia global re-quer, por vezes, 0 acentuar da especificidade local. Muitos dos lugaresturfsticos de hoje tern de vincar 0seu caracter ex6tico, vernaculo e tradicionalpara poderem ser suficientemente atractivos no mercado global de turismo.

    Para dar conta destas assimetrias, a globalizacao, tal como suge-ri, deve ser sempre considerada no plural. Por outro Iado, ha que conside-rar diferentes modos de producao da globalizacao. Distingo quatro modosde producao da globalizacao, os quais, em meu en tender, dao origem aquatro formas de globalizacao,

    A primeira forma de globalizacao e 0 localismo globalizado.Consiste no processo pelo qual determinado fenomeno local e globalizadocom sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transfor-macae da lingua inglesa em Ifngua franca, a globalizacao do fast foodamericana ou da sua rmisica popular, ou a adopcao mundial das leis depropriedade intelectual ou de telecomunicacoes dos EUA.

    A . segunda forma de globalizacao chama gIobalismo localizado.Consiste no impacto especffico de praticas e imperativos transnacionais

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    6/21

    110 LUA NOVA N 39 - 97

    nas condicoes locais, as quais sao, por essa via, desestruturadas e reestru-turadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais glo-balismos localizados induem: enclaves de cornercio livre ou zonas francas;desflorestamento e destruicao macica dos recursos naturais para pagamen-to da dfvida externa; uso turfstico de tesouros hist6ricos, lugares oucerimonias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecol6gico("compra" pelos pafses do Terceiro Mundo de lixos t6xicos produzidosnos pafses capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversao daagricultura de subsistencia em agricultura para exportacao como parte do"ajustamento estrutural": etnicizacao do local de trabalho (desvalorizacaodo salario pelo facto de os trabalhadores serem de urn grupo etnico consi-derado "inferior" ou "menos exigente"),

    A divisao internacional da producao da globalizacao assume 0seguinte padrao: os pafses centrais especializam-se em localismos global i-zados, enquanto aos pafses perifericos e imposta a escolha de globalismoslocalizados. 0 sistema-rnundo e uma trama de globalismos localizados elocalismos globalizados.

    Todavia, a intensificacao de interaccoes globais pressupoeoutros dois processos, os quais nao podem ser correctamente caracteriza-dos, nem como localismos globalizados, nem como globalismos localiza-dos. Designo 0primeiro por cosmopolitismo. As formas predominantes dedominacao nao excluem aos Estados-nacao, regioes, classes ou grupos so-ciais subordinados a oportunidade de se organizarem transnacionalmentena defesa de interesses percebidos como comuns, e de usarem em seu be-neffcio as possibilidades de interaccao transnacional criadas pelo sistemamundial. As actividades cosmopolitas induem, entre outras, dialogos e or-ganizacoes SuI-SuI, organizacoes mundiais de trabalhadores (a FederacaoMundial de Sindicatos e a Confederacao Internacional dos Sindicatos Li-vres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assisten-cia jurfdica alternativa, organizacoes transnacionais de direitos humanos,redes mundiais de movimentos feministas, organizacoes nao governamen-tais (ONGs) transnacionais de militancia anticapitalista, redes de movi-mentos e associacoes ecol6gicas e de desenvolvimento alternativo, movi-mentos literarios, artfsticos e cientfficos na periferia do sistema mundialem busca de valores culturais alternativos, nao imperialistas, empenhadosem estudos sob perspectivas p6s-coloniais ou subalternas, etc, etc.o outro processo que nao pode ser adequadamente descrito, sejacomo localismo globalizado, seja como globalismo localizado, e a emer-gencia de temas que, pela sua natureza, sao tao globais como 0 proprioplaneta e aos quais eu chamaria, recorrendo ao direito internacional, 0 pa-trim6nio comum da humanidade. Trata-se de temas que apenas fazem sen-

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    7/21

    UMA CONCEP

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    8/21

    112 LUA NOVA N 39 - 97

    de cosmopolitismo, como globalizacao de-baixo-para-cima ou contra-hegem6nica, os direitos humanos tern de ser reconceptualizados como mul-ticulturais. 0 multiculturalismo, tal como eu 0 entendo, e pre-condicao deuma relacao equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competenciaglobal e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de umapolftica contra-hegem6nica de direitos humanos no nosso tempo.E sabido que os direitos humanos nao sao universais na suaaplicacao. Actualmente sao consensualmente identificados quatro regimesinternacionais de aplicacao de direitos humanos: 0 europeu, 0 inter-americano, 0 africano e 0 asiatico-. Mas serao os direitos humanos univer-sais enquanto artefac to cultural, urn tipo de invariante cultural, parte signifi-cativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os seusvalores maximos como os mais abrangentes, mas apenas a.cultura ocidentaltende a formula-los como universais. Por isso mesmo, a questao da univer-salidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelomodo como 0 questiona. Por outras palavras, a questao da universalidade euma questao particular, uma questao especffica da cultura ocidental.o conceito de direitos humanos assenta num bern conhecidoconjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, design ada-mente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida ra-cionalmente; a natureza humana e essencialmente diferente e superior arestante realidade; 0 indivfduo possui uma dignidade absoluta e irredutfvelque tern de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do in-divfduo exige que a sociedade esteja organizada de forma nao hierarquica,como soma de indivfduos livres (Panikkar 1984: 30). Uma vez que todosestes pressupostos sao c1aramente ocidentais e facilmente distingufveis deoutras concepcoes de dignidade humana em outras culturas, teremos deperguntar por que motivo a questao da universalidade dos direitos huma-nos se tornou tao acesamente debatida. Ou por que razao a universalidadesocioI6gica desta questao se sobrepos a sua universalidade filos6fica.

    Se observarmos a hist6ria dos direitos humanos no perfodoimediatamente a seguir a Segunda Grande Guerra, nao e diffciI conc1uirque as polfticas de direitos humanos estiveram em geral ao service dos in-teresses economicos e geo-polfticos dos Estados capitalistas hegemonicos.Urn discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos permitiu atroci-dades indescritfveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltanteduplicidade de criterios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulacao daternatica dos direitos humanos nos Estados Unidos pel os meios de comuni-

    2 Para uma analise mais aprofundada dos quatro regimes intemacionais de direitos humanos,ver Santos, 1995: 330-37, e a bibliografia ai referida.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    9/21

    UMA CONCEP~AO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 113

    cacao social, Richard Falk identifica uma "polftica de invisibilidade" euma "polftica de supervisibilidade". Como exemplos da polftica de invisi-bilidade menciona Falk a ocultacao total, pelos media, das notfcias sobre 0tragico genocfdio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais que300.000 vidas) e a situacao dos cerca de cern milhoes de "intocaveis'' naindia. Como exemplos da polftica de supervisibilidade, Falk menciona aexuberancia com que os atropelos pos-revolucionarios dos direitos hurna-nos no lrao e no Vietname foram relatados nos Estados Unidos. A verdadee que 0mesmo pode dizer-se dos pafses da Uniao Europeia, sendo 0exern-plo mais gritante justamente 0 silencio mantido sobre 0 genocfdio do povoMaubere, escondido dos europeus durante uma decada, assim facilitando 0continuo e pr6spero comercio com a Indonesia.

    A marca ocidental, ou melhor, ocidental liberal do discursodominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em mui-tos outros exemplos: na Declaracao Universal de 1948, elaborada sem aparticipacao da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusi-vo de direitos individuais, com a iinica excepcao do direito colectivo a au-todeterminacao, 0 qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugadospelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos civis epolfticos sobre os direitos economicos, sociais e culturais e no reconheci-mento do direito de propriedade como 0 primeiro e durante muitos anos, 0tinico direito economico.

    Mas ha tam bern urn outro lade desta questao. Em todo 0mundomilhoes de pessoas e milhares de ONGs tern vindo a lutar pelos direitoshumanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes so-ciais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capita-listas autoritarios, Os objectivos polfticos de tais lutas sao frequentementeexplicita ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente foram-se desen-volvendo discursos e praticas contra-hegemonicos de direitos humanos,foram sendo propostas concepcoes nao ocidentais de direitos human os,foram-se organizando dialogos interculturais de direitos humanos. Nestedomfnio, a tarefa central da polftica emancipatoria do nosso tempo con-siste em transformar a conceptualizacao e pratica dos direitos humanos deurn localismo globalizado num projecto cosmopolita.

    Passo a enumerar as principais premissas de uma tal transfor-macae. A prime ira premissa e a superacao do debate sobre universalismo erelativismo cultural. Trata-se de urn debate intrinsecamente falso, cujos con-ceitos polares sao igualmente prejudiciais para uma concepcao emanci-pat6ria de direitos humanos. Todas as culturas sao relativas, mas 0relativis-mo cultural enquanto atitude filos6fica e incorrecto, Todas as culturasaspiram a preocupacoes e valores universais, mas 0 universalismo cultural,

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    10/21

    114 LVA NOVA N"39 - 97

    enquanto atitude filosofica, e incorrecto. Contra 0universalismo, ha que pro-por dialogos interculturais sobre preocupacoes isomorficas. Contra 0relati-vismo, ha que desenvolver criterios politicos para distinguir poiftica pro-gressista de poiftica conservadora, capacitacao de desarme, emancipacao deregulacao. Na medida em que 0debate despoletado pelos direitos humanospode evoluir para urn dialogo competitivo entre culturas diferentes sobre osprincfpios de dignidade humana, e imperio so que tal competicao induza ascoligacoes transnacionais a competir por valores ou exigencias maximos, enao por valores ou exigencies mfnimos (quais sao os criterios verdadeira-mente mfnimos? os direitos human os fundamentais? os menores denomina-dores comuns?). A advertencia frequentemente ouvida hoje contra os incon-venientes de sobrecarregar a polftica de direitos humanos com novosdireitos ou com concepcoes mais exigentes de direitos humanos (Donnelly,1989: 109-24) e uma manifestacao tardia da reducao do potencial emanci-patorio da modernidade ocidental a emancipacao de baixa intensidade possi-bilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa in-tensidade como 0outro lado de democracia de baixa intensidade.

    A segunda premissa da transformacao cosmopolita dos direitoshumanos e que todas as culturas possuem concepcoes de dignidade huma-na, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Tor-na-se, por isso, importante identificar preocupacoes isornorficas entre dife-rentes culturas. Designacoes, conceitos e Weltanschaungen diferentespodem transmitir preocupacoes ou aspiracoes semelhantes ou mutuamenteinteligfveis. Na seccao seguinte darei alguns exemplos.

    A terceira premissa e que todas as culturas sao incompletas eproblematicas nas suas concepcoes de dignidade humana. A incompletudepro vern da propria existencia de uma pluralidade de culturas, pois, se cadacultura fosse tao completa como se julga, existiria apenas uma so cultura.A ideia de completude esta na origem de urn excesso de sentido de queparecem enfermar todas as culturas, e e por isso que a incompletude emais facilmente perceptfvel do exterior, a partir da perspectiva de outracultura. Aumentar a consciencia de incompletude cultural ate ao seumaximo possfvel e uma das tarefas ais cruciais para a construcao de umaconcepcao multicultural de direitos humanos.

    A quarta premissa e que todas as culturas tern vers6es diferentesde dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas comurn cfrculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais aber-tas a outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidentaldesdobrou-se em duas concepcoes e praticas de direitos human os profun-damente divergentes - a liberal e a marxista - uma dando prioridade aosdireitos cfvicos e politicos, a outra dando prioridade aos direitos sociais e

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    11/21

    U M A C ON CE P< ;:A O M U LT IC UL TU RA L D E D 1R EIT OS H U MA N OS 115

    economicos", Ha que definir qual delas prop6e urn cfrculo de reciproci-dade mais amplo.

    Por ultimo, a quinta premissa e que todas as culturas tendem adistribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princfpios competitivosde pertenca hierarquica. Urn - 0 princfpio da igualdade - opera atravesde hierarquias entre unidades homogeneas (a hierarquia de estratos socio-econ6micos; a hierarquia cidadao/estrangeiro). 0 outro - 0 princfpio dadiferenca - opera atraves da hierarquia entre identidades e diferencasconsideradas iinicas (a hierarquia entre etnias ou racas, entre sexos, entrereligioes, entre orientacoes sexuais). Os dois princfpios nao se sobrepoemnecessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades sao identicase nem todas as diferencas sao desiguais.

    Estas sao as premissas de urn dialogo intercultural sobre a digni-dade humana que pode levar, eventualmente, a uma concepcao mestica dedireitos humanos, uma concepcao que, em vez de recorrer a falsos univer-salismos, se organiza como uma constelacao de sentidos locais, mu-tuamente inteligfveis, e que se constitui em redes de referencias normati-vas capacitantes.

    A HERMENEUTICA DIATOPICA

    No caso de urn dialogo intercultural, a troca nao e apenas entrediferentes saberes mas tambern entre diferentes culturas, ou seja, entre uni-versos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuraveis. Taisuniversos de sentido consistem em constelacoes de topoi forres. Os topoisao os lugares comuns ret6ricos mais abrangentes de determinada cultura.Funcionam como premissas de argumentacao que, por nao se discutirem,dada a sua evidencia, tornam possfvel a producao e a troca de argumentos.Topoi forres tornam-se altamente vulneraveis e problematicos quando"usados" numa cultura diferente. 0 melhor que Illes pode acontecer e se-rem despromovidos de premissas de argumentacao a meros argumentos.Compreender determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura poderevelar-se muito diffcil, se nao mesmo impossfve!. Partindo do pressupos-to de que tal nao e impossfvel, proponhoa seguir uma hermeneuticadiat6pica, urn procedimento hermeneutico que julgo adequado para nosguiar nas dificuldades a enfrentar, ainda que nao necessariamente para assuperar. Na area dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobili-

    3 Ver, por exemplo, Pollis e Schwab, 1979; Pollis, 1982; An-na'irn, 1992.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    12/21

    116 LUA NaVA N 39 - 97

    zacao de apoio social para as possibilidades e exigencias emancipat6riasque eles contem so sera concretizavel na medida em que tais possibili-dades e exigencias tiverem side apropriadas e absorvidas pelo contextocultural local. Apropriacao e absorcao, neste sentido, nao podem ser obti-das atraves da canibalizacao cultural. Requerem urn dialogo intercultural euma hermeneutica diat6pica. A hermeneutica diat6pica baseia-se na ideiade que os topoi de uma dada cultura, por mais forres que sejam, sao tao in-completos quanta a pr6pria cultura a que pertencem. Tal incompletude naoe visfvel do interior dessa cultura, uma vez que a aspiracao a totalidade in-duz a que se tome a parte pelo todo. 0 objectivo da hermeneuticadiat6pica nao e , porem, atingir a completude - urn objectivo inatingfvel- mas, pelo contrario, ampliar ao maximo a consciencia de incompletudemutua atraves de urn dialogo que se desenrola, por assim dizer, com urn penuma cultura e outro, noutra. Nisto reside 0seu caracter diatopico",

    Urn exemplo de hermeneutic a diat6pica e 0 da que pode ter lu-gar entre 0 tapas dos direitos humanos na cultura ocidental, 0 tapas dodharma na cultura hindu e 0 tapas da umma na cultura islamica. SegundoPanikkar, dharma "e 0 que sustenta, da coesao e, portanto, forca, a umadada coisa, a realidade e, em ultima instancia, aos tres mundos (trilokai. Ajustica da coesao as relacoes humanas; a moralidade mantem a pessoa emharmonia consigo mesma; 0 direito e 0 princfpio do compromisso nasrelacoes humanas; a religiao e 0 que mantern vivo 0 universe; 0 destino eo que nos liga ao futuro; a verdade e a coesao interna das coisas ... Urnmundo onde a nocao de Dharma e central e quase omnipresente nao estapreocupado em encontrar 0 'direito' de urn indivfduo contra outro ou do in-divfduo perante a sociedade, mas antes em avaliar 0 caracter dharmico(correcto, verdadeiro, consistente) ou adharmico de qualquer coisa ouaccao no complexo teantropoc6smico total da realidade." (1984:39)5.

    Vistos a partir do tapas do dharma, os direitos humanos sao in-completos na medida em que nao estabelecem a ligacao entre a parte (0 in-divfduo) e 0 todo (0cosmos), ou dito de forma mais radical, na medida emque se centram no que e meramente derivado, os direitos, em vez de secentrarem no imperativo primordial, 0 dever dos indivfduos de encontra-rem 0 seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo 0 cosmos. Vista apartir do dharma, e na verdade tambern a partir da umma, como veremos aseguir, a concepcao ocidentaI dos direitos humanos esta contaminada poruma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Ape-

    4 A este respeito ver tarnbem Panikkar, 1984:28.5 Ver tambern K. Inada, 1990; K, Mitra, 1982; R. Thapar, 1966.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    13/21

    UMA CONCEP

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    14/21

    118 LUA NOVA N 39 - 97

    muculmanos e nao-muculmanos. A hermeneutica diatopica mostra-nos quea fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicoto-mias demasiado rfgidas entre 0 indivfduo e a sociedade, tornando-se assimvulneravel ao individualismo possessivo, ao narcisismo, a alienacao e a ano-mia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islamicadeve-se ao facto de nenhuma delas reconhecer que 0sofrimento humano ternuma dimensao individual irredutfvel, a qual so pode ser adequadamente con-siderada numa sociedade nao hierarquicamente organizada.o reconhecimento de incompletudes rrnituas e condicao sine quanon de urn dialogo intercultural. A hermeneutica diatopica desenvolve-setanto na identificacao local como na inteIigibiIidade translocal das incom-pletudes. Urn born exemplo de hermeneutica diatopica entre a culturaislamica e a cultura ocidental no campo dos direitos humanos e dado porAbduIIahi An-na'im (1990; 1992). Existe urn longo debate acerca dasrelacoes entre islamismo e direitos human os e da possibiIidade de umanocao islamica de direitos humanos''. Este debate abrange urn largo espec-tro de posicoes e 0 seu impacto ultrapassa 0mundo islamico. Embora cor-rendo 0 risco de excessiva simplificacao, duas posicoes extremas podemser identificadas neste debate. Uma, absolutista ou fundamentalista, e sus-tentada por aqueles para quem 0 sistema jurfdico religioso do lslao, a Sha-ri'a, deve ser integralmente aplicado como 0 direito do Estado islamico. Se-gundo esta posicao, ha inconsistencies irreconciliaveis entre a Shari'a e aconcepcao ocidental dos direitos human os, e sempre que tal ocorra a Sha-ri'a deve prevalecer. Por exemplo, relativamente ao estatuto dos naornuculmanos, a Shari'a detennina a criacao de urn Estado para muculmanosque apenas reconhece estes como cidadaos, negando aos nao-muculmanosquaisquer direitos polfticos. Ainda segundo a Shari'a, a paz entremuculmanos e nao-muculmanos e sempre problematica e os confrontos po-dem ser inevitaveis. Relativamente as mulheres, 0 problema da igualdadenem sequer se poe; a Shari'a impoe a segregacao das mulheres e, em algu-mas interpretacoes mais estritas, exclui-as de toda a vida publica.

    No outro extremo, encontram-se os secularistas ou modernistas,que entendem deverem os muculmanos organizar-se em Estados seculares.o lslao e urn movimento religioso e espiritual e nao polftico e, como tal, associedades muculmanas modern as sao livres de organizar 0 seu governo

    6 Para alem de An-na'im (1990; 1992), veja-se Dwyer, 1991; Mayer, 1991; Leites, 1991;Afkhami, 1995, Veja-se tambern Hassan, 1982; Al Faruqui, 1983. Acerca do debate mais am-plo sobre a relacao entre modemidade e 0despertar reJigioso islamico, veja-se, por exemplo,Sharabi, 1992 e Shariati, 1986.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    15/21

    UMA CONCEP~AO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 119

    do modo que julgarem conveniente e apropriado as circunstancias. A acei-tacao de direitos humanos internacionais e uma questao de decisao polfticaindependente de consideracoes religiosas.

    Apenas para dar urn exemplo, entre muitos, desta posicao: umalei tunisina de 1956 proibiu a poligamia com 0 argumento de ter deixadode ser aceitavel, tanto mais que a exigencia coranica de justica no trata-mento das co-esposas era impossfvel de realizar na pratica por qualquerhomem, excepto 0Profeta.

    An-na'im critica estas duas posicoes extremas. A via per mezzoque propoe pretende encontrar fundamentos interculturais para os direitoshumanos, identificando as areas de conflito entre a Shari'a e "os criteriosde direitos humanos" e estabelecendo uma reconciliacao ou relacao positi-va entre os dois sistemas. 0 problema da Shari'a hist6rica e que excluimulheres e nao-rnuculmanos do campo de reciprocidade. Para 0resolver, enecessaria uma reforma ou reconstrucao da Shari'a. 0 metoda propostopara tal "Reforma islamica'' assenta numa revisao evolucionista das fontesislamicas, que reconsidera 0contexto hist6rico especffico em que a Shari'afoi criada pelos juristas dos seculos VIII e IX. Nesse contexto hist6rico es-pecffico, uma construcao restritiva do Outro e da reciprocidade foi prova-velmente justificada. Hoje, porem, 0 contexto e totalmente diferente e epossfvel reencontrar nas fontes originarias do lslao plena justificacao parauma visao mais ampla de reciprocidade.

    Seguindo os ensinamentos de Maorne, An-na'im demonstra queuma analise atenta do conteiido do Corao e do Suna revela dois nfveis oufases da mensagem do lslao: urna, do perfodo da Meca Antiga e outra, doperfodo subsequente, de Medina. A mensagem primitiva de Meca e a men-sagem eterna e fundamental do lslao, que sublinha a dignidade inerente atodos os seres humanos, independentemente de sexo, religiao ou raca. Estamensagem, considerada demasiado avancada para as condicoes hist6ricasdo seculo VII (a fase de Medina), foi suspensa e a sua aplicacao adiada ateque no futuro as circunstancias a tornassem possfvel. 0 tempo e 0 contex-to, diz An-na'im, estao agora maduros para tal.Nao me cabe avaliar a validade especffica desta proposta para acultura islamica. Esta postura e precisamente 0que distingue a hermeneuticadiat6pica do orientalismo". 0 que quero realcar na abordagem de An-na'im ea tentativa de transformar a concepcao de direitos human os ocidental numaconcepcao intercultural que reivindica para eles a legitimidade islamica, em

    7 Sobre a construcao etnocentrica do Outro, oriental, pela cultura e ciencia europeias a partirdo sec. XIX, efr. Said, 1985.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    16/21

    120 LU A N OVA W 39 - 97

    vez de renunciar a ela. Em abstracto e visto de fora, e diffcil ajuizar qual dasabordagens, a religiosa ou a secularista, tera mais probabilidades de prevale-cer num dialogo intercultural sobre direitos humanos a partir do lslao, Porem,tendo em mente que os direitos humanos ocidentais sao a expressao de urnprofundo, se bern que incompleto, processo de secularizacao, sem paralelona cultura islamica, estaria inclinado a sugerir que, no contexto muculmano,a energia mobilizadora necessaria para urn projecto cosmo pol ita de direitoshumanos podera gerar-se mais facilmente num quadro religioso esclarecido.Se este for 0caso, a abordagem de An-na'im e muito promissora.

    A hermeneutica diat6pica nao e tarefa para uma s6 pessoa, escre-venda dentro de uma rinica cultura. Nao e, portanto, surpreendente que aabordagem de An-na'im, urn genufno exercfcio de hermeneutic a diat6pica,seja por ele conduzida com consistencia desigual. Na minha perspectiva,An-na'im aceita demasiado facil e acriticamente a ideia de direitos humanosuniversais. Apesar de este autor subscrever uma abordagem evolucionista eestar realmente atento ao contexto hist6rico da tradicao islamica, a sua inter-pretacao resulta surpreendentemente ahist6rica e ingenuamente universalis-ta quanta a Declaracao Universal dos Direitos Humanos. A hermeneuticadiat6pica requer nao apenas urn tipo de conhecimento diferente, mas tam-bern urn diferente processo de criacao de conhecimento. A hermeneuticadiat6pica exige uma producao de conhecimento colectiva, interactiva, inter-subjectiva e reticular.

    A hermeneutica diat6pica conduzida por An-na'im a partir daperspectiva da cultura islamica e as lutas pelos direitos humanos organiza-das pelos movimentos feministas islamicos, seguindo as ideias da "Reformaislamica" por ele propostas, tern de ser complementadas por uma herme-neutica diat6pica conduzida a partir da perspectiva de outras culturas e, no-meadamente, da perspectiva da cultura ocidental dos direitos humanos. Estee provavelmente 0iinico meio de integrar na cultura ocidental a nocao de di-reitos colectivos, os direitos da natureza e das futuras geracoes, bern como anocao de deveres e responsabilidades para com entidades colectivas, sejamelas a comunidade, 0mundo ou mesmo 0cosmos.Mais genericamente, a hermeneutic a diat6pica oferece urn amplocampo de possibilidades para os debates que estao actualmente a ocorrernas diferentes regioes culturais do sistema mundial sobre os temas gerais douniversalismo, relativismo, multiculturalismo, pos-colonialismo, quadros

    8 Para 0 debate africano ver o. Oladipo, 1989; Oruka, 1990; K. Wiredu, 1990; Wamba diaWamba, 1991a, 1991b; H. Procee, 1992; M B. Ramose, 1992. Uma arnostra do rico debatena india existe em A. Nandy, 1987a, 1987b, 1988; P, Chatterjee, 1984; T. Pantham, 1988.Uma visao global sobre as diferencas culturais pode ser encontrada em Galtung, 1981.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    17/21

    UMA CONCEP~Ao MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 121culturais da transformacao social, tradicionalismo e renovacao cultural".Porem, uma concepcao idealista de dialogo intercultural podera esquecerfacilmente que tal dialogo s6 e possfvel atraves da simultaneidade tem-poraria de duas ou mais contemporaneidades diferentes. Os parceiros nodialogo sao apenas superficialmente contemporaneos: na verdade, cada urndeles sente-se apenas contemporaneo da tradicao hist6rica da sua cultura. Eassim sobretudo quando as diferentes culturas envolvidas no dialogo parti-Iham urn passado de sucessivas trocas desiguais. Que possibilidades exis-tern para urn dialogo intercultural se uma das culturas em presenca foi mol-dada por massivas e prolongadas violacoes dos direitos humanosperpetradas em nome da outra cultura? Quando as cuIturas partilham talpassado, 0 presente que partilham no momento de iniciarem 0 dialogo e , nomelhor dos casos, urn quid pro quo e, no pior dos casos, uma fraude. 0 diIe-rna cultural que se levanta e 0 seguinte: dado que, no passado, a culturadominante tornou impronunciaveis algumas das aspiracoes a dignidade hu-mana por parte da cultura subordinada, sera agora possfvel pronuncia-las nodialogo intercultural sem, ao faze-lo, justificar e mesmo reforcar a sua im-pronunciabilidade?

    Imperialismo cultural e episternicfdio sao parte da traject6riahist6rica da modernidade ocidentaI. Ap6s seculos de trocas culturais desi-guais, sera justo tratar todas as culturas de forma igual? Sera necessariotornar impronunciaveis algumas aspiracoes da cultura ocidental para darespaco a pronunciabilidade de outras aspiracoes de outras culturas? Para-doxalmente - e contrariando 0 discurso hegernonico - e precisamenteno campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tern de aprendercom 0 SuI para que a falsa universalidade atribufda aos direitos humanosno contexte imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitis-mo, num dialogo intercultural.o caracter emancipat6rio da hermeneutica diat6pica nao esta ga-rantido a priori e, de facto, 0multiculturalismo pode ser 0 novo r6tulo deuma polftica reaccionaria. Basta mencionar 0multiculturalismo do primei-ro ministro da Malasia ou da gerontocracia chinesa quando se referem a"concepcao asiatica de direitos humanos" para justificar as 26 conhecidas eas desconhecidas "Tianamens". Para prevenir esta perversao, dois imperati-vos interculturais devem ser aceites por todos os grupos empenhados nahermeneutica diat6pica. 0 primeiro pode formular-se assim: das diferentesversoes de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa 0cfrculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versao que vaimais longe no reconhecimento do outro. Como vimos, das duas diferentesinterpretacoes do Corao, An-na'im escolhe a que possui 0cfrculo mais am-plo de reciprocidade, a que abrange igualmente muculmanos e nao-

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    18/21

    122 LUA NOVA N" 39 - 97

    muculmanos, homens e mulheres. 0 mesmo procedimento deve ser adopta-do na cultura ocidental. Das duas versoes de direitos humanos existentes nanossa cultura - a liberal e a marxista - a marxista deve ser adoptada, poisamplia para os domfnios economico e social a igualdade que a versao libe-ral apenas considera legftima no domfnio polftico.o segundo imperativo intercultural pode ser enunciado do se-guinte modo: uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas egrupos de acordo com dois princfpios concorrentes de pertencahierarquica, e, portanto, com concepcoes concorrentes de igualdade e di-ferenca, as pessoas e os grupos sociais tern 0 direito a ser iguais quando adiferenca os inferioriza, e 0 direito a ser diferentes quando a igualdade osdescaracteriza. Este e, consabidamente, urn imperativo muito diffcil deatingir e de manter. Os Estados constitucionais multinacionais como a Bel-gica aproximam-se dele em alguns aspectos. Existe neste momento grandeesperanca que a Africa do SuI venha a ser outro exemplo.

    CONCLUSAONa forma como sao agora predominantemente entendidos, os

    direitos humanos sao uma especie de esperanto que dificilmente se poderatornar na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentesregi6es do globo. Compete a hermeneutica diat6pica proposta neste artigotransforma-los numa polftica cosmopolita que ligue em rede lfnguas nati-vas de emancipacao, tornando-as mutuamente inteligfveis e traduzfveis.Este projecto pode parecer demasiado ut6pico. Mas, como disse Sartre,antes de ser concretizada, uma ideia tern uma estranha semelhanca com autopia. Seja como for, 0 importante e nao reduzir 0 realismo ao que existe,pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar 0 que existe, pormais injusto ou opressivo que seja.

    BOA VENTURA DE SOUSA SANTOS e professor de Sociologia da Facul-dade de Economia da Universidade de Coimbra e diretor do Centro de Estu-dos Sociais.

    REFERENCIAS BIBLIOGRAFICASAfkhami, Mahnaz (org.). 1995. Faith and Freedom: Women's Human Rights in the Muslim

    World. Siracusa: Syracuse University Press.Al Faruqi, Isma'il R. 1983. "Islam and Human Rights". The Islamic Quarterly, 27(1): 1230.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    19/21

    UMA CONCEPyAO MULTICULTURAL DE DIREITOS HUMANOS 123An-na'irn, Abdullahi A. (org.). 1992. Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest

    for Consensus. Filadelfia: University of Pennsylvania Press.An-na'irn, Abdullahi A. 1990. Toward an Islamic Reformation. Siracusa: Syracuse University

    Press.Chatterjee, Parfha. 1984. "Gandhi and the Critique of Civil Society", in G uha (org.): 153-1

    95.Donnelly, Jack. 1989. Universal Human Rights in Theory and Practice. Ithaca: Cornell Uni-versity Press.

    Divyer, Kevin. 1991. Arab Voices. The Human Rights Debate in TheMiddle East. Berkeley:University of California Press.

    Falk, Richard. 1981. Human Rights and State Sovereignty. Nova lork: Holmes and MeierPublishers.

    Galtung, Johan. 1981. "Western Civilization: Anatomy and Pathology". Alternatives, 7: 145-169.

    Guha, Ranajoit (org.). 1984. Subaltern Studies lll: Writings on South Asian History and Soci-ety. Delhi: Oxford University Press.

    Hassan, Riffat. 1982. "On Human Rights and the Qur'anic Perspective". Journal of Ecumeni-cal Studies 19(3) : 51-65.Huntington, Samuel. 1993. "The Clash of Civilizations?", Foreign Affairs, 72(3).

    Inada, Kenneth K. 1990. "A Budhist Response to the Nature of Human Rights" in Welch, Jr.and Leary (orgs.): 91-101.

    Leites, Justin. 1991. "Modernist Jurisprudence as a Vehide for Gender Role Reform in theIslamic World. Columbia Human Rights Law Review, 22: 251-330.

    Mayer, Ann Elizabeth. 1991. Islam and Human Rights: Tradition and Politics. Boulder:WestviewPress.

    Mitra, Kana. 1982. "Human Rights in Hinduism". Journal of Ecumenical STudies, 19(3) :77-84.

    Nandy, Ashis. 1987a. "Cultural Frames for Social Transformation: A Credo". AlternativesXll: 113-123.

    Nandy, Ashis. 1987b. Traditions, Tyranny and Utopias. Essays in the Politics of Awareness.Oxford: Oxford University Press.Nandy, Ashis. 1988. "The Politics of Secularism and the Recovery of Religious Tolerance",

    Alternatives, Xlll: 177-194.Oladipo,Olusegun. 1989. "Towards a Philosophical Study of African Culture: A Critique of

    Traditionalism". Quest, 3(2) :31-50.Oruka, H. Odera. 1990. "Cultural Fundamentals in Philosophy". QueST, 4(2):21-37.Pannikar, Raimundo. 1984. "Is the Notion of Human Rights a Western Concept?" Cahier,

    81:28-47.Pantham, Thomas. 1988. "On Modernity, Rationality and Morality: Habermas and Gandhi".

    The Indian Journal of Social Science 1(2) : I 87-208.Pollis, Adamantia. 1982. "Liberal, Socialist and Third World Perspectives of Human Rights"

    in Schwab and Pollis (orgs.) : 1-26.Poll is, Adamantia, e P. Schwab. 1979. "Human Rights: A Western Construct with Limited

    Applicability" in Pollis and Schwab (orgs.): 1-18.Poll is, Adamantia, e P. Schwab (orgs.). 1979. Human Rights: Cultural and Ideological Per-

    spectives. Nova lork: Prager.Procee, Henk. 1992. "Beyond Universalism and Relativism". Quest, 6(1):45-55.Ramose, Mogobe B. 1992. "African Democratic Traditions: Oneness, Consensus and Open-

    ness". Quest, 6(1): 63-83.Said, Edward. 1985. Orientalism. Londres: Penguin.Santos, Boaventura de Sousa. 1995. Toward a New Common Sense.Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition .Nova lork: Routledge.Schwab, Peter e A. Polis (orgs.). 1982. Toward a Human Rights Framework. Nova lork:

    Praeger.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    20/21

    124 LUA NOVA N" 39 - 97

    Sharabi, Hisham. 1992. "Modernity and Islamic Revival: The Critical Tasks of Arab Intellec-tuals". Contention. 2(1) :127-147.

    Shariati, Ali. 1986. What is 10 be done: the Enlightened Thinkers and an Islamic Renais-sance. Edited by Farhang Rajaee. Houston: The Institute for Research andIslamic Studies.

    Thapar, Romila. 1966. "The Hindu and Buddhist Traditions". International Social ScienceJournal. 18(1) :31-40.Wamba dia Warnba, Ernest. 1991a. "Some Remarks on Culture Development and Revolution

    in Africa". Journal of Historical Sociology. 4:219-235.Wamba dia Warnba, Ernest. 1991b. "Beyond Elite Politics of Democracy in Africa". Quest.

    6(1): 28-42.Welsh. Jr . Claude. e Virginia Leary (orgs.). 1990. Asian Perspectives on Human Rights.

    Boulder. Westview Press.Wiredu, Kwasi. 1990. "Are there Cultural Universals?" Quest. 4(2):5-19.

  • 8/4/2019 Concepo Multicultural de DH.Boaventura Sousa Santos

    21/21

    RESUMOS! ABS1RACfS 201

    POR UMA CONCEP